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ET]rd\:"7Í=ÉiTtF==:z"qL iirinTTT="iTi"IETZ nEEZEiEDn rmEE"mHZE3E Ú\RTn5EmL.dR WHHEmB\iíl.m..i'\m\A 'Ê-I\EEnm EB"mEEz"mrmnm mmtdBHLa TDEmãimdz5E "EEnmHdE5E IEEEEEEE EEE"-ãíããííq55Éq5m UEEElndmi"MümEEEb Pj3Ibnbl"MudEmunm\\"'\m rím"HZEqqa '-m=BZEm Bmí5iãiFEÊHED."MTi.im."i-Í-- rERmmn5Emnm BfEÉÚíãÉ¥ãHzm lHETnE\mEZÀ TÍ"Im\\m.\JmmEIEtiEÀ w="EmmlMaaz TEDEnmEmEEtHE lm-.õZEiÉiE\-Ba\mü.\ irmffl "E]quffl úE]Zi] rm"nm fl 1- 1 1t - +r. II+X }.. Ê ",40 I""t ~' \ 1/ j 1 1 Li t ii__ _+i 1 lli H t 1 11 Á lli E B \ ) DOCUMENTÁRIO 0 Cinema como Testemunha MAYKEL RODRÍGUEZ PONJUÁN MARCELO MÜLLER ORGANIZADORES DOCUMENTÁRIO 0 Cinema como Testemunha Dean Luis Reyes . Claude Bailblé . Michael Chanan . Russell Porter . Edgar Soberón Tlorchia . Joel del Río . Miguel Pérez • Rigoberto López . Puri Faget . Jorge Fuentes . Jacqueline Meppiel . Claudia Von Alemann . Estela Bravo . Ernesto Bravo • Goran Radovanovic . David Bradbury . Enrique Álvarez . Daniel Diez . Guillermo Monteforte . Richard Kerr . Miguel Silveira . Lázara Herrera . Tlom Weinberg . Iván Ttujjilo ®j[sg,uNE[VhmE+ffipã^, in[ermeios C"DEAmsELm Edltora ln.ormelos Rua LuÍs Murat, do -Wla Madalena CEP 05436J)50 - São Paulo - SP - Brasil Fone, 2338-8851 -www intermeioscultural com br ® DOCUMENTARIO -0 CINEMA COMO TESTEMUÁIHA ® EBcuela lntemacional de Cine y Televisión. EIcll`/ San Antonio de los Baíto§ (Cuba), 2010 El lostigo documental.1° Encontro de DocumentanstEis -EICTV. 19-20 de jeneiro de 2009 © Editora lntermeios Ltda (ediçao brasileira), 2012 1a edição setembro de 2012 ® Pngduçáo o capa lntemeios -Casa de Artes e Liwo3 0i.ag®mação Rai Lopes Rev/séo Jacob Lebensztayn Fo/o da capa Nicolás ordof`ez camllo CONSELHO EOITORIAL Vincent M. Colapietro (Penn State Un iversity) Daniel FerTer (lTEM/CNRS) Lucrécia D'Alessio Ferrara (PUCSP) Jerusa Pire§ Ferreira (PUCSP) Amálio Pinheiro (PUCSP) Josette Monzani (U FScar) Rosemeire Aparecida Scopinho (UFScar) llana Wainer (USP) Walter Fagundes Morales (UESC/N EPAB) lzabel F`amos de Abreu Kisil Jacqueline Ramos (UFS) Celso Cruz (UFS) Alessandra Paola Caramon (UFBA) Claudia Dombusch (USP) Dados lntemacioTialg de Catalogação na Publicaçao -CIP P430 Ponjuán. Maykel Rodriguez. Org. Mül(er. Marcelo, Org Documentâno o cinema como testemiint`a Registros do 1 Encontro de Documentaristas EICTV 2009 / OrganLzação de Maykel Rodríguez Ponjiián e Marcel Müller Tradução ds Nevnon Wagner Milanez -São Paulo lntemeios, San Antonio do los Baftos EICTV, 2012. 180 p. , 16 x 23 cm Tltulo Orlglnal.. El tesügo documentÊ.I, EICT`l, 2010. 1° Encor.tro do Documontaris®s - EICTV, 19 o 20 d® |snelro do 2009. Escu®Ia lmemoclonal do Clne y T.olovlslón. EICT\l. San Antonlo do los BaFlos (Cuba) lsBN 9700§¢4586-24C I Cínema 2. Documentáno. 3 Documentarista. 4. Produção Cinematográfica. 5. Documen- tarista Militante 6 Ediçâo Cinematognàfica 7 Históm do Cinema s Escola lnterrmcional de Cinema e Televisâo de San Antonio de los Baflos. 9 EICTV 10. Encontro de Documantanstas, 1° 11 América Latj'na 1 "tulo.110 cinema comotestemunha 111 Reyes. DeanLuls lv Bailbló, Claude V Chanan. Michaol. VI Por(er, Russell Vll. Torchia, Edgar Soborón Vlll. Rlo. Joel del, lx. Pórez. Mguel X` López. Rigoberio. Xl. Faget. Pun. Xll. Fiientes. Jorge. Xlll. Meppiel, Jacqueline, XIV Alomann, Claudia Von XV Bravo, Estela. X\/l Bravo, Emesto. Xvll Radovanovic. Goran Xvlll. Bradbury. David XIX Álvamz. Ennque XX. Diez. Daniel. XXI Monteforte. Guillemo Xxll Kerr, Rlchard Xxlll Silveira. Migue) XXIV Horrera, Lázara XXV Weiriberg, Tom. Xxvl. Trujillo. lván. XX\/ll Poniuán, Maykel Rodrígiiez. Organizaclor. XX\/lll Mül]er, Marcelo. Organizador. XXIX Mllanez, Newton Wagner, Tradutor. X". Intermeios -Casa de Ar[es e Lj\/ros. XXXI. ÉICVT CDU 791,4 CDD 791 Catalogaçao elaborada por Riith Simao Paulino Sumário 7 0documentarista comotestemunha 9 Contratoseconvençõesdodocumentário Claude Bailblé 19 0documentárioéumgênero? Michael Chanan 29 Documentárioesperanto Russell Porter 41 Aéticadocinemadireto EdgarSoberónTorchia 49 Entrevista com Goran Radovanovic Joel del Río 57 Meus documentários procuram fazer a diferença -Entrevista com David Bradbury Joel del Río 67 0 documentário como feíramenta para a mudança / Movimentos sociais e documentaristas militantes / Relevância do documentário nos últimos cinquenta anos para o futuro do gênero / 0 que tem a ver conosco? Miguel Pérez Rigoberto López Puri Faget Jorge Fuentes Jacqueline Meppiel Cloudia Von Alemann 89 0 documentário como testemunha /O documentarista obseívadore odocumentárioativistanomundoemtransformação/Aquemserve o documentário?: à sociedade?, ao público?, ao autor? Estela Bravo Ernesto Bravo Goran Radovanovic David Bradbury Enrique Álvarez Daniel Diez Guillermo Monteforte 121 0 documentário como arte / Documentário de autor / Liberdade expressiva do documentário / Pode o documentário serum martelo e despertar emoções estétícas Richard Kerr c Migue|Silveira Jorge Fuentes 133 0 documentário como memória do futuro / 0 compromisso do artísta e o documentárjo esperanto Michel Chanan Lázara Herrera Tlom Weinberg lvánTrujillo Russel Porter 175 Sobre os participantes e organizadores 0 documentarista como testemunha Nesta época de excesso midiático do real, as táticas expressivas do documentário têm se transformado em formas comuns de manifestação do discurso audiovisual. Desde a revolução tecnológica e estética do c/.néma vér/.Íé, o documentário como forma de expressão artística tem perdido sua especificidade anterior e estendido sua territorialidade a âmbitos aparentemente estranhos às formas canônicas -entre outros, a exploração do inconsciente, o videodiário, as autorrepresentações, a busca das qualidades metafísicas da experiência, documentários em animação e a manifestação de outras formas hi'bridas com a ficção. Asfilmografiasdoíerce/.roc/.nemo,comaltascotasdecompromissocom o atestado do social e um significativo peso do testemunhal, encontram no campo do documentário um dos cenários mais ativos de busca e invenção. A não ficção latino-americana conta com uma sólida tradição própria, altos expoentes de criação e reflexão e uma modernidade cinematográfica contemporânea como a de vanguarda da segunda metade do século XX. A rlqueza das tendências, assim como os saberes que se produzem em torno dessas práticas, expressa a dinâmica do momento estético atual. Com esses pressupostos, o 1 Encontro de Documentaristas organizado pela Escola lnternacional de Cinema e Televísão (Eiciv) de San Antonio de los Baf`os, no mês de janeiro de 2009, teve como objetivo ativar a reflexão i`ntre cineastas e estudiosos da não ficção, a partir da perspectiva de clnematografias e práticas periféricas de resistêncía. A Escola, fiel a seus prlncípios de formar cineastas comprometidos com o mundo e com seu tempo, desenhou este espaço porque acredita na multiplícidade de vozes e opções estilísticas, e na necessidade de que o artista-militante encontre sua verdade no oceano de informações que o rodeia. 0 0ocumentário -0 Cinema comoTestemunha A organização dos capítulos desta edição pretende levar o leitor para dentro da discussão realizada nas salas dç aula da Eiciv. Os primeiros textos funcionam como introdução ao que se dará nas mesas do Encontro, com o desenvolvimento de questões fundamentais para o documentário contemporâneo, que vão dos limites do gênero e suas convenções à força que o documentário pode ter na transfomação da sociedade. Nestes textos somos apresentados aos principais convidadosdo Encontro: Russell Porter, Michael Chanan e Claude Bailblé, cujo posicionamento em relação às questões éticas e estéticas do gênero é fundamental para o pensamento que a Cátedra de Direção de Documentário da Eim/ transmite a seus estudantes. Em seguida, duas entrevistas preparatórias, com Goran Radovanovic e com David Bradbury, famosos documentaristas convidados para o evento, antecipam algumas das questões presentes no Encontro. Finalmente, a transcrição dos dois dias de discussão intensa sobre\o documentário nos mostra o quanto o tema é amplo e profundo. Da questão ética à necessidade de preservação dos arquivos cinematográficos, o documentário se descortina como um espaço de polêmicas e visões díspares, onde o consenso é difi'cil de ser alcançado. 0 denominador comum a toda esta discussão é a urgência do documentarista em posicionar-se no mundo, apurar seu olhar e atuar como testemunha da sua realidade. Este livro convida os cineastas brasileiros a participarem desta discussão. (ontratos e Convenções do Documentário Claude Bailblé Na França dos dias de hoje é difícil montaí um projeto de "documentário de criação" sem um pedido das redes de difusão, porque estas preferem as produções especialmente concebidas para os horários previstos em sua grade de programação. Os cineastas buscam, então, se adaptar à programação das emissoras. Os tempos de rodagem e edição geralmente tendem a se reduzir, enquanto a difusão é frequentemente relegada aos horários mais tardios da noite. Ao contrário, o financiamento para o cineasta independente é multo difícil; trabalhando com uma equipe reduzida obviamente se pode dumentar o tempo de rodagem, adaptando-a ao tempo próprio de quem filma, mas terá de vender seu filme à televisão e pode ser que se veja obrlgado a `'modificar sua cópia" para que ela seja aceita pela rede, salvo se lnserlr-se no pequeno mercado de DVD ou das televisões a cabo com reduzlda audiência. Há um estilo especificamente francês em todos esses documentários? Dlgamos que cada produtor ou comanditário lhes confira uma cor especial, quer seja pela seleção dos protagonistas, o tipo de tratamento arti`stico, o lugar na grade de programação e o financiamento que controla fortemente as possibilidades de inovação em termos de preparação, produção e pós-produção. Existe a tendência do `'politicamente correto", pela qual o espaço para a crítica é pequeno. Entretanto, certos autores tentam ri`slstlr à uniformidade e buscam afirmar uma renovação, tanto na seleção dos conteúdos quanto na invenção poética das formas. Não obstante se ressente a pressão do público nos resultados que impregnam cada vez mals a foíma documental: o emprego de pequenas narrativas da ficção (Íoco sobre alguns personagens, situações de conflito, clímax, ritmo das moções). 12 (laude Bailblé 0 documentarista não é um jornalista -interessado na realidade dos fatos ou na realidade factual -, portanto, como a maior parte deles não está obrigada de nenhuma maneira a limitar-se à atualidade efervescente do mundo contemporâneo, tampouco submeter-se a estatísticas - preocupadoemfilmarassituaçõesrepresentativas.,etampoucoéobrigado a reportar o estado exato das coisas; um mediador ponderado dos dados. Nem é um historiador (visto que não dispõe da distância necessária para avaliar com certeza a seleção dos personagens e das situações, tampouco podegarantiro"bomj.uÍzo"desuashipótesesdemontagem,ouatémesmo da representação - em 52 minutos mais ou menos - de uma realidade multidimensional, inesgotável). 0 documentarista é mais um ensaísta que compromete sua visão pessoal, sua sensibilidade, sua coragem e sua honestídade em um pensamento de imagens e em sons, esperando suscitar no espectador -não no tempo exato, mas depois do filme -uma reflexão e uma emoção compartílhadas, ou até uma reconsideração dos conhecimentos e das representações comumente adquiridas. 0 espectador estremece e se emociona e, às vezes, se desestabiliza diantedamisturadecoisasconhecidas,meiopercebidasoudesconhecidas, até promover`adesões, questionamentos, rechaços. É que cada espectador já é um ator da realidade que lhe é mostrada, e não pode ficar indiferente ao que propõe o cineasta através do filme. Enquanto a realidade é, por natureza, contraditória, o espectador busca mais unificar suas próprias ideias (e não dividi-las), reconhecer-se positivamente nos personagens ou nas situações, ou também desvincular-se de tudo, simplesmente porque o propósito lhe parece excessivo, exagerado, maniqueísta ou, em todo caso, não representativo de seus próprios ideais, crenças ou suposições. NÃOSEPODEFILMARAREALIDADE,APENASREPRESENTÁ-LA 0 cineasta não ignora ''o que está em jogo'' no presente. A partir de uma ideia inicial (ideia motriz), aproxima-se do terreno, procura por pessoas com experiêncía ou recursos e concebe uma primeira vísão da realidade a ser filmada. Uma agenda de encontros ou acontecimentos. Contatosdepesquisaederepetidasavaliações,deverificaçõesmúltíplase, também, de seduções repetidas. 0 cineasta acaba por traçar um caminho, por estabelecer um cenário de pesquisa, que desembocará em um casí/.ng ({ii`mloi e (onwi{Ôoç do Oo{ummiúilo 13 de personagens e de situações, sobre um croqui de um filme que se vai fazer. Nada é acessível à filmagem: há áreas proibidas, lugares impossíveis, pessoashosti5dequeméimpossívelseaproximarou"amansaroudomar", pessoas que resistem ou se opõem totalmente ao filme, outros que se dccldem no último instante. É preciso Íodeá-las pacientemente; colocar-se em seus lugares; lnventarasboasperguntas.Masalgunsnãopoderãofalarinteligentemente nm a câmera, outros vão querer tirar proveito - sabendo ou não - da Íilmagem.Outrosvãoquererimporseupontodevista,controlaroprojeto. Dt`verá encontrar-se um atalho. De fato, a "direção de atores" começa quase a partir da aproximação. Conseguem-se as autorizações para filmagemefirmam-seoscontratosdurantetodooprocesso,senecessário. Mas o cenário de pesquisa continua instável, sempre provisório, porque o aleatório e o imprevisto às vezes são mais férteis -é preciso raciocinar rapldamente, de maneira intuitiva -que as cenas preparadas. Às vezes, a filmagem começa a partir dos primeiros contatos. Quer dlzer, o jogo das influências e das persuasões recíprocas. A qualidade da relação entre cineasta e pessoas filmadas é muito importante para que o clneasta conduza seu trabalho como um jornalista com pressa. Longe de ser uma captação passiva, a filmagem concentra, com efeito, um momento de criação muito importante, pois está em jogo um cenário de interação normalmente maturado a partir de uma pesquisa completa. A cada passo, é preciso inventar e propor um dispositivo de filmagem que facmtará a lnteração, até alcançar o que se poderia chamar de o flagranre d€/i.ro de §/ncen.dadeoucweve/oçõode€/emenío5ocu/ro5(incluindoojogodamentira ou de uma expressão deslocada), sem colocar em risco, entretanto, aquele ou aqueles que são filmados. É claro que a presença da câmera muda os comportamentos, as reações, o jogo social, a relação interpessoal. Segundo os temperamentos ou personalidades, o valor da cena ou da violência da situação, sei.ão revelados elementos imprevisíveis, instáveis. Certo número de dados lnvlsíveis, vindos do inconsciente ou do pré-consciente, e também o papel que cada pessoa que intervenha queira interpretar têm um peso enorme sobre a cena que se roda. A entrevista é uma forma possível de direção de atores em um documentário; é um dispositivo de filmagem,entre outros, assim como a pré-constituição de uma situação cotidiana, especialmente trabalhada 14 (laude Bailblé e fragmentada (eixo, duração, movimentos) pela montagem. Depois da intensidadedafilmagem,apósumaeventual"decantaçãoeafastamento'; começaoprelúdiodetodamontagem,aetapafinalderepresentaçãoou montagem de cenas. 0 tempo real dos fatos e dos gestos, ou das tomadas faladas, j.á modificados pela filmagem, é recomposto, ritmado por uma exposição de dados cronológicos, temática, de co//age ou narrativa. Mas a matérja r,eesT`,#,eia:"n=Cme=Soá::o^"ean'c?=:a_r_-u_m^Goiãiiüà::'ii*`=Lãr>c==eaç,aer"ae terminaÚComoescolherumaestrutura,umdesenvolvimentoprogressivo daideiamotriz?Comojuntarotempodascompreensões,odasemoções e o das identificações? Qualquer que seja a habilídade dos raccord5, o discursofi'lmicoconstruídopelamontagemprovémdeumordenamento voluntário de planos que revela o olhar do cineasta, ao mesmo tempo queotratamentodosujeito,adireçâodeator,acomposiçãodosplanos,a articulação do i.n e do off. . . OSSEIS(ON"TOS00DO(UMENTARISTA 0 cineasta tem um contrato consigo mesmo: deve saber, quase continuamente, por que faz cjnema, qual é o seu verdadeiro lugar na socíedade-quasenuncasesabe.Terumavisãodealtura-epistemológica, entendaft-,ummetaconhecimentodosprocessosemjogoeum"ego" mantidoaboadistância,.simultaneamente:umcompromissointegralcom oseutrabalho,umadúvidametodológica,atjtudebempessoalperanteas pessoaseassituações,capacidadedecolocar-senolugardooutro-pelo menos momentaneamente -, coragem e tenacidade de acordo com os interesses em questão. 0cineastatemumcontratocomoseuobjeto:trata-sedeconstruúum filmesobreabasedeumprocessodeconhecimentobastanterigoroso-não sepodecontarqualquercoisaealterararealidadenamontagem-,oque implicacertoativismointelectual,umbomconhecimentodosproblemas e assuntos contemporâneos, um cuidado concreto com o terreno. Em resumo, um método de trabalho. Mas também trata-se de assumh uma práticaartísticadosdados(nãosepodecontentar-secomumasucessãode entrevjstas,entrecortada6comoutrosplanospararespirarLoqueimpm umavisãopoéticadomundo,umainvençãodeformasvisuaisesonoras, (oni iaios e (onven{Ó.s do Do{umeniárlo 15 um estilo cinematograrlcamente próprio. o cineasta tem um contrato com sua equipe, cooptada ou não: o assistente, o operador de câmera (fotógrafo), o técnico de som, o editor, o sonoplasta são colaboradores .`rtlsticos de criação, e não simples técnicos. Às vezes, é preciso raciocinar rápldo e bem. . . É ele quem tem de criar uma sinergia positiva, um ambiente de trabalho propi'cio à criação durante a realização do filme. 0 cineasta tem um contrato com aqueles a quem filma: se às vezes tem que praticar o Íorc/-ng, a pergunta que incomoda ou o confronto inesperado, há sempre uma relação humana que pede tanto respeito quanto rigor, na compreensão das angústias, das resistências e dos momentos de fraqueza. A lnstrumentalização durante a filmagem, o recurso da fita cortada ou a montagem contida evocam mais certa incompetência do que eficácia. 0 espectador compreende rápido o "subtexto" das más intenções - prerrogativas ou laudatórías -, de modo que a manipulação se volta contra seu autor. Existe uma ética no documentário. 0 cineasta tem um contrato também com o seu produtor-difusor: Não se trata de responder estritamente às ordens, mas de ir mais longe, sem perder-se. 0 produtor pode desempenhar seu papel de consultor artístico, de lncitador ou de moderador; facilitar a filmagem, lutar para conseguir certas autorizações, certos apoios. Pode dar ideias, orientações, ao mesmo tempo que otimiza seu orçamento. . . Mas também limita, impõe restrições, censura certas cenas, reorienta o projeto de acordo como a demanda de um difusor que pressiona... até conseguir o corte final. Há sempre uma relação de forças entre as exigências da rede e os desej.os do cineasta. Por fim, o cineasta tem um contrato com seu espectador: primeiro, tudo deve se fazer compreender, mesmo que seja o mi'nimo, ainda que não por todos os públicos. Manter o interesse - não se trata apenas de uma carreira de audiências - escolhendo personagens, situações e conflitos onde o espectador possa se projetar - a partir de suas experiências - seus pÍóprios conhecimentos ou emoções. 0 cineasta deve instaurar no espectador uma tensão que contenha o desejo de conhecer o que vem a seguir, de compreender o futuro daqueles e daquelas nos quais reconheceu seus pÍóprios desejos, problemas ou aspirações. Deve-se ritmar essa tensão recorrendo a certos esquemas narrativos, mas também a momentos de ruptura ou de reflexão. Sem dúvida, esses seis contratos são desigualmente desenvolvidos/ manejados por cada um dos cineastas. Poderia admitir-se que eles evoluem 16 Claude Bailblé de um filme a outro, reforçados pela experiência (filmagem, montagem, mas também reações da imprensa e do público) e que se adaptam a cada um dos projetos. São dados nada além de indicatívos, cada um os usará a Seu gosto. A INVENÇÃO DAS FORMAS É impossi'vel importar-se de modo exato a forma da reportagem televisiva (dois ou três mínutos) ou da revista (dez minutos) para o documentário (52 minutos), sem que se chegue a uma `'monoforma'' desinteressante e arquiconhecjda (entrevistas, planos de corte, cenas de ilustração). É preciso inventar. Náo se pode limitar à atualidade presente: se os fatos são obstinados, também são contraditórios, vistos nas diversas forças em movimento. 0 cineasta é, pois, como o poeta: um pouco visionário, com o risco de surpreender ou de não ser benquisto. Não se pode tampouco evocar o realismo factual ou dos fatos, a estrita captura, a gravação objetiva de porções de espaço/tempo filmados por uma câmera quase invisível. Seria Íngênuo crer que o documentarista nada mais é do que um "repórter do real'; de uma realidade perfeitamente identificada e organizada, de onde emanaria a verdade pura no momento x, no lugar x: uma espécie de verdade completa e definitiva. Aaberturadasfronteirasdopresenteéprecisamenteresponsabilidade do dispositivo de filmagem, assim como a de fazer surgirem os elementos a pr/.or/. ausentes, de revelar diante do microfone, ou da lente, realídades que se fazem invisi'veis ao olho do transeunte, realidades escondidas, não aceitasouesquecidas,masdecísivas.Éporissoqueocenáriodeinteração é tão importante: longe de constituir-se em um repórter invísível do tipo '`câmera escondidô'; o cineasta se compromete com o que filma. Me vêm à mente Kci5hí.ma Pcirad/.se, de Yann Le Masson, 527, de Rithy Panh, ou 0 pe5ade/odeDcirw/.n,deHubertSauper,paracitarapenasalguns.Afilmagem podesertambémummomentoderevelação,deumaconfissãolibertadora, deumdiscursomentirosooudeumamentiraporomissão,oquenãodeixa deterseuinteresse(Afrí.5rezaeopÍ.edcíde,deMarcelOphuls). Há, também, situações reais onde as ações, as práticas sociais dizem muito. Quando se colocam na obra '`atores'' acostumados a desempenhar seuspapéis,essassituaçõesdeixamtransparecer,paraoespectadorqueas (on`iatose(onvençõesdoDo(umentário 17 descobre, um jogo de intenções e de subentendidos que expressam, muito melhor que uma entrevista, a realidade subjacente (0 vendedor de Õi'b//.a5, dos irmãos Maysles, 77Íf/.cL/Í Fo//i.e5, de F. Wiseman). Entretanto, é preciso detectar essas situações e torná-Ias acessíveis. Tem-se que saber filmar e Íragmentar as cenas em tempo real, levando em conta a perspectiva, a relação figura-fundo e, sobretudo, a frontalidade dos rostos, a visibilidade das açôes, a flutuação vocal que dá sabor às palavras. É finalmente na montagem que se é confrontado pela invenção de uma "grande forma", ou seja, com a estrutura geral do filmee o tratamento artísticodaexposição.Trata-se,porexemplo,deumareportagemlíricasobre uma greve (Har/c}n Couníy usA, de 8. Kople), de um paradigma investigativo |0 muro, cle S. B.ittor`; Los espigadores e la espigadora, de A. Varda), cle um mlcrocosmo revelador (fiecreações, de CI. Simon), dos corredores de um lugar conhecido (La V/-//€ [ouvre, de N. Philibert), de um enigma (H/.5Íór/.a de um5egredo,deM.Otero),deumanarraçãoemprimeirapessoaWopasarár}, de H. Fr. Imbert), de uma reconstituição histórica de arquivo (Memor/.cÜ de `nm/grados, de Y. Benguigui), de uma data pretexto (o eclipse do sol em [o5 Íerrenos, de A. Doublet), de um retrato (Bepp/.e, de Johan Van der Keliken), d. uma interrogação poética sobre a austeridade (A ordem, de Jean Daniel Mo"et).- Qualquer que seja a "grande forma" escolhida os cineastas geralmente `(.dlstanciamdaentrevista``acercade':preferindootratamentocronológico, tt.mátlco, em mosaico ou poético. 0 filme constitui, então, uma escritura `uljr" realidade (e seus problemas), uma exposição deliberada que mescla til)|t`tlvldade (a verdade das cenas e dos personagens) e subjetividade (o t)lhar do cineasta, viável como tal na seleção dos planos e no encadeamento das sequências). Uma narração condensada, comprimida, adaptada à velocldade das compreensões e emoções. Esse fluir organizado das lmagensedossonsdesata,então,emcadaespectador,um"roteirointerior': com seus entrechoques particulares, seus movimentos e suas ressonâncias, siias filigranas. Quem poderá medir esses prolongamentos íntimos de cada documentário? (Extraído da Eníoco, n° 12, ano 2, janeiro de 2009, pp. 40-4.) 0 Documentário é um Gênero? Michael Chanan Quetipodeconceitocinematográficoseráoindicadoparaquesepossa tllzer que um filme é um documentário? Podemos manter o argumento d. que ele tem qualidades distintas do de ficção, ou de que a diferença •ntre eles é uma convenção? Ou, dito de outra forma, o documentário é um qênero? E se assim for, de que tipo? Segundo o especialista em literatura russa, Mikhail Bakhtin, todas as obras artísticas pertencem a algum gênero ou combinam características de dlferentes gêneros. 0 gênero expíessa certa relação com a realidade, opera com determinados princípios de seleção e vincula certas formas de percepção e de conceituação. Um gênero pressupõe determinado tipo de públlco, ceítas Íeações, valores ideológicos. Ainda que, por exemplo, a tllferença entre o Sistema de Estúdio Fordist em Hollywood e o cinema de •utoí na Europa não determine que um é genérico e ou outro não, mas que, dntes disso, os gêneros têm se alinhado de maneira distinta. Finalmente, o género se caracteriza pelo cronoíopo, ou "tempo-espaço''. Como explica Tzvetan Todorov em seu comentário sobre Bakhtin, o cronoíopo é o estabelecimento de características distintas no tratamento do tempo e espaço no gênero literário. Com fins à crítica literária, Bakhtin havia tomado o termo emprestado da Teoria da relatividade, de Einstein, e a chamou de "quase uma metáfora (quase, mas não de todo), o que conta para nós é que ®xpressa a inseparabilidade do espaço e tempo (considerado este último como a quarta dimensão do espaço)". 0 conceito de cronoíopo serve para caracterizar as diferentes formas em que os gêneros combinam o tratamento de tempo e espaço. Remete- se às maneiras em que `'o tempo se acomoda, toma corpo, torna-se denso e 5o torna artlstlcamente visível'', enquanto "o espaço se torna carregado e ret i`ptlvo aos movlmentos de tempo, trama e história". Contudo, não é tanto 22 Ml(hael (hanan um problema de gramática, de lógíca de recursos temporais e espaciais como no c/o5e-up - uma determinada forma de organização do espaço - ou no Wa5hbock - uma maneira de organizar o tempo -, mas da relação desses atributos e da maneira como se organizam as condições culturais e histórícas nas quais surgiram. Consequentemente com esta leitura, para dar um exemplo, `'o oeste" não apenas denota um filme sobre o "oeste selvagem" no final do século xix, certo elenco de personagens, Iocações ti'picas e uma trama que segue algumas convenções, mas também expõe determinada escala de valores morais que a princi'pio se cristalizaram em mitos sobre as origens dos valores norte-americanos, sobre a inclinação que se ia operando naquele século, e por onde chegaram a constituir um eíhos e uma ideologia identificável.Essapercepçãonãoénova,mas,quandoseassimilaoconceito bakhtiniano de cronoíopo, este oferece uma nova e mais recente visão de si mesmo. Podemos chegar a considerá-Io, por exemplo, uma espécie de dramatização da tese de Turner sobre "a importância do Frontier na história norte-americana'; cuja leitura foi feita por Frederick Jackson na Associação Norte-Americana de Históíia, em Chicago, em 1893, durante a Feira Mundial, quando o espetáculo de Búfalo Bill, Codyç W/./d Wesr, também se exibia na cidade. Acho que não é difi'cil perceber como esse tipo de análise pode dar lugarasubstanciosasreflexõessobreasideologiascontidasemtodaagama degêneroscinematográficos.Masoenfoquenãoestáisentodeproblemas; quando menos, estabelece a delicada questáo de elucidar a que classe de gênero pertence o documentário. Trata-se de outro gênero similar ao do "oeste" ou pertence, talvez, a uma família distinta? Algo como ser o mesmo tipo de animal, mas pertencente, por sua vez, a uma espécie diferente? 0 problema cri'tico é saber de que tipo de diferença estamos falando. Se seguimos Bakhtin, nenhuma distínção essencial, no sentido de caracteri'sticas definidoras especi'ficas, poderá marcar díferenças entre ficção e documentário porque - o que é claro e evidente - este autor concebe o gênero como uma forma dialógica e, por conseguinte, aberta. Para Bakhtin isso significa que um personagem genérico não se deriva tantodesuascaracteri`sticasformaiscomodesuaorientaçãoexterna,tanto através da audiência à qual se dirige quanto da tradição a que pertence e a partir da qual fala. Bakhtín estima que uma obra artística é uma forma deenunciado-umenunciadocomplexoquesebaseianasconvençõesda () I)i){uin.niJilo + uin Gên®io) 23 l()rim genérlca. 0 mesmo cabe dlzer, portanto, da novela, da peça teatral e tlti /ilmt`, na medida em que se aplicam a enunciados do discurso indívidual: `t!ii`i]ri. iistão na relação dialógica com outro. 0 diálogo é a condição natural do dlscurso. '`Cada enunciado -disse Bakhtin -implica, necessariamente, `iii`n rt`çposta, de uma forma ou de outra... no discurso subsequente ou i`ti { {importamento de quem escuta... Os enunciados não são diferentes ri`trt. sl, nem se bastam a si mesmos, são conscientes disso e de que são i(`llexo um do outro." Em suma, cada filme é um anel de uma cadeia que i.`Í..re, consciente ou inconscientemente, a outros filmes - novelas, peças ".te::,oae;cór-aeà:o::::t:,r:â::iiup:deonf::ârdeonod::tirnotednee::al;dr:::;so de dlálogo cultural, então uma forma genérica muda e se desenvolve conçtantemente. Em conformidade com essa leitura, o gênero não deve i.r definido como uma série de categorias e convenções fixas que podem •.r julgadas como necessárias ou suficientes, mas pertence ao domínio do que Wlttgenstein, em Phí./osophi.ca/ /.westi.gaí/.ons, chama de ar de fami'lia. l'or exemplo, um gênero como o "oeste" não tem uma característica única (iui. o defina, e sim é composto de uma série de traços que compartilham ill`i`rentes e variadas instâncias. A noção clássica de gênero abre aqui a via pdra um conceito mais amplo e flexi'vel. Estamos falando de famílias com ®lementos que se casam, por assim dizer, para produzirem cruzamentos entre gêneros que comumente se consideram separados - por exemplo, o velho oeste musical. Nessa construção, os filmes costumam conjugar características tomadas de distintos gêneros, inclusivese um deles é dominante. No tempo apropriado, cada um dos gêneros principais constitui uma tradição que tem em sua conta obras-primas -modelos do gênero em questão -que podemos denominar de paradigmas. Diferentes exemplos do gênero podem corresponder à mesma ca,racterística ou a outra de um mesmo paradigma. Não obstante, da mesma maneira que ocorre com filhos que têm os mesmos pais, estes nem sempre se parecem. 0 mi'nimo que podemos dizer a respeito é que a ficção e o documentário procedem de fami'lias diferentes, têm genealogias distintas, mas tendem a casar-se entre si e, como resultado, algumas de suas características migram de uma família à outra. Em seu tempo, o termo"documentário" cobre claramente uma grande variedade de formas e práticas divergentes que vão da observação à compilação, do testemunhal ao reconstruído, o que uma vez mais torna 24 Michael (ha nan difi'cil definir `'o que tem e que lhe é próprio". Há grupos de convenções, mas não existe uma caracteri'stica definidora única ou um conjunto de atributos que satisfaçam a todos os documentários. 0 que há em comum, por exemplo, entre dois exemplos clássícos como Mcimde nõo d€Í*a, de Tony RÍchardson e Kar€l Reisz, de 1955 -ligeiro e observador retrato de um clube de jazz em Londres -, e L. 8. J., filme realizado doze anos mais tarde pelo cineasta cubano Santiago Alvarez - sátira cáustica sobre a propaganda política composta Íntegralmente de material j.á existente? A resposta provavelmente seja: nada, exceto pela ausência de comentários e o fato de que nenhum dos doís é ficção. Wttgenstein se abstém de julgar as definições e nos adverte a que não nos deixemos levar pelo Ínconveniente da noção de ``coisas em si" e caiamos em uma maneira de pensar filosoficamente idealista. É mais instrutivo lançar um olhar ao contexto problemático em que as duas modalidades, ficção e documentário, normalmente analisadas em separado, entram em jogo e se opõem para produzir deleite - e problemas -, precisamente porque transgridem as convenções que comumente as definem. Essa tendência, que se tem desenvolvido no último decênio ou antes, pode dar resposta, segundo meu modo de ver, à crise de objetividade, ou seja, à acusação de que, acima de tudo, o documentário não é objetivo. Tal resposta vai além de simplesmente dizer, como o faz Frederick Wiseman: `'Mas, eu nunca pretendi tal coisa, sou sempre subjetivo". Os cineastas respondem de certa maneira quando enfatizam sua subjetividade - por exemplo, através de uma forma autorreflexiva ou tomando a sÍ mesmos ou à sua busca como o real sujeito de seu desempenho. Essa autorreferência estabelece díferentes variantes para caracterizar o gênero no documentário atual - que vai desde a irônica investigação da história recente que faz Marcel Ophuls em DÍ.ci5 de novembro,. passa pela reportagem narcisista de Nick Broomfield em 0 //'der,5euchoíerecímu/herdochoíer;echegaafilmesautobiográficoscomo Oi.ár/.o /.nc7cciõado, de Marilu Malet, ou rempo Í.ndefin/.do, de Ross MCElwee. Consideremos como busca Caro di.Ór/.o, de Nanní Moretti, que claramente compartilha os elementos tanto da autobiografia quanto do documentário; um filme mais complexo do que parece à prímeira vista, porque cada uma de suas três partes tem um comportamento distinto - uma estrutura que inevitavelmente evoca o formato de trilogia de vários filmes clássicos do neorrealismo italiano. A primeira parte, filmada com 0 Do( ummiárlo é um Gênero? 25 uit` voo artístico que nos deixa sem alento, nos coloca na presença do {liw.istd como autor em seu hábitat autóctone, que observa, de cima tlr iud motocicleta, as particularidades da cidade onde vive. A segunda imrte é um prolongamento da anterior em um vídeo que é um diário de vl^tim realizado em companhia de um amigo, em que ambos atuam para fl t .tmi`ra. Essa parte se converte em uma narrativa anedótica de singular •xecuçào, uma espécie de conto moral. Na terceira parte, Moretti procura imçar a trajetória do diagnóstico, e a cura de sua própria enfermidade m ptile adquire outro aspecto. No início, Moretti declara que nessa parte (lo filme nada foi inventado, embora muito do que vemos ali pareça ter m cdráter de atuação. 0 que significa isso? Moretti nega que o filme seja m documentário, se bem que se apresenta em um modelo de diário duiol)lográfico. Na maioria de seus outros filmes, Moretti tende a atuar u"o um personagem que é um prolongamento de sua própria pessoa; •qul a dlferença está em que ele não encarna outro personagem senão ele it`.`mo. Leacock, falando de Bob Dylan em NÕo o/he para trá5, diz que ele •``nv^, seguramente, atuando para a câmera, mas representava a si mesmo • o 1^71. multo bem. lsso sugere uma importante diferença com relação à nc`Àm prlnclpalmente porque na ficção os personagens são representados por ntores e no documentário trata-se de pessoas reais que encarnam a si m.smas, 5albamos ou não seus nomes. Entretanto, inclusive se essa é a norma, há também importantes •xceçóes. Consideremos dois filmes, um inglês e outro chileno, em que as lmdgens são documentários mas a trilha sonora utiliza um personagem de lu çdo: London, de Patrick Keiller (1994), e 5onhos de ge/o, de lnácio Aguero (1992). Trata-se de documentários ou não? Em uma exibição do primeiro i]elo Canal 4 britânico, um jornal o classificou como "drama documental'', o que náo é justo na medida em que o drama documental implica uma d\ir)l{i atuação. Aqui não há nada atuado ou `'reatuado': mas uma filmagem ln`pt.cável e comentada de cenas de Londres. Entretanto, a trilha sonora ó uiT` monólogo, uma narrativa em primeira pessoa acerca das reflexões (lo uiT` amlgo do narrador sobre a cidade, a cargo de um conhecido ator qu. jamals aparece no filme -tampouco seu amigo. 0 filme chileno, que i.ht.i o transporte de um bloco de gelo da Antártida a Sevilla para a Feira Mii`tllal, tem exatamente o mesmo formato: uma narrativa de ficção i(ii`t^tl.i por uma voz anônima sobre imagens comentadas, se bem que [iim iwT` nível malor de estlllzação. A estética dos dois filmes consiste na 26 Michael Chana n irôníca disparidade exístente entre a Ímagem e a palavra, e a tensão que existeentreelas;oespaçomentalambíguoquesemostradiantedosolhos. De qualquer maneira, o drama documental raramente é um gênero singular, havendo, de um lado, as diferenças entre as versões inglesas e norte-americanas do gêTero, a primeira mais próxima da sobriedade do documentário conservador e a segunda, do brilho de Hollywood. Por sua vez, consideremos um filme como a produção de Michael Verhoeven, A men/.na terr/'ve/ (1989), uma ficção ao estílo da comédia irônica sobre a hístóríadeAnaRosmus,rodadoemseupovoadonataldepassau,quenarrao acontecidocomumaestudantealemãqueganhouumprêmionacionalpor um ensaio polêmico sobre "0 povoado onde vivi durante o Terceiro Reich". Os nomes do povoado e das pessoas que aparecem no filme são ficti'cÍos, mas baseados em um fato real. 0 povoado no relato chama-se Pfilzing, palavra proveniente do verbo alemão fi/zen, que significa ser tacanho ou negativo; e o termo "Si'ndrome de Pfilzing'; segundo um crítico, se aplica, agora, a quem finge ignorar o acontecido na época dos nazistas. 0 filme, narrado pela heroína, adota um estilo de exposição quase documental, tanto que muitas das cenas são apresentadas em frente a exteriores da cidade, expostas como tela de fundo, trasladando brilhantemente para a tela cinematográfica o estilo brechtiano de cena, junto a uma variedade de outros efeitossurrealistas. Esse documentário de ficção brechtiano não naturalista,querecebeuumaindícaçãoaooscardemelhorfilmeestrangeiro deficção,éumfilmequefundamentaeexemplificaanaturezadaevidência documental, seu caráter incompleto e frequentemente contraditório e as consequências do que revela. Mesmo que nenhum desses filmes seja documentário, nem ficção, no sentidolato,participamdeambasascoisaseconstituemumnovoespaçona tela, aberto entre um e outro. Além disso, a mistura das duas modalidades, a incidência recíproca constante, não é apenas brechtiana enquanto crônica, com uma afinidade especialmente analógica para com o mundo pós-moderno, com suas contradições entre a multiplicação pluralística das narrativas, por um lado, e a perda de confiança na autentjcidade da narrativa, que induz a interminável multiplicação de simulacros, por outro. Sempre que penso no papel do simulacro na cultura pós-moderna, me vem à mente o título de um dos primeiros filmes realizados em Cuba, chamado S/.mu/acro de /.ncenc//o (1897), de Gabriel Veyre. Como o filme se perdeu e a descrição impressa que dele se conserva é ambi'gua, não posso 0 0o(umentário é um Gênero? 27 (lt`lxar de especular sobre o significado do título: S/.mu/acro de /.ncend/.o. Como pode simular-se um incêndio? Houve fogo ou não? Quando Bakhtin fala de como``o espaço se torna carregado e responde iios movimentos de tempo, trama e história': avança uma noção que se faz ii`[`ls concreta nos trabalhos de Henri Lefêbvre (1902-91) sobre o espaço r.`i)resentativo. Para esse autor, o espaço representativo é um sistema [le representações simbólicas constitui'do por meios e formas artísticas c outras, cada uma com suas próprias caracteri'sticas materiais, que c(jmpreende um sistema cultural e histórico específico, o qual, em certo s{`ntldo, referencia os elementos e as relações dos mundos fi'sico, social e miintal. Ao fazê-lo, o meio incorpora ou significa o espaço físico do mundo tiue exlste realmente e faz dele um uso simbólico. Consequentemente os i.spaços representativos tendem a um sistema mais ou menos coerente de `Ímbolo5 e signos não verbais. Seguindo Lefêbvre, os produtos de espaços rcpresentativos são obras simbólicas, neste caso filmes, sejam de ficção ou (tocumentários, ou certa mistura de ambos. lsso significa que podemos tllstlngulrtiposdeespaçosrepresentativosquecorrespondamàsdiferentes i``()tl,`lldades de enunciados fi'Imicos? Será, talvez, o documentário um ui`lv.`rso clnematográfico diferente da ficção? (E, então, o que acontece com • ^iili``açào e as novas tecnologias e mídias da imagem-representação?) ^f)llcaroscritériosdeLefêbvreaocinemaimplicacriticá-lotodavezque •lc t rlilcou também um meio visual como filme para abstrair a experiência vlw(loespaço,separando``aformapuradeseuimpuroconteúdo-dotempo i.dl, iotldlano e dos corpos com sua opacidade e solidez, seu calor, sua vida • .ud morte". Aqui pode parecer que Lefêbvre é visualmente "canhoto", por •``lii` dlzer, ou que de certa forma cedeu ao influxo da própria ideologia dü t {)nsumo da mesma imagem passiva que se propõe a criticar -se bem qu. é certo que esses filmes especialmente realizados em concordância (om ®sse consumo passivo certamente usam o meio para converter a nt `ilt) em abstração social e histórica. Em qualquer circunstância, o que qimr(} esclarecer aqui é a qualidade do espaço cinematográfico que marca o upusto do que disse Lefêbvre: não separa forma de conteúdo ou tempo tl. pxpc.rlêncla, mas coloca os assuntos humanos e a interação em uma ioiiii.`[`ntação do espaço social que realmente existe e que, exatamente i (iii`t] siistém Lefébvre, está imbuído da história que o criou. Nho quero negar que a ficção pode fazer isso tão bem quanto o d(i( umt.ntárlo. E certamente determlnados filmes de ficção, como A regra Ml(hael (hanan do/.ogo (1939), de Jean Renoií, ou rudo começa no sábado (1960), de Karel Reisz, inclusive, tornam-se documentários de seu tempo. Isso não quer d izer, por acaso, que o espaço cinematográfico é, em certa medida, u m coní/.nuum onde, em um extremo, o documentário é absolutamente diferente da narrativa de ficção, mas no meio se funde quase imperceptivelmente a ela? Claro que não devemos falar sobre ele como um coní/.nuum bipolar, mas multidimensional, que inclui não apenas as fami`Iias clássicas do gênero, seja ficção ou documentário, e a animação e os comerciais, para não mencionar o filme abstrato, sem esquecer o desenvolvimento do cinema e do vídeo de diferentes tipos. Por trás dessa sugestão repousa a história do cinema com a qual muitos têm sonhado e que ainda está por ser escrita. Aqui encontraremos um diálogo entre ficção e documentário que tem influenciado amplamente o desenvoMmento de ambos, mas que, em razão da hegemonia da ficção, permanece, de certo modo, sem examinar, salvo em certos momentos bem conhecidos. Por exemplo, estou pensando no caso da Nova Onda Britânica do ini'cio da década de 1960, na qual os três diretores-chave -Tony Richardson, Karel Reisz e Lindsay Anderson - levaram suas preocupações e sensibilidade ao filme de ficção, como documentaristas. Seus filmes tiveram amplo reconhecimento como aplicações paradigmáticas dos métodos de fazer o documentário e a ficção realista. Porém, isso representa apenas uma instância isolada. De fato, essa história que está por ser escrita nos leva diretamente para trás, ao começo do cinema, antes que se cobrasse de forma cabal a distinção convencional entre documentário e cinema de ficção. Aqui faz falta um trabalho arqueológico considerável. (Reproduzido em Eníoco, no 12, ano 2, janeiro de 2009, pp.17-22, extraído de C/.ne Cubc}no, n° 158, segundo semestíe, 2005. Publicado originalmente com o ti'tulo "0 documentário cronotopo", em /ump cuT, no 43.) Documentário Esperanto Russell Porter (i()`i^il,` de expor algumas ideias sobre as quais tenho refletido tl`itfii`m tMt .idas, para tentar esclarecer por que alguns documentários têm • lmltllltl,i{lt. de funcionar universalmente, de sustentar-se como parte do liAlmll`ii t ultural significativo da herança mundial, enquanto outros caem i`ii .`(i`i.`( lmento no momento em que são concluídos. Obviamente, nâo li..i. ldfi.r um filme com excelência técnica e estética, e sequer de grande i ii^iivlddde ou originalidade intelectual. Talvez o argumento mais forte ii.m iititli.inos alegar a favor do documentário é o da verdade. 0 contrato lnti)Ilt ii(} i.ntre um filme de não ficção e seu público supõe que o conteúdo (ow.!ponda a algo real e verdadeiro, ou que tenha existido no universo ',,'. Os documentaristas-observadores têm elevado sua defesa da veídade •ii i`lvel da nobre cÍuzada, e têm depreciado todo tipo de mediação ( .wi`() manlpulação da realidade. Porém, sabemos que, desde o tempo de lltil)t.Ít J. Flaherty, os documentaristas somente têm podido representar a f.dlldode de maneira parcial e têm sido manipuladores durante o processo, •i`tiiiddrando, editando, falseando e comprimindo espaço e tempo para ( l`®u^r a uma história coesa. Para mim, todas essas ferramentas são válidas • .``mclals e são parte do que poderíamos chamar de"caixa de ferramentas v.rA/(.`" do cinema documental. Entretanto, meu objetivo principal não é Aliiiiil.`r o tema da "verdade documental'; mas sugerir outra maneira de • iii`i iil)..r os projetos e a busca por outro tipo de verdade. São ideias que i.m `ur(jldo durante 35 anos da minha vida como documentarista, como i..ll/ddor, mestre e pesquisador da realidade em toda a sua glória e caos. ^ vlda do documentarista é especial, já que é muito difícil separar a iii^i)il.i t`xlstência da arte e o ofíclo de "interpretação criativa da realidade". U Uuiumi`ntárlo, comocarreira a ser seguida, não é para todos -não se faz 32 Hu,,®'l ''()'',' poÍ dinheiro -, de modo que é preciso ser curioso para embarcar na busca do que poderíamos definir vagamente como a "verdade representacional" do documentário. 0 objetivo distintivo e fascinante dos documentários transcende as tentativas de reproduzir a verdade da maneira mais fidedigna possível, e se converte em uma finalidade maior: alcançar uma verdode humana uri/.ver5a/. Essa ideia pode resultar em uma noção um tanto romântica e idealista, mas creio que há elementos da condição humana que todos nós compartilhamos e que, para alcançar a verdade/.ra sensibilidade humana coletiva, devemos nos esforçar por moldar nossos documentários sem esquecermos essa noção. Entretanto, a interrogativa é se existe tal coisa, corno uma linguagem documental universal ~ ao que chamo de documentário e5pe/anío -, que transcende culturas, geografias e contextos. E se tal linguagem existe, é algo que podemos - e inclusive devemos - procurar incorporar ao ensino de gerações futuras de realizadores de não ficção? Poderi'amos argumentar que tanto o documentário quanto todas as criações humanas aspiram a expressar verdades humanas universais, mas nos abraçamos ao documentário por seu legado especial de "verdade", e pela poderosa ilusão que pode criar de estar no '`interior" dos eventos, físjca, cultural e emocionalmente. 0 que faz com que queiramos realizar documentários? Não é apenas a existência de máquinas maravilhosas para registrar e reproduzir sons e imagens móveis, mas porque as tecnologias desenvoMdas nos permitem fazer o que, como espécie, sempre temos feito - e continuaremos tendo que fazer: contar histórias baseadas na realidade que vivemos. Contar histórias extrai'das da realidade - sejam episódios, pinturas em cavernas, testemunhos orais ou ferramentas eletrônicas de consciência e informação - tem sido o único e mais importante mecanismo da evolução social e cultural na história da humanidade. A explosão do acesso à tecnologia digital de registro audiovisual tem convertido o documentário em lugar comum, em âmbito global. Estamos vivendo uma era em que todas as pessoas, de todas as partes do mundo, podem registrar momentos significativos de suas vidas, mesmo quando isso tenha pouco ou nenhum significado. Em quase todas as comunidades do planeta, as pessoas podem usar equipamentos portáteis de comunicação, mas nossos estudantes 5ér/.os de documentário querem deixar sua marca, elevar-se acima do nível do Youíube, fazer trabalhos de valor duradouro e chegar a grandes públicos. Do(ume"rlo [`ii.mniü 33 Para mim, um documentário efetivo tem o potencial de transcender seu espaço e tempo de realização, e falar dessas respostas emocionais elusivas e intuitivas que são comuns a todas as pessoas do mundo. Às vezes, ocorre de modo inconsciente, mas, por mais tópico que seja o tema abordado, nossa interpretação pode e deve ter um significado que transcenda o seu contexto original. Procurar transmitir jsso aos alunos podeserdifi'cil,sobretudoempaísesoucomunidadesondeaspessoastêm pouco conhecimento ou interesse no mundo como um todo, mas pode-se fazer e, às vezes, os alunos mais brilhantes têm esse mérito por Íntuição. Emalgunscasos,osalunostêmdificuldadedecaptaradiferençaentre a premí.ssa e o Íemo de seus projetos para documentários. Um exercício prático, útil para que eles se sobreponham a essa confusão, é pedir que identifiquem a veJdade un/.ver5a/ de suas ideias com, no máximo, quatro palavras. Depois de um breve processo de reflexão, o resultado mais comum entre os alunos é que cada um deles consiga fazer uma espécie de declaração pessoal de princi'pios acerca da natureza humana em geral. Em geral,utilizam-sedeaforismos,como:'`oamorconquistatudo",`'paravencer é preciso lutar': "podemos nos reinventar" ou "a identidade está dentro de você". Por alguns anos, na Universidade Columbia de Chicago, fizemos o ConcursolnternacionaldeDocumentáriosEstudantis,noqualparticipavam trabalhos de oitenta escolas de cinema. Os filmes eram classificados em sete categorias, e dentre alguns dos filmes ganhadores incluem-se: • Um filme de Taiwan sobre um ancião que toca órgão e faz aviões de papel nas ruas para alegar os transeuntes. • Um filme de um estudante aborígene da Austrália, que acompanha umvelhoembuscadevestígiosdacasaondecresceu,depoisdeter sido separado de seus pais. • Vários filmes de estudantes do Brasil, França, Panamá, da iECTv. • Uma história feita por um estudante da Universidade de Stanford, sobre uma mulher de Ruanda que se refugiou em Toronto, quando sua terra foi massacrada. Todos esses filmes tinham em comum uma habilidade para nos comover e nos envolver profundamente em situações e emoçóes humanas 34 Russell Porter que são reconhecidas universalmente. Sem considerar suas conotações, todos nos fizeram rir, chorar e pensar. Comojádissemos,osdocumentáriostranscendemseutempoeespaço. Osnoticiárioseasreportagenstelevisivassobreassuntosdaatualidadeusam asmesmastecnologias,massuafunção-pordefiniçãoprópria-éefêmerae transitória,etorna-seobsoletacomasreportagensdodiaseguinte.Algumas vezes, entretanto, o conteúdo de certo material jornalístico possui tamanha importância que é conservado e reciclado eventualmente, ou reutilizado, em uma forma documental de maior cobertura. Anualmente registram-se milhões de horas de material de não ficção, estilo documental, e resta dizer que a maioria tem um público-alvo e uma vida útil limitados. São registros feitos porque seus realizadores sentem prazer em fazê-los, ou porque não lhes interessa ou não entendem o significado mais profundo que carrega a comunicação entre os seres humanos. Todos têm razôes muito válidas para ligar suas câmeras, mas nem todos estão motivados pelo que chamamos de o verc/ade/.ro impulso documental. Os melhores documentários são parte de um legado universal da criação humana e potencialmente serão conservados, analisados e discutidos para sempre em coleções e arquivos, de acordo com um preceito de importância nos registros artísticos e sociais. Essas obras têm a capacidade de falar com maior profundidade às audiências de todo o mundo e a capacidade de comovê-las com registros mais literais de alguns elementos ur}i.ver5c]/menre humano5. Os documentários têm, como as pessoas, sotaques regionais que refletem as preocupações temáticas, as sensibilidades estéticas e as peculiaridades das culturas que os produzem. Então, para que devemos levar em conta essa noção de verdade humcino un/.versa/ e por que é importante? Alguém poderia argumentar que a universalidade é um subproduto secundário do bom cinema, e que as preocupações imediatas e específicas de qualquer filme devem estar em função da experiência primária do cineasta e de seu público-alvo. Esta é uma posição válida e, é claro, muitos documentários não transcendem seus próprios territórios de origem. Entretanto, o mundo se comprime em um ritmo incontinente, e seria possível argumentar que estamos em um ponto decisivo de nossa evolução social, em que as fronteiras geográficas e culturais se tornam menos importantes do que Documentá rio Esperanto 35 as preocupações globais da nossa espécie, e cada dia é maís tensa nossa relação com o planeta que compartilhamos. Minha postura, como a de muitos outros documentaristas que conheço, é humanista, preocupada com temas que nos importam ou deveriam Ímportar a todos. Para ilustrar a minha postura, permitam-me fazer um desvio até algumas experiênciaspessoais que me levaram às perguntas que me faço hoje. Tenho feito documentários por todo o mundo há 35 anos e procurado, através do ensino, compartilhar a linguagem, o ofício, o papel social e a importância cultural do documentarismo, baseado majs na experiência do que no estudo acadêmíco. Minha carreira não produziu obras de arte do cinema, mas me brindou com o grande privilégio de trabalhar em meío ao espectro das formas humanas do ser, em todos os continentes, com exceção da Antártida. Eu me familiarizei com uma miríade de expressôes de nossa condíção humana em comum, desde as fazendas coletivas da região autônoma de Guanxi, na China, até os desertos da Austrália Central com a última das comunidades tribais nômades, de Nova lorque ao Amazonas, de Havana ao leste da África. Meu interesse pelo assunto da universalidade, na verdade, começou em uma comunídade incrivelmente pobre a leste do Quênia, onde fiz uma pesquisa com um grupo de agrônomos ocidentais, para fazer um filme sobre fazendas em terras áridas, em 1986. Lá conhecemos uma mulher que procurava sobreviver em um hectare de terra arenosa, com seis vacas e duas cabras muito magras. A mulher precisava alimentar doze filhos e via seu marido somente no Natal, quando voltava de Naíróbí para -como ela mesma dizia -"fazer outro filho': Essa senhora nunca havia andado em um carro ou feíto uma chamada telefônica. Entretanto, falava três línguas: suahili, kamba e um Ínglês muito bom, que aprendeu com os missíonários. Desde que aprenderam a caminhar, seus filhos começaram a aj.udá-la a carregar lenha e a trabalhar juntos na terra. A senhora me disse que, se não chovesse nos próximos três meses, todos morreriam. Desde então, por vários anos, não tem caído uma chuva propriamente dita naquele território. Fui tomado pelo sentímento tão conhecido e desafiador de Ínutilidade e injustiça -ou da culpa do homem branco e rico, se assim preferirem -, e comecei a pedir desculpas por interrompê-la em seu trabalho. Enquanto preparava o chá, a mulher me disse: `'Não tem que se desculpar. Eu te conheço". 36 Russell Porter Quando lhe perguntei de onde me conhecia, ela me disse algo que me ajudou muito em situações posteriores similares, nas quais me vi confrontado: "Você é um ser humano", ela disse, "portanto, o que temos em comum é imenso. . . e o que nos torna diferentes é muito interessante", e continuou me dando sua opinião sobre as seis coisas necessárias para sermos um ser humano: Todosprecisamosdecomidaeáguaparasermoshumanos.Eu nunca comi o mesmo que você, mas poderia comer. A segunda coisa de que nós, humanos, precisamos é nos amarmos: família, amigos, vizinhos. Necessitamos mutuamente uns dos outros. Aterceiracoisadequeprecisamosédefé;temosqueacreditar em algo, em religião, política, valores, não importa o que seja. A quarta coisa de que precisamos (esta eu gosto) para sermos humanos, é cultura: contos, música, as expressões criativas que nos dão identidade. A quinta necessidade para o ser humano é livrar-se da opressão. AsenhorahaviapresenciadocomodoisladrõesdegadQdooutrolado da fronteira invadiam suas terras e como os opressores e as vi'timas haviam perdido sua humanidade. `'E a sexta?'', perguntei. "Todos precisamos ter sentido do futuro'', ela respondeu,``porque,semesperança,deixamosdeserhumanos." Emmuitasocasiõesemquetrabalheiforadaminhazonadeconforto,a lembrançadaspalavrassábiasdessamulhermefizeramconscientedeque não existe tal coisa como `'eles e nós'', mas "nós", simplesmente. E daí deriva minha preocupação em encontrar a universalidade na prática documental. Anos mais tarde, me encarregaram da realização de um filme sobre umgrandemuseuestataldaAustrália.Queriamdocumentarumcasolegal queeraummarco,noqual,depoisdeumagrandebatalhajudicial,osrestos de esqueletos de aborígenes de sua coleção - centenas de crânios, ossos de braços etc. - estavam regressando aos descendentes contemporâneos desses grupos tribais. 0 grupo de assessores aborígenes do museu era composto por representantes de umas 35 comunidades tribais do sudeste austíallano, Do(umentá rio Espera nto 37 conhecidas coletivamente como o povo koori. Foram as primeiías tribos que tiveram suas terras arrebatadas, e por dois séculos têm sido vi'timas de massacres sistemáticos, perda de sua cultura e marginalização pelos colonizadores, meus ancestrais. Depois de muitos debates, as comunidades aceitaram, com reticência, ser as assessoras do filme, mas nos disseram: "Este filme é sobre o roubo de nossa cultura, e vocês, com suas câmeras e anotaçóes, têm contado sua versão da nos5c] história por um espaço de dois séculos e sempre o fizeram mal. Vamos deixar que façam um filme com o nosso povo, não sobre o nosso povo". De tal forma, a versão da história, contada por eles, foi uma poderosa acusação da apropriação de suas terras, cultura e cosmologia por todos os museus e a comunidade branca em geral. Eu compreendia perfeitamente a desconfiança comigo e de que meu filme desse continuidade à representação equivocada do povo koori. Eventualmente, concordamos em fazer algo contra as convenções do documentário: deixar que os participantes tivessem a palavra final sobre o conteúdo. 0 filme terminado, intítulado Cu/Íu/a koo//., coníro/e koor/., não foi o que o museu esperava, em absoluto, mas o povo koori adorou e até hoje ele é exibido. Uma terceira experiência aconteceu quando fui convidado para apresentar o filme do povo koori em um festival de cinema em Augsburg, na Alemanha, onde foi propiciado um debate interessante sobre a voz autoral dos documentários, no qual muitos argumentaram que apenas o cineasta deve ter o controle e, portanto, ser o responsável pelo conteúdo de seu filme. Outros argumentaram que os indígenas australianos deveriam fazer seus próprios filmes. Eu concordei: de fato, desde então, existe um grande movimento documentarista indi'gena na Austrália em todos os lugares, e ninguém pode fazer um filme seguindo a tradição etnográfica sem a estreita colaboração e o consentimento dos povos indígenas envolvidos no filme. É um modelo que se repete no mundo, com os indi'genas segurando as câmeras desde a Bolívia até o Canadá e Filipinas, para defender seu direito à terra e para expressar e preservar sua identidade cultural. De modo que voltamos à minhô pergunta original: existe uma linguagem documental universal? Eu diria que é claro que sim, existe. No melhor dos casos, o documentáíio é uma //ngua Íronco que - 38 RÜssell PoTter frequentemente de forma inconsciente - produz filmes que cruzam os continentes e envolvem pessoas de todo o mundo, porque suas histórias ressoam como verdades universais. A interrogativa a que nós, mestres, devemos responder é se ainda é possível estimular esse espírito de consciência global em nossos alunos, ou se é tão somente outra noção idealista que jamais poderá competir com o interesse próprio, os imperativos do mercado ou o ego artístico. Eu sugermaquedependerádamaneiracomoestruturarmosnossosprogramas acadêmicos, e da relação que sustentarmos com uma comunidade mais ampla e com a indústrià. Recentemente, visitei umas quinze escolas de cinema ao redor do mundo, sobretudo na Europa, mas também na Austrália e América Latina, como parte de uma pesqiiisa da qual espero derivar alguns pontos de referência internacional para elaborar um livro para o desenvoMmento de ideiasdocumentais.0espectrodeaproximaçõesrefletealgumasdiferenças filosóficasfundamentaisentreasescolasepaíses,baseadasnavelhatensão entre o cinema como arte e o cinema como indústria. Em muitos lugares, especialmente na EuropaOcidental, no Reino Unido, Austrália e Estados Unidos, a televisão tem se transformado, nas últimas décadas, no principal hábitat, estímulo e fonte de financiamento de documentários em nível profissional. Em consequência, os cineastas têm-se visto forçados a tratar de adaptaroconteúdo,oestiloeoformatodeseusfilmesparaqueseencaixem nos requisitos das emissoras de televisão. Em certas cidades, sobretudo da Europa, as escolas de cinema estão estritamente ligadas às indústrias televisivas locais, das quais, além disso, dependem economicamente. Em outroslugares,comoAustráliaeCanadá,essadependênciaécompensada de modo parcial com o acesso a fundos estatais para o desenvoMmento e a produção dos projetos e pelo fato de que os custos têm baixado consideravelmente, com relação às tecnologias necessárias, que se tornaram mais acessíveis. Nos Estados Unidos, existem algumas fundações e outras fontes de financiamento para os filmes, além disso, o mercado doméstico é grande e permite que os documentaristas independentes possam realizar trabalhos interessantes de alta qualidade. Entretanto, para sobreviverem nesse mercado competitivo depois que recebem o diploma, a maioria dos estudantes estadunidenses não têm outra opção senão adaptarem-se à Do(umerit.lrl() 1 `i)i`r,iiiti) 39 indústria comercial para poderem pagar os altíssimos empréstimos que tornaram possível sua caríssima educação. Em outros âmbitos, onde não há televísões poderosas, nem financiamento estatal para documentários, ainda se podem realizar filmes motivados por /.de/.a5 ou necess/.dcrde5, em lugar de projetos moldados e dístorcidos pelas exigências do mercado. Os documentários hoje realizados na Améríca Latina, Ásia e África encontram seu público em festivais e em espaços culturais e políticos comunítários, que parecem estar crescendo cada vez mais. Os filmes são difíceís de desenvolver como proj.etos autofinanciáveis; mas, como parte da ativídade comunitária de baixo custo, os documentários motivados por imperativos sociais, econômicos e poli'ticos têm se convertido em armas- chave do arsenal daqueles que lutam pela consciência dejustiça e cultural, e os cineastas ainda podem fazer filmes pessoais muito poderosos, como expressões da arte cinematográfica. À margem da díversidade de fontes de financiamento e de públicos- alvo, as principais escolas de cinema ao redor do mundo tendem a estimular o cinema independente de autor. Os estudantes de todos os lugares -de Stuttgart a Havana, de Chicago a Hong Kong - recebem estímulos para explorar e desenvolver suas próprias vozes e perspectivas criativas. Esta aproximação talvez entre em conflito com os mercados da televisão e cinema comerciais, mas uma vez reconhecido o atrativo internacional dos documentaristas promissores, através de festivais e outros fóruns, as portas tendem a se abrir. Minha sugestão é seguir a velha máxima da década de 1960: pensar globalmente e atuar localmente. Ex/.5Í€ uma linguagem documental universal, assim como há uma condição humana universal, Para mim, a chave é estimular os cineastas a buscarem essas duas noções universais em seu trabalho documental: que olhem por baixo da superfi'cie de seus temas e personagens imediatos, para descobrirem a verdade humana universal que sempre subjaz em tudo. Ao fazê-lo, enriquecerão sua experiência audiovisual e expandirão o potencial de seus filmes para que sobrevivam e cheguem às pessoas de todo o mundo. (Extrai'do da Eníoco, n° 12, ano 2, j.aneiro de 2009, pp. 30-5.) A Ética do (inema Direto Edgar Soberón Tlorchia Assim como o cinema de ficção estimulou as viagens à Austrália - mais do que as campanhas turi'sticas realizadas por agências estatais e privadas -, no Canadá o documentário teve um efeito significativo na unificação do vasto território que agrega diferentes culturas e diversas li`nguas. Dessa atividade documental surgiu um movimento (com gestões simultâneas nos Estados Unidos e depois difundido na Europa e América do Sul) que gerou, como resultado, o chamado ci.riema d/.rero, expressão- chave no documentarismo moderno. Dosgênerosaudiovisuaistradicionais(documentário,ficção,animação e experimental), muitos teóricos consideram o documentário como a expressão mais próxima da especí.fici.dade do cinematógrafo. Se alguém liga uma câmera em uma sala de aula onde há educadores e alunos, a câmera não relatará, nem animará, nem experimentará, mas seu resultado será um registro ou documento do que acontece na sala. Apoiado nessa noção básica, o cineasta e teórico escocês John Grierson defendia -como Dziga Vertov e até mesmo V.1. Lênin -o potencial do cinema para observar os fatos e '`atores" originais da realidade, sem interpretações ou juízos; e definia o documentário como um ''tratamento criativo da atualidade;; capaz de tratar de problemas vigentes e chegar ao consenso nacional. Amigo de Robert Flaherty, discordava de sua atração por temas ou personagens ``exóticos" - como Nanook ou Moana -, e enfocava a prática documental para o drama cotidiano de pessoas comuns. t G-ríerson colocou em prática suas ideias na lnglaterra, durante a década de 1930, sobretudo durante sua gestão como chefe da unidade de cinema do Escritório Geral dos Correios, para o qual produziu documentários que hoje se têm em alta estlma ao avaliar-se a evolução do gênero. 44 1,l,l.,r \,,1 ,,., ^'' ',,'tm Convidado em 1938 pelo governo canadense para assumir o cargo de assessor da produção fílmica, Grierson ajudou na criação do Office National Du Fílm Du Canadá (oNF), cuja direção assumiu em 1939. Quando o pai's entrou na Segunda Guerra Mundial, a maioria dos documentários produzidos foram propagandistas. Até 1941, o também escocês Norman MCLarenseincorporouaooNFeaproduçãodecinemadeanimaçãoalcançou altíssimo ni'vel, reconhecido internacionalmente; mas foi apenas depois do fim da guerra que a oNF se ocupou da vida cotidiana dos canadenses. No final da década de 1950, havia condições no Canadá e nos Estados Unidos que propicíaram o surgimento de um novo tipo de documentário que respondia de maneira radical à forma tradicional -e marcada - que o gênero havia adotado. Os novos cineastas reagiam ante a manipulação e as cenas premeditadas dos documentários da época e aspiravam a recuperar o sentido de "veracidade objetiva" que havia defendido Vertov. No oNF, Michel Brault foi figura decisiva para o surgimento do cinema direto. Ele participara da televisão - no popular programa Cand/.d Camera - e testemunhara os recursos espúríos, feitos em estúdio, para criar supostos retratos verossímeis da realidade. Dos grupos que integravam o pai's, a majoritária população francófona de Québec estava inconformada com a marginalização social, econômica e educacional que havia sofrido por parte de uma minoria de canadenses de li'ngua inglesa. As ideias de descolonização de Frantz Fanon tinham eco no mundo inteiro e, contra a supremacia caucásíca e o Ímperíalismo, consolidava-se o movimento dos direitos humanos. Gestava-se a chamada ``Revolução pacífica" e os cineastas quebequenses assumiram uma postura radical frente ao feito audiovisual: desejavam não apenas compartilhar sua preocupação social, melhorar a qualídade de vida e conseguir a autonomia de Québec, mas também estimular o debate, documentar as transformações que resultaram das discussões e registrar tradições que corriam o perigo de desaparecer diante da dinâmica de mudança. Simultaneamente, os cineastas -conscientes do poder tergiversador das imagens em movimento -estavam sempre dependentesdas alterações que podiam surgir, e se distanciaram do controle que as empresas ou agências estatais podiam exercer (o oNF, até então,haviaconseguidoautonomianoslineamentosdogovernocanadense). Foi assim que surgiu, em 1958, o filme emblemático do movimento - disponível na videoteca -Os raquereí.ro5, curta dirigido por Brault e Gilles Groulx, que, em quinze minutos que transcorrem fugazmente, mostra a A Êiltti do (inon`ti l)lrt`iti 4b reunião multitudinária de corredores, músicos, rainhas, público e amigos, realizada a cada inverno na cidade de Sherbrooke, para celebrar corridas sobre a neve com raquetes nos pés e dançar em uma festa popular. Na época, já se haviam generalizado as câmeras rápidas, inventadas pelos alemães para a realização de filmes etnográficos, que depois foram melhoradas e utilizadas em registro de tomadas aéreas durante a guerra, e posteriormente comercializadas pela Arriflex. Em 1935, Grierson produziu Hous/.ng prob/ems, uma das primeiras experíências documentais com uso de som direto, na qual foram registradas as vozes reais do proletariado ao expressar sua opinião sobre as precárias condições habitacionais; e trouxe ao oNF uma grande inquietação pela sincronização de som e imagem, pois inventaram e usaram transitoriamente o sistema `'5prockeíape''. Embora em 05 roqueíe/.ro5 ainda seja evidente a armação minuciosa da banda sonora, a partií de sons ambientais reais, mesmo que assincrônicos, estabeleceram- se as bases do cinema direto. Nos Estados Unidos, Robert Drew fundou uma produtora que juntou Terence Macartney-Filgate, Richard Leacock. D. A. Pennebaker e os irmãos Albert e David Maysles, e com similares objetivos éticos e tecnológicos o grupo produziu, em 1960, o filme Pr/.ma/y, cuja difusão televisiva mostrou a maneira como se realizavam as eleições prímárias nos Estados Unidos, e contribuíu para a consolidação do cinema díreto. Três anos depois, Brault realízou um dos mais belos filmes do movimento - trazido para a EicTv em 2007 por Fernando Trueba -, Pe/o conr/.nu/.dade do mundo, rodado na comunidade de lle-aux-Coudres, nas ribeiras do rio St. Lawrence, onde um grupo de homens, Ínstigados por Brault e seus parceiros Pierre Perrault e Marcel Carriêre, reviveram a pesca de belugas -interrompida em 1924 - como uma homenagem a seus ancestrais. Nessa experíência encontramos uma das caracteri'sticas principais do cinema direto: maís importante do que o fator tecnológico, os cineastas enfatizavamoaspectoéticodeseutrabalho,deacordocomumadasopções do documentaíista -admitir que a câmera é um catalisador que provoca reações, o que lhes dava o direito de pedir aos sujeitos que executassem ações que desejavam documentar. Brault havía optado pelo uso da grande angular, e outros que se fizeram seguidores das experiências de Flaherty insistiam em que, primeiramente, os sujeitos deveriam acostumar-se com os cineastas, familiarizar-se com a câmera, para depois começarem a rodar. 0 mesmo Brault declarou: 46 EdgarsoberónTor(hia iJr Para filmar as pessoas, para realmente estar com elas, entre ' elas, essas pessoas têm que reconhecer que você está ali. ' As pessoas têm que aceitar a consequência da presença da câmera, e isso significa usar uma grande angular. 0 único processo legítimo é o que se apoia no contrato tácito entre o que filma e o que é filmado, no reconhecimento mútuo de um e outro. (1 ) Essa aproximação ainda é ensinada no Atelie Varan de Paris, uma das poucas instituições que preconiza o ensino do cinema direto, com uma ênfase etnográfica. No entanto, o seu fundador foi o cineasta e etnólogo Jean Rouch, que pôs em prática uma quarta opção: entregar a câmera ao sujeito, como fez em seu filme rodado na África, Eu, um negro (1958). Em 1960, Rouch solicitou a participação de Brault como operador e assessor na produção de Crôní.ca de um verõo (Pari.5, 7960), de 1961, filme codirigido por Rouch e o filósofovç|§_ã7"tm, que lançou na França uma variante do cinema direto, batizado cc;ho c/.ri-ém vér/.ré (cinema verdade), que teve ampla difusão internacional. lronicamente, para muitos o cinema direto era a versão norte-americana do c/.némc] véri.fé, e não faltou quem deixasse de usar o termo original a favor da nova alcunha -talvez porque fazia referências ao termo ''k/.no prt7vdci" (cinema verdade, em russo) de Vertov, ou por mero afrancesamento. Ambas as expressões tinham muito em comum; porém, enquanto o cinema direto se inclinava mais para a observação e não intervenção, o cÍ.néma vérí.Íé era mais `'flamante': com suas incursões na fantasia ou na psique de seus sujeitos, como na sequência de Crón/.cci de um verôo em que uma judia -Marceline Loridan, depois esposa de Joris lvens -evoca a memória de seu pai pelas ruas de Paris. Em 2003, Robert Drew falou de sua impressão ao chegar a Paris em 1963: Fiqueisurpresoaoveroscineastasdoc/.némavér/.Íéabordando os transeuntes com um microfone. Meu objetivo era captar a vida sem me intrometer. Entre nós havia uma contradição. Não tinha sentido. Tínham um câmera, um sonoplasta e mais seis assistentes, um total de oito pessoas intrometendo-se nos acontecimentos. Era um pouco como os irmãos Marx. Minha ideia era trabalhar com uma ou duas pessoas, de maneira discreta, captando o momento. (2) A Ética do Cinema Diíeto 47 Não obstante, o discurso de Rouch depurou-se e no Atelie Varan defendeu o método direto, o etnográfico, como acabou chamando-o, com uma postura radical: Pessoalmente, me oponho violentamente às equipes de filmagem. Minhas razões são várias. 0 sonoplasta deve entendeí completamente a li'ngua de quem está filmando. Por Ísso, é indispensável que pertença ao grupo étnico que estamosfilmando,equesejatreinadonaminutadesuafunção. Por outro lado, com as técnicas atuais do cinema direto, o diretor deve ser o operador de câmera. E, a meu ver, somente o etnólogo sabe quando, onde e como filmar, ou seja, cuida da produção. Finalmente, e sem dúvida, este é o argumento decisivo, o etnólogo deve passar o maior tempo possível no local, antes de realizar a filmagem, por menor que esta seja. Esse período de reflexão, de aprendizagem, de entendimento recíproco, deve ser muito longo, o que é incompatível com os horários e salários das equipes de filmagem. (3) As posturas levaram os cineastas por diferentes caminhos, mas os autores do cinema direto contínuaram sua aproximação ética. Vejam os filmes de Brault (L'Acad/.e, /'Acad/.e, de 1971), de Pennebaker (Oon'Í /ook Õack, de 1967), dos Maysles (Gi.mme She/Íer, de 1972) e de sucessores como Frederick wiseman. Hoje o termo c/.néma véri.Íé é aplicado -quando na realidade falam do movimento inspirador: o cinema direto -a qualquer coisa que tenha um resqui'cio de realisrno, em comerciais, filmes ou vídeos musicais. Entretanto, o cineasta canadense Peter Wintonick disse: Hoje podemos ver sua influência em tudo, mas essas expressões são diferentes. A diferença-chave, creio eu, é que a indústria de imagens contemporânea carece quase totalmente de conteúdos bem pensados. É pura imagem - inclusive ou talvez, mais que tudo, na5 noti'cias -carente do sentido social ou da responsabilidade social que agregavam aqueles cineastas. Me orgulho de que em Québec, no resto do Canadá e em lnstituições como o Escritório Nacional de 48 [dq,irsobtiónToÍ(hla Cinema, esse movimento tenha ganho voz e visão. Quem sabe a próxima onda de documentaristas e seu público possam ter acesso, outra vez, às lições aprendidas então, e adaptá-las aos desafios do futuro. (4) CITAÇÕES UTILIZADAS POR EDGAR SOBERÓN TORCHIA 1. Citações de Michel Brault (1 ), Robert Drew (2) y Peterwintonick
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