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ISBN 978-85-423-0060-4 .11, i t1l1,~11~llll\ m11 m Jovita Maria Gerheim Noronha o :j o Organizadora XI ), = s' crq '-o < ;:.· OI s: OI ... ENSAIOS iii' e\ tD ... ::r ~. 3 z SOBRE A o ... o ::, ::r OI m AUTOFICÇÃO z VI ,, -o VI VI o a, OS SOBRE A AUTOF ,:i m ,, :NSAIOS SOBRE A A ,, CÇÃOENSAIOS SOB e: ~ o JTOFICÇÃOENSAIO ,, -n ~E A AUTOFICÇÃOE ,n > o ( EDITORA ufmg ) S SOBRE A AUTOFIC '~SAIOS SOBRE A AU - Esta coletânea reúne ensaios de críticos e escritores franceses consagrados sobre a autoficção - neologismo criado por Serge Doubrovsky para definir o pacto de leitura de seu livro Fils, em 1977 - , que já constitui uma categoria conceituai corrente em nosso campo terminológico teórico-analítico. O que se preten- de é apresent ar ao leitor brasileiro tanto a história e a recepção quanto as diferentes tentativas de teorização e a controvérsia em torno dessa noção, com o fim de repensá-la em nosso con- texto e buscar respostas para a seguinte pergunta: entre nós, autoficção seria o nome de quê? ENSAIOS SOBRE A AUTOFICÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS RE ITOR Clélio Campolina Diniz VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton EDITORA UFMG DIRETOR Wander Melo Miranda VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Miranda (PRESIDENTE) Ana Maria Caetano de Faria Danielle Cardoso de Menezes Flavio d e Lemos Carsalade Heloisa Maria Murgel Starling Márcio Gomes Soares Maria Helena Damasceno e Silva Megale Roberto Alexandre do Carmo Said ' Jovita Maria Gerheim Noronha Organizadora ENSAIOS SOBRE A AUTOFICÇÃO Jovita Maria Gerheim Noronha Maria Inês Coimbra Guedes Tradução Belo Horizonte Editora UFMG 2014 © 2014, Os autores © 2014, Editora UFMG Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. E59Pn Ensaios sobre a autoficção / Jovita Maria Gerheim Noronha organizadora; tradução [de] Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2014. 245 p. : il - (Babel) ISBN: 978-85-423-0060-4 l. Autobiografia - Coletânea. 2. Ficção autobiográfica - Coletânea. 3. Eu em literatura - Coletânea. 4. Ensaios franceses - Coletânea. 5. Literatura - Coletânea. I. Noronha, Jovita Maria Gerheim. II. Guedes, Maria Inês Coimbra. III. Série. CDD: 809.935.92 CDU: 82-94 Elaborada pela DITTI - Setor de Tratamento da Informação Biblioteca Universitária da UFMG COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo CooRDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro REVISÃO DE PROVAS Bárbara Dantas e Thaís Duarte Silva PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico FORMATAÇÃO E CAPA Letícia Ferreira PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac EDITORA UFMG Av. Antônio Carlos, 6.627 J CAD II / Bloco III Campus Pampulha J 31270-901 1 Belo Horizonte/MG Tel: + 55 31 3409-4650 J Fax:+ 55 31 3409-4768 www.editoraufmg.com.br J editora@ufmg.br SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Jovita Maria Gerheim Noronha AUTOFICÇÕES & CIA. Peça em cinco atos Philippe Lejeune TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO Vincent Colonna AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO? Jacques Lecarme O ÚLTIMO EU Serge Doubrovsky A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO SOBRE A AUTOFICÇÃO? Jean -Louis Jeannelle 7 21 39 67 111 127 APROVA DO REFERENCIAL Philippe Vilain AUTOFICÇÃO É O NOME DE QU~? Philippe Gasparini ENTREVISTA A ANNIE PIBAROT DOIS EUS EM CONFRONTO Philippe Lejeune Philippe Vilain SOBRE OS AUTORES 163 181 223 243 APRESENTAÇÃO Quando, em 1977, o escritor e crítico francês Serge Doubrovsky forjou o termo "autoficção" para definir o pacto de leitura de seu livro, Fils, talvez tenha pensado à semelhança de Rousseau, autor que reivindica como sua mais importante referência: "tomo uma resolução de que jamais houve exemplo e cuja execução não terá imitador." Mas, se o tivesse afirmado, assim como o autor das Confis- sões, muito teria se enganado. No que diz respeito a seus antecessores, certos críti- cos, dentre os quais o próprio Doubrovsky, estimam que o neologismo veio nomear uma prática que, de fato, já existia. Quanto à sua sucessão, a palavra se encontra hoje dicionarizada na França (dicionários Larousse e Robert) e cada vez mais se propaga além das fronteiras desse país para definir práticas de autoescrita, como se constata 7 atualmente entre nós. E essa disseminação é operada em três esferas: os escritores que se apropriam do termo para definir suas próprias obras; o mundo acadêmico, no qual a investigação sobre essa categoria conceituai toma corpo em eventos e comunicações, em teses, dissertações e artigos; a mídia especializada, que mobiliza o termo em entrevis- tas e resenhas. Além disso, a etiqueta "autoficção" não se restringe mais ao campo da literatura, estendendo-se às outras artes. Mas o que se percebe é que não há de fato consenso nem entre os críticos, nem entre os escritores que a praticam, que são, aliás, com frequência, agentes duplos. Vale lembrar, nesse sentido, as considerações de Silviano Santiago de que "a autoficção não é forma simples nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais recente". 1 De fato, tanto a fortuna crítica da autoficção, quanto sua apropriação pelos autores para designar suas obras deixam antes a impressão de um debate vertiginoso, à maneira de Pirandello. Esta coletânea pretende, através de ensaios de críticos e escritores franceses consagrados, apresentar ao leitor brasileiro um panorama da história da autoficção e de sua recepção na França e trazer as tentativas de teorização e a controvérsia em torno da categoria, para alimentar, dentro de nosso contexto, a reflexão e o debate sobre essa "palavra-narrativa", "palavra-teste, palavra-espelho, que 8 Jovita Mar ia Gerheim Noronha nos devolve as definições que lhe atribuímos",2 como pro- põe Philippe Gasparini, em seu artigo presente neste livro. Philippe Lejeune foi o primeiro a estabelecer, em 1992, a trajetória da autoficção, na abertura do colóquio Autofic- tions & cie, realizado na Universidade de Nanterre. Lejeune lança mão da metáfora de uma peça em cinco atos, desta- cando, de maneira bem-humorada, cinco datas. O primeiro ato, "1973", encena a elaboração do conhecido quadro de Lejeune que explicita o conceito de "pacto autobiográfico", cuja casa vazia combinando homonímia entre autor e perso- nagem e pacto romanesco dará margem a Doubrovsky para forjar a noção de autoficção. O segundo ato, "1977", evoca o diálogo crítico de Doubrovsky com o quadro de Lejeune, a publicação de Fils e de textos em que o conceito, então es- treitamente vinculado à psicanálise, começa a ser teorizado. O terceiro ato, "1984", lembra o trabalho de ampliação do termo por Jacques Lecarme, que transporta a noção para outros textos, afrouxando a definição doubrovskiana. O quarto ato, "1989", explica como a tese de VincentColonna estende a definição de Doubrovsky e dá ao termo ficção um sentido "amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma literária), quanto o fictício (a invenção mesma do conteú- do)". O quinto ato, "1991-1992", coloca em cena o próprio colóquio Autofictions & cie, sua organização e realização. O texto de Lejeune antecipa as questões e divergências que se APRESENTAÇÃO 9 revelarão mais tarde na discussão sobre o conceito e em sua apropriação: "Mas seria de fato um gênero? Como poderia ela englobar sob um mesmo nome os que prometem dizer toda a verdade (como Doubrovsky) e os que se entregam livremente à invenção?", se pergunta o autor. O segundo artigo que compõe este volume apresenta as definições propostas por Vincent Colonna, em sua tipo- logia, extraídas de seu livro de 2004, no qual ele revisita a tese mencionada por Lejeune para conceber uma "teoria II da autoficção", abandonando a narratologiae dando mais ênfase à História, às obras e a seus efeitos. Colonna cria o termo "autofabulação" para designar uma prática, um procedimento, que remontaria, segundo ele, ao início de nossa era, com a obra de Luciano de Samósata, Uma histó- ria verdadeira. A seu ver, o modelo doubroviskiano seria apenas uma das manifestações da autoficção, a "autoficção biográfica", que ele chega a considerar, em carta a Jean-Louis J eannelle, como "o renascimento mascarado do bom e velho romance autobiográfico" e distingue de outras estratégias de "autofabulação": a autoficção fantástica, em que o autor inventa para si uma vida; a autoficção especular, em que o escritor, através de um "procedimento refletor", se torna um dos personagens de sua narrativa fictícia; a autoficção intru- siva (autoral), em que um narrador-autor se manifesta, sem participar da intriga como personagem. Assim, a hipótese 1 O Jovita Maria Gerheim Noronha é de que a autoficção não se restringiria a um período em que, como quer Doubrovsky, "a relação do sujeito consigo mesmo mudou", mas englobaria um conjunto bem mais amplo de textos de outras épocas e áreas geográficas, daí a ideia de" extensão máxima" de seu campo, que será sugerida e discutida por Jacques Lecarme. O ensaio de Lecarme, também apresentado no Colóquio de Nanterre de 1992, deve sua importância ao fato de ter inaugurado, como assinala Doubrovsky, a "soma impres- sionante de estudos" sobre a autoficção e, nesse sentido, resgata os elementos principais da recepção imediata da noção. Reconhecendo nas críticas ao modelo autoficcional doubrovskiano a persistência da tradicional recusa do gê- nero autobiográfico, a "viva hostilidade contra uma familia de textos", Lecarme toma a defesa da autoficção - que de- nomina "autobiografia desenfreada" - tal como é praticada por Doubrovsky e, antes dele, por outros autores. Ele chama a atenção para um aspecto importante da obra de Doubro- vsky: o fato de que, depois de Fils e dos textos teóricos sobre o conceito, "a autoficção deixou de se opor à autobiografia, para se tornar senão um sinônimo, pelo menos uma variante ou um ardil". Lecarme se opõe dessa forma à concepção extensa da autoficção, proposta por Vincent Colonna, em seu trabalho de doutorado, e às críticas do orientador da tese, Gérard Genette, que considera, em 1991, esse modelo APRESENTAÇÃO 11 - sem de fato citar o autor de Fils - como "autobiografias envergonhadas". Para Lecarme, trata-se, ao contrário, de "exercícios de ambiguidade que dão lugar a uma irredutível ambivalência", e constituem uma "população nômade de textos", sobre os quais não caberia à poética "assistida pela história literária exerc [ er] uma função profilática". O autor estabelece, em sua argumentação, uma distinção entre a concepção de Doubrovsky e a "extensão máxima" dada à noção por Colonna, para concluir que "nessa extensão do termo, pouco resta de 'auto' e surge algo que faz a ficção transbordar para todo lado e que poderia ser a literatura". O argumento de Lecarme se harmoniza com a autoanálise crítica empreendida por Serge Doubrovsky, em "O último eu" - título que remete ao livro que estava escrevendo na- quele momento - Un homme de passage [Um homem de passagem], publicado em 2011 -, segundo ele, "o último de [sua] obra romanescà'. Partindo da leitura do fragmento inicial, Doubrovsky revisita o conceito criado 40 anos antes, explicitando-o através de uma postura que já se tornou, para ele, costumeira: a imbricação do crítico e do escritor. O autor reafirma, de um lado, a importância da presença do nome próprio - assim como Lecarme e, antes dele, Lejeune - , da "homonímia autor-narrador-personagem [que] dá ao tex- to um estatuto que o inscreve no pacto autobiográfico" e, também, o aspecto referencial de suas obras - o que o afasta 12 Jovita Maria Gerheim Noronha da concepção expandida de Colonna, que Doubrovsky con- sidera como "uma possibilidade, [mas] um caso particular desviante do sentido primeiro". Segundo o autor de Fils, "isso não poderia de modo algum constituir a natureza e a essência da autoficção. A palavra, em seu uso corrente, re- mete sempre à existência real de um autor". De outro lado, Doubrovsky insiste na elaboração ficcional da narrativa, na criação de "um pacto oximórico". Como já sustentou por diversas vezes, trata-se de narrativas, nas quais "a matéria é -, estritamente autobiográfica e a maneira, estritamente ficcio- ' nal",3 de uma ficção "confirmada pela própria escrita que se Í inventa como mimese, na qual a abolição de toda e qualquer 1 sintaxe substitui, por fragmentos de frases, entrecortadas de vazios, a ordem da narração autobiográfica". Percebe-se, to- - davia, em sua proposta, que o ficcional não é compreendido como fictício, como pura invenção, mas como mobilização r ,( de estratégias narrativas tomadas de empréstimo ao roman - \ 1' ce moderno e contemporâneo: "a autoficção, para mim, não J mente, não disfarça, mas enuncia e denuncia na forma que \ escolheu para si: 'Ficção de acontecimentos e fatos es~rita- .mente reais."'4 No trecho de Un homme de passage, analisado pelo autor, a preparação das malas por ocasião da sua volta definitiva para a França depois da aposentadoria e o reen- contro com objetos pessoais, alguns esquecidos, propiciam a evocação de reminiscências de períodos diversos de sua APRESENTAÇÃO 13 vida. O fluxo de consciência toma o lugar daquela narração que segue a ordem da biografia, para colocar em cena um "vivido [que] se conta vivendo", criando um texto no qual "a enunciação e o enunciado não estão separados por um necessário intervalo, mas são simultâneos", buscando tra-} <luzir uma mudança entre a percepção que se tinha de si e a que se tem hoje. A autoficção é assim, para ele, "a forma pós-moderna da autobiografia", mas bem diferente de certas obras classificadas como autoficções, em que um persona- gem alter ego do autor protagoniza aventuras inventadas e se move num mundo ficcional bem separado do mundo da vida. Como aponta Philippe Gasparini, embora, de início, Doubrovsky tivesse "provavelmente em mente aquela acep- ção, bem ampla, da palavra 'fiction', nos Estados Unidos", ele explicitará melhor, mais tarde, seu emprego a partir da etimologia: "o verbo latino fingere significava de fato 'afeiçoar, fabricar, modelar'. O fictor era alguém que dava feição: o oleiro, o escultor e, depois, por extensão, o poeta, o autor." Em outras palavras, como já sustentava Lejeune em 1992, "essa ambiguidade do contrato de leitura traduz a ambiguidade de seu projeto: veracidade da informação, liberdade da escrita". O sentido que se dá à noção de ficção é também uma das problemáticas teóricas que Jean-Louis Jeannelle discute em seu ensaio que retoma, em 2006, a história da autoficção no 14 Jovita Maria Gerheim Noronha ponto onde a deixara Lejeune. O autor se diz, no entanto, obrigado a adotar outra estruturação para essa história, uma vez que o modelo dramatúrgico "perfeitamente ordenado" já não daria conta da trajetória subsequente da noção, que se assemelha, antes, a "uma novela de episódios pululantes, ricos em reviravoltas e cujos heróis são escoltados por uma multidão de personagens secundários". O modelo da novela enfatiza um ponto essencial de sua argumentação: para ele, a autoficção vem sendo vítima de certa "falta de rigor conceitua!". Jeannelle levanta assim "algumas dificuldades que [a autoficção] suscita", ou seja, entraves teóricos que estão em jogo nesse debate, tais como a indecidibilidade, a questão das denominações genéricas, a problemática imbri- cação das instâncias do discurso e, ponto importante para pensar a noção e entender as diversas concepções que dela resultam, as diferentes acepções do próprio termo ficção. Essa questão atravessa de forma sutil o ensaio autocrí- tico de Philippe Vilain. Para ele,a fidelidade não estaria na retranscrição do vivido, mas na transposição do que foi sentido: "escrevo em primeira pessoa uma história a partir de um fato real, verificável ( ... ) mas uma história transposta, à qual dou um prolongamento romanesco possível, um alar- gamento poético sem me nomear, mas sob a caução de meu sobrenome:' O escritor se fundamenta pela primeira vez no método da crítica genética para pensar sua obra e se propõe APRES ENTAÇÃO 1 5 a ir buscar, na leitura dos manuscritos de três de seus livros - Eétreinte [O abraço], La derniere année [O último ano] e Eété à Dresde [O verão em Dresde] -, "a prova do referen- cial", ou seja, "como [s]eus textos autoficcionais apreendem o referencial e como, em contrapartida, esse referencial é ex- perimentado ou dá provas de sua existência em um processo de autoficcionamento". Mas, embora afirme se inscrever em uma escola do eu diferente da de Doubrovsky - que o autor de Fils denomina "quase-autoficção" -, a postura de Vilain não representa de fato o abandono completo do vivido, mas uma via oblíqua para sua encenação que leva, sobretudo, em conta o sentimento experimentado que vai interferir no tratamento da rememoração: A factualidade da lembrança se revela insuficiente para a autoficção, ( ... ) não se trata mais simplesmente de procurar essa lembrança atrás de si, no antetexto, mas também diante de si, no texto e na própria escrita, tanto na retrospecção quanto na prospecção que acompanha a busca inventiva da escrita, pois a lembrança é aqui fonte autoestimulante de recriação. Para Philippe Gasparini, "falta ainda entrar em entendi- \ mento" sobre o conceito de autoficção a começar pelo signi- ficado que lhe é atribuído: "se é o nome atual de um gênero ou o nome de um gênero atual." Ele discute igualmente o 16 Jovita Maria Gerheim Noronha problema da recepção, levantado por Philippe Lejeune - a ambiguidade pretendida funcionaria na leitura ou o leitor acaba escolhendo um único pacto? -,. para sugerir que a es- tratégia da ambivalência acaba por se inscrever "na tradição do romance autobiográfico". Gasparini mostra como o termo "fugiu ao controle de seu criador", através de dois movimen- tos distintos: um alargamento de seu campo genérico e uma apropriação da categoria que a desviou, dando-lhe um sentido bem diferente: "é preciso constatar que' autoficção' se tornou, hoje, o nome de todos os tipos de textos em primeira pessoa. Funcionando como um 'arquigênero', ele subsume todo o 'espaço autobiográfico': passado e contemporâneo, narrativo e discursivo, com ou sem contrato de verdade." O autor su- ( gere que é preciso levar em conta as particularidades de cada obra e postula uma limitação do termo a certos textos: "aos textos que desenvolvem, em pleno conhecimento de causa, a tendência natural a se ficcionalizar, própria à narrativa de si." Esta coletânea se encerra com uma entrevista, na qual se confrontam duas formas de expressão do eu, a autoficção e a autobiografia ou não ficção, representadas, respectiva- mente, por Philippe Vilain e Philippe Lejeune. Os autores respondem às perguntas de Annie Pibarot sobre a especi- ficidade da escrita do eu, as acusações de narcisismo e falta de pudor dirigidas a essa literatura, a questão do leitor, as razões e modos de se autonarrar. Em acordo com Vilain, APRESENTAÇÃO 17 para quem a ideia de que "uma descrição fiel do vivido ( ... ) parece impossível", Lejeune explicita a distinção entre essas duas posturas da seguinte forma: Há pessoas que se resignam a essa impossibilidade - você, Philippe Vilain, e Serge Doubrovsky - e há pessoas que não se resignam; os que não se resignam parecem naifs para os primeiros. Pertenço à categoria dos naifs. As duas posições são constitutiva- mente antinômicas. Nossa vida é um imaginário, um imaginário que evolui, se questiona, esse imaginário é a realidade do que vivemos. A meu ver, uma escrita autobiográfica que visa à lucidez vai tentar fixar esse imaginário da forma mais nítida possível, mas, por outro lado, posso me colocar no sentido do vento e minha es- crita vai prolongar esse movimento de construção imaginária. Há, portanto, escritas que escolhem ir contra o vento para observá-lo, e outras que acompanham e amplificam seu movimento. Fica-se forçosamente numa dessas posições, mas é claro que nenhuma delas é "verdadeirà'. Esse "confronto" entre as duas posturas nos permite ir além da ideia da autoficção apenas como uma forma nova que vem se contrapor à velha para invalidá-la e abre cami- nho para pensar as diferentes configurações de autoexpres- são não simplesmente como forças opostas que se anulam, mas como forças que só podem ser compreendidas a partir 18 Jovita Maria Gerheim Noronha de suas relações, pois gravitam em um mesmo campo que é o imenso território das escritas de si. É o que parece sugerir Serge Doubrovsky, ao analisar o episódio inicial de seu "O último eu", Un homme de passage, transformando o gesto de acúmulo e triagem de suas roupas em metáfora esclare- cedora de seu projeto de autoescrita: Nada esquecer ou perder, obsessão materna, não esquecer uma mãe perdida. Obsessão também permanente desse Julien que nunca joga fora nenhuma roupa velha, nem aquelas que já não usa há muito tempo e cuja triagem lhe é imposta por sua mudança de- finitiva para a França. Esse acúmulo de camisas, pulôveres, blazers e outras roupas de década em década, sem razão, sem nenhuma ordem a não ser preservar a qualquer preço, seria minha forma perversa de diário íntimo, que sempre recusei no plano literário? É também essa abertura que a presente coletânea preten- de oferecer ao leitor, num momento em que a autoficção já constitui uma categoria conceitua! corrente em nosso cam- po terminológico teórico-analítico, tendência que nos leva forçosamente a buscar respostas para a seguinte questão: entre nós, autoficção seria o nome de quê? Jovita Maria Gerheim Noronha APRESENTAÇÃO 19 Notas 1 Cf. seu texto "Meditação sobre o ofício de criar'; Aletria, v. 18, jul./dez. 2008, disponível em <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/ Ale- tria%2018/ l 8-Silviano%20Santiago. pdf>. 2 Cf. V Colonna, C'estl'histoire d'un mot-récit ... , em C. Burgelin, 1. Grell, R.-Y. Roche (org.), Autofiction(s), Colloque de Cerisy, Lyon, PUL, 2010, p. 397-415. Nesse artigo, o autor considera a ficção como uma "palavra-narrativa, palavra rica em aventuras virtuais, grávida de narrativas futuras e de lembranças es- quecidas, descobrindo espaços fabulosos, ressuscitando genealogias apagadas''. 3 Entrevista disponível em <http://www.lepoiht.fr/grands-entretiens/serge-dou- brovsky-ecrire-sur-soi-c-est-ecrire-sur-les-autres-22-02-2011-1298292_326. php>. 4 Entrevista concedida a Philippe Vilain, Défense de narcisse, Paris, Grasset, 2005, p. 219. 20 iovita Maria Gerheim Noronha ··~- 1 1 1 1 1 1 1 1 ,1 AUTOFICÇÕES & CIA. Peça em cinco atos Ato 1, 1973 Philippe Lejeune A cena é ambientada no pequeno salon carré do pacto autobiográfico.1 Philippe Lejeune transforma o matagal da literatura do eu em jardim à francesa. Fica meditando diante de um quadro de dupla entrada que cruza dois elementos do compromisso que pode assumir um autor: a declaração quanto ao gênero praticado (romance/nada/autobiografia) e o nome que dá ao personagem principal ( diferente do seu/ nenhum/seu próprio nome). Nove casas. Três casos muito claros de autobiografia, três casos muito claros de romance. No centro, uma casa indeterminada, e por fim um resíduo: duas casas contraditórias. Lejeune pega seu lápis cinza e as colore, como se fechasse com tijolos as janelas das casas que vão ser demolidas para evitar invasores. Fica meditando diante de seu quadro, com curiosidade e escrúpulo: . 21 li li li As soluções que decretei como impossíveis seriam mesmoim - possíveis? ... O herói de um romance declarado como tal poderia ter o mesmo nome que o autor? Nada impediria que a coisa exis- tisse e seria talvez uma contradição interna que produziria efeitos interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo vem à mente . .. Então aquela casa cega ficaria vazia ... Ele fica pensando no livro de Mamice Sachs, Le sabbat [O sabá] (1946), mas acaba concluindo, talvez com razão, que o subtítulo romance era de responsabilidade do editor . .. Então a casa cega fica mesmo vazia. Todos nós temos nossas cegueiras .. . Ato li, 1977 Acreditando que a casa estava vazia, já que a janelas foram lacradas, aparece um invasor. Serge Doubrovsky, que está escrevendo um texto de éaráter pessoal e estatuto indeciso, reconhece naquela casa cega sua própria indecisão e decide ocupar o espaço: Lembro-me que, ao ler seu estudo na revista Poétique, marquei aquele trecho ... Estava então em plena redação e aquilo me dizia respeito, me atingiu em cheio. Mesmo agora, ainda não estou certo do estatuto teórico de meu empreendimento, não me cabe decidir, mas fiquei com muita vontade de preencher aquela "casà' que sua análise deixara vazia, e foi um verdadeiro desejo que 22 Philippe Lejeune subitamente ligou seu texto crítico e o que eu estava escrevendo senão às cegas, pelo menos na penumbra. [ Carta a Philippe Le- jeune, novembro 1977] Em seu "romance" intitulado Fils, Serge Doubrovsky dará a seu personagem seu próprio nome. Essa ambiguidade do contrato de leitura traduz a ambiguidade de seu projeto: veracidade da informação, liberdade da escrita. Ele explode os tijolos que lacram a janela e fmca sua bandeira: Fils é batizado "autoficção".2 A palavra não serve de subtítulo genérico (a indicação será "romance"), mas é proposta na quarta capa do livro: Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se preferirem, autoficção, por ter-se confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, avessa ao bom comportamento, avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros,Jils de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz da música. Ou ainda, autofricção, pacientemente onanista, que espera conseguir agora compartilhar seu prazer. A palavra aparece então num contexto lúdico: uma palavra-valise, que jorrou da efervescência da escrita, ime- diatamente retransformada. Serve tanto para exemplificar o modo do livro quanto para designar seu gênero. AUTOFICÇÕES & CIA. 23 Mas no fundo? ... Depois da publicação, Serge Doubro- vsky vai refletir sobre o estatuto teórico de sua empreitada, vai para a rua ver como sua bandeira está tremulando na janela e publica dois estudos de autoteorização que darão legitimidade à palavra - "L 'initiative aux maux. Écrire sa psychanalyse" [A iniciativa aos males. Escrever sua psicaná- lise]3 e "Autobiographie/vérité/psychanalyse" [Autobiogra- fia/verdade/psicanálise], publicados em 1979 e 1980. E, além disso, um gênero é como se fosse um hábito: só começa na segunda vez. Em 1982, seu livro Un amour de soi 4 retomará o mesmo dispositivo de Fils ... Ato Ili, 1984 Um oficial de justiça vem verificar as condições do imó- vel: a janela tinha sido lacrada por erro! De fato, o local é habitado ... Tem até muita gente morando lá. A bandeira, garbosa, permanece no lugar e começa-se a fazer a lista daqueles escritores que, assim como Monsieur Jourdain, o burguês fidalgo da peça de Moliere, faziam autoficção sem saber que faziam. Jacques Lecarme escreve um verbete para a Encyclo- predia universalis demonstrando que a casa não estava vazia (Céline! Malraux! e outros ... ) e, sobretudo, que ficara prodigiosamente lotada a partir do início dos anos de 1970. (Modiano, Barthes, Gary, Sollers etc.) 24 Phi li ppe Lejeune Mas esse mapeamento histórico, praticado de forma tão ampla, afrouxa a definição bem p recisa oriunda do quadro de Philippe Lejeune e retomada por Serge Doubrovsky. Pouco a pouco, ela vai englobando todas as tentativas intermediárias entre a autobiografia claramente declarada como tal e a ficção não autobiográfica. Dispositivos textuais, estratégias pessoais bastante diferentes entre si, reunidos por certa ambiguidade genérica. "Autoficção", por metonímia, torna-se a capital de um país bem vasto. Será que o editor de Universalia teve medo do neolo- gismo? Ou teve escrúpulos de ordem teórica? Seja por que motivo for, ele substituiu o título proposto por Jacques Lecarme, Autoficção, por outro mais clássico: Ficção roma- nesca e autobiográfica. Ato IV, 1989 Um concorrente se estabelece do outro lado da rua! Com a mesma placa! Mas a loja vende outra mercadoria .. . Um jovem pesquisador, Vincent Colonna, retoma a partir da ori- gem o problema levantado pela casa cega. No que tange ao nome próprio, nenhum problema. No que tange à ficção, ele dá à palavra, com muita legitimidade, um sentido completo e amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma literária) qua·nto o fictício (a invenção mesma do conteúdo). O mais AUTO FICÇÕES & CIA. 25 perturbador é que ele reutiliza, com uma nova definição, a palavra inventada por Doubrovsky. A partir de agora, essa investigação sobre a autoficção dis- põe de referências preciosas. São elas um terminus techniçus e uma primeira definição: uma autoficção é uma obra literária através da qual um escritor inventa para si uma personali- dade e uma existência, embora conservando sua identidade real (seu nome verdadeiro). Embora intuitiva, essa definição possibilita desenhar os contornos de uma extensa classe, de um rico conjunto de textos: uma região literária parece dessa forma emergir do limbo da leitura. Trata-se também de um novo rosto e uma nova coerência que parecem adquirir certas obras, de toda uma teoria de escritores considerados "mitô- manos", de Restif à Gombrowicz, cujas fabulações íntimas passam subitamente a ter valor literário. É, por fim, um meio de cotejar obras nunca ou raramente vistas como próximas. O que podem ter em comum A divina comédia e a trilogia alemã de Céline, Moravagine e Em busca do tempo perdido, Siegfried et le limousin [Siegfried e o limusina], Cosmos, o Quichote e Aziyadé? Essas obras compartilham, entretanto, a propriedade de serem fictícias e de inscrever seus autores no mundo imaginário que lhes é próprio. A investigação de Colonna se estende à literatura mun- dial e ao passado mais longínquo para mostrar a evidência de uma prática insuspeitada pelos leitores. Mas seria de fato um 26 Phi lippe Lejeune gênero? Como poderia ela englobar sob um mesmo nome os que prometem dizer toda a verdade ( como Doubrovsky) e os que se entregam livremente à invenção? A tese de Vincent Colonna, o r ientada por Gérard Genette, foi defendida em 1989 e permanece inédita. Seu título: L'autofiction. Essai sur la fictionalisation de sai en littérature [A autoficção. Ensaio sobre a ficcionalização de si em literatura].5 Ato V, 1991-1992 Serge Doubrovsky deseja organizar um colóquio sobre a autoficção. O grupo "Narrativas de vida" de N anterre tenta justamente encontrar um tema para seu próximo colóquio. Negócio fechado! .. . Será organizado um evento com o objetivo de ver com clareza essa pequena aventura teórica que coincide com as pesquisas atuais de outras disciplinas: a ) poética - Gérard Genette acaba de publicar Fiction et diction ~ [Ficção e dicção] -, a filosofia em Temps et récit [Tempo e ri narrativa] de Paul Ricreur, que desenvolve a ideia de con-) figuração e de identidade narrativa; pesquisas no exterior, como a de Paul John Eakin em particular; inquietações também, como a de Olivier Mongin, que diagnostica no sufixo auto um vírus que mata a ficção ... As reuniões preparatórias do grupo serão animadís- simas. É um bom tema, justamente por não representar AUTO FICÇÕ ES &CIA. 27 unanimidade. Seria possível pensar partindo de uma palavra como essa? Há os que acreditam na auto ficção e os que não acreditam. Os que sabem o que é, e os que não fazem a menor ideia do que seja. Os que gostam e os que detestam. Os que mudam de definição a cada reunião ... É como se a palavra "autoficção" fosse um catalisador. Ou uma partícula traçante, cuja trajetória revela as linhas de força de um campo antes de se esvanecer. Talvez não exista realmente um "gênero" que corresponda a essa palavra, mas no rastro deixado por sua passagem, nossos problemas se esclarecem, nossas diferenças se exprimem. Questões contemporâneas: tentaremos estender a re- flexão a outras literaturas ... Queríamos também, saindo da literatura, refletir sobre a exposição do corpo próprio e da imagem de si no cinema (Boris Lehman, por exemplo) ou no teatro (Philippe Caubere), mas isso ficará para outro colóquio ... Ou fazer uma incursão no país das "escritas brutas": foi o que fizemos. O colóquio aconteceu em Nanterre, nos dias 20 e 21 de novembro de 1992. Em seus anais, o leitor acompanhará nossas explorações. Foi infelizmente impossível registrar a mesa redonda fmal, última cena de nosso Ato 5, que, em torno de Serge Doubrovsky, reuniu Annie Ernaux, François N ourrissier e Alain Robbe-Grillet. Mas Annie Ernaux e 28 Philippe Lejeune François Nourrissier aceitaram escrever algumas páginas acerca de sua relação com essa noção problemática. A fün de deixar aberto o debate, escolhemos empregar, em nosso título, o plural: "Autofictions & Cie." [ Auto ficções & Cia.], ecoando amigavelmente a coleção "Fictions & Cie." [Ficções & Cia.], da Editora Seuil, dirigida por Denis Roche. E vocês poderão ler, à guisa de epígrafe, um florilégio de variações que, de Léon Bloy a François Nourissier, atestam a realidade das questões através das quais a palavra "auto- ficção" vai nos levar. . . Variações Léon Bloy Fala-se muito em literatura vivida, em livros vividos. A maioria dos romancistas contemporâneos nos dá assim seus casinhos amorosos para farejarmos. Quero me convencer de que esse barbarismo acabará caindo no ridículo. Mas, se as pessoas gostam tanto disso, existe algum livro, eu pergunto, algum romance moderno, alguma autobio- grafia matizada de ficção, que seja mais vivida do que Les chants de Maldoror [Os cantos de Maldoror]? "Le cabanon de Prométhée. Sur Lautréamont" (1890), publicado mais tarde em Belluaires et porchers (1905). AUTOFICÇÕES & CIA. 29 André Gide Tenho de recusar tudo o que eu poderia escrever para me explicar, me desculpar, me defender. Imagino sempre prefácios assim para L 'immoraliste [ O imoralista], Les faux- -monnayeurs [ Os moedeiras falsos], La symphonie pastorale [A sinfonia pastoral], sobretudo um no qual eu exporia o que entendo por objetividade romanesca, estabeleceria dois tipos de romance, ou ao menos duas maneiras de olhar e pintar a vida que, em certos romances (Whuthering Heights, os de Dostoievski), se reúnem. Uma maneira exterior, e que é chamada comumente de objetiva, que vê primeiramente o gesto de outrem ou o acontecimento e o interpreta. A outra que se dedica primeiramente às emoções, aos pensamentos e se arrisca a permanecer impotente para pintar algo que não tenha sido primeiro sentido pelo autor. Sua riqueza e complexidade, o antagonismo de suas múltiplas possibilida- des vão possibilitar uma maior diversidade de suas criações. Mas é dele que tudo emana. Ele é o único responsável pela verdade que revela, o único juiz. Todo o céu, todo o inferno de seus personagens estão nele. Ele não pinta ele próprio, mas poderia ter-se tornado o que pinta, se não tivesse se tornado ele mesmo. É para poder escrever Hamlet que Shakeaspeare não se deixou transformar em Otelo. 8 de fevereiro de 1927 Journal 1889-1939, Gallimard, Pléiade, p. 829. 30 Philippe Lejeune f André Malraux Embora quase não tivesse bebido, estava bêbado daque- la mentira, daquele calor, do universo fictício que estava criando. Quando dizia que se mataria, não acreditava em si mesmo; mas já que ela acreditava, ele entrava num mundo em que a verdade não mais existia. Não era nem verdadeiro nem falso, mas vivido. E já que nem seu passado que acaba- va de inventar, nem o gesto elementar e supostamente tão próximo no qual se fundamentava sua relação com aquela mulher não existiam, nada existia. O mundo cessara de pe- sar sobre ele. Libertado, passara a viver apenas no universo romanesco que acabava de criar, seguro do laço que toda piedade humana estabelece diante da morte. La condition humaine (1933), Folio, p. 247. Drieu la Rochelle Minha obra romanesca é falha ( ... ) Mas, refletindo me- lhor, usando de mais habilidade e cuidado, eu poderia ter encontrado uma forma mais condizente com meu pouco fôlego, com meu apego ao real tal qual. Algo entre o diário e as memórias. Como tantos outros franceses. Falhei nis- so por outra razão: a falta de coragem moral. Poderia ter substituído a falta de dons pela sinceridade, indo fundo na confissão. AUTO FICÇÕ ES & CIA. 31 Ou será que poderia ter encontrado formas de trans- posição que não eliminassem a acuidade da confissão? S.erá que foi falta de coragem? Ou simplesmente preguiça, leviandade? Penso tão pouco no que escrevo ... Céline 8 de outubro de 1939 Journal 1939-1945, Gallimard, 1991, p. 90. Isso vai dar um romance de mais ou menos 500 pá- ginas .. . [Sobre D'un château à làutre] Carta a Roger Nimier, 25 de fevereiro de 1957. Michel leiris Um livro que não seria nem diário íntimo nem obra acabada, nem narrativa autobiográfica nem obra de ima- ginação, nem prosa nem poesia, mas tudo isso ao mesmo tempo. Livro concebido de maneira a poder constituir um todo autônomo a qualquer momento que (pela morte, entenda-se) seja interrompido. Livro, portanto, delibera- damente estabelecido como obra eventualmente póstuma e perpétuo work in progress. 32 Philippe Lejeune Através de procedimentos estilísticos ou tipográficos (talvez os dois conjugados?), distinção imediatamente per- ceptível entre o que foi ou é vivido - e o que é inventado. 26 de setembro de 1966 Journal 1922-1989, Gallimard, 1992, p. 614. Roland Barthes Tudo isso deve ser considerado como dito por um perso- nagem de romance - ou antes, por vários. Pois o imaginário, matéria fatal do romance e labirinto dos redentes nos quais se perde aquele que fala de si mesmo, o imaginário é assu- mido por várias máscaras (personae), escalonadas segundo a profundidade do palco (e no entanto nenhuma pessoa por detrás). O livro não escolhe, funciona por alternância, caminha por lufadas de imaginário simples e de acessos críticos, mas os próprios acessos são sempre apenas efeitos de repercussão: não há imaginário mais puro do que a crítica (de si). A substância desse livro, afinal, é, pois totalmente romanesca. A intrusão, no discurso ensaístico, de uma ter- ceira pessoa que não remete, entretanto, a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade de remodelar os gêneros: que o ensaio confesse que é quase um romance: um romance sem nomes próprios. Roland Barthes par Roland Barthes, Seuil, 1975,p. 123-124. AUTOFICÇÕES & CIA. 33 Patrick Modiano O que é um "livreto de família"? É o documento oficial que liga todo ser humano à sociedade na qual ele veio ao mundo. Nele, estão consignados, com a secura administra- tiva que conhecemos, uma série de datas e de nomes: pais, casamento, filhos e, se for o caso, mortos. Patrick Modiano explode esse contexto administrativo através de um livro no qual a autobiografia mais exata se mistura às lembranças imaginárias. Quarta capa de Livret de famille, Galli.mard, 1977. Serge Doubrovsky Para o autobiógrafo, como para qualquer escritor, nada, nem mesmo sua própria vida, existe antes de seu texto; mas a vida de seu texto é sua vida dentro de seutexto. Para qual- quer escritor - mas talvez de modo menos consciente do que para o autobiógrafo (se ele tiver feito análise)-, o movi- mento e a própria forma da escrita são a única inscrição de si possível, o verdadeiro "vestígio", indelével e arbitrário, ao mesmo tempo inteiramente fabricado e autenticamente fiel. 34 Philippe Lejeune ''L'initiative aux maux", Cahiers Confrontation, n. l, 1979, p. 105. Marguerite Duras Não se sabe quando as coisas estão presentes na vida. Isso nos escapa. Você me disse outro dia que a vida sem- pre parecia como se fosse dublada. É exatamente o que sinto: minha vida é um filme dublado, mal montado, mal interpretado, mal ajustado, um erro, em suma. Um policial sem assassinato, sem tiras nem vítimas, sem assunto, nada. Poderia ser um verdadeiro filme nessas condições e não é, é falso. Vai saber o que seria preciso para que não o fosse. La vie matérielle, P.O.L., p. 139. François Nourrissier Precisei, para escrever alguns romances, desenvolver artimanhas e despender uma energia incrível. Só eu sei - como meus próximos, talvez, que também sofreram as consequências tumultuosas - a batalha, por vezes cômica, sempre extenuante, que travei contra os sentimentos de impotência e inutilidade. Na maior parte das vezes, conse- gui me safar amalgamando confidências e invenção até não saber mais onde estava a confissão e onde estava o romance. Aconteceu-me até de usar a primeira pessoa e a aparência da confissão para dar a uma narrativa aquele frêmito inse- parável da autobiografia (frêmito do estilo e excitação malsã AUTOFICÇÕES & CIA. 35 do leitor), que controlo melhor, sempre soube disso, do que qualquer outra forma de expressão. Notas Bratislava, Grasset, 1990, p. 32-33. (Este texto foi publicado em S. Doubrovsky, J. Lecarme, P. Lejeune, Autofictions & Cie., RITM, n. 6, Publidix, 1993, p. 5-16. Título original: "Autofictions & Cie. Piece en cinq actes") 1 O autor faz alusão ao salon carré [salão quadrado] do Museu do Louvre. (N.T.) 2 O titulo também cria um efeito de ambiguidade, pois a palavra fils em francês, em sua forma escrita, pode significar tanto "filho" quanto "fios''. (N.T.) ' O título de Doubrovsky remete à conhecida frase de Stéphane Mallarmé, em "Crise de verso" (1945) : "L'reuvre pure implique la disparition élocutoire du poete, qui cede l'initiative aux mots" [ A obra pura implica o desaparecimento elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras] . Entretanto, Doubrovsky, fazendo um jogo de palavras, utiliza o termo "maux" [males], homófono de "mots" [palavras] . (N.T.) 4 O titulo, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann], segunda parte do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. A própria trama do livro de Doubrovsky repete a aventura do perso- nagem de Proust, Swann, que teria passado anos apaixonado "por uma mulher que não lhe agradava, que não fazia seu tipo". (N.T.) 5 Quatorze anos depois de sua tese, Vincent Colonna publica Autofiction & autres mythomanies littéraires [Autoficção & outras mitomanias literárias], Mayenne: 36 Philippe Lejeune Editions Tristram, no qual propõe uma "segunda teorià' da autoficção e uma tipologia que o leitor encontrará em artigo presente nesta coletânea. (N.T.) Referências para os cinco atos 1. P. Lejeune, Le pacte autobiographique, em Poétique, n. 14, 1973 (artigo publicado em 1975 no volume Le pacte autobiographique, Seuil); Le pacte autobiographique (bis) e Autobiographie, roman et nom propre, em Moi aussi, Seuil, 1986; Qu'est-ce quine va pas?, em Entre l'histoire et le roman: la littérature personnelle, Université Libre de Bruxelles, Centre d'études canadiennes, 1993. 2. S. Doubrovsky, Fils, Ed. Galilée, 1977; L'initiative aux maux. Écrire sa psychanalyse, Cahiers Confrontation, n. 1, Printemps, 1979; Autobio- graphie/vérité/psychanalise, L'esprit créateur, XX, n. 3, Automne, 1980 (artigo publicado também em Autobiographiques, P.U.F., 1988); Un amour de sai, Hachette, Roman, 1982; Le livre brisé, Roman, Grasset, 1989. 3. J. Lecarme, Fiction romanesque et autobiographie, Universalia, 1984, p. 417-418; J. Lecarme, B. Vercier, Premieres personnes, Le débat, n. 54, mars/avril 1989. 4. V. Colonna, L'autofiction. Essai sur la ficcionalisation de soi en littéra- ture, Doctorat de l'E.H.E.S.S. sous la direction de Gérard Genette, 1989. 5. P. J. Eakin, Fictions in Autobiography: Studies in the Art ofSelf-Inven- tion, Princeton University Press, 1985; Touching the World: Reference in Autobiography, Princeton University Press, 1992; G. Genette, Fiction et diction, Seuil, 1991; O. Mongin, Identité et littérature: la France en mal de fiction, Le Monde, 3 juillet 1992; P. Ricceur, Temps et récit, Seuil, 1983-1985, 3 volumes. AUTOFICÇÕES & CIA. 3 7 TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO Vincent Colonna A autoficção fantástica Definição - O escritor está no centro do texto como em uma autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e sua identidade, em uma história irreal, indiferente à veros- similhança. O duplo ali projetado se torna um personagem fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor. Diferentemente da postura biográfica, esta não se limita a acomodar a existência, mas vai, antes, inventá-la; a distância entre a vida e o escrito é irredutível, a confusão impossível, a ficção de si total. A aproximação com a pintura é esclarecedora. No Re- nascimento, há um tipo de retrato chamado in figura no qual o pintor se insere na tela, emprestando seus traços a uma figura religiosa ou histórica. O dublê do pintor se destaca frequentemente por seu olhar que foge do espaço do 39 quadro, voltado para o espectador. Dürer pintou a si mesmo sob a figura do Salvador, em um Cristo ultrajado de 1493, que podemos comparar a um autorretrato do mesmo ano. Filippino Lippi e Masaccio figuram nos afrescos da capela Brancacci, como espectadores assistindo aos Atos de Pedro. Segundo a tradição, em seu quadro Davi com a cabeça de Golias, Caravaggio teria desenhado seus próprios traços para animar o rosto decapitado de Golias. Os exemplos po- deriam ser multiplicados: em 1568, em seu Vidas dos mais excelentes pintores, Vasari já contava 80 pintores presentes, sob essa forma in figura, em seus afrescos ou retábulos. Os modernos continuaram explorando o procedimento com a predileção, ao que parece de inspiração luterana, por uma transfiguração em Cristo: é o que se observa em Samuel Palmer e Gauguin. Em Ensor, Dalí, Roy Lichtenstein ou David Hockney, o gesto visa materializar a fantasmagoria e a mitologia pessoal: como O autorretrato mole com toucinho assado (1941), no qual Dalí pintou seu "soft self portrait" e uma variação sobre o motivo do relógio mole; como o hábil Autorretrato de 1978, no qual o rosto de Lichtenstein aparece através de um espelho que reflete a famosa trama, )\marca de fabricação desse pintor da Pop Art; ou ainda, a t' \ v-i gravura de Hockney, O artista e seu modelo (1974), que W mostra Hockney e Picasso sentados frente a frente, o pri- meiro nu e o segundo olhando para um croqui, em um 40 Vincent Colonna 4~í- ~ -{!3,1Pr&1~ /1/ # ,;; ;? .e/.&/4 , tête-à-tête que nunca aconteceu. Em direção bem diferen- te, como Van Gogh, e também Rembrandt, que nisso foi 1 insuperável, Frida Kahlo e Lucian Freud, que levaram sua nudez mortificada ao mais alto grau, pintores praticaram uma forma ascética de autorretrato, mais empenhados em desvelar de maneira clínica as corrupções de seus próprios rostos e corpos do que preocupados com a busca de seme- lhança. Há, no entanto, uma distância entre essas licenças f I pictóricas (vejam a liberdade gráfica do Autorretrato com caveira, 1972, de Picasso) e uma representação de si situada em um mundo mítico ou lendário. A autoficção fantástica difere assimda fabulação biográfica, da mesma maneira que a representação in figura se distingue do autorretrato, tradicional ou ascético. Curiosamente, uma das primeiras fotografias, e a primeira ficção da história da fotografia, utiliza a encenação in figu- ra: é o célebre autorretrato O afogado (1840) de Hippolyte Bayard, que o mostra quase nu, enrolado em um lençol, o corpo muito branco apoiado em uma banqueta, com um rosto sorridente de criança doente e, à sua direita, um grande chapéu romântico. Ele queria protestar, dessa maneira, contra a falta de reconhecimento oficial de sua invenção que, no entanto, tinha uma técnica de fixação das imagens superior à de Daguerre. Além do tema pessoal e da razão técnica dessa pose, a escolha é intrigante. Por que Bayard não optou por um TIPOLOG IA DA AUTOF ICÇÃO 41 retrato mais realista? Ou por uma ficção visual dissociada de sua identidade? Como na história do romance, a autoficção está presente no começo da fotografia, antes do autorretrato em sentido estrito. A coisificação do autor - Na autofabulação fantástica, o efeito literário obtido, a exploração "xamanística" do inumano é totalmente estranha à tradição autobiográfica: o leitor experimenta com o escritor um "devir-ficcional", um estado de despersonalização, mas também de expansão e nomadismo do Eu. Esse efeito xamanístico parece mais intenso, mesmo se outros efeitos de leitura são possíveis, como evoca o jovem Niestzsche, em sua descrição da em- briaguez dionisíaca: Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte ... 1 Esse processo de reificação artística, através do qual o escritor não é mais apenas uma pessoa, mas também objeto estético é aquele destino estranho sobre o qual Gombrowicz se interrogava em seu diário. Legitimamente, é o que acon- tece ao escritor que se autofabula em um trecho de literatura 42 Vincent Colonna fantástica: ele adquire um modo de ser suplementar, fabu- loso, como o unicórnio, os heróis mitológicos ou a noção de infinito. Seria possível escrever páginas e páginas sobre a metafísica desse fenômeno vertiginoso, refinando à vontade o intervalo abissal que separa o estatuto ontológico de um escritor de ficções de si do estatuto de um escritor conven- cional. Na prática, o imaginário, esse monarca caprichoso que governa a leitura e uma parte do reino humano, parece insensível a essas distinções. Seu primeiro movimento seria antes esmagá-los, "condensá-los" como dizia Freud, pelo fato de o legendário ( a ficção) mais reunir do que separar os dois perfis. Constata-se que o escritor avança sempre acompanhado de uma lenda, dourada ou negra, instável e polimorfa; lenda que constitui o sésamo de sua existên - eia na memória dos homens. Um personagem de autor fabulado e a imagem mais ou menos magnificante de um escritor são, para a faculdade de imaginar, duas entidades igualmente fictícias, duas identidades de contorno instável que existem apenas na proporção de sua capacidade para produzir emoções e sonhos. Sua eficácia imaginária não é, certamente, a mesma, mas tendo a crer que todos os escri- tores de renome nos vêm à mente, além de seu estatuto de "descrição definida" (eles designam seus escritos como uma etiqueta), como papéis quase míticos, suscitando a mesma mistura de investimento e afetos que os heróis de romance. TIPOLOGIA DA AUTOF ICÇÃO 43 Em outras palavras, uma ontologia formal que tentasse con- ceitualizar o efeito reificante da autoficção fantástica, com o objetivo de esclarecer suas consequências paradoxais sobre a função de autor, talvez tenha interesse, mas um interesse mais filosófico que literário. ( .. . ) A autoficção biográfica Definição - O escritor continua sendo o herói de sua histó- ria, o pivô em torno do qual a matéria narrativa se ordena, mas fabula sua existência a partir de dados reais, permanece mais próximo da verossimilhança e atribui a seu texto uma verdade ao menos subjetiva ou até mais que isso. Alguns contemporâneos (Doubrovsky, Angot) reivindicam uma verdade literal e afirmam verificar datas, fatos e nomes. Outros abandonam a realidade fenoménica ( o personagem é um bebê que tem o sobrenome do pai do autor), mas perma- necem plausíveis, evitam o fantástico; fazem de modo que o leitor compreenda que se trata de um "mentir-verdadeiro", de uma distorção a serviço da veracidade ( em romance de 1964, com esse título, Aragon desmontou algumas engre- 1 nagens de tal mecanismo criativo). Um núcleo narrativo elementar é exibido como verídico e como eixo do livro, tendo como modelo alguns precedentes históricos: aos 75 anos, Goethe ainda falava de seu herói W erther, pedestal da 44 Vincent Colonna glória conquistada aos 25 anos, que, no entanto, se suicida ao fim do romance, como de "uma criatura que se alimenta de seu próprio coração". Reconhecemos nessa categoria a tendência que é a mais difundida e, ao mesmo tempo, a mais controversa da auto- ficção, aquela que, periodicamente, é acusada de mistifica- ção e contra a qual se apela à indignação pública. É verdade que ela exaspera até mesmo os críticos mais informados, que acabam por confundi-la com a tradição autobiográfica seguida por Gide e Leiris ou com a literatura de testemunho e que, atualmente, se ouve com frequência absurdos segundo os quais autoficção e autobiografia são sinônimos. Também é verdade que essa orientação literária é típica dos grandes narcisistas, em geral horripilante enquanto o autor está vivo e funciona melhor post mortem, mesmo que sem garantia do resultado. Céline, que conhecia bem a questão e conhecia a sua história literária como homem da arte ( é preciso lê-lo comentando Proust e explicando o que Le temps retrouvé [ O tempo redescoberto] deve a Histoire de ma vie [História de minha vida] de Georges Sand), clamava: "A posteridade? Você está brincando? Primeiro é preciso morrer. Depois a gente vê. Vivo, você não vale nada. Você só começa a ser degustado, quando está sendo comido pelos vermes." Como a subjetividade substituiu a sinceridade - Graças ao mecanismo do "mentir-verdadeiro", o autor modela sua TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 45 imagem literária e a esculpe com uma liberdade que a litera- tura íntima, ligada ao postulado de sinceridade estabelecido por Rousseau e prolongado por Leiris, não permitia. Raros são os falsários (Da Ponte? Maurice Thorez?) ou memorialis- tas dotados da mesma mitomania serena de Chateaubriand: suas Mémoires d'outre-tombe [Memórias de além-túmulo] (1850) são famosas tanto por suas mentiras quanto pelo es- tilo cativante ( como a famosa descrição do Mississipi, intei- ramente inventada a partir de relatos de viajantes). A noção plástica de autoficção, em sua acepção mais corrente e mais vaga, marca talvez uma evolução significativa da escrita de si, através da qual o procedimento autobiográfico se transforma em operação de geometria variável, cuja exatidão e precisão não são mais virtudes teologais. Com a opção autobiográfica pura que permanece, o autor pode doravante redigir sua vida ou um episódio, romanceando mais ou menos, sem que o grau de romanceação tenha grande importância. Essa fórmula, na qual a veracidade se apaga diante da expressão, existia há muito tempo a título de poesia, modo de escrita em que muitas são as liberdades possíveis: a Vita nuova de Dante, a poesia narrativa de Byron, as Méditations poétiques [Meditações poéticas] de Lamartine quase não são mais lidas, mas moldaram gerações de leitores, na época em que a forma versificada sabia conquistar o público. 46 Vincent Co lonna Após o romantismo, um princípio de subjetividade ab- solutase generalizou pouco a pouco na escrita e na recepção dos textos romanescos: é o paradoxo de Jean Cocteau em Opéra [Ópera] (1927): "Eu sou uma mentira que sempre diz a verdade"; a fórmula de Denis Roche em Louve basse [Loba baixa] (1976): "Não precisam tentar descobrir, o livro fala de mim. É romance." Levando bem longe o uso dessas misturas contraditórias, fazendo variar a pessoa gramati- cal de seu narrador e o grau de trap.sposição, Christopher Isherwood deu uma justificativa inevitável a essa prática ambígua: "Tudo o que se inventa sobre si mesmo faz parte do mito pessoal e, consequentemente, é verdadeiro." ( Chris- topher et son monde) [Christopher e sua espécie] {1976). Em contrapartida, o efeito antecipado sobre o leitor permanece o mesmo da literatura autobiográfica em sentido estrito: reparação de si, empatia, simpatia, admiração, exaltação, edificação ou ambivalência. ( ... ) Nome próprio - Para certos críticos, a grande originali- dade da autoficção estaria na revelação do nome próprio; no romance autobiográfico, os nomes estariam cifrados ou esquivados, principalmente o do autor. De maneira, às vezes, muito transparente: o nome René (1802) é o segundo nome de batismo de François-René de Chateaubriand e, nessa confissão, o crítico Albert Thibaudet identificava o TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 47 aparecimento na história literária do "pequeno romance autobiográfico com nome". David Copperfield (1849-1850) narra a infância infeliz de um personagem epônimo, cujas iniciais invertidas são as do autor Charles Dickens. Em sua trilogia de inspiração autobiográfica publicada de 1879 a 1886: L'enfant [A criança], Le bachelier [O bacharel] e L'insurgé [O insurreto], Jules Valles deu suas iniciais a seu duplo Jacques Vingtras. É verdade que, frequentemente, a associação personagem-autor era consequência de uma omissão: entre 1888 e 1901, o jovem Maurice Barres publicou uma trilogia egotista navegando entre o ensaio e o romance, intitulada Le culte du moi [O culto do eu]. Nesses textos, o herói associai e meio anarquista é anônimo, o que signi- ficava, segundo as convenções da época, um personagem próximo do autor. Barres era então um escritor irreverente, que atacava sem hesitar gurus da época: seu retrato irônico de Ernest Renan, paródia da visita ao grande escritor, Huit jours chez M. Renan [Oito dias na casa do senhor Renan] (1888), ainda merece ser lido. Ao envelhecer, tendo desco- berto que tinha uma sensibilidade de conservador, anteci- pando paradoxalmente o nacional-socialismo, tornou-se o signatário de Colette Baudoche (1909) e do ciclo patriótico dos Bastions de l'Est [Bastiões do Leste], sem contar sua qualidade de acadêmico e homem político influente. Como seus primeiros escritos interferiam em seu estatuto de 48 Vincent Colonna homem ilustre, acrescentou a seu primeiro herói, em todas as reedições do Culte du moi, o nome "Philippe": o leitor não podia mais amalgamar esse personagem extremista ao deputado conservador que se recusava a votar a favor de recursos para construir uma estátua de Rousseau. É o que se chama virar a casaca; mudar de sinceridade, diziam os mais indulgentes, quando Barres era "o príncipe da juven- tude", iniciando Proust em Veneza ou Aragon na primazia absoluta do estilo. Com a autoficção biográfica, segundo a vulgata domi- nante, a esquiva ou a codificação são abandonadas, os nomes são dados, nomes e sobrenomes, do autor e o dos outros, como nas obras de Marc-Édouard Nabe ou Guillaume Dustan. Em L'inceste [O incesto] (1999), Christine Angot chega mesmo a misturar nome disfarçado e nome real para uma mesma pessoa (a mulher que foi sua amante durante três meses) e a citar, longamente e por provocação, as reco- mendações do conselho jurídico da editora, que a convidava a apagar todos os nomes reais da narrativa a fim de evitar processos por difamação, atentado à vida privada etc. Nesse caso, não houve nenhuma consequência, mas, às vezes, a publicação acarreta processos memoráveis ( casos Rezvani, Lanzmann, Doubrovsky, Laurens etc.). Com situações cômicas em que o feitiço vira contra o feiticeiro, quando o fabulador indiscreto se vê, por sua vez, ele próprio ou TIPOLOG IA DA AUTO FICÇÃO 49 alguém próximo a ele, envolvido em uma ficção (Lanzmann denunciando Rezvani, Doubrovsky contra o sobrinho Marc W eitzmann e seu romance Chaos [Caos] que, dentre outras mistificações, afirmava que a palavra autoficção era uma invenção do romancista americano Jerzy Kosinsky). O livro não é mais aquele grande cemitério onde, sobre a maioria dos túmulos, se leem apenas nomes apagados, como escre- via Proust ao término da Recherche [Em busca do tempo perdido]; é uma quermesse onde os vivos deambulam com um crachá indicando sua identidade - e, às vezes, se engal- fmham como em filmes burlescos. Na realidade, a novidade do procedimento é discutível, pois no pós-guerra, o romance autobiográfico era frequente- mente nominal. Céline, Henry Miller, Romain Gary, David Rousset, Jean Genet ou Blaise Cendrars praticaram oro- manesco pessoal, conservando os nomes autênticos, assim como seus nomes de escritor. (Céline foi processado pelos "von Leiden", citados em Nord [Norte] e, em 1964, uma edição "definitiva" foi publicada, na qual todos os nomes próprios tinham sido substituídos.) Antes deles, escritores como Colette, Breton, Aragon, Hesse, Loti, Nerval, Restif, Viau, Pisan ou Dante, haviam agido da mesma maneira, com relação a seu nome e aos dos outros (Lamartine criticava A divina comédia por seu lado mundano florentino, pois, no poema, figuram muitos nomes identificáveis unicamente 50 Vincent Co lonna pelos habitantes de Florença). A verdadeira novidade de nossa época está na supervalorização cultural do proce- dimento: esse é o fato indiscutível. Antes, na consciência literária, o nome não era um marcador valorizado, o critério por excelência. Esse passado já se tornou história e é difícil falar de um momento histórico sem documentação. Mas a lembrança de algumas revistas dos anos de 1945-1950 en- contradas em sebos me leva a pensar que se debatia menos a questão do nome próprio do que a da legitimidade (já) do romance pessoal, como se o gênero tivesse ainda sobrevida suficiente para não ser redescoberto e redefinido a partir de um critério onomástico. Preferia-se criticar Henry Miller ou Céline pela incapacidade de escrever um romance roma- nesco, Cendrars era taxado de genial mitômano. Causava espanto que Genet fabricasse um lirismo moderno sem modelo, unicamente com suas experiências suspeitas, cuja autenticidade ainda não era discutida, mas, ao contrário, parecia evidente por suas confidências provocantes, diários sensacionalistas e pelo monumental estudo biacrítico de Sartre - que não verificou nada e acreditou piamente em tudo o que o rapsodo ("tecedor de canções" em grego) do Journal du voleur [Diário de um ladrão] contava embelezan- do. Foi o que possibilitou, como declarou Bataille, a investi- gação mais aventurosa empreendida por um filósofo sobre o problema do Mal, mas talvez não a melhor monografia sobre TIPOLOGIA DA AUTOF ICÇÃO 51 Jean Genet. Pois o seu]ournal du voleur, mais narrativa do que diário do cotidiano, não conserva nada da sinceridade exacerbada dos grandes modelos do gênero, como Amiel ou Gide; nele pode-se ler, entre outras advertências:"(. .. ) que minha vida deve ser lenda, isto é, legível e sua leitura dar vida a alguma emoção nova que chamo poesia. Não sou mais nada, além de um pretexto." Volto para um terreno mais seguro, sobre a atenção nova e talvez excessiva à inscrição do nome próprio do autor no romance. Essa recepção sem precedentes que engendrou a necessidade da palavra "autofi.cção" certamente tem a ver com o grande movimento social no qual se misturam juri- dismo e individualismo, cuja manifestação maisvisível é a ascensão da "extimidade" dos últimos anos do século XX. Trata-se da tão falada onda de desvelamento da intimidade que é, ao mesmo tempo, fabricada e refletida pela televisão, o mundo político, os costumes, a vida privada e profissional - da qual ainda não se cansou de falar. Será uma revolução literária? Para que fosse, seria preciso que o planeta tivesse se transformado de fato em uma aldeia, ideia que não passa de fantasia da publicidade. Na verdade, todos os nomes exibidos nessas narrativas romanceadas, exceto o autor e os personagens públicos, remetem, para o leitor comum, a desconhecidos. O efeito produzido não difere, portanto, de um romance ( ou peça de teatro) à clé, fórmula literária 52 Vincent Colonna antiga, na qual as pessoas envolvidas se reconhecem e que os outros leem como uma ficção, nem mais nem menos. ( ... ) A autoficção especular Definição - Baseada em um reflexo do autor ~u ~o li~ro dentro do livro, essa tendência da fabulação de si nao deixa de lembrar a metáfora do espelho. O realismo do texto e sua verossimilhança se tornam, no caso, elemento secundário, e O autor não está mais necessariamente no centro do li- vro; ele pode ser apenas uma silhueta; o importante~é que se coloque em algum canto da obra, que reflete entao sua presença como se fosse um espelho. Até a e_ra dos co~pu- tadores, 0 espelho foi uma imagem da escnta em açao, de sua maquinaria e emoções, e também de sua vertigem: o termo especular parecia então indicado para designar essa postura refletora. . , . Em pintura, para continuar o paralelismo, e preciso pen- sar no procedimento do "quadro dentro do quadro:', no qual 0 pintor se representa em um ângulo da tela, mmtas _vezes diante de um cavalete e de pincel na mão, como se estivesse pintando a cena que contemplamos. As meninas (1656) de Velásquez é um exemplo frequentemente comentado dessa tradição pictórica, que abrange desde o monumental_ O ate- lier do pintor, de Courbet até certos quadros de Matisse ou TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 53 1 1 j 1 Picasso, tradição, em princípio, distinta daquela do autorre- trato dito autônomo - assim como a fabulação especular se diferencia da autoficção autobiográfica. Em L'reil et l'esprit [ O olho e o espírito] ( 1964), pequeno texto sugestivo sobre pintura, Maurice Merleau-Ponty associa essa tradição do retrato do pintor pintando à presença de um espelho dentro do quadro; os dois proclamam a reversibilidade do vidente e do visível, da essência e da existência, do imaginário e do real; "uma universal magia que transforma as coisas em es- petáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim". Essa reversibilidade é, às vezes, expressamente o objeto da representação, como no autorretrato de 1646, no qual Johannes Gumpp se expõe de costas, ao passo que dois reflexos simétricos de seu rosto, sobre um espelho e sobre sua tela, o enquadram e olham para o espectador. No primeiro plano do quadro, mergulhados em semiobscurida- de, paralelos aos dois reflexos do rosto do pintor, um gato e um cachorro se espreitam e estão prestes a se dilacerar mutuamente, como se a metamorfose do vidente e do visível não fosse possível sem violência. Mas com ou sem o motivo do espelho, violenta ou pacífica, essa reversibilidade é a lição capital de todos os procedimentos refletores, qualquer que seja a escala, o dis- positivo ou o campo artístico. Ela cochila no fundo das obras literárias e, sem aviso prévio, sua hibernação é interrompida 54 Vincent Co lonna por uma primavera imprevista, o escritor pode se tornar personagem, o personagem escritor, o leitor pode se ver no meio do complô maquinado pela ficção, transformado em sujeito da história, como Calvino demonstrou de maneira surpreendente em seu romance Se um viajante numa noite de inverno (1979). ( ... ) Afirmei que a autoficção sempre tinha algo de especular: ao por em circulação seu nome, nas páginas de um livro do qual já é o signatário, o escritor provoca, quer queira quer não, um fenômeno de duplicação, um reflexo do livro sobre ele mesmo ou uma demonstração do ato criativo que o fez nascer. Em contrapartida, e essa é outra diferença entre as duas figuras, uma mise en abyme não invoca necessaria- mente a fabulação de si: Hamlet contém, como se sabe, uma pequena peça encenada no castelo de Elseneur, mas a re- transcrição dessa performance teatral não põe Shakespeare em cena, nem faz parte da lista das obras do dramaturgo elisabetano. Ao passo que L'impromptu de Versailles [O improviso de Versailles] de Moliere, peça singular, na qual a tradição do teatro dentro do teatro encontra a metalepse, põe em cena um chefe de trupe de nome Moliere que im- provisa um espetáculo para o rei: o improviso anunciado pelo título. TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 55 Nas melhores dessas realizações, é a duplicidade da literatura, o artifício dessas figuras que se expõe. A ficção literária se mostra então não como espaço de ilusão (uma velha crítica), mas como laboratório onde os mecanismos são desmontados e apresentados ao leitor com o fim de lhe proporcionar o prazer de descobri-los. ( ... ) A autoficção intrusiva (autoral} Definição - Nessa postura, se pudermos considerá-la de fato como tal, a transformação do escritor não acontece através de um personagem, seu intérprete não pertence à intriga propriamente dita. O avatar do escritor é um recitante, um contador ou comentador, enfim um "narrador-autor" à margem da intriga. É por isso que essa postura não figura na obra de Luciano de Samósata: ela supõe um romance "em terceira pessoa", com um enunciador exterior à trama. Nessa "intrusão do autor'',2 o narrador faz longos discursos enfadonhos dirigidos ao leitor, garante a veracidade de fatos relatados ou os contradiz, relaciona dois episódios ou se perde em digressões, criando assim uma voz solitária e sem corpo, paralela à história. Essa voz, mais ou menos intrusiva, brincalhona em Scarron, tirânica em Jacques le fataliste [Jacques, o fatalista], espiritual em Fielding, sentenciosa em Scott, digressiva em 56 Vincent Colonna Balzac, egotista em Stendhal ou irônica em Mérimée, faz par- te da euforia de um certo romance clássico, pré-flaubertiano: nele, a narração é alerta e alegre, como antes do pecado original. Mas a partir de Flaubert e James, a literatura ro- manesca se construiu com base na ocultação progressiva da instância narrativa, se empenhou em dissociar o escritor de sua "voz", em preconizar um ideal estético de apagamento e impassibilidade do autor, para fazer do romance uma cena imaginária cujo maestro estaria ausente. Nabokov é a grande exceção desse movimento de refluxo, talvez por sua cultura russa, na qual a redescoberta de Tristan Shandy nos anos de 1920, pelos formalistas, foi um acontecimento. Os parágrafos que abrem Le pere Goriot [O pai Goriot] (1835) são uma ilustração clássica da intrusão do autor no romance: A senhora Vauquer, Conflans de solteira, é uma velha senhora, que há quarenta anos, mantém em Paris uma pensão burguesa estabelecida na rua Neuve-Sainte-Genevieve, entre o quartier latin e o f aubourg Saint-Marceau ( ... ) Todavia, em 1819, época em que começa esse drama, se encontrava na pensão uma pobre jovem ( ... ) É assim que você dirá, você que segura esse livro em suas mãos brancas, você que se afunda numa poltrona macia, pensando: "Talvez esse livro me divirta:' Após a leitura dos secretos infortúnios do Pai Goriot, você vai jantar com apetite atribuindo TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 57 a sua insensibilidade ao autor, a quem vai chamar de exagerado e acusar de fazer poesia. Ah! Pois, saiba: esse drama não é nem ficção, nem romance. All is true, ele é tão verdadeiro que cada um de nós pode reconhecer os seus elementos em sua própria casa, em seu coração, talvez. Ao interpelar uma leitora,Balzac se desmascara, põe a cara dentro da cena, não hesitando em se gabar de sua quali- dade de dramaturgo, nem tampouco em tentar influenciar a leitura. Não se contenta em enunciar julgamentos como em Walter Scott (pouco tempo antes desse trecho, ele condenara sua época pelo uso "torturador" da palavra drama, e pelos "tempos de dolorosa literatura"), ele se nomeia "o autor", opera uma estratégia de contato com o público, teoriza sobre a veracidade de seu romance. A verdade romanesca se toma a verdade do coração, uma objetividade de ordem interior, uma exatidão verificável por empatia, segundo a descoberta de Rousseau. À margem de sua história, no plano da narração, Balzac erige, portanto, uma intriga secundária, a do autor narrando e seduzindo seu público. Ele se transforma não em prota- gonista, mesmo efêmero, mas em contador de uma espécie particular, um tapeador de sua própria história. Entre as linhas desse "drama da paternidade", ao lado dos aconte- cimentos vividos pelos pensionistas da pensão Vauquer, se 58 Vincent Co lonna instala um outro romance, um romance difuso, em alguns momentos quase secreto, reservado aos leitores filólogos, ruminantes, diria Nietzsche. Em primeiro lugar, a história da história - como Bal- zac descobriu a tragédia vivida por Goriot? Em um fait divers? Inspirando-se em Rei Lear, tragédia com roteiro semelhante? Tirou-a de sua própria imaginação? O que demonstraria que Balzac não é o autor encenado: "pois esse narrador-autor é alguém que 'conhece' a pensão Vauquer, sua proprietária e seus pensionistas, ao passo que Balzac apenas os imagina."3 A descoberta desse drama é contada nas primeiras páginas pelo próprio "autor", ela pertence ao romance do romance e é atribuída a Rastignac: Sem suas observações curiosas e a habilidade com que soube circular nos salões de Paris, essa narrativa não teria sido colorida com os tons verdadeiros que se devem sem dúvida a seu espírito sagaz e a seu desejo de penetrar nos mistérios de uma situação pavorosa, cuidadosamente escondida tanto por aqueles que a haviam criado, quanto por quem era sua vítima. Assim, o autor não imaginou esse drama, mas foi infor- mado pelo jovem estudante de direito que fez uma verda- deira investigação para esclarecer "os infortúnios secretos do Pai Goriot": a necessidade de dinheiro inextinguível TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 59 de suas filhas, os sacrifícios cada vez maiores do pai para satisfazê-las. Parece um daqueles romances gregos, nos quais o autor tem sempre necessidade de uma testemunha ocular para forjar sua narrativa. O informante Rastignac, no entanto, é um personagem fictício, que aparece pela pri- meira vez em uma narrativa fantástica, La peau de chagrin [A pele de onagro), romance que lançou Balzac, quando ele ainda não tinha inventado o princípio do retorno dos personagens, nem pensado na arquitetura da Comédie hu- maine [Comédia humana] . Temos então um "autor" que tem a pretensão de contar a história "verdadeira" de um Rastignac criado por Balzac por volta de 1831 . Parece paradoxal: não estamos longe dos circuitos e círculos da narração especular. A ficção se revira como uma fita de Moebius para absorver a situação real da escrita: Rastignac se torna o autor invisível de Le pere Goriot; Balzac, o escriba de Rastignac. A criação engloba e ultrapassa então o criador, mas, em troca, permite que ele atinja por procuração um estatuto inacessível, uma proximidade com seres de exceção - como frequentemente sonhou o roman- cista, que desenvolveu amplamente esse tema da vida por procuração para seus personagens ("A minha vida, mesmo, são as minhas filhas", diz Goriot; "Eu serei o senhor" diz Vautrin a Lucien de Rubempré etc.). 60 Vincent Co lonna Esse sonho prometeico de engendrar criaturas que se tornem autônomas graças a um demiurgo que desaparece em seu efeito-mundo, foi também o sonho do escritor para o conjunto da Comédie humaine. Como em Le pere Goriot, ele o realizou até mesmo nas margens de seu ciclo: La recherche de l'absolut [À procura do absoluto], Facino Cane [Facino Cane], Histoire des treize [História dos treze] e algumas outras narrativas amoldam um Balzac de ficção, um Autor-recitante que assombra os bastidores de seus romances, circula entre um e outro, como filósofo, teósofo ou historiador, mas sempre se construindo como efeito de sua obra e não o inverso. É que Balzac tem da literatura uma visão embriagadora, mais próxima de um Rimbaud do que se poderia imaginar: a obra é, para ele, uma forma através da qual o mundo pode ser contemplado, apagando os limites da individuação, do espaço e do tempo; a criação literária é um "sonho acorda- do", um "dom de segunda vista", uma percepção intuitiva da realidade pela qual é preciso "abandonar seus hábitos, se tornar um outro".4 A partir daí, parece coerente que o escritor Balzac penetre progressivamente na estrutura de sua Comédie humaine e se amalgame com sua obra, através de um devir-texto que Mallarmé, o Obscuro, desenvolveria em verso, com o desaparecimento elocutório do poeta. TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 61 Duas imagens do narrador - Após 40 anos de narratologia e de semiótica, pode parecer estranho confundir o narrador e o autor, descrever uma ficcionalização de autor, quando a teoria literária contemporânea aprende a identificar um narrador fictício. É verdade que, ao estabelecer uma fron- teira absoluta entre o autor e o narrador, a poética e a nar- ratologia modernas tornaram esse fenômeno imperceptível e quase impensável. Durante muito tempo, no entanto, o "Autor" presente no texto (a "voz" de Balzac, de Fielding, de Mérimée ou de Stendhal) foi percebido como um papel inventado e repre- sentado em função das necessidades da escrita de ficção. Entendia-se que o escritor adotava um papel de composição, adequado a seu tema, para poder desenvolver sua narração, orientar a leitura, despistar o leitor quando o gênero o exigia. Todos os pais conhecem essa situação de comuni- cação: para contar uma história a uma criança, é preciso mudar a voz e a dicção, adaptá-las ao conteúdo narrado, se metamorfosear para dar a impressão que acreditamos no mundo maravilhoso ou aterrorizante invocado pelo conto. Há menos de um século, essa ainda era a atitude de comuni- cação dos escritores com os leitores: para todos, o narrador era o Autor disfarçado, uma máscara adotada segundo as necessidades da narrativa. Esse estatuto não o desobrigava da responsabilidade quanto ao conteúdo textual, mas dava 62 Vincent Co lonna uma grande liberdade de expressão ou de conivência com os personagens. Muitos testemunhos poderiam confirmar esse fato histórico e cultural. Quando formula seu ideal estético, Flaubert não diz "o narrador deve se apagar na narração", mas "o artista não deve aparecer em sua obra mais do que Deus na natureza". Quando rejeita o procedimento das intrusões, em Bouvard et Pécuchet [Bouvard e Pécuchet], é mais uma vez a palavra autor que emprega: Nesse gênero de livros, deve-se interromper a narração para falar do cachorro, das pantufas e da amante. Tanta falta de ceri- mônia os encantou inicialmente, depois lhes pareceu idiota, pois o autor apaga a sua obra quando nela exibe sua pessoa.5 Balzac lembra, com frequência, em seus comentários, prefácios ou dedicatórias, que as afirmações dos persona- gens são responsabilidade deles, não do escritor - mas nunca afirmou o mesmo com relação a seus narradores, alter ego ou duplos ficcionais dele mesmo. Do mesmo modo, co- mentando as digressões de Balzac, e tendo escapado não se sabe como da "virada linguística" de seus contemporâneos, Julien Gracq analisa ainda La comédie humaine como se a identidade do autor (o escritor) e do narrador fosse óbvia: TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 63 Quando Balzac se lança em páginas e mais páginas, em de- senvolvimentos ou comentários infinitamente
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