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1 MERCADOS ILÍCITOS TRANSNACIONAIS, CRIME ORGANIZADO E SEU IMPACTO NA REGIÃO DA TRÍPLICE FRONTEIRA SULAMERICANA Leandro Piquet Carneiro Com contribuições de: Roberto Troncon Fabio R. Bechara João Henrique Martins João Gallegos Fiúza Cristian Gabriel Taboada 2 SUMÁRIO 1. OS TEMAS DESTE MÓDULO .......................................................................................3 2. AÇÕES BASEADAS EM INCENTIVOS E A DINÂMICA DOS MERCADOS ILÍCITOS ..........4 3. MERCADOS ILÍCITOS LOCAIS, NACIONAIS E TRANSNACIONAIS .................................5 4. DEFINIÇÃO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA NAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS E NA LEI .............................................................................................................................8 5. COMO COLOCAR ESSES CONCEITOS EM PRÁTICA NO TRABALHO POLICIAL? ........ 14 6. A RELAÇÃO ENTRE MERCADOS ILÍCITOS E CRIME ORGANIZADO ........................... 18 6.1 Drogas ................................................................................................................ 19 6.2 Armas................................................................................................................. 22 6.3 Tráfico de pessoas e contrabando de migrantes .............................................. 23 6.4 Novos mercados ilícitos ..................................................................................... 25 7. CRIME ORGANIZADO E TERRORISMO ..................................................................... 26 8. COMENTÁRIOS FINAIS............................................................................................. 31 BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 35 3 1. OS TEMAS DESTE MÓDULO Nesse módulo vamos abordar dois problemas diretamente relacionados: o funcionamento dos mercados ilícitos e o crime organizado. Juntos representam uma nova ameaça ao sistema de segurança pública e defesa nacional dos países da Região. Organizações criminosas surgem e atuam nos mercados de bens e serviços que, de acordo com as leis do país, são considerados ilícitos. Os bens e serviços comercializados ilicitamente têm natureza muito diversa, tais como: produtos industrializados falsificados, drogas como a maconha e a cocaína, prostituição, armas e munições, espécies animais, para citar alguns exemplos. A comercialização desses produtos viola regulamentos impostos pelo Estado, como a lei penal, leis sanitárias, ambientais e de racionamento, leis contra certos produtos e serviços e a regulação do sistema financeiro. Esse problema é monitorado por vários organismos internacionais. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) organizou em 2013 uma força conjunta com o objetivo de conter em escala global a expansão dos mercados ilícitos. Em resumo, quando falamos “mercados ilícitos” queremos descrever um tipo de atividade econômica na qual se identifica a presença de um ou mais das seguintes operações: 1. Produção, distribuição, venda e compra de produtos e serviços proibidos, como narcóticos, animais silvestres e comércio sexual; 2. Venda irregular de commodities, como antiguidades e pedras preciosas, de produtos que infrinjam os direitos intelectuais, e de produtos não adequados aos padrões dos códigos locais; 3. Venda de produtos fora de seu mercado de destino, sem pagar os impostos de consumo local, como cigarros e álcool; 4. Venda de mercadorias roubadas, como carros e eletrônicos. Se há algum tipo de demanda, haverá sempre alguém ou alguma organização dedicada a atender essa demanda. A organização dos mercados ilícitos, a formação de preços e o comportamento das firmas que atuam nesses mercados podem ser analisados segundo uma modelo econômico de custos e benefícios. 4 Existem muitas teorias que explicam o comportamento criminoso. Nesse módulo vamos assumir que criminosos respondem a incentivos: calculam o custo e o benefício de cada ação e decidem como vão agir. Precisamos entender que incentivos são esses e como são produzidos. 2. AÇÕES BASEADAS EM INCENTIVOS E A DINÂMICA DOS MERCADOS ILÍCITOS Um exemplo para ilustrar o que é o comportamento baseado em incentivos. Pense em uma organização criminosa local que se dedica ao furto e à comercialização de automóveis. Uma inovação tecnológica que dificulta, por exemplo, a ignição do veículo no momento do furto, pode fazer com que esse negócio fique menos lucrativo, pois o custo em termos de horas investidas para furtar o veículo aumenta muito, assim como o risco de ser apanhado enquanto o crime é cometido. Portanto, a inovação tecnológica introduzida funciona como um incentivo negativo para a organização criminosa. Isso não acaba com o crime, mas muda o comportamento dos infratores. Sem alternativas de ganho, a organização que atua nesse nicho pode inclusive deixar de existir. Vamos falar um pouco mais sobre os diferentes mercados e bens ilícitos e tentar entender o que eles têm em comum e como podem ser analisados. A lei de cada país define o que é lícito ou ilícito produzir, comercializar e consumir. O Uruguai foi o primeiro país do mundo a legalizar a produção, o comércio e o cultivo da cannabis. Portanto, é legal cultivar, portar, comercializar e consumir uma substância que em todos os países vizinhos é proibida. Em alguns países do mundo, o álcool é proibido. A cocaína já foi comercializada legalmente em todo o mundo por quase 70 anos e a prostituição é tratada de forma muito diferente entre os países. A legislação que regula e proíbe o comércio de determinados bens e serviços cria também os mercados ilícitos. 5 Nesse módulo abordaremos o problema do crime organizado como um empreendimento criminal contínuo que racionalmente busca o lucro com as atividades ilícitas de grande demanda pública. Sua existência é mantida por meio do uso de força, ameaças e/ou a corrupção de funcionários públicos. Essa definição foi oferecida pelo criminólogo Jay Albanese, um dos principais pesquisadores sobre o tema em atividade1. A proibição de bens e serviços para os quais há demanda gera a possibilidade de ganhos ilícitos e propicia o desenvolvimento de organizações que funcionam da mesma forma que as firmas que se dedicam a atividades legais. Um destaque importante: um bem não precisa ser proibido para se tornar objeto de interesse das organizações criminosas. As políticas de racionamento também criam restrições que propiciam a atuação de organizações criminosas, as quais se dedicam a equalizar a distribuição dos bens e serviços escassos. O comércio desses bens burlando as leis de racionamento permite que as organizações criminosas tenham ganhos cobrando mais do que os preços legais para garantir a oferta. A proibição e o racionamento geram nichos de mercado nos quais organizações criminosas - utilizando violência, ameaças e corrupção - burlam os controles legais e comercializam o bem ilícito ou escasso. Até mesmo a taxação excessiva de alguns produtos, como cigarro e o álcool, cria nichos para a atividade ilícita e pode propiciar a falsificação e o contrabando. Os mercados ilícitos podem ser locais, nacionais ou transnacionais. Vamos ver alguns exemplos. 3. MERCADOS ILÍCITOS LOCAIS, NACIONAIS E TRANSNACIONAIS O mercado de autopeças roubadas e furtadas muitas vezes se organiza localmente. Uma organização criminosa especializada no roubo e furto de automóveis pode ter uma atuação eminentemente local, por exemplo, roubando e desmontando carros para revenda de componentes na própria cidade em que os roubos são realizados. O fato de 1 Outro criminólogo influente nesse debate é Klaus Von Lampe que construiu um website que reúne 200 definiçõesde crime organizado: http://www.organized-crime.de/organizedcrimedefinitions.htm http://www.organized-crime.de/organizedcrimedefinitions.htm 6 o mercado de autopeças ter uma dimensão local não afeta a natureza da organização criminosa que atua nesse mercado. Essa organização pode apresentar uma estrutura própria de coordenação e controle dos seus membros, usar de violência para intimidar outras organizações e a polícia, praticar ameaças contra lojistas, forçando a comercialização dos bens roubados, e corromper policiais e fiscais para que não interfiram nos negócios. Agora pense no mercado da cannabis no Brasil. Existe uma grande região produtora no interior do Nordeste, conhecido como o polígono da cannabis, e a distribuição da droga ocorre nos principais centros urbanos do país. Do cultivo à venda no varejo há uma longa cadeia logística na qual diferentes organizações atuam e se articulam, cada uma explorando um nicho específico do negócio. Essas organizações criminosas atuam em um mercado nacional de um bem ilícito, embora sejam organizações eminentemente locais ou regionais. As famílias de agricultores da cannabis se organizam criminalmente (se armam, contratam pistoleiros, se articulam com organizações que transportam e vendem a droga) para se defender dos ataques de outras famílias que atuam no negócio e para intimidar a polícia. Atuam, portanto, em um mercado que não ultrapassa as fronteiras nacionais, mas que atua em diferentes jurisdições. Agora vamos o tipo mais complexo: os mercados transnacionais de bens e serviços ilícitos. Podemos tomar como exemplo o mercado internacional da cocaína. Durante séculos, as populações nativas do Peru e da Bolívia mascaram folhas de coca por prazer ou para resistir às condições extenuantes de trabalho a que eram submetidos. Na década de 1850, químicos europeus isolaram o alcaloide ativo das folhas de coca, convertendo-o em cloridrato de cocaína. Este pó branco fino transformou-se rapidamente em uma comodity global e várias empresas farmacêuticas se instalaram no Peru para produzi-lo. A cocaína foi legalmente distribuída e consumida em escala global até a década de 1920 quando vários países começaram a adotar políticas de proibição. A partir daí começa a história contemporânea da cocaína, com a emergência do cultivo, produção e distribuição ilegal da droga. Na década de 1980 surgiu nos EUA um novo preparo de cocaína, denominado crack. Surgiu também um novo padrão de consumo. A cocaína que era uma droga cara e consumida pela elite, passou a ser distribuída nos bairros pobres. 7 O número de consumidores aumentou rápido, as gangs locais passaram a disputar os pontos de venda de forma violenta, e as redes de tráfico da cocaína transformaram a geografia criminal das Américas do Sul, Central e do Norte. O mercado da cocaína forma, portanto, um ambiente de negócios onde se articulam centenas de organizações criminosas em diferentes países com o objetivo de garantir que a produção dos países andinos chegue às ruas dos EUA e Europa. O conjunto dessas atividades no mercado da cocaína forma o que chamamos de crime organizado transnacional. Existem outras manifestações do mesmo fenômeno no mercado global de heroína, armas ilegais, tráfico de pessoas, espécies animais, entre outros exemplos. Em todos esses exemplos em diferentes níveis de mercado, encontramos organizações criminosas que, como vimos na definição apresentada um pouco acima, buscam racionalmente o lucro com as atividades ilícitas de grande demanda pública e cuja existência é mantida por meio do uso de força, ameaças e/ou a corrupção de funcionários públicos. 8 4. DEFINIÇÃO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA NAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS E NA LEI Questões-chave para a seção: Qual é o marco regulatório internacional do crime organizado? Como certos crimes são definidos internacionalmente? Que ferramentas eles nos fornecem na luta contra o crime organizado? A Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) e seus três protocolos2 apresentam a seguinte definição para o conceito de crime organizado, com destaque a sua forma estrutural, como disposto no Art. 2º: a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando de forma coordenada com o propósito de cometer uma b) ou mais infrações graves, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material; c) "Infração grave" - ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior; d) "Grupo estruturado" - grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não disponha de uma estrutura elaborada; 2 São esses: Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças (promulgado no Brasil como Decreto Presidencial n° 5.017 de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm); Protocolo contra o Contrabando de Migrantes por Terra, Mar e Ar (promulgado no Brasil como o Decreto Presidencial n° 5.016 de 2004 (Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm); e o Protocolo contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Partes e Componentes e Munições (promulgado no Brasil como o Decreto da Presidência da República n° 5.941 de 2006, e disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5941.htm). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm)%3B http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm)%3B http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5941.htm) 9 O conceito de Grupo Estruturado possibilita a diferenciação com a Associação Criminosa onde duas ou mais pessoas se unem de forma não permanente (alianças temporárias e voláteis) para a prática imediata de ilícito penal punível com uma pena inferior a quatro anos e assim indica sua aplicação possível: (a) - infrações tipificadas na legislação interna de cada país (Art. 5º, 6º, 8º e 23) e infrações relativas à participação em grupo criminoso organizado, lavagem de dinheiro3 e corrupção (art. 3º n.º 1º alínea “a”) e (b) - crimes graves cuja pratica impõe penas privativas de liberdade com pena não inferior a quatro anos (art.3º n.º1 alínea “b”). O conceito apresentado na Convenção de Palermo permite desenvolver um conceito geral sobre as organizações criminosas a partir da sistematização de seus componentes principais: 1. Apresentam estruturas ordenadas de coordenação, não necessariamente na forma tradicional de estruturas hierarquizadas, mas de redes difusas e fluidas; 2. Têm um caráter racional de exploração dos mercados ilícitos: fundado no cálculo do ganho em relação ao risco da atividade; 3. Exploram as vantagens ilícitas disponíveis: de qualquer natureza economicamente auferível podendo ser um benefício ou privilégio; 4. Apresentam capacidade de atuação supranacional de caráter transnacional: não respeitando as fronteiras dos Estados4. 3 A lavagem de dinheiro é identificada como um processo econômico pelo qual ativos ilícitos se tornam lícitos por meio de um ciclo sucessivo de (a) colocação (placement), (b) ocultação (layering) e (c) integração (integration), a legislação destinada ao seu combate indica a necessidade de se tipificar o crime antecedente a lavagem de ativos importante referência para o desenvolvimento legislativo classificado como: 1ª Geração – Sistema Único onde previa como crime antecedente o tráfico ilícito de entorpecentes; 2ª Geração– Sistema Parcial onde se pune a lavagem de dinheiro obtido com infrações penais de relevância significativa, que não somente o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes - alargando o rol de crimes precedentes (rol taxativo) (Brasil Portugal Espanha); e 3ª Geração – Sistema Total - periculosidade social - qualquer crime grave pode ser configurado como delito antecedente do crime de lavagem de dinheiro (França, Suíça, Argentina e México) recomendando também a leitura das publicações do Banco Mundial como Reference Guide to Anti-Money Laundering and Combating the Financial of Terrorism The World Bank disponível em ttp://siteresources.worldbank.org/EXTAML/Resources/396511- 146581427871/Reference_Guide_AMLCFT_2ndSupplement.pdf. 4 Conceito desenvolvido em WERNER, Guilherme Cunha (2015). Teoria Interpretativa das Organizações Criminosas: Conceito e Tipologia. In: Organizações Criminosas Teoria e Hermenêutica da Lei n.º 12.850/2013. Ed. Nuria Fabris. 10 Esses quatro componentes permitem entender a convenção de Palermo não apenas como um marco normativo, mas como a base para uma teoria sobre o funcionamento dos mercados ilícitos e do crime organizado. Segundo essa teoria, o crime organizado pode ser entendido como um conjunto de agentes que buscam maximizar seus ganhos e que atuam em um mercado global. Há esforços importantes também no âmbito dos países da região das Américas que estão empenhados em tipificar o crime organizado em seus regulamentos internos e promover a cooperação internacional para combater o crime organizado, compromisso ratificado na Declaração sobre Segurança nas Américas de 20035. Nessa Declaração, a OEA faz um chamado aos países membros para lutar contra o crime organizado transnacional por meio, entre outras ações, da plena implementação das obrigações contraídas pelos Estados Partes na Convenção de Palermo e seus três protocolos, para que lavagem de dinheiro, sequestro, o tráfico ilícito de pessoas, a corrupção e crimes relacionados sejam criminalizados no Hemisfério e os bens resultantes desses crimes sejam identificados, rastreados, congelados ou apreendidos. A Declaração da OEA reconhece que os países da região estão expostos a "novas ameaças" à segurança representadas pelo terrorismo, o crime organizado transnacional, as drogas ilícitas, a corrupção, a lavagem de dinheiro, o tráfico ilícito de armas, tráfico humano e os ataques cibernéticos. As ações contra essas ameaças estão contidas no Plano de Ação Hemisférico contra o Crime Organizado Transnacional de 20066, o qual propões uma série de ações com o objetivo de: 1. Prevenir e combater o crime organizado transnacional, com pleno respeito aos direitos humanos, tomando como referência a Convenção de Palermo e seus três protocolos; 2. Aprofundar a cooperação internacional na prevenção, investigação e ações judiciais relacionadas ao crime organizado transnacional; 3. Incentivar a coordenação entre os respectivos órgãos da OEA com competência em assuntos relacionados com a luta contra o crime organizado transnacional, bem como a cooperação entre eles e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC); 5 Disponível em: www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OEA-Organiza%C3%A7%C3%A3o-dos-Estados- Americanos/declaracao-sobre-seguranca-nas-americas.html 6 Disponível em: http://www.oas.org/consejo/pr/resolucoes/res908.asp http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OEA-Organiza%C3%A7%C3%A3o-dos-Estados- http://www.oas.org/consejo/pr/resolucoes/res908.asp 11 4. Fortalecer as capacidades e habilidades nacionais, sub-regionais e regionais para enfrentar o crime organizado transnacional. Respeito aos direitos humanos, cooperação internacional, coordenação e construção de capacidades institucionais são conceitos que fazem parte, portanto, do núcleo de valores da nova doutrina de segurança multidimensional, da qual a OEA é uma das vozes mais importantes na região. Ainda no âmbito da Organização dos Estados Americanos, nas Reuniões de Ministros em Matéria de Segurança Pública das Américas (MISPA I, II, III, IV, V, VI7), foram aprovadas recomendações em que explicitamente é reconhecida a importância do fortalecimento das seguintes ações, dentre outras: 1. Cooperação, coordenação e assistência técnica entre as instituições de segurança pública dos Estados membros, como meio adequado de resposta à criminalidade, à violência e à insegurança; 2. Desenvolvimento de mecanismos regionais e bilaterais de intercâmbio de informações operacionais e/ou de inteligência com o fim de prevenir e investigar, em conformidade com a legislação interna, a criminalidade organizada transnacional e a insegurança que afetam o hemisfério; 3. Fortalecimento da cooperação judicial que permita os Estados membros, em conformidade com a legislação interna e as convenções internacionais firmadas, dar uma resposta efetiva ao cometimento, execução, planejamento, preparação ou financiamento de atos delitivos que atentem contra a segurança pública; 4. Estimular e consolidar as iniciativas de cooperação regional e sub-regional entre as polícias em matéria de luta contra a criminalidade organizada transnacional; 5. Fomentar a cooperação bilateral e com organismos multilaterais de cooperação e desenvolvimento, a fim de promover iniciativas de programas que incluam a segurança, justiça e desenvolvimento, na luta contra a criminalidade, violência e insegurança. 7 Disponível em: http://www.oas.org/pt/council/csh/topics/MISPA-VI.asp http://www.oas.org/pt/council/csh/topics/MISPA-VI.asp 12 A região também tem sido pioneira no combate a algumas manifestações específicas do crime organizado, principalmente na área de armas de fogo, tráfico de pessoas e drogas. Em 1997, foi sancionada a Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos (CIFTA8) , um instrumento regional que estabeleceu uma estrutura internacional com a prerrogativa de conceder autorizações e licenças para exportação, importação e o trânsito de armas de fogo; a obrigação de classificar como crime o tráfico e fabricação ilícita de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais correlatos; e reforço do controle nos pontos de exportação, entre outros assuntos. O instrumento também facilita a cooperação e o intercâmbio de informações e experiências entre os Estados Partes sobre armas de fogo. A Convenção entrou em vigor em 1998 e desde então os Estados Partes aprovaram uma série de leis modelo para facilitar a incorporação das obrigações assumidas no direito interno dos países. No âmbito das Nações Unidas, em 2014 entrou em vigor o Tratado de Comércio de Armas, que reforça muitas das medidas que a região vem adotando no âmbito da CIFTA. Com relação ao Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e Crianças, a região aprovou em 2015 o II Plano de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental 2015-2018. O plano de trabalho adota a definição de tráfico de pessoas do Protocolo das Nações Unidas, entendendo este crime como “o recrutamento, transporte, transferência, recepção ou recepção de pessoas, com recurso à ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, sequestro, fraude, engano, abuso de poder ou situação de vulnerabilidade ou concessão ou recebimento de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração ". 8 Disponível em: www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-63.htm http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-63.htm 13 Na mesma reunião de Autoridades Nacionais contra o Tráfico de Pessoas em que foi aprovado o Plano de Trabalho 2015-20189, também foi aprovada a "DeclaraçãoInteramericana de Combate ao Tráfico de Pessoas" ou "Declaração de Brasília" (2014). Em matéria de delito cibernético, em 2004 os Estados membros da OEA aprovaram a Estratégia Interamericana Integral de Combate às Ameaças à Segurança Cibernética. A Estratégia emprega uma abordagem abrangente para a construção de capacidades, reconhecendo que a responsabilidade nacional e regional pela segurança cibernética recai sobre uma ampla gama de entidades dos setores público e privado, que trabalham em aspectos políticos e técnicos para proteger o ciberespaço. A Estratégia visa o estabelecimento de grupos nacionais de “alerta, vigilância e prevenção”, também conhecidos como Equipes de Resposta a Incidentes (CSIRT) em cada país; criar uma rede de alerta hemisférica; promover o desenvolvimento de Estratégias Nacionais de Segurança Cibernética; e promover o desenvolvimento de uma cultura que permita o fortalecimento da segurança cibernética no Hemisfério. Por fim, deve-se observar que o arcabouço jurídico internacional é regido principalmente por três tratados internacionais: a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 (emendada em 1972), a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 e a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988. Nesse quesito, a região também esteve na vanguarda. Prova disso é o a Declaração de Antígua, Guatemala “Por uma política integral frente ao problema mundial das drogas nas Américas” em 201310, por meio do qual se questionou de forma construtiva a atuação da abordagem tradicional dominante até então. Conhecer o marco normativo internacional sobre os mercados ilícitos e o crime organizado é fundamental para desenvolvermos uma visão mais abrangente dos fenômenos que como profissionais de segurança temos que conhecer para poder prevenir e controlar. 9 Disponível em: www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp 10 Disponível em: www.oas.org/pt/centro_midia/nota_imprensa.asp?sCodigo=PG-010 http://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp http://www.oas.org/pt/centro_midia/nota_imprensa.asp?sCodigo=PG-010 14 5. COMO COLOCAR ESSES CONCEITOS EM PRÁTICA NO TRABALHO POLICIAL? Perguntas-chave para a seção: Quais são as características dos grupos do crime organizado? Que estruturas os grupos do crime organizado apresentam? A partir da breve revisão apresentada acima sobre o marco normativo é possível apontar dois caminhos possíveis a orientar o esforço de mapeamento e diagnóstico da atuação de grupos criminosos organizados ou organizações criminosas nos diferentes contextos nacionais. O primeiro deles coloca foco na organização criminosa em si; suas características elementares, estrutura organizacional, divisão de tarefas, hierarquia, dentre outros aspectos organizacionais e funcionais característicos. Este foi o caminho seguido nas primeiras iniciativas contra a máfia, principalmente nos EUA e segue como uma vertente importante da literatura que se dedica a classificar e analisar o padrão organizacional dos grupos criminosos11. O segundo caminho, por sua vez, dirige seu foco para as atividades ilícitas e suas externalidades. No primeiro caminho identifica-se a organização e chega-se às atividades ilícitas às quais a organização se dedica. No segundo caminho, que estamos seguindo como linha principal do presente módulo, identifica-se a atividade ilícita e a partir daí chega-se à organização ou organizações que realizam essa atividade ou que dela se aproveitam de alguma forma. 11 Albanese (2011) aponta cinco espécies de grupos criminosos organizados (a) Hierarquia rígida: chefe individual com uma forte disciplina interna com muitas divisões; (b) Hierarquia descentralizada: estruturas regionais, cada qual com a sua própria hierarquia e nível de autonomia; (c) Conglomerado hierarquizado: uma associação de grupos criminosos organizados; (d) Grupo criminoso central: estrutura horizontal de indivíduos que se autodescrevem como trabalhando para uma mesma organização; (e) Rede criminosa organizada: engajamento individual em atividades criminosas na modificação de alianças, não necessariamente afiliados com algum grupo criminoso, mas agindo de acordo com as suas respectivas habilidades para realizar atividades ilícitas. 15 O crime organizado tem uma presença difusa em toda a Região, atuando em atividades como tráfico de armas e drogas, roubo a bancos e de cargas, biopirataria, contrabando de produtos falsificados e tráfico de pessoas. Há também extensas ramificações do crime organizado no comércio legal, no setor de serviços, incluindo os serviços financeiros, na burocracia estatal, nas polícias e na política. Diante desse cenário, fica evidente a necessidade de se buscar novas formas de análise do fenômeno e também da adoção de novos modelos de organização, operação e articulação das forças de segurança, principalmente na integração entre os sistemas de inteligência e informação das polícias, dos órgãos de controle interno, do Ministério Público, dentre outros, com vistas a permitir a gestão estratégica do problema. Como temos enfatizado, as organizações criminosas são muito diversificadas e podem ser inicialmente identificadas como uma associação de indivíduos voltados ao cometimento de atos ilícitos orientados para a obtenção de vantagens indevidas obtidas na exploração de bens e serviços ilícitos. A aproximação do tema no nível do trabalho policial exige, no entanto, reflexões adicionais sobre o uso do conceito de “crime organizado”, o qual é comumente empregado como se denotasse um fenômeno claro e coerente, mas de fato trata-se de um conceito temporalmente mutável e difuso12. Nos estudos acadêmicos sobre o tema encontramos exemplos de aplicação do conceito de crime organizado derivados de diferentes modelos criminológicos e que refletem pontos de vistas muitas vezes conflitivos, o que denota a dificuldade de se dispor de uma definição universalmente aceita do fenômeno13. Mesmo sem uma definição clara do que constitui o problema, as agências policiais são chamadas a desenvolver análises prospectivas para entender e preparar antecipadamente as novas tendências, dinâmicas e ameaças que o crime organizado representa. Dessa forma, um caminho possível para se contornar a dificuldade posta pela falta de um conceito compartilhado sobre o fenômeno do crime organizado é considerar a atividade ilícita (o empreendimento e o mercado no qual os grupos criminosos atuam) e não somente a estrutura da organização como ponto de partida para a análise e investigação policial. 12 Ver Lampe, 2003. 13 Ver Naylor, 2004. 16 Estudos científicos podem ajudar na reflexão sobre os desafios do trabalho policial diante do problema do crime organizado. O sociólogo Howard Abadinsky (2000) destacou as características centrais do crime organizado: (a) não apresenta objetivos políticos; (b) organização hierarquizada; (c) a participação de seus membros é definida através das qualidades individuais especificas; (d) formam uma subcultura, os participantes aceitam padrões e regras comportamentais; (e) perpetuação da organização criminosa com a agregação de novos membros; (f) uso da força e da corrupção visando à impunidade; (g) especialização e divisão das tarefas; (h) monopólio das atividades ilícitas objetivando a hegemonia e (i) comando através de normas e regras pré-estabelecidas, guardando um paralelo com os elementos constitutivos indicados por Donald R. Cressey e servindo de base dos estudos subsequentes. As ideias defendidas por Abadisnki de que o crime organizado apresenta necessariamente algum tipo de hierarquia e produzem uma subcultura própria têm sido questionadas nos trabalhos mais recentes sobre o tema. Nesse sentido, outro caminho que começa a ser percorrido envolvea análise das redes criminais e o conceito de vínculos sociais que podem ser criminalmente explorados (criminally exploitable ties), conceito desenvolvido pelo criminólogo Klaus von Lampe em diferentes trabalhos14. A vantagem desse conceito é que ele pode ser empregado para analisar tanto agentes que são fixos na sua conduta criminosa (criminosos de carreira e organizações criminosas de vários tipos), quanto agentes que são híbridos (atuam em atividades legais e ilegais de forma simultânea ou transitam de uma para outra em diferentes momentos). Outra questão importante diz respeito à forma como se dá a mudança de escala das organizações criminosas do nível local e nacional para o transnacional. Aqui também existem visões conflitivas sobre esse processo. Três modelos distintos podem ser utilizados para explicar as mudanças na escala de operação. O primeiro modelo pode ser descrito como o modelo evolucionário do crime organizado15 no qual o as organizações criminosas evoluem do nível mais simples (gangs e quadrilhas locais) onde basicamente há uma relação de conflito permanente entre grupos criminosos e desses com a polícia. 14 Ver Lampe 2003 e 2016. 15 Lupsha 1996; Beato e Zilli 2012; Pimentel 2000. 17 No segundo estágio de evolução algumas organizações se mostram mais adaptadas ao ambiente social e criminal no qual atuam e se estabelecem territorialmente (ou em algum segmento de atividade ilícita) como uma força dominante e em seguida passam a “envolver-se em modalidades criminosas mais complexas”16, como também passam a desenvolver relações parasitárias com as organizações do Estado e da sociedade civil17. No último estágio de evolução não apenas as conexões criminais normalmente se expandem além das fronteiras nacionais como a relação com o Estado sofrem mudanças profundas no sentido de se tornarem simbióticas. O segundo modelo explora a relação entre crime e política de forma distinta do modelo evolucionário: os grupos políticos representados no Estado exploram diretamente as atividades ilícitas e “taxam”, extorquem e estabelecem relações de conluio com grandes organizações criminosas18. Há, portanto, uma relação endógena entre o crime organizado e a elite política/econômica que explora a atividade ilícita com o objetivo de obter moedas fortes, financiar campanhas e alavancar fundos para investimentos privados em atividades lícitas. A passagem da escala local de operação para a escala transnacional ocorre nesse caso como consequência de uma associação entre as elites políticas/econômicas de estados fracos ou falidos, por um lado, e organizações criminosas, por outro, que são economicamente exploradas, ao mesmo tempo em que são apoiadas nas suas operações ilícitas. Por fim, o terceiro modelo procura explicar a emergência do crime transnacional como decorrente de um processo de formação de redes entre organizações criminosas locais incentivadas por processos econômicos e tecnológicos como o aumento do comércio e das viagens internacionais e o crescimento e barateamento dos sistemas de informação e comunicação via internet, telefones celulares, e-mails e redes sociais19. Organizações e redes não são independentes, na medida em que as organizações evoluem a partir das redes nas quais estão inseridas. Isso significa dizer que organizações criminosas locais não precisam necessariamente modificar suas estruturas funcionais internas e “evoluir” para formas mais complexas de organização, mas podem contribuir, a partir da conexão e compartilhamento de recursos e operações, para a 16 Beato, Zilli 2012, p. 91 17 Pimentel 2000, p. 56. 18 Pimentel 2000, p. 56. 19 Lampe, 2003 e 2016. 18 produção de um ambiente criminal mais complexo e agressivo contra as organizações do Estado e a sociedade. Esses três modelos pretendem explicar como o crime se modifica organizacionalmente e supera as fronteiras nacionais. Outro problema distinto diz respeito à evolução dos mercados de bens e serviços ilícitos. É evidente que as organizações criminosas e mercados são entes inter-relacionados, mas no caso das atividades ilícitas em particular há mais possibilidade de observação do comportamento do mercado do que do comportamento e da estrutura organizacional dos grupos criminais. Vejamos a magnitude e as características dos principais mercados ilícitos na região. 6. A RELAÇÃO ENTRE MERCADOS ILÍCITOS E CRIME ORGANIZADO Perguntas-chave para a seção: Quais são as principais manifestações do crime organizado? Como isso afeta cada país? Que novas tendências podem ser identificadas? Devido à natureza clandestina da indústria da droga e de outros bens e serviços ilícitos como o tráfico de armas e o tráfico de pessoas, sua complexidade e a dificuldade de se estabelecerem suposições confiáveis sobre as bases operacionais desses mercados, as estimativas disponíveis sobre a magnitude da indústria de bens e serviços ilícitos diferem muitas vezes de forma acentuada. Não obstante, as estimativas disponíveis podem oferecer algumas informações úteis sobre tamanho do mercado global e regional de drogas (o principal mercado ilícito na região) e o valor que é agregado a cada etapa da produção, distribuição e consumo das drogas e de outros bens e serviços ilícitos. O Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes publicou em 2011 a pesquisa “Estimating Ilicit Financial Flows Resulting from Drug Trafficking and Other Transnational Organized Crimes”(United Nations Office on Drugs and Crime 2011), em que examina a magnitude dos fundos ilegais gerados pelas atividades ilícitas, a partir de parâmetros 19 técnicos estabelecidos pelo Fundo Monetário Internacional, no sentido de que os produtos ou receitas provenientes de crimes somam aproximadamente 3,6% do Produto Interno Bruto global, ou seja, 2,1 trilhões de dólares americanos. 6.1 Drogas Estudos do UNODC estimam que o fluxo do tráfico de drogas e de outras atividades do crime organizado produziu uma receita equivalente a U$ 650 bilhões por ano na primeira década do novo milênio, ou equivalente a 1.5% do PIB global. Os fundos disponíveis para lavagem por meio do sistema financeiro seriam equivalentes a aproximadamente 1% do PIB global (U$580 bilhões em 2009). Os Estados Unidos ainda são o maior mercado de cocaína no mundo, embora tenha ocorrido um declínio importante entre 2006 e 2012, há indícios de que o consumo da droga está aumentando novamente no país. O Canadá segundo o World Drug Report (2017, p. 28) apresenta tendência semelhante de retomada do consumo. A maior das receitas financeiras do crime organizado transnacional vem das drogas ilícitas, que representam algo em torno de 20% (17%-25%) do proveito de todos os crimes, aproximadamente metade dos proveitos do crime organizado transnacional e entre 0.6% a 0.9% do PIB global. Por outro lado, o produto da droga disponível para lavagem de dinheiro através do sistema financeiro seria equivalente a 0.4% e 0.6% do PIB global. Como proporção do PIB nacional, o produto de todos os crimes tende a ser maior nos países em desenvolvimento, porém, lavados em outros países mais frequentemente. Segundo os dados disponíveis, aproximadamente um bilhão de pessoas, ou cerca de 5 por cento da população adulta global, usou drogas pelo menos uma vez em 2015 (ano de referência da pesquisa). Ainda mais preocupante é o fato de que cerca de 29,5 milhões desses usuários de drogas, ou 0,6 por cento da população adulta global, sofre de transtornos de uso de drogas (World Drug Report, 2017). A respeito ao mercado regional de cocaína, a principal commodity ilícita exportada pelos países da América do Sul, a estimativa oferecida no estudo de Reuter e Greenfield (2001) combina as pesquisas de prevalência com as taxas de consumo per-capita, e o valor de varejo da droga e estima os gastoscom cocaína nos EUA e na Europa na forma de um intervalo com o valor mínimo de 35 bilhões e máximo de U$115 bilhões. 20 Kilmer e Pacula (2009) apresentam uma estimativa mais conservadora para a receita gerada pelo comércio internacional de cocaína entre U$ 7 e U$ 8 bilhões de dólares (p. 70). Os lucros obtidos com a venda da cocaína foram estimados em 84 bilhões de dólares para o ano de 2009, sendo que aproximadamente um bilhão foram custos de produção, a maior parte para os fazendeiros na região andina. A maior parte dos lucros foi gerada na América do Norte e na Europa Central e Oeste. Os cálculos, derivados dessas estimativas do tamanho do mercado e da estrutura do mercado, sugerem que aproximadamente 92% da receita proveniente da comercialização da cocaína no mundo estiveram aptas para a lavagem em 2009. A pesquisa revela ainda que de um total de 84 bilhões de dólares de lucro e 56 bilhões disponíveis para lavagem, aproximadamente 26 bilhões de dólares deixaram as jurisdições onde os lucros foram obtidos. As estimativas globais do mercado de cannabis, por exemplo, apresentadas por Kilmer e Pacula (2009) com base em dados de demanda, indicam um consumo global da droga que é apenas a metade das estimativas apresentadas pelo UNODC. As estimativas sobre o mercado regional da cannabis são ainda mais precárias devido ao fato de que o cultivo dessa droga se encontrar bastante disseminada no mundo. O World Drug Report de 2017 (Booklet 2, p39) indica que 13520 países no mundo relataram a presença de cultivo ilícito da droga, sendo que na região das Américas, Canadá, EUA, México, Paraguai, Colômbia e Brasil, entre outros, produzem grande quantidade da droga, aproximadamente 24% da produção mundial ocorre na América do Sul e 31% na América do Norte (WDR, 2008, p 97). O relatório mais atual de 2017 confirma essa característica disseminada do cultivo da cannabis e a forte presença da droga na região das Américas. O Paraguai, segundo o WDR 2017, é o primeiro país do mundo com maior número na erradicação de plantas de cannabis, com 12 milhões de pés erradicados (WDR 2017)21. As estimativas devem ser lidas com cautela. 20 A estimativa do número de países é feita com base em um questionário em que os estados membros informam sobre a existência de cultivo no próprio país e nos países do entorno. 21 World Drug Report, 2017. Dados da Tabela “Cannabis cultivation, production and eradication, latest year available from the period 2011-2016”. Disponível em: www.unodc.org/wdr2017/field/6.3.1_Cannabis_cultivation_production_eradication.pdf http://www.unodc.org/wdr2017/field/6.3.1_Cannabis_cultivation_production_eradication.pdf 21 Embora ofereçam uma base útil para o planejamento de ações de prevenção e controle do problema, segundo alguns especialistas, esses procedimentos têm várias falhas metodológicas, principalmente em função do fato de que o preço das drogas no varejo é estimado com base em uma média de uma distribuição que apresenta grande variância (Reuter e Greenfield, 2001; Arkes, 2008; Pacula, 2007). O preço de qualquer droga varia enormemente entre países e também entre cidades e regiões de um mesmo país22. A validade dessas estimativas globais do mercado de bens e serviços ilícitos e a metodologia empregada são objeto de intensa disputa entre os especialistas (Naylor 2004, Kilmer, Pacula 2009). Mesmo diante das dúvidas sobre a qualidade das estimativas oferecidas pelo UNODC, há algumas vantagens na utilização desses dados em estudo sobre tendências e principalmente na comparação entre países. Em primeiro lugar, os levantamentos oferecidos pela UNODC apresentam metodologia padronizada para a mensuração (de validade discutível, mas razoavelmente confiáveis) de aspectos como o cultivo e a produção de drogas, entre outros, o que permite estabelecer comparações longitudinais (como as que faremos a seguir) sobre a evolução longitudinal de diversas atividades ilícitas. Em segundo lugar, as estimativas do UNODC têm abrangência global, ao contrário dos estudos acadêmicos que geralmente apresentam estimativas pontuais baseadas em protocolos metodológicos que dificilmente são aplicados em mais de um momento no tempo e em mais de um país ou região. Em terceiro lugar, estas estimativas têm sido crescentemente utilizadas na definição de estratégias governamentais diante do problema do crime organizado. É claro que estimativas exageradas podem levar à alocação ineficiente de recursos, mas são adequadas para se avaliar a motivação dos governos na definição de políticas ou no mínimo para analisar a sensibilidade das lideranças políticas diante do problema. 22 Por exemplo, Reuters e Greenfield (2001) relatam estimativas sobre o preço da cocaína na Espanha. Entre 1988 e 1993 o preço teria caído de U$ 84 para U$44 enquanto na França, no mesmo, período teria ocorrido um movimento contrário com um aumento de $72 para $107. Variações internas nos EUA mostram também diferenças muito acentuadas. O preço da cocaína em Pittsburgh em 1992 era de U$80 contra U$54 em Miami. 22 6.2 Armas Nenhuma análise dos mercados ilícitos estaria completa sem uma referência ao mercado de armas de fogo. Há uma conexão entre os mercados ilícitos de armas e drogas que precisa ser detalhada analiticamente e que tem grande impacto na forma como a distribuição da droga e o tráfico de armas ocorrem nas áreas urbanas. Os mercados ilícitos de armas e drogas têm, no entanto, uma diferença importante: armas são produzidas legalmente para então serem transferidas para o mercado ilegal em algum ponto do processo de comercialização. O valor do global do comércio autorizado de armas de fogo foi estimado em pela ONU Comtrade no valor de US $ 5,8 bilhões em 2013, um aumento de 17% em relação a 201223. A análise de tendências revelou que o valor do comércio global de armas ligeiras e de pequeno porte quase dobrou entre 2001 e 2011 (de USD 2,38 bilhões para US $ 4,634 bilhões24. A Tabela 1 mostra o peso que os EUA e o Brasil têm no comércio legal de armas entre os países da Região das Américas. Os EUA são os maiores exportadores e importadores de armas da Região e sozinho movimenta mais do que todos os demais países da região. O Brasil é segundo exportador e o quinto importador de armas leves na Região das Américas e globalmente está entre os 10 maiores produtores mundiais de armas leves (Small Arms Survey 2016). O grande desafio das políticas para o setor não é propriamente o de regular o acesso legal às armas, mas a capacidade de controle das transferências ilegais de armas. A zona cinzenta entre o segmento legal e comércio ilícito é o grande problema a ser enfrentado pela legislação e pelas polícias (vide tabela da p. 21). O mercado mundial de armas ilícitas tem passado por transformações importantes. Os Estados Unidos e a Rússia já não dominam o mercado mundial de armas leves (como ocorria durante o período da Guerra Fria), mas foram substituídos países da África, Ásia, e América Latina que desenvolveram suas próprias indústrias de armas e tornaram-se exportadores globais importantes. Embora a maior parte dos negócios ocorra legalmente, o fato é que a participação desses novos países produtores no mercado de armas alterou substancialmente as cadeias logísticas dessa indústria e facilitou o processo de transferência para o segmento ilegal. 23 Disponível em: www.smallarmssurvey.org/fileadmin/docs/S-Trade-Update/SAS-Trade-Update.pdf 24 Disponível em: www.smallarmssurvey.org/weapons-and-markets/transfers/authorized-trade.html http://www.smallarmssurvey.org/fileadmin/docs/S-Trade-Update/SAS-Trade-Update.pdf http://www.smallarmssurvey.org/weapons-and-markets/transfers/authorized-trade.html 23 O tráfico de armas leves é uma atividade ilícita global em expansão. Esse é um mercado diretamenteafetado pelas novas tecnologias disponíveis nas áreas de transporte, comunicação e produção, que permitem que as armas de pequeno porte sejam negociadas de forma muito mais fluida. 6.3 Tráfico de pessoas e contrabando de migrantes O tráfico de pessoas deve ser analisado entre os grandes vetores das atividades ilícitas globais. Essa atividade é considerada pelo Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime como o terceiro maior comércio ilegal do mundo, somente atrás do tráfico de armas e de drogas. 24 Essa atividade geralmente é dividida em nichos específicos: (a) para fins de exploração sexual do indivíduo; (b) para a realização de trabalhos escravos ou em regime de semiescravidão: a finalidade é a utilização do indivíduo como mão de obra, sem o seu consentimento; (c) para o tráfico de órgãos: quando há o transporte de indivíduos para retirada de seus órgãos, seja por rapto, morte ou venda; (d) para a adoção de crianças: compra e venda de menores para adoção ilegal; (e) fins militares: utilização de indivíduos em conflitos armados; (f) tráfico de esposas, o que é diferente do tráfico sexual, pois a finalidade deste tráfico é o fornecimento de mulheres para o casamento forçado para regiões do mundo onde esse tipo de prática ocorre. A organização não governamental norte-americana Polaris25, em parceria com o Departamento de Estado dos Estados Unidos, apresentou o Human Trafficking Statistics, no qual identificou que 800 mil pessoas são traficadas através de fronteiras todos os anos e que 50% desse contingente é composto por crianças e adolescentes. Estima-se que 1 milhão de crianças são exploradas no comércio sexual anualmente, sendo 80% são do sexo feminino e que quase a totalidade dos países é afetado pelo problema. O tráfico de pessoas gera anualmente um montante de US$ 32 bilhões de receita. Por sua vez, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima as vítimas do trabalho forçado em todo o mundo em 21 milhões, das quais 11,4 são mulheres e meninas, gerando lucros de 150 bilhões por ano globalmente. É importante notar que o tráfico de pessoas pode ocorrer tanto nacional quanto internacionalmente. Grande parte dos negócios ligados ao tráfico de pessoas ocorre localmente dentro dos países, sem a necessidade de cruzar fronteiras. Em relação ao contrabando de migrantes, estima-se que mais de 232 milhões de pessoas em todo o mundo são migrantes internacionais, dos quais 57,5 milhões vivem nas Américas. Destes, 19,15 milhões de pessoas vêm do México e da América Central e estima-se que metade está sem documentos. Este negócio ilícito traz lucros de US$ 6,6 trilhões por ano globalmente26. 25 Disponível em: www.polarisproject.org/human-trafficking/overview 26 Ver Orozco, Manuel & Mariellen Malloy, 2012. Trabalho de instrução. Segurança e Migração no México e América Central, pp. 37 a 50. http://www.polarisproject.org/human-trafficking/overview 25 6.4 Novos mercados ilícitos Novos mercados ilícitos têm se mostrado extremamente dinâmicos e em forte expansão. Os avanços da biotecnologia e a facilidade de se registrar marcas e patentes em âmbito internacional têm facilitado, nos últimos anos, o contrabando de recursos biológicos para fins comerciais ou científicos, atividade denominada biopirataria. A exemplo do que ocorre no mercado das drogas, os dados sobre biopirataria têm baixa confiabilidade; entretanto, os levantamentos disponíveis revelam prejuízos econômicos significativos. Estima-se que 12 países no mundo concentram 70% de todas as espécies de vertebrados, insetos e plantas conhecidas. Desses países, cinco estão na América Latina, sendo o Brasil líder do ranking, com cerca de 150 mil espécies já pesquisadas e catalogadas, ou 13% de todas as espécies de flora e fauna que existem no mundo. Porém, ainda falta identificar até 90% deste potencial, tornando o país alvo profícuo para a atividade de diversos grupos organizados nessa atividade. O modus operandi tradicional nesse setor envolve a apropriação indevida de espécies que ainda não são conhecidas e que, portanto, demoram a ser reivindicadas por pesquisadores e empresas que atuam no país. Apenas a extração ilegal de madeira, segundo estimativas de estudo do Banco Mundial sugeriam que esta atividade criminosa gerava aproximadamente receitas entre US$10 e US$15 bilhões por ano em todo o mundo (Goncalves, Panjer et al. 2012). Dados de estudos mais recentes, de 2014, apontam para valores ainda maiores, nos quais apenas a indústria madeira ilegal movimenta US$ 100 bilhões por ano e que a extração ilegal representa 30% da atividade de comércio de madeira no mundo (Global Initiative against Transnational Organized Crime 2014). Esses dados indicam que os governos e as sociedades, principalmente dos países em desenvolvimento da Região, enfrentam desafios muito concretos diante do aumento do poder dos agentes não estatais que atuam nos principais mercados ilícitos globais. Há um enorme acervo de informações disponíveis on line sobre todas as atividades ilícitas analisadas acima que podem e devem ser exploradas no planejamento das ações de investigação, operativas, persecução e preventivas contra o crime organizado. Nosso objetivo foi o de apresentar a morfologia geral do problema e induzir uma reflexão sobre as conexões existentes entre as diversas atividades ilícitas com o intuito de impulsionar o debate sobre as políticas públicas de resposta ao fenômeno, o que faremos a seguir. 26 7. CRIME ORGANIZADO E TERRORISMO Perguntas-chave para a seção: Como o crime organizado e o terrorismo estão ligados? Quais são as diferenças entre esses fenômenos? O terrorismo, cuja classificação é variada, apresenta diversos pontos de convergência com as organizações criminosas na forma de organização, uso das mesmas cadeias logísticas e a utilização das redes de lavagem de dinheiro; e pontos divergentes como a motivação ideológica, a finalidade política e o uso da violência. O caráter político do terrorismo é o ponto central para o enfrentamento da questão e vem sendo abandonado como elemento caracterizador, tendência observada desde 1919 com a Convenção de Prevenção e Punição do Terrorismo editada pela Liga das Nações em 1919 e destinada ao combate dos movimentos anarquistas do início do século XX, desde então as medidas antiterrorismo tendem a afastar tal característica, como pode ser observado na postura adotada pela Organização das Nações Unidas que identifica o terrorismo como qualquer ato intencional voltado a causar a morte ou grave lesão física a civis ou não combatentes, quando o propósito desse ato, pela sua natureza ou contexto, seja intimidar a população ou compelir um governo ou uma organização internacional a fazer ou se abster de fazer algum ato. No mesmo sentido é a Convenção Interamericana Contra o Terrorismo, no âmbito da Organização dos Estados Americanos OEA, ao estabelecer a inaplicabilidade da exceção por delito político, e reafirma a necessidade na adoção de medidas para a supressão do financiamento ao terrorismo. Os países da Região têm paulatinamente aumentado sua adesão aos instrumentos internacionais contra o terrorismo, particularmente em matéria de financiamento. As dificuldades que os países da Região enfrentam em promover ações coordenadas contra o terrorismo, tanto no plano doméstico quanto internacional, são analisadas em profundidade no relatório do Grupo de Ação Financeira, o GAFI. Segundo o documento, há importantes deficiências nas informações disponíveis em todas as instituições envolvidas com o processo criminal e que atuam na prevenção à lavagem de dinheiro. 27 Os Estados não conseguem alcançar o mínimo de consenso sobre as ações práticas que precisam ser desenvolvidas para conter o risco de atentados terroristas e para a construçãode um modelo de cooperação entre agências capaz de gerenciar esses riscos de forma permanente e eficaz. São conhecidas as enormes facilidades operacionais para a atuação de organizações terroristas na Região, como a extensa e crescente presença do crime organizado e as fronteiras porosas por onde fluem continuamente drogas, armas e carros roubados. Embora o crime organizado e o terrorismo sejam fenômenos distintos, conectam-se constantemente no uso comum da mesma cadeia logística de serviços ilícitos. A literatura acadêmica mais aplicada que se dedica a avaliar as respostas dos governos ao terrorismo destaca o desafio da coordenação entre agências e o controle de fatores facilitadores (Clutterbuck, 1986; Forst, 2009; English, 2009). A agenda derivada dessas reflexões pode ser resumida nos seguintes cinco etapas: (1) identificar fatores causais e dos agentes facilitadores em cada contexto específico (redes de apoio, ativos financeiros utilizados, relações com o crime organizado, etc.); (2) evitar a militarização excessiva da resposta; (3) reconhecer a inteligência como o elemento mais importante para orientar as ações de contraterrorismo; (4) desenvolver uma infraestrutura legal que respeite as características dos regimes jurídicos construídos democraticamente; (5) coordenar as medidas preventivas de segurança, controle de ativos e segurança cibernética. Os grupos terroristas organizam-se como empresas criminosas, interessadas na criação ou na exploração de um ambiente operacional hospitaleiro. Nenhuma ação terrorista pode ser realizada sem uma intensa cooperação entre grupos e com fornecedores de bens e serviços logísticos, quase sempre de natureza ilícita. As armas utilizadas nos atentados de novembro de 2015 em Paris, por exemplo, foram compradas pelos terroristas, segundo os resultados das investigações já divulgados, de dealers que atuam no mercado ilícito de armas na Europa. O monitoramento dos recursos que sustentam financeiramente os grupos terroristas é outra frente que demanda atenção e pode ser considerada de grande complexidade pela forma como o ilícito e a economia formal se articulam. Do ponto de vista do controle, o ponto crítico é garantir a atuação interdisciplinar (policiais, fiscais, aduanas/migração, promotores, economistas e analistas de risco) e uma forte rede de colaboração público/privada para a construção de indicadores que permitam monitorar os fluxos financeiros suspeitos (Keene, 2012). 28 Para que esse monitoramento seja efetivamente viável, é crítico levar em consideração a transnacionalidade desse fenômeno, o que, impõe a ampliação da atuação dos órgãos nacionais para além das suas fronteiras, bem como a criação de instituições internacionais e regionais como o GAFI. O caso de como a Europa tem lidado com o terrorismo nos últimos anos, principalmente desde os ataques em solo americano em 2001, é relevante para entender como uma agência de segurança que trabalhou principalmente com a criminalidade organizada transnacional teve de mudar conceitos e procedimentos com a finalidade de combater também o terrorismo. Por conseguinte, o caso da Agência Europeia da Polícia – Europol – merece ser analisado. A crescente atividade terrorista na Europa - como os atentados em Madrid (2004), Londres (2009) e Paris (2015) testou as medidas então existentes e exigiu a adoção de novas providências para enfrentar o terrorismo de uma forma mais adequada. A criação do Centro Europeu de Contraterrorismo (ECTC), em 25 de janeiro de 2016, visando abordar especificamente as questões relacionadas ao terrorismo, foi uma resposta importante para a situação atual. Através desse centro, a Europol passou a se concentrar, desde então, principalmente em combatentes terroristas estrangeiros, tráfico de armas de fogo ilegais e combate ao financiamento do terrorismo.27 O enfoque nesses três elementos, principalmente nas ameaças terroristas externas, retrata a compreensão de que a Europa está enfrentando agora a quarta geração de terrorismo – da natureza religiosa, mais precisamente aquele de inspiração islâmica –, diferentemente do que foi enfrentado nas últimas décadas.28 Apesar de algumas mudanças pontuais em determinados protocolos, no entanto, o ECTC continua confiando em uma responsabilidade coletiva envolvendo instituições diferentes como a aplicação da lei, inteligência e outros. Tal condição o coloca em uma abordagem institucionalista neoliberal de questões de segurança internacional, características da política e das políticas públicas atuais da União Europeia.29 27 Avramópoulos, D. Launch of Europol's European Counter-Terrorism Centre. Amsterdam, 2016. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/MEX_16_155. 28 Rapoport, D. The Four Waves of Modern Terrorism. In: A. Cronin & J. Ludes, eds. Attacking Terrorism. Washington: Georgetown University Press, p. 46–73, 2004. 29 Smith, E. The traditional routes to security. In: P. Hough, S. Malik & A. P. B. Moran, eds. International Security Studies - theory and practice. Abingdon: Routledge, pp. 12-30, 2015. 29 Contudo, a acentuada face política do ECTC acarretou certa dificuldade da EUROPOL em realizar atividades operacionais. As falhas operacionais dessa instituição têm sido relacionadas à disparidade entre a necessidade técnica e a conveniência política de executar determinadas operações. Um dos exemplos desse cenário que podem ser mencionados é o ataque terrorista ocorrido em Berlim em dezembro de 2016, ocasião em que o ECTC chegou a informar às autoridades alemãs sobre as atividades de grupos terroristas com antecedência, mas que não contou com a adoção de medidas eficazes por parte das autoridades alemãs para impedir o atentado.30 Este caso deixou claro como a dimensão política de instituições de segurança internacional pode dificultar a eficácia de agências policiais no campo operacional. Os domínios de ação do ECTC, para demonstrar quais são as prioridades da Europol sobre o terrorismo, merecem também ser verificados. Estes campos são31 (Wainwright, 2016): 1. Melhorar o nível de eficácia do intercâmbio de informações entre as autoridades nacionais da UE. 2. Apoiar grandes investigações de contraterrorismo. 3. Estabelecimento de uma equipe de ligação conjunta que envolva as autoridades operacionais dos Estados-Membros permanentemente. Analisando estas questões, pode-se compreender que, ao melhorar o intercâmbio de informações, a Europol poderia associar os dados existentes entre grupos terroristas e atividades criminosas, o que poderia aprimorar as condições de prevenção e antecipação quanto às ações desses grupos. Além disso, a equipe de ligação conjunta apresenta-se como uma medida importante dentre os esforços no sentido de prover análise da informações, com o objetivo de permitir que as autoridades dos Estados envolvidos tenham acesso a relatórios de inteligência mais precisos e abrangentes.32 30 Wainwright, R. Europol chief calls for more online powers for police [Entrevista]. Disponível em: https://www.france24.com/en/20170211-talking-europe-europol-rob-wainwright-cybersecurity- terrorism-counterterrorism-police. 31 Wainwright, R. Europol’s role in the fight against Organised Crime and Terrorism [Palestra]. University College London, 2 mar 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/hashtag/ucleuropol17 32 Forum Europe, 2016. The EU Security, Migration and Borders Conference. Disponível em: https://eu-ems.com/speakers.asp?event_id=2287&page_id=4666 http://www.france24.com/en/20170211-talking-europe-europol-rob-wainwright-cybersecurity- http://www.youtube.com/hashtag/ucleuropol17 30 A criação de ECTC mostra que a perícia da Europol no combate ao crime organizado e a expansão das suas capacidades de inteligência não foram suficientes para combater o terrorismo nestanova era, tampouco foram eficazes para enfrentar as tendências do terrorismo na Europa. Este novo gabinete pode ser compreendido como a resposta Europeia para a tão aguardada cooperação a nível operacional e para um nível ideal de intercâmbio de inteligência entre Estados.33 Entretanto, é relevante notar que a Europol pôde adaptar sua expertise e conhecimento advindo do combate à criminalidade organizada transnacional para desenvolver novas estratégias de contraterrorismo, tendo em conta o nexo já verificado entre estes dois elementos, observados em diferentes partes do mundo.34 35 Tais experiências são válidas para se anteverem tanto as dificuldades quanto as oportunidades que provavelmente se apresentarão a profissionais e a instituições de outras partes do globo que trabalham no mesmo campo. Em que pese a realidade Sul-americana e Europeia serem distintas em muitos aspectos, as observações quanto aos resultados das estratégias empregadas no enfrentamento ao crime organizado transnacional e ao terrorismo na Europa, sem dúvida, são de grande valia e de suma importância ao desenvolvimento das políticas implementadas na América do Sul, mais especificamente na Tríplice Fronteira, dadas suas peculiaridades, como se tem abordado neste curso. 33 European Police Office. European Union Terrorism Situation and Trend Report. The Hague: European Police Office, 2016. 34 Makarenko, T. & Mesquita, M., 2014. Categorising the crime–terror nexus in the European Union. Global Crime, 15(3-4), pp. 259-274. 35 Hutchinson, S. & O’malley, P., 2007. A Crime–Terror Nexus? Thinking on Some of the Links between Terrorism and Criminality. Studies in Conflict & Terrorism, 30(12), pp. 1095-1107. 31 8. COMENTÁRIOS FINAIS Perguntas-chave para a seção: Quais são os resultados esperados das políticas de enfrentamento ao crime organizado? Como as instituições de diferentes países cooperam? O enfrentamento operacional do crime organizado na Região e a mensuração do impacto das iniciativas em curso dependem fundamentalmente de um esforço de integração até aqui inédito entre agentes públicos situados em diferentes níveis de governo. Embora as polícias de vários países da região tenham demonstrado capacidades de reduzir as taxas dos crimes mais graves de forma significativa ao longo da última década (como foi o caso das principais cidades dos EUA, Colômbia e de alguns estados do Brasil), resta o desafio representado pela presença e pelo aumento da atuação do crime organizado como um do principais desafios para a próxima década. Uma das tarefas práticas mais urgente nessa área envolve a construção de sistemas de informação compartilhados e o desenho de indicadores que permitam minimamente avaliar a incidência do problema e os resultados obtidos com as políticas adotas. Em segundo lugar, o enfrentamento dos reflexos das atividades ilícitas globais impõe aos países a necessidade de atuar internacionalmente em prol de uma agenda que transcenda os esforços hoje limitados à produção de normas internacionais, mas que avance na direção do desenvolvimento de estruturas capazes de viabilizar um novo modelo de cooperação internacional. Os principais documentos internacionais relacionados com os mercados ilícitos globais, notadamente as Convenções de Viena contra o Tráfico de Drogas, de Palermo contra o Crime Organizado Transnacional e de Mérida contra a Corrupção, reconhecem a cooperação como fundamento, mas também a cooperação como instrumento essencial para a efetivação dos compromissos. No entanto, esses mesmos documentos não são acompanhados das respectivas preocupações relacionadas à implantação e ao monitoramento da execução dos compromissos assumidos. 32 Nesse sentido, deve-se considerar que a expressão “cooperação jurídica internacional”, a qual inclui a ação das polícias, abrange outros termos como assistência, ajuda ou auxílio mútuo internacional, todas equivalentes entre si. A amplitude da expressão abrange o intercâmbio não somente entre órgãos judiciais, mas também entre órgãos judiciais e administrativos dos Estados – notadamente as instituições policiais. Importante destacar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, dispõe no seu preâmbulo, que o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais da pessoa e a observância desses direitos e liberdades têm como base a cooperação dos Estados. Nesse ponto cabe destacar que a proteção dos direitos humanos não pode ser considerada um obstáculo para a cooperação jurídica internacional, mas o caminho para reforçar as normas jurídicas, de modo que os Estados devem fazer prevalecer as suas obrigações de respeito aos direitos humanos, recusando a assistência, impondo condições ao outro Estado envolvido, ou buscando entendimento quanto ao interesse das pessoas envolvidas. Isso significa dizer que no processo de elaboração de novos instrumentos de cooperação internacional em matéria penal, os Estados devem atentar para a definição e a proteção dos direitos e dos interesses dos indivíduos nos procedimentos para a aplicação destes instrumentos. Em outras palavras, quanto maior o esforço de incorporação e concretização do padrão normativo universal dos direitos humanos, menor a resistência, maior a fluidez e a segurança no relacionamento. A transnacionalidade do crime organizado e seu crescente impacto na segurança da região exigem uma resposta coordenada dos países. Essa resposta envolve a cooperação por meio de marcos jurídicos homogêneos, a capacidade de produzir e trocar informações sobre a ação do crime organizado, a capacidade de desenvolver inteligência prospectiva para antecipar os desenvolvimentos que o crime representa permanentemente e a capacidade de cooperar e coordenar investigações entre diferentes jurisdições. A partir do mapeamento apresentado, é possível reconhecer nos esforços de cooperação a principal tendência no enfrentamento dos mercados ilícitos globais. Do ponto de vista dos interesses ilícitos, a expansão das economias no plano global e o crescimento além das fronteiras da soberania nacional tendem a acarretar proveitos seguros, diversidade de grupos e produtos, corrupção, cooptação do poder político, a infiltração nos negócios lícitos, a formação de alianças criminosas estratégicas e a cooperação criminal. 33 O impacto das atividades ilícitas é particularmente grave na região das Américas onde há um processo avançado de captura das instituições de justiça criminal pelo crime organizado. Até a década de 1990 o problema estava circunscrito a um grupo de países relativamente pequeno na região e na década atual é possível reconhecer a presença intensa do crime organizado em todo o hemisfério em atividades que vão do cultivo de coca e maconha à intermediação financeira. Tendências recentes indicam a retomada da tendência de alta do consumo nos mercados consumidores da região, como apontado acima, e o aumento da área cultivada, depois de mais uma década de tendência de queda. Da mesma forma que as alianças e as fusões são frequentes no mundo corporativo lícito, são igualmente comuns entre as organizações criminosas transnacionais. Similarmente, como empresas, as organizações criminosas tendem a incluir nas suas divisões de trabalho especialistas em lavagem de dinheiro, segurança e transporte, como também profissionais especializados como químicos e engenheiros para regular a quantidade e o volume dos produtos da droga. Em resumo, as empresas criminosas estão interessadas na criação de um ambiente operacional hospitaleiro, o que significa uma pressão direta de corrupção sobre os órgãos do Estado, incluindo policiais com o objetivo de neutralizar a capacidade de controle desses órgãos do Estado, caso não se supere o déficit de cooperação, articulação e coordenação.Nesse sentido, a cooperação entre os órgãos que integram o sistema de justiça criminal de forma direta ou indireta, bem como entre estes e o setor privado, tanto no plano interno como internacional, ao mesmo tempo em que se consolida como o mecanismo de governança que assegura mais eficiência no enfrentamento dos mercados ilícitos globais, impõe a construção e o desenvolvimento de modelos estruturantes que possibilitem uma gestão mais qualificada do problema. O que significa reconhecer que a solução de longo prazo para o enfrentamento ao crime organizado transnacional consiste na redução da demanda de produtos e serviços que o financiam, mas no curto prazo os esforços precisam estar direcionados à prevenção e o julgamento do crime organizado l como medidas necessárias para desmantelar as operações do crime organizado. Da mesma forma, esforços de prevenção ao crime são necessários para ampliar o apoio às vítimas vulneráveis e exercer a pressão contínua sobre criminosos e seus produtos, para reduzir as oportunidades disponíveis e elevar o custo para as atividades criminosas organizadas ao redor do mundo (ALBANESE, 2011). 34 Em síntese, o aumento da atuação dos órgãos policiais nacionais para além das fronteiras nacionais indica claramente a necessidade de o aprofundamento da cooperação de instituições internacionais e regionais, de instituições polícia e de justiça criminal que sustentem as novas dinâmicas de cooperação trans jurisdicionais que constituem a melhor aposta democrática contra a ameaça do crime organizado na Região. 35 BIBLIOGRAFIA ALBANESE, J.S., 2011. Transnational Organized Crime. In: M. NATARAJAN, ed, International Crime and Justice. New York: Cambridge University Press, pp. 233. BAILEY, J. and GODSON, R., eds, 2000. 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