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Ensaios sobre a autoficção - Jovita Maria Gerheim Noronha

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Prévia do material em texto

ISBN 978-85-423-0060-4 
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S SOBRE A AUTOFIC 
'~SAIOS SOBRE A AU 
-
Esta coletânea reúne ensaios de críticos e escritores franceses 
consagrados sobre a autoficção - neologismo criado por Serge 
Doubrovsky para definir o pacto de leitura de seu livro Fils, em 
1977 - , que já constitui uma categoria conceituai corrente em 
nosso campo terminológico teórico-analítico. O que se preten-
de é apresent ar ao leitor brasileiro tanto a história e a recepção 
quanto as diferentes tentativas de teorização e a controvérsia 
em torno dessa noção, com o fim de repensá-la em nosso con-
texto e buscar respostas para a seguinte pergunta: entre nós, 
autoficção seria o nome de quê? 
ENSAIOS SOBRE 
A AUTOFICÇÃO 
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
RE ITOR Clélio Campolina Diniz 
VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton 
EDITORA UFMG 
DIRETOR Wander Melo Miranda 
VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said 
CONSELHO EDITORIAL 
Wander Melo Miranda (PRESIDENTE) 
Ana Maria Caetano de Faria 
Danielle Cardoso de Menezes 
Flavio d e Lemos Carsalade 
Heloisa Maria Murgel Starling 
Márcio Gomes Soares 
Maria Helena Damasceno e Silva Megale 
Roberto Alexandre do Carmo Said 
' 
Jovita Maria Gerheim Noronha 
Organizadora 
ENSAIOS SOBRE 
A AUTOFICÇÃO 
Jovita Maria Gerheim Noronha 
Maria Inês Coimbra Guedes 
Tradução 
Belo Horizonte 
Editora UFMG 
2014 
© 2014, Os autores 
© 2014, Editora UFMG 
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização 
escrita do Editor. 
E59Pn Ensaios sobre a autoficção / Jovita Maria Gerheim Noronha 
organizadora; tradução [de] Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria 
Inês Coimbra Guedes. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2014. 
245 p. : il - (Babel) 
ISBN: 978-85-423-0060-4 
l. Autobiografia - Coletânea. 2. Ficção autobiográfica - Coletânea. 
3. Eu em literatura - Coletânea. 4. Ensaios franceses - Coletânea. 
5. Literatura - Coletânea. I. Noronha, Jovita Maria Gerheim. II. 
Guedes, Maria Inês Coimbra. III. Série. 
CDD: 809.935.92 
CDU: 82-94 
Elaborada pela DITTI - Setor de Tratamento da Informação 
Biblioteca Universitária da UFMG 
COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam 
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo 
CooRDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro 
REVISÃO DE PROVAS Bárbara Dantas e Thaís Duarte Silva 
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico 
FORMATAÇÃO E CAPA Letícia Ferreira 
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac 
EDITORA UFMG 
Av. Antônio Carlos, 6.627 J CAD II / Bloco III 
Campus Pampulha J 31270-901 1 Belo Horizonte/MG 
Tel: + 55 31 3409-4650 J Fax:+ 55 31 3409-4768 
www.editoraufmg.com.br J editora@ufmg.br 
SUMÁRIO 
APRESENTAÇÃO 
Jovita Maria Gerheim Noronha 
AUTOFICÇÕES & CIA. 
Peça em cinco atos 
Philippe Lejeune 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 
Vincent Colonna 
AUTOFICÇÃO: UM MAU GÊNERO? 
Jacques Lecarme 
O ÚLTIMO EU 
Serge Doubrovsky 
A QUANTAS ANDA A REFLEXÃO 
SOBRE A AUTOFICÇÃO? 
Jean -Louis Jeannelle 
7 
21 
39 
67 
111 
127 
APROVA DO REFERENCIAL 
Philippe Vilain 
AUTOFICÇÃO É O NOME DE QU~? 
Philippe Gasparini 
ENTREVISTA A ANNIE PIBAROT 
DOIS EUS EM CONFRONTO 
Philippe Lejeune 
Philippe Vilain 
SOBRE OS AUTORES 
163 
181 
223 
243 
APRESENTAÇÃO 
Quando, em 1977, o escritor e crítico francês Serge 
Doubrovsky forjou o termo "autoficção" para definir o 
pacto de leitura de seu livro, Fils, talvez tenha pensado à 
semelhança de Rousseau, autor que reivindica como sua 
mais importante referência: "tomo uma resolução de que 
jamais houve exemplo e cuja execução não terá imitador." 
Mas, se o tivesse afirmado, assim como o autor das Confis-
sões, muito teria se enganado. 
No que diz respeito a seus antecessores, certos críti-
cos, dentre os quais o próprio Doubrovsky, estimam que 
o neologismo veio nomear uma prática que, de fato, já 
existia. Quanto à sua sucessão, a palavra se encontra hoje 
dicionarizada na França (dicionários Larousse e Robert) 
e cada vez mais se propaga além das fronteiras desse país 
para definir práticas de autoescrita, como se constata 
7 
atualmente entre nós. E essa disseminação é operada em 
três esferas: os escritores que se apropriam do termo para 
definir suas próprias obras; o mundo acadêmico, no qual a 
investigação sobre essa categoria conceituai toma corpo em 
eventos e comunicações, em teses, dissertações e artigos; 
a mídia especializada, que mobiliza o termo em entrevis-
tas e resenhas. Além disso, a etiqueta "autoficção" não se 
restringe mais ao campo da literatura, estendendo-se às 
outras artes. Mas o que se percebe é que não há de fato 
consenso nem entre os críticos, nem entre os escritores 
que a praticam, que são, aliás, com frequência, agentes 
duplos. Vale lembrar, nesse sentido, as considerações de 
Silviano Santiago de que "a autoficção não é forma simples 
nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais 
recente". 1 De fato, tanto a fortuna crítica da autoficção, 
quanto sua apropriação pelos autores para designar suas 
obras deixam antes a impressão de um debate vertiginoso, 
à maneira de Pirandello. 
Esta coletânea pretende, através de ensaios de críticos 
e escritores franceses consagrados, apresentar ao leitor 
brasileiro um panorama da história da autoficção e de 
sua recepção na França e trazer as tentativas de teorização 
e a controvérsia em torno da categoria, para alimentar, 
dentro de nosso contexto, a reflexão e o debate sobre essa 
"palavra-narrativa", "palavra-teste, palavra-espelho, que 
8 Jovita Mar ia Gerheim Noronha 
nos devolve as definições que lhe atribuímos",2 como pro-
põe Philippe Gasparini, em seu artigo presente neste livro. 
Philippe Lejeune foi o primeiro a estabelecer, em 1992, 
a trajetória da autoficção, na abertura do colóquio Autofic-
tions & cie, realizado na Universidade de Nanterre. Lejeune 
lança mão da metáfora de uma peça em cinco atos, desta-
cando, de maneira bem-humorada, cinco datas. O primeiro 
ato, "1973", encena a elaboração do conhecido quadro de 
Lejeune que explicita o conceito de "pacto autobiográfico", 
cuja casa vazia combinando homonímia entre autor e perso-
nagem e pacto romanesco dará margem a Doubrovsky para 
forjar a noção de autoficção. O segundo ato, "1977", evoca 
o diálogo crítico de Doubrovsky com o quadro de Lejeune, 
a publicação de Fils e de textos em que o conceito, então es-
treitamente vinculado à psicanálise, começa a ser teorizado. 
O terceiro ato, "1984", lembra o trabalho de ampliação do 
termo por Jacques Lecarme, que transporta a noção para 
outros textos, afrouxando a definição doubrovskiana. O 
quarto ato, "1989", explica como a tese de VincentColonna 
estende a definição de Doubrovsky e dá ao termo ficção 
um sentido "amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma 
literária), quanto o fictício (a invenção mesma do conteú-
do)". O quinto ato, "1991-1992", coloca em cena o próprio 
colóquio Autofictions & cie, sua organização e realização. O 
texto de Lejeune antecipa as questões e divergências que se 
APRESENTAÇÃO 9 
revelarão mais tarde na discussão sobre o conceito e em sua 
apropriação: "Mas seria de fato um gênero? Como poderia 
ela englobar sob um mesmo nome os que prometem dizer 
toda a verdade (como Doubrovsky) e os que se entregam 
livremente à invenção?", se pergunta o autor. 
O segundo artigo que compõe este volume apresenta as 
definições propostas por Vincent Colonna, em sua tipo-
logia, extraídas de seu livro de 2004, no qual ele revisita a 
tese mencionada por Lejeune para conceber uma "teoria II 
da autoficção", abandonando a narratologiae dando mais 
ênfase à História, às obras e a seus efeitos. Colonna cria 
o termo "autofabulação" para designar uma prática, um 
procedimento, que remontaria, segundo ele, ao início de 
nossa era, com a obra de Luciano de Samósata, Uma histó-
ria verdadeira. A seu ver, o modelo doubroviskiano seria 
apenas uma das manifestações da autoficção, a "autoficção 
biográfica", que ele chega a considerar, em carta a Jean-Louis 
J eannelle, como "o renascimento mascarado do bom e velho 
romance autobiográfico" e distingue de outras estratégias 
de "autofabulação": a autoficção fantástica, em que o autor 
inventa para si uma vida; a autoficção especular, em que o 
escritor, através de um "procedimento refletor", se torna um 
dos personagens de sua narrativa fictícia; a autoficção intru-
siva (autoral), em que um narrador-autor se manifesta, sem 
participar da intriga como personagem. Assim, a hipótese 
1 O Jovita Maria Gerheim Noronha 
é de que a autoficção não se restringiria a um período em 
que, como quer Doubrovsky, "a relação do sujeito consigo 
mesmo mudou", mas englobaria um conjunto bem mais 
amplo de textos de outras épocas e áreas geográficas, daí a 
ideia de" extensão máxima" de seu campo, que será sugerida 
e discutida por Jacques Lecarme. 
O ensaio de Lecarme, também apresentado no Colóquio 
de Nanterre de 1992, deve sua importância ao fato de ter 
inaugurado, como assinala Doubrovsky, a "soma impres-
sionante de estudos" sobre a autoficção e, nesse sentido, 
resgata os elementos principais da recepção imediata da 
noção. Reconhecendo nas críticas ao modelo autoficcional 
doubrovskiano a persistência da tradicional recusa do gê-
nero autobiográfico, a "viva hostilidade contra uma familia 
de textos", Lecarme toma a defesa da autoficção - que de-
nomina "autobiografia desenfreada" - tal como é praticada 
por Doubrovsky e, antes dele, por outros autores. Ele chama 
a atenção para um aspecto importante da obra de Doubro-
vsky: o fato de que, depois de Fils e dos textos teóricos sobre 
o conceito, "a autoficção deixou de se opor à autobiografia, 
para se tornar senão um sinônimo, pelo menos uma variante 
ou um ardil". Lecarme se opõe dessa forma à concepção 
extensa da autoficção, proposta por Vincent Colonna, em 
seu trabalho de doutorado, e às críticas do orientador da 
tese, Gérard Genette, que considera, em 1991, esse modelo 
APRESENTAÇÃO 11 
- sem de fato citar o autor de Fils - como "autobiografias 
envergonhadas". Para Lecarme, trata-se, ao contrário, de 
"exercícios de ambiguidade que dão lugar a uma irredutível 
ambivalência", e constituem uma "população nômade de 
textos", sobre os quais não caberia à poética "assistida pela 
história literária exerc [ er] uma função profilática". O autor 
estabelece, em sua argumentação, uma distinção entre a 
concepção de Doubrovsky e a "extensão máxima" dada à 
noção por Colonna, para concluir que "nessa extensão do 
termo, pouco resta de 'auto' e surge algo que faz a ficção 
transbordar para todo lado e que poderia ser a literatura". 
O argumento de Lecarme se harmoniza com a autoanálise 
crítica empreendida por Serge Doubrovsky, em "O último 
eu" - título que remete ao livro que estava escrevendo na-
quele momento - Un homme de passage [Um homem de 
passagem], publicado em 2011 -, segundo ele, "o último 
de [sua] obra romanescà'. Partindo da leitura do fragmento 
inicial, Doubrovsky revisita o conceito criado 40 anos antes, 
explicitando-o através de uma postura que já se tornou, para 
ele, costumeira: a imbricação do crítico e do escritor. O autor 
reafirma, de um lado, a importância da presença do nome 
próprio - assim como Lecarme e, antes dele, Lejeune - , da 
"homonímia autor-narrador-personagem [que] dá ao tex-
to um estatuto que o inscreve no pacto autobiográfico" e, 
também, o aspecto referencial de suas obras - o que o afasta 
12 Jovita Maria Gerheim Noronha 
da concepção expandida de Colonna, que Doubrovsky con-
sidera como "uma possibilidade, [mas] um caso particular 
desviante do sentido primeiro". Segundo o autor de Fils, 
"isso não poderia de modo algum constituir a natureza e a 
essência da autoficção. A palavra, em seu uso corrente, re-
mete sempre à existência real de um autor". De outro lado, 
Doubrovsky insiste na elaboração ficcional da narrativa, na 
criação de "um pacto oximórico". Como já sustentou por 
diversas vezes, trata-se de narrativas, nas quais "a matéria é -, 
estritamente autobiográfica e a maneira, estritamente ficcio- ' 
nal",3 de uma ficção "confirmada pela própria escrita que se Í 
inventa como mimese, na qual a abolição de toda e qualquer 1 
sintaxe substitui, por fragmentos de frases, entrecortadas de 
vazios, a ordem da narração autobiográfica". Percebe-se, to- -
davia, em sua proposta, que o ficcional não é compreendido 
como fictício, como pura invenção, mas como mobilização r 
,( 
de estratégias narrativas tomadas de empréstimo ao roman - \ 1' 
ce moderno e contemporâneo: "a autoficção, para mim, não J 
mente, não disfarça, mas enuncia e denuncia na forma que \ 
escolheu para si: 'Ficção de acontecimentos e fatos es~rita-
.mente reais."'4 No trecho de Un homme de passage, analisado 
pelo autor, a preparação das malas por ocasião da sua volta 
definitiva para a França depois da aposentadoria e o reen-
contro com objetos pessoais, alguns esquecidos, propiciam 
a evocação de reminiscências de períodos diversos de sua 
APRESENTAÇÃO 13 
vida. O fluxo de consciência toma o lugar daquela narração 
que segue a ordem da biografia, para colocar em cena um 
"vivido [que] se conta vivendo", criando um texto no qual 
"a enunciação e o enunciado não estão separados por um 
necessário intervalo, mas são simultâneos", buscando tra-} 
<luzir uma mudança entre a percepção que se tinha de si e 
a que se tem hoje. A autoficção é assim, para ele, "a forma 
pós-moderna da autobiografia", mas bem diferente de certas 
obras classificadas como autoficções, em que um persona-
gem alter ego do autor protagoniza aventuras inventadas e 
se move num mundo ficcional bem separado do mundo da 
vida. Como aponta Philippe Gasparini, embora, de início, 
Doubrovsky tivesse "provavelmente em mente aquela acep-
ção, bem ampla, da palavra 'fiction', nos Estados Unidos", 
ele explicitará melhor, mais tarde, seu emprego a partir 
da etimologia: "o verbo latino fingere significava de fato 
'afeiçoar, fabricar, modelar'. O fictor era alguém que dava 
feição: o oleiro, o escultor e, depois, por extensão, o poeta, 
o autor." Em outras palavras, como já sustentava Lejeune 
em 1992, "essa ambiguidade do contrato de leitura traduz 
a ambiguidade de seu projeto: veracidade da informação, 
liberdade da escrita". 
O sentido que se dá à noção de ficção é também uma das 
problemáticas teóricas que Jean-Louis Jeannelle discute em 
seu ensaio que retoma, em 2006, a história da autoficção no 
14 Jovita Maria Gerheim Noronha 
ponto onde a deixara Lejeune. O autor se diz, no entanto, 
obrigado a adotar outra estruturação para essa história, uma 
vez que o modelo dramatúrgico "perfeitamente ordenado" 
já não daria conta da trajetória subsequente da noção, que 
se assemelha, antes, a "uma novela de episódios pululantes, 
ricos em reviravoltas e cujos heróis são escoltados por uma 
multidão de personagens secundários". O modelo da novela 
enfatiza um ponto essencial de sua argumentação: para 
ele, a autoficção vem sendo vítima de certa "falta de rigor 
conceitua!". Jeannelle levanta assim "algumas dificuldades 
que [a autoficção] suscita", ou seja, entraves teóricos que 
estão em jogo nesse debate, tais como a indecidibilidade, a 
questão das denominações genéricas, a problemática imbri-
cação das instâncias do discurso e, ponto importante para 
pensar a noção e entender as diversas concepções que dela 
resultam, as diferentes acepções do próprio termo ficção. 
Essa questão atravessa de forma sutil o ensaio autocrí-
tico de Philippe Vilain. Para ele,a fidelidade não estaria 
na retranscrição do vivido, mas na transposição do que foi 
sentido: "escrevo em primeira pessoa uma história a partir 
de um fato real, verificável ( ... ) mas uma história transposta, 
à qual dou um prolongamento romanesco possível, um alar-
gamento poético sem me nomear, mas sob a caução de meu 
sobrenome:' O escritor se fundamenta pela primeira vez no 
método da crítica genética para pensar sua obra e se propõe 
APRES ENTAÇÃO 1 5 
a ir buscar, na leitura dos manuscritos de três de seus livros 
- Eétreinte [O abraço], La derniere année [O último ano] e 
Eété à Dresde [O verão em Dresde] -, "a prova do referen-
cial", ou seja, "como [s]eus textos autoficcionais apreendem 
o referencial e como, em contrapartida, esse referencial é ex-
perimentado ou dá provas de sua existência em um processo 
de autoficcionamento". Mas, embora afirme se inscrever em 
uma escola do eu diferente da de Doubrovsky - que o autor 
de Fils denomina "quase-autoficção" -, a postura de Vilain 
não representa de fato o abandono completo do vivido, mas 
uma via oblíqua para sua encenação que leva, sobretudo, 
em conta o sentimento experimentado que vai interferir no 
tratamento da rememoração: 
A factualidade da lembrança se revela insuficiente para a 
autoficção, ( ... ) não se trata mais simplesmente de procurar essa 
lembrança atrás de si, no antetexto, mas também diante de si, 
no texto e na própria escrita, tanto na retrospecção quanto na 
prospecção que acompanha a busca inventiva da escrita, pois a 
lembrança é aqui fonte autoestimulante de recriação. 
Para Philippe Gasparini, "falta ainda entrar em entendi-
\ 
mento" sobre o conceito de autoficção a começar pelo signi-
ficado que lhe é atribuído: "se é o nome atual de um gênero 
ou o nome de um gênero atual." Ele discute igualmente o 
16 Jovita Maria Gerheim Noronha 
problema da recepção, levantado por Philippe Lejeune - a 
ambiguidade pretendida funcionaria na leitura ou o leitor 
acaba escolhendo um único pacto? -,. para sugerir que a es-
tratégia da ambivalência acaba por se inscrever "na tradição 
do romance autobiográfico". Gasparini mostra como o termo 
"fugiu ao controle de seu criador", através de dois movimen-
tos distintos: um alargamento de seu campo genérico e uma 
apropriação da categoria que a desviou, dando-lhe um sentido 
bem diferente: "é preciso constatar que' autoficção' se tornou, 
hoje, o nome de todos os tipos de textos em primeira pessoa. 
Funcionando como um 'arquigênero', ele subsume todo o 
'espaço autobiográfico': passado e contemporâneo, narrativo 
e discursivo, com ou sem contrato de verdade." O autor su-
( 
gere que é preciso levar em conta as particularidades de cada 
obra e postula uma limitação do termo a certos textos: "aos 
textos que desenvolvem, em pleno conhecimento de causa, a 
tendência natural a se ficcionalizar, própria à narrativa de si." 
Esta coletânea se encerra com uma entrevista, na qual se 
confrontam duas formas de expressão do eu, a autoficção 
e a autobiografia ou não ficção, representadas, respectiva-
mente, por Philippe Vilain e Philippe Lejeune. Os autores 
respondem às perguntas de Annie Pibarot sobre a especi-
ficidade da escrita do eu, as acusações de narcisismo e falta 
de pudor dirigidas a essa literatura, a questão do leitor, as 
razões e modos de se autonarrar. Em acordo com Vilain, 
APRESENTAÇÃO 17 
para quem a ideia de que "uma descrição fiel do vivido ( ... ) 
parece impossível", Lejeune explicita a distinção entre essas 
duas posturas da seguinte forma: 
Há pessoas que se resignam a essa impossibilidade - você, 
Philippe Vilain, e Serge Doubrovsky - e há pessoas que não se 
resignam; os que não se resignam parecem naifs para os primeiros. 
Pertenço à categoria dos naifs. As duas posições são constitutiva-
mente antinômicas. Nossa vida é um imaginário, um imaginário 
que evolui, se questiona, esse imaginário é a realidade do que 
vivemos. A meu ver, uma escrita autobiográfica que visa à lucidez 
vai tentar fixar esse imaginário da forma mais nítida possível, mas, 
por outro lado, posso me colocar no sentido do vento e minha es-
crita vai prolongar esse movimento de construção imaginária. Há, 
portanto, escritas que escolhem ir contra o vento para observá-lo, 
e outras que acompanham e amplificam seu movimento. Fica-se 
forçosamente numa dessas posições, mas é claro que nenhuma 
delas é "verdadeirà'. 
Esse "confronto" entre as duas posturas nos permite ir 
além da ideia da autoficção apenas como uma forma nova 
que vem se contrapor à velha para invalidá-la e abre cami-
nho para pensar as diferentes configurações de autoexpres-
são não simplesmente como forças opostas que se anulam, 
mas como forças que só podem ser compreendidas a partir 
18 Jovita Maria Gerheim Noronha 
de suas relações, pois gravitam em um mesmo campo que é 
o imenso território das escritas de si. É o que parece sugerir 
Serge Doubrovsky, ao analisar o episódio inicial de seu "O 
último eu", Un homme de passage, transformando o gesto 
de acúmulo e triagem de suas roupas em metáfora esclare-
cedora de seu projeto de autoescrita: 
Nada esquecer ou perder, obsessão materna, não esquecer 
uma mãe perdida. Obsessão também permanente desse Julien que 
nunca joga fora nenhuma roupa velha, nem aquelas que já não usa 
há muito tempo e cuja triagem lhe é imposta por sua mudança de-
finitiva para a França. Esse acúmulo de camisas, pulôveres, blazers 
e outras roupas de década em década, sem razão, sem nenhuma 
ordem a não ser preservar a qualquer preço, seria minha forma 
perversa de diário íntimo, que sempre recusei no plano literário? 
É também essa abertura que a presente coletânea preten-
de oferecer ao leitor, num momento em que a autoficção já 
constitui uma categoria conceitua! corrente em nosso cam-
po terminológico teórico-analítico, tendência que nos leva 
forçosamente a buscar respostas para a seguinte questão: 
entre nós, autoficção seria o nome de quê? 
Jovita Maria Gerheim Noronha 
APRESENTAÇÃO 19 
Notas 
1 Cf. seu texto "Meditação sobre o ofício de criar'; Aletria, v. 18, jul./dez. 2008, 
disponível em <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/ Ale-
tria%2018/ l 8-Silviano%20Santiago. pdf>. 
2 Cf. V Colonna, C'estl'histoire d'un mot-récit ... , em C. Burgelin, 1. Grell, R.-Y. 
Roche (org.), Autofiction(s), Colloque de Cerisy, Lyon, PUL, 2010, p. 397-415. 
Nesse artigo, o autor considera a ficção como uma "palavra-narrativa, palavra 
rica em aventuras virtuais, grávida de narrativas futuras e de lembranças es-
quecidas, descobrindo espaços fabulosos, ressuscitando genealogias apagadas''. 
3 Entrevista disponível em <http://www.lepoiht.fr/grands-entretiens/serge-dou-
brovsky-ecrire-sur-soi-c-est-ecrire-sur-les-autres-22-02-2011-1298292_326. 
php>. 
4 Entrevista concedida a Philippe Vilain, Défense de narcisse, Paris, Grasset, 
2005, p. 219. 
20 iovita Maria Gerheim Noronha 
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1 
1 
1 
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AUTOFICÇÕES & CIA. 
Peça em cinco atos 
Ato 1, 1973 
Philippe Lejeune 
A cena é ambientada no pequeno salon carré do pacto 
autobiográfico.1 Philippe Lejeune transforma o matagal da 
literatura do eu em jardim à francesa. Fica meditando diante 
de um quadro de dupla entrada que cruza dois elementos 
do compromisso que pode assumir um autor: a declaração 
quanto ao gênero praticado (romance/nada/autobiografia) 
e o nome que dá ao personagem principal ( diferente do seu/ 
nenhum/seu próprio nome). Nove casas. Três casos muito 
claros de autobiografia, três casos muito claros de romance. 
No centro, uma casa indeterminada, e por fim um resíduo: 
duas casas contraditórias. Lejeune pega seu lápis cinza e as 
colore, como se fechasse com tijolos as janelas das casas que 
vão ser demolidas para evitar invasores. Fica meditando 
diante de seu quadro, com curiosidade e escrúpulo: . 
21 
li 
li 
li 
As soluções que decretei como impossíveis seriam mesmoim -
possíveis? ... O herói de um romance declarado como tal poderia 
ter o mesmo nome que o autor? Nada impediria que a coisa exis-
tisse e seria talvez uma contradição interna que produziria efeitos 
interessantes. Mas, na prática, nenhum exemplo vem à mente . .. 
Então aquela casa cega ficaria vazia ... Ele fica pensando 
no livro de Mamice Sachs, Le sabbat [O sabá] (1946), mas 
acaba concluindo, talvez com razão, que o subtítulo romance 
era de responsabilidade do editor . .. Então a casa cega fica 
mesmo vazia. Todos nós temos nossas cegueiras .. . 
Ato li, 1977 
Acreditando que a casa estava vazia, já que a janelas 
foram lacradas, aparece um invasor. Serge Doubrovsky, 
que está escrevendo um texto de éaráter pessoal e estatuto 
indeciso, reconhece naquela casa cega sua própria indecisão 
e decide ocupar o espaço: 
Lembro-me que, ao ler seu estudo na revista Poétique, marquei 
aquele trecho ... Estava então em plena redação e aquilo me dizia 
respeito, me atingiu em cheio. Mesmo agora, ainda não estou 
certo do estatuto teórico de meu empreendimento, não me cabe 
decidir, mas fiquei com muita vontade de preencher aquela "casà' 
que sua análise deixara vazia, e foi um verdadeiro desejo que 
22 Philippe Lejeune 
subitamente ligou seu texto crítico e o que eu estava escrevendo 
senão às cegas, pelo menos na penumbra. [ Carta a Philippe Le-
jeune, novembro 1977] 
Em seu "romance" intitulado Fils, Serge Doubrovsky 
dará a seu personagem seu próprio nome. Essa ambiguidade 
do contrato de leitura traduz a ambiguidade de seu projeto: 
veracidade da informação, liberdade da escrita. Ele explode 
os tijolos que lacram a janela e fmca sua bandeira: Fils é 
batizado "autoficção".2 A palavra não serve de subtítulo 
genérico (a indicação será "romance"), mas é proposta na 
quarta capa do livro: 
Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se 
preferirem, autoficção, por ter-se confiado a linguagem de uma 
aventura à aventura da linguagem, avessa ao bom comportamento, 
avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros,Jils 
de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes 
ou de depois da literatura, concreta, como se diz da música. Ou 
ainda, autofricção, pacientemente onanista, que espera conseguir 
agora compartilhar seu prazer. 
A palavra aparece então num contexto lúdico: uma 
palavra-valise, que jorrou da efervescência da escrita, ime-
diatamente retransformada. Serve tanto para exemplificar 
o modo do livro quanto para designar seu gênero. 
AUTOFICÇÕES & CIA. 23 
Mas no fundo? ... Depois da publicação, Serge Doubro-
vsky vai refletir sobre o estatuto teórico de sua empreitada, 
vai para a rua ver como sua bandeira está tremulando na 
janela e publica dois estudos de autoteorização que darão 
legitimidade à palavra - "L 'initiative aux maux. Écrire sa 
psychanalyse" [A iniciativa aos males. Escrever sua psicaná-
lise]3 e "Autobiographie/vérité/psychanalyse" [Autobiogra-
fia/verdade/psicanálise], publicados em 1979 e 1980. E, além 
disso, um gênero é como se fosse um hábito: só começa na 
segunda vez. Em 1982, seu livro Un amour de soi 4 retomará 
o mesmo dispositivo de Fils ... 
Ato Ili, 1984 
Um oficial de justiça vem verificar as condições do imó-
vel: a janela tinha sido lacrada por erro! De fato, o local é 
habitado ... Tem até muita gente morando lá. A bandeira, 
garbosa, permanece no lugar e começa-se a fazer a lista 
daqueles escritores que, assim como Monsieur Jourdain, o 
burguês fidalgo da peça de Moliere, faziam autoficção sem 
saber que faziam. 
Jacques Lecarme escreve um verbete para a Encyclo-
predia universalis demonstrando que a casa não estava 
vazia (Céline! Malraux! e outros ... ) e, sobretudo, que ficara 
prodigiosamente lotada a partir do início dos anos de 1970. 
(Modiano, Barthes, Gary, Sollers etc.) 
24 Phi li ppe Lejeune 
Mas esse mapeamento histórico, praticado de forma tão 
ampla, afrouxa a definição bem p recisa oriunda do quadro 
de Philippe Lejeune e retomada por Serge Doubrovsky. 
Pouco a pouco, ela vai englobando todas as tentativas 
intermediárias entre a autobiografia claramente declarada 
como tal e a ficção não autobiográfica. Dispositivos textuais, 
estratégias pessoais bastante diferentes entre si, reunidos por 
certa ambiguidade genérica. "Autoficção", por metonímia, 
torna-se a capital de um país bem vasto. 
Será que o editor de Universalia teve medo do neolo-
gismo? Ou teve escrúpulos de ordem teórica? Seja por que 
motivo for, ele substituiu o título proposto por Jacques 
Lecarme, Autoficção, por outro mais clássico: Ficção roma-
nesca e autobiográfica. 
Ato IV, 1989 
Um concorrente se estabelece do outro lado da rua! Com 
a mesma placa! Mas a loja vende outra mercadoria .. . Um 
jovem pesquisador, Vincent Colonna, retoma a partir da ori-
gem o problema levantado pela casa cega. No que tange ao 
nome próprio, nenhum problema. No que tange à ficção, ele 
dá à palavra, com muita legitimidade, um sentido completo 
e amplo abrangendo tanto o ficcional (a forma literária) 
qua·nto o fictício (a invenção mesma do conteúdo). O mais 
AUTO FICÇÕES & CIA. 25 
perturbador é que ele reutiliza, com uma nova definição, a 
palavra inventada por Doubrovsky. 
A partir de agora, essa investigação sobre a autoficção dis-
põe de referências preciosas. São elas um terminus techniçus e 
uma primeira definição: uma autoficção é uma obra literária 
através da qual um escritor inventa para si uma personali-
dade e uma existência, embora conservando sua identidade 
real (seu nome verdadeiro). Embora intuitiva, essa definição 
possibilita desenhar os contornos de uma extensa classe, de 
um rico conjunto de textos: uma região literária parece dessa 
forma emergir do limbo da leitura. Trata-se também de um 
novo rosto e uma nova coerência que parecem adquirir certas 
obras, de toda uma teoria de escritores considerados "mitô-
manos", de Restif à Gombrowicz, cujas fabulações íntimas 
passam subitamente a ter valor literário. É, por fim, um meio 
de cotejar obras nunca ou raramente vistas como próximas. 
O que podem ter em comum A divina comédia e a trilogia 
alemã de Céline, Moravagine e Em busca do tempo perdido, 
Siegfried et le limousin [Siegfried e o limusina], Cosmos, o 
Quichote e Aziyadé? Essas obras compartilham, entretanto, 
a propriedade de serem fictícias e de inscrever seus autores 
no mundo imaginário que lhes é próprio. 
A investigação de Colonna se estende à literatura mun-
dial e ao passado mais longínquo para mostrar a evidência de 
uma prática insuspeitada pelos leitores. Mas seria de fato um 
26 Phi lippe Lejeune 
gênero? Como poderia ela englobar sob um mesmo nome 
os que prometem dizer toda a verdade ( como Doubrovsky) 
e os que se entregam livremente à invenção? 
A tese de Vincent Colonna, o r ientada por Gérard 
Genette, foi defendida em 1989 e permanece inédita. Seu 
título: L'autofiction. Essai sur la fictionalisation de sai en 
littérature [A autoficção. Ensaio sobre a ficcionalização de 
si em literatura].5 
Ato V, 1991-1992 
Serge Doubrovsky deseja organizar um colóquio sobre a 
autoficção. O grupo "Narrativas de vida" de N anterre tenta 
justamente encontrar um tema para seu próximo colóquio. 
Negócio fechado! .. . Será organizado um evento com o 
objetivo de ver com clareza essa pequena aventura teórica 
que coincide com as pesquisas atuais de outras disciplinas: a ) 
poética - Gérard Genette acaba de publicar Fiction et diction ~ 
[Ficção e dicção] -, a filosofia em Temps et récit [Tempo e ri 
narrativa] de Paul Ricreur, que desenvolve a ideia de con-) 
figuração e de identidade narrativa; pesquisas no exterior, 
como a de Paul John Eakin em particular; inquietações 
também, como a de Olivier Mongin, que diagnostica no 
sufixo auto um vírus que mata a ficção ... 
As reuniões preparatórias do grupo serão animadís-
simas. É um bom tema, justamente por não representar 
AUTO FICÇÕ ES &CIA. 27 
unanimidade. Seria possível pensar partindo de uma palavra 
como essa? Há os que acreditam na auto ficção e os que 
não acreditam. Os que sabem o que é, e os que não fazem a 
menor ideia do que seja. Os que gostam e os que detestam. 
Os que mudam de definição a cada reunião ... 
É como se a palavra "autoficção" fosse um catalisador. 
Ou uma partícula traçante, cuja trajetória revela as linhas de 
força de um campo antes de se esvanecer. Talvez não exista 
realmente um "gênero" que corresponda a essa palavra, mas 
no rastro deixado por sua passagem, nossos problemas se 
esclarecem, nossas diferenças se exprimem. 
Questões contemporâneas: tentaremos estender a re-
flexão a outras literaturas ... Queríamos também, saindo 
da literatura, refletir sobre a exposição do corpo próprio e 
da imagem de si no cinema (Boris Lehman, por exemplo) 
ou no teatro (Philippe Caubere), mas isso ficará para outro 
colóquio ... Ou fazer uma incursão no país das "escritas 
brutas": foi o que fizemos. 
O colóquio aconteceu em Nanterre, nos dias 20 e 21 de 
novembro de 1992. Em seus anais, o leitor acompanhará 
nossas explorações. Foi infelizmente impossível registrar 
a mesa redonda fmal, última cena de nosso Ato 5, que, em 
torno de Serge Doubrovsky, reuniu Annie Ernaux, François 
N ourrissier e Alain Robbe-Grillet. Mas Annie Ernaux e 
28 Philippe Lejeune 
François Nourrissier aceitaram escrever algumas páginas 
acerca de sua relação com essa noção problemática. 
A fün de deixar aberto o debate, escolhemos empregar, 
em nosso título, o plural: "Autofictions & Cie." [ Auto ficções 
& Cia.], ecoando amigavelmente a coleção "Fictions & Cie." 
[Ficções & Cia.], da Editora Seuil, dirigida por Denis Roche. 
E vocês poderão ler, à guisa de epígrafe, um florilégio de 
variações que, de Léon Bloy a François Nourissier, atestam 
a realidade das questões através das quais a palavra "auto-
ficção" vai nos levar. . . 
Variações 
Léon Bloy 
Fala-se muito em literatura vivida, em livros vividos. A 
maioria dos romancistas contemporâneos nos dá assim seus 
casinhos amorosos para farejarmos. Quero me convencer 
de que esse barbarismo acabará caindo no ridículo. 
Mas, se as pessoas gostam tanto disso, existe algum livro, 
eu pergunto, algum romance moderno, alguma autobio-
grafia matizada de ficção, que seja mais vivida do que Les 
chants de Maldoror [Os cantos de Maldoror]? 
"Le cabanon de Prométhée. Sur Lautréamont" 
(1890), publicado mais tarde em Belluaires et porchers (1905). 
AUTOFICÇÕES & CIA. 29 
André Gide 
Tenho de recusar tudo o que eu poderia escrever para 
me explicar, me desculpar, me defender. Imagino sempre 
prefácios assim para L 'immoraliste [ O imoralista], Les faux-
-monnayeurs [ Os moedeiras falsos], La symphonie pastorale 
[A sinfonia pastoral], sobretudo um no qual eu exporia o 
que entendo por objetividade romanesca, estabeleceria dois 
tipos de romance, ou ao menos duas maneiras de olhar e 
pintar a vida que, em certos romances (Whuthering Heights, 
os de Dostoievski), se reúnem. Uma maneira exterior, e que 
é chamada comumente de objetiva, que vê primeiramente o 
gesto de outrem ou o acontecimento e o interpreta. A outra 
que se dedica primeiramente às emoções, aos pensamentos 
e se arrisca a permanecer impotente para pintar algo que 
não tenha sido primeiro sentido pelo autor. Sua riqueza e 
complexidade, o antagonismo de suas múltiplas possibilida-
des vão possibilitar uma maior diversidade de suas criações. 
Mas é dele que tudo emana. Ele é o único responsável pela 
verdade que revela, o único juiz. Todo o céu, todo o inferno 
de seus personagens estão nele. Ele não pinta ele próprio, 
mas poderia ter-se tornado o que pinta, se não tivesse se 
tornado ele mesmo. É para poder escrever Hamlet que 
Shakeaspeare não se deixou transformar em Otelo. 
8 de fevereiro de 1927 
Journal 1889-1939, Gallimard, Pléiade, p. 829. 
30 Philippe Lejeune 
f 
André Malraux 
Embora quase não tivesse bebido, estava bêbado daque-
la mentira, daquele calor, do universo fictício que estava 
criando. Quando dizia que se mataria, não acreditava em si 
mesmo; mas já que ela acreditava, ele entrava num mundo 
em que a verdade não mais existia. Não era nem verdadeiro 
nem falso, mas vivido. E já que nem seu passado que acaba-
va de inventar, nem o gesto elementar e supostamente tão 
próximo no qual se fundamentava sua relação com aquela 
mulher não existiam, nada existia. O mundo cessara de pe-
sar sobre ele. Libertado, passara a viver apenas no universo 
romanesco que acabava de criar, seguro do laço que toda 
piedade humana estabelece diante da morte. 
La condition humaine (1933), Folio, p. 247. 
Drieu la Rochelle 
Minha obra romanesca é falha ( ... ) Mas, refletindo me-
lhor, usando de mais habilidade e cuidado, eu poderia ter 
encontrado uma forma mais condizente com meu pouco 
fôlego, com meu apego ao real tal qual. Algo entre o diário 
e as memórias. Como tantos outros franceses. Falhei nis-
so por outra razão: a falta de coragem moral. Poderia ter 
substituído a falta de dons pela sinceridade, indo fundo na 
confissão. 
AUTO FICÇÕ ES & CIA. 31 
Ou será que poderia ter encontrado formas de trans-
posição que não eliminassem a acuidade da confissão? 
S.erá que foi falta de coragem? Ou simplesmente preguiça, 
leviandade? Penso tão pouco no que escrevo ... 
Céline 
8 de outubro de 1939 
Journal 1939-1945, Gallimard, 1991, p. 90. 
Isso vai dar um romance de mais ou menos 500 pá-
ginas .. . 
[Sobre D'un château à làutre] 
Carta a Roger Nimier, 25 de fevereiro de 1957. 
Michel leiris 
Um livro que não seria nem diário íntimo nem obra 
acabada, nem narrativa autobiográfica nem obra de ima-
ginação, nem prosa nem poesia, mas tudo isso ao mesmo 
tempo. Livro concebido de maneira a poder constituir um 
todo autônomo a qualquer momento que (pela morte, 
entenda-se) seja interrompido. Livro, portanto, delibera-
damente estabelecido como obra eventualmente póstuma 
e perpétuo work in progress. 
32 Philippe Lejeune 
Através de procedimentos estilísticos ou tipográficos 
(talvez os dois conjugados?), distinção imediatamente per-
ceptível entre o que foi ou é vivido - e o que é inventado. 
26 de setembro de 1966 
Journal 1922-1989, Gallimard, 1992, p. 614. 
Roland Barthes 
Tudo isso deve ser considerado como dito por um perso-
nagem de romance - ou antes, por vários. Pois o imaginário, 
matéria fatal do romance e labirinto dos redentes nos quais 
se perde aquele que fala de si mesmo, o imaginário é assu-
mido por várias máscaras (personae), escalonadas segundo 
a profundidade do palco (e no entanto nenhuma pessoa 
por detrás). O livro não escolhe, funciona por alternância, 
caminha por lufadas de imaginário simples e de acessos 
críticos, mas os próprios acessos são sempre apenas efeitos 
de repercussão: não há imaginário mais puro do que a crítica 
(de si). A substância desse livro, afinal, é, pois totalmente 
romanesca. A intrusão, no discurso ensaístico, de uma ter-
ceira pessoa que não remete, entretanto, a nenhuma criatura 
fictícia, marca a necessidade de remodelar os gêneros: que 
o ensaio confesse que é quase um romance: um romance 
sem nomes próprios. 
Roland Barthes par Roland Barthes, 
Seuil, 1975,p. 123-124. 
AUTOFICÇÕES & CIA. 33 
Patrick Modiano 
O que é um "livreto de família"? É o documento oficial 
que liga todo ser humano à sociedade na qual ele veio ao 
mundo. Nele, estão consignados, com a secura administra-
tiva que conhecemos, uma série de datas e de nomes: pais, 
casamento, filhos e, se for o caso, mortos. Patrick Modiano 
explode esse contexto administrativo através de um livro 
no qual a autobiografia mais exata se mistura às lembranças 
imaginárias. 
Quarta capa de Livret de famille, 
Galli.mard, 1977. 
Serge Doubrovsky 
Para o autobiógrafo, como para qualquer escritor, nada, 
nem mesmo sua própria vida, existe antes de seu texto; mas 
a vida de seu texto é sua vida dentro de seutexto. Para qual-
quer escritor - mas talvez de modo menos consciente do 
que para o autobiógrafo (se ele tiver feito análise)-, o movi-
mento e a própria forma da escrita são a única inscrição de 
si possível, o verdadeiro "vestígio", indelével e arbitrário, ao 
mesmo tempo inteiramente fabricado e autenticamente fiel. 
34 Philippe Lejeune 
''L'initiative aux maux", 
Cahiers Confrontation, n. l, 1979, p. 105. 
Marguerite Duras 
Não se sabe quando as coisas estão presentes na vida. 
Isso nos escapa. Você me disse outro dia que a vida sem-
pre parecia como se fosse dublada. É exatamente o que 
sinto: minha vida é um filme dublado, mal montado, mal 
interpretado, mal ajustado, um erro, em suma. Um policial 
sem assassinato, sem tiras nem vítimas, sem assunto, nada. 
Poderia ser um verdadeiro filme nessas condições e não é, 
é falso. Vai saber o que seria preciso para que não o fosse. 
La vie matérielle, P.O.L., p. 139. 
François Nourrissier 
Precisei, para escrever alguns romances, desenvolver 
artimanhas e despender uma energia incrível. Só eu sei 
- como meus próximos, talvez, que também sofreram as 
consequências tumultuosas - a batalha, por vezes cômica, 
sempre extenuante, que travei contra os sentimentos de 
impotência e inutilidade. Na maior parte das vezes, conse-
gui me safar amalgamando confidências e invenção até não 
saber mais onde estava a confissão e onde estava o romance. 
Aconteceu-me até de usar a primeira pessoa e a aparência 
da confissão para dar a uma narrativa aquele frêmito inse-
parável da autobiografia (frêmito do estilo e excitação malsã 
AUTOFICÇÕES & CIA. 35 
do leitor), que controlo melhor, sempre soube disso, do que 
qualquer outra forma de expressão. 
Notas 
Bratislava, Grasset, 1990, p. 32-33. 
(Este texto foi publicado em S. Doubrovsky, 
J. Lecarme, P. Lejeune, Autofictions & Cie., 
RITM, n. 6, Publidix, 1993, p. 5-16. Título 
original: "Autofictions & Cie. Piece en cinq 
actes") 
1 O autor faz alusão ao salon carré [salão quadrado] do Museu do Louvre. (N.T.) 
2 O titulo também cria um efeito de ambiguidade, pois a palavra fils em francês, 
em sua forma escrita, pode significar tanto "filho" quanto "fios''. (N.T.) 
' O título de Doubrovsky remete à conhecida frase de Stéphane Mallarmé, em 
"Crise de verso" (1945) : "L'reuvre pure implique la disparition élocutoire du 
poete, qui cede l'initiative aux mots" [ A obra pura implica o desaparecimento 
elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras] . Entretanto, Doubrovsky, 
fazendo um jogo de palavras, utiliza o termo "maux" [males], homófono de 
"mots" [palavras] . (N.T.) 
4 O titulo, Um amor de si, faz ecoar Un amour de Swann [Um amor de Swann], 
segunda parte do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Marcel 
Proust. A própria trama do livro de Doubrovsky repete a aventura do perso-
nagem de Proust, Swann, que teria passado anos apaixonado "por uma mulher 
que não lhe agradava, que não fazia seu tipo". (N.T.) 
5 Quatorze anos depois de sua tese, Vincent Colonna publica Autofiction & autres 
mythomanies littéraires [Autoficção & outras mitomanias literárias], Mayenne: 
36 Philippe Lejeune 
Editions Tristram, no qual propõe uma "segunda teorià' da autoficção e uma 
tipologia que o leitor encontrará em artigo presente nesta coletânea. (N.T.) 
Referências para os cinco atos 
1. P. Lejeune, Le pacte autobiographique, em Poétique, n. 14, 1973 (artigo 
publicado em 1975 no volume Le pacte autobiographique, Seuil); Le pacte 
autobiographique (bis) e Autobiographie, roman et nom propre, em 
Moi aussi, Seuil, 1986; Qu'est-ce quine va pas?, em Entre l'histoire et le 
roman: la littérature personnelle, Université Libre de Bruxelles, Centre 
d'études canadiennes, 1993. 
2. S. Doubrovsky, Fils, Ed. Galilée, 1977; L'initiative aux maux. Écrire sa 
psychanalyse, Cahiers Confrontation, n. 1, Printemps, 1979; Autobio-
graphie/vérité/psychanalise, L'esprit créateur, XX, n. 3, Automne, 1980 
(artigo publicado também em Autobiographiques, P.U.F., 1988); Un 
amour de sai, Hachette, Roman, 1982; Le livre brisé, Roman, Grasset, 1989. 
3. J. Lecarme, Fiction romanesque et autobiographie, Universalia, 1984, 
p. 417-418; J. Lecarme, B. Vercier, Premieres personnes, Le débat, n. 54, 
mars/avril 1989. 
4. V. Colonna, L'autofiction. Essai sur la ficcionalisation de soi en littéra-
ture, Doctorat de l'E.H.E.S.S. sous la direction de Gérard Genette, 1989. 
5. P. J. Eakin, Fictions in Autobiography: Studies in the Art ofSelf-Inven-
tion, Princeton University Press, 1985; Touching the World: Reference 
in Autobiography, Princeton University Press, 1992; G. Genette, Fiction 
et diction, Seuil, 1991; O. Mongin, Identité et littérature: la France en 
mal de fiction, Le Monde, 3 juillet 1992; P. Ricceur, Temps et récit, Seuil, 
1983-1985, 3 volumes. 
AUTOFICÇÕES & CIA. 3 7 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 
Vincent Colonna 
A autoficção fantástica 
Definição - O escritor está no centro do texto como em uma 
autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e 
sua identidade, em uma história irreal, indiferente à veros-
similhança. O duplo ali projetado se torna um personagem 
fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria 
a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor. 
Diferentemente da postura biográfica, esta não se limita a 
acomodar a existência, mas vai, antes, inventá-la; a distância 
entre a vida e o escrito é irredutível, a confusão impossível, 
a ficção de si total. 
A aproximação com a pintura é esclarecedora. No Re-
nascimento, há um tipo de retrato chamado in figura no 
qual o pintor se insere na tela, emprestando seus traços 
a uma figura religiosa ou histórica. O dublê do pintor se 
destaca frequentemente por seu olhar que foge do espaço do 
39 
quadro, voltado para o espectador. Dürer pintou a si mesmo 
sob a figura do Salvador, em um Cristo ultrajado de 1493, 
que podemos comparar a um autorretrato do mesmo ano. 
Filippino Lippi e Masaccio figuram nos afrescos da capela 
Brancacci, como espectadores assistindo aos Atos de Pedro. 
Segundo a tradição, em seu quadro Davi com a cabeça de 
Golias, Caravaggio teria desenhado seus próprios traços 
para animar o rosto decapitado de Golias. Os exemplos po-
deriam ser multiplicados: em 1568, em seu Vidas dos mais 
excelentes pintores, Vasari já contava 80 pintores presentes, 
sob essa forma in figura, em seus afrescos ou retábulos. Os 
modernos continuaram explorando o procedimento com a 
predileção, ao que parece de inspiração luterana, por uma 
transfiguração em Cristo: é o que se observa em Samuel 
Palmer e Gauguin. Em Ensor, Dalí, Roy Lichtenstein ou 
David Hockney, o gesto visa materializar a fantasmagoria e 
a mitologia pessoal: como O autorretrato mole com toucinho 
assado (1941), no qual Dalí pintou seu "soft self portrait" 
e uma variação sobre o motivo do relógio mole; como o 
hábil Autorretrato de 1978, no qual o rosto de Lichtenstein 
aparece através de um espelho que reflete a famosa trama, 
)\marca de fabricação desse pintor da Pop Art; ou ainda, a 
t' \ v-i gravura de Hockney, O artista e seu modelo (1974), que 
W mostra Hockney e Picasso sentados frente a frente, o pri-
meiro nu e o segundo olhando para um croqui, em um 
40 Vincent Colonna 
4~í- ~ -{!3,1Pr&1~ 
/1/ # ,;; ;? .e/.&/4 
, tête-à-tête que nunca aconteceu. Em direção bem diferen-
te, como Van Gogh, e também Rembrandt, que nisso foi 
1 
insuperável, Frida Kahlo e Lucian Freud, que levaram sua 
nudez mortificada ao mais alto grau, pintores praticaram 
uma forma ascética de autorretrato, mais empenhados em 
desvelar de maneira clínica as corrupções de seus próprios 
rostos e corpos do que preocupados com a busca de seme-
lhança. Há, no entanto, uma distância entre essas licenças 
f 
I pictóricas (vejam a liberdade gráfica do Autorretrato com 
caveira, 1972, de Picasso) e uma representação de si situada 
em um mundo mítico ou lendário. A autoficção fantástica 
difere assimda fabulação biográfica, da mesma maneira 
que a representação in figura se distingue do autorretrato, 
tradicional ou ascético. 
Curiosamente, uma das primeiras fotografias, e a primeira 
ficção da história da fotografia, utiliza a encenação in figu-
ra: é o célebre autorretrato O afogado (1840) de Hippolyte 
Bayard, que o mostra quase nu, enrolado em um lençol, o 
corpo muito branco apoiado em uma banqueta, com um 
rosto sorridente de criança doente e, à sua direita, um grande 
chapéu romântico. Ele queria protestar, dessa maneira, contra 
a falta de reconhecimento oficial de sua invenção que, no 
entanto, tinha uma técnica de fixação das imagens superior à 
de Daguerre. Além do tema pessoal e da razão técnica dessa 
pose, a escolha é intrigante. Por que Bayard não optou por um 
TIPOLOG IA DA AUTOF ICÇÃO 41 
retrato mais realista? Ou por uma ficção visual dissociada de 
sua identidade? Como na história do romance, a autoficção 
está presente no começo da fotografia, antes do autorretrato 
em sentido estrito. 
A coisificação do autor - Na autofabulação fantástica, 
o efeito literário obtido, a exploração "xamanística" do 
inumano é totalmente estranha à tradição autobiográfica: 
o leitor experimenta com o escritor um "devir-ficcional", 
um estado de despersonalização, mas também de expansão 
e nomadismo do Eu. Esse efeito xamanístico parece mais 
intenso, mesmo se outros efeitos de leitura são possíveis, 
como evoca o jovem Niestzsche, em sua descrição da em-
briaguez dionisíaca: 
Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, 
do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se 
sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e 
enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem 
não é mais artista, tornou-se obra de arte ... 1 
Esse processo de reificação artística, através do qual o 
escritor não é mais apenas uma pessoa, mas também objeto 
estético é aquele destino estranho sobre o qual Gombrowicz 
se interrogava em seu diário. Legitimamente, é o que acon-
tece ao escritor que se autofabula em um trecho de literatura 
42 Vincent Colonna 
fantástica: ele adquire um modo de ser suplementar, fabu-
loso, como o unicórnio, os heróis mitológicos ou a noção 
de infinito. Seria possível escrever páginas e páginas sobre a 
metafísica desse fenômeno vertiginoso, refinando à vontade 
o intervalo abissal que separa o estatuto ontológico de um 
escritor de ficções de si do estatuto de um escritor conven-
cional. Na prática, o imaginário, esse monarca caprichoso 
que governa a leitura e uma parte do reino humano, parece 
insensível a essas distinções. Seu primeiro movimento seria 
antes esmagá-los, "condensá-los" como dizia Freud, pelo 
fato de o legendário ( a ficção) mais reunir do que separar 
os dois perfis. Constata-se que o escritor avança sempre 
acompanhado de uma lenda, dourada ou negra, instável 
e polimorfa; lenda que constitui o sésamo de sua existên -
eia na memória dos homens. Um personagem de autor 
fabulado e a imagem mais ou menos magnificante de um 
escritor são, para a faculdade de imaginar, duas entidades 
igualmente fictícias, duas identidades de contorno instável 
que existem apenas na proporção de sua capacidade para 
produzir emoções e sonhos. Sua eficácia imaginária não é, 
certamente, a mesma, mas tendo a crer que todos os escri-
tores de renome nos vêm à mente, além de seu estatuto de 
"descrição definida" (eles designam seus escritos como uma 
etiqueta), como papéis quase míticos, suscitando a mesma 
mistura de investimento e afetos que os heróis de romance. 
TIPOLOGIA DA AUTOF ICÇÃO 43 
Em outras palavras, uma ontologia formal que tentasse con-
ceitualizar o efeito reificante da autoficção fantástica, com o 
objetivo de esclarecer suas consequências paradoxais sobre 
a função de autor, talvez tenha interesse, mas um interesse 
mais filosófico que literário. 
( .. . ) 
A autoficção biográfica 
Definição - O escritor continua sendo o herói de sua histó-
ria, o pivô em torno do qual a matéria narrativa se ordena, 
mas fabula sua existência a partir de dados reais, permanece 
mais próximo da verossimilhança e atribui a seu texto uma 
verdade ao menos subjetiva ou até mais que isso. Alguns 
contemporâneos (Doubrovsky, Angot) reivindicam uma 
verdade literal e afirmam verificar datas, fatos e nomes. 
Outros abandonam a realidade fenoménica ( o personagem é 
um bebê que tem o sobrenome do pai do autor), mas perma-
necem plausíveis, evitam o fantástico; fazem de modo que o 
leitor compreenda que se trata de um "mentir-verdadeiro", 
de uma distorção a serviço da veracidade ( em romance de 
1964, com esse título, Aragon desmontou algumas engre-
1 
nagens de tal mecanismo criativo). Um núcleo narrativo 
elementar é exibido como verídico e como eixo do livro, 
tendo como modelo alguns precedentes históricos: aos 75 
anos, Goethe ainda falava de seu herói W erther, pedestal da 
44 Vincent Colonna 
glória conquistada aos 25 anos, que, no entanto, se suicida 
ao fim do romance, como de "uma criatura que se alimenta 
de seu próprio coração". 
Reconhecemos nessa categoria a tendência que é a mais 
difundida e, ao mesmo tempo, a mais controversa da auto-
ficção, aquela que, periodicamente, é acusada de mistifica-
ção e contra a qual se apela à indignação pública. É verdade 
que ela exaspera até mesmo os críticos mais informados, 
que acabam por confundi-la com a tradição autobiográfica 
seguida por Gide e Leiris ou com a literatura de testemunho 
e que, atualmente, se ouve com frequência absurdos segundo 
os quais autoficção e autobiografia são sinônimos. Também 
é verdade que essa orientação literária é típica dos grandes 
narcisistas, em geral horripilante enquanto o autor está vivo 
e funciona melhor post mortem, mesmo que sem garantia do 
resultado. Céline, que conhecia bem a questão e conhecia a 
sua história literária como homem da arte ( é preciso lê-lo 
comentando Proust e explicando o que Le temps retrouvé 
[ O tempo redescoberto] deve a Histoire de ma vie [História 
de minha vida] de Georges Sand), clamava: "A posteridade? 
Você está brincando? Primeiro é preciso morrer. Depois a 
gente vê. Vivo, você não vale nada. Você só começa a ser 
degustado, quando está sendo comido pelos vermes." 
Como a subjetividade substituiu a sinceridade - Graças ao 
mecanismo do "mentir-verdadeiro", o autor modela sua 
TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 45 
imagem literária e a esculpe com uma liberdade que a litera-
tura íntima, ligada ao postulado de sinceridade estabelecido 
por Rousseau e prolongado por Leiris, não permitia. Raros 
são os falsários (Da Ponte? Maurice Thorez?) ou memorialis-
tas dotados da mesma mitomania serena de Chateaubriand: 
suas Mémoires d'outre-tombe [Memórias de além-túmulo] 
(1850) são famosas tanto por suas mentiras quanto pelo es-
tilo cativante ( como a famosa descrição do Mississipi, intei-
ramente inventada a partir de relatos de viajantes). A noção 
plástica de autoficção, em sua acepção mais corrente e mais 
vaga, marca talvez uma evolução significativa da escrita de si, 
através da qual o procedimento autobiográfico se transforma 
em operação de geometria variável, cuja exatidão e precisão 
não são mais virtudes teologais. Com a opção autobiográfica 
pura que permanece, o autor pode doravante redigir sua 
vida ou um episódio, romanceando mais ou menos, sem 
que o grau de romanceação tenha grande importância. Essa 
fórmula, na qual a veracidade se apaga diante da expressão, 
existia há muito tempo a título de poesia, modo de escrita 
em que muitas são as liberdades possíveis: a Vita nuova de 
Dante, a poesia narrativa de Byron, as Méditations poétiques 
[Meditações poéticas] de Lamartine quase não são mais 
lidas, mas moldaram gerações de leitores, na época em que 
a forma versificada sabia conquistar o público. 
46 Vincent Co lonna 
Após o romantismo, um princípio de subjetividade ab-
solutase generalizou pouco a pouco na escrita e na recepção 
dos textos romanescos: é o paradoxo de Jean Cocteau em 
Opéra [Ópera] (1927): "Eu sou uma mentira que sempre 
diz a verdade"; a fórmula de Denis Roche em Louve basse 
[Loba baixa] (1976): "Não precisam tentar descobrir, o livro 
fala de mim. É romance." Levando bem longe o uso dessas 
misturas contraditórias, fazendo variar a pessoa gramati-
cal de seu narrador e o grau de trap.sposição, Christopher 
Isherwood deu uma justificativa inevitável a essa prática 
ambígua: "Tudo o que se inventa sobre si mesmo faz parte 
do mito pessoal e, consequentemente, é verdadeiro." ( Chris-
topher et son monde) [Christopher e sua espécie] {1976). Em 
contrapartida, o efeito antecipado sobre o leitor permanece 
o mesmo da literatura autobiográfica em sentido estrito: 
reparação de si, empatia, simpatia, admiração, exaltação, 
edificação ou ambivalência. 
( ... ) 
Nome próprio - Para certos críticos, a grande originali-
dade da autoficção estaria na revelação do nome próprio; 
no romance autobiográfico, os nomes estariam cifrados 
ou esquivados, principalmente o do autor. De maneira, às 
vezes, muito transparente: o nome René (1802) é o segundo 
nome de batismo de François-René de Chateaubriand e, 
nessa confissão, o crítico Albert Thibaudet identificava o 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 47 
aparecimento na história literária do "pequeno romance 
autobiográfico com nome". David Copperfield (1849-1850) 
narra a infância infeliz de um personagem epônimo, cujas 
iniciais invertidas são as do autor Charles Dickens. Em 
sua trilogia de inspiração autobiográfica publicada de 1879 
a 1886: L'enfant [A criança], Le bachelier [O bacharel] e 
L'insurgé [O insurreto], Jules Valles deu suas iniciais a seu 
duplo Jacques Vingtras. É verdade que, frequentemente, 
a associação personagem-autor era consequência de uma 
omissão: entre 1888 e 1901, o jovem Maurice Barres publicou 
uma trilogia egotista navegando entre o ensaio e o romance, 
intitulada Le culte du moi [O culto do eu]. Nesses textos, o 
herói associai e meio anarquista é anônimo, o que signi-
ficava, segundo as convenções da época, um personagem 
próximo do autor. Barres era então um escritor irreverente, 
que atacava sem hesitar gurus da época: seu retrato irônico 
de Ernest Renan, paródia da visita ao grande escritor, Huit 
jours chez M. Renan [Oito dias na casa do senhor Renan] 
(1888), ainda merece ser lido. Ao envelhecer, tendo desco-
berto que tinha uma sensibilidade de conservador, anteci-
pando paradoxalmente o nacional-socialismo, tornou-se o 
signatário de Colette Baudoche (1909) e do ciclo patriótico 
dos Bastions de l'Est [Bastiões do Leste], sem contar sua 
qualidade de acadêmico e homem político influente. Como 
seus primeiros escritos interferiam em seu estatuto de 
48 Vincent Colonna 
homem ilustre, acrescentou a seu primeiro herói, em todas 
as reedições do Culte du moi, o nome "Philippe": o leitor 
não podia mais amalgamar esse personagem extremista ao 
deputado conservador que se recusava a votar a favor de 
recursos para construir uma estátua de Rousseau. É o que 
se chama virar a casaca; mudar de sinceridade, diziam os 
mais indulgentes, quando Barres era "o príncipe da juven-
tude", iniciando Proust em Veneza ou Aragon na primazia 
absoluta do estilo. 
Com a autoficção biográfica, segundo a vulgata domi-
nante, a esquiva ou a codificação são abandonadas, os nomes 
são dados, nomes e sobrenomes, do autor e o dos outros, 
como nas obras de Marc-Édouard Nabe ou Guillaume 
Dustan. Em L'inceste [O incesto] (1999), Christine Angot 
chega mesmo a misturar nome disfarçado e nome real para 
uma mesma pessoa (a mulher que foi sua amante durante 
três meses) e a citar, longamente e por provocação, as reco-
mendações do conselho jurídico da editora, que a convidava 
a apagar todos os nomes reais da narrativa a fim de evitar 
processos por difamação, atentado à vida privada etc. Nesse 
caso, não houve nenhuma consequência, mas, às vezes, a 
publicação acarreta processos memoráveis ( casos Rezvani, 
Lanzmann, Doubrovsky, Laurens etc.). Com situações 
cômicas em que o feitiço vira contra o feiticeiro, quando 
o fabulador indiscreto se vê, por sua vez, ele próprio ou 
TIPOLOG IA DA AUTO FICÇÃO 49 
alguém próximo a ele, envolvido em uma ficção (Lanzmann 
denunciando Rezvani, Doubrovsky contra o sobrinho Marc 
W eitzmann e seu romance Chaos [Caos] que, dentre outras 
mistificações, afirmava que a palavra autoficção era uma 
invenção do romancista americano Jerzy Kosinsky). O livro 
não é mais aquele grande cemitério onde, sobre a maioria 
dos túmulos, se leem apenas nomes apagados, como escre-
via Proust ao término da Recherche [Em busca do tempo 
perdido]; é uma quermesse onde os vivos deambulam com 
um crachá indicando sua identidade - e, às vezes, se engal-
fmham como em filmes burlescos. 
Na realidade, a novidade do procedimento é discutível, 
pois no pós-guerra, o romance autobiográfico era frequente-
mente nominal. Céline, Henry Miller, Romain Gary, David 
Rousset, Jean Genet ou Blaise Cendrars praticaram oro-
manesco pessoal, conservando os nomes autênticos, assim 
como seus nomes de escritor. (Céline foi processado pelos 
"von Leiden", citados em Nord [Norte] e, em 1964, uma 
edição "definitiva" foi publicada, na qual todos os nomes 
próprios tinham sido substituídos.) Antes deles, escritores 
como Colette, Breton, Aragon, Hesse, Loti, Nerval, Restif, 
Viau, Pisan ou Dante, haviam agido da mesma maneira, com 
relação a seu nome e aos dos outros (Lamartine criticava A 
divina comédia por seu lado mundano florentino, pois, no 
poema, figuram muitos nomes identificáveis unicamente 
50 Vincent Co lonna 
pelos habitantes de Florença). A verdadeira novidade de 
nossa época está na supervalorização cultural do proce-
dimento: esse é o fato indiscutível. Antes, na consciência 
literária, o nome não era um marcador valorizado, o critério 
por excelência. Esse passado já se tornou história e é difícil 
falar de um momento histórico sem documentação. Mas a 
lembrança de algumas revistas dos anos de 1945-1950 en-
contradas em sebos me leva a pensar que se debatia menos 
a questão do nome próprio do que a da legitimidade (já) do 
romance pessoal, como se o gênero tivesse ainda sobrevida 
suficiente para não ser redescoberto e redefinido a partir de 
um critério onomástico. Preferia-se criticar Henry Miller 
ou Céline pela incapacidade de escrever um romance roma-
nesco, Cendrars era taxado de genial mitômano. Causava 
espanto que Genet fabricasse um lirismo moderno sem 
modelo, unicamente com suas experiências suspeitas, cuja 
autenticidade ainda não era discutida, mas, ao contrário, 
parecia evidente por suas confidências provocantes, diários 
sensacionalistas e pelo monumental estudo biacrítico de 
Sartre - que não verificou nada e acreditou piamente em 
tudo o que o rapsodo ("tecedor de canções" em grego) do 
Journal du voleur [Diário de um ladrão] contava embelezan-
do. Foi o que possibilitou, como declarou Bataille, a investi-
gação mais aventurosa empreendida por um filósofo sobre o 
problema do Mal, mas talvez não a melhor monografia sobre 
TIPOLOGIA DA AUTOF ICÇÃO 51 
Jean Genet. Pois o seu]ournal du voleur, mais narrativa do 
que diário do cotidiano, não conserva nada da sinceridade 
exacerbada dos grandes modelos do gênero, como Amiel 
ou Gide; nele pode-se ler, entre outras advertências:"(. .. ) 
que minha vida deve ser lenda, isto é, legível e sua leitura 
dar vida a alguma emoção nova que chamo poesia. Não sou 
mais nada, além de um pretexto." 
Volto para um terreno mais seguro, sobre a atenção nova 
e talvez excessiva à inscrição do nome próprio do autor no 
romance. Essa recepção sem precedentes que engendrou a 
necessidade da palavra "autofi.cção" certamente tem a ver 
com o grande movimento social no qual se misturam juri-
dismo e individualismo, cuja manifestação maisvisível é a 
ascensão da "extimidade" dos últimos anos do século XX. 
Trata-se da tão falada onda de desvelamento da intimidade 
que é, ao mesmo tempo, fabricada e refletida pela televisão, 
o mundo político, os costumes, a vida privada e profissional 
- da qual ainda não se cansou de falar. Será uma revolução 
literária? Para que fosse, seria preciso que o planeta tivesse 
se transformado de fato em uma aldeia, ideia que não passa 
de fantasia da publicidade. Na verdade, todos os nomes 
exibidos nessas narrativas romanceadas, exceto o autor e 
os personagens públicos, remetem, para o leitor comum, 
a desconhecidos. O efeito produzido não difere, portanto, 
de um romance ( ou peça de teatro) à clé, fórmula literária 
52 Vincent Colonna 
antiga, na qual as pessoas envolvidas se reconhecem e que 
os outros leem como uma ficção, nem mais nem menos. 
( ... ) 
A autoficção especular 
Definição - Baseada em um reflexo do autor ~u ~o li~ro 
dentro do livro, essa tendência da fabulação de si nao deixa 
de lembrar a metáfora do espelho. O realismo do texto e sua 
verossimilhança se tornam, no caso, elemento secundário, 
e O autor não está mais necessariamente no centro do li-
vro; ele pode ser apenas uma silhueta; o importante~é que 
se coloque em algum canto da obra, que reflete entao sua 
presença como se fosse um espelho. Até a e_ra dos co~pu-
tadores, 0 espelho foi uma imagem da escnta em açao, de 
sua maquinaria e emoções, e também de sua vertigem: o 
termo especular parecia então indicado para designar essa 
postura refletora. . , . 
Em pintura, para continuar o paralelismo, e preciso pen-
sar no procedimento do "quadro dentro do quadro:', no qual 
0 pintor se representa em um ângulo da tela, mmtas _vezes 
diante de um cavalete e de pincel na mão, como se estivesse 
pintando a cena que contemplamos. As meninas (1656) de 
Velásquez é um exemplo frequentemente comentado dessa 
tradição pictórica, que abrange desde o monumental_ O ate-
lier do pintor, de Courbet até certos quadros de Matisse ou 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 53 
1 
1 j 
1 
Picasso, tradição, em princípio, distinta daquela do autorre-
trato dito autônomo - assim como a fabulação especular se 
diferencia da autoficção autobiográfica. Em L'reil et l'esprit 
[ O olho e o espírito] ( 1964), pequeno texto sugestivo sobre 
pintura, Maurice Merleau-Ponty associa essa tradição do 
retrato do pintor pintando à presença de um espelho dentro 
do quadro; os dois proclamam a reversibilidade do vidente 
e do visível, da essência e da existência, do imaginário e do 
real; "uma universal magia que transforma as coisas em es-
petáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem 
em mim". Essa reversibilidade é, às vezes, expressamente 
o objeto da representação, como no autorretrato de 1646, 
no qual Johannes Gumpp se expõe de costas, ao passo que 
dois reflexos simétricos de seu rosto, sobre um espelho e 
sobre sua tela, o enquadram e olham para o espectador. No 
primeiro plano do quadro, mergulhados em semiobscurida-
de, paralelos aos dois reflexos do rosto do pintor, um gato 
e um cachorro se espreitam e estão prestes a se dilacerar 
mutuamente, como se a metamorfose do vidente e do visível 
não fosse possível sem violência. 
Mas com ou sem o motivo do espelho, violenta ou 
pacífica, essa reversibilidade é a lição capital de todos os 
procedimentos refletores, qualquer que seja a escala, o dis-
positivo ou o campo artístico. Ela cochila no fundo das obras 
literárias e, sem aviso prévio, sua hibernação é interrompida 
54 Vincent Co lonna 
por uma primavera imprevista, o escritor pode se tornar 
personagem, o personagem escritor, o leitor pode se ver no 
meio do complô maquinado pela ficção, transformado em 
sujeito da história, como Calvino demonstrou de maneira 
surpreendente em seu romance Se um viajante numa noite 
de inverno (1979). 
( ... ) 
Afirmei que a autoficção sempre tinha algo de especular: 
ao por em circulação seu nome, nas páginas de um livro do 
qual já é o signatário, o escritor provoca, quer queira quer 
não, um fenômeno de duplicação, um reflexo do livro sobre 
ele mesmo ou uma demonstração do ato criativo que o fez 
nascer. Em contrapartida, e essa é outra diferença entre as 
duas figuras, uma mise en abyme não invoca necessaria-
mente a fabulação de si: Hamlet contém, como se sabe, uma 
pequena peça encenada no castelo de Elseneur, mas a re-
transcrição dessa performance teatral não põe Shakespeare 
em cena, nem faz parte da lista das obras do dramaturgo 
elisabetano. Ao passo que L'impromptu de Versailles [O 
improviso de Versailles] de Moliere, peça singular, na qual 
a tradição do teatro dentro do teatro encontra a metalepse, 
põe em cena um chefe de trupe de nome Moliere que im-
provisa um espetáculo para o rei: o improviso anunciado 
pelo título. 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 55 
Nas melhores dessas realizações, é a duplicidade da 
literatura, o artifício dessas figuras que se expõe. A ficção 
literária se mostra então não como espaço de ilusão (uma 
velha crítica), mas como laboratório onde os mecanismos 
são desmontados e apresentados ao leitor com o fim de lhe 
proporcionar o prazer de descobri-los. 
( ... ) 
A autoficção intrusiva (autoral} 
Definição - Nessa postura, se pudermos considerá-la de fato 
como tal, a transformação do escritor não acontece através 
de um personagem, seu intérprete não pertence à intriga 
propriamente dita. O avatar do escritor é um recitante, um 
contador ou comentador, enfim um "narrador-autor" à 
margem da intriga. É por isso que essa postura não figura 
na obra de Luciano de Samósata: ela supõe um romance 
"em terceira pessoa", com um enunciador exterior à trama. 
Nessa "intrusão do autor'',2 o narrador faz longos discursos 
enfadonhos dirigidos ao leitor, garante a veracidade de fatos 
relatados ou os contradiz, relaciona dois episódios ou se 
perde em digressões, criando assim uma voz solitária e sem 
corpo, paralela à história. 
Essa voz, mais ou menos intrusiva, brincalhona em 
Scarron, tirânica em Jacques le fataliste [Jacques, o fatalista], 
espiritual em Fielding, sentenciosa em Scott, digressiva em 
56 Vincent Colonna 
Balzac, egotista em Stendhal ou irônica em Mérimée, faz par-
te da euforia de um certo romance clássico, pré-flaubertiano: 
nele, a narração é alerta e alegre, como antes do pecado 
original. Mas a partir de Flaubert e James, a literatura ro-
manesca se construiu com base na ocultação progressiva da 
instância narrativa, se empenhou em dissociar o escritor de 
sua "voz", em preconizar um ideal estético de apagamento e 
impassibilidade do autor, para fazer do romance uma cena 
imaginária cujo maestro estaria ausente. Nabokov é a grande 
exceção desse movimento de refluxo, talvez por sua cultura 
russa, na qual a redescoberta de Tristan Shandy nos anos de 
1920, pelos formalistas, foi um acontecimento. 
Os parágrafos que abrem Le pere Goriot [O pai Goriot] 
(1835) são uma ilustração clássica da intrusão do autor no 
romance: 
A senhora Vauquer, Conflans de solteira, é uma velha senhora, 
que há quarenta anos, mantém em Paris uma pensão burguesa 
estabelecida na rua Neuve-Sainte-Genevieve, entre o quartier 
latin e o f aubourg Saint-Marceau ( ... ) Todavia, em 1819, época 
em que começa esse drama, se encontrava na pensão uma pobre 
jovem ( ... ) É assim que você dirá, você que segura esse livro em 
suas mãos brancas, você que se afunda numa poltrona macia, 
pensando: "Talvez esse livro me divirta:' Após a leitura dos secretos 
infortúnios do Pai Goriot, você vai jantar com apetite atribuindo 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 57 
a sua insensibilidade ao autor, a quem vai chamar de exagerado 
e acusar de fazer poesia. Ah! Pois, saiba: esse drama não é nem 
ficção, nem romance. All is true, ele é tão verdadeiro que cada um 
de nós pode reconhecer os seus elementos em sua própria casa, 
em seu coração, talvez. 
Ao interpelar uma leitora,Balzac se desmascara, põe a 
cara dentro da cena, não hesitando em se gabar de sua quali-
dade de dramaturgo, nem tampouco em tentar influenciar a 
leitura. Não se contenta em enunciar julgamentos como em 
Walter Scott (pouco tempo antes desse trecho, ele condenara 
sua época pelo uso "torturador" da palavra drama, e pelos 
"tempos de dolorosa literatura"), ele se nomeia "o autor", 
opera uma estratégia de contato com o público, teoriza 
sobre a veracidade de seu romance. A verdade romanesca 
se toma a verdade do coração, uma objetividade de ordem 
interior, uma exatidão verificável por empatia, segundo a 
descoberta de Rousseau. 
À margem de sua história, no plano da narração, Balzac 
erige, portanto, uma intriga secundária, a do autor narrando 
e seduzindo seu público. Ele se transforma não em prota-
gonista, mesmo efêmero, mas em contador de uma espécie 
particular, um tapeador de sua própria história. Entre as 
linhas desse "drama da paternidade", ao lado dos aconte-
cimentos vividos pelos pensionistas da pensão Vauquer, se 
58 Vincent Co lonna 
instala um outro romance, um romance difuso, em alguns 
momentos quase secreto, reservado aos leitores filólogos, 
ruminantes, diria Nietzsche. 
Em primeiro lugar, a história da história - como Bal-
zac descobriu a tragédia vivida por Goriot? Em um fait 
divers? Inspirando-se em Rei Lear, tragédia com roteiro 
semelhante? Tirou-a de sua própria imaginação? O que 
demonstraria que Balzac não é o autor encenado: "pois esse 
narrador-autor é alguém que 'conhece' a pensão Vauquer, 
sua proprietária e seus pensionistas, ao passo que Balzac 
apenas os imagina."3 A descoberta desse drama é contada 
nas primeiras páginas pelo próprio "autor", ela pertence ao 
romance do romance e é atribuída a Rastignac: 
Sem suas observações curiosas e a habilidade com que soube 
circular nos salões de Paris, essa narrativa não teria sido colorida 
com os tons verdadeiros que se devem sem dúvida a seu espírito 
sagaz e a seu desejo de penetrar nos mistérios de uma situação 
pavorosa, cuidadosamente escondida tanto por aqueles que a 
haviam criado, quanto por quem era sua vítima. 
Assim, o autor não imaginou esse drama, mas foi infor-
mado pelo jovem estudante de direito que fez uma verda-
deira investigação para esclarecer "os infortúnios secretos 
do Pai Goriot": a necessidade de dinheiro inextinguível 
TIPOLOGIA DA AUTO FICÇÃO 59 
de suas filhas, os sacrifícios cada vez maiores do pai para 
satisfazê-las. Parece um daqueles romances gregos, nos 
quais o autor tem sempre necessidade de uma testemunha 
ocular para forjar sua narrativa. O informante Rastignac, 
no entanto, é um personagem fictício, que aparece pela pri-
meira vez em uma narrativa fantástica, La peau de chagrin 
[A pele de onagro), romance que lançou Balzac, quando 
ele ainda não tinha inventado o princípio do retorno dos 
personagens, nem pensado na arquitetura da Comédie hu-
maine [Comédia humana] . 
Temos então um "autor" que tem a pretensão de contar 
a história "verdadeira" de um Rastignac criado por Balzac 
por volta de 1831 . Parece paradoxal: não estamos longe dos 
circuitos e círculos da narração especular. A ficção se revira 
como uma fita de Moebius para absorver a situação real da 
escrita: Rastignac se torna o autor invisível de Le pere Goriot; 
Balzac, o escriba de Rastignac. A criação engloba e ultrapassa 
então o criador, mas, em troca, permite que ele atinja por 
procuração um estatuto inacessível, uma proximidade com 
seres de exceção - como frequentemente sonhou o roman-
cista, que desenvolveu amplamente esse tema da vida por 
procuração para seus personagens ("A minha vida, mesmo, 
são as minhas filhas", diz Goriot; "Eu serei o senhor" diz 
Vautrin a Lucien de Rubempré etc.). 
60 Vincent Co lonna 
Esse sonho prometeico de engendrar criaturas que se 
tornem autônomas graças a um demiurgo que desaparece 
em seu efeito-mundo, foi também o sonho do escritor 
para o conjunto da Comédie humaine. Como em Le pere 
Goriot, ele o realizou até mesmo nas margens de seu ciclo: 
La recherche de l'absolut [À procura do absoluto], Facino 
Cane [Facino Cane], Histoire des treize [História dos treze] 
e algumas outras narrativas amoldam um Balzac de ficção, 
um Autor-recitante que assombra os bastidores de seus 
romances, circula entre um e outro, como filósofo, teósofo 
ou historiador, mas sempre se construindo como efeito de 
sua obra e não o inverso. 
É que Balzac tem da literatura uma visão embriagadora, 
mais próxima de um Rimbaud do que se poderia imaginar: 
a obra é, para ele, uma forma através da qual o mundo pode 
ser contemplado, apagando os limites da individuação, do 
espaço e do tempo; a criação literária é um "sonho acorda-
do", um "dom de segunda vista", uma percepção intuitiva 
da realidade pela qual é preciso "abandonar seus hábitos, 
se tornar um outro".4 A partir daí, parece coerente que o 
escritor Balzac penetre progressivamente na estrutura de sua 
Comédie humaine e se amalgame com sua obra, através de 
um devir-texto que Mallarmé, o Obscuro, desenvolveria em 
verso, com o desaparecimento elocutório do poeta. 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 61 
Duas imagens do narrador - Após 40 anos de narratologia 
e de semiótica, pode parecer estranho confundir o narrador 
e o autor, descrever uma ficcionalização de autor, quando 
a teoria literária contemporânea aprende a identificar um 
narrador fictício. É verdade que, ao estabelecer uma fron-
teira absoluta entre o autor e o narrador, a poética e a nar-
ratologia modernas tornaram esse fenômeno imperceptível 
e quase impensável. 
Durante muito tempo, no entanto, o "Autor" presente 
no texto (a "voz" de Balzac, de Fielding, de Mérimée ou de 
Stendhal) foi percebido como um papel inventado e repre-
sentado em função das necessidades da escrita de ficção. 
Entendia-se que o escritor adotava um papel de composição, 
adequado a seu tema, para poder desenvolver sua narração, 
orientar a leitura, despistar o leitor quando o gênero o 
exigia. Todos os pais conhecem essa situação de comuni-
cação: para contar uma história a uma criança, é preciso 
mudar a voz e a dicção, adaptá-las ao conteúdo narrado, se 
metamorfosear para dar a impressão que acreditamos no 
mundo maravilhoso ou aterrorizante invocado pelo conto. 
Há menos de um século, essa ainda era a atitude de comuni-
cação dos escritores com os leitores: para todos, o narrador 
era o Autor disfarçado, uma máscara adotada segundo as 
necessidades da narrativa. Esse estatuto não o desobrigava 
da responsabilidade quanto ao conteúdo textual, mas dava 
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uma grande liberdade de expressão ou de conivência com os 
personagens. Muitos testemunhos poderiam confirmar esse 
fato histórico e cultural. Quando formula seu ideal estético, 
Flaubert não diz "o narrador deve se apagar na narração", 
mas "o artista não deve aparecer em sua obra mais do que 
Deus na natureza". Quando rejeita o procedimento das 
intrusões, em Bouvard et Pécuchet [Bouvard e Pécuchet], é 
mais uma vez a palavra autor que emprega: 
Nesse gênero de livros, deve-se interromper a narração para 
falar do cachorro, das pantufas e da amante. Tanta falta de ceri-
mônia os encantou inicialmente, depois lhes pareceu idiota, pois 
o autor apaga a sua obra quando nela exibe sua pessoa.5 
Balzac lembra, com frequência, em seus comentários, 
prefácios ou dedicatórias, que as afirmações dos persona-
gens são responsabilidade deles, não do escritor - mas nunca 
afirmou o mesmo com relação a seus narradores, alter ego 
ou duplos ficcionais dele mesmo. Do mesmo modo, co-
mentando as digressões de Balzac, e tendo escapado não se 
sabe como da "virada linguística" de seus contemporâneos, 
Julien Gracq analisa ainda La comédie humaine como se a 
identidade do autor (o escritor) e do narrador fosse óbvia: 
TIPOLOGIA DA AUTOFICÇÃO 63 
Quando Balzac se lança em páginas e mais páginas, em de-
senvolvimentos ou comentários infinitamente

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