Prévia do material em texto
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autoria: Maria Gisele Canário de Souza Welder Lancieri Marchini CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz Prof.a Tathyane Lucas Simão Prof. Ivan Tesck Revisão de Conteúdo: Neivor Schuck Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2017 Ficha catalográfi ca elaborado pela editora do grupo UNIASSELVI – Indaial. 220.07 S719E Souza, Maria Gisele Canário de Elementos e fundamentos bíblicos / Maria Gisele Canário de Souza; Welder Lancieri Marchini. Indaial: UNIASSELVI, 2017. 153 p. : il. ISBN 978-85-69910-76-3 1.Bíblia – Estudo e Ensino. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. Maria Gisele Canário de Souza Welder Lancieri Marchini Mestre em Teologia com ênfase em exegese bíblica (Antigo Testamento) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Antigo e Novo Testamento pelo centro Bíblico Verbo. Possui graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP). É graduanda em geografi a pela Universidade Cruzeiro do Sul - SP. Atualmente é assessora do Centro Bíblico Verbo e Tutora do curso de Bíblia online. É membra do grupo de pesquisa Tradução e Interpretação do Antigo Testamento (TIAT). Doutorando em Ciência da Religião (PUC-SP) onde pesquisa a recepção do Concílio Vaticano II pela Igreja no Brasil, mestre pela mesma instituição, com pesquisa sobre os impactos da metrópole em ambiente urbano. Pós-graduado em teologia pastoral, com ênfase na teologia da missão (ITESP), bacharel em Filosofi a (PUC-Campinas) e em Teologia (ITESP). É professor convidado na Graduação em Teologia do ITF (Petrópolis), na pós-graduação em Ciência da Religião da PUC (São Paulo) e na pós-graduação Religião e Cultura na UNIFAI (São Paulo). Trabalha como editor teológico na Editora Vozes. É autor do livro “Paróquias urbanas: entender para participar” pela Editora santuário (2017) e do livro de catequese com adolescentes “Perseverando com Jesus” pela Editora Vozes (2015). pela Igreja no Brasil, mestre pela mesma instituição, com pesquisa sobre os impactos da metrópole em ambiente urbano. Pós-graduado em teologia pastoral, com ênfase na teologia da missão (ITESP), bacharel em Sumário APRESENTAÇÃO ....................................................................01 CAPÍTULO 1 Estudo da Bíblia .......................................................................9 CAPÍTULO 2 O Antigo Testamento e sua História ...................................21 CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 4 O Exílio, e a Volta do Exílio Decretada pelo Império Persa .........................................................................63 Segundo Testamento ..........................................................109 APRESENTAÇÃO O estudo do livro mais vendido do mundo, cerca de seis bilhões de cópias, a Bíblia, passou por uma série de transformações e descobertas ao longo da história. Podemos imaginar que esse processo de leitura e conhecimento não é tão simples, pois existem inúmeras formas de interpretá-la. Com essa disciplina, Elementos e Fundamentos Bíblicos, almejamos que você seja introduzido nesse processo de leitura e aprendizado. No primeiro capítulo apresentamos alguns conceitos que desmistificam formas de leituras usuais e muito conhecidas no universo religioso cristão. Com isso surgem algumas ferramentas que são utilizadas no estudo da exegese que poderão sistematicamente nos apresentar algumas técnicas para a leitura da Bíblia. Com os conceitos apresentados no primeiro capítulo, à guisa de introdução da disciplina, no segundo capítulo iremos conhecer brevemente o contexto histórico, político e ideológico, que nortearam as narrativas bíblicas, que foram escritas por muitos autores. Para isso é fundamental conhecermos um pouco mais sobre a história de Israel. Teremos uma breve apresentação que nos introduz à leitura dos principais livros do Primeiro Testamento. Nessa mesma perspectiva seguimos com o conhecimento da história de Israel, no terceiro capítulo, porém, iremos perceber com isso, que os relatos na Bíblia não são escritos de maneira cronológica, metaforicamente podemos dizer que se trata de uma colcha de retalhos, haja vista que não se trata de um livro só, mas de muitos livros. Feito o estudo do Primeiro Testamento chegamos a algumas ferramentas que nos ajudarão na leitura da coletânea de livros que compõe o Segundo Testamento. Essa parte dos estudos muito interessa aos cristãos, pois são livros que narram a história de Jesus e dos seus seguidores, sob a ótica da segunda geração dos seus discípulos. Nesse último capítulo teremos conhecimento dos evangelhos sinóticos, bem como suas similaridades e diferenças e o porquê de tantas possíveis arbitrariedades. Consequentemente a isso conheceremos um pouco mais sobre a vida do Apóstolo Paulo, o responsável pela propagação da vida de Jesus aos confins do Império Romano. Pessoas que não fizeram parte do convívio de Jesus escutaram falar sobre ele a partir dos relatos de Paulo, seja pessoalmente ou por meio de cartas. Esperamos que esse estudo ajude você a buscar outras ferramentas que possam ser úteis na leitura da Bíblia. Um livro em que suas narrativas jamais podem fundamentar ou legitimar realidades para a qual não foram escritas. Não podemos esquecer que os personagens das narrativas bíblicas não sabiam que esse livro seria lido por nós, hoje, após mais de dois mil anos e que, portanto, uma leitura fora de contexto pode ser um grande equívoco. Os autores. CAPÍTULO 1 Estudo da Bíblia A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Compreender as diversas formas de leituras da Bíblia, bem como suas perspectivas teológicas. Conhecer os principais métodos de estudos da Bíblia e saber utilizá-los na leitura bíblica. Analisar os livros bíblicos em perspectiva literária e narrativa, a partir da memória e da religiosidade, superando leituras fundamentalistas. 10 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS 11 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Como Lemos a Bíblia? Você sabia que existem muitas maneiras de ler a Bíblia? Pois é! Você pode se perguntar como isso é possível, se a Bíblia é uma só e se ela foi inspirada e escrita pelo próprio Deus. Comecemos nos atentando para alguns pontos impor- tantes para compreendermos esses fundamentos, que podem nos ajudar na hora da leitura. No entanto, há tantas formas de leituras e interpretações que chegam a confundir os cristãos leitores, que em muitas narrativas até param a leitura e se perguntam: Mas, então, como é que se lê a Bíblia? Qualquer interpretação da Bíblia que fi zermos trará consequências di- retas na relação que temos com Deus e com todas as pessoas. Continuemos! Você já deve ter percebido que existem diferentes maneiras de ler a Bíblia e que, de acordo com essa leitura, conceberá diferentes imagens de Deus no seu pensamento. Algumas pessoas descobrem na Bíblia um Deus valente, ameaçador, bravo, justiceiro; outros acham um Deus que perdoa, amo- roso, amigo e que propõe um projeto de vida a ser seguido; alguns se revoltam contra o Deus da Bíblia, outros se apaixonam e se comprometem com ele. Há, no entanto, pessoas que leem a Bíblia e se tornam rancorosas, juízes de todo mundo, usando a palavra de Deus como arma de acusação; outras fi cam esperando que Deus resolvatodos os seus problemas por meio de um milagre imediato; existem ainda aqueles que se desligam da vida concreta, achando que quanto mais distante do mundo, mais perto estarão de Deus. Dessa forma, todos eles usam a Bíblia para justifi car suas próprias opiniões, muitas vezes aplicando o texto da forma como o entendem. Às vezes, nem percebem que a sua forma de ler e interpretar a Bíblia está produzindo uma ideia de Deus muito esquisita ou até contrária à caridade. A Bíblia – Palavra de Deus – chega até nós, nas nossas igrejas e/ ou comunidades, às pessoas de fé, em forma de literatura. É importante percebermos que na Bíblia Deus faz uso da linguagem humana para ser compreendido. Nesse sentido, os leitores da Bíblia se veem desafi ados a identifi car a Palavra de Deus, revestida com palavras humanas. Qualquer interpretação da Bíblia que fi zermos trará consequências diretas na relação que temos com Deus e com todas as pessoas. Os leitores da Bíblia se veem desafi ados a identifi car a Palavra de Deus, revestida com palavras humanas. 12 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Para aprofundar-se mais nos vários métodos de leitura bíblica, de cunho mais pastoral, deixamos algumas dicas de leitura: 1- Equipe nacional da dimensão bíblico-catequética.Como nossa Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995. 2- Serviço de animação bíblica. Iniciação à leitura da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2007. 3- PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998. 4- ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982. Um dos grandes desafi os enfrentados pelas igrejas e/ou comunidades cristãs consiste em captar a mensagem da salvação nas entrelinhas de um texto. Essa tarefa é, ao mesmo tempo, fácil, mas complexa. Fácil porque, por meio de traduções confi áveis, podemos ter acesso aos textos bíblicos também confi áveis. Difícil e complexo, por se tratar de um texto escrito num horizonte cultural e linguístico muito distinto da nossa realidade atual. Para entendê-lo são necessárias ferramentas que possibilitem o acesso à mensagem veiculada. Em outras palavras, só é possível chegar ao sentido aproximado do texto num intenso processo de interpretação. As narrativas bíblicas foram escritas para serem lidas e, por conseguinte, interpretadas. Ler é interpretar! Interpretar é ler! Quem se aventura a ler a Bíblia sem interpretá-la não entenderá o que lê. Nesse sentido, quem interpreta produz um tipo de leitura que poderá assumir variadas roupagens, dependendo do intérprete e seus contextos. A cada leitura feita surgem diversas fontes de sentidos. É claro que sem leitores e leitoras intérpretes, pessoas, comunidades-igrejas, as narrativas bíblicas permaneceriam letra morta. São os leitores que dão vida ao texto e fazem com que a narrativa se torne Palavra de Deus. Textos lidos sem o esforço da interpretação tornam-se materialidade da letra, é a fragilidade das leituras fundamentalistas e historicistas. Ler é interpretar! Interpretar é ler! 13 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 “A palavra de Deus é muito mais que o texto escrito. Ela é, antes de tudo, o texto vivenciado” (RODRIGUES, 2004, p. 13). Entenda por fundamentalismo a “leitura ao pé da letra”, ou seja, a verdade corresponde ao conteúdo das palavras. Já historicista é a leitura que considera “histórico” tudo o que a Bíblia relata, como se tratasse de um livro de crônicas. Por exemplo, o relato da criação Gn 1-2 se tem na conta de descrição científi ca do que aconteceu no começo de tudo. Resulta nas inúteis discordâncias entre fé-ciência promovidas por certos defensores da Bíblia. Uma das maneiras de desconstruir a leitura fundamentalista é perceber que os textos bíblicos são repletos de metáforas. A metáfora requer uma interpretação, pois vai além do sentido literal. Leia o texto de Mt 18,9 e busque perceber que Jesus não está falando de maneira literal, mas metafórica. A leitura fundamentalista da Bíblia carrega uma pobreza, por ser incapaz de adentrar no mundo do texto. Antes, os leitores fundamentalistas dão-se satisfeitos por transitarem na superfície dos textos bíblicos. Os fundamentalistas e os historicistas se enganam ao se autodenominarem conhecedores fi éis da Palavra de Deus, quando, de fato, movem-se em um universo bíblico fruto de dogmatismos e fanatismos, sem qualquer relação com o que a literatura bíblica pretende ser, desde as mais remotas origens de sua redação. Por causa desses motivos é que vamos aprender a ler a Bíblia de forma diferente. E para isso existem alguns métodos científi cos: sincrônico e diacrônico – bem como suas especifi cidades – e leituras que podem nos ajudar. Veja no próximo item, após a atividade proposta, os métodos mais utilizados pelos exegetas atuais. 14 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Métodos DiacrÔnicos e SincrÔnicos Entende-se por método um conjunto de procedimentos utilizados para examinar, com a maior objetividade possível, um dado. O método se distingue de abordagem, porque esta está mais inclinada ao ponto de vista a partir do qual é feita a leitura e interpretação de um texto. (LIMA, 2014). No fundo, as diferentes abordagens escolhem um método, sendo caracterizadas pela perspectiva e escopo que assumem. Os chamados métodos diacrônicos oferecem maior atenção ao crescimento dos textos e ao contexto em que o texto foi escrito, já os sincrônicos priorizam a forma fi nal do texto. Os métodos diacrônicos são reunidos no método histórico crítico, composto por diversas etapas, cada qual com princípio e procedimentos próprios. Integradas, estas etapas visam esclarecer o texto no momento de sua produção artística (LIMA, 2014). Veja o que a exegeta Maria de Lourdes Lima fala a respeito do método histórico crítico: A multiplicidade, por vezes contraditória, dos resultados das análises diacrônicas, o caráter hipotético de suas reconstruções, a aridez de sua argumentação e resultados, bem como a difi culdade de falar para a época contemporânea, que motivaram, em grande parte, o descrédito para com o método histórico crítico, conduziram a repensar a metodologia exegética. Estas se concretizaram, por parte de algumas correntes, no abandono completo da diacronia, com a consequente opção por uma leitura exclusivamente sincrônica (LIMA, 2014, p. 65). No caso do método sincrônico, os mais divulgados são a análise retórica (valoriza a forma do texto), a análise narrativa (o papel do leitor na compreensão do signifi cado do texto), a análise semiótica (valorização das estruturas linguísticas) e, nas últimas décadas, a pragmático-linguística (o texto como elemento de comunicação). Cada qual dessas análises possui uma metodologia própria, que visa esclarecer o texto em sua visão canônica (ZAPELLA, 2014). 15 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Em um ou outro método existem limitações, muitos dos exegetas atuais se utilizam dos dois métodos, reciprocamente, para fazer as suas análises. Dessa forma, os dois tipos de metodologias não se contrapõem, mas se complementam. A exegese não pode se limitar em falar do passado do texto, inclusive em suas possíveis etapas redacionais, mas deve chegar até sua forma canônica, valorizando-a como Palavra de Deus que quer comunicar, sem pretender que o mais antigo seja o melhor, ou o mais autêntico. Por outro lado, um estudo estritamente sincrônico perderia a dimensão temporal, histórica, e cairia no perigo do fundamentalismo. O que é exegese? De acordo com o autor Patrick Dondelinger (1998, p. 698), a exegese: É um conjunto de procedimentos destinados a estabelecer o sentido de um texto. Têm-se necessidade dela cada vez que um texto suscita um interesse durável [...]. O texto não necessita dela no momento de sua composição: os autores ou redatores trabalham para serem perfeitamente compreendidos. Não é tampouco um assunto privado entre o texto e um leitor individual, permitindo uma interpretaçãosem limites. É o produto das necessidades de uma comunidade para a qual o texto é útil ou precioso. Tem particular importância numa comunidade religiosa que funda suas doutrinas, suas normas morais, sua espiritualidade em textos que crê inspirados. Essa comunidade terá ao mesmo tempo o cuidado de elaborar procedimentos que permitam descobrir no texto insuspeitados sentidos e aplicações, e controlar os tipos de exegese capazes de infl uenciar as crenças e a conduta de seus membros. Estudos de história dos estilos literários têm mostrado (RODRIGUES, 2004) que muita coisa na Bíblia não é exatamente o que estávamos acostumados a pensar que fosse (mostram que muita coisa não aconteceu de fato daquele jeito como está escrito). Quando esses estudos começaram, muita gente se assustou, pensando que ia acabar com a sua fé. No entanto, as pesquisas históricas mostram que os fatos referentes à origem do povo de Deus foram escritos muitos séculos depois; descobriu-se que há textos formados com pedaços de outros textos, escritos por gente de ideias e épocas diferentes: isso explica por que o mesmo fato, às vezes, é contado duas vezes, com detalhes que divergem. 16 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Para entender mais sobre a leitura bíblica a partir do universo metafórico, leia: MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infi nita. A Bíblia e a sua interpretação. Universidade Católica de Pernambuco; Paulinas: Recife; São Paulo, 2015. O estudo dos diversos estilos literários nos ajuda a entender que certos textos são poéticos e não podem ser interpretados como uma verdade científi ca. Isso, por exemplo, aparece no poema dos seis dias da criação (Gn 1,1-2,4), que é escrito, possivelmente, num contexto de forte sofrimento no período exílico, se trata de um convite para louvar a Deus, mas não obriga ninguém a crer que o mundo foi feito em seis dias. A Bíblia e o mundo humano não se separam, pois a Palavra de Deus veste as roupas do jeito humano de falar; é comunicada por intermédio do povo e dos sentimentos humanos de quem tinha a tinta nas mãos e escrevia o texto bíblico. O fato de o Espírito Santo inspirar a escrita, essa realidade não apaga a intencionalidade do autor, que vive os confl itos humanos, os quais podem infl uenciar diretamente os seus escritos, tanto positiva como negativamente. O povo sabia ler a presença de Deus nos fatos corriqueiros da sua história de vida. Por isso, a Bíblia, essa coleção de livros, não contém só orações, bons conselhos, frases edifi cantes. Nela estão presentes fatos da vida, com tudo que sabemos que tem a vida: heroísmo e violência, generosidade e pecado, sangue, guerra, casos de família, machismo, preconceitos, lealdade e traição, interesses econômicos e políticos e tantas outras situações. A Bíblia nos revela que Deus é a verdade! Mas ela também revela quem somos nós: humanos! Propensos ao amor, às dores, virtudes e fraquezas. A Bíblia pode ser entendida como um espelho, que refl ete a nós mesmos, com isso ela nos ajuda a discernir sobre nossas defi ciências e capacidades. E nos aponta para um mundo cheio de esperança, com possibilidades de transformações inimagináveis. Duas atitudes podem nos levar a uma falsa ideia de Deus e da encarnação: dar valor absoluto a tudo o que está escrito literariamente e ignorar os condicionamentos humanos e literários do texto. Duas atitudes podem nos levar a uma falsa ideia de Deus e da encarnação: dar valor absoluto a tudo o que está escrito literariamente e ignorar os condicionamentos humanos e literários do texto. 17 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Você já deve ter se deparado com alguma situação em que pessoas se dirigem até você querendo provar ou impor alguma atitude com a citação de um versículo isolado. E se você questionar essa forma de leitura, imediatamente será acusado de não possuir fé, e não respeitar a Palavra de Deus. E afi rmam: “Não tem de interpretar nada! É Palavra de Deus! Tem que ser aceita como está! Em coisa sagrada não se mexe!” Infelizmente, existem pessoas que pensam que por se tratar da Palavra de Deus, cada parte da Bíblia tem que ser aceita como verdade absoluta, e não exige possibilidade nenhuma de argumentação. Contudo, é importante saber, você que é apaixonado pelos escritos bíblicos, que a Palavra de Deus é o refl exo daquilo que o povo sabia, sentia e vivia naquela época. Um exemplo: No livro de Levítico, o morcego – que é mamífero – é classifi cado como uma ave; na visão do povo da Bíblia, a Terra era o centro e o Sol é que girava em volta do planeta. Nesse sentido, ninguém é obrigado a discutir com os cientistas, só porque essas coisas estão escritas na Bíblia. Deus é tão magnífi co que permitiu que o povo se expressasse de acordo com as teorias do momento histórico em que viviam. Deus nunca permitiu que o seu povo desse um passo maior do que as próprias pernas. Em muitas situações, o povo atribui a Deus seus próprios sentimentos: que podem conter raiva, alegria, tristeza, indignação. Por exemplo, há vários textos que falam de violência, com muito sangue, e o povo dizendo que a morte dos inimigos é a vitória de Deus. Vivendo numa cultura violenta, o povo achava que Deus queria isso. Compreendiam Deus por meio dos sentimentos que estavam acostumados no dia a dia. Aliás, nós também vivemos numa sociedade violenta, não?! Sentimos que Deus queira a destruição dos seus fi lhos? Por outro lado, há situações que caberiam em determinadas épocas, mas que hoje não se aplicam mais. Por exemplo, no tempo da Bíblia (Ex 22, 18-26) não se contestava a escravidão, no máximo se recomendava um tratamento mais humano, existiam até leis que os protegessem; isso, é claro, não pode justifi car que um religioso cristão, nos dias atuais, fi que indiferente diante de situações de escravidão ou de falta de respeito ao direito de quem trabalha. O teólogo que se propõe a estudar a Bíblia deve ser fi el à Igreja, trabalhando com competência, para ajudar a própria Igreja a aprofundar sua compreensão da Palavra de Deus. É necessário também dar aos fi éis e às lideranças comunitárias ferramentas que os ajudem a ler a Bíblia com o olhar na realidade e no período bíblico, e não o contrário, o que poderia gerar equívocos desastrosos. A Palavra de Deus correria o risco de ser descaracterizada! E aquele desejo de fazer valer a vontade de Deus poderia surtir um efeito contrário. 18 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS As Igrejas cristãs são gratas pelo trabalho dos especialistas que ajudaram e ajudam a entender o texto bíblico de uma forma diferente, ajudando a superar a leitura literal e adentrando a leitura que expresse o sentido que estava presente no período em que o texto foi escrito. Ser repetitivo, e querer que o texto fale à nossa vida, sem levar em conta o motivo pelo qual o texto foi escrito, pode incorrer numa infi delidade ao texto, e consequentemente, ao projeto de Deus. A Bíblia deve ser entendida dentro do seu contexto e só depois de estudada poderá iluminar a história de nosso tempo. Sabemos que o mundo em que foram escritos os livros bíblicos é muito diferente do nosso, afi nal já se passou um período de mais ou menos 4.000 anos e foram redigidos em etapas diferentes e distantes uma da outra. Um exemplo: se você olhar os costumes, a moral, a sociedade do tempo dos seus avós, verá que questões que eram fundamentais no tempo da juventude deles, hoje já não fazem mais tanta diferença, ou mesmo inexistem. E estamos falando de um mesmo país, estado e cidade. Imagine, você, essa realidade num país do Oriente Antigo, com uma religião, cultura totalmente diferente da nossa e um período de 4.000 anos nos separando. São muitos elementos a se considerar para a leitura da Bíblia, não acha? Refl ita sobre essa realidade e tire suas próprias conclusões. O texto bíblico deve nos permitir fazer um caminho diferente que nos leve ao aprendizado de forma autônoma e segurae não nos tornando repetidores de pregações ou homilias. O texto bíblico não muda, já foi escrito, mas certamente pode e deve mudar nossa maneira de entender o que lá está escrito. Isso não pode ser motivo de escândalo, mas de sabedoria! (MESTERS, 2012). A comunicação de Deus também se atualiza para que homens e mulheres possam crer sem ter de contrariar seus conhecimentos científi cos e sua compreensão do mundo e da história da humanidade. Contudo, espera-se, é claro, que os especialistas, para além do seu saber científi co, sejam capazes de perceber nos textos a Palavra de Deus e nela alimentem a sua fé. Nós, que somos aprendizes, temos de fazer progressos na nossa maneira de entender e ler a Bíblia, e não tendo medo de aproveitarmos os estudos mais sérios e modernos. E é justamente isso que iremos fazer a partir de agora! Bons estudos! 19 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Atividade de Estudos: 1) Leia o texto bíblico da Parábola do rico insensato em Lc 12, 16- 21, veja quais as difi culdades que surgem, se a leitura do texto for feita de forma literal. A vida do rico é pedida de volta, porque optou pelas riquezas, ou seja, juntou tesouros para si e não para Deus. Se a narrativa for lida ao pé da letra, poderá ser compreendida de forma trágica, aponte os caminhos de leitura para que isso não ocorra. __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ Algumas ConsideraÇÕes Nesse primeiro capítulo buscamos introduzi-lo, caro aluno, ligeiramente na leitura da Bíblia, de maneira mais acadêmica, mas também pastoral. Acreditamos que uma realidade contempla a outra. Para isso, fi zemos uso dos métodos propostos pela exegese bíblica, citamos apenas os mais utilizados, que são o método sincrônico e o anacrônico. Sabendo interpretá-los, seremos favorecidos por uma compreensão mais ampla da Bíblia. A Bíblia pode ser um local que inspira a rezar/orar, mas não de forma ingênua, não relativizando a fé, mas verifi cando as várias imagens de Deus construídas ao longo da história. Ler a Bíblia é uma tarefa exigente, de acordo com o que vimos ao longo desse capítulo, no entanto, se soubermos utilizar as ferramentas de leituras propostas pelos mais variados métodos de leituras exegéticas, pode se tornar algo tranquilo. 20 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Ao longo da nossa vida fomos acostumados a ler a Bíblia com muito medo, receio que acabou por gerar um bloqueio na hora da leitura. Tentando enxergar as narrativas como muito belas, “algo do céu”, mesmo aquelas que retratam situações de violência, tentávamos reinterpretá-las a ponto de se tornarem lindas aos nossos olhos. Dessa forma, fi cou difícil vermos a Bíblia como uma biblioteca de livros literários, escritos em um período muito distante e diferente dos costumes que vivenciamos na sociedade hodierna. Optamos por ver a Bíblia como algo sagrado, muito sagrado, intocável e distante de nós! As ferramentas de leituras não podem ser vistas como algo que vai nos tirar a fé. Para quem é religioso, isso é muito importante, porém sabemos que a Bíblia não é lida apenas por religiosos, mas por cientistas, ateus e curiosos em geral. Isso signifi ca que os crentes possuem uma responsabilidade muito grande, faz-se necessário um diálogo de igual para igual, e não apenas repetir de forma fundamentalista o que pastores, padres, pregadores e lideranças em geral fazem. Não veja isso como algo intolerante, mas veja como um sinal de ressignifi car nos dias atuais a Palavra de Deus, que para nós se faz necessária! Se posicione e lembre que o conhecimento é um processo de aprofundamento da fé e da própria existência. Pense nisso e refl ita! ReFerÊncias ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982. EQUIPE NACIONAL DA DIMENSÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Como nossa Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995. LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2014. MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infi nita. A Bíblia e a sua interpretação. Universidade Católica de Pernambuco; Paulinas: Recife; São Paulo, 2015. MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Petrópolis: Vozes, 2012. PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998. RODRIGUES, Maria Paula (Org.). Palavra de Deus, palavra de gente. As for- mas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004. SERVIÇO de animação bíblica. Iniciação à leitura da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2007. ZAPELLA. L. Manuale de analisi narrativa bíblica. Torino: Claudiana, 2014. CAPÍTULO 2 O Antigo Testamento e sua História A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Compreender a formação do Antigo Testamento e os principais profetas que contribuíram para formar a identidade do povo de Israel. Analisar os principais momentos históricos que foram fundamentais para a construção dos livros do Antigo Testamento. 22 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS 23 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 ContextualiZaÇÃo A Bíblia, como bem sabemos, é um livro diferente de todos os outros livros que conhecemos, pois não se trata de um livro, mas de uma coleção de pequenos livros (livretos, cartilhas). A palavra Bíblia se origina do grego, que signifi ca, literalmente, “livrinhos”, pois indica o plural da palavra biblion, que é o diminutivo de “biblos”. Os livros bíblicos foram escritos em três línguas diferentes, no entanto, a maior parte dela foi escrita em hebraico, outra parte em grego e a menor parte em aramaico. Os livros bíblicos, podemos chamar assim, foram escritos em muitos lugares diferentes, grande parte foi escrita na Palestina, mas outras partes foram escritas na Babilônia, no Egito, na Ásia Menor, em Roma, e em muitas outras localidades, difíceis de serem atestadas (KONINGS, 1998). A literatura bíblica foi redigida, provavelmente, a partir do ano 1.000 a.C. e só foi fi nalizada por volta do ano 200 d.C., ou seja, mais ou menos 1.200 anos foram necessários até alcançar a forma que temos hoje. Foram muitos os autores responsáveis pela escrita dessa coleção, não se tem uma quantidade exata, mas foram mais de uma centena (KONINGS, 1998). De acordo com o que afi rmamos no início desse item, a Bíblia é um livro diferente, porque se trata de uma obra considerada pelos sagrada cristãos. A parte que chamamos de Antigo Testamento contém livros sagrados dos judeus. O conjunto do Antigo e do Novo Testamento é o que é considerado sagrado para os cristãos. Partes do Antigo Testamento também são considerados para os islâmicos. Contudo, se faz necessário entender que, por se tratar de livros sagrados, não estão fora da história, e nem caíram diretamente do céu. Pelo contrário, a Bíblia tem esse caráter sagrado porque revela o rosto de Deus da vida, que se manifesta na história, nas lutas em favor da vida com dignidade e justiça para todos, principalmente para as pessoas empobrecidas e marginalizadas. É na defesa e promoção da vida que a Bíblia ganha caráter sagrado e se torna Palavra de Deus. 24 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A história da Bíblia pode ser comparada à história de uma casa, que começou pequenina e pobre, com poucos cômodos, mas ao longo dos anos foi passando por reformas, recebendo acréscimos, novos cômodos, até tornar-se um enorme casarão. Conforme dito anteriormente, a Bíblia levou mais de mil anos para ser compilada. Ao ser iniciada, foi a partir de pequenas histórias de libertação queforam contadas a partir da oralidade, posteriormente sendo registradas por escrito, celebradas, recontadas, atualizadas em novos acontecimentos e sofrendo acréscimos com novas histórias, memórias, cânticos, provérbios, leis e orações, tudo passando por inúmeras revisões, até formar o livro que temos hoje em mãos. Leia “A Parábola da porta”, do autor Carlos Mesters (2012, p.13-19), na tentativa de ilustrar a porta de entrada no mundo da Bíblia. Disponível em: <https://nfl emos.wordpress.com/2005/01/22/a- parabola-da-porta/>. Esta parábola descreve a história da explicação da Bíblia ao povo, faz ver como nasceu e onde estão as suas fontes de informação. Nasceu de noite, no meio da alegria do povo. Nasceu de dia, no meio da rua deserta e triste. Nasceu de dia e de noite, junto aos livros e às máquinas complicadas, num canto escuro da Casa do Povo. Dando continuidade na comparação da casinha que se tornou casarão, o que se percebe ao fi nal é um enorme casarão pronto, isto é o resultado da última revisão. O que pode complicar aos seus leitores é que essas reformas não são identifi cadas nos escritos, isso é a Bíblia. O seu todo apresenta hoje o resultado das últimas grandes reformas pelas quais passou: o Antigo Testamento revela predominantemente as formas que recebeu no período do pós-exílio (cerca de 400 a.C. até 200 d.C.) ao longo do processo em que se constituía o judaísmo. 25 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Situando o Antigo Testamento Para compreendermos o nascimento da Bíblia, devemos voltar ao ano 1.300 a.C., na terra de Canãa. Nessa época, grande parte da população vivia nas planícies férteis em torno de centros urbanos – pequenas cidades-estados, cercadas por muralhas –, e estava submetida ao domínio dos reis cananeus e do Faraó do Egito. Entretanto, havia um contingente menor de pessoas habitando nas regiões montanhosas de Canaã (Hebron, Betel e Siquém) e no deserto ao Sul (Bersabeia). Eram pequenas aldeias camponesas que possivelmente tiveram suas origens em assentamentos de famílias de pastores que se fi xavam nessas regiões, fora do controle dos centros urbanos. Em cada uma delas havia o costume de se venerar a memória do seu patriarca fundador, por exemplo: se venerava Sara e Abraão em Hebron; Isac e Rebeca em Bersabeia; Israel e Raquel em Betel e Jacó em Siquem. É nessas pequenas aldeias que se dá início à história de Israel. Tente visualizar as cidades acima citadas, no mapa: Figura 1 - Mapa do mundo antigo Fonte: Disponível em: <http://www.biblesociety.org/>. Acesso em: 6 out. 2017. 26 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS “Já os grupos urbanos e as aldeias camponesas das montanhas do Sul de Judá possuíam mais ou menos a mesma cultura: eram cananeus, e os seus deuses e deusas eram as divindades do panteão cananeu: El, Elohim, Aserá, Baal, Astarte, Anat, entre outros” (GERSTENBERGER, 2007, p. 169). Contudo, a vertente urbana da religião estava associada ao sistema de poder, e funcionava como religião ofi cial. Ensinava que as deusas e os deuses apoiavam e abençoavam o Faraó e os reis, se comunicando diretamente com eles. Estas divindades não estavam interessadas na vida das pessoas que trabalhavam, das pessoas pobres, marginalizadas ou escravizadas. Somente os reis e faraós eram considerados fi lhos de Deus (Sl 82,6-7). As outras pessoas deviam reverenciar e obedecer ao faraó e aos reis como se eles fossem os representes ofi ciais dos deuses na Terra, ou os próprios deuses em pessoa. Eram cultuados em grandes celebrações nos templos ofi ciais, e todas as pessoas deviam trazer-lhes oferendas, tributos, e submeter-se a trabalhar nas construções dos seus palácios e templos. Dentro das muralhas, na religião ofi cial, as divindades do panteão cananeu eram postas a serviço da legitimação do poder, da coleta de tributos e do acúmulo de riquezas e poder. Entre as aldeias camponesas nas montanhas, o culto aos deuses e às deusas estava vinculado aos diversos aspectos fundamentais da vida, como ter fi lhos, fertilidade dos campos e dos animais, saúde, amor, proteção, veneração aos antepassados etc. Eram os anciãos, pais, mães, quem realizavam o culto, e as oferendas eram praticamente simbólicas e raramente alguém fi cava mais rico ou mais pobre na vertente da religião camponesa. Era uma religião geralmente centrada na defesa e na promoção da vida, da identidade e das instituições que possibilitavam a vida nas condições ambientais das aldeias. Toda essa realidade se dava num contexto de uma sociedade patriarcal. Na política e na religião as mulheres tinham alguns espaços importantes, tanto nas cidades como nas vilas camponesas. No entanto, esses espaços e as próprias mulheres estavam subordinados ao controle dos homens. A crise dos grandes centros urbanos a partir de 1.200 a.C., causada por vários fatores, entre os quais a chamada “invasão dos povos do mar”, e o processo de resistência ao sistema de dominação das cidades-estado, fazem com que grupos de pastores, camponeses e gente marginalizada (hapirus) de Canaã, e pessoas escravizadas no Egito, encontrem nessas aldeias a possibilidade de viver longe da dura opressão imposta a eles pelos reis cananeus e pelo faraó. Essas pessoas vão aumentar as populações de Hebron, Bersabeia, Betel e Siquém. 27 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Conheça um pouco mais sobre os hapirus: Entre os camponeses havia também os chamados hapirus, fugitivos que, para escapar aos tributos – impostos – e à corveia – trabalho forçado -, exigidos pelos reis e pelos faraós, iam para as montanhas, onde viviam da pilhagem – saque – ou então alugavam-se como soldados mercenários dos exércitos dos reis. Encontravam-se, sobretudo, no sul da Mesopotâmia. Eles apareciam como bandos inimigos, que ameaçavam as cidades por suas invasões. Em outros lugares, eram gente que se vendia voluntariamente para ser escrava. Sua situação no Egito apresentava muita semelhança com a dos hebreus, que deles herdaram até o nome (VILLAC; SCARDELAI, 2007, p. 14). Os hapirus eram originários de Canãa e pessoas escravizadas no Egito. Buscavam encontrar nas aldeias a possibilidade de viver longe da dura opressão imposta a eles pelos reis cananeus e pelo faraó. Essas pessoas são fundamentais para o aumento da população de Hebron, Bersabeia, Betel e Siquém. Provavelmente, a partir de Betel e Siquém formam-se as tribos de Benjamim, Efraim e Manassés, e a partir de Hebron origina-se a tribo de Judá, que mais tarde englobará a Bersabeia. Este é o núcleo inicial de Israel, que se forma nas montanhas centrais da Palestina. Nesse processo, algum povo pode ter trazido o culto a Javé para dentro das aldeias e tribos de Israel. Javé parece ser uma divindade que veio de fora de Canaã (Ex 2,16;3,1-2; Dt 33,2; Jz 5,4; Hab 3,3). Javé é integrado ao panteão das tribos e aldeias camponesas, possivelmente como o Deus dos guerreiros e da guerra (cf. Ex 15,2-3; 14,14.24-25.27; Jz 4,14-15; 1Sm 17,47). Contudo, nas tribos e aldeias, estes guerreiros travam apenas guerras defensivas contra saqueadores. Seu culto acontecia no momento em que os camponeses necessitavam transformar seus instrumentos de trabalho em armas (1Sm 17,40-43) e formar linhas de guerreiros para defender a vida de suas famílias, suas colheitas, suas terras e sua liberdade. 28 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O Sistema Tribal O longo período pré-histórico da humanidade foi, possivelmente, uma época marcada por grupos menores e por bandos. Eram caçadores e coletores. Somente a partir do 10º milênio a.C. se conhecem, no antigo Oriente, processos de transição para a agricultura. Segundo Gerstenberger (2007, p. 29), “o tamanho ideal de grupos errantes na busca por alimentos era em torno de dez e trinta pessoas. Se considerar um grupo consanguíneo, logo se chega a um número desses, em analogia a grupos de primatas”. A partir dessas hordas humanasé que surgem no antigo Oriente famílias ampliadas, com uma estrutura de cunho patriarcal rigidamente genealógica. De acordo com o que sabemos, essas famílias se caracterizavam por serem econômica, jurídica e religiosamente autônomas. Suas casas, segundo os arqueólogos, nas cidades de Israel, não eram muito grandes. Havia um espaço para umas cincos até dez pessoas, não sendo possível abrigar uma família ampliada de até 30 ou 50 pessoas, como talvez fosse mais comum no interior. Por se tratar de um grupo limitado, preocupado em conseguir alimentos comunitariamente, um grupo que partilhava todos os bens adquiridos, a comunidade clâmica desenvolveu ideias teológicas específi cas, relacionadas ao respeito, à sobrevivência do grupo e de seus integrantes, à sua saúde, sorte e procriação. Expressão típica da religiosidade desses grupos menores eram, por exemplo, os lamentos individuais no Antigo Testamento hebraico e no entorno de Israel. O sistema tribal marca a sociedade das montanhas nos séculos XII e XI a.C. Durante este período, as planícies ainda continuavam sob o controle dos reis cananeus e sob o jugo das cidades-estado. Foi um período antimonárquico. Dessa forma, no decorrer dos séculos XII e XI a.C. coexistiam na Palestina dois modelos sociais: na planície, as cidades-estado e suas monarquias; nas montanhas, o tribalismo camponês. Este último carregava a experiência dolorosa de séculos de espoliação por reis e faraós, que, por meio de suas expedições, muitas vezes anuais, arrasavam aldeias e plantações. Levavam o senso e a prática da contestação contra as cidades-estado da planície (VILLAC; SCARDELAI, 2007). 29 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 O vídeo indicado nos ajuda a adentrarmos na caminhada do povo de Israel, de uma maneira popular, relacionando a história de hoje com a do povo antigo. Primeira parte: <https://www.youtube.com/watch?v=sdEm2K5Ue4E& feature =youtu.be>. Segunda parte: <https://www.youtube.com/ watch?v=Z9Uux51qDes&feature =youtu.be>. O PoVo Que CaminHa: de Moisés a Josué O projeto exodal expõe tensões vividas pelo povo de Israel durante a travessia do deserto. Além da realidade humana, o deserto na Bíblia simboliza o começo de um longo e penoso processo de libertação, que terá seu desfecho na entrada do povo na Terra Prometida. O caminho do Êxodo tem um sentido profundamente pedagógico (VILLAC; SCARDELAI, 2007), ou seja, sua história quer ensinar e manter viva na memória do povo uma grande lição de vida. No projeto do êxodo está implícita uma busca contínua por libertação, que após ser contada oralmente é redigida por escritores que tinham interesse em preservar sua memória no meio popular da sociedade de Israel. É um projeto que vai se realizando aos poucos, mediante gestos concretos assumidos pelo povo, quando decidem não mais ser escravos. Recusam servir ao faraó e ao Egito, e daí um grupo de escravos (hebreus) decide traçar seu próprio destino. Esse povo vive uma experiência profunda ao caminhar pelo deserto com o seu Deus. O Deus que caminha com o seu povo é peregrino, habita em cabanas junto aos seus, e faz aliança com eles. 30 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Do ponto de vista histórico, a saída do Egito e a entrada em Canaã estão notoriamente entre as narrativas mais complexas de todo o corpus de tradições que confl uíram no Antigo Testamento (MCDONALD, 2013). Há muito existe um substancial acordo em considerar que o percurso do êxodo e a ambientação topográfi ca da entrega da Lei sejam elementos muito tardios (do período pós- exílico) inseridos na narrativa com o fi m de realizar uma ligação lógica entre os dois elementos da promessa: saída do Egito e tomada de posse da terra. (LIVERANI, 2008). A imagem do deserto, no conjunto Êxodo-Números, não é de tipo pastoril, em que as tribos vivem à vontade; é, porém, do tipo “zona de refúgio” ou “terra de exílio”, numa perspectiva citadina de profundo mal-estar. O caminho é muito complicado e perigoso, conforme Dt 8,15: “Deserto grande e terrível, povoado de serpentes abrasadoras e de escorpiões, terra de sede, onde não se encontra água”. Essa passagem é semelhante às preocupações logísticas para a travessia do deserto por parte dos exércitos assírios, como na expedição de Esarhaddon em Baza: um distrito remoto, uma extensão desértica e de terra salina, uma região de sede, com serpentes e escorpiões que cobrem a terra como formigas (LIVERANI, 2008). Também os exércitos da monarquia de Judá tinham atravessado o deserto, por exemplo, na expedição contra Mo’ab e à procura de água por parte de Moisés, que a faz brotar da rocha (Ex 17,1-6), corresponde à procura da água por parte dos “profetas” juntados ao exército naquela ocasião: “Cavai um grande número de fossos neste vale! Assim fala o Senhor: Não vereis vento nem chuva, todavia este vale se encherá de água e bebereis vós, vossos rebanhos e vossos animais de carga!” (2Rs 3,16-17). O milagre de Moisés, que purifi ca a água salobra (Ex 15,22-25), corresponde ao análogo milagre de Eliseu (2Rs 2,19-22). As enormes difi culdades encontradas na travessia do deserto centram-se no motivo das murmurações sediciosas do povo contra Moisés (Ex 15,24;16,2;17,3; Nm 11,4-5;14,2-3;20,2-3). E de modo semelhante, as dúvidas sobre a possibilidade de ocupar Canaã concentram-se no motivo dos exploradores que em geral (salvo Josué e Caleb) dão informações não muito animadoras (Nm 13). Em ambas as situações, o povo se pergunta se não teria sido um grande erro dar ouvidos a Moisés (igual aos sacerdotes), abandonar o Egito (igual a Babilônia), para procurar por uma terra mais difícil, habitada por populações hostis e violentas. Os dois motivos, da sedição e dos exploradores, refl etem debates que devem ter acontecido entre quem propugnava o retorno e quem manifestava perplexidade ou sem dúvida preferia fi car numa terra de exílio que se mostrava habitável e próspera (LIVERANI, 2008). 31 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Quando se descreve a travessia como uma realidade estranha e substancialmente desconhecida, foram utilizadas rotas de itinerários que deviam ser de uso de rotas militares ou comerciais, ou, em parte, talvez de percursos de peregrinação a lugares santos do deserto. Esses percursos não podiam deixar de utilizar velhas direções de transumância pastoril, levando em conta o condicionamento viário que no deserto é ditado pela presença de poços, de passagens montanhosas, de vaus (local raso no mar ou no rio, em que seja possível fazer a passagem a pé). Contudo, os estudos dos itinerários do êxodo são difíceis de serem atestados, pois a maior parte dos topônimos – designação de um lugar, de uma região geográfi ca –, não aparece em outro lugar, e até a localização do Sinai é debatida. Alguns traçados fundamentais parecem reconhecíveis: a via sul-norte, do golfo de Aqaba à planície de Moab, através do deserto de Edom e o deserto de Moab, estão localizadas nas margens do deserto não tanto porque moabitas e edomitas neguem a passagem quanto porque ali passava a grande via das caravanas, onde o planalto não é mais cortado (como acontece mais a oeste) por profundos vales de difícil travessia (LIVERANI, 2008). O livro de Josué retrata com intensa vivacidade a realização de uma primeira etapa da promessa de Deus: entrar na terra prometida. Além de ser o sexto livro da Bíblia, Josué é o primeiro dos livros que a Bíblia hebraica identifi ca como profetas anteriores. A Josué se juntam Jz, 1-2Sm e 1-2Rs, para formar o conjunto da historiografi a deuteronômica. A narrativa de Josué fala de acontecimentos ocorridos entre os séculos XIII e XI a.C. Provavelmente essa conquista ocorreu de forma lenta e gradual, compreendendo um processo que incluía guerras violentas, porém intercaladas por momentos de relativa paz e estabilidade. Essa fase chegou ao fi m durante um período de transição política, quecorresponde às primeiras tentativas de instalação da monarquia, com Saul. A história das tribos forma o conteúdo básico do livro de Josué, o qual pode ser dividido em três partes: a) Js 1-12, que corresponde às narrativas sobre os acontecimentos da conquista propriamente dita, e traz como pano de fundo religioso o santuário de Guilgal; b) Js 13-21, fala da distribuição, partilha e ocupação da terra entre as tribos; c) Js 22-24, é dedicada ao personagem Josué até sua morte. 32 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A ideia de sincronizar a história das 12 tribos faz parte de um programa do escritor, visando preparar um esquema que irá desaguar na confederação político- nacional de Israel. Por isso, a história das tribos antecipa uma nova ordem social, um novo modelo baseado na partilha igualitária das propriedades. Dessa forma, o sistema tribal procura mostrar o estágio político que antecipa a monarquia, planejando um entrelaçamento entre as tribos e monarquia, ambos envolvem o contexto social, político e religioso da Aliança (VILLAC; SCARDELAI, 2007). A narrativa bíblica da conquista fundante é notoriamente, de acordo com Liverani (2008, p. 347): Uma construção artifi cial, com a intenção de enfatizar a unidade de ação de todas as doze tribos. São evidentes numerosas contradições internas, devidas à inábil utilização de diferentes tradições estratifi cadas no tempo. Algumas tradições de raio nitidamente local (por exemplo, a tradição sobre os calebitas em Js 15,13-19) tinham por trás uma respeitabilidade que tornava impossível eliminá-las. Essas tradições relacionadas com percursos de transumância entre Negev e planaltos centrais podiam confi gurar muito melhor um ingresso na Palestina pelo sul (segundo a via “normal” para quem vem do Egito), o qual, porém, foi eliminado em favor de um ingresso de todo o povo pelo leste. A narrativa que forma Js 6-8 se refere à conquista somente do território de Benjamim e de Efraim, depois de passado o Jordão. As narrativas da vitória sobre os reis dos amorreus do Sul são nitidamente separadas (Js 10) da vitória sobre Hasor no norte (Js 11). Essa justaposição de três vagas diferentes serve para conferir um sentido de conquista total. A distribuição dos territórios que é feita por sorteio (Nm 33,50-34,15) é totalmente artifi cial e não pode corresponder a nenhum processo de assentamento que seja historicamente plausível (pode, quando muito, servir de modelo operativo para os sobreviventes do período persa). A própria descrição dos territórios tribais (Js 13-19), diferente entre sul e norte, não pode ser compreendida senão à luz de eventos posteriores à época à qual pretende se referir. São tantas as incongruências e as estilizações que a narrativa do livro de Josué não pode, senão, ser lida em relação às intenções de um redator (de tradição deuteronomista) que tinha em mente os problemas de sua época e substancialmente o problema de retomada de posse da terra de Canaã por parte dos sobreviventes do exílio babilônio. Esse redator decidiu narrar a conquista- modelo segundo os caracteres da unidade de ação e do forte confl ito em relação aos residentes. 33 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Essas escolhas de fundo não eram nada esperadas: os sobreviventes da Babilônia eram (Esd 1,5) e não podiam deixar de ser de Judá e de Benjamim, ou seja, do núcleo fi nal do ex-reino de Judá conquistado por Nabucodonosor, portanto, duas tribos em doze. E o país hospedava uma pluralidade de povos nem todos igualmente estranhos, pois havia inclusive israelitas (javistas) não deportados, seja no Sul, seja no Norte, com os quais uma política de compromisso podia ser razoavelmente perseguida. O fato é que a narrativa parece refl etir uma política extremista, que era uma das opções (mas não a única possível) para os grupos dirigentes que pretendiam reconstruir um novo Israel. Para entender o que é a obra deuteronomista: Para o Deuteronômio, mais que para qualquer outro livro bíblico, a interpretação depende do contexto hermenêutico que se supõe. De fato, esse escrito pode ser lido quer no contexto do pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), como o último livro da Torá, quer como a abertura programática da historiografi a deuteronomista. Figura 2 - Os livros que fazem parte da historiografi a deuteronomista Fonte: Adaptado de Römer (2010, p. 260). O paradigma adotado no livro de Josué é o da guerra santa, de clara matriz deuteronomista, mas dotada de profundas raízes na ideologia siro-palestina desde os séculos da pressão assíria. A historiografi a deuteronomista o aplicou retrospectivamente a toda a história das relações entre Israel e os outros povos, não apenas na época da conquista, mas também na época dos juízes e depois no primeiro período monárquico. Os princípios fundamentais da guerra santa: Deus está conosco, combate ao nosso lado e garante a vitória; os inimigos, embora aparentemente mais fortes, não podem contar com igual apoio e estão destinados à derrota; as ações bélicas, porém, devem ser procedidas por adequada preparação votivo-cultural; todo erro ou falta nesse sentido seria punido com o insucesso; o fruto da vitória 34 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS deve ser atribuído a Deus (que é seu artífi ce) e, portanto, deve ser ritualmente destruído sem dele tirar vantagem material. Como conclusão, se o povo for fi el a Deus, seguramente vencerá. E, ao contrário, se for derrotado, deverá procurar as causas do insucesso numa infi delidade sua (LIVERANI, 2008, p. 349). Os povos estranhos serão substituídos pelo povo eleito, que pode tomar posse de um território já preparado – com cidades, casas e campos – desde que elimine sem piedade os habitantes anteriores e garanta a total devoção a Yahweh de todos os membros da nova comunidade que se pretende construir: Depois, vocês atravessaram o Jordão e chegaram a Jericó, mas a classe poderosa de Jericó fez guerra contra vocês: os amorreus, os fereseus, os cananeus, os heteus, os gergeseus, os heveus e os jebuseus, mas eu os entreguei em suas mãos. Eu enviei grandes vespas diante de vocês, o que tirou de sua frente os dois reis amorreus; não foi com a espada de vocês, nem com seu arco. Dei para vocês uma terra pela qual vocês não se esforçaram, cidades que vocês não construíram, e nas quais vocês habitam; vinhas e olivais que vocês não plantaram, e dos quais vocês comem. (Js 24,11-13). Na versão sacerdotal, a ideia de uma terra já preparada na qual se implanta prévia eliminação dos habitantes anteriores está analogamente presente, embora a ênfase seja posta na purifi cação cultual: Quando vocês atravessarem o rio Jordão e entrarem na terra de Canaã, expulsem todos os habitantes da terra da presença de vocês. Façam desaparecer todas as suas imagens esculpidas. Façam desaparecer todas as suas imagens fundidas, e eliminem todos os seus lugares altos. Tomem posse da terra e habitem nela, pois eu lhes dei essa terra, para que vocês a possuam (Nm 33,51-53). No fundo, a ideia da conquista como total substituição de uma população anterior – exterminada – por uma que fosse importada, com o intuito de substituí- la, não pode ter sido concebida antes que difundissem as deportações imperiais. Mas nos termos em que essa ideia foi formulada, ela se torna uma visão totalmente utópica, em sua implacável rigidez, e nem pode pertencer nem à época da primeira etnogenia, nem à do regresso do exílio: põe-se no plano do projeto ideal mais que da prática realização, fornece informações sobre a ideologia de quem o tinha formulado, mais que sobre os acontecimentos que se produziram. 35 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 A Fim de Compreender (Gn 1-11) De acordo com a formação do Antigo Testamento, a história de Israel não começa com a criação ou com o chamado de Abraão. Dessa forma, embora o livro de Gênesis apareça no início da Bíblia,suas narrativas foram elaboradas muito tempo depois, já na terra de Israel. E provavelmente só por volta do ano 400 a.C. é que o Gênesis alcançará a forma como encontramos na Bíblia atualmente. Da mesma maneira como nós contamos a história do nosso país de forma diferente da que era contada 20 ou 30 anos atrás, também o povo de Israel, a cada nova etapa da vida, alterava a forma de contar a própria história. Muitas narrativas presentes no livro de Gênesis apresentam histórias de famílias, clãs, santuários ou instituições. Ora, as tribos se organizavam de forma autônoma e independente entre si, consequentemente, suas histórias também. Lentamente, no conjunto de Israel, essas “historietas” particulares iam sendo reelaboradas e agrupadas tanto em tradições orais como escritas. Dessa forma, após três ou quatro séculos de monarquia, após muitas releituras na separação dos reinos (cerca de 930 a.C.) e nas tentativas de reunifi cação de Ezequias (por 700 a.C.) e de Josias (mais ou menos 620 a.C.), essas tradições serão integradas em escritos maiores como a história de um só povo. E tudo indica que o processo terá fi m com ampliações e releituras, somente quando o povo de Judá for levado para o exílio (598-530 a.C.), e quando os descendentes dos exilados retornarem e reconstituírem Judá (cerca de 400 a.C.). As duplicações e contradições são testemunhas do que encontramos no livro de Gênesis: - Duas narrativas da criação (1,1-2,4a e 2,4b-24); - Duas genealogias de Caim (4,17-26 e 5,12-31); - Duas genealogias de Sem (10,21-25 e 11,1-17); - Duas narrativas do dilúvio combinadas (6,5-9,17); - Duas narrativas da aliança entre Deus e Abraão (15-17); - Duas expulsões de Agar (16-21); - Três narrativas sobre os patriarcas e suas mulheres no estrangeiro (12,10- 20; 20; 26,1-11); - Duas histórias combinadas de José (37-50). 36 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS As duplicações de uma mesma narrativa demonstram que foram escritas e/ou contadas em lugares e contextos diferentes. Por isso o estilo e o gênero literário não são os mesmos. Cada povo, no seu lugar de origem, possui um estilo próprio de contar e narrar as suas histórias. Por este motivo, não podemos analisar os textos duplicados de forma fundamentalista, pois perderiam a sua originalidade, e até incorreria em duvidarmos de sua autenticidade literária. Fonte: Rodrigues (2004, p. 45). O livro de Gênesis é dividido em duas grandes partes: Na primeira, Gn 1-11, onde estão as narrativas sobre a origem do mundo, da vida e dos diversos povos; na segunda, Gn 12-50, onde encontramos as narrativas sobre os patriarcas e matriarcas das tribos de Israel; Abraão, Sara e Agar (12, 1-25,18); Isaac e Rebeca; e principalmente Jacó, com a fi lha e os 12 fi lhos de Lia, Zaquel, Bala e Zelfa (25,19-36,43); por fi m, a história de José (37,1-50,26). Ao abrirmos o livro do Gênesis encontramos os famosos relatos da Criação, a história de Adão e Eva, da serpente, de Caim e Abel, do Dilúvio e da Torre de Babel. Essas histórias nasceram ao longo da história do próprio povo de Israel infl uenciadas pela cultura dos povos do Antigo Oriente Próximo, especialmente da Mesopotâmia, do Egito e de Canaã, com os quais Israel conviveu. De acordo com a concepção de mundo dos povos do Antigo Oriente Próximo, a terra tinha a forma de um disco plano, rodeada por águas e sustentada por colunas. As águas de baixo eram chamadas de águas inferiores, onde fi cavam o abismo e o xeol, a morada dos mortos. Sobre a terra se estendia o fi rmamento, numa espécie de arco ou uma tigela virada para baixo. Nesse fi rmamento estavam pendurados o Sol, a Lua e as estrelas. Acima do fi rmamento fi cavam as águas superiores, que saíam através das comportas, e mais acima estava a morada de Deus. Veja a fi gura a seguir: 37 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Figura 3 – A concepção de mundo dos povos do antigo oriente próximo Fonte: Disponível em: <http://leituraorante.comunidades.net/65279-2-aula-o-povo-de-isra- el-e-a-criacao-do-mundo3>. Acesso em: 6 out. 2017. Essa visão de mundo infl uenciou os autores de Gênesis 1 a 11. Além da cultura daquela época, é importante lembrar os principais acontecimentos da história de Israel, nos quais surgiram as páginas iniciais do livro do Gênesis. Vamos fazer esse percurso juntos? a) Os principais acontecimentos históricos A partir das diferentes redações apresentadas, fi ca claro que o relato de Gênesis 1-11 é fruto de um longo processo histórico e recolhe histórias de várias gerações. A redação fi nal do livro de Gênesis aconteceu por volta dos anos 400 a.C. As histórias narradas nesse livro passaram por um longo processo, foram contadas, escritas, reescritas e relidas durante as diferentes etapas da história de Israel. Vamos recordar os vários períodos dessa história? • O período tribal: O período entre os anos 1250 e 1030 a.C. é conhecido como o período das aldeias comunitárias. O período das tribos. Nesse tempo em que não havia rei, o poder era descentralizado e as decisões eram tomadas em assembleias. A maioria da terra era propriedade coletiva. Nos primeiros tempos, o trabalho e seu fruto eram partilhados entre todos. 38 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Um tempo marcado pela igualdade e solidariedade. Algumas memórias desse período, por exemplo, a integração com a terra, foram preservadas em Gênesis 2. • A monarquia: A monarquia em Israel ocorreu entre os anos 1030 a 586 a.C. Apesar dos protestos de vários grupos do interior, surge a monarquia em Israel. O povo é governado por um rei, existe uma corte, e um templo. Aumentam a opressão, o endividamento e a escravidão, essa realidade está refl etida em Gênesis 3. Em 586 a.C. os babilônios dão fi m à monarquia de Israel e algumas lideranças são exiladas para a Babilônia (VASCONCELOS; SILVA, 2003). • O exílio da Babilônia: O exílio da Babilônia ocorreu provavelmente entre os anos 586 a 539 a.C. O povo de Israel vivia um momento de profunda crise de identidade. Nesse período, a história de Israel e suas tradições, que já haviam sido escritas, são revistas e reelaboradas. Tanto em Jerusalém, como nos arredores da cidade e na Babilônia surgiram muitos escritos que hoje fazem parte da Bíblia. Por exemplo, na Babilônia surge o conhecido poema da Criação (1,1–2,4a) e a tradição da torre de Babel (Gn 11,1-9). (VASCONCELOS; SILVA, 2003). • O período persa: O domínio persa ocorreu entre os anos de 539 a 333 a.C. O império persa favorece a reorganização dos povos dominados a partir da religião, exigindo em troca submissão política e pesados tributos. Alguns grupos de judeus exilados voltam para Jerusalém e reorganizam o povo a partir do Templo e da Lei, sob o governo de sacerdotes ofi ciais. Nesse período, conhecido como teocracia, multiplicam-se os sacrifícios e as exigências da Lei, especialmente das leis referentes à pureza e ao sábado (8,20-21) (KONINGS, 1997). A redação fi nal dos livros de Gn, Ex, Lv, Nm e Dt, e a reunião dos livros que formam a Torah, conforme a tradição judaica, e Pentateuco, conforme a tradição cristã, são concluídas por volta do ano 400 a.C. A partir de sua história e de sua cultura, os autores de Gênesis 1 a 11 deram suas respostas às necessidades de sua época, em contextos e lugares diferentes, porém essa história é tecida com a sabedoria acumulada de geração em geração. É preciso ler, deixar se envolver por essas narrativas e descobrir a riqueza dessa história. 39 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 b) Em busca da mensagem de Gênesis 1-11 Os relatos de Gênesis 1 a 11 procuram nos ajudar a entender mais sobre as origens da vida, a partir da religiosidade do povo de Israel, da sua crença no Deus único e criador de todas as coisas. Na tentativa de auxiliar o seu aprendizado, apresentamos algumas chaves para você ler as páginas iniciais desse livro: • Você deve saber que os relatos sobre a criaçãodo mundo e da humanidade não são exclusividades de Israel, do Egito e do Oriente Próximo. Também povos mais distantes, como Índia, China e África, produziram suas histórias sobre a origem do universo. Todas as culturas antigas produziram relatos da criação, inclusive no Brasil há vários contos indígenas da criação (MARQUES; NAKANOSE, 2007). • As narrativas de Gênesis 1-11 afi rmam que o Deus de Israel é o criador. Na região da Mesopotâmia, Canaã e Egito havia a crença na existência de divindades criadoras. Os relatos de Gênesis 1 a 11, mesmo de épocas diferentes e utilizando diversos nomes para Deus, atestam que o Deus de Israel é o criador do céu e da terra (Gn 1; Sl 121,2; 124,8; 134,3). • Um Deus humano e próximo. Algumas narrativas do livro do Gênesis apresentam a imagem de um Deus presente na vida do ser humano. Um Deus oleiro: ele modela o 'adam e os animais a partir do solo; exerce também a função de construtor: da costela de Adão, ele constrói a mulher (Gn 2,21-22). Ele é agricultor: planta um jardim (2,7-8.19). Deus faz justiça aos oprimidos e não abandona o pecador à sua própria sorte (4,10.15). Um Deus libertador que não compactua com o projeto opressor (11,1-9). • A petulância do ser humano. No jardim, mulher e o homem possuem liberdade e se relacionam com Deus e com todos os seres criados. A única proibição é não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A serpente não convida à desobediência, mas sua argumentação atinge o ponto central do ser humano: "vós sereis como deuses, versados no bem e no mal" (3,5). A petulância do ser humano, especialmente dos reis e dos governantes que se colocam no lugar de Deus, provoca a destruição do paraíso. • A agressividade interrompe a fraternidade. A história de Caim e Abel é a primeira de uma série de histórias que apresentam confl itos entre irmãos. Caim é apresentado como agricultor e Abel como pastor. Essa história retrata os confl itos existentes entre agricultores e pastores. E nesse confl ito, Deus opta pelo mais fraco. A história exemplifi ca a ruptura da fraternidade como a raiz da violência. 40 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS • A realidade de injustiça provoca a aniquilação da natureza. A crescente realidade de injustiça e a concentração de poder provocam a destruição de toda a natureza: o Dilúvio. Na Babilônia, os judeus exilados entram em contato com histórias de inundações próprias da região. Os autores de Gênesis 6-7 fazem uma releitura dessas histórias, apresentando uma explicação para a sua realidade de destruição, com a intenção de provocar mudanças de comportamento na sociedade. • Graciosidade de Deus. À medida que aumentam a violência e a maldade do ser humano, cresce a graça de Deus. A pessoa se distancia, mas Deus continua se aproximando e cuidando amorosamente de sua criação. A opção do Senhor é pela vida. Ele faz uma aliança com Noé e, por meio dele, com toda a humanidade: "Não haverá mais dilúvio para devastar a terra". (9,11). • A identidade do clã e a compaixão/misericórdia entre todos os povos. As histórias que estão em Gênesis 1-11 nasceram em lugares e épocas diferentes, mas foram unidas umas às outras por meio das genealogias. A intenção teológica dessas listas genealógicas é garantir a identidade do povo de Israel e a importância de desenvolver relações solidárias com todos os povos, uma vez que todos descendem de um único tronco. • Dissipação e heterogeneidade: No episódio da Torre de Babel (Gn 11,1-9), a dispersão e a diversidade de línguas impedem o projeto dos dominadores. Portanto, é castigo de Deus para os opressores, mas para os pobres e exilados é libertação. É a realização da bênção recebida em Gênesis 1,28 e renovada em Gn 9,1: "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra". • Prefácio à história de Israel. A lista dos descendentes de Sem nos faz chegar até Taré e seus fi lhos, entre os quais está Abraão. Dessa forma, a lista faz a passagem da história das origens para o tempo dos patriarcas. A bênção, renovada com Noé (9,1), terá continuidade com Abraão (12,1- 3). Deus lhe faz a promessa de que, por meio dele, todas as nações serão abençoadas. • Transgressão, admoestação e Nova Aliança. Nos relatos de Gênesis 1-11 é possível perceber o esquema teológico de pecado, castigo e salvação. A situação de pecado provoca o castigo: o dilúvio e a morte, mas a partir de um resto, representado por Noé e seus descendentes, Deus renova a sua aliança e recria nova humanidade (9,9-10). Essa aliança será renovada com o povo de Israel e, a partir de Jesus, chegará a todos os povos. 41 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Atividade de Estudos: 1) A harmonia acaba e aparecem as ambiguidades da vida. A narrativa de Gn 3, 1-24 está ligada a 2,4b-25, esta é uma das narrativas criadas na história de Israel para tentar explicar a origem do mal, da morte e do sofrimento. Apresenta comportamentos e instituições que auxiliam os povos a se organizarem, a fi m de viverem, superando o mal e a morte. Leia Gn 3, 1-24 a partir da compreensão das características de Gn 1-11 acima mencionadas, e procure identifi car as instituições que perpassam a narrativa e o possível contexto e simbologia em que essa narrativa foi escrita. __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ c) Localizando o texto: Na tribulação nasce outra vez a esperança O exílio da Babilônia é um marco na história de Israel. Os exilados fi caram sem terra, sem rei e sem templo. Eles perdem suas principais referências. A partir dessa situação de crise e perda de identidade, nasce a preocupação de explicar as razões da derrota e do exílio. Os sacerdotes, profetas e sábios procuravam dar uma resposta para aquele momento de profunda intranquilidade. As lideranças religiosas retomaram a história do povo, fazendo uma releitura e apontando novas possibilidades. Vamos relembrar outros fatos da história de Israel ocorridos um pouco antes do exílio. 42 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Em 609 a.C. o faraó do Egito colocou Joaquim no trono de Judá e em troca exigiu pesados tributos. Em 605 a.C. o exército de Nabucodonosor, da Babilônia, derrotou o Egito, se apoderou da Síria e da Palestina. O rei Joaquim, em 602 a.C., deixou de pagar tributos para a Babilônia, e por causa disso provocou um grave confl ito (2Rs 24,1). O exército babilônico marchou contra Judá e cercou a cidade de Jerusalém (VASCONCELOS; SILVA, 2003). Em 597 a.C. Jerusalém é invadida e a elite foi deportada para a Babilônia. O rei, a nobreza e os sacerdotes ofi ciais, entre eles o profeta Ezequiel, foram exilados. No lugar do rei Joaquim, os babilônios colocaram Sedecias. Alguns anos depois, o novo rei, movido por sua ambição, deixou de pagar tributos para a Babilônia. Desta vez a repressão é muito pior. Em 587 a.C. a cidade de Jerusalém foi invadida e destruída. A família do rei foi executada, sendo que o rei foi preso, torturado e levado para a Babilônia (2Rs 25,6-7; Jr 52,9-11). O templo foi saqueado e incendiado (Lm 2). A tomada de uma cidade e a deportação são realidades acompanhadas de gestos brutais. Em geral, as mulheres foram violentadas, muitas crianças atiradas contra as pedras, os guerreiros tiveram suas cabeças cortadas ou esfolados vivos (Lm 5). São cenas que não se apagam da memória daqueles que as vivenciaram. A segundadeportação atingiu pessoas ligadas à corte, grupos de cantores do templo, artesãos, comerciantes, agricultores e viticultores (2Rs 25,11-12). Na Babilônia, esse grupo é tratado como escravo, utilizado como mão de obra nas construções públicas, nas lavouras, na reconstrução de cidades destruídas e em outros trabalhos forçados: "Este povo foi despojado e saqueado, todos eles estão presos em cavernas, estão retidos em calabouços. Foram submetidos ao saque e não há quem os liberte; foram levados como despojo, e não há quem reclame a sua devolução" (Is 42,22). Muitos não enxergavam mais sentido na vida nem perspectivas quanto ao futuro. Em terra estrangeira, sem provisões ou condições de sustento, o povo entra em contato com a religião do império e se sentiu confuso em sua crença. Na Babilônia havia muitas divindades, Marduk, representado pelo Sol, era a mais importante, pois ele era considerado o criador do mundo e do ser humano. Segundo a crença ofi cial, essa divindade garantiria a vitória aos exércitos de Nabucodonosor. Entre as práticas religiosas mais populares na Babilônia, se destacava o culto à deusa Sin, representada pela Lua, e à deusa-planeta Ishtar. Muitas pessoas exiladas assumiram as divindades do império invasor. (VASCONCELOS; SILVA, 2003). 43 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Por conta de todo o sofrimento experienciado, o povo exilado na Babilônia começa a questionar: Onde está o nosso Deus, Javé? Por que ele está nos castigando? A crise de fé e de identidade exige uma resposta. Nesse momento de muita dor e sofrimento, surgiram salmos, poesias, narrativas e outros escritos que recordavam as maravilhas que Deus realizou na vida do povo de Israel, desde as suas origens. As orações renovam a fé em Javé como o único criador de todas as coisas. Assim reza o povo: "Quão numerosas são tuas obras, Javé, e todas fi zeste com sabedoria! A terra está repleta das suas criaturas" (Sl 104,24). Um dos textos mais conhecidos no exílio da Babilônia é o poema litúrgico de Gênesis 1,1–2,4a, provavelmente escrito por sacerdotes exilados. Eles estruturaram o poema da criação com o refrão: "E Deus viu que era bom" (Gn 1,4; 10.12.18.20.24). E depois de ter criado o ser humano, numa visão panorâmica de sua obra, dizem: "Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom" (1,31). Numa realidade desordenada e devastada pela violência, os autores recordavam que o mundo criado por Deus é belo, ordenado, perfeito e bom. Os autores recordavam ao povo exilado que a sua condição não era a de escravo, mas de pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus. Gênesis 1,1-2,4a é um convite aos exilados, de ontem e hoje, para rezar e renovar sua fé e sua esperança em Deus criador. d) Interpretando o texto: Gn 1,1 a 2,4a Atividade de Estudos: 1) Leia Gn 1,1 a 2,4a e escreva o que é criado em cada dia. Essa atividade será importante para você ter uma ideia de como cada elemento da criação se estrutura dentro da narrativa, bem como a descoberta do estilo literário. Boa sorte! __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ 44 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS No início do poema da criação há um título: "No princípio, Deus criou o céu e a terra". Esta frase é uma síntese de todo o bloco e apresenta o tema principal: Deus cria o mundo. No Primeiro Testamento, tradicionalmente chamado de Antigo Testamento, o verbo criar, bara' em hebraico, é usado somente para a ação criativa de Deus. O nome de Deus aparece por 35 vezes apenas nesse poema, a terra e o fi rmamento aparecem por 21 vezes. Os autores insistem que o verdadeiro Deus não é Marduk, nem a deusa Sin, mas o Deus de Israel. Ele é o criador da terra e do céu, que signifi ca a totalidade do universo (Sl 89,11). O versículo 2 informa o que existia antes da criação: terra vazia e vaga, trevas, abismo e águas. No princípio era o caos. É a partir do caos que Deus fará surgir a criação. A desordem e o caos representam a situação do povo no exílio da Babilônia. De acordo com o poema babilônico, no princípio da criação só existiam as águas primordiais: o caos. O povo de Israel assimila a visão de mundo dos babilônios, porém, adaptando-a à sua realidade, declara a sua fé em Deus: o caos não surge de Deus, mas ele coloca ordem. Em Gênesis 1, o sopro de Deus paira sobre as águas. Não se trata de um vento destruidor, mas de um sopro que prepara e anuncia a palavra criadora de Deus: a vida (Sl 33,6). "Deus disse: 'Haja luz', e houve luz" (Gn 1, 14). No primeiro dia, Deus cria a luz e a separa das trevas. O tema da separação dos elementos opostos aparece em várias narrativas de povos vizinhos. No Gênesis, os três primeiros dias são dias de separação. No relato bíblico, a separação não acontece por meio de um combate entre as divindades, conforme o relato da Babilônia, mas é um gesto de Deus. Após esse gesto, Deus dá nome à sua criação, confi rmando sua relação e responsabilidade com ela. À luz ele chama dia, e à treva, noite (Gn 1,3-5). No relato babilônico, a luz vem em primeiro lugar e pertence à divindade. Para os autores de Gênesis, a luz não é mais propriedade dos deuses. O abismo e a luz não são sagrados, são apenas criaturas de Deus. No segundo dia, Deus faz o fi rmamento (Gn 1,6-8). A ideia de que o céu separa as águas de cima e as de baixo está presente em outras culturas. O céu é pensado como uma placa de metal, que Deus pode abrir e fazer cair a chuva: "abriram-se as comportas do céu" (Gn 7,11; Jó 37,18). Dizer que Deus faz não se trata simplesmente de um chamado à existência, mas de uma fabricação. Ele não avalia esta obra. Os autores insistem que o verdadeiro Deus não é Marduk, nem a deusa Sin, mas o Deus de Israel. Ele é o criador da terra e do céu, que signifi ca a totalidade do universo (Sl 89,11). A desordem e o caos representam a situação do povo no exílio da Babilônia. 45 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 No terceiro dia, cria a terra fi rme (Gn 1,9-13). As águas são recolhidas e aparece a terra fi rme. Está no coração e na boca do povo: "O céu foi feito com a palavra de Javé, e seu exército com o sopro de sua boca. Ele represa num dique as águas do mar, coloca os oceanos em reservatórios" (Sl 33,6-7). Os babilônios acreditam que Marduk mora no meio do oceano. No poema bíblico, o mar e a terra são criados pela palavra de Deus e pertencem a ele. Esta é a segunda criação avaliada como boa: "E Deus viu que era bom" (Gn 1,10). A obra do terceiro dia ainda não está completa. É necessário que a terra produza vegetação e árvores. A origem está na palavra de Deus. Ele ordena que a terra produza seus frutos. Para Israel, a terra é criatura de Deus. A sua fertilidade não depende de uma divindade, mas ela produz naturalmente, segundo o que Deus ordena. E no fi nal, pela segunda vez nesse dia, temos a avaliação: "Deus viu que isso era bom" (Gn 1,12). No quarto dia, ocorre a criação de luzeiros no céu para separar o dia e a noite (Gn 1,14-19). A palavra de Deus chama à existência o Sol, a Lua, as estrelas. Os nomes sol e Lua não aparecem. Esses astros são divinizados pelos povos vizinhos de Israel, porém, no relato bíblico, eles são simplesmente luzeiros, cuja função é iluminar a terra e comandar o dia e a noite, os meses e as estações. Na Babilônia, acredita-se que o Sol, a Lua e as estrelas possuem o poder de controlar o destino das pessoas. Essa crença é desacreditada pelos autores de Gênesis 1, que evidenciam que os astros são criaturas de Deus. No quinto dia, são criados animais pequenos e grandes (Gn 1,20-23).A vida dos seres vivos começa nas águas. No pensamento mítico, as águas do caos representam o lugar no qual brotou toda a vida. Pela segunda vez, o texto utiliza o verbo bara', criar. A primeira vez se refere à criação da luz e agora aos seres vivos. Os primeiros seres vivos criados são os monstros marinhos. No mito babilônico, o monstro marinho é criado pelo abismo, uma força obscura do caos. Novamente, Israel afi rma que esses monstros são criaturas de Deus. Os seres vivos são abençoados por Deus e recebem a ordem de crescer e multiplicar-se (Gn 1,23). No sexto dia, Deus cria a humanidade (Gn 1,24-31). No terceiro dia, a terra produz a vegetação e as árvores frutíferas; no sexto dia, a terra é chamada a produzir os animais terrestres. Todos são chamados a produzir e a se multiplicar "segundo a sua espécie", esse estribilho aparece no terceiro, quinto e sexto dia (Gn 1,12.21.25). Depois de tudo criado, Deus cria o 'adam – a humanidade – "à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher os criou" (Gn 1,27). É a última das criaturas. Todo o cenário está preparado para recebê-lo. 46 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O ser humano não foi criado, como relatam algumas narrativas, para ser escravo das divindades, mas como sua criação, como ser com quem Deus se relaciona e dialoga. O ser humano é para ser a imagem e semelhança de Deus: mulher e homem são chamados à vida. Como o Criador, o ser humano é chamado a trabalhar para que triunfe a luz, para realizar, construir e procriar, dando continuidade à obra de Deus. Deus dá a sua bênção para a humanidade: "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra" (1,28). Conforme o ambiente cultural de Israel, a fecundidade das plantas, dos animais e do ser humano dependia das divindades. Em Gênesis 1 esse poder é dado a todos os seres vivos como fruto da bênção de Deus (v.22 e 28). No contexto do exílio, esta bênção é fonte de esperança para a sobrevivência do povo. A segunda parte da bênção afi rma o seguinte: "submetei a terra, dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra" (Gn 1,28b). O verbo submeter, em hebraico kabash, tem como foco principal a terra e o seu cultivo. O verbo dominar é tradução do hebraico radah, que possui o sentido de cultivar, organizar e cuidar. Esse também era o ideal sonhado para os dirigentes de Israel (Sl 72,8-14; Is 11,1-9). É uma crítica contra a tirania dos reis injustos de Israel e os imperadores babilônicos (Ez 34,1-4). A partir da bênção, a continuidade da vida depende da humanidade, cuja missão é cuidar e proteger. Por fi m, temos a ordem: “o ser humano e todos os seres vivos recebem como alimento ervas e verduras” (Gn 1,29). Não há agressividade ou violência entre animais e seres humanos. Um não tem ao outro como alimento. E na avaliação fi nal, numa espécie de contemplação geral de toda a sua obra, ouvimos: "Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom" (Gn 1,31). Leia o livro de SCHWANTES, Milton. Projetos de esperança. Meditações sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2002. Esse livro é de fácil leitura e ajuda não apenas na compreensão da leitura de Gn 1-11, mas dá excelente dica de leitura para todo o Antigo Testamento! Boa leitura! 47 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Gênesis 1 é um convite à esperança. Deus nos dá esse mundo para que possamos viver em harmonia e em paz. E no sétimo dia: Deus conclui a sua criação. Ele abençoa e santifi ca o sétimo dia! (Gn 2,1-4a). "Em seis dias Javé fez os céus e a terra; no sétimo descansou e tomou alento" (Ex 31,17). No livro do Êxodo, que talvez contenha dados mais antigos, transparece a necessidade do descanso físico. No exílio, o dia do sábado ganhou um sentido especial: passou a ser um dia de culto, no qual o povo anuncia a fé no seu Deus e rejeita outras divindades. Por isso, da mesma forma que Deus abençoa os animais e o ser humano, ele também abençoa o sábado e o santifi ca. O sábado tem que ser um dia para as pessoas resgatarem a sua consciência, sua identidade e a sua fé. Elas não devem estar submetidas ao trabalho escravo. É um tempo de encontro para fazer memória de suas tradições. É tempo de celebrar e de refazer as energias! Este primeiro relato termina com uma breve conclusão: "Esta é a história do céu e da terra, quando foram criados" (Gn 2,4a). e) Compreendendo mais: a criação do mundo na Babilônia e Gênesis 1,1-2,4a. A Mesopotâmia estava localizada nas planícies férteis, banhadas pelos rios Tigre e Eufrates. Antigamente, esses rios estavam ligados por canais e serviam para a irrigação e a navegação. Apesar de ser bem menor que o rio Eufrates, o rio Tigre provocava enchentes arrasadoras. As enchentes se tornavam enormes dilúvios. Nessas regiões, as invasões de povos nômades eram muito regulares (MARQUES, NAKANOSE, 2007, p. 55). A geografi a e a realidade da região infl uenciaram no comportamento e modo de pensar de seus habitantes. As inundações eram consideradas como um capricho das divindades ou consequência das lutas entre elas. As pessoas viviam com medo, fazendo tudo para agradar as divindades e escapar da ira divina. As pessoas acreditavam que os seres humanos tinham sido criados para servir às divindades. Na Epopeia de Gilgamesh (Rei sumério e fundador da cidade de Uruk, governou a região em torno do ano 2.700 a.C. Esta epopeia foi descoberta numa placa de argila e foi escrita em caracteres cuneiformes) há uma narrativa sobre a criação do mundo. Na visão dos babilônios, o mundo foi criado da seguinte forma: No princípio só havia Apsu, as águas doces, e Tiamat, as águas salgadas do mar. Eles criam os outros deuses, mas depois se arrependem e planejam destruí-los. Os deuses se defendem matando Apsu e atacando Tiamat. Esta prepara um exército de monstros. As divindades buscam um herói que possa combater Tiamat. Todos têm medo, exceto Marduk, um jovem guerreiro, Gênesis 1 é um convite à esperança. Deus nos dá esse mundo para que possamos viver em harmonia e em paz. 48 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS fi lho do deus Ea. Marduk resolve atacar Tiamat, mas impõe uma condição: se ele vencer será nomeado rei dos deuses. Eles aceitam as condições de Marduk, que parte para o combate. Marduk envolve a sua rival em sua rede e lança no rosto dela o Vento Maligno. E enquanto os ventos atacavam o estômago dela, seu corpo foi distendido e sua boca se abriu totalmente. Nesse momento, com a fl echa, Marduk corta o estômago, as entranhas e o coração de Tiamat, eliminando a sua vida e a dos deuses que a seguiam. Em seguida, ele toma o corpo de Tiamat e o divide como uma concha, em duas partes: com a metade, ele estabelece o céu, cerca com um portão e coloca guardas para impedir que as águas escapem. Marduk constrói estações para os deuses, fi xando seus semblantes como constelações. Ele determina o ano designando zonas: ele estabelece três constelações para cada um dos doze meses. Quando Marduk ouve as palavras dos deuses, seu coração o leva a realizar obras engenhosas. Abrindo sua boca, ele disse a Ea, deus das águas: "Acumularei o sangue e farei que surjam os ossos. Estabelecerei um selvagem, 'homem' será o seu nome; criarei um homem deveras selvagem. Ele será encarregado de servir aos deuses para que eles possam ter tranquilidade!" Kingu contribui para a revolta, levando Tiamat a se rebelar, e entrar em combate. Eles prendem Kingu, segurando-o diante de Ea. Por ser considerado culpado, eles cortam suas artérias. Do seu sangue é criada a humanidade. Ea impõe o serviço e libera os deuses. Depois de Ea, os sábios criam a humanidade, impondo-lhe o serviço aos deuses (BIERLEIN, 2003, p. 85-87). A realidade da guerra e da tirania imposta pelo império babilônico está por trás da construção do mito babilônico. A morte da líder, Tiamat, abriu caminho para a vitória. O seu bando foge, mas é aprisionado e morre. O céu é criado com a metadedo corpo de Tiamat. Por ter vencido o combate, Marduk consegue o título de divindade suprema no panteão dos deuses. Ele é celebrado como deus criador na Babilônia e em toda a região da Mesopotâmia. Era o que acontecia na vitória de uma batalha. Os tiranos da Babilônia, legitimados e protegidos por Marduk, sujeitam todas as nações e escravizam todos os seres vivos da terra. Vivendo como escravos na Babilônia, em contato com outras divindades, os israelitas sentiam a necessidade de repensar sua religião e sua fé. Conhecendo o mito da criação segundo os babilônios, os judeus escreveram a sua própria versão. Vejamos o que é próprio do povo de Israel: • Para os babilônios, o universo surge da luta entre as divindades; em Gênesis 1, não há batalha entre divindades, Deus é único e cria, de maneira ordenada, a partir de sua palavra. 49 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 • O vento no mito babilônico é denominado de maligno e sua ação é destruidora. Ao contrário, o sopro de Deus em Gênesis 1 é anúncio de sua intervenção criadora no mundo. É um vento que traz vida, não contém ameaças, nem provoca medo; ao contrário, anuncia a abertura do primeiro dia. • No relato bíblico, a luz e as trevas não são divindades, como se acreditava na Babilônia, mas simplesmente criaturas de Deus. Para surgir a terra, em Gênesis, Deus separa as águas de cima e as de baixo, colocando diques ou barreiras entre elas. No relato babilônio, Marduk corta o corpo de Tiamat em duas partes; com uma delas faz o fi rmamento, colocando guardas para impedir que as águas escapem. • Na Babilônia, o solo é formado do ventre de Tiamat, a deusa das águas amargas. O Sol é identifi cado com Marduk. O relato bíblico nem sequer chama os astros de Sol e Lua, mas simplesmente de luzeiros do dia e da noite. Dessa forma, elimina qualquer possibilidade de serem confundidos com as divindades. Eles foram criados e nomeados pelo Deus de Israel. • O simbolismo da água como lugar de onde brota a vida é muito forte em várias culturas, por exemplo, no Egito, na Babilônia, Índia e China. Conforme o mito babilônico, o abismo cria o monstro marinho. Trava- se uma luta entre as divindades e Marduk; vencendo-as, ele se torna a divindade principal. Na tradição do povo judeu, há textos que falam do monstro marinho como criação de Deus. No Salmo 104,25-26 lemos: "Eis o vasto mar, com braços imensos, onde se movem, inumeráveis, animais pequenos e grandes; ali circulam os navios de Leviatã, que formaste para com ele brincar". Em contrapartida, o grupo do Segundo Isaías acredita que foi Javé que destruiu o monstro marinho: "Por acaso não és tu aquele que despedaçou Raab, que trespassou o dragão? Não és tu aquele que secou o mar, as águas do Grande Abismo?" (Is 51,9-10). • No relato babilônico, o homem é criado para servir às divindades, justifi cando a divisão da sociedade em classes e a escravidão. De acordo com Gênesis 1,27, Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança para ser livre e senhora da história. • De acordo com Gênesis 1, a obra da criação dura seis dias e o sétimo é para o descanso. Na cultura judaica, o número sete indica perfeição, totalidade, plenitude. Numa linguagem simbólica, os autores afi rmam que a criação de Deus é perfeita. 50 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS • A leitura dos relatos da criação segundo Gênesis 1,1 até 2,4a e segundo o mito babilônico nos possibilita perceber diferentes tentativas do ser humano de responder às perguntas sobre as origens da Vida. Perguntas sobre as quais teólogos e cientistas continuam se debruçando, perguntas que são repetidas a cada geração. De onde vem a vida? Numa dimensão de fé, acreditamos que a origem da vida está em Deus. E nossa atitude é de reverência diante do mistério do universo, que nos convoca a um cuidado permanente para que a vida continue existindo. Sempre. A MonarQuia de Israel (DaVi e SalomÃo) Nos cem anos seguintes, entre 1050-950 a.C., com o aumento da produção camponesa, propiciado pelo aumento da população, pela introdução do ferro e do boi na agricultura, os donos de bois, líderes políticos, guerreiros e sacerdotes, seduzidos pelo comércio, serão levados a esboçarem tentativas de acumular riquezas e poder (Jz 8,24-26;9,1-4;10,3-4; 1Sm 2,12-16). O desenvolvimento dessas contradições internas, somado aos ataques de inimigos externos (1Sm 11,1-2; 13,19-21), enfraqueceram os fundamentos solidários da sociedade tribal israelita. Desse modo, criam-se as condições para a transformação de algumas ideias camponesas com núcleos urbanos e o surgimento de uma elite que concentra poder econômico, político e militar e institui a monarquia (1Sm 9,1; 11,5-7; 25,2). A monarquia nasce em Israel como uma imposição mais política do que religiosa. Não chegou a ser instituída a partir de um caráter religioso natural, como no Egito e na Mesopotâmia. A monarquia não fazia parte da tradição israelita, mas se deu pela vontade do povo, de acordo com os escritos bíblicos: “Disseram a Samuel: ‘Veja: você já está idoso e seus fi lhos não seguem seu exemplo. Por isso, escolha para nós um rei que nos governe, como acontece em todas as nações” (1Sm 8,5). Apesar disso, a monarquia não se desvencilhou da religião israelita. O conceito de sagrado é mais efi caz após a instituição da monarquia. Com a monarquia se confi gura uma sociedade, em que alguns poucos possuem muito mais poder e riqueza do que a maioria da população, e o patriarcalismo e o antropocentrismo são reforçados. A monarquia constitui um grupo social dominante que controla o exército e se mantém explorando o trabalho e se apropriando de grande parte da produção das famílias camponesas, direcionando-a para a rede do comércio internacional. As famílias camponesas são obrigadas a entregar parte de sua produção e também devem entregar seus fi lhos e fi lhas para trabalhar nas obras e guerras decididas pelo rei e seus aliados 51 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 (1Sm 8,11-17). Um pequeno grupo se torna muito rico e poderoso, enquanto a maioria da população não possui terra e nem casa (1Sm 22,2; 25,10). Esse processo começou timidamente com Saul (cerca de 1050 a.C.) e consolidou-se com Davi e Salomão (entre 1000 e 930 a. C.). Essas enormes modifi cações na sociedade exigem uma justifi cação, uma legitimação. Isso será feito através da elaboração de uma religião ofi cial, isto é, uma teologia, uma espiritualidade e uma liturgia que favoreça o rei e a hierarquia social. A religião ofi cial se concretiza por intermédio da construção de um templo, que se tornou exclusividade da monarquia, uma vez que as aldeias e tribos possuíam seus locais de culto e pequenos santuários que eram de sua propriedade. Dessa forma, a monarquia de Davi se apropria do Javé das tribos e o coloca como patrocinador do rei e do seu exército (2Sm 6,1-19), e depois, na antiga cidade-estado Cananeia de Jerusalém, Salomão constrói o templo celebrado como a “casa de Javé” (1Rs 8,12-13; Sl 132,5-7.13-14; 134,1; 135,1.21). No período da monarquia, o Templo fazia parte de um con- junto que incluía o palácio do rei e suas dependências. Era considerado um anexo do palácio. Os reis faziam-lhe doações, como também lançavam mão de seus tesouros (1Rs 15,15.18; 2Rs 12,19; 16,8). Quando houve a divisão do reino, em torno de 931 a.C., Jeroboão I, o primeiro rei do Norte, aproveitou a existência de dois antigos santuários, um em Betel e outro em Dã, e os transformou em templos reais, colocando neles a ima- gem do bezerro de ouro (1 Reis 12,28-33), entre 931 e 910 a.C. O objetivo era impedir a ida do povo ao Templo de Jerusalém (1Rs 12,26-33). Este, como o de Betel, era um santuário real, forte instrumento para consolidar a política centralizadora dos reis. Com o fortalecimento da monarquia, o culto no Templo de Jerusalém se tornou o elemento essencial da religião. Isso se refl ete, por exemplo, nas oraçõesdo período monárquico, como podemos ver no Salmo 63,2-3.10-12: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor como terra árida, esgotada, sem água” (NAKANOSE, 2010, p. 21). Embora em Jerusalém Javé ocupe espaço central por ser o Deus do rei e da religião ofi cial (Sl 2; 89), todas as outras divindades do povo de Israel, ou oriundas de alianças ou imposições políticas e econômicas, também serão cultuadas ali (2Rs 23,4-14), integradas na vertente religiosa de legitimação de poder e da riqueza. Os reis Ezequias e Josias empreenderam reformas administrativas com o objetivo de centralizar tudo em torno do Templo de Jerusalém. Eles procuraram controlar o povo em torno de um só Deus, Javé ofi cial, e de uma dinastia, a casa de Davi. Por volta de 622 a.C., Josias iniciou sua reforma, eliminando os outros cultos existentes no Templo; mandou que 52 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS os guardas retirassem do santuário de Javé todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do céu; queimou-os fora de Jerusalém, nos campos do Cedron, e levou as cinzas para Betel. Destituiu os falsos sacerdotes que os reis de Judá haviam estabelecido e ofereciam sacrifícios nos lugares altos, nas cidades de Judá e nos arredores de Jerusalém, e os que ofereciam sacrifícios a Baal, ao Sol, à Lua, às constelações e a todo o exército do céu (2Rs 23,4b-7) (NAKANOSE, 2010, p. 21) Para compreender a Bíblia, é fundamental saber que a monarquia, apesar de ser sinal efetivo da subjugação das aldeias camponesas pelos “centros urbanos” e inspirar-se no sistema fenício-cananeu (1Rs 5,15-32) e egípcio (1Rs 3,1), será instituída em nome de Javé, o Deus libertador dos escravos e camponeses. E os sacerdotes e escribas da religião ofi cial vão apresentar a monarquia como algo desejado por Javé (1Sm 10,1-2; 16,1; 1Rs 3,7), e o rei como o fi lho escolhido e abençoado de Javé e a dinastia de Davi em Jerusalém (2Sm 7,8-16; Sl 89). Enquanto nas tribos as mediações para a realização da vontade de Javé eram as leis de solidariedade e ajuda mútua, na monarquia a vontade de Javé se realizará através do rei e do próprio sistema monárquico. Reino do Norte e Seus ProFetas No item anterior estudamos o período da monarquia em Israel com Saul, bem como a sua ampliação e estruturação com Davi e a consolidação do reino com Salomão. As consequências geradas pela política desses reis para o povo de Israel foram muitas. A monarquia trouxe benefícios, mas também muitas difi culdades a serem enfrentadas pelo povo. A centralização do culto no Templo de Jerusalém trouxe muitos problemas para as pessoas que moravam nas regiões mais distantes da capital. Após a morte de Salomão, em 931 a.C., o Reino do Norte proclama sua independência em relação ao Sul, e o reino se subdivide: reino do Norte e reino do Sul. É um período cheio de perplexidades, mas com uma relevância para o universo bíblico, pois nos seus dois séculos de existência, o Reino de Israel foi lugar de muitos acontecimentos e de personagens bíblicos: os profetas e os reis. 53 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Após a morte do rei Salomão, Roboão sucedeu seu pai no trono. Os nortistas não aceitaram facilmente essa realidade. Contudo, exigiram que Roboão se apresentasse numa assembleia na cidade de Siquém, dessa forma exigiram as condições para que o rei fosse admitido: acabar com os confl itos e a opressão. O povo teria voz ativa como no tempo da confederação das doze tribos (1Rs 12,1-5). A partir do ano 931 a.C. a ilusão de um reino unido se despedaçava, como no gesto simbólico realizado pelo profeta Aís de Silo, era um profeta do Norte (1Rs 11,29-31). Os dez pedaços entregues a Jeroboão signifi cavam as dez tribos do Norte a separar-se do Sul. O profeta incentivava a divisão do Reino do Norte e oferecia o seu apoio ao lado da revolta, e Jeroboão se tornou uma ameaça para a estabilidade do Reino de Salomão. É possível afi rmar que a monarquia e a profecia surgem juntas e se desenvolvem lado a lado. Reis e profetas são fi guras complementares, mas contrastantes. No Reino do Norte, os profetas que atuaram foram os seguintes: Elias, Eliseu, Amos e Oseias. Todos eles declaram “guerra santa” contra os reis de Israel (IRs 18; 2Rs 10). A partir de agora iremos apresentar de forma sucinta cada um deles. a) Elias Para que os governantes no período em que atuou o profeta Elias tivessem sucesso era necessário, antes, destruir a religião de Javé, seu principal rival. Esta religião mantinha o povo obediente às leis e à aliança, às tradições de cunho tribal e aos costumes do tempo dos juízes. Isso impedia a centralização do poder nas mãos do rei. Com o intuito de acabar com a religião de Baal, os reis vão incentivar e promover o culto idolátrico a Baal, deus cananeu da chuva e da fertilidade do solo, o protetor das cidades. No período em que reinou Acab, a religião de Baal se tornou ofi cial (1Rs 16,32-33). Acab foi infl uenciado por sua esposa Jesabel, substitui o culto a Javé pela adoração a Baal (1Rs 16,31-33), Elias avisou o rei a repentina falta de chuva (1Rs 17,1), e, portanto, um período longo de seca. O rei achava que Elias era o culpado pela falta de chuvas. Elias não se intimidou, pois a palavra de Javé veio a ele (1Sm 17, 1s) pedindo que fosse até Serepta, lá ele encontrou uma mulher pobre, viúva, estrangeira que, com o seu fi lho órfão, também vive as difi culdades provocadas pela seca. Elias pede água e pão. A mulher partilha com ele o que lhe resta. A partilha e a solidariedade colaboraram para enfrentarem juntos a falta de alimentos. 54 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS b) Eliseu Eliseu foi sucessor de Elias e era um homem bastante particular dentre os profetas. O conjunto de narrativas que falam a seu respeito está presente no livro de 2Reis. Eliseu é considerado um especialista em “milagres aquáticos” (2Rs 2,14; 2,21; 5,10; 6,6; 2,23-24; 4,1-7.9-44; 13,21). Também era envolvido nos eventos políticos que marcaram a primeira metade do séc. IX a.C. (2Rs 6,8-23, 8,7-15; 13,14-20). Esse movimento confi rma a característica do profetismo como um movimento político a partir da ótica dos mais pobres. c) Amós Jeroboão II, por volta do séc. VIII, foi o décimo terceiro rei do Reino do Norte. Seu reinado aconteceu em uma época de enriquecimento, mas na qual o luxo dos mais ricos contrastava com a pobreza da maior parte da população. No reinado de Jeroboão II surgiu o profeta Amós, um pastor de Técua, rude e incisivo (Am 7,14). Era um profeta escritor. Em relação aos profetas não escritores como Elias e Eliseu, há em comum a defesa ferrenha da crença em Javé. Contudo, existia uma falsa prosperidade, a exploração, a injustiça e o suborno possibilitavam que alguns poucos adormecessem em divãs de marfi m e se regalassem em festas intermináveis (Am 6,1-7), enquanto a maior parte do povo permanecia cada vez mais pobre e impossibilitada de condições mínimas para a sobrevivência. O povo nem sempre percebia as benesses da monarquia, e continuava a acreditar no discurso das autoridades governamentais, deixava-se convencer pela pregação espiritualista dos líderes religiosos, que legitimavam a situação, fazendo perigosas concessões ao baalismo. Por conta disso, Amós se torna o porta-voz dos camponeses (Am 1,2). A partir do profeta Amós, os profetas questionarão o sistema monárquico de Israel e Judá, decretando a falência de modelo de sociedade baseado nesse esquema de opressão. d) Oseias O profeta Oseias, com o mesmo vigor de Amós, faz fortes denúncias aos opressores políticos e religiosos de sua época. Mas os pecados de Israel, dessa vez, são identifi cados como a “prostituição” do povo, que abandonou o projeto de Javé para servir a Baal (Os 4,2.4-10; 6,7-10; 10,4; 12,2.8-9). Essa ótica é reforçada pela experiência pessoal de sua esposa que,segundo os textos, o abandonou e entregou-se à “prostituição sagrada” nos ritos balísticos de fecundidade. Mas ele a perdoou quando decidiu voltar para casa (Os 1,2-3,5). 55 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Sua experiência pessoal o fez repensar a relação entre Javé e seu povo. Oseias percebe que a causa principal de toda a situação complicada do povo seria sanada, caso se convertessem a Javé, que perdoaria, pois o seu amor prevaleceria. Daí a denúncia ao culto idolátrico torna-se a sua principal temática. O Reino do Norte teve o seu fi m em 722 a.C. com a destruição da Samaria, sua capital, para não se erguer jamais. O Reino do Sul, apesar de ser bem menor e mais pobre, continuou existindo por mais algum tempo, mesmo pagando o preço da vassalagem, como veremos no próximo item. Reino do Sul e Seus ProFetas O Reino de Judá tinha Jerusalém como sua capital. Após Reboão, fi lho de Salomão, possuiu 19 reis, dos quais boa parte foi morta. O Reino de Judá não tinha a mesma prosperidade econômica do seu vizinho do Norte, mas não se incomodava com essa realidade, pois acreditava na fi rmeza das suas instituições, que faltavam a Israel, que era a promessa divina da eleição, estabilidade e permanência para sempre, pois Javé escolhera Jerusalém para morar (1Rs 11,36; 14,21; Sl 48). O Reino do Sul teve 19 reis, conforme dito anteriormente, e durou 345 anos. Desde o início da monarquia com Saul, surgiram também os profetas como reação aos desmandos da monarquia. Inicialmente eles se relacionavam mais de perto apenas com os reis, pois conviviam com eles no palácio. Mas nem por isso podem ser considerados profetas apenas da corte, quase como funcionários do Estado. Durante o período da monarquia dividida, os profetas fl oresceram mais no Norte, onde as tradições javistas do tribalismo, forma mais conservada e também onde as realidades política, social e religiosa exigiam intervenções severas desses “homens de Deus”. Então, os profetas acabaram por se distanciar do rei e do palácio e a se identifi carem com as difi culdades da maioria do povo, os pobres e excluídos. Durante o reinado de Salomão, os profetas têm sua atuação enfraquecida, e isso até a segunda metade do séc. VIII a.C., quando surgiu o eloquente Isaías, no tempo do rei Ozias (740) e de seus sucessores. Pode ser que esse sumiço dos profetas se deva à teologia davídica, elaborada na corte, e a relativa paz em que vivia o reino de Judá, durante pouco mais de cem anos. Inibiam o surgimento desses grandes críticos da sociedade, os profetas. 56 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS a) Isaías Isaías foi o responsável pela reaparição da profecia em Judá, silêncio de mais de um século. Ainda jovem, recebeu a vocação profética, em período anterior à morte de Ozias, em 740 a.C. (Is 6, 1-8). Exerceu o ministério profético por aproximadamente 40 anos. A sua profecia demonstra ser o profeta um conhecedor da vida da cidade, de sua política, da corte e das atividades do Templo. Ele ainda demonstra muita sensibilidade pelos pobres e excluídos daquela sociedade: as viúvas, órfãos, os sem-teto (Is 1,17.23; 9,16; 10,2). O profeta demonstra possuir um profundo conhecimento da realidade à sua volta, no cenário internacional. Suas intervenções e palavras eram tão signifi cativas que se solidifi caram para além de seu tempo. Dessa forma foi interpretada a profecia do nascimento de um libertador que ele chamou de Emanuel – Deus conosco –, (Is 7,14), do rebento de Jessé (Is 11,1s) e da cegueira e surdez do povo (Is 29,18-19). No campo político, suas intervenções mais signifi cativas foram duas: a primeira no período de Acaz (cerca de 732 a.C.) e a segunda no tempo de Ezequias. Isaías foi o primeiro profeta cujas palavras foram registradas em um livro que leva o seu nome. Apesar do seu livro possuir 66 capítulos, somente os primeiros 39, excetuando-se os 24-27 e 34-35, contém as palavras do profeta do séc. VIII. Os demais capítulos – inseridos posteriormente na sua obra – demonstram que o profeta fez escola, isto é, sua mensagem encontrou respaldo na pregação de outros profetas que lhe seguiram os passos, mesmo após a sua morte. b) Miqueias O profeta Miqueias, possivelmente, nasceu no ano 725-701 a.C. (cf. Jr 26,18). É um camponês com origens de Morasti-Gat (Mq 1,1-14), aldeia de Judá, situada acerca de 33 km a sudoeste da capital Jerusalém. O profeta Miqueias é do ambiente campesino e por isso está no meio dos problemas do homem do campo. Por ser um caminho de passagem para Jerusalém, Morasti-Gat encontra-se rodeada de fortalezas. Em um círculo de 10 km, a pequena cidade está rodeada pelas cidades Azeca, Soco, Odolam, Maresa e Laquis (Mq 1,8-15). Miqueias é contemporâneo do profeta Isaías de Jerusalém. O ambiente em que os dois profetas estão inseridos é relevante para entender a realidade do tempo de Miqueias sob a ótica do campo (Miqueias) e da cidade (Isaías). 57 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 O profeta Miqueias vive um dos períodos mais conturbados do reino de Judá. Isso se dá porque Israel e Síria movem guerra contra a Assíria e Judá (guerra siro-efraimita em 735-734; cf. 2Rs 16,5-16; Is 7,1-9; 8,1-10), além de pagamentos de altos impostos, para a Assíria, da destruição do reino do Norte e de grande fl uxo de refugiados para o sul em 722 a.C. Nesse período, Ezequias, que era rei de Judá (716-687 a.C.), faz a reforma atacando os santuários e lugares altos do interior (cf. 2Rs 18,3-6). O mesmo rei lidera o movimento antiassírio e faz guerra contra as cidades fi listeias (705-701; 2Rs 18,8). E como consequência da atitude de Ezequias, Senaqueribe invade Judá e toma 46 cidades da planície, causando grande mortandade, deportando cerca de 2.000 pessoas, destruindo sua infraestrutura. Só não tomou Jerusalém porque Ezequias arrependeu-se de sua própria revolta e acabou aceitando novamente ser submisso à Assíria. Mas o rei de Jerusalém segue obrigado a pagar tributos ao Império Assírio, porém, desta vez, ainda mais pesados (cf. 2Rs 18,13s), tudo sob o conselho de Isaías, o profeta de Jerusalém contemporâneo de Miqueias (cf. 2Rs 19, bem como outros textos do livro de Isaías). Mediante todas essas injustiças, Miqueias é o defensor dos pobres que são violentados por essa elite dominante. Ele grita contra os ricos e poderosos de Jerusalém: “Vocês são gente que devora a carne do meu povo” (Mq 3,3; cf.3,10). Miqueias é um camponês que vive espoliado, exprime sua dor e ira em linguajar duro e forte, muito parecido com a profecia de Amós, que era também do interior comprometido com as causas das pessoas pobres subjugadas pelo sistema governamental. c) Sofonias A atividade do profeta Sofonias pode localizar-se no período da menoridade do rei Josias (640-620 a.C.). O povo estava sofrendo muito com a dominação do Império Assírio, e internamente com as elites dirigentes, uma em aliança com a Assíria, a outra com o Egito. Toda essa disputa acabou por provocar o assassinato do rei Amon, que conseguiu se manter no trono por apenas dois anos, de 642 a 640 a.C. Em lugar dele o povo da terra colocou o fi lho Josias (642 a 609 a.C.) com oito ano de idade, apenas (2Rs 21,24; 22,1), mantendo o país sob o domínio da Assíria, refl etido nos seus cultos astrais em Jerusalém (1,5; cf. 2Rs 21,5). 58 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Mas quem era mesmo esse povo da terra? Era o grupo defensor da dinastia de Davi, formado por grandes donos de terra, que com outros dirigentes de Jerusalém oprimiam e exploravam o povo (Ez 22,29). A população camponesa era obrigada a fornecer alimento para manter o comércio e sustentar o luxo e mordomia da corte israelita (1,8). O profeta denuncia com vigor a concentração de riqueza em Jerusalém, a centralização do excedente agrícola, o controle do comércio e as práticas religiosas. A principal característica dos oráculos de denúncia é o “dia de Javé”(cf. Am 5,18-20) contra os opressores (1,7.14-18; 2,2). Sofonias é o grito profético do povo explorado. Os pobres da terra, como sujeito histórico, são a única esperança de uma sociedade baseada na justiça e na pobreza, na partilha e solidariedade (2,3): eles são amados e protegidos por Javé. O nome de Sofonias signifi ca “Deus protege” ou “esconde”, o que em muito ajuda a entender sua profecia. A profecia atribuída a Sofonias foi lida e relida no exílio e no pós-exílio. Para os redatores, “o resto da casa de Judá”, “o resto do meu povo”, “um povo pobre e fraco”, “o resto de Israel” (2,7.9; 3,12), é sinal de esperança nos tempos difíceis de calamidade nacional; a destruição de Jerusalém, o exílio e a dominação dos babilônios, pois Deus ama e protege o povo pobre e está no meio dele (3,5.15.17). d) Hulda Hulda é a única mulher citada na Bíblia que exerceu o ministério profético, cujas palavras foram registradas por escrito, num livro que não levou o seu nome. Ela exerceu sua profecia no tempo de Josias, para confi rmar a autenticidade das palavras presentes no livro da lei encontrado no templo e dar seu parecer favorável à reforma religiosa pretendida pelo rei. As palavras claras e contundentes de Hulda (2Rs 22,15-20) foram acolhidas pelo rei como a expressão própria da vontade de Deus, pois como profetisa, foi procurada pelos funcionários do rei para consultar o Senhor (2Rs 22,13). e) Jeremias O profeta Jeremias nasceu por volta do ano 650 a.C., em Anatot, pequena aldeia levita da tribo de Benjamim (Jr 1,1), cerca de 6km ao nordeste de Jerusalém. É provável que seja descendente de família sacerdotal ligada às tradições dos levitas do Norte. Este grupo se caracteriza pela fé no Deus da vida, em oposição ao Javé ofi cial do Templo, e também por defender os interesses da população camponesa contra as injustiças da monarquia (26, 11-18). A linguagem de Jeremias utiliza imagens do campo (2,20-27; 14,4-5) e sua profecia brota da preocupação com o sofrimento dos camponeses (10,17-25). 59 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 O profeta Jeremias exerceu sua profecia no período 627 e 582 a.C., acompanhando o reinado de cinco reis: Josias, Joacaz, Joaquim, Joaquin e Sedecias (Jr 1,1-3). Período de grandes complicações em Judá. O profeta paga um preço muito alto por combater as injustiças: “ai de mim, minha mãe, pois a senhora me gerou” (Jr 15,10; cf. as cinco confi ssões: Jr 11,18-12,6; 15,10-21; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-18). f) Naum Naum é o sétimo dos profetas menores, natural de Elcós, provavelmente aldeia do interior de Judá. Seu nome signifi ca “aquele que consola”. Seu oráculo é contra Nínive, capital do Império assírio (2,9; 3,1.7). A descrição detalhada e a extraordinária vivacidade nas cenas da conquista de Nínive (2,4-2,19 levam a situar a atividade do profeta imediatamente após a queda dessa grande cidade, em 612 a.C. Naum dava asas ao sentimento de alegria do povo ao ver a derrota do seu opressor, a Assíria, cuja capital, Nínive, havia sido tomada pelos babilônios em 612 a.C. Apesar de pouco ortodoxa, porque parece dizer “bem feito” a quem está pagando pelo mal que fez, o profeta ensina que todo opressor terá o seu dia e renova a esperança do povo não com sentimento de vingança, mas como certeza do juízo de Deus sobre a história. g) Habacuc A visão do profeta Habacuc mostra a crueldade da Caldeia ou Babilônia e a violência do seu exército (1,5-11). Sabemos que Judá foi vítima das opressões imperialistas dessa nação. Por isso, deve ter sido Judá o lugar e o período histórico da atuação de Habacuc, entre a queda de Nínive, capital do Império assírio, em 612 a.C., e a tomada de Jerusalém durante o reinado do rei Joaquim (608-598 a.C.), mais precisamente em 598-597 a.C. Na sua origem, a profecia de Habacuc se resumia na denúncia contra a violência da elite de Judá, em tempos do rei Joaquim, e no anúncio da invasão babilônica. Durante o exílio se fez uma releitura, estendendo a violência ao exército da Babilônia. Após o exílio, foi acrescentado o salmo do Capítulo 3, que muda sistematicamente o tom rebelde do profeta. 60 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Algumas ConsideraÇÕes Ao longo desse capítulo pudemos nos aproximar um pouco mais da história de Israel, verifi cando mais de perto algumas das suas inúmeras narrativas. Buscou-se dar a você, aluno, algumas ferramentas de leitura. O conteúdo mais aprofundado, dependendo do seu interesse, poderá encontrar de maneira mais ampla na bibliografi a indicada. Você, num primeiro momento, pode achar muito complicado estudar a história de Israel, de fato, essa difi culdade ocorre porque os escritos bíblicos não são narrados de forma linear, pois não se trata de um livro apenas, mas de muitos, escritos ao longo de vários séculos, o que colabora para identifi car o contexto em que surgiram as narrativas. Por outro lado, é claro que essa tarefa exige um pouco de esforço, não diferente da missão que tiveram muitos dos profetas do antigo Israel, de acordo com o que vimos no conteúdo. A profecia é fundamental para explicar o contexto social, político e ideológico do Israel antigo. No Antigo Testamento transparecem nas narrativas nitidamente duas maneiras de fazer e viver a profecia: os profetas da corte e os profetas camponeses. Cada um se identifi cando com um projeto distinto. Ao ler o texto bíblico, você pode verifi car de qual profeta a narrativa trata, quais os seus interesses, e por quem ele se identifi ca e sofre/clama por justiça. ReFerÊncias ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982. BIERLEIN, J. F. Mitos paralelos: uma introdução aos mitos no mundo moderno e as impressionantes semelhanças entre heróis e deuses de diferentes culturas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 85-87. EQUIPE NACIONAL DA DIMENSÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Como nossa Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995. KONINGS, Johan. A Bíblia nas suas origens e hoje. Petrópolis: Vozes, 1998. LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de Teologia. In: Exegese. DON- DELINGER, Patrick. São Paulo: Paulinas e Loyola, 1998. LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2014. MARQUES, Maria Antônia; NAKANOSE, Shigeyuki. Deus viu que tudo era mui- to bom. Entendendo o livro de Gênesis 1-11. São Paulo: Paulus, 2007. 61 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 MCDONALD, Lee Martin. A origem da Bíblia. Um guia para os perplexos. São Paulo: Paulus, 2013. MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infi nita. A Bíblia e a sua interpretação. Universidade Católica de Pernambuco; Paulinas: Recife; São Paulo, 2015. MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Petrópolis: Vozes, 2012. PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998. RODRIGUES, Maria Paula (Org.). Palavra de Deus, palavra de gente. As for- mas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004. RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamen- to, história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2010. SCHWANTES, Milton. Projetos de esperança. Meditações sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2002. SERVIÇO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA. Iniciação à leitura da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2007. SHIGEYUKI NAKANOSE. (Jn 2,5): Uma leitura de Jonas 2,1- Continuo a con- templar o teu santo Templo 11. Revista Vida Pastoral – setembro-outubro 2010 – ano 51 – n. 27 p. 21. ZAPELLA, L. Manuale de analisi narrativa bíblica. Torino: Claudiana, 2014. 62 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS CAPÍTULO 3 O Exílio, e a Volta do Exílio Decreta- da pelo Império Persa A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Conhecer as principais características do exílio da Babilônia. Compreender como ocorreu o exílio da Babilônia, seus personagens principais, e os livros que nascem nesse contexto. Conhecer o retorno do exílio e a reconstrução deJerusalém fi nanciada pelo Império Persa. Ler e interpretar a literatura bíblica em cada etapa da história de Israel. Identifi car os diferentes contextos em que está inserido o exílio da Babilônia nos textos bíblicos. Distinguir as diversas etapas da história de Israel. 64 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS 65 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 ContextualiZaÇÃo Neste terceiro capítulo temos como objetivo principal a compreensão de uma etapa muito importante da história de Israel, que é o exílio da Babilônia e o possível retorno da antiga elite de Judá para Jerusalém. Nessa perspectiva, iremos descobrir que a literatura bíblica depende, e muito, desses eventos, pois boa parte dos seus escritos foi reelaborada a partir da experiência do exílio e do pós-exílio. O Que é o Exílio? Muito se fala em exílio na Bíblia, mas o que foi esse acontecimento tão relevante nas narrativas bíblicas? Na verdade, não aconteceu apenas um exílio na história de Israel, foram muitos, mas só um deles se tornou o mais conhecido. Nesse capítulo iremos caminhar com os exilados da Babilônia e fazer o retorno com eles, e, com isso, conhecer um pouco mais da literatura que foi escrita nesse período. Vamos lá? O exílio da Babilônia é o mais conhecido entre todos os exílios, ele ocorreu no VI séc. a.C., mais ou menos entre os anos 597 até 538 a.C. Foram 59 anos de um período que modifi cou radicalmente a história dos israelitas. No VIII séc. a. C. ocorreram três exílios. Neste período a Assíria era a grande potência mundial e subjugara todo o mundo então conhecido. A deportação de seus povos dominados, em especial da elite que governava, era parte do plano, com práticas de guerra e de subjugação. Em 732 a.C. os assírios deportaram mais ou menos 20 mil pessoas do norte de Israel: “No tempo em Faceia era rei de Israel o rei da Assíria Teglat- Falasartomou Aion, Abel-Bet-Maaca, Janoe, Cedes, Hasor, Galaad, Galileia e toda a região de Neftali e deportou seus habitantes para a Assíria” (2Rs 15,29). Já em 722 a.C. foi a vez dos assírios levarem para o cativeiro os habitantes da Samaria, capital de Israel, no reino do Norte. Não há dados de quantas pessoas foram atingidas por este banimento, certamente foram muitas. Isso se justifi ca, porque os assírios tiveram que trazer imigrantes de outras partes do Império para habitarem no lugar dos deportados: No décimo segundo ano do reinado de Acaz, rei de Judá, Oseias, fi lho de Ela, tornou-se rei de Israel. Reinou nove anos em Samaria. Fez o que é mau aos olhos de Javé, mas nem tanto como os reis de Israel que vieram antes dele. Salmanasar, rei da Assíria, atacou Oseias, que teve de se submeter e pagar 66 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS tributo. Mas o rei da Assíria descobriu que Oseias o traía, pois havia mandado embaixadores a Sô, rei do Egito, e deixou de pagar ao rei da Assíria o tributo anual. O rei da Assíria mandou prendê-lo e deixá-lo acorrentado na prisão. Em seguida, o rei da Assíria subiu contra toda a terra, atacou Samaria e o sitiou por três anos. Ao nono ano do reinado de Oseias, o rei da Assíria tomou Samaria e deportou os israelitas para a Assíria. Os israelitas foram levados para Hala, às margens do rio Habor em Gozã, e também para cidades da Média (2Rs 17,1-6; cf. também 18,9-12). No ano de 701 houve outra deportação. Os atingidos eram da população de Judá, reino do Sul, os exércitos assírios os tomaram de assalto (2Rs 18-20). As narrativas bíblicas não mencionam números, mas muitas pessoas foram atingidas. Um general assírio relatou que havia deportado cerca de 200 mil pessoas. De acordo com Milton Schwants (2009, p. 11), esse dado pode ser um exagero: “Digamos, pois, que este general se ‘enganou’ e que só tenha deportado 20 mil pessoas. E, ainda assim, o número é alto”. Certamente, além dessas deportações, também aconteceram outras, contudo nem todos os exílios foram registrados. No entanto, aparecem algumas referências: no livro de Amós 1,6, há um registro de um desterro de povos inteiros, provavelmente pertencentes a Judá. Em Jeremias 51,12-30 são citadas diversas deportações ao redor de 587. Estes registros demonstram que o povo de Israel foi vítima de muitos exílios. Portanto, o exílio babilônico é o mais conhecido, mas não o único, por conta disso iremos aprofundá-lo um pouco mais. Vamos lá! Este exílio permaneceu na memória, foi superado, mas não foi esquecido, como aconteceu com os demais, inclusive do século VIII, que chegou a atingir milhares de pessoas. No entanto, seu destino não chegou a ser resgatado porque não puderam regressar. Enfi m, caíram no esquecimento, ainda que o profeta Jeremias, em torno de 630 a.C., deles se lembrasse: Palavra que veio a Jeremias da parte de Javé: Assim diz Javé, o Deus de Israel: Escreva num livro tudo o que eu vou lhe dizer: pois virão dias – oráculo de Javé – em que mudarei a sorte de meu povo, Israel e Judá, diz Javé. Farei com que voltem à terra que eu dei a seus pais e que tomem posse dela (Jr 30-31). 67 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Não dá para desconsiderar o sofrimento que as pessoas que são submetidas a um processo de deportação enfrentam. São obrigadas a deixar tudo para trás, uma vida boa, como é o caso da elite de Judá. A experiência desses povos deportados ao longo do séc. VIII contribuiu para que os exilados de 597 a.C. não fossem esquecidos pelas narrativas bíblicas, e fossem vitoriosos. A vitória dos exilados do tempo babilônico resgata derrotas anteriores. O retorno vitorioso dos exilados de 597 a.C. é, pois, um resgate de gerações de exilados, de milhares de deportados. Justamente por conta disso, é relevante voltar a atenção para o olhar babilônico. É PossíVel Exílio em Terra com Dono? As deportações foram promovidas pelos exércitos assírio e babilônico. Mas o exílio não se reduz a apenas esses. Imagine você, numa situação em que milhares de pessoas são deportadas, na linguagem de hoje poderíamos usar o “tráfi co humano”, ou mesmo escravidão. Essas pessoas enfrentavam um confl ito muito grande, pois passavam a viver em um lugar dominado por reis opressores. Para o povo exilado isso era algo terrível, uma grande desgraça. Contudo, igualmente horrível era viver exilado e oprimido na própria terra. A terra de Canaã, para os hebreus, era solo ocupado. Essa ausência de liberdade não se devia tanto ao fato de nela viverem cananeus, pois estes cananeus até mesmo puderam tornar-se aliados dos hebreus vindos do Egito. Mostra-o a história de Raab (Js 2). A prostituta Raab, mulher oprimida e marginalizada em Jericó, passou para o lado dos israelitas que eram pobres como ela. Dessa forma, se verifi ca que o problema não eram os cananeus, em geral. A grande problemática estava relacionada aos reis cananeus, pois controlavam a terra. Exigiam, de quem nela trabalhasse, altíssimos impostos e saqueavam os camponeses. Ao tomarem a terra, os hebreus vindos do Egito libertam a terra da opressão e ocupação dos monarcas cananeus. Para o povo exilado, a retirada da terra, relatada nos primeiros capítulos de Josué, foi a libertação do chão. Durante muitas gerações as tribos israelitas viveram em terra liberta. No entanto, se implantou depois a monarquia. Davi, Saul e Salomão, cada vez mais, foram tomando feitios cananeus. A terra foi colocada sob seu controle. Os próprios reis israelitas passaram a explorar o povo e ocuparam a terra. 68 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS É neste momento que entram em cena os profetas (conhecemos um pouco deles, de suas lutas e conquistas no capítulo anterior, lembram?). Os profetas estavam muito interessados no resgate da terra para aqueles que a perderam. Denunciaram fortemente a exploração provocada pelos reis: “São vocês os inimigos do meu povo: de cima da túnica, arrancam o manto de quemvive tranquilo ao voltar da guerra. Vocês expulsam da casa as mulheres do meu povo, e tiram dos seus fi lhos a dignidade que eu lhes tinha dado para sempre” (Mq 2,8- 9). O profeta responde apresentando as provas concretas da realidade do povo oprimido pelos governantes: o direito dos pobres é violado (cf. Dt 24,10-13; Am 2,8); as mulheres são expulsas; as crianças têm seu direito à herança negado. No Primeiro Testamento, exílio não é só expatriação ou fuga forçada para uma terra estranha, também a opressão e vida desumana acontecendo na própria terra, no seu lugar de origem. Nesse caso, se os profetas não tivessem tido a coragem de denunciar os opressores que queriam ocupar a terra que pertencia ao povo da aliança, possivelmente os exilados não teriam tido forças para sonhar que uma vida nova poderia ser brevemente possível. O primeiro Isaías denunciou aqueles que desejavam: "terra a terra” (Is 5,8). Já o segundo Isaías convocou os exilados na Babilônia: “saí daí!”. Dessa forma fi ca evidente que as denúncias do primeiro Isaías são uma espécie de preparação para a conclamação para o segundo Isaías. Ter que superar a expatriação e superar os diversos tipos de opressões na própria terra são dois lados de uma mesma moeda. Resgate de exilados e da liberdade são quase como alma gêmea. Agora que conhecemos um pouco mais do signifi cado do exílio, iremos aprofundar os principais acontecimentos que foram relevantes para que essa realidade fosse possível na história de Israel. Acontecimentos Históricos Historicamente não dá para negar que o século VI a.C., século em que ocorreu o exílio da Babilônia, foi um período de reviravolta, não somente para Israel, mas para grande parte do mundo antigo. Esse período é chamado pelos historiadores de “período axial”, registrado por inúmeras inovações. [...] (símbolos personifi cados de tendências gerais nas respectivas comunidades): na China, Confúcio (550-480); na Índia, Buda (560-480); no Irã, Zoroastro (fi m do século VII); na Grécia, os fi lósofos e os “cientistas” jônicos, que abrem o caminho para a grande fi losofi a, a tragédia, a historiografi a; em Israel, os grandes profetas “éticos” (como Ezequiel e o Deutero-Isaías) do período do exílio (LIVERANI, ANO, p. 253). 69 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 O exílio da Babilônia ocorreu no séc. VI a.C., contudo, para que possamos compreendê-lo melhor, é necessário fazer um recuo na história, voltando ao século VIII a.C. Nesse período, os assírios retomam seu projeto de dominação internacional. Eles eram originários da Mesopotâmia e viviam na parte norte, uma fértil região. Seus objetivos são justamente avançar rumo ao Mediterrâneo e chegar a ocupar cidades portuárias importantes da região. Após a ocupação, seguem rumo ao sul. Foi então que em 732 a.C. anexaram a Samaria. No ano 701 a.C. destruíram Judá e por pouco não conquistaram defi nitivamente Jerusalém. Após conseguirem controlar a Palestina, seguem em direção ao Egito. Foi então que no início do séc. VII a.C. (700 até 650) ocorreu o cume do domínio internacional dos assírios. Por conta dos seus exércitos serem terríveis no massacre, eram fortemente temidos. No entanto, toda essa opressão não demorou por muito tempo, os egípcios reagiram, fi zeram uso da sua tradição milenar e seus férteis vales junto ao rio Nilo. A partir disso, começaram a buscar por sua mais rápida autonomia e começaram por expulsar os assírios de suas terras. Além de afugentar os invasores, seguem perseguindo-os. A hegemonia da Assíria na Palestina é muito contestada. Dessa forma, o império egípcio alcança o grande rio Eufrates na Mesopotâmia, no período da agonia assíria. Essa infl uência egípcia na Palestina, na segunda metade do séc. VII a.C. e no próprio VI séc. a.C., é importante e decisiva para a compreensão da expatriação de Judá. Não foram apenas os egípcios que não aceitaram a supremacia assíria, os babilônios também não aceitaram essa predominância toda. Estes ocupavam as regiões ao sul da Mesopotâmia, área muito fértil entre os rios Eufrates e Tigres. Passo a passo foram corroendo a dominação assíria desde o Sul, de sorte que estes se vissem entre duas frentes. De um lado estavam os egípcios e, de outro, os babilônios. Os assírios sucumbiram a esta dupla contestação. Em 612, Nínive, sua última capital, foi tomada e feita em ruínas. Os egípcios e babilônios foram fortes aliados na decadência dos assírios. Porém isso não aconteceu da mesma forma quando se tratou de defi nir a sucessão dos assírios no cenário internacional. Ambos se candidataram. Ambos trataram de pôr sob seu controle os territórios que, anteriormente, tinham estado sob a repressão assíria. Contudo, para a Palestina, esta disputa pela hegemonia teve fortes consequências, e decisivas. Isso porque estava justamente entre as duas potências em disputa. Mas, enfi m, os babilônios fi zeram-se impor e conseguiram isso na Palestina, mas não conquistaram o Egito, este permaneceu autônomo. Perdurou como uma constante ameaça à vista. 70 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Para Judá, esse impasse que ocorreu entre os babilônios e egípcios foi fatal. Isso aconteceu por conta da posição estratégica ocupada por seu território. Para os impérios egípcios era fundamental ter Judá como aliada. Afi nal, era uma área para o abastecimento de suas tropas. A rigor, para quem vem do Egito, Judá se constitui no primeiro lugar onde os exércitos podem reabastecer-se. Após centenas de quilômetros por terrenos áridos e inóspitos, a região de Judá fornece água e comida. Contudo, para as estratégias militares daqueles tempos, um tal território era decisivo. Os faraós egípcios da época trataram logo de manter boa vizinhança com os reis de Jerusalém. Para os generais assírios, o pequeno e em si insignifi cante território judaísta impunha-se como importante. Necessitavam-no tanto para uma possível invasão do Egito, quanto para impedir contra-ataques egípcios. Esta posição estratégica de Judá é, possivelmente, a causa de sua destruição e de sua deportação. Judá como que foi triturado pelo entrechoque das duas grandes potências do VI séc. a.C.: a Babilônia e o Egito. Em resumo, veremos algumas questões internas de Judá: A soberania, ora do Egito, ora da Babilônia, se refl ete na situação interna. Tanto uma quanto a outra superpotência chegam a entronizar soberanos em Jerusalém. Após a reforma josiânica de 622 a.C., Jerusalém é o centro religioso, cúltico e simbólico. No entanto, nem de longe todos os setores da sociedade judaísta concordavam com esta centralização. O profeta Jeremias contestou-a veementemente: “Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel: endireitem seus caminhos e sua maneira de agir, e eu morarei com vocês neste lugar, não se iludam com palavras mentirosas, dizendo: Este é o templo de Javé, templo de Javé!” (Jr 7, 3-4; cf. também Jr 26). O povo da terra são os camponeses, representam uma política real, e passam a interferir de maneira revolucionária. Dão sustentação à política de Josias e de Jeocaz, e acabaram por permitir e impelir a política de emancipação nacional dos últimos soberanos. 71 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Quem Foram os Exilados Neste item vamos conhecer um pouco mais sobre os deportados no exílio da Babilônia. Quem foram eles? Eram os camponeses? Era a elite governamental? Toda a população foi expatriada? Ou foram alguns poucos escolhidos? A partir dessas perguntas, vamos compreender um pouco mais de como ocorreu o exílio da Babilônia. A deportação de 587 a.C. privilegiou uma parte da população, de acordo com o que vemos na fi gura a seguir: Figura 4 - O rei e sua corte Fonte: Adaptação de Vasconcelos e Silva (2003, p. 144). De acordo com o que vimos na fi gura acima, os deportados do exílio da Babilônia foram somente a elite de Judá. Os historiadoresestimam uma população de mais ou menos 15 mil pessoas (VASCONCELOS; SILVA, 2003). A elite se tornou uma espécie de refém. Para a Babilônia muito interessava a expatriação das pessoas que fossem infl uentes política e militarmente. Isso porque a elite constituía uma espécie de ameaça ao seu poderio. Por isso a escolha de levar apenas o governo, ou seja, todo o povo que de alguma forma estava ligado ao palácio e ao templo, bem como o exército, isto é, os artesãos ou fabricantes de armas e também sacerdotes como Ezequiel, que era um cantor do templo (2Is 40-55). Dessa forma, realizaram uma verdadeira cassação política. No fundo, os expatriados constituíam uma parte pequena da população, mas representavam toda a classe dominante. Corte real Militares Funcionários do Estado Famílias de políticos 72 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O agrupamento maior de expatriados foi reassentado na Babilônia. O profeta Ezequiel menciona dois lugares: junto ao rio Quebar e em Tel Aviv (cf. Ez 1,3; 3,15). O nome Tel Aviv parece indicar para um lugar abandonado. De acordo com Sl 137, 1 parecem ter sido assentados junto aos canais de água, numa região sem povoamento. Possivelmente, os expatriados de 587 a.C. foram juntados aos de 597 a.C. Em todo caso, não parecem ter sido muitos, de acordo com o que já afi rmamos acima, isso porque muitos dos moradores de Jerusalém morreram no combate, muitos outros foram exterminados pela fome e pela peste ou degolados pelos vencedores. Para o desterro sobraram poucas pessoas, de acordo com Jr 52,15: Nabuzardã, chefe da guarda, mandou para o exílio os pobres da terra e o resto que sobrou do povo na cidade, os que tinham passado para o lado do rei da Babilônia e o resto da multidão. Só deixou fi car uma parte dos pobres da terra como trabalhadores das vinhas e pequenos lavradores. Após 587, de acordo com Jr 52,30, parece ter ocorrido uma outra deportação, no entanto só sabemos dela por meio de Jeremias, cujo versículo nos deixa muitas dúvidas (SCHWANTES, 2009). Em todo caso, de acordo com esta nota, houve outra leva de deportados em 582. Não teria chegado à casa das mil pessoas. Enfi m, estima-se que em 597, em 587 e em 582 foram levados para a Babilônia e aí representadas umas 15 mil pessoas, oriundas basicamente da população de Jerusalém. De Judá, poucas foram atingidas. O exílio babilônio é, no entanto, um exílio dos cidadãos da capital. Como ViViam os Exilados Agora que já conhecemos um pouco mais sobre quem eram os exilados, vamos saber um pouco mais como eles viviam, como se organizaram para sobreviver às duras penas diante de um império que teria feito deles verdadeiros escravos. Os exilados permaneceram juntos, agrupados, e isso com certeza foi fundamental para que pudessem sobreviver. Unidos somavam força! Por permanecerem juntos, era mais fácil preservar a sua identidade originária, língua, ritos, costumes e religião. A sua crença em Javé continuava viva. O desejo de preservar a fé em Javé foi a força aglutinadora para esse povo agora degredado. Em terra estranha não seria possível fazer sacrifícios, tiveram 73 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 que se readaptar, religiosamente falando. E com isso surgiu o culto da Palavra por meio da profecia e do canto. Surgiram novos ritos que o identifi cavam, como o respeito ao sábado – o dia de descanso –, e a circuncisão. Contudo, os exilados não apenas mantiveram a sua fé, como se obrigaram a readaptar sua crença de acordo com as circunstâncias que lhes eram viáveis. É muito provável que trabalhassem no campo, na produção de cereais. Dessa forma, passaram à produção primária. Essa foi uma mudança radical em suas vidas, pois não estavam acostumados com trabalhos mais duros, afi nal haviam sido parte de uma elite com todas as mordomias próprias de alguém que fazia parte da classe social mais elevada da capital (sacerdotes, generais, ferreiros etc.). Passaram a exercer um trabalho que antes era feito apenas por seus súditos. Em outras palavras, poderíamos afi rmar que houve uma inversão de funções. Dá para identifi car os expatriados como escravos? Essa é uma pergunta que requer uma verifi cação um pouco mais cuidadosa. Isso porque escravidão naquela época não pode ser compreendida a partir do conceito que temos na sociedade hodierna, onde as pessoas submetidas ao jugo são vendidas como mercadoria. O livro de Is 42, 1 afi rma o seguinte: “Vejam meu servo, a quem eu sustento”. Num sentido mais abrangente, todos aqueles que são exilados tornam- se escravos, pois foram levados à força para uma terra desconhecida, estão reféns, e vivem numa prisão. Nesta perspectiva são escravos, sim. Mas, como já dissemos, não dá para compreender a escravidão nos moldes da sociedade moderna. Para esses escravos do exílio lhes era permitida a livre circulação dentro dos acampamentos. Podiam viver de acordo com seus costumes, língua e religião. É provável que produzissem de maneira autônoma, dentro de uma segmentação de tempo e tarefa por eles escolhida. Produziam alimentos para a sua própria sobrevivência, uma prática de produção que se benefi ciasse do trabalho escravo, para eles, não era conhecida. Os babilônios estipulavam uma quota para a entrega dos produtos. Era-lhes exigido um tributo especial. A opressão na qual os exilados estavam submetidos era impedimento de circulação para além de seus núcleos de assentamento. Vivia na Babilônia uma população de mais ou menos 15 mil habitantes. Trata-se de um número expressivo. Representa em torno de 10% da população de Jerusalém e Judá antes de 597. Tudo bem, até aqui fi camos sabendo que a elite de Judá foi deportada para a Babilônia, mas, e o restante da população, os chamados remanescentes? Vivia na Babilônia uma população de mais ou menos 15 mil habitantes. Trata-se de um número expressivo. Representa em torno de 10% da população de Jerusalém e Judá antes de 597. 74 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A PopulaÇÃo Que nÃo Foi Expatriada De acordo com o que já vimos até aqui, já nos é possível saber que a maioria da população permaneceu na sua terra, em Judá. Não foram expatriados para Judá, pois os “escolhidos” foram apenas a elite. Estima-se que tenha permanecido em Judá uma população de 100 mil pessoas. Em tempos pré-exílicos é possível que Judá e Jerusalém pudessem comportar uma população de 200 mil. É óbvio que as inúmeras guerras que ocorreram de resistência à Babilônia exterminaram a vida de muitas pessoas, de modo especial em 587 a.C. As deportações afugentaram um número expressivo, muitos fugiram para regiões vizinhas, até mesmo para o Egito. De acordo com Jr 40,11-12: Também os judeus que estavam em Moab, entre os amonitas, em Edom e outras regiões, ouviram falar que o rei da Babilônia tinha deixado um resto em Judá e que havia colocado Godolias, fi lho de Aicam, neto de Safã, como governador deles. Então começaram a voltar judeus de todos os lugares por onde havia espalhados. Entraram em Judá, junto a Godolias, em Masfa, e fi zeram uma colheita muito abundante de vinho e frutas. Jeremias menciona retirantes que se haviam evadido para povos vizinhos por ocasião da destruição de Jerusalém. Há informações a respeito de emigrantes ao Egito (Jr 41-42). Por conta de todos esses confl itos, a sociedade de Judá foi reduzida pela metade. Mesmo diante disso, ainda compunha um número expressivo. Era em Judá, durante o período exílico, que havia o maior contingente populacional do povo de Deus. Os remanescentes eram uma população camponesa que plantava para a sua sobrevivência, era o chamado povo da terra, aquela população que, por séculos afi ns, estava instalada nos arredores das cidades e que por elas haviam sido esbulhados. Essas pessoas de origem muito simples eram a atual população de Judá. O livro de 2Rs 25,12 confi rma essa realidade: “O chefe da guarda deixou uma parte dopovo pobre da terra, para trabalhar nas vinhas e nos campos”. De certa forma, os babilônios promoveram certos benefícios à população pobre da terra: “Os mais pobres do povo, os que não possuíam nada, Nabuzardã os deixou na terra de Judá e deu-lhes vinhas e terra para cultivar” (Jr 39,10). Jeremias dá a mesma informação que 2 Reis, apenas acrescenta alguns pormenores. Na narrativa de 2 Reis tem-se a impressão de que os pobres tivessem se tornado uma espécie de agregados ou parceiros dos babilônios. As terras lhes teriam sido cedidas. O texto de Jeremias dá um passo a mais. Para ele, as terras foram dadas aos pobres, houve uma divisão entre os mais pobres. 75 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Interessante notar que tudo isso é ação dos babilônios, gente que tem suas próprias divindades e não acredita em Javé! Estes conseguiram fazer coisas que os reis davídicos não foram capazes de fazer! Surpreendente, não?! Faça a sua própria refl exão! Como reinterpretar o amor e a justiça a partir dos que possuem religião diferente da nossa e são capazes de promover o bem comum? Aprofunde mais essa ideia lendo: RÖMER, Thomas. A origem de Javé. O Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2016. A história de Israel apresenta uma pluralidade de divindades e isso não signifi ca que um deus seja melhor do que o outro e não seja capaz de promover o amor e a justiça. Cada um fundamenta a sua crença em Deus da forma como lhe foi repassado pela sua cultura e antepassados. Há em Israel uma luta muito grande entre as divindades. Em Judá também permanecem muitos grupos proféticos. Pudemos conhecer um pouco mais sobre eles no capítulo anterior, retome o tópico sobre os profetas e você entenderá um pouco mais da opção que eles fi zeram em suas respectivas profecias. Sabe-se que o profeta Jeremias queria permanecer, mas o levaram à força para o Egito. É ele que vai representar todo um grupo de profetas para os quais a história do povo dá continuidade em terras palestinas, não no desterro. Imagina- se que Obadias tenha pertencido a ele. Entre as pessoas que permaneceram em Judá estavam também os sobreviventes de Jerusalém, pessoas que haviam dado conta de escapar da catástrofe de 587 a.C. Essas pessoas eram os liturgos do povo, os cantores. Junto às ruínas do templo se tinha o costume de realizar as celebrações cúlticas de penitência e lamento. Veja o que Jeremias 41, 4-7 fala a esse respeito: No dia seguinte ao assassinato de Godolias, ninguém ainda sabia. Foram então uns oitenta homens de Siquém, de Silo e de Samaria, com a barba raspada, roupas rasgadas e ferimentos no corpo. Levavam ofertas e incenso para a casa de Javé. Ismael fi lho de Matanias saiu de Masfa ao encontro deles, fora da cidade, andando e chorando. Ao encontrá-los, disse: ‘venham até onde está Godolias, fi lho de Aicam’. Logo, 76 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS porém, que eles chegaram ao centro da cidade, Ismael, fi lho de Natanias, junto com seus homens, estrangulou-os e mandou jogar os corpos dentro de uma cisterna. As cerimônias eram coordenadas por cantores. O lamento estava entre suas especialidades. Até mesmo conhecemos uma parte do cancioneiro comunitário composto para tais ocasiões. Nos referimos ao livro das Lamentações. Vejamos o trecho de Lm 5: Lembra-te, Javé, do que aconteceu! Olha bem para ver a vergonha que passamos! Nossa herança passou a estranhos, e nossas casas a estrangeiros. Agora somos todos órfãos, pois perdemos nosso pai; nossas mães fi caram viúvas. Temos de comprar a água que bebemos e pagar a lenha que usamos. Com o jugo no pescoço somos empurrados; estamos exaustos, pois eles não dão folga. Ao Egito já estendemos nossas mãos pedindo ajuda, já suplicamos à Assíria que nos desse de comer. Nossos pais pecaram e já morreram, e nós pagamos por suas culpas. Escravos dominam sobre nós; não há quem possa libertar-nos de sua mão. Arriscamos a própria vida pelo pão, enfrentando em campo aberto a espada inimiga. Nossa pele queima como forno, torturada pela fome. Violentaram as mulheres em Sião e as virgens nas cidades de Judá. Com suas mãos esganaram os chefes e não aceitaram e não respeitaram os anciãos. Forçaram os jovens a girar o moinho, os rapazes sucumbiram sob o peso da lenha. Os anciãos já não participam do Conselho e os jovens deixaram seus instrumentos de corda. Acabou a alegria que nos enchia o coração, nossa dança se mudou em luto. Caiu a coroa da nossa cabeça. Ai de nós, porque pecamos! Por isso nosso coração está doente e nossos olhos embaçados. Por que o monte Sião está devastado e por ele passeiam as raposas. Mas tu, Javé, permaneces para sempre; teu trono permanece de geração em geração. Então, por que haverias de esquecer-nos para sempre, e deixar- nos abandonados por tanto tempo? Faze que voltemos para ti, Javé, e voltaremos; renova os tempos passados. Ou será que nos rejeitaste de uma vez? Será que tua cólera não tem limites? O livro das Lamentações é um exemplo típico de como as pessoas exiladas se sentiam em relação ao exílio que estavam vivendo. Esse livro reúne cantos que falam sobre a tomada de Jerusalém, a destruição do templo e das outras cidades de Judá, em 587 a.C., por Nabucodonosor, o atual Imperador da Babilônia. No fundo, se tratam de cantigas que descrevem a catástrofe nacional e suas consequências trágicas: saques, incêndios, matanças, deportação, violência física e sexual, fome, sede etc., bem como a situação de Jerusalém, arruinada pela invasão inimiga (Lm 5,18). 77 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Para além de apenas narrar a tragédia, as lamentações demonstram, de modo doloroso, mas poético, o sentimento dos sobreviventes de Jerusalém: lamento, humilhação, angústia, abandono, revolta, vingança, dúvida, arrependimento, pedido de perdão e esperança. Os sentimentos seguem num ritmo de desespero, mas ao mesmo tempo cheio de confi ança em Javé, buscando recuperar as suas promessas e aliança que foi feita a seus antepassados. O sofrimento físico é profundamente existencial. No entanto, o povo não perde a força de gritar a sua dor. Gritos que ecoam por todo o livro. As lamentações mostram também o clamor pela vida de todo ser humano: “vocês todos que passam pelo caminho, olhem e prestem atenção: haverá dor semelhante à minha dor?” (Lm 1,12). É possível que em Judá permaneceram muitos daqueles sacerdotes e levitas que foram desalojados dos santuários fechados e demolidos por Josias em 622 a.C. Não existem maiores provas, mas faz muito sentido supô-las (SCHWANTES, 2009, p. 27). No fundo, quem fi cou em Judá é chamado de povo da terra, ou seja, o campesinato judaísta e outros grupos que representam o patrimônio cultural e intelectual. Entre estes grupos, alguns estão mais próximos ao mundo camponês. Outros se encontram na herança do templo jerusalemita. Estão vinculados às tradições do Sião. A Babilônia não se mantinha presente. O território não foi ocupado pelos militares. Inicialmente foi nomeado uma espécie de governador, um representante dos interesses babilônicos na área. O primeiro a exercer essa função foi Gedalias, que foi assassinado (2Rs 25,22-25). E, pelo que consta, não foi substituído. Nesse sentido, Judá fi cou entregue a seu próprio destino, sem um governo ofi cial. O que se observa é que a Babilônia, defi nitivamente, abandonou Judá. Foi desmilitarizada e também desurbanizada. As terras que antes eram da elite expatriada agora os mais pobres passaram a dominá-la. De que forma era possível ter o controle disso tudo? Na época, os impérios efetivavam a exploração de outros povos através da dominação de seus centros urbanos. Mas, na terra de Israel já não existiam mais cidades, por que foram todas demolidas. Dessa forma, era inviável a espoliação dos camponeses. O Estado babilônico não estava aparelhado para cobrar qualquer tipode tributo ou taxa das famílias camponesas de maneira individualizada. Contudo, nessa falta de cidades em Judá, a Babilônia, muito provavelmente, se retirou de cena. Dessa forma se chega à conclusão de que após a desmilitarização e desurbanização, Judá teria sofrido uma forma de retribalização. Isso porque os camponeses passaram a viver dentro de uma estrutura baseada nos costumes e padrões clânico-tribais. 78 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A Literatura no Período Exílico No período exílico foi muito fértil a literatura. Por conta de todo o sofrimento experienciado, surgiu uma vasta literatura. A seguir iremos conhecer um pouco mais a forma como foram organizados esses escritos. Os livros bíblicos de Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis constituem uma grande unidade literária. Podem ser considerados apenas uma obra. Estão reunidos nessa vasta obra. Nela estão contidas diversas coleções menores, que já existiam quando de seu surgimento. É necessário ter a compreensão de que os autores desta obra não são considerados escritores, mas colecionadores e compiladores de textos e pequenas coleções. É evidente que existem várias características e critérios e observações detalhadas que fornecem fundamentos para essa afi rmativa. Vejamos algumas delas: - O principal objetivo desta grande coleção é o de descrever a história; - A trajetória de Israel e Judá está na base de seu interesse; - Os livros de Samuel e Reis tematizam o surgimento, auge e declínio das monarquias; - Os livros anteriores funcionam como uma espécie de introdução ou contrapontos a estes que tematizam os estados de Israel e Judá, portanto, essa coleção pratica, quase na sua totalidade, historiografi a de Estado. A pesquisa bíblica afi rma que essa obra historiográfi ca foi compilada mais ou menos no ano 550 a.C., no período exílico, em Judá. Os autores desta obra são defi nidos como deuteronômicos, isso porque a sua linguagem se assemelha e estão comprometidos com a adoração exclusiva a Javé. Se tem a impressão de que seriam os mais afetados pela tentação da idolatria (veja caps. 12-13). E aos reis são impostas tamanhas restrições em Deuteronômio 17,14-20 que seu governo, a rigor, é inviabilizado. O que resta são os profetas! E, de fato, este é, para o Deuteronômio, o mediador e cumpridor predileto do projeto da unicidade de Javé, do lugar sagrado e do povo (Dt 18, 9-22). Um profeta ideal, Moisés, é a grande esperança! No fundo, o livro de Deuteronômio fornece as principais lentes para se compreender a trajetória do Estado, pois estabelece critérios para que isso ocorra. O Estado é avaliado à luz dessa orientação/lei. 79 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Na obra deuteronômica e a história do Estado que começa em 1 Samuel, os compiladores impuseram os livros de Josué e Juízes. Certamente, o fi zeram por motivos específi cos. Nesses livros é narrada a história de um povo que não possui um Estado. E nisso reside, certamente, o principal interesse dos compiladores. Se trata de testar seus critérios junto a uma experiência que não é monárquica ou, como se costuma dizer, pré-estatal. A seguir iremos analisar a experiência do povo de Deus nos livros de Josué e Juízes. a) Josué A principal temática que envolve o livro de Josué é justamente o esforço empreendido pelas tribos israelitas na conquista e ocupação das terras. Até ter o livro compilado da maneira como o conhecemos hoje, foi sendo construído no ambiente familiar, trabalhadores de origem camponesa, sábios que atuavam na corte do rei, juntamente com os sacerdotes em seus diversos santuários. As narrativas que compõem o livro de Josué sofreram inúmeras revisões no seu processo de contar e recontar, escrever e reescrever acontecimentos da história de Israel e dos povos circunvizinhos. A primeira tentativa de reunir essas tradições históricas antigas, a maioria provinda do reino do Norte – destruído pela guerra de 722 a.C. –, aconteceu durante a reforma empreendida pelo rei Josias (640-609 a.C.). Baseado na promulgação do livro do Deuteronômio (12-26), na época visto como o livro da Lei e encontrado na casa de Javé: “O sumo sacerdote Helcias disse ao secretário Safã: ‘achei um livro da Lei na casa de Javé!’ Entregou o livro a Safã, que o leu” (2 Rs 22,8). Essa reforma consistiu, segundo a visão dos grupos dirigentes e proprietários de terras instalados na cidade de Jerusalém, em buscar realizar os desejos de um Deus chamado Javé, venerado por Israel. Tal reforma acabou por desencadear mudanças na vida religiosa e social, entre elas a centralização do culto em Jerusalém, a destruição dos santuários em lugares altos, a perseguição e morte dos sacerdotes ligados a divindades estrangeiras, e a proibição de imagens e de culto aos deuses familiares, destacando-se a ofi cialização da Páscoa como festa nacional celebrada na capital Jerusalém (2 Rs 23,4-25). As constantes guerras que são narradas no livro de Josué devem ser entendidas somente por meio do projeto de Josias, que mantinha o desejo de integrar o reino do Sul e o território do antigo reino do Norte numa unidade política – Israel – em torno de uma única divindade – Javé – e sob um só comandante – descendente davídico –, tudo isso com o objetivo de legitimar essas novas 80 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS fronteiras. À primeira vista, as guerras de Javé assustam. Isso porque não existe ação bélica invasora alguma, conquistadora e destruidora que seja aprovada por Deus. Os leitores deparam, isto sim, com relatos fi ctícios que visam animar, integrar e determinar as ações expansionistas e controladoras da reforma deuteronomista realizada por Josias. Um bom exemplo dessa história narrada para exaltar Javé, o Deus de Israel, e o povo residente em Judá, pode ser verifi cado na época em que os hebreus começam a ocupar as terras da região. Em meados do séc. XII a.C., as grandes cidades-estados cananeias já não existem. Jericó, outrora pertencente aos cananeus, por exemplo, não passava de um monte de ruínas. Seu esplendor tinha desaparecido fazia mais de dois séculos (Js 6). As vitórias surpreendentes diante do forte inimigo, que se vê incapaz de vencer um exército pequeno e despreparado que luta em nome de Javé, justifi cam os esforços na ocupação e expansão das fronteiras durante o governo do rei Josias. Israel não tem nada a temer, isso se dá porque Javé está em constante luta a seu favor (Dt 7,21; Js 1,9). Eis os brados que encorajam e legitimam a monarquia sediada em Jerusalém. No fundo, toda a narrativa que compõe o livro de Josué só recebe sua forma defi nitiva no período do exílio babilônio (597-536 a.C.). Por volta da metade do ano 400 a.C., a época em que a sua redação foi fi nalizada, o controle exclusivo do templo e da cidade de Jerusalém estava nas mãos dos sacerdotes. Estes, por meio de um governo pautado pela teocracia, buscam sustentar os ideais de um povo escolhido e protegido por Javé, agora compreendido como o único Deus (Dt 6,4-9). Na ocasião, impulsionados a seguir fi elmente os estatutos apresentados por Javé, esses sacerdotes recolhem e organizam tradições de sábios deuteronomistas escritas na reconstrução do templo em meio a uma sociedade que vive sob o sistema Templo-Estado. O livro de Josué pode ser dividido da seguinte maneira: I – Identifi cação do território e conquistas (1-12) II – Distribuição das terras entre as tribos, segundo a necessidade de cada uma (13-21) III – Retorno das tribos e solidifi cação da aliança entre as 12 tribos (22) IV – Discurso de despedida feito por Josué (23) V – Assembleia de Siquém (24) 81 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Em síntese, para os compiladores de nossa grande obra historiográfi ca, o período em que se deu a atuação de Josué intenta realizar a “lei” mosaica do Deuteronômio. O povo é um.É um porque todos possuem acesso à terra. E, além de ser uma irmandade e fraternidade, é crente. Afasta de seu meio ídolos ou falsos deuses. O tribalismo alcançou corresponder à Torah, às orientações da lei. b) Juízes Apresentar a consolidação dos clãs num período que é anterior ao surgimento da monarquia é o principal objetivo do livro dos Juízes. Para que fosse possível garantir estabilidade na posse da terra, Javé faz surgir, revestidos do seu espírito, autênticos juízes e juízas, com a chance de conseguir estabelecer a justiça e o direito, e saírem para combater as forças inimigas (3,10; 6,34; 11,29; 13,25; 14,6.19;15,14). A garantia do triunfo sobre todos os inimigos, proclamada anteriormente no livro de Josué (Js 21,43-45; 24,11-13), não é a realidade experimentada pelas tribos neste livro dos Juízes. As cidades-estado instaladas em Hasor, Hebron, Betel e Siquém se tornam perigosas e constante afronto para as tribos israelitas (4,2;6,2-6;13,1). Os autores não apresentam a estabilidade fi nal e total das 12 tribos unidas e instaladas, cada qual em seu pedaço de terra. Se percebe, isto sim, o modo lento e gradual vivenciado por diferentes clãs na ocupação de seus territórios. Em meio ao contexto exílico, situação de ruínas e descrédito, é que surge a necessidade de avaliar e reler a história, no desejo de encontrar respostas para a vexatória realidade que se abateu sobre o povo eleito de Javé (Ex 9,1; Dt 7,6;14,2). Foi preciso refl etir e encontrar as causas de tanto sofrimento. Na releitura histórica que foi feita pelos sábios deuteronomistas, a prática da idolatria e o abandono da Torá são as causas originais dos males que assolaram Israel e Judá. Os reis não foram capazes de assegurar a integridade diante da proposta de Javé, e por isso os juízes são enviados na esperança de se retornar aos caminhos de Javé (3,7-11; 3,12-15;4,1-3;6,1;8,27b.33-35;10,6-16;13,1). O fato de suscitar tais líderes certifi ca essa releitura em pleno exílio babilônico. 82 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Recuperar antigas lendas e epopeias, cujo local exato de origem não é possível identifi car, foi a melhor resposta encontrada na época da monarquia pelos sábios deuteronomistas, para criticar as realezas que se afastaram do projeto de Javé. Essas “historietas” selecionadas dos 12 juízes eram conhecidas em épocas anteriores ao exílio babilônico. Lendas antigas foram relidas e revestidas com uma mensagem legitimadora de Javé. O que antes era simples saga de algum clã familiar, agora se torna ícone em defesa das tribos de Israel. Ao longo da descrição de todos os Juízes existe a seguinte estrutura literária, em forma de espiral: Fonte: Adaptado de: <https://pt.wikipedia.org/wiki/espiral_de_arquimedes>. Acesso em: 9 out. 2017. Essa dinâmica acontece no ciclo de 20, 40 e 80 anos, números esses que acenam ao período de uma geração (3,11;5,31;8,28). A narrativa exalta a prática de 12 juízes. São seis maiores: Otoniel, Aod, Débora-Barac, Gedeão, Jefté e Sansão. Sobre esse grupo paira admiração por seus grandes feitos para livrar as tribos de ameaças iminentes. Não lhes falta a coragem na luta contra cananeus, madianitas, moabitas, amonitas e fi listeus. Os seis juízes menores, Samgar, Tola, Jair, Abesã, Elon e Abdon (3,31;10,1-5,12,8-15), esses são lembrados sem detalhes de grandes façanhas ou atributos. Não exercem ato de heroísmo algum em prol de alguma tribo. Figura 5 – Estrutura literária em forma de espiral 83 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Como se estrutura o livro de Juízes: - Introdução: A difícil ocupação das tribos de Israel em terras ocupadas pelos cananeus (1,1-2,5); - Segunda introdução: Demonstra a alternância entre fi delidade e infi delidade tribais, e como Deus intervém para corrigir o seu povo (2,6- 3,6); - Segunda parte: De redação tardia, tem como objetivo principal explicar a origem do Santuário instalado em Dã; - Terceira parte: Narra a guerra de Galaad contra os benjaminitas e a reconciliação fi nal entre as duas tribos irmãs (19-21). Uma vez que os capítulos fi nais do livro partem de tal premissa, não seria de estranhar, se delineassem impasses insuperáveis. Ao assim não procederem, testemunham que o tribalismo soube mais do que tudo superar as difi culdades que iam surgindo. Aquele período foi muito difícil, no entanto, não faltaram soluções e libertadores. Nela não está, pois, a razão para a criação do Estado, ao contrário disso, nela encontramos um modelo social e teológico, o que faz com que o Estado não seja necessário: “Gideão lhes disse: não dominarei sobre vós e tampouco meu fi lho dominará sobre vós. Javé vos dominará” (Jz 8,23). No fundo, as histórias a respeito dos juízes libertadores não preparam a monarquia, na verdade a impedem, pois a contradizem e também a contestam! Contudo, os juízes libertadores são um fenômeno tribal. Novamente podemos constatar que a ordem tribal foi capaz de se aproximar e condizer às exigências da lei deuteronômica: acabou por ser evitada a opressão do povo em meio às múltiplas e terríveis ameaças. E foi afastada a tentação da idolatria, se bem que esta estivesse rondando continuamente as portas das casas e das tribos. Observamos que mesmo em meio a inúmeras difi culdades e problemas, o tribalismo que foi narrado pelos livros de Josué e Juízes efetivamente buscou por alcançar corresponder aos critérios estabelecidos para a vida do povo no livro de Deuteronômio, nesta porta de entrada da grande obra historiográfi ca. O apelo constante à proteção de Javé revela o desejo de manter-se fi el a seus planos, bem como o incansável propósito de libertar e assegurar paz e segurança para as tribos. 84 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS • Os juízes na perspectiva da lei É possível notar, num primeiro momento, que a vida legal, ética e de costumes do antigo Israel se inter-relacionam. Por causa dessa questão em aberto, qualquer abordagem acerca do tema Juízes, seja ela antropológica, sociológica ou histórica, é possível. No antigo Israel, casos legais eram adjudicados – sentenciados – em corte por juízes. Este fato é documentado de muitas formas e frequentemente. A terminologia, a literatura legal, histórica e profética e até os salmos e a literatura sapiencial mencionam juízes e suas atividades, e também narram ou retratam disputas legais e processos em cortes. A Bíblia Hebraica contém um número signifi cativo de narrativas sobre julgamentos e disputas legais e negociações. Mais proeminentes entre elas são as histórias sobre Jacó e Labão (cf. Gn 31,25-54); Siquém e Diná (cf. Gn 34); Judá e Tamar (cf. Gn 38); Moisés, Getro e os israelitas (cf. Ex 18,13-27); o israelita que blasfemou (cf. Lv 24,10-23); as fi lhas de Salfaaf (cf. Nm 27,1-11); Acam (cf. Js 7); a concubina de um levita (cf. Jz 19s); Boaz e Rute (cf. Rt 4); Saul e Jônatas (cf. 1Sm 13 et. seq); Saul e Samuel (cf. 1Sm 15); Saul e Davi (cf. 1Sm 24 e 26); Davi e Natã (cf. 2Sm 12); Amom-Tamar e Davi-Absalão (cf. 2Sm 13 et. seq.); Salomão e as duas mulheres (cf. 1Rs 3,16-28); Roboão e as tribos do Norte (cf. 1Rs 12); a vinha de Nabot (cf. 1Rs 21); o julgamento de Jeremias (cf. Jr 26) e outras. É certo que nenhuma dessas narrativas tenha sido escrita na forma de um processo de protocolo de julgamentos e nem por causa de tal protocolo. No fundo, foram escritas por causa de intenções diferentes e variadas. Refl etem os processos de corte apenas parcial e indiretamente. De qualquer forma, pressupõem que seu escritor acreditasse na existência de tais processos jurídicos e uma correspondente compreensão da parte de seus leitores. O fórum mais comum era a família ou clã, no qual o pai era o senhor e chefe legal dotado do direito e obrigação para adjudicar disputas e violações entre familiares, inclusive a execução de punição, por exemplo, o castigo de um fi lho desobediente (cf. Dt 21,18), e em tempos muitosantigos, a pena de morte, como na história de Judá-Tamar (cf. Gn 38). Nesse sentido, Abraão restaurou a justiça na ocasião quando Sara foi tratada com desprezo pela sua serva Agar e apelou para o marido para retifi car a injustiça contra ela (cf. Gn 16,1-6). Outro ambiente de corte era o fórum da aldeia ou pequena cidade. Seu local era a porta da cidade e o judiciário era formado pelos anciãos do lugar. Esses anciãos funcionavam como testemunhas em negociações como no casamento de Rute e Boaz. Arbitravam disputas entre litigantes, como se percebe por um dos sentidos do vocábulo hebraico para julgar, a saber arbitrar e por outras evidências. 85 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 O sistema de tribunais locais trouxe uma extensão do envolvimento legal em comparação com a lei tribal. Nos tribunais locais, todos os cidadãos e não apenas os anciãos tinham o direito de participar ativamente no julgamento e no veredicto. Nesse sentido, todos os cidadãos eram, por conseguinte, juridicamente competentes. Não signifi ca que todos os participantes em potencial tivessem que estar ativamente envolvidos em qualquer caso particular. Do ponto de vista prático, alguma aceleração era necessária para participar de tais ensaios, que não era um fardo, mas um privilégio: “Que os anciãos haviam deixado suas sessões no portão” (Lm 5,14). Todo este capítulo de Lm 5 descreve a dramática situação em que estavam vivendo após a conquista e destruição de Jerusalém e seus arredores em 587 a.C. É signifi cativo que, neste contexto, quando se fala de idosos, se deve mencionar a assembleia no portão. O direito supremo, no qual se experimenta o orgulho e o valor de um homem saudável, maior de idade, pelo fato de possuir sua própria propriedade, é reconhecido por seus companheiros, e possui o direito de participar e de falar na Assembleia legal. É o ponto de encontro dos que realmente são importantes, a elite. Foi uma das difi culdades e desvantagens do estrangeiro não possuir esse privilégio. Mulheres, crianças e escravos também foram excluídos de qualquer parte ativa em julgamentos legais. Portanto, as Leis da Bíblia Hebraica enfatizam outra vez o dever de atribuir direitos a essas pessoas. Cita-se o seguinte texto a título de exemplo: “Não privarás estrangeiros e órfãos de justiça, nem tomar o manto de uma viúva em penhor” Dt 24,17 (BRENNER, 2003, p. 216). O livro de Rute 4,1-2 apresenta uma imagem gráfi ca de como um fórum era constituído no portão: Booz subiu à porta da cidade e aí sentou-se. E quando passou o protetor do qual tinha falado, Booz o chamou: ‘Ei, fulano, venha sentar-se aqui’. O homem se aproximou e sentou-se. Booz tomou consigo dez anciãos da cidade, e lhes disse: ‘sentem-se aqui’. Eles se assentaram. O caso particular relatado em Rute 4 não interessa tanto, mas o procedimento geral adotado, que para montar um fórum, o indivíduo sentou-se no portão e chamou os transeuntes. Ele os chamou para sentarem-se no portão, sem nenhuma causa à vista. Em Rute 4, dez anciãos são mencionados, relatado por Booz que podem estar relacionados à função de juízes. Com relação aos âmbitos sagrados dos santuários, certamente dois dos templos de Jerusalém eram sujeitos às leis regulamentadas por uma supervisão, execução e tratamento de casos de violação. Esta jurisdição estava nas mãos dos sacerdotes, e posteriormente em casos de santuários reais, como Betel (cf. Am 7,10-17) e no primeiro templo, nas mãos dos reis. A assim chamada reforma cúltica de Josias (cf. 2Rs 23) é um exemplo marcante. 86 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O papel dos sacerdotes de longe excedia sua autoridade jurisdicional sobre o âmbito dos santuários. Penetrava profundamente na vida do povo. Decidiam sobre o puro e o impuro, isto é, os âmbitos dos tabus na vida diária. Presidiam os julgamentos concernentes ao adultério (cf. Nm 5) e presidiam, juntamente com outros, julgamentos de queixas, ou seja, indivíduos que sob processo ou ameaça de vida tinham que submeter seus casos à adjudicação cúltica. Ministravam as liturgias à entrada do templo, que tratavam das adjudicações das condições éticas para a admissão ao santuário (cf. Sl 15; 24). Adjudicavam litigações no santuário que de outra forma não poderiam ser resolvidas (cf. Ex 22,9), desempenhavam um papel que julgava as pessoas acusadas de qualquer tipo de crime. Essa lista parece não estar completa. Apenas demonstra que a religião de Javé de Israel era, institucionalmente, uma parte intrínseca e até controladora de intencionalidade teocrática da vida societária de Israel. A autoridade jurisdicional dos santuários e dos sacerdotes, os quais estavam primordialmente preocupados com os afazeres daquela religião, compusera um elemento proeminente das instituições públicas em geral. Essa autoridade era uma parte da Lei da terra e não uma administração religiosa, separada dela e sob a Lei da terra. A Lei e a justiça não foram inventadas pelos profetas. Agora, chegando aos processos jurídicos que não estavam relacionados ao culto, é possível perceber a diferença entre os casos civis e criminais. Quando nenhum ato criminoso envolvia decisão legal, era feita basicamente por meio de acordo entre as partes envolvidas, às vezes, na presença de testemunhas, como mostra a história do casamento de Rute. Um acordo direto não poderia ser alcançado, ou seja, essa situação fazia que se recorresse à corte, daí entram a fi gura do juiz, ou a corte dos anciãos, que arbitravam para propor uma solução que não era executada legalmente, mas tinha que ser implementada pelas próprias partes interessadas (VAUX, 2003, p. 186-189). A questão da execução legal de julgamentos torna-se mais problemática quando em casos, por exemplo, de roubo, desfalque, danos causados por negligência, estupro, assassínio, não apenas compensação, como também multa ou pena eram estipuladas. A execução de tais julgamentos era, grosso modo, também deixada ao ganhador da causa, mas é pouco provável que a comunidade não tivesse se interessado pelo cumprimento dos seus julgamentos ou não tivesse acesso a protestos contra o não cumprimento. Em casos de assassinato, era do vingador de sangue, em primeiro lugar, apoiado pelos anciãos de uma cidade, a tarefa de punir o assassino (cf. Dt 19,11-13). Homicidas involuntários tinham a chance de serem protegidos em cidade de refúgio. Em outros tipos de crimes capitais, pelo menos nas principais comunidades locais, e possivelmente nos clãs que existiam antes delas, e sem dúvida, as administrações reais executavam seus julgamentos por eles mesmos 87 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 (Dt 19,25-21). Este tipo de execução de julgamentos é provavelmente válido para a expulsão de alguém da comunidade ou a expulsão da congregação cúltica, o banimento, e, acima de tudo, para a pena de morte (cf. Lv 24,10-23; Js 7; 1Rs 2,13; 25,21; Dt 21,18-21). Na história da pesquisa, essas legislações com as mesmas características de Ex 21,22-25 têm criado um problema ao dizer que estas leis são decisões de costume. De fato, elas são baseadas em decisões que refl etem certo costume jurídico. Esse fato, porém, não signifi ca que são formuladas na forma verdadeira de decisões pronunciadas ao fi nal dos julgamentos. Fala-se de duas formas diferentes de expressão legal. Ambas declaram ou, pelo menos, pressupõem a correspondência de caso e consequência. Uma delas, porém, relata um caso que já aconteceu e estipula a consequência a ser implementada no futuro, mesmo que a sequência das duas declarações possa ser alternada. Diz, como no julgamento contra Jeremias: “Este homem não merece a morte, pois ele falou de Javé nosso Deus” (Jr 26,16). Esse tipo de expressão é falado depois de uma ação passada e antes da consequência estipulada para o futuro (SCHULTZ, 1984). Por contraste, outro tipo de expressão dizo seguinte: se você fi zer isso, o seguinte acontecerá. Esse tipo é – em formas variáveis – falado ou escrito não apenas antes da consequência estipulada, mas também antes da ação descrita. Esse tipo de expressão é claramente prescritiva, ou legislativa na sua natureza, enquanto o outro é claramente adjudicatório na Bíblia Hebraica. Nesse sentido, deve fi car claro que o caso de Lei não é legislativo, porque se apoia na adjudicação de casos baseados em costume. Ambos os tipos de expressão, o adjudicatório e o legislativo, são partes do caso de lei e, por sua vez, se alicerçam principalmente em lei de costume. Esta distinção signifi ca que se deve examinar mais especifi camente as leis veterotestamentárias como legislação e os legisladores que estão por trás dela. Essas leis frequentemente documentadas cobrem um largo leque de aspectos substantivos. Em algumas situações também podem representar os trâmites jurídicos, como em Dt 17,2-6 no caso de suspeita de apostasia. Aqui o boato deveria ser investigado diligentemente, a verdade estabelecida claramente na base de, ao menos, duas ou três testemunhas, e se a prova for estabelecida, a pessoa condenada deveria ser levada à porta da cidade e, lá, executada por apedrejamento, o qual deveria ser iniciado pelas próprias testemunhas. Em Nm 5 o autor apresenta trâmites jurídicos concernentes ao julgamento de uma mulher suspeita de adultério. Devem-se considerar as prescrições para os trâmites dos rituais de sacrifícios em Lv 1-7 como processos jurídicos pertencentes ao âmbito do culto e tratando da eliminação de culpa compreendida do ponto de vista forense, ou seja, desvendamento de crimes (SCHULTZ, 1984). 88 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Essas leis cobrem as áreas daquilo que se pode chamar de Lei primária e reparadora. Na Lei primária a declaração do caso descreve relacionamento legal, enquanto a declaração das consequências prescreve os termos desse relacionamento, isto é, os direitos e deveres antes da violação. Por exemplo (Ex 21, 22), diz, “Quando homens brigarem” (relacionamento legal) “mas se houver dano” (em termos daquele relacionamento). No caso da lei reparadora, a violação hipoteticamente declarada é seguida por uma defi nição de reparação. c) Rute A narrativa de Rute vem seguida do livro de Juízes. Dessa forma procedeu a tradução grega do Antigo Testamento. Na verdade, no texto em hebraico o livro de Rute segue os Provérbios. No entanto, os tradutores gregos tiveram boa intuição ao transladarem este livro como anexo ao de Juízes, pois também Rute celebra o tribalismo e nele, em especial, a capacidade organizativa das mulheres. Os usos e costumes tribais – se bem que também limitados – viabilizam a conquista do pão e a continuidade da vida. Enquanto os estados não garantiam nem mesmo um mínimo às viúvas, a vida clânica garante espaços até para uma estrangeira, como é o caso de Rute. A narrativa de Rute trata de uma novela em torno da emigração de uma família de Belém para Moab e da volta para Belém. Eis os principais temas que perpassam a novela de Rute: - direito de respiga; - resgate da terra; - casamento misto - Universalismos. É possível que o episódio de Rute tenha sido escrito no período de Esdras e Neemias, em torno dos anos 450-350 a.C. No período em que os persas dão fi m ao Império da Babilônia, em 538 a.C. A estratégia do novo dominador é permitir a liberdade religiosa às nações subjugadas, garantindo para si a submissão política (cf. Esd 7,25-26). Os persas incentivam a reconstrução do templo em Judá, que foi concluída em torno de 515 a.C., sob protesto de muitos grupos (cf. Esd 4,1-5). Alguns anos mais tarde, os persas enviam Neemias e Esdras (450-350 a.C.), que empreendem importantes reformas para manter a identidade e coesão do povo no pós-exílio, contudo, a consolidação da teologia da retribuição: 89 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Eu sou Javé, e não mudo. Vocês, ao contrário, fi lhos de Jacó, vocês não se defi nem. Desde o tempo de seus pais, vocês se afastam de meus estatutos e não guardam meus decretos. Voltem para mim, que eu também voltarei para vocês! – Diz Javé dos exércitos. Mas vocês perguntam: ‘Em que precisamos voltar? Pode um homem enganar a Deus?’ Pois vocês me enganaram! Vocês me perguntam: ‘Em que te enganamos?’ No dízimo e na contribuição. Vocês estão ameaçados de maldição, e mesmo assim estão me enganando, vocês e a nação inteira! Tragam o dízimo completo para o cofre do Templo, para que haja alimento em meu Templo. Façam essa experiência comigo – diz Javé dos Exércitos. Vocês hão de ver, então, se não abro as comportas do céu, se não derramo sobre vocês minhas bênçãos de fartura. Acabarei com as pragas da plantação, para que elas não destruam os frutos da terra nem devorem a vinha do campo – diz Javé dos exércitos. Todas as nações chamarão vocês de felizes, porque vocês hão de ser uma terra de delícias – diz Javé dos exércitos (Ml 3,6-21). Tanto a teologia da retribuição, de acordo com o texto acima, e também a lei da pureza (cf. Lv 12) provocam exclusões de diversos grupos considerados impuros: estrangeiros (especialmente mulheres), doentes, pobres e portadores de defi ciência física. Nesse contexto é que surge o livro de Rute. No livro se mostra que a pertença ao povo não seja restrita apenas à nacionalidade judaica e propõe a solidariedade como valor fundamental na reconstrução do país. Reivindica alguns direitos dos pobres: a lei da respiga, a proteção da terra e o levirato. No fundo, se trata de um protesto contra a política pós-exílica de isolamento social e a total eliminação dos estrangeiros, defendida pela teocracia de Jerusalém. Ao colocar uma mulher moabita como ancestral de Davi e modelo de solidariedade, o livro se opõe à proibição de matrimônios mistos (Ml 2,10-16; Ne 13,23-27). A história de Rute se apresenta em quatro cenas principais: - O retorno de Noemi para Belém e a opção de Rute por Noemi (Cap. 1); - Rute nos campos de Booz e seu encontro com ele (Cap. 2); - Booz e Rute na eira (Cap. 3); - O resgate em favor de Noemi em Belém (Cap. 4) Enfi m, no livro de Rute, a salvação se concretiza mediada pela solidariedade e a aliança entre os grupos minoritários. 90 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS d) Samuel e Reis No livro de 1Sm se dá início à temática do Estado. Ainda que o Estado não seja o foco principal dos livros em questão, seu assunto se estende até 2Rs. Não se pode negar que o Estado é um tema relevante da obra deuteronomística, superado apenas pela profecia. Esta é a medida na sociedade, inclusive de reis e estado. O Estado visto a partir da ótica profética não é visto de maneira positiva. Se verifi ca em 1Sm 2, no cântico de Ana. Fala contra os fortes e poderosos. Anuncia a derrota do arco, o mesmo que o exército: Então Ana rezou esta oração: Meu coração se alegra com Javé, em Deus me sinto cheia de força. Agora, que eu possa responder aos meus inimigos, pois me sinto feliz com tua salvação. Ninguém é santo como Javé, não existe rocha como o nosso Deus. Não multipliquem palavras soberbas, nem saia arrogância da boca de vocês, porque Javé é um Deus que sabe, é ele quem pesa as ações. O arco dos poderosos é quebrado, e os fracos são fortalecidos, enquanto os famintos engordam despojos. A mulher estéril dá à luz sete fi lhos, a mãe de muitos fi lhos se esgota. Javé faz morrer e faz viver, faz descer o abismo e dele subir. Javé torna pobre e torna rico, ele humilha e também levanta. Ele ergue da poeira o fraco e tira do lixo o indigente, fazendo-os sentar-se com os príncipes e herdar um trono glorioso; pois a Javé pertencem as colunas da terra, e sobre elas ele assentou o mundo. Ele guarda o passo de seus fi éis, enquanto os injustos perecem nas trevas, pois não é pela força que o homem triunfa. Javé derrota seus adversários, o altíssimo troveja lá do céu. Javé julgaos confi ns da terra. Ele dá força ao seu rei e aumenta o poder do seu ungido. Ora, o Estado é a história dos fortes, poderosos, e dos arcos em suas vitórias contra os fracos e em sua espoliação dos pobres. O direito do rei é, de acordo com 1Sm 8,10-18, a exploração nua e crua de seus súditos, portanto, conta-se a história do Estado para negar a validade da exploração. No entanto, se guarda uma esperança. Já podemos constatá-la no mesmo Cântico de Ana. O seu último versículo enaltece a utopia do Messias: “Javé julga as extremidades da terra, dá força ao seu rei, e exalta o poder do seu ungido” (1Sm 2,10). Conta-se, de uma maneira profética, a história do Estado, seus trágicos desmandos, para fazer crescer a esperança pelo Messias. A superação messiânica do Estado – marca as pautas e estabelece os trilhos. É uma projeção avaliativa do que lhe segue. Tem, por conseguinte, função interpretativa e hermenêutica em relação ao todo dos livros de Samuel e Reis. Conta-se, de uma maneira profética, a história do Estado, seus trágicos desmandos, para fazer crescer a esperança pelo Messias. A superação messiânica do Estado – marca as pautas e estabelece os trilhos. 91 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Nesse sentido se questiona o porquê de a monarquia ser denunciada, rejeitada, desde o seu princípio. A primeira e principal denúncia profética é que o reinado promove outros deuses, isso se relaciona aos estados de Israel e Judá, pois encorajaram para a idolatria que dizia respeito a outras divindades. Isso contradiz a exigência central do Deuteronômio, que é a de justamente negar esta possibilidade. De acordo com o autor Mario Liverani (2008, p. 184): É provável, portanto, que Yahweh fosse o deus ‘nacional’ já no século IX, mas que seu culto levasse em consideração a presença de outras divindades (até ofi cialmente aceitas), que se desenvolvesse em formas que o posterior rigorismo julgará escandalosas e que tivesse com o culto e o sacerdócio (profetas, inclusive) de Ba’al um confl ito que será acentuado, e muito, pelas releituras posteriores. É indicativo o fato de as profecias do javista Amós sobre a ruína iminente de Israel insistirem sobretudo nas culpas socioeconômicas e reservarem um peso muito modesto às culpas de tipo religioso e cultual (o culto materialista, feito de festas e sacrifícios, músicas e ídolos: Am 5,21-27). Somente de passagem se citam os santuários de Bet-El e Gilgal (3,14,4,4), ao passo que a Yahweh se reserva um papel de restauração da prosperidade perdida, que é evidentemente um acréscimo posterior” [...]. As divindades mais conhecidas são Yahweh para Judá e para Israel, Kemosh para Mo’ab, Qaus para Edom, Milkom para Amon, Hadad para Damasco, Baal/Melqart para Tiro, todos em plena atuação nos séculos IX e VIII, antes mesmo que, de modo predominante, surja de fora a fi gura do deus nacional Assur. Naturalmente subsiste a legitimidade de procurar as mais antigas origens para cada um deles, e em particular para Yahweh, mas o papel ‘nacional’ só pode ter se tornado consistente numa época em que a identifi cação entre Deus e Estado étnico era plenamente operativa no plano político e militar. O mal começa desde Saul, isso porque se atreve a oferecer holocaustos (1Sm 13,8-15). Recorre a práticas cultuais proibidas em sua consulta à mulher de Em-Dor (1Sm 28). Salomão introduz altares a outras divindades (1Rs 11), no que é seguido pela maior parte de seus sucessores. Jeroboão I, o fundador do reino de Israel/norte, fez da promoção da idolatria um projeto ofi cial (1Rs 12,26-33). Por causa da destruição deste Israel, os autores anotam como motivo: “Tal sucedeu porque os fi lhos de Israel pecaram contra Javé, seu Deus... e temeram a outros deuses” (2 Rs 17,7). A seguir vamos conhecer um pouco mais sobre uma divindade que foi muito protestada pelo próprio Javé, Baal. 92 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Os autores bíblicos não tinham o interesse de ensinar a religião dos cananeus, por causa disso, se sabe muito mais a respeito do papel, das consortes e do culto de B aal; a partir da literatura extrabíblica, no entanto, a fi gura de Baal apresentada na Bíblia Hebraica corresponde aos textos extrabíblicos. O autor Thomas Entrich (s.d., p. 1) detalha ainda mais essa realidade: A ambiguidade entre uma assembleia politeísta de deuses e um deus monoteísta sempre esteve no centro da religião do Antigo Oriente Próximo e por muito tempo a Bíblia Hebraica era a única fonte literária existente. Desde o início do Século XX, escavações em Ugarit (Ras Shamra), Byblos, Hazor ou Mari derramaram uma nova luz sobre as antigas religiões orientais. A montagem de deuses nos mitos do povo semi- norte-americano provou ser um sistema complexo de deuses e deusas, tendo cada um deles seu respectivo lugar e função. Este sistema foi baseado em um ciclo de fertilidade cósmica em torno dos deuses 'El and Ba'al, as deusas' Atirat ('Ashera), 'Anat e Attart ('Astart) e outros deuses como Môt, Yam ou Kôtar. Baal também foi chamado Haddu (=Hadade), um deus que está acima de todo deus da tempestade que dá a chuva suave e que faz renascer a vegetação. Nesse sentido, os anos de seca eram atribuídos ao seu cativeiro temporário ou até mesmo a sua morte. No entanto, em sua reivindicação, campos, rebanhos e famílias tornavam-se produtivos. Para além disso, Baal era considerado um deus da guerra e uma divindade ligada à fertilidade que se une a Anate, mais tarde igualada a Astarte. Por meio de um recital mítico se trazia de volta a vida na festa de outono do ano novo e também por intermédio do casamento sagrado, representado no culto pelo rei, a rainha e uma sacerdotisa. Era por meio desses rituais que os semitas acreditavam assegurar a fertilidade da terra. Esse ritual era comum na Babilônia, mas pouco atestado, não de forma clara, em Canaã. Durante o período dos juízes, Israel sucumbiu a este culto, visto como contagioso (cf. Jz 2,11; 6,25), e tinha de sofrer o livramento de Javé, evitando assim graves consequências. Foi na dinastia de Omri que o culto a Baal se tornou a religião ofi cial do Reino do Norte (cf. 1Rs 16,31). Nesse sentido, pode ser que os milagres de Israel feitos por Eliseu e Elias foram polêmicos a favor de Deus, condenando os poderes atribuídos a Baal, divindade pagã da natureza, o fogo (cf. 1Rs 18,17; 2Rs 1,9-16), chuva (cf. 1Rs 17,1; 18,41-46), alimento (cf. 1Rs 17,1-6, 8-16; 2Rs 4,1), crianças (cf. 2Rs 4,14-17) e revivifi cação (1Rs 17,17-23; 2Rs 4,18- 37; 13,20-22). No entanto, o culto a Baal não foi sufi ciente para livrar a terra do culto degradado e ainda ocorreu o cativeiro do Reino do Norte, que culminou em muitas disputas políticas e destruições, como demonstra o livro de Oseias. Os autores bíblicos não tinham o interesse de ensinar a religião dos cananeus, por causa disso, se sabe muito mais a respeito do papel, das consortes e do culto de Baal; a partir da literatura extrabíblica 93 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Oseias descreve Israel como aquele que recebeu as bênçãos provindas do cereal e do óleo da parte de Javé: Ela não reconheceu que era eu quem lhe dava o trigo, o vinho e o azeite; quem lhe multiplicava a prata e o ouro, que eles usavam para fazer um ba’al” Por isso, retomarei meu trigo e meu vinho na época da safra. Retomarei minha lã e meu linho, que cobriam sua nudez (Os 2,10-11). Oseias se utiliza do termo Baal não apenas relacionado à divindade cananeia, mas é usado no sentido fi gurado, de Deus como o marido de Israel. Israel chama Deus de seu marido: “Acontecerá naquele dia – oráculo de Javé – que você me chamará ‘meu marido’ e não mais ‘meu Baal’. Vou tirar de seus lábios o nome dos baais e esses nomes nunca mais serão lembrados” (cf. Os 2,18-19). Mas, diante de tanta informação, nem devemos buscar osalvos e as esperanças mais expressivas dentro ou no fi nal da obra deuteronomística. Mais provável é que a devemos encontrar no começo da obra. Aliás, é no começo que, pela Bíblia afora, se encontram as grandes esperanças. É mencionado no início da obra deuteronomística, diz o alvo, bem como os caminhos de Israel. O rei não é colocado como objetivo principal, pois os caminhos de Israel não se fi zeram por meio da monarquia, nem em seus começos mais distantes, em Gn 1-11, e tampouco em seus séculos nas terras da promessa. Na narrativa é possível reconhecer duas afi rmações fundantes: uma afi rmação teológico-histórica: a terra é dádiva, é doação de Deus (Js 1-12). Deus a deu aos mais empobrecidos, os que não tinham a menor possibilidade de vencer os cananeus diante de seus poderosos exércitos e suas enormes cidades. A terra, em que estão, possui sua origem no próprio Javé. Por outro lado, a segunda metade do livro de Josué (13-24) informa que a mediação de acesso à terra são condições sociais clânicas. Se tem um lugar ao solo, sendo parte de família e tribo. Eis a utopia de Israel juntamente com sua luta cotidiana. Se possui terra é porque faz parte de um povo libertador. Esta é a trajetória que Israel precisa retomar. 94 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Recapitulando: Os livros de Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis constituem um só conjunto literário: a obra historiográfi ca deuteronomística. Esta obra foi composta por volta de 550, no âmbito do campesinato remanescente em Judá, sob a coordenação de grupos levítico-proféticos. Critério de sua historiografi a é a lei do Deuteronômio: um só Deus, um só lugar cúltico, um só povo. Os livros de Josué e Juízes correspondem a estas exigências. A libertação da terra (Josué) e a defesa da liberdade do povo (juízes) condizem com os critérios. Por fi m, verifi camos que os conteúdos da literatura bíblica em questão se ajustam, muito bem, às condições históricas do campesinato judaísta retribalizado por ocasião da desmilitarização e desurbanização, promovidas pelos babilônios na Palestina, em 597-587 a.C. E, além disso, as propostas da obra se encaixam dentro do que conhecemos de o povo da terra do VI e VII séculos. O Fim do Exílio O exílio teve seu fi m no ano de 539 a.C. Neste ano a Babilônia foi julgada defi nitivamente pelo Império Persa. O rei persa era Ciro e foi triunfalmente recebido, em especial na capital do Império Babilônico. Novos tempos iniciavam. Sob suas condições vieram a se concretizar os projetos elaborados por remanescentes e exilados. Alguns. Outros foram refutados. Outros, enfi m, foram remodelados. Nesse item não pretendemos esboçar de maneira mais detalhada a trajetória histórica do pós-exílio, mas assinalar as alterações mais imediatas provocadas pela grande vitória do Império Persa. Vimos no item anterior que a maioria do povo de Javé permaneceu em Judá, durante o exílio babilônico. A deportação não passava de uma minoria, e, no entanto, há fortes indícios de que a maior parte desta minoria estava acostumada com as exigências vividas na Mesopotâmia. O profeta Jeremias demonstra a interação com a sociedade babilônica ao escrever sua carta aos exilados: 95 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel, a todo o povo que levei de Jerusalém para o exílio na Babilônia: construam casas para vocês habitarem. Plantem pomares para comerem de suas frutas. Casem-se, gerem fi lhos e fi lhas, arranjem esposas para seus fi lhos e maridos para suas fi lhas, e que eles também gerem fi lhos e fi lhas. Multipliquem-se aí, não diminuam. Busquem a paz da cidade para onde eu os exilei e rezem a Javé por ela, pois a paz desse lugar será a paz de vocês. Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel: Não se deixem enganar pelos profetas que existem no meio de vocês. Não escutem os adivinhos nem os sonhos que eles dizem que têm, pois eles profetizam mentiras em meu nome. Eu não enviei nenhum deles, oráculo de Javé (Jr 29, 4-9). Os que para Segundo Isaías são os desanimados (Is 40,27;49,14) hão de ser os que se integraram ao mundo mesopotâmico. Não pensam em regressar. Aliás, quando após 539 a.C. efetivamente houve possibilidades para o retorno, poucos se utilizaram dessa liberdade dada pelo Império Persa. Pelo que nos conta – mesmo com os relatos de Esdras (cf. Esd 7) – poucas pessoas retornaram à Palestina. Portanto, além de serem uma minoria, os exilados não aderiram em bloco às propostas de seus profetas Ezequiel e Deutero-Isaías. Apesar dessas informações, os exilados é que fazem história! A interpretação que se impôs segue na perspectiva dos deportados. As narrativas nos dão a impressão de que toda a população de Judá teria sido levada à Babilônia e, após 539 a.C, a maioria dos exilados teria retornado. Quantitativamente, os deportados teriam sido a totalidade, e ainda, eles também seriam qualitativamente a parcela mais signifi cativa. Dessa forma se entende como resto santo, purifi cado pelo exílio babilônico. Essa é a visão do cronista (1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias). É a que se impôs na historiografi a! 96 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Atividade de Estudos: 1) Leia o artigo de SANTOS Michel. Junto aos Rios da Babilônia: Um estudo acerca da história de Israel no exílio. Disponível em: <http:// www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/Relatorios/CTCH/TEO/ TEO-Michel%20Alves%20dos%20Santos.pdf>. Aponte as principais características desse período, bem como as infl uências históricas na literatura, que culminaram em muitas narrativas bíblicas. _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ A Lei e o Templo A chamada reforma de Josias em 622 a.C. dera primazia ao Templo de Je- rusalém. Tornou-se o símbolo central. Exilados e remanescentes haviam passado pela experiência da reforma josiânica. Por isso não é nenhum acaso que o templo jerusalemita ocupe um lugar central em seus propósitos. Alguns círculos dentre os próprios remanescentes cultuavam o local sagrado, mesmo que estivesse em ruínas, após 587 a.C. Lamentações e Abdias possuíam o seu lugar vivencial junto a estas ruínas. Contudo, este grupo de remanescentes simpáticos ao Sião era minoritário. Boa parte dos judaítas não tinha preocupação com o santuário. Os seus símbolos eram a terra e um novo rei. Estes grupos criaram os textos mais signifi cativos em Judá: a grande obra historiográfi ca deuteronomística e os 52 capítulos do livro de Jeremias. Em meio aos deportados a posição era bem mais favorável ao templo. A narrativa de Ezequiel demonstra essa realidade. Ela também marca presença em Segundo Isaías, ainda que aí não seja tão central. É bom reiterar que entre os profetas exilados também existiam outras posições, como as que estão expressas na visão do vale de ossos (cf. Ez 37) e nos cânticos do servo sofredor. Nem mesmo entre os exilados está concentrado em Sião. 97 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 O papel dos sacerdotes de longe excedia sua autoridade jurisdicional sobre o âmbito dos santuários. Penetrava profundamente na vida do povo. Decidiam sobre o puro e o impuro, isto é, os âmbitos dos tabus na vida diária. Presidiam os julgamentos concernentes ao adultério (cf. Nm 5) e presidiam, juntamente com outros, julgamentos de queixas, ou seja, indivíduos que sob processo ou ameaça de vida tinham que submeter seus casos à adjudicação cúltica. Ministravam as liturgias à entrada do templo, que tratavam das adjudicações das condições éticas para a admissão ao santuário (cf. Sl 15; 24). Adjudicavam litigações no santuário que de outra forma não poderiam ser resolvidas(cf. Ex 22,9), desempenhavam um papel que julgava as pessoas acusadas de qualquer tipo de crime. Essa lista parece não estar completa. Apenas demonstra que a religião de Javé de Israel era, institucionalmente, uma parte intrínseca e até controladora de intencionalidade teocrática da vida societária de Israel. A autoridade jurisdicional dos santuários e dos sacerdotes, os quais estavam primordialmente preocupados com os afazeres daquela religião, constituiu um elemento proeminente das instituições públicas em geral. Essa autoridade era uma parte da Lei da terra e não uma administração religiosa, separada dela e sob a Lei da terra. A Lei e a justiça não foram inventadas pelos profetas. Agora, chegando aos processos jurídicos que não estavam relacionados ao culto é possível perceber a diferença entre os casos civis e criminais. Quando nenhum ato criminoso envolvia decisão legal, era feita basicamente por meio de acordo entre as partes envolvidas, às vezes na presença de testemunhas, como mostra a história do casamento de Rute. Um acordo direto não poderia ser alcançado, ou seja, essa situação fazia que se recorresse à corte, daí entram a fi gura do juiz, ou a corte dos anciãos, que arbitravam para propor uma solução que não era executada legalmente, mas tinha que ser implementada pelas próprias partes interessadas (SCHULTZ, 1984, p. 100). A questão da execução legal de julgamentos torna-se mais problemática quando em casos, por exemplo, de roubo, desfalque, danos causados por negligência, estupro, assassínio, não apenas compensação, como também multa ou pena eram estipuladas. A execução de tais julgamentos era, a grosso modo, também deixada ao ganhador da causa, mas é pouco provável que a comunidade não tivesse se interessado pelo cumprimento dos seus julgamentos ou não tivesse acesso a protestos contra o não cumprimento. Em casos de assassinato, era do vingador de sangue, em primeiro lugar, apoiado pelos anciãos de uma cidade, a tarefa de punir o assassino (cf. Dt 19,11-13). Homicidas involuntários tinham a chance de serem protegidos em cidade de refúgio. Em outros tipos de crimes capitais, pelo menos nas principais comunidades locais e possivelmente nos clãs que existiam antes delas, e sem 98 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS dúvida, as administrações reais executavam seus julgamentos por eles mesmos (Dt 19,25-21). Este tipo de execução de julgamentos é provavelmente válido para a expulsão de alguém da comunidade ou a expulsão da congregação cúltica, o banimento, e, acima de tudo, para a pena de morte (cf. Lv 24,10-23; Js 7; 1Rs 2,13; 25,21; Dt 21,18-21). De acordo com Schultz, as legislações com as mesmas características de Ex 21,22-25, criaram um problema ao dizer que estas leis são decisões de costume. De fato, elas são baseadas em decisões que refl etem certo costume jurídico. Esse fato, porém, não signifi ca que são formuladas na forma verdadeira de decisões pronunciadas ao fi nal dos julgamentos. Fala-se de duas formas diferentes de expressão legal. Ambas declaram ou, pelo menos, pressupõem a correspondência de caso e consequência. Uma delas, porém, relata um caso que já aconteceu e estipula a consequência a ser implementada no futuro, mesmo que a sequência das duas declarações possa ser alternada. Diz, como no julgamento contra Jeremias: “Este homem não merece a morte, pois ele falou de Javé nosso Deus” (Jr 26,16). Esse tipo de expressão é falado depois de uma ação passada e antes da consequência estipulada para o futuro (SCHULTZ, 1984, p. 100). Por contraste, outro tipo de expressão diz o seguinte: se você fi zer isso, o seguinte acontecerá. Esse tipo é – em formas variáveis – falado ou escrito não apenas antes da consequência estipulada, mas também antes da ação descrita. Esse tipo de expressão é claramente prescritiva, ou legislativa, em natureza, enquanto o outro é claramente adjudicatório na Bíblia Hebraica. Nesse sentido, deve fi car claro que o caso de Lei não é não legislativo porque se apoia na adjudicação de casos baseados em costume. Ambos os tipos de expressão, o adjudicatório e o legislativo, são partes do caso de Lei e, por sua vez, se alicerçam principalmente em Lei de costume. Esta distinção signifi ca que se deve examinar mais especifi camente as leis veterotestamentárias como legislação e os legisladores que estão por trás dela. Essas leis frequentemente documentadas cobrem um largo leque de aspectos substantivos. Em algumas situações também podem representar os trâmites jurídicos, como em Dt 17,2-6 no caso de suspeita de apostasia. Aqui o boato deveria ser investigado diligentemente, a verdade estabelecida claramente na base de, ao menos, duas ou três testemunhas, e se a prova for estabelecida, a pessoa condenada deveria ser levada à porta da cidade e, lá, executada por apedrejamento, o qual deveria ser iniciado pelas próprias testemunhas. Em Nm 5 o autor apresenta trâmites jurídicos concernentes ao julgamento de uma mulher suspeita de adultério. Deve-se considerar as prescrições para os trâmites dos rituais de sacrifícios em Lv 1-7 como processos jurídicos pertencentes ao âmbito do culto e tratando da eliminação de culpa compreendida do ponto de vista forense, ou seja, desvendamento de crimes. 99 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Os ensinamentos da Aliança gravitam em torno de Deus e do povo de Israel, situados numa vasta rede de relações. Ele mostra o povo de Deus à procura por ter consciência, como eleito e amado por Deus. O israelita era convidado a praticar a lei que mistura direito civil e direito sagrado. Isso porque em Israel não existia diferença entre direito sagrado e direito civil. A vida em Israel é um serviço a Deus, ou o mesmo que dizer a liturgia a Deus. O povo do Êxodo, livre da escravidão egípcia pelo seu Deus, possui como único e verdadeiro soberano o seu Deus. A infração de uma lei é sempre uma ofensa a Deus. Israel valorizou muito a sua Lei – Torá. O cristão atual pode surpreender-se, então é melhor recolocar a ideia no seu contexto histórico. Possuir as próprias leis signifi ca ser uma verdadeira nação. De acordo com Dt 4,8, o mais explícito no mérito, de fato afi rma: “E qual a grande nação que tenha estatutos e normas tão justas como toda esta Lei que eu vos proponho hoje?” O objetivo do Pentateuco não é o de dar a Israel uma Lei válida para cada lugar e cada tempo. A sua ideia, se assim pode ser dita, é a de fornecer a Israel a prova de que ele é uma nação que possui as suas próprias leis. No fundo, o Pentateuco possui o arquivo jurídico de Israel. Com um vocabulário mais atual, pode-se dizer que o Pentateuco não possui o direito positivo de Israel. Trata-se de uma obra para ser consultada, mais do que série de leis a serem aplicadas ou defi nitivamente outorgadas pelos juízes. No fundo, na vida de cada dia, vigoravam o direito consuetudinário e o princípio da jurisprudência. Somente nos livros de Esdras e Neemias são encontrados textos nos quais pode ser aplicada uma lei como está escrita. O estudo atento demonstra, porém, que cada um é interpretado, e que não se tem, quase nunca, uma aplicação literal da lei. Todos os acontecimentos que ao longo da história ancestral provocavam espanto, impacto, admiração, temor, eram marcados por uma espécie de aura misteriosa e por uma enorme reverência. Os ancestrais certamente não conheciam a ciência genética e, portanto, não conheciam a maneira que homem e mulher contribuiriam para a geração de um novo ser humano. O mais pertinente para esse povo era o mistério do nascimento de uma pessoa. E isso acontecia somente pelo corpo da mulher. As pessoas sabiam que tinham passado por um corpo de mulher. Essa maneira de compreender e ser sensível à origem da vida colocava as mulheres como criadoras da existência humana. O corpo das mulheres era o refl exo da vida desse povo que se organizava no cotidiano dos diferentes grupos.100 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O segundo templo (veja a imagem a seguir). Algumas décadas depois da destruição do templo de Salomão, os judeus voltaram da Babilônia e puderam reconstruir o seu templo. Essa primeira construção terminou em 515 antes de Cristo. Esse templo foi reformado por Judas Macabeu em 164 a.C. A imponência e fama que teve o segundo templo se deu por conta da intervenção de Herodes, o Grande, que ampliou de forma monumental aquilo que já existia. As obras iniciadas com Herodes ocorreram por muitos anos, tendo terminado apenas em 64 d.C. Figura 6 - Reconstrução do II templo Fonte: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Segundo_Templo>. Acesso e: 9 out. 2017. Os exilados fi zeram-se hegemônicos no povo. O templo se tornou um projeto prioritário. Pode ser que essas características assumidas no pós-exílio possam estar relacionadas com as implantadas no mundo dos persas. Com certeza, identifi ca melhor o projeto do Império Persa. Os exilados fi zeram- se hegemônicos no povo. O templo se tornou um projeto prioritário. Pode ser que essas características assumidas no pós- exílio possam estar relacionadas com as implantadas no mundo dos persas. Com certeza, identifi ca melhor o projeto do Império Persa. 101 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 O Império Persa A ascensão persa surpreendia todo o mundo de então e foi extraordinariamente rápida. Os persas nem fi guravam entre as potências tradicionais da Mesopotâmia. Vindos do Oriente, em poucos anos souberam adonar-se, inicialmente sob Ciro, tanto da Mesopotâmia quanto do Egito, tanto da Ásia Menor quanto da Síria/ Palestina. O novo soberano, Ciro, iniciou uma política de expansão territorial com o objetivo de formar um grande império, pois desejava obter riquezas e resolver os problemas causados pelo aumento populacional. Dessa forma, Ciro, o Grande, conseguiu conquistar os territórios da Mesopotâmia, de toda a Ásia Menor (atual Turquia) e de territórios a leste da Pérsia (parte ocidental da Índia). Por todas essas conquistas, Ciro foi considerado um dos grandes estrategistas militares da Antiguidade. Em 530 a. C., o Império Persa se estendia do Mar Mediterrâneo oriental até o Rio Indo (rio que corta a atual China, Índia e Paquistão, na Ásia). Para demonstrar a extensão territorial do Império Persa, observe que as conquistas de Ciro compreenderam os seguintes países atuais: Irã, Iraque, Síria, Líbano, Jordânia, Israel, Egito, Turquia, Kuwait, Afeganistão, parte do Paquistão, parte da Grécia e da Líbia. O governo de Ciro sempre tratou bem os povos dominados, possibilitando- lhes a liberdade de ação, de emprego e de religião, porém Ciro os obrigava a servir o exército persa e a pagar tributos. Dessa maneira, ele fortaleceu seu exército e arrecadou tributos para a manutenção dos seus soldados. Uma das grandes características do imperador Ciro e dos persas era a força que tinham como guerreiros (CARVALHO, s.d., s.p.). Conheça mais sobre a história dos persas! Assista ao vídeo: Construindo um Império: persas. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=cb6QPIGe2S0>. 102 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Com os persas são introduzidas diversas novidades, isso porque souberam organizar administrativamente seu imenso império. Criaram uma efi ciente burocracia estatal, dotada inclusive de um excelente serviço de correio. Neste sistema administrativo, as satrápias tinham um papel administrativo e de subunidade burocrática. Este tipo de organização viabilizava uma regionalização da administração e mantinha a unidade de conjunto. Através destes aparelhos burocráticos é que eram arrecadados os tributos. O tributo se tornou um negócio de Estado. Nisso, os templos deixaram de desempenhar papel central no recolhimento do tributo. Os persas não impuseram sua religião aos povos dominados, como procediam assírios e babilônios. Não somente impingiram sua religião aos povos conquistados, como até mesmo promoveram cultos em templos destes. Na Babilônia, Ciro restaurou o culto a Marduque, duramente contestado pelo último soberano babilônico, Nabonide, que não era adepto de Marduque. Da mesma forma, os persas procederam em outros lugares. Ajudaram a construir templos e facilitaram a aplicação das leis sagradas das diferentes divindades locais. Os persas eram tolerantes em termos de prática religiosa, evidentemente enquanto estas práticas não contestassem seu império mundial. A restauração do culto sacrifi cial a Javé em Jerusalém e o regresso dos exilados se situam neste âmbito de uma política religiosa “tolerante” da parte do Império Persa. O decreto de Ciro se tornou muito importante, aliás o cronista o reproduziu por três vezes; 2Cr 36,22-23; Esd 1,1-5 e 6,3-5. Os textos não conferem exatamente. Se tratam de edições bem diferentes. Por vários motivos, se considera o texto de 6,3-5 – transmitido em aramaico – como o mais autêntico: Memorando. No primeiro ano de seu governo, o rei Ciro promulgou o seguinte decreto: templo de Deus em Jerusalém. O templo deverá ser reconstruído para ser um lugar onde se ofereçam sacrifícios, e seus alicerces devem ser restaurados. O templo deverá ter 30 metros de altura e 30 de largura. Terá três fi leiras de pedras talhadas e uma fi leira de madeira. A despesa ocorrerá por conta do palácio do rei. Também os objetos de ouro e prata do templo de Deus, retirados do templo de Deus por Nabucodonosor e trazidos para a Babilônia, serão devolvidos. Desse modo, tudo voltará ao seu lugar no santuário de Jerusalém, e será colocado no templo de Deus. Este decreto dá ênfase apenas ao templo e determina a sua reconstrução imediata, defi nindo a sua função, tamanho, fi nanciamento e até a devolução dos utensílios. Esta restauração é apresentada como um projeto persa. Os exilados 103 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 nem mesmo aparecem. Isso evidentemente não signifi ca que não tivessem estado por trás da edição da lei. Afi nal, de outra maneira difi cilmente se explica que Ciro, já um ano após haver assumido o poder na Babilônia, tenha se importado com a distante e destruída Jerusalém. Os exilados se mobilizaram para a obtenção deste decreto. Dêutero-Isaías anos antes já havia aclamado Ciro como o ungido. Com isso, por meio da administração persa e com seu total apoio, os exilados defi nem o futuro do templo, de Jerusalém, de Judá. O mesmo se poderia formular também de outra maneira: os persas se valem dos deportados, com pleno consentimento para a concretização dos seus planos em Judá. E a Palestina, sem dúvida, era interessante para os persas. Em 538, recém-haviam se adonado da Mesopotâmia. Ainda não eram efetivos senhores da Palestina. Esta e, em especial, o Egito fi guravam nas futuras pretensões de Ciro. E para alcançar a conquista do Egito, era relevante contar com o apoio de Judá e Jerusalém, esta porta de entrada para as terras do Nilo. O decreto de Ciro de 538 tem a ver com a pretendida invasão do Egito, defi nitivamente efetivada em 525 a.C. Algo que surpreende é que o decreto não tenha falado sobre o regresso dos exilados. Talvez não fosse a questão principal na ordem do dia. Afi nal, Judá estava povoada e lá viviam os remanescentes. É muito provável que os exilados não estivessem interessados num retorno imediato. Enfi m, também poderia se conjeturar que deles se estaria tratando implicitamente ao falar do retorno dos utensílios do templo. É o que atesta Esd 1. Em todo caso, nestes primeiros anos após a vitória persa, a reedifi cação dos santuários em ruínas concentrava as atenções. Para os autores de Esdras, o enfoque era outro bem diferente. Deram destaque também ao retorno (Esd 1,3). Foram muitas as razões para que no povo de Deus predominassem em tempos pós-exílicos certas linhas teológicas e não outras. Não tem como reduzira preponderância destas ou daquelas facetas. As questões são complexas e, a rigor, já fogem dos propósitos deste nosso estudo. Além disso, não se poderá deixar de contar com a dinâmica própria e peculiar trazida à tona sob as novas contingências pós-exílicas. O pós-exílio não é apenas a continuação dos projetos teológicos formulados sob as condições do exílio. É um momento novo, próprio. Por exemplo, Ageu sem dúvida é favorável à restauração do santuário. Nesse sentido está sua profecia. Contudo, para ele, este novo templo – tão apoiado pelos persas – inauguraria o aniquilamento da dominação persa! Dessa forma percebemos como eram a dinamicidade e a inovação que foram as propostas pós-exílicas, não se esgotam em ser prolongamentos de correntes de tempos exílicos. 104 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Atividade de Estudos: 1) Quem foram os exilados para a Babilônia? Qual foi o principal objetivo do império dominador? _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 2) O que aconteceu com a população que fi cou em Judá e quais foram as infl uências na literatura bíblica? _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 3) De acordo com o conteúdo, comente os principais acontecimentos do pós-exílio. _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ Algumas ConsideraÇÕes Ao longo desse capítulo pudemos perceber os percursos vividos pelo povo de Israel ao longo da sua trajetória exílica e pós-exílica. Por séculos o povo experienciou um período de constantes incertezas. Por conta disso, conhecer um pouco desses caminhos é fundamental para compreendermos as narrativas bíblicas que foram sendo construídas, reconstruídas ou readaptadas durante um tempo de sofrimento, mas que nunca perderam a esperança! 105 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 Percebemos também que a história de Israel não é narrada de uma maneira linear com começo, meio e fi m. Mas é construída em diversos momentos. As narrativas são recontadas e podem ganhar uma nova versão, a partir do momento ou situação em que estavam vivendo. Pode ser que uma história antiga seja recontada com o intuito de incentivar o povo a não desistir nunca de vencer a escravidão à qual foi submetido pelo Império Babilônio. Diante de enormes e infi nitas difi culdades, tanto para quem foi exilado, quanto para quem continuou na terra, tiveram que se submeter às suas crenças religiosas para continuarem tendo forças, e que era possível vencer a experiência de opressão que estavam vivendo. O povo exilado não esquece, jamais, as promessas de Javé, é estimulado por meio da profecia, de cânticos, salmodias, a continuar crente numa libertação próxima. Concluindo o Antigo Testamento Vimos no primeiro capítulo desse nosso estudo que a Bíblia, por se tratar de um livro sagrado, não caiu pronta do céu, fora da realidade histórica. Ao contrário disso tudo, a Bíblia possui essa característica sagrada justamente porque revela em sua vasta obra literária o rosto e a imagem do Deus da vida, que inevitavelmente se manifesta na história, nas lutas em favor da vida com dignidade e justiça para todos, principalmente para as pessoas empobrecidas e marginalizadas. É na defesa da vida que a Bíblia ganha caráter sagrado e torna- se Palavra de Deus. Ao ler a Bíblia podemos ter a impressão de que o povo de Israel era monoteísta desde o começo, ou que adorava somente a Javé e não possuía imagens divinas. Entretanto, as evidências de que dispomos indicam que o monoteísmo foi adotado em Judá somente no período pós-exílico, em uma das reformas mais recentes pelas quais passou a fé de Israel. A arqueologia e os próprios textos bíblicos nos mostram que o povo de Israel levou muitos séculos até tornar-se monoteísta e banir de seu meio o culto e as imagens dessas diversas divindades. Tanto a invasão da Assíria (732 a.C.) como a destruição da Samaria, capital de Israel (722 a.C.), quanto a destruição de Jerusalém, capital de Judá (598-587 a.C.), respectivos centros de poder de Israel e de Judá, provocaram a desarticulação das classes dominantes e possibilitaram o afl oramento de teologias marginalizadas pela teologia ofi cial. A teologia e a ética das aldeias camponesas, de tempos em tempos ecoavam nas cidades na voz dos profetas, mas esta teologia não recebia destaque nos textos ofi ciais. 106 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Ao longo do nosso estudo sobre o Antigo Testamento, buscamos dar a você, aluno, algumas chaves de leitura, ajudando-o na sua leitura da Bíblia. É claro que nem de longe aprofundamos a vasta literatura que compõe essa primeira parte da Bíblia, que pode ser chamada de Bíblia hebraica ou judaíta. A Bíblia só pode ser compreendida como sagrada quando é capaz de promover a solidariedade, e é capaz de tornar os seres humanos mais amorosos e bons! É importante que saibamos ler a Bíblia de tal maneira que nos ajude a viver as experiências de libertação e resgate da dignidade. Experiências essas que podem ser como aquelas vividas pelos escravos do Egito, pelos camponeses e pastores cananeus no ambiente do êxodo, pelas tribos de Israel, e também pelas pessoas que foram acolhidas por Jesus e integradas nas comunidades cristãs primitivas. Seremos fi éis a este espírito que habita o núcleo mais sagrado da Bíblia, quando as pessoas empobrecidas, injustiçadas, oprimidas, ou que têm suas vidas ameaçadas e que ainda não conheceram ou experimentaram “vida em abundância”, reconhecerem no uso da Bíblia uma Boa-Nova! No próximo capítulo iremos adentrar na segunda parte da Bíblia, o chamado Segundo ou Novo Testamento. Até lá! Bons estudos! ReFerÊncias BRENNER, Athalya. Ester, Judite e Susana: a partir de uma leitura de gênero. São Paulo, Paulinas, 2003. CARVALHO, Leandro. Ciro e o Império Persa. Brasil Escola. Disponível em: <http://brasilescola.uol.com.br/historiag/ciro-imperio-persa.htm>. Acesso em: 13 ago. 2017. CONSTRUINDO UM IMPÉRIO: persas. Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=cb6QPIGe2S0>. Acesso em: 13 ago. 2017. ENTRICH, Thomas. The Fertility Pair Ba‘al and ‘Anatin the Ugaritic Texts. Disponível em: <http://www.academia.edu/480859/The_Fertility_Pair_Ba_al_and_ Anat_in_the_Ugaritic_Texts>. Acesso em: 1 jan. 2017. RÖMER, Thomas. A origem de Javé. O Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2016. 107 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO IMPÉRIO PERSA Capítulo 3 SANTOS Michel. Junto aos rios da Babilônia: um estudo acerca da história de Israel no exílio Disponível em: <http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/ Relatorios/CTCH/TEO/TEO-Michel%20Alves%20dos%20Santos.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2017. SCHULTZ, Samuel J. A história de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1984. SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio. História e teologia do povo de Deus no século VI a.C. São Leopoldo: Oikos, 2009. VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003. 108 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS CAPÍTULO 4 Segundo Testamento A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Apresentar possíveis características que levam ao conhecimentodo Jesus histórico e seu projeto, em vista do reino de Deus. Esclarecer como os Evangelhos sinóticos estão organizados, a partir da sua história e contexto em que foram escritos. Identifi car o motivo pelo qual o Evangelho de João não está entre os Evangelhos sinóticos. Localizar eventuais características de Paulo que o tornaram apóstolo de Jesus, e de sua infl uência nas primeiras comunidades cristãs. Examinar as diferenças que transparecem em cada um dos escritos do Segundo Testamento, dentro do contexto em que foi escrito. Interpretar e diferenciar o estilo literário em que foram escritos os textos do Segundo Testamento. Defi nir as origens de Jesus e o legado que deixou para os seus primeiros seguidores. Conhecer os motivos pelos quais foram escritas as Cartas Paulinas e identifi car o apóstolo Paulo como aquele que estava preocupado com as futuras comunidades. Esclarecer o movimento apocalíptico como um recurso literário de forte resistência. Discutir os motivos que levaram Jesus a prometer a seus seguidores que mesmo após a sua morte continuaria com eles. Constituir uma refl exão tal que se chegue à compreensão de Jesus, dentro da sua realidade e do seu contexto. Aplicar a mensagem de Jesus interpretando-a a partir da análise narrativa, considerando os diferentes métodos exegéticos como possibilidades de leitura. 110 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS 111 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 ContextualiZaÇÃo Já se passaram mais de vinte séculos desde que nasceu o cristianismo. Os cristãos precisam retornar a Jesus para enraizar sua fé com mais verdade e descobrir de fato quem é Jesus, bem como o seu projeto. Com isso não estamos pensando em pesquisar com mais detalhes a biografi a de Jesus, até porque isso não seria possível, uma vez que os escritos que temos não são biografi as, mas retratos de comunidades da segunda geração de seguidores que procuravam, assim como nós, conhecer e experienciar concretamente os ensinamentos de Jesus instigados pelos seus primeiros discípulos. No prólogo do livro de Rafael Luciani, escrito por Pagola (2013, p. 4), o autor propõe que para retornar a Jesus exige-se de nós três tarefas fundamentais: num primeiro momento seria aceitar a humanidade histórica de Jesus como paradigma de nosso modo de ser humano, o que se revela em Jesus não é um conteúdo doutrinal, mas o modo de viver mais humano e humanizador que possa existir, pois responde fi elmente à vontade de um Deus que não só quer seguidores, mas busca um mundo mais humano. Em um segundo momento, colocar em prática essa práxis concreta de Jesus como realidade última e defi nitiva. No fundo, retornar a Jesus signifi ca um comprometimento com ele, não com uma religião convencional, mas a causa do reino de Deus, com o Pai que é bom e compassivo. Esse comprometimento vai se tornando fi rme de acordo com as condições históricas que vão obstaculizando seu reinado de paz e justiça, e no desenvolvimento de uma prática fraterna a serviço de todas as vítimas. Só é possível retornar a Jesus se conseguirmos recuperar a sua memória histórica, procurando seguir os mesmos caminhos que as primeiras comunidades cristãs. É em Nazaré que Jesus revela publicamente seu ministério, seu projeto, reconhecendo o fracasso de todas as expectativas existentes no século I. Um projeto muito querido por Deus deveria passar pela cura dos corações destroçados. Algo assim só podia ser realizado pela humanidade de um servo sofredor ao estilo do anunciado pelo profeta Isaías (Is 61,1-11). Também alguém que fosse justo, inspirado nas palavras do livro da sabedoria (Sb 2,12-20). Neste texto o justo se atreve a tratar a Deus como Pai, e por isso mesmo a consequência de seu próprio estilo de vida colocado à prova pela rejeição dos senhores, sábios e infi éis deste mundo. Por fi m, sabemos que as narrativas que constituem o Segundo Testamento foram escritas na metade do primeiro século da era cristã, ou seja, no período que vai de mais ou menos 50 a 100 d. C. ou talvez um pouco posterior a isso. Possivelmente os primeiros livros escritos foram as cartas do apóstolo 112 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Paulo, a começar por Tessalonicenses e o último o de Apocalipse. Essas cartas e outros escritos eram recebidos e preservados. Não tardou muito para que esses “livretos” ou “cartilhas” circulassem entre as primeiras comunidades que se identifi cavam com o projeto de Jesus (Cl 4.16), passando então a ser copiados e difundidos nas comunidades cristãs dos primeiros séculos depois de Jesus. A necessidade de ensinar novos convertidos e o desejo de relatar o testemunho dos primeiros discípulos sobre a vida e os ensinamentos de Jesus resultaram na escrita dos Evangelhos. Também estes foram copiados e distribuídos à medida que a comunidade crescia. Agora conheceremos um pouco da realidade histórica em que esses textos foram escritos, experienciados e desejados pela segunda geração dos discípulos de Jesus. O Sistema Político e Social do Império Romano no Tempo de Jesus Não temos dúvidas de que o cristianismo foi um produto do império. É claro que, numa das grandes ironias da história, o que se tornou a religião estabelecida pelo império começou como um movimento anti-imperial. Há quem veja Jesus como um inócuo mestre religioso, com isso se torna cada vez mais claro que o movimento de Jesus catalisou uma grande reforma na história de Israel. Esse movimento foi tanto contra o regime romano como contra a aristocracia sacerdotal de Jerusalém. Chegamos ao estudo do Segundo Testamento, tão esperado por muitos de nós, não é mesmo? Aliás, carregamos na nossa tradição um certo preconceito em relação ao Primeiro Testamento, achando mais difícil e muitas vezes até o colocando em segundo plano, como se não fosse tão importante para o universo dos cristãos, aliás, é Jesus quem salva! Mas não é bem assim, o Segundo Testamento retoma o primeiro, e quando o lemos, não conseguimos fazer um rompimento, pois a Torá é utilizada nos ensinamentos de Jesus e consequentemente se tornou uma chave para a compreensão do Segundo Testamento. Costumamos afi rmar que Jesus veio justamente para marcar um novo período na história de Israel e dos novos adeptos da sua proposta de vida. Pois bem, não é saudável quando fazemos essa ruptura, conforme dito anteriormente, entre o Primeiro e o Segundo Testamento, isso porque acabamos por legitimar uma realidade que não foi aceita por Jesus, pois permaneceu judeu até a sua morte. Quem o revelou “cristão” foram os seus seguidores num período bem posterior, quando o cristianismo se tornou a religião ofi cial do Império Romano no século IV a.C. 113 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Fica evidente que para os cristãos aquele que viria a ser chamado o Filho de Deus não se fez homem, em geral, se fez um tal homem particular, judeu, galileu, num determinado momento da história do mundo. Como um homem, evidentemente, foi marcado pela geografi a e pela história de seu país, por sua cultura e esteve sujeito às leis econômicas, entrou nos confl itos políticos e partilhou das esperanças de seu povo. Neste primeiro momento do nosso conteúdo, quase não falaremos de Jesus e nem de textos bíblicos. No entanto, essa parte do estudo se faz importante – e exige muito de nós – porque apresentamos as condições sociais, econômicas e políticas que fi zeram do personagem Jesus o homem que ele foi. Não há dúvidas de que o homem não se explica somente por essas diferentes condições e, com certeza, Jesus menos que qualquer outro, mas é por meio do conhecimento que se vê surgir com mais claridade e originalidade a relevância da sua mensagem e também da sua pessoa. Alguns Aspectos do Império Romano Não há como deslocar a história da Palestina com a de Roma no século I a.C. Para melhor compreendê-la é necessário conhecermos um pouco do Império Romano,descrevendo rapidamente sobre a situação política, geográfi ca, social- econômica e religiosa. a) Situação política Foi no século I a.C. que Roma passou pela maior revolução da sua história e a posteriori se tornou a maior potência econômica do Mediterrâneo. Contudo isso não foi tão simples, pois estava desprovida de uma infraestrutura administrativa, e a velha cidade, que é Roma, assumiu com muita difi culdade a governança daquele imenso império. Os governadores nomeados nem sempre são aqueles gananciosos denunciados pela imaginação tradicional, mas é certo que as províncias estavam sujeitas, muitas vezes, a uma governabilidade egoísta, por falta de uma verdadeira política de fusão. Contudo, essa ruptura entre Roma e o seu império territorial reforça o poderio dos chefes militares, de sorte que o Senado não controlava, de certo imperfeitamente, a política externa, pela qual teoricamente ele seria o responsável. No nível interno, as instituições de cunho mais tradicionais pareciam incapazes de resolver os confl itos entre os homens e as facções. As guerras civis que irromperam em 49 a.C. e que dilaceraram o mundo romano por mais de 15 anos seriam o resultado desta violência, que pode ser chamada de endêmica. 114 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS b) Situação geográfi ca Quando o imperador Augusto morreu, o Império Romano quase atingiu sua maior extensão, compreendia, no extremo oeste, as duas províncias da Espanha às quais se soma a Lusitânia (substancialmente, a Portugal atual). Os romanos chegaram à Península Ibérica na época da guerra de Aníbal (218-201 a.C.) e a conquistaram lentamente, a luta pela pacifi cação nem sempre foi fácil, foi concluída apenas no começo do governo de Augusto. c) Situação social No momento em que o Império Romano atingiu um enorme território, este era vigiado pelo exército, que era composto por cerca de 30 legiões, outras tropas auxiliares, sendo uma população de homens composta por 350 a 400 mil. A população do Império Romano fi cava em torno de 50 milhões de pessoas. As cidades mais habitadas tinham uma população em torno de 700 mil a um milhão de habitantes. Alexandria era habitada por volta de 700 mil e Antioquia, 300 mil. Como percebemos, para os padrões da época eram cidades muito grandes em termos de habitantes. Mesmo diante de todas as unidades, mantidas pelo poder central, que existiam entre as cidades, bem como da política externa e de certos valores culturais, isso não eliminava as particularidades existentes em cada uma. O império não era um bloco monolítico, pois existiam os limites territoriais e os direitos dos povos geralmente não coincidiam. Com efeito, os súditos do imperador pertenciam a etnias ou cidades diferentes, além disso, os habitantes de uma mesma cidade ou de uma mesma região poderiam ser de direito diferente, dessa forma, entre os homens livres se distinguiam os cidadãos romanos e as pessoas de direito peregrino. Quem era considerado cidadão romano? De acordo com o Portal da Educação: 115 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Como na Grécia, em Roma o exercício de cidadania estava ligado com a capacidade de exercer direitos políticos e civis. A cidadania romana era atribuída somente aos homens livres (nem todos os homens livres eram considerados cidadãos). Os cidadãos tinham o Direito: a ser sujeito de Direito privado (jus civile); ao acesso aos cargos públicos e às magistraturas; à participação nas assembleias políticas; e às vantagens fi scais. Na sociedade romana as pessoas eram diferenciadas entre livres e escravos. Os cidadãos não eram considerados todos iguais e livres, e se dividiam em categorias de classes. A participação nas atividades político-administrativas era restrita a uma parcela mínima, aos cidadãos ativos; além do que, nem todos podiam ocupar cargos políticos e administrativos. Fonte: Disponível em: <https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/ educacao/cidadania-em-roma/18797>. Acesso em: 25 ago. 2017. Como vimos, a cidadania romana era um privilégio para um grupo restrito às atividades políticas. As mulheres não são mencionadas, ou seja, estão fora da projeção política do Império Romano. Eram excluídas tanto pelo governo civil como pela religião judaica. De acordo com Jeremias (1983, p. 396): A comprovação da pureza de origem de uma família graças a tradições e notas genealógicas não tinha somente valor teórico; ela garantia à família em questão os direitos cívicos que os cidadãos israelitas possuíam. O privilégio mais importante exprimia-se na designação dos israelitas legítimos como aqueles “que [podem] casar [suas fi lhas] com sacerdotes [...] Somente mães israelitas de origem pura podiam dar à luz fi lhos dignos de exercerem o serviço do altar em Jerusalém [...]. Vemos, de novo, o elo íntimo entre a estratifi cação social e a religião. Só faziam parte do Israel verdadeiro as famílias que conservassem a pureza de origem do povo, querida por Deus, tal qual Esdras restabelecera pela sua reforma. Eram muitos os escravos e possuíam poucos direitos, por infl uência das refl exões fi losófi cas, no entanto, os juristas reconheciam que os escravos eram homens. A condição de servo não era uniforme, pois os que trabalhavam nas minas levavam uma vida particularmente difícil. A sorte dos que lutavam no campo nem sempre era invejável. Ao contrário disso, os escravos que tinham certa especialização, como os cozinheiros, médicos, secretários etc., possuíam valor 116 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS comercial, eram bem tratados e facilmente conseguiam a liberdade. A concepção de escravidão era bem diferente da que temos conhecimento nos dias atuais, por exemplo, o escravo artesão que trabalhava numa ofi cina pagando uma taxa pequena a seu senhor, quase não se diferenciava das condições econômicas do pequeno artesão livre. A legislação do império procurou atenuar a sorte dos escravos, sobretudo controlando o direito de vida e de morte do patrão e privando do direito de propriedade quem abandonasse um escravo idoso ou doente. Em suma, se trata de um grupo importante, cuja defi nição jurídica não nos deve confundir – pois as situações particulares variam muito – e que não se pode considerar globalmente como verdadeira classe social (SAULNIER; ROLLAND, 1979). d) Situação econômica Com relação à economia, temos poucas informações a respeito. Conseguimos apontar apenas algumas características gerais. A economia estava baseada na agricultura, cujos principais produtos eram: cereais, legumes; vinha e oliveiras nas regiões mediterrâneas; a pecuária para o corte, ou conserva por meio do salgamento das carnes; animais que serviam para o transporte; a tecelagem, o artesanato, os metais e os trabalhos de arquitetura. O meio de transporte mais utilizado era o marítimo, por ser mais barato. A forma mais típica de atividade profi ssional era o artesanato, isso porque tal empreendimento contava com meios necessários. Quando o artesão fabricava suas peças e as vendia, sem nenhuma forma de transição, a seus consumidores e clientes. No judaísmo, ensinar uma profi ssão a seu fi lho era fundamental, desrespeitar essa regra moral seria o mesmo que entregar seus fi lhos ao banditismo. Por outro lado, existiam profi ssões que eram consideradas inferiores e até mesmo desprezíveis, como é o caso da profi ssão de tecelão. Por que esse desprezo? Isso se dava porque era considerada como suja, baseada notoriamente na fraude, reservada às mulheres. Afi nal, quais seriam os recursos que fi nanciavam todo esse comércio? Em primeiro lugar, eram as receitas do templo o maior investidor. São compostas por donativos previstos em lei sob forma do imposto da didracma, do comércio das vítimas, do cumprimento dos votos, da entrega da lenha etc., além dos investimentos de seus imóveis. Contudo, as despesas eram incomensuráveis, de modo especial no tocante aos trabalhos da construção do templo.117 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Outra forma de investimento a todo esse comércio eram os estrangeiros por ocasião das peregrinações durante as festas. Todo israelita piedoso deveria gastar na cidade de Jerusalém uma décima parte de todo o rendimento da sua terra. Essa prática era denominada de segundo dízimo. Por fi m, precisamos nos recordar que Jerusalém era um grande centro de negócios e atraía negociantes, coletores de impostos, judeus da diáspora que se tornaram muito ricos. Todos esses rendimentos bastavam para assegurar a enorme quantidade de importações. A própria cidade de Jerusalém também fabricava artigos de luxo, como unguento e mercadorias semelhantes. Por exemplo, o frasco de alabastro contendo um nardo de alto valor, mencionado por ocasião da unção de Jesus em Betânia (Mc 14,3), continha, sem dúvida, um produto típico da cidade. Para além da importância política, sem dúvida o que prevalecia era a religião. Jerusalém era centro de poder político e religioso e isso o caracterizava como a cidade fortaleza do Império Romano. Jerusalém era a cidade do templo. O fato de residir em uma cidade considerada santa impunha certas obrigações. Observa- se rigorosamente as prescrições relacionadas à observância do sábado, que excluía qualquer trabalho. Em Jerusalém as prescrições da pureza legal, que acarretavam muitos inconvenientes para a vida diária, representavam um papel diferente daquele das cidades onde residiam muitos pagãos. O certo é que o templo era muito importante para todo o povo que vivia em Jerusalém. Trazia algumas vantagens, pois com a arrecadação monetária que o templo proporcionava se conseguia pagar a manutenção dos edifícios da cidade, os cuidados com sua limpeza, a pavimentação das ruas e talvez também o serviço de água. Contudo, a desigualdade social era um grande problema a ser enfrentado. e) Situação religiosa Em se tratando do contexto religioso em que Jesus viveu, havia duas instituições religiosas fundamentais: o Templo e a Sinagoga. A sinagoga é uma palavra do grego (συναγωγÞ) que signifi ca reunião. Era um local onde normalmente os letrados, quase todos fariseus, se encontravam para ensinar ao povo as leis e as tradições de Israel. 118 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Pelos anos 750 a.C. o Reino de Israel, formado por Salomão, foi dividido entre Norte e Sul. O Reino do Norte em 722 a.C. foi arrasado pelos assírios, seus vizinhos do Norte. O Sul, por sua vez, sofreu a mesma sorte e foi conquistado pelos babilônios, que destruíram o Templo e deportaram a população como escravos para a Babilônia. Agora o Povo de Deus não tem mais terra e nem Templo. Somente depois do regresso do exílio da Babilônia a religião judaica começa a tomar a forma atual. Surge nesta época a Sinagoga, o culto passa a centralizar-se surgindo a fi gura do rabino, geralmente um fariseu conhecedor da lei judaica. Este hábito já teve seu início na Babilônia, onde o povo judeu não possuía mais seu Templo. Assim, a Sinagoga passa a ocupar lugar central na religião judaica, sendo um ponto de encontro dos judeus para as orações e para a leitura das Sagradas Escrituras. Na época de Jesus existia o Templo de Jerusalém, que centralizava o culto judaico e as peregrinações, mas já existia a Sinagoga, que servia de encontro nos sábados e servia de escola para os fi lhos dos judeus se iniciarem na leitura da Torá. Jesus frequentou o Templo e a Sinagoga. Sabemos que os Romanos no ano 70 d.C. destruíram o Templo de Jerusalém. Daí por diante a Sinagoga adquire forças e passa a ser o lugar do culto. Fonte: Casonatto (2011, s.p.). Toda comunidade judaica possuía a sua sinagoga, normalmente eram construídas próximas a um rio para que fosse possível a todos o rito das abluções – se trata de um rito de purifi cação presente também em outras religiões, como o islamismo e o próprio cristianismo. Para esse rito se utilizavam símbolos em preparação para o sacrifício. Eram feitas com água, ramos, areia ou sangue, por isso as sinagogas costumavam fi car próximas ao mar ou rio, fora da cidade, para facilitar os rituais de purifi cação. A sinagoga era utilizada, após o sábado, como uma forma de escola para o aprendizado das crianças e jovens. A sinagoga era um local de estudo e orações das escrituras, mas não somente, pois o momento também era aproveitado para discussão de assuntos da comunidade, que após discutidos eram julgados pelo conselho de anciãos, ou seja, funcionava também como uma forma de tribunal. Contudo era muito comum que no tempo de Jesus a sinagoga representasse um espaço de reunião da comunidade e não tanto uma construção específi ca. 119 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Com relação ao Templo, era esplendoroso no tempo de Jesus. A sua reconstrução havia começado no ano 20 a.C., por ordem de Herodes, e durou até cerca de 64 d.C. Para os judeus, o Templo era o lugar de importância máxima, pois lá era o local da morada de Deus. Nesse ambiente era celebrado o culto todos os dias com o sacrifício público de dois animais, um pela manhã e outro pela tarde, além dos sacrifícios privados. Nas grandes festas – Páscoa, Pentecostes, Tendas, Tabernáculos –, o culto no Templo chegava ao seu auge, isso se dava porque todo judeu que completasse 13 anos devia peregrinar até ele e participar das festas. Aqueles que eram maiores de 20 anos e que não moravam em Israel eram obrigados a pagar para o Templo um imposto anual, equivalente a dois dias de trabalho, o mesmo que dois denários (Mt 17,24). O tesouro do Templo funcionava como o maior banco do período, isso porque guardava todo o dinheiro arrecadado pelos impostos e da elite de Jerusalém, que depositava o valor das propriedades urbanas e rurais. Os sacerdotes, além de serem os responsáveis pelo centro da política interna de Israel, eram também os administradores de uma grande empresa econômica, que controlava diretamente a vida dos judeus, servindo aos interesses da dominação romana e aos próprios. Talvez seja por isso a atitude de Jesus, que mantinha certa crítica em relação ao Templo de Jerusalém, que de casa de oração havia se transformado em abrigo de ladrões (Mc 11, 15-18). Para fi nalizar esse prévio conhecimento sobre o local em que Jesus viveu, é necessário considerar que havia muitos israelitas que viviam fora do seu local de origem, espalhados por várias regiões. Viviam na diáspora, ou seja, dispersos. Havia muito tempo que esses grupos estavam diretamente em contato com outras culturas, de forma especial a grega, que era manifestada de várias formas, como a língua e costumes. Já vinha de muito tempo a simpatia que a vivência da fé provocava em pessoas e grupos das cidades onde os fi lhos de Israel se encontravam inseridos, a ponto de tais simpatizantes serem conhecidos como tementes a Deus, embora sem aderir plenamente à religião judaica celebrada na sinagoga, reconheciam e valorizavam o culto ao Deus único e os apelos à justiça e à solidariedade surgidos da lei mosaica. Para entender mais sobre a cidade de Jerusalém no tempo de Jesus, assista ao documentário: Jerusalém na época de Cristo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=20lxBJkDfc0>. Acesso em: 27 ago. 2017. 120 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Jesus e o seu MoVimento Até aqui conhecemos um pouco da sociedade palestinense, lugar em que Jesus nasceu e viveu durante toda a sua vida. Para entender mais sobre a literatura bíblica, se faz necessário entender o período histórico em que Jesus viveu, isso faz toda diferença na compreensão e entendimento das narrativas bíblicas! O lugar geográfi co em que Jesus viveu se tratava de uma pequena faixa de aproximadamente 20 mil quilômetros quadrados, com 240 de comprimento por 35 de largura. Para você ter uma ideia, se tratava de um lugar bem pequeno que, se comparado ao Estado do Rio de Janeiro, chegaria a apenas a sua metade. A população era densa, com cercade 600 mil habitantes distribuídos em três regiões: • A Judeia, na região Sul, onde se criavam ovelhas e cabras, o cultivo da oliveira. • Jerusalém era a capital de Israel; cidade com aproximadamente 30 mil habitantes, contudo, nas grandes festas a cidade chegava a receber 180 mil peregrinos. • A Galileia fi cava ao Norte; possuía terras férteis para a agricultura dos galileus. Esse lugar era visto pelos judeus como terra de ignorantes. Foi nesse ambiente que Jesus viveu a maior parte da sua vida. Entre a Galileia e a Judeia situava-se a Samaria, onde viviam os samaritanos, que os judeus, sobretudo do Sul, consideravam como impuros, para isso justifi cavam que eles haviam se misturado com outros povos e assimilado as tradições culturais e religiosas. Quem foi Jesus? O que ele escreveu? Na verdade, não há indícios de que Jesus tenha escrito nenhuma narrativa. No fundo, os escritos que se tornaram canônicos, ou seja, foram reconhecidos pelos religiosos como escrituras, se tratavam de releituras feitas pelos seguidores dos seguidores de Jesus, ou seja, já haviam decorrido mais de 30 ou 40 anos após a sua morte e ressurreição. O que sabemos é que mesmo Jesus tendo uma vida curta – não tão curta para a expectativa de vida da época –, sua trajetória impactou a vida de grupos de pessoas que se convenceram da relevância das suas palavras, da gratuidade dos seus gestos, sobretudo em favor dos mais excluídos da sociedade, como era o caso das viúvas-mulheres, órfãos, crianças, estrangeiros, doentes, endemoniados etc. 121 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Dessas e tantas outras experiências que Jesus viveu com os adeptos do seu movimento, emergiram ao longo dos tempos alguns registros escritos, indicando e fortalecendo as difi culdades que esses grupos periféricos e excluídos da sociedade do seu tempo enfrentavam. Dentre as difi culdades, uma era importante: não possuíam a identidade romana, pois se tratavam de grupos de pessoas excluídas (mulheres, órfãos, estrangeiros, impuros) tanto pelo Império Romano como pelo judaísmo, isso porque mantinham um perfi l que os colocava fora da sociedade. Muitos dos seguidores de Jesus não possuíam a cidadania romana, e isso era muito grave, pois não possuíam o direito de pensar em sociedade e muito menos de se organizarem a partir de uma proposta de vida de cunho revolucionária, como a incentivada e vivida por Jesus, pois lutavam por um mundo justo para todos criado por Deus. Para os judeus, essa era a maior de todas as blasfêmias, pois eles achavam que mantinham o controle sobre Deus. A forma como os judeus acreditavam em Deus (distante, poderoso, cheio de poder) se destoava e muito daquela pregada e vivida por Jesus (próximo, humano, amante dos mais fracos, pecadores e marginalizados da sociedade). O Segundo Testamento, ou nova aliança, se trata de um conjunto de textos, escolhidos entre tantos que circulavam em meio às primeiras comunidades adeptas do movimento de Jesus. Dessa forma, ao abrirmos as páginas do Segundo Testamento estamos diante de testemunhos a respeito de como pessoas ou grupos, ao tomarem contato com a pessoa de Jesus, e depois com as memórias de suas palavras e ações, o reconheceram como o defi nitivo enviado de Deus e se comprometeram com ele, bem como com o caminho de vida e libertação que as suas práticas apontavam. Não temos dúvidas de que Paulo foi o grande responsável por propagar as ideias do cristianismo nascente. Foram muitas as cartas escritas por Paulo ou atribuídas a ele. Essas cartas foram escritas em torno do ano 50 d.C., ou seja, 20 ou 30 anos após a morte de Jesus. As cartas foram importantes no trabalho missionário de Paulo, pois era através delas que ele se comunicava com as comunidades mais distantes, dando orientações e até com o intuito de superar as desavenças. No caso dos Evangelhos, começaram a ser escritos um pouco mais tarde que as Cartas Paulinas, em torno do ano 65 ou 70 d.C. Apesar de possuírem toda uma estrutura narrativa, não têm a ver com a biografi a de Jesus. Se tratam de quatro apresentações que as comunidades se inspiravam para defi nir a sua trajetória com o intuito de vencer os desafi os que a realidade lhes ia apresentando. Cada um dos quatro Evangelhos narra a boa notícia de Jesus, sua vida e missão, a partir das histórias que as comunidades recordavam da vida do mestre e iam transmitindo aos seus. 122 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O objetivo não era mostrar os fatos como realmente haviam acontecido, e sim, manter viva, também para o futuro, a lembrança das ações e palavras de Jesus, de modo que a vida continuasse sendo iluminada por elas. Cada Evangelho foi escrito em vista de determinado público, em tempo e espaço diversifi cados. É por esse motivo que encontramos nos Evangelhos muitas diferenças, mesmo quando narrado um mesmo episódio, mas também certas semelhanças. Os três primeiros Evangelhos, por serem tão parecidos, são considerados Evangelhos sinóticos. Os exegetas passaram a chamar os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas de sinópticos desde as descobertas exegéticas sobre o texto que começaram a ser aplicadas à Bíblia no século XVIII. Os estudiosos perceberam que, dos quatro Evangelhos, os três primeiros - Mateus Marcos e Lucas - apresentavam grandes semelhanças em si, de tal forma que podiam ser colocados em três colunas paralelas, e descobertas as semelhanças e diferenças do texto entre eles. Deste estudo surgiu o nome sinóptico, do grego συν, "syn" («junto») e οψις, "opsis" («ver»), e os assuntos apresentavam correspondência entre eles. Os maiores estudiosos desta área foram os exegetas alemães, que concluíram que os textos provinham de uma mesma fonte e passaram a chamar desta fonte que deu origem aos textos de fonte Q, abreviatura de Quelle, que signifi ca ”fonte” na língua alemã. A partir desta perspectiva se pode conferir o que existe de igual ou diferente. Já se fi zeram muitos estudos sinóticos dos Evangelhos. Destes estudos podemos concluir o que é próprio de Mateus ou de Marcos ou de Lucas. O que é semelhante entre os três. O que se refere ao autor que escreveu, ou o que se refere à Comunidade a que é dirigido. Fonte: Casonatto (2011, s.p.). Observe na fi gura o percentual de conteúdo utilizado pelos autores dos Evangelhos sinóticos: 123 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Figura 7 – Percentual de conteúdo dos Evangelhos sinóticos Fonte: Disponível em: <http://www.abiblia.org/ver.php?id=8220>. Acesso em: 9 nov. 2017. Fica evidente que nos quatro Evangelhos a proposta possui a mesma motivação, que é ser uma proposta ou uma direção para as comunidades envolvidas. Os cristãos das primeiras comunidades sentiam-se, antes de mais nada, seguidores de Jesus. De acordo com a Carta aos Hebreus 10,20 se trata de um “caminho novo e vivo”. Os quatro Evangelhos constituem uma obra de muita importância para aqueles que estavam dispostos a seguir Jesus. De acordo com Pagola (2013b, p. 8), não se trata de livros didáticos que apresentam a vida acadêmica de Jesus e muitos menos biografi as redigidas para informar detalhamente sobre sua trajetória histórica. Os relatos presentes nos Evangelhos possuem a função única e exclusiva de nos aproximar de Jesus da forma como ele foi recordado pela primeira ou segunda geração de seguidores. Por isso é preciso enxergar os Evangelhos como um convite para adentrar num processo de mudança e de identifi cação com o projeto de Jesus. Tratam-se de relatos de conversão, lidos, pregados, meditados e guardados no coração de cada crente e no seio de cada comunidade cristã. A experiência da escuta atenta dos Evangelhos tranforma-se numa força extraordinária de tranformação. A partir de agora conheceremos um pouco mais das particularidades de cada Evangelho. 124 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O EVangelHo de Marcos “Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precedena Galileia. Lá o vereis como vos tinha dito” (Mc 16,7). O Evangelho de Marcos pode ser considerado uma pequena cartilha, pois são apenas 16 capítulos, o menor de todos os Evangelhos. Por causa disso sempre foi usado em segundo plano ao longo da história do cristianismo. Contudo, nos dias atuais se tornou uma fonte de inspiração até mesmo para a leitura dos outros Evangelhos, isso porque pode ter sido o Evangelho que foi escrito por primeiro. Além do mais, há indícios de que os Evangelhos de Mateus e Lucas tenham o assumido como base para os seus escritos. Quem foi o autor que escreveu essa pequena obra? Nada sabemos com certeza. Pagola (2013a, p. 11) afi rma que pode ter sido João Marcos, que acompanhou Paulo e Barnabé em sua primeira viagem missionária. Provavelmente foi escrito no ano 70 d.C., possivelmente em alguma região da Síria, próxima da Palestina. Quando os escritos chegaram a Roma, é provável que tenha sido feita uma segunda edição que se espalhou ligeiramente por entre as comunidades cristãs que iam surgindo pelo império afora. No momento em que o Evangelho de Marcos foi escrito, Israel estava vivendo uma das suas maiores guerras contra a dominação romana. Os membros das comunidades cristãs acreditavam que Jesus logo iria voltar como um rei triunfante (Mc 10,37). Contudo não é essa a perspectiva do Evangelho e sim de acentuar que a verdadeira espera da vinda de Jesus se dá pelo testemunho, ou seja, na continuação do projeto de Jesus através da sua própria vida. É por causa disso que o Evangelho se apresenta apenas como um princípio e ao fi nal da narrativa convoca os discípulos para que voltem à Galileia, lugar onde tudo começou, a fi m de refazer o itinerário de Jesus, com seus confl itos, até Jerusalém, o centro do poder. O Evangelho de Marcos começa da seguinte maneira: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, fi lho de Deus”. O relato de Marcos tem como fundamento básico apresentar para a comunidade quem é Jesus. Nesse caso, Jesus é revelado como o Messias, o fi lho de Deus, aquele que é esperado por toda Israel. Por isso Jesus constitui fundamentalmente a Boa Notícia de Deus e deseja que os seguidores levem essa informação a todos os cantos do mundo. O relato se inicia com a pregação de João Batista, o batismo de Jesus e as tentações. O escritor resume a mensagem de Jesus no Evangelho de Marcos da seguinte forma: “Completou-se o tempo, o reino de Deus está próximo: convertei-vos e crede na Boa Notícia”. 125 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Para entender mais sobre o Evangelho de Marcos, leia: No caminho de Jesus. Uma leitura do Evangelho de Marcos: <https:// www.paulus.com.br/portal/wp-content/uploads/2012/08/Vida- Pastoral-2012-Set-Out.pdf>. Leia também: PAGOLA, José Antonio. O caminho aberto por Jesus. Petrópolis: Vozes, 2013. De acordo com as narrativas de Marcos, os seguidores de Jesus organizaram a sua missão nos mesmos moldes do movimento de Jesus. Saíam pelas aldeias em equipes missionárias, curando os doentes, expulsando os demônios, ou seja, procurando eliminar todas as forças que fossem contrárias à proposta do reino de Deus (Mc 6,7.13). Anunciavam a conversão e a crença no Evangelho (Mc 6,12). Como Jesus, eram missionários itinerantes e viviam com muita simplicidade e desapego (Mc 6,8-9). Para além de um movimento urbano, continuava sendo uma experiência majoritariamente rural (GASS, 2005). No fundo, ao longo da narrativa vamos descobrindo que Jesus inaugura um novo tempo. Deus não nos deixou sozinhos diante dos nossos problemas e desafi os. Ele deseja contruir conosco uma vida melhor e mais humana. Para seguir essa Boa Notícia é preciso acreditar e conhecê-la evitando deturpações e interpretações que não estão de acordo com a proposta de Jesus escrita nos Evangelhos. 126 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS De acordo com as narrativas de Marcos, os seguidores de Jesus organizaram a sua missão nos mesmos moldes do movimento de Jesus. Saíam pelas aldeias em equipes missionárias, curando os doentes, expulsando os demônios, ou seja, procurando eliminar todas as forças que fossem contrárias à proposta do reino de Deus (Mc 6,7.13). Anunciavam a conversão e a crença no Evangelho (Mc 6,12). Como Jesus, eram missionários itinerantes e viviam com muita simplicidade e desapego (Mc 6,8-9). Para além de um movimento urbano, continuava sendo uma experiência majoritariamente rural (GASS, 2005). No fundo, ao longo da narrativa vamos descobrindo que Jesus inaugura um novo tempo. Deus não nos deixou sozinhos diante dos nossos problemas e desafi os. Ele deseja contruir conosco uma vida melhor e mais humana. Para seguir essa Boa Notícia é preciso acreditar e conhecê-la evitando deturpações e interpretações que não estão de acordo com a proposta de Jesus escrita nos Evangelhos. O EVangelHo de Mateus Livro da origem de Jesus Cristo, fi lho de Davi, fi lho de Abraão (Mt 1,1). A comunidade de Mateus é constituída na sua maioria por judeu-cristãos, pessoas empobrecidas, e em muitos momentos e situações se apossa de referências do Primeiro Testamento para mostrar que a vida e a missão de Jesus têm profundas raízes no chamado povo eleito. As elites da época esperavam por um messias que reunisse traços de nacionalismo, legalismo, dominação sobre os outros povos e triunfalismo. Anunciavam uma divindade, portanto, violenta e castigadora. A justiça que era ensinada pelas lideranças, entre as quais se incluíam os fariseus, consistia em uma observância mecânica da lei. Para isso se utilizava do rigoroso pagamento de taxas e impostos ao Templo; práticas ritualistas que se resumiam às aparências; a lei do puro e do impuro; a teologia da retribuição à luz da qual as pessoas ricas 127 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 e saudáveis eram vistas como justas e recompensadas por Deus e as pessoas pobres eram consideradas como culpadas por suas desgraças. Com isso, a maioria das pessoas, que era muito empobrecida, não tinha condições para estar de acordo com as exigências religiosas. Jesus faz uma interpretação da lei bem diferente e acusa escribas e fariseus de transformá-la em mandamentos humanos a serviço dos grupos dirigentes. Ele afi rma que não veio mudar a lei, mas dar-lhe pleno cumprimento, e que a justiça a ser praticada precisaria superar a noção de justiça dos doutores da lei (Mt 5,17-20). Ele não enfatiza os detalhes, o legalismo e as aparências, mas diz que é necessária a misericórdia (23,23); seu critério fundamental para a justiça é a solidariedade com os pobres, como mostra a cena do Juízo Final (25,31- 46). Ele fez uma inversão no que os escribas pregavam e proclamou os pobres, então considerados "malditos", como bem-aventurados. Jesus também ultrapassa as expectativas messiânicas reféns da forma distorcida de interpretação das promessas do Antigo Testamento. Por essas razões, foi condenado à cruz. A narrativa de Mateus tem sido, ao longo da história, o Evangelho mais citado e lido. Sempre foi prestigiado e ocupou o primeiro lugar em todas as listas dos evangelistas. Possui 28 capítulos, o mais longo dos Evangelhos, por causa disso foi chamado de “longo Evangelho” (PAGOLA, 2013b, p. 11). Assim como os outros Evangelhos, a narrativa de Mateus é fruto de um longo processo redacional. A comunidade teve a função de juntar, organizar, e até mesmo acrescentar as várias tradições orais e escritas das palavras e da prática de Jesus para responder aos seus questionamentos e animar a fé em Jesus. É provável que o Evangelho de Mateus tenha sido escrito por volta do ano 85 d.C., o que pode ser comprovado a partir dos seguintes fatos: • Mateus usou como fonte o Evangelho de Marcos, composto por volta do ano 70. Mateus relê e reescreve Marcos, abreviando ou acrescentando out- ros escritos (Mc 6,30-44; Mt 14,13-21). • Em 21,41; 22,7; 27,25; Mateus alude a pormenores concretos da destruição de Jerusalém, a cidade santa, acontecidano ano 70, pelo exército romano. • No decorrer dos anos, a partir da experiência e da vivência da comunidade, o Evangelho de Mateus refl ete, desenvolve e interpreta o desastre nacional como castigo de Deus, causado pelos governantes por rejeitar Jesus como fi lho de Deus (Mt 24,1-31). • O capítulo 23 do Evangelho de Mateus evidencia o confl ito dessa comu- nidade com os judeus fariseus (Mt 5,11-12; 10,17-23; 24,9-14), mas o Evangelho não chega a mencionar a expulsão dos judeus cristãos da sina- goga, que pode ter ocorrido por volta do ano 85 (Lc 6,22; Jo 9). 128 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Foi ao fi nal do século I que surgiu a narrativa de Mateus. Nesse período o judaísmo sinagogal começou a fortifi car sua perseguição contra os grupos de judeus que possuíam tradições e tendências diferentes, em especial os grupos da diáspora. Os destinatários da narrativa de Mateus possivelmente tenham sido pessoas que viviam na Síria, em Antioquia. A seguir mostraremos alguns motivos que podem justifi car essa realidade: • Na narrativa de Mateus 4,24, o autor faz uma releitura de Mc 1,28.39 e cor- rige “por toda a Síria” ao invés de “por toda a Galileia”. • As citações de alguns textos exclusivos de Mateus se encontram nos escri- tos oriundos da Síria. Por exemplo, Inácio, bispo de Antioquia martirizado por volta do ano 107 d.C., cita os textos de Mateus em suas cartas (cf. a carta a Policarpo: 2,2 e Mt 10,16b). • Ainda não existem provas da existência de sinagogas na Galileia no primeiro século e nem antes desse período. As sinagogas surgiram na diáspora. • A narrativa de Mateus delega um papel relevante a Pedro (Mt 14,28-31; 15,15; 16,22-23; 17,24-27; 18,21; 19,27), que trabalhou na igreja de Antio- quia (Gl 2,11-14). A narrativa de Mateus abre o Segundo Testamento. Ele não é o primeiro livro do Segundo Testamento a ser escrito, mas anuncia que Jesus é a realização das promessas do Primeiro Testamento. Esse Evangelho constitui a base das comunidades cristãs até o fi m do século II. No movimento de Jesus existia um discípulo chamado Mateus. Esse nome signifi ca “dom de Javé” em hebraico: “Indo adiante, viu Jesus um homem chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: ‘Segue-me’. Este levantando-se, o seguiu” (9,9; cf. 10,3). Papia, bispo de Gerápole, na Frígia, afi rma que foi esse discípulo que escreveu o Evangelho que leva o seu nome. A questão do autor não é o fato mais importante, isso porque, antes da sua redação fi nal, os Evangelhos eram ensinamentos catequéticos, orais ou escritos, sobre palavras e atos de Jesus, com o intuito de apresentá-lo de maneira mais próxima à comunidade. A maneira como o Evangelho chegou até nós é obra de um redator que organizou os documentos que com certeza já existiam anteriormente. O Evangelho foi escrito para a comunidade em que vivia o autor, provavelmente em Antioquia da Síria, no fi m do século I. Para entender melhor os antecedentes desta comunidade, é importante relembrar alguns fatos históricos desse período. 129 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Por volta do ano 70 d.C., na Guerra Judaica, os romanos devastaram a cidade de Jerusalém junto com o Templo. Os grupos judaicos foram massacrados e torturados. Os judeus que restaram tiveram que ir embora como fugitivos. As poucas comunidades cristãs foram para Pela, no lado oriental do rio Jordão, outras migraram para a Fenícia, as regiões da Síria, chegando até Antioquia. Nesses locais as comunidades foram se ajeitando e se constituíram como os judeus da diáspora, ou seja, um pequeno grupo de gentios convertidos. Foi em Antioquia da Síria que os seguidores do movimento de Jesus foram chamados, pela primeira vez, de cristãos (At 11,26). Nesse momento surgiu o Evangelho de Mateus para animar essas comunidades que desde a Palestina seguiam Jesus. Por volta do ano 66 d.C., os romanos tentaram tomar posse das riquezas que havia no Templo de Jerusalém. Os vários grupos de judeus, mesmo com ideais diferentes, uniram-se para lutar contra o Império. Essa revolta foi chamada de Guerra Judaica (66-73 d.C.). As consequências foram desastrosas: o Templo e a cidade de Jerusalém foram destruídos; saduceus, zelotas, sicários e herodianos, grupos infl uentes na vida das pessoas, desapareceram. Dois grupos de judeus não assumiram a guerra até o fi m e sobreviveram: os judeus fariseus e os judeus cristãos. Nesse momento de crise profunda, o judaísmo necessitava se organizar para sobreviver. Liderados pelo rabi Johanan ben Zakai, os judeus fariseus se empenharam na reorganização dos valores e da crença do judaísmo, aderindo como instituição central a Sinagoga. Esse grupo conseguiu o apoio do Império Romano, que estava interessado na organização dos judeus fariseus, sua lei e suas sinagogas para controlar o povo judeu. Após a morte de Johanan ben Zakai, as autoridades farisaicas se enrijeceram em torno da lei e os grupos que não aceitaram a linha ofi cial foram perseguidos e fi nalmente expulsos da Sinagoga, por volta do ano 85. Nesse período pairava uma série de dúvidas e divisão. De um lado, estavam os judeus fariseus que se consideravam o verdadeiro Israel e os intérpretes legítimos da lei. De outro, o grupo dos judeus cristãos que também se consideravam o verdadeiro Israel. O grupo de judeus fariseus exercia suas atividades nas sinagogas, de onde controlava o cotidiano do povo, através da função de explicar, interpretar e impor a lei. O grupo de judeus fariseus acreditava que a libertação do povo só aconteceria com a estrita observância da lei do puro e impuro (Lv 11-15). As pessoas que não tinham as mínimas condições de cumprir com todas as exigências da lei eram consideradas impuras e malditas. O número de pessoas excluídas e marginalizadas – doentes, pobres, estrangeiros, defi cientes – era desproporcionalmente alarmante. 130 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O movimento que está por trás da narrativa de Mateus faz a sua opção de interpretar de forma diferente a lei: “Ide, pois, e aprendei o que signifi ca: ‘Misericórdia quero, e não o sacrifício” (Mt 9,13; cf. 12,7). Essa narrativa é a única que cita o profeta Oseias 6,6 duas vezes. Jesus é apresentado como o mestre de uma lei baseada na misericórdia. É necessário entendermos que a palavra misericórdia, para a comunidade de Mateus, tem a ver com compaixão, ou seja, os seguidores do movimento de Jesus sentem a dor do outro e com isso buscam ajudá-los a sair desta situação de sofrimento. Esses grupos judaicos estavam buscando defi nir e garantir sua identidade. Nesse contexto, algumas perguntas pairavam na cabeça de muitos judeus: Quem estava falando verdadeiramente pelo Deus de Israel? Quem de fato compreendia e interpretava com mais exatidão a Torá? Quem estava capacitado para interpretar o passado e conduzir o povo de Deus ao futuro? Foi então por meio desses questionamentos que as comunidades que inspiraram a narrativa de Mateus acolheram e reinterpretaram os principais fatos e palavras de Jesus a partir de seu contexto e produziram suas próprias refl exões para reanimar seus membros a perseverarem no seguimento de Jesus. O momento era muito delicado, pois o movimento de Jesus atravessava uma forte crise, pois estava em via de separação do judaísmo. Era um grupo minoritário, frágil, oprimido pelo Império e pelas autoridades judaicas. As inúmeras brigas externas com os judeus fariseus, apoiados pelo Império Romano, não eram o único obstáculo que as comunidades que inspiraram a narrativa de Mateus enfrentavam. Existiam também os confl itos internos. Eles eram constituídos em sua maioria por judeus cristãos, apegados à lei e às tradições judaicas. Nas comunidades havia também os “gentios” e judeus cristãos helenistas, ou seja, os judeus que tinham forte infl uência da cultura grega e não eram apegados à lei judaica. Na vida comunitária do dia a dia, os confl itos eram quase inevitáveis. Aointerpretar e seguir as palavras e a prática de Jesus surgiram as divergências: a observância rigorosa da lei e a tradição judaica, a adaptação ao modo de vida dos “gentios”, a superioridade dos judeus cristãos em relação aos gentios convertidos, a disputa pela liderança (18,1-11) etc. Nas intrigas com os judeus fariseus e com o Império Romano, as comunidades que inspiraram a narrativa de Mateus tiveram de fortalecer sua identidade e unidade, enfrentando as divergências internas e entrando em diálogo abrangente e fraterno. Nessa realidade, o Evangelho de Mateus foi escrito como um ponto de referência em forma de catequese para suas comunidades. De modo especial, os textos exclusivos do Evangelho de Mateus são uma resposta a essa realidade. 131 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 O EVangelHo de Lucas “Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós – conforme nos transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra – a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófi lo, para que verifi ques a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1,1-4). Sem dúvidas, a narrativa de Lucas é muito atraente. Talvez seja o Evangelho que pode nos motivar ao conhecimento de Jesus como uma mensagem que demonstra um Deus compassivo, defensor dos pobres, curador dos doentes e amigo de pecadores. É provável que o Evangelho de Lucas tenha surgido por volta dos anos 85 a 90, em alguma cidade grande da Ásia Menor, dominada pelo Império Romano. Pode ter sido Antioquia, Éfeso, ou mesmo numa cidade da Grécia. Estas cidades eram, em sua maioria, cidades portuárias, onde circulavam muitas pessoas vindas de diversas regiões, com culturas e religiões diferentes. Nestas cidades vigorava o helenismo, um sistema que os romanos herdaram dos gregos e que se caracterizava essencialmente pelo estímulo à competição comercial e à busca desenfreada do lucro. O helenismo gerava uma sociedade com fortes contrastes sociais, cerca de um terço da população era constituída de escravos. Para a mentalidade greco- romana, a desigualdade social era considerada normal. Ser pobre ou ser rico era o desígnio dos deuses, diziam os romanos. Em contraposição, na comunidade cristã, composta em sua maioria de pobres, com alguns ricos, se aguardava a chegada do Reino de Deus. Um reino de fraternidade e partilha, sem injustiças sociais, mas com a demora da volta de Jesus, começa um relaxamento dos cristãos, e o ambiente externo das diferenças sociais vai invadindo a comunidade. É preocupado com essa situação que o autor do Evangelho de Lucas faz uma releitura da vida e do ensinamento de Jesus acentuando o compromisso com os marginalizados e a prática da misericórdia. 132 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Já sabemos que cada Evangelho surgiu numa comunidade específi ca que sabia quem era seu autor ou seus autores. Os nomes dos autores não apareciam no texto porque para aquela realidade não fazia sentido. Assim, circularam de forma anônima mais ou menos até o ano 150 d.C., quando se começava a defi nir a lista dos livros considerados inspirados do Segundo Testamento. É nesse momento que lhes foram atribuídos os nomes de Marcos, Mateus, Lucas e João. O nome Lucas é citado na carta de Paulo a Filêmon (v. 24), e aparece mais duas vezes: uma em Cl 4,14 e outra em 2Tm 4,11, que são cartas escritas por discípulos de Paulo. De acordo com Pagola (2013b, p.12): Lucas é o primeiro escritor cristão a narrar uma espécie de “história da salvação” seguindo certa ordem. Lucas compõe sua obra em duas partes. A primeira é constituída pelo Evangelho e está centrada em Jesus; depois da infância de Jesus narra-se a trajetória desde a Galileia até Jerusalém, onde culmina com sua crucifi cação, sua ressurreição e a cena da Ascensão. A segunda parte chama-se Atos dos Apóstolos e está centrada na primeira Igreja. Neste escrito observa-se uma direção inversa ao Evangelho: começa em Jerusalém com a ascensão e depois narram-se os primeiros passos dos discípulos de Jesus, que serão suas testemunhas ‘em Jerusalém, em toda a Judeia, na Samaria e até os confi ns da terra’. No entanto, ao compararmos as narrativas de Atos e Lucas com as Cartas de Paulo, encontraremos diferenças importantes, que nos levam a crer que o Evangelho e os Atos não foram escritos por esse Lucas que foi companheiro de Paulo. Em Atos dos Apóstolos, Paulo é descrito como um missionário que tem poder de curar os doentes, de expulsar demônios e ressuscitar mortos (At 14,3.8- 10; 16,16-18.25-34; 20,4), mas não é considerado um apóstolo. Nas cartas, como em 2Cor 12,5-10, o próprio Paulo se apresenta como uma pessoa frágil, sem poder algum, mas se apresenta como apóstolo, chamado e enviado por Jesus, que por amor a Cristo crucifi cado se faz solidário com os mais sofridos da história. Além disso, em Atos dos Apóstolos, Paulo é muito semelhante a Pedro, é mais inclinado a se adaptar diante das exigências dos judeus, e se apresenta como cidadão romano, o que não acontece nas Cartas Paulinas. O autor de Lucas e Atos deve ter sido outra pessoa, possivelmente um admirador de Paulo, talvez um membro de uma das comunidades de origem paulina. Ele não era da Palestina, pois atrapalha-se ao falar da geografi a da região. Possivelmente um prosélito, alguém que entrou em contato com a religião judaica, estudou a fundo as Escrituras e mais tarde aderiu ao Evangelho de Jesus Cristo. O Evangelho de Lucas é considerado o Evangelho da alegria, isso porque ao longo de sua narrativa os seguidores de Jesus são convidados a acolher Jesus de maneira alegre e com prazer. 133 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Entendendo um Pouco Sobre Atos dos Apóstolos Os acontecimentos narrados no livro dos Atos dos Apóstolos, assim como os Evangelhos, têm como objetivo principal apresentar a vida das primeiras comunidades entre os anos 30 e 60. O autor inicia situando a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus em Jerusalém (1,4) e termina com Paulo chegando em Roma (28,14.31). O caminho começa em Jerusalém, na periferia do Império Romano, atinge toda a Judeia, Samaria, Ásia Menor, Grécia e Europa. É o caminho que vai da periferia para o centro, ou seja, de Jerusalém para Roma. Mais do que fazer uma crônica histórica, o autor se preocupa em mostrar a ação do Espírito Santo agindo na comunidade. O grupo dos Doze, inspirado pelo Espírito Santo, dirige a comunidade. Esse grupo institui uma nova liderança e mantém a direção das comunidades dentro e fora da Palestina. De acordo com a tradição, a narrativa de Atos foi escrita por Lucas, o companheiro de Paulo (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4.11). Em algumas passagens o autor narra como se ele estivesse presente nas viagens missionárias de Paulo. Será que essa informação procede? Vejamos então: o livro dos Atos dos Apóstolos apresenta um Paulo conciliador, agindo de acordo com as leis judaicas: frequenta o Templo, faz peregrinações a Jerusalém, cumpre votos, faz rituais de purifi cação e etc. Uma imagem de Paulo bem diferente das cartas (9,20;13,14;16,1-3; 20,16;21,15;24,11.17-18). Outros afi rmam que o livro dos Atos foi escrito por pessoas que viviam em comunidades fundadas por Paulo, ou seja, aqueles cristãos da segunda geração (70-100), entre os anos 80 e 90. Afi nal, esse livro foi escrito onde? Provavelmente foi escrito na cidade de Antioquia, ou em Éfeso, ou mesmo numa cidade da Grécia. O importante é saber que eram comunidades fundadas por Paulo, compostas por estrangeiros/as e judeu-cristãos, ricos e pobres, que enfrentavam problemas por causa desta multiculturalidade. Atos foi escrito para comunidades que precisavam de uma confi rmação quanto aos ensinamentos recebidos. Com o intuito de legitimar os ensinamentos transmitidos às comunidades, o autor faz questão de afi rmar –e faz muitas vezes – que essa instrução é guiada pela ação do Espírito, e o grupo dos Doze exerce um papel fundamental: é a garantia de que o caminho traçado por Jesus continua por meio dos apóstolos e dos outros enviados pelos Doze. Quando Atos foi escrito, Pedro, com os Onze, Paulo, Tiago etc., os fundadores das primeiras comunidades, já haviam morrido. E falsos mestres, segundo a narrativa, estavam aparecendo (At 20,25-31). 134 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A narrativa dos Atos dos Apóstolos se trata de uma pequena cartilha da comunidade, pensada com o intuito de instruir a comunidade com relação aos seus problemas concretos. Se trata de um pequeno reforço para os missionários continuarem o anúncio da Boa Nova. Na comunidade o que mais afetava o dia a dia era a convivência entre judeus e estrangeiros. Foi difícil para os judeus, ainda apegados às tradições judaicas, acolher os estrangeiros, sentar com eles à mesma mesa (10,28; Lc 14,15-24), partilhar do mesmo modo de vida, comungar dos mesmos ideais. Sem dúvida, foi um longo processo. Se existiam inúmeros problemas de ordem interna, também em nível externo essas comunidades eram questionadas pelos judeus fariseus que não admitiam essa pluralidade e mistura. Para reafi rmar a autoridade de Paulo, o livro dos Atos o apresenta como alguém reconhecido pelos apóstolos (9,26-28) e como um verdadeiro judeu (22,1-3). Além do confl ito com as autoridades judaicas, as comunidades cristãs também precisavam conquistar o direito de cidadania. Era questão de sobrevivência não criar caso com o Império Romano. Por isso, o autor procura mostrar que era possível ser romano e, ao mesmo tempo, cristão. Para comprovar isso ele apresenta o exemplo de Cornélio, um centurião romano (10,1- 2) que acolhe a Boa Nova. Também insiste em mostrar que as autoridades das cidades greco-romanas colaboram com os cristãos (21,31-40). Os grupos que estão por trás dos Atos dos Apóstolos enfrentaram muitas difi culdades e confl itos internos e externos. O livro dos Atos expressa a tentativa da comunidade de fazer uma revisão, de voltar às origens e encontrar motivações para resistir. O EVangelHo de JoÃo É possível que a narrativa joanina tenha levado mais ou menos 60 anos para ser escrita. Provavelmente, foi sendo elaborada em várias regiões: no Norte da Galileia, na Síria e na Ásia Menor. A última redação do livro teria acontecido em Éfeso, na Ásia Menor, por volta do ano 95, com alguns acréscimos posteriores. É um escrito que deve ser lido como interpretação e vivência das comunidades, com o objetivo claro de aprofundar a fé em Jesus, Messias e Filho de Deus. Na tentativa de entender melhor esse texto, vamos olhar a história e a vida dessas comunidades. Após a dominação dos gregos (333 a.C.), a situação de vida na Palestina se tornara muito difícil. O povo estava sendo dominado, explorado e escravizado. Contudo, existiam grupos de populares que resistiram à dominação e buscaram uma forma alternativa de viver. 135 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 No período de Jesus e um pouco depois, as revoltas e os descontentamentos com a opressão dos romanos atingiram o auge. Em 66 d.C., quando os romanos saquearam o Templo de Jerusalém, os vários grupos, mesmo tendo posições diferentes, se uniram para lutar contra os dominadores. Esse movimento fi cou conhecido como a Guerra Judaica (66–73 d.C.). Nessa guerra, o povo judeu foi derrotado pelos romanos. Jerusalém, a cidade santa, e o Templo foram destruídos. O Templo era uma instituição central na vida do povo, controlava a sua vida em todos os aspectos. Os principais grupos que participaram da guerra, os saduceus, os essênios, os zelotas e os sicários, foram desarticulados e quase desapareceram. A guerra desestruturou a vida dos habitantes da região da Judeia. Os judeus cristãos e os judeus fariseus não assumiram a luta até o fi m, por isso conseguiram sobreviver. Após a guerra, esses grupos começaram a reorganizar a vida do povo. Os fariseus e os escribas, menos dependentes do Templo, desenvolveram uma estrutura alternativa. Fazia tempo que eles exerciam suas atividades nas sinagogas, através da função de explicar e interpretar a lei. No contexto de destruição das instituições judaicas, como o Templo e o Sinédrio – conselho supremo dos judeus –, o povo buscou refúgio e segurança no movimento dos fariseus e escribas. Aos poucos, os judeus fariseus foram se fortalecendo, a Sinagoga passou a ser uma forte instituição para garantir, proteger e controlar a vida do povo. Assim, os romanos perceberam que seria vantajoso se aliar aos judeus fariseus. A aliança com os romanos favoreceu o desenvolvimento dos grupos de linha farisaica. Surgiram muitos grupos, entre eles a Academia de Jâmnia, fundada pelo rabino Johanan ben-Zakai. O chefe desse grupo, o Patriarca, era reconhecido pelo Império Romano como representante do povo judeu. Como aliado dos romanos, eles tinham o direito de interpretar e aplicar a lei, utilizando-a também para cobrar tributos dos judeus. Isso interessava aos romanos. A lei principal era a do Sábado, que nasceu para manter viva a memória da libertação e assegurar o descanso da comunidade, mas que com o tempo se tornou uma lei opressora. O cumprimento da lei foi colocado acima da pessoa. Outra lei igualmente importante era a da pureza. Essa lei dividia as pessoas e as coisas em puro e impuro. 136 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A lei do puro e do impuro era muito complexa, pois defi nia quem estava mais perto e quem estava mais longe de Deus. Uma pessoa doente ou com alguma defi ciência física era considerada impura por causa de algum pecado, uma vez que a doença era vista como castigo de Deus. O simples contato com pessoas ou coisas impuras já causava impureza. Estar impuro signifi cava não poder participar do culto e, consequentemente, da salvação. Por conta das regras impostas que determinavam quem estava impuro, e em que condições, muitas pessoas viviam em situações quase permanentes de impureza. As autoridades judaicas, através da lei, tinham a pretensão de dominar o corpo da mulher e do homem. Essa situação de opressão possuía maior peso para a mulher, que fi cava impura por causa da menstruação (Lv 15,19), das relações sexuais (Lv 15,18) e do dar à luz (Lv 12,2-5). Para se purifi carem, as pessoas deviam levar ofertas e pagar o tributo religioso em dia. Isso custava muito caro, difi cultando para os pobres o cumprimento da lei. No fundo, essa lei era mais severa para as pessoas que fossem mais pobres. Os judeus fariseus acreditavam que a exigência severa do cumprimento da lei era uma exigência do próprio Deus. Esse modo de crer, ligado à crença na ressurreição dos mortos e na teologia da retribuição, com prêmios e castigos para esta vida e a outra, era usada para manter o povo na obediência rigorosa às normas impostas pelos dirigentes fariseus. A teologia da retribuição estava ligada à ideia de troca: se a pessoa cumprisse a lei, seria abençoada com terra, descendência e vida longa. Se não cumprisse, receberia o castigo: pobreza, esterilidade e vida breve (Dt 30,15-20). A lei era ensinada primordialmente na sinagoga. Em torno do ano 85, as sinagogas estavam espalhadas pela Ásia Menor. Nessa região, a comunidade judaica vivia de forma independente, como uma cidade dentro da cidade. A aliança com os romanos possibilitou que a religião judaica, organizada pelos judeus fariseus, fosse considerada como Religião Lícita – ou seja, religião autorizada pela lei do Império Romano. Nesse sentido, os judeus agregados à sinagoga conquistaram o direito de se reunir, de manter uma caixa comum e de possuir propriedades. Eram até dispensados de prestar culto às divindades do Império Romano, tinham o direito de observar o sábado, de praticar seu culto e a sua lei e participavam, quando necessário, do exército só de judeus. Cada comunidade local tinha suas leis administrativas,estabelecia locais para estudo, culto e sepultamentos; oferecia ajuda aos indigentes e mantinha tribunais para julgar disputas entre judeus. 137 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Os judeus fariseus, com o intuito de manter a sua identidade enquanto grupo e manter seus interesses, começaram a exigir uma observância rigorosa da lei. Se tratavam de 613 regras para serem cumpridas e observadas. A opressão era muito grande. No interior da sinagoga surgiram alguns grupos, entre eles os dos cristãos, que começaram a relativizar a importância da lei, pondo em primeiro lugar a vida humana. Isso culminou em vários confl itos. Quem não cumpria a lei inevitavelmente era perseguido, torturado e até expulso da sinagoga, consequentemente estava sujeito à perseguição do Império Romano. No fi nal do período do imperador Domiciano (81-96), a perseguição contra os cristãos foi intensifi cada e generalizada, atingindo especialmente os grupos cristãos da Ásia Menor. Um desses grupos era justamente a comunidade joanina. Comunidade essa que surgiu entre os judeus que acreditaram que Jesus era o Messias esperado por eles. A guerra dos judeus contra os romanos (66 d.C.) provocou a dispersão das comunidades cristãs. Essas comunidades foram para o Norte da Palestina e chegaram até a Síria. Em torno de 70 d.C. emigraram para Éfeso. A narrativa joanina demonstra que a comunidade era composta por pessoas pobres e marginalizadas que começaram a viver de um jeito novo. Irmãos e irmãs, unidos não pela lei, mas pelo amor. Essas pessoas, provavelmente, viviam sob a opressão da lei. Elas conseguiram ver na proposta cristã um caminho alternativo. Vivenciaram o amor mútuo e a certeza de que a presença do Verbo Encarnado, em cada mulher e homem, era a base que sustentava e animava sua vida. Se tratava de um grupo plural e misto, com uma população proveniente de vários grupos e religiões. O Tema da RessurreiÇÃo Num primeiro momento as comunidades cristãs primitivas experimentaram a morte de Jesus como um enorme fracasso, como se tivesse chegado ao fi m qualquer forma de esperança (Lc 24, 13-24). Pouco a pouco os seguidores de Jesus vão percebendo que a sua presença continua mais viva do que nunca na vida da comunidade que acolhe os forasteiros em sua casa e partilha com eles o pão sobre a mesa (Lc 24,25-32). É a partir dessa experiência com Jesus vivo presente em seu meio que se encontram, pois haviam se dispersado (Lc 24,33-35). 138 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS As Cartas Paulinas Paulo, o apóstolo de Jesus, é um personagem apaixonante para os cristãos. Esse personagem pode ser conhecido pela narrativa do Atos dos Apóstolos e, sobretudo, pelas suas próprias cartas ou que foram atribuídas a ele. O conjunto das cartas paulinas soma um total de 13 cartas, divididas da seguinte forma: • Cartas maiores: Romanos 1 e 2; Coríntios; Gálatas; Tessalonicenses. • Escritos da prisão: Efésios; Filipenses; Colossenses e Filêmon. • Escritos pastorais: 1 e 2 Timóteo e Tito. Antes de aprofundarmos um pouco mais sobre as cartas de Paulo, conheceremos a vida desse personagem, fi gura ímpar no cristianismo e o principal propagador do Evangelho de Jesus. Mesmo após o assassinato de Jesus, nem o poder da religião nem o poder do império conseguiram matar o seu projeto. Jesus continuou vivo nas comunidades que levaram a sua mensagem adiante e divulgando o reino de Deus. Jesus continuou vivo por intermédio do seu espírito, da força de sua mensagem que já havia incutido nos seus seguidores um desejo enorme de experienciar aquela mensagem de libertação e transformação. Interessante notar que foram as mulheres as primeiras a testemunhar a ressurreição de Jesus (Mt 28,1-8; Mc 16,1-8; Lc 24,1-8; Jo 20,11-18). Isso demonstra que as mulheres eram seguidoras de Jesus e muito comprometidas com o seu projeto. Elas foram testemunhas fi éis a Jesus até o fi m, junto à cruz (Mt 27,55-56; Mc 15,40-41; Lc 23,49; Jo 19,25). Não hesitaram em permanecer com ele até o fi m, e acima de tudo, não se acovardaram. Foram as mulheres que por primeiro perceberam que ele estava vivo e que seu Espírito continuava animando a vida da comunidade, e por isso não poderiam desanimar em promover ativamente os ideais do reino de Deus. Foi por causa das discípulas, testemunhas da ressurreição, que o projeto de Jesus não morreu aos pés da cruz. Tiveram a coragem de denunciar todas as forças que destroem a vida. A cruz de Jesus signifi cou a vida e a libertação. 139 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Quem Foi Paulo? A narrativa de Atos nos informa que Paulo nasceu em Tarso, região da Cilícia, Ásia Menor, atual Turquia (At 9,11; 21,39; 22,3; 9,30; 11,25). Se trata de uma cidade grande, onde havia uma população de mais ou menos 300 mil habitantes. Tarso era um local que possuía um centro importante de cultura e de comércio. A estrada romana que ligava o Oriente e o Ocidente passava por lá. Uma pergunta nos questiona: Como é que Paulo, que era judeu, nasceu tão distante, numa cidade grega da Ásia Menor? Desde o sexto século a.C. havia um grande sistema de migração de judeus para fora da Palestina. Em praticamente todas as cidades do Império Romano existiam bairros judeus e cada um com sua própria sinagoga e organização comunitária. Eles formavam a assim chamada diáspora. De acordo com Mesters (2008, p. 15): Havia uma comunicação muito intensa entre Jerusalém e a diáspora; romarias, visitas, promessas, estudo... Jerusalém era o centro espiritual de todos os judeus. Assim se entende como Paulo, nascido em Tarso, foi criado em Jerusalém (At 22,3; 26,4-5; cf. 23,16). Ele mesmo dizia: ‘Todos os judeus sabem como foi minha vida desde minha juventude e como, desde o início, vivi no meio do povo e em Jerusalém’ (At 26,4). Paulo nasceu no seio de uma família judaica, consequentemente foi educado dentro dos padrões das leis de Deus e das “tradições paternas” (Gl 1,14). Os judeus que se encontram na diáspora viviam com empenho a religião judaica. Fazia parte de suas preocupações diárias a observância da lei de Deus. Por esse motivo, não aceitavam qualquer costume imposto pelo Império Romano que difi cultasse a observância dos mandamentos de Deus. O apóstolo Paulo viveu num bairro judeu que era muito rigoroso e exigente com relação às práticas da lei. Era de lá que podia perceber o ambiente aberto que pairava sobre a cidade grega. Foram justamente esses dois locais que infl uenciaram diretamente a sua vida. Interessante, porque Paulo procurara se adaptar dependendo do local em que estivesse, por exemplo, possuía dois nomes, um para cada ambiente: Saulo era o seu nome judaico (At 7,58), e Paulo o nome grego (At 13,9). Contudo, ele prefere e assina Paulo, mas Deus o chama de Saulo (At 9,4). Como todos os garotos judeus de sua época, Paulo foi ensinado na casa dos pais e na sinagoga do bairro, a escola estava ligada à sinagoga. Para a formação básica era previsto: aprender a ler e escrever, conhecer e aprender a lei de Deus e a história do povo; assimilar as tradições religiosas; aprender as orações, em especial os salmos. O método era simples: pergunta e resposta, ou seja, repetir e decorar, e também a disciplina e a convivência. 140 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Paulo também teve uma formação de nível superior. Isso aconteceu em Jerusalém, aos pés de Gamalieu (At 22,3). Esse estudo era composto dos seguintes ensinamentos: o estudo da lei ou da Torá; a tradição dos antigos; a halaká que ensinava a viver a vida de acordo com a lei de Deus; a Hagadá que ensinava a ler a vida de acordo com as leis de Deus; e o estudo da midrash, que era a interpretação da Bíblia hebraica. Sem dúvida, a leitura da Torá era a centralidade da formação de qualquer garoto judeu. Com isso a piedade do povo era marcada profundamente. “Desde criança” (2Tm 3,15), os judeus aprendiam sobre a importância da Torá nas suas vidas. A mãe era aprimeira a transmitir esses ensinamentos aos fi lhos (2Tm 1,5 e 3,14). Paulo desde criança aprendeu que a Torá era inspirada por Deus e útil para instruir, refutar, corrigir, educar na justiça (2Tm 3,16-17; Rm 15,4; 1Cor 10,6.11). Ao mesmo tempo que Paulo teve toda essa oportunidade de estudo entre os sábios de Jerusalém, vivia na Galileia um homem chamado Jesus, pobre, carpinteiro e que não teve condições de estudar em Jerusalém. Ao que tudo indica, Paulo e Jesus nunca se encontraram em vida (2Cor 5,16). Jesus era mais velho que Paulo, em torno de cinco ou oito anos. Contudo, os dois devem ter tido formação básica em casa, na sinagoga e na escola ligada à sinagoga. Mesters (2008, p. 18) faz uma breve comparação entre Jesus e Paulo: Paulo é da cidade. Jesus era do campo, do interior. As comparações de Jesus são quase todas do mundo rural: semente, campo, fl ores... As comparações de Paulo vêm do ambiente da grande cidade que marcou sua vida. Paulo pode não ter entendido muito de roça e de plantas, mas entendia de jogos urbanos. Uma cidade do tamanho de Tarso tinha seu estádio de esportes onde, a cada quatro anos, se organizavam jogos de atletismo: corridas, lutas, lançamento de disco, acertar no alvo etc. Quando jovem, Paulo deve ter gostado dos jogos no estádio. Pois, como adulto, deles ainda se lembra e os usa para comparar as exigências do Evangelho: ganhar a coroa (1Cor 9,25), perseguir o alvo (Fl 3,12-14), alcançar o prêmio (1Cor 9,26), correr na direção certa (1Cor 9,26; cf Gl 2,2; 5,7; Fl 2,16). Ele fala em combate (2Tm 4,7) e pugilato (1Cor 9,26). Conhece o esforço e a disciplina dos atletas (1Cor 9,25). Paulo tinha uma profi ssão, era fabricante de tendas (At 18,3). Pode ser que tenha herdado esta profi ssão do próprio pai, pois era esse o costume da época. O aprendizado começava por volta dos 13 anos e durava de dois a três anos. 141 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Paulo fazia questão de dizer que tinha cidadania romana (At 16,37; 22,25) e que possuía esse direito desde o seu nascimento (At 22,29), ou seja, herdou do seu pai. Se a família de Paulo possuía cidadania romana, signifi cava que tinha uma boa fortuna (At 22,28). É muito provável que Paulo tenha aprendido a profi ssão do pai não tanto para sobreviver disso como trabalhador, mas para administrar a ofi cina do pai como proprietário. Agora que já conhecemos um pouco de Paulo, vamos conhecer as cartas que ele escreveu ou que foram atribuídas a ele. Para entender mais sobre Paulo, bem como as pesquisas recentes a seu respeito, leia: HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império. Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2011. Carta aos Romanos As cartas escritas por Paulo mostram o empenho missionário em levar a Boa Nova para além da cultura judaica. Paulo foi o grande evangelizador do mundo gentio, e as comunidades que receberam sua infl uência estavam espalhadas em diferentes regiões da Ásia Menor e Europa: Filipos, Tessalônica, Corinto, Galácia. Essas comunidades possuíam características próprias, fruto da realidade local de cada uma, mas também apresentavam pontos em comum, uma vez que estavam inseridas na cultura greco-romana. Destacamos três semelhanças entre elas. Primeira: as comunidades são formadas, basicamente, por cristãs/os de origem greco-romana. Segunda: seus membros sofrem pressão dos judaizantes, que querem obrigar os cristãos gentios à prática da lei mosaica, em especial os ritos de purifi cação e a circuncisão (3, 1-19; Gl 3, 1-29). Terceira: os membros das comunidades têm difi culdade em deixar para trás os costumes trazidos da sua cultura de origem, o que gera confl itos (1Cor 5,1-13; 6,1-20; 7,12-16); têm problemas de relacionamento na vida comunitária (2, 6-7;1Cor 12,1-14,25); e têm problemas com as autoridades locais (1Cor 6, 1-11). A carta de Paulo aos Romanos é a primeira carta do chamado cânon paulino. Se trata da carta mais longa e também a que possui uma teologia bastante elaborada. Essa carta pode ter sido escrita em Corinto mais ou menos em 57 ou 58 d.C. 142 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A população da época era em torno de um milhão de habitantes, a maioria se tratava de plebeus libertos. Nero era o grande imperador e o povo estava marcado por uma grande massa de escravos. Paulo não conhece essa comunidade e por esse motivo escreve para preparar uma possível visita. Mesmo em meio a sua complexidade teológica, mantém o objetivo pastoral em todas as cartas. As comunidades cristãs de Roma cresceram muito, isso por conta do ingresso de gentios (1,5-6.13; 11,13). Essa situação gerava muitos confl itos, por exemplo, entre judeu-cristão e étnico-cristão, talvez esse seja um dos motivos por que o imperador Cláudio expulsou os judeus de Roma e com ele muitos cristãos, como o casal Priscila e Áquila, conhecido por Paulo na comunidade de Corinto (At 18,1-3). De acordo com o que está escrito na carta de Paulo aos Romanos, a situação do povo é crítica e deprimente. Isso porque os cristãos se encontram subordinados à ideologia imperial chamada de “pax romana”, no sistema da escravidão, e a lista de pecados é assustadora (Rm 1,28-32). Por outro lado, os judeus estão submetidos à ideologia da lei Mosaica, no sistema da circuncisão, e a lista de pecados também é muito grande (Rm 2,17-24). As soluções para todos esses confl itos só podem ser resolvidas por meio da graça, dom gratuito e dado por Deus (Rm 3,21-28). Carta aos Coríntios Assim como a Carta aos Romanos, a Carta aos Coríntios demonstra que existem muitos confl itos na comunidade. Contudo, a comunidade é formada na sua maioria de pessoas pobres e desvalidas. Foi Paulo mesmo quem fundou esta comunidade. No momento em que escreve a carta, por volta do ano 67 ou 57 d.C., está em Éfeso, essa seria a segunda carta, a primeira possivelmente tenha se perdido de acordo com o que está escrito em 1Cor 5,9. Provavelmente esta segunda carta seria a união de várias outras. Paulo chegou a Corinto após o discurso fi losófi co feito em Atenas, que aliás foi um grande fracasso. Em um ano e meio, Paulo descobriu que a opção pelos mais pobres era a mensagem culminante da cruz de Cristo (At 18,11). Foi acolhido pelo casal Priscila e Áquila e se inseriu na vida da cidade através de trabalhos manuais como fabricante de tendas. 143 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Carta aos Gálatas A Carta aos Gálatas pode ter sido escrita após o ano 53 e não mais que 57 d.C. O tema principal que Paulo trata nesta carta é o da justifi cação através da fé e pela liberdade dada por Cristo. Esta carta se tornou uma forma de circular pela região da Galácia e demonstra o caráter forte e apaixonado de Paulo, além de suas intensas convicções teológicas. Paulo passou pela Galácia por ocasião da sua segunda viagem missionária (At 16,6). E aí fundou comunidades que voltaria a visitá-las na sua terceira viagem missionária (At 18,23). Éfeso representou uma espécie de posto missionário, a partir do qual Paulo mantinha contato com as comunidades. Foi aí que chegaram para ele notícias da Galácia. Os povos da Galácia viviam sob condições rurais, mais do que em realidades urbanas. A região era muito distante e totalmente esquecida pelas autoridades romanas. Por conta da sua origem estrangeira, tinham direitos limitados, por exemplo, não podiam adquirir propriedade. Por conta disso, viviam como peregrinos e viajantes. Nesse sentido, Paulo fala a essa comunidade sobre a liberdade em Cristo. Escravidão e liberdade percorrem todo o texto. Carta aos EFésios, Filipenses, Colossenses e FilÊmon Existe certa relação entre essas cartas. É provável que tenham sido escritas na prisão. Não se sabe ao certo de qual prisão Paulo se refere, uma vez que esteve preso em Éfeso, Cesareia, Filipos e Roma. O interessante é que entre essas quatro cartas existem muitas similaridades, principalmente em relação à doutrina. Contudo,Efésios e Colossenses apresentam um conteúdo mais aproximado, parece que a primeira retoma e amplia a segunda. Do ponto de vista doutrinário e teológico, Efésios apresenta maior relevância porque reapresenta para a nova geração de cristãos toda a mensagem de Paulo. Possivelmente foi escrita em torno do ano 90 d.C., por isso é considerada deuteropaulina, ou seja, pós-paulina. O autor teria sido um seguidor de Paulo, muito ligado a seu mestre e que morava no vale do rio Lico, região de Éfeso. A carta apresenta uma forma de ver o projeto do reino de Deus para toda a humanidade por meio de Jesus Cristo. 144 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Filipenses tem como conteúdo principal a palavra “Evangelho” e toda trabalhada na arte da alegria e do afeto, por esse motivo se distingue de todas as outras cartas. Trata-se da igreja primogênita de Paulo na Europa. Também como a igreja que começou com um pequeno grupo de mulheres à beira de um rio. Paulo aceitou se hospedar na casa de uma mulher, Lídia, e aceitou contribuições da comunidade para as suas despesas. Colossenses é uma comunidade onde existem muitos pagãos convertidos ao cristianismo, e por conta disso, muitas difi culdades em acreditar em Jesus Cristo como o fi lho de Deus, por isso Paulo insiste que Jesus Cristo é o senhor do universo e a cabeça da Igreja. Filêmon, no fundo se trata muito mais de um bilhete do que propriamente uma carta, pois é a mais curta de todas. É um bilhete escrito de próprio punho para recomendar um escravo fugitivo. O bilhete é extremamente afetuoso, mas persuasivo, junta vários argumentos para que consiga convencer o destinatário, aos poucos, sem dar ordem autoritária. Carta aos Tessalonicenses Tessalonicenses é uma carta que possui um caráter bem sentimental para o cristianismo, pois é o primeiro texto escrito do Segundo Testamento. Essa carta foi escrita antes dos Evangelhos, por volta do ano 51 ou 52 d.C. e abre a coleção de textos aceitos como a Bíblia cristã. É uma carta que possui muita originalidade, bem como as preocupações pastorais de Paulo. O texto é bastante revolucionário e inovador, pois anunciava que Jesus, morto na cruz, era o Cristo ressuscitado e portador de salvação. Para uma população que vivia na periferia, até acostumada ao sofrimento provocado pela escravidão, era muito difícil compreender a proposta de Paulo, que enaltecia o trabalho braçal. Contudo, essa proposta era extremamente provocadora, porque colocava em risco o sistema escravocrata. Por conta disso, Paulo e seus seguidores foram perseguidos pelos governantes. Como consequência disso, a comunidade esperava ansiosamente pela vinda de Jesus ressuscitado, que os livraria de todo o sofrimento que há tempo padeciam. A pregação cristã oferecia elementos que correspondiam a todos esses anseios, como a possibilidade de reunir-se como assembleia de irmãos com o intuito de reivindicar direitos e aprofundar a fé. 145 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Carta a Timóteo A carta de Timóteo deve ter sido escrita na Macedônia por volta dos anos 64 ou 65 d.C. Busca prevenir a liderança da comunidade de Éfeso contra os falsos doutores (1Tm 1,3-20; 4,1-11; 6,3-10). O ambiente cosmopolita possibilitava a inserção de novas ideias e concepções religiosas. A carta de Timóteo e também a de Tito são consideradas cartas pastorais, isso porque são de cunho orientativo para pastores e/ou líderes de comunidades. Contudo é bom sabermos que todas as cartas paulinas possuem caráter pastoral, porque orientam e motivam o desenvolvimento das comunidades cristãs. No entanto, Timóteo se diferencia de todas as outras porque possui uma linguagem mais formal, apresenta um plano menos organizado e mais livre, possui muitas repetições e apresenta uma visão teológica bem diferente das outras. Nesta visão a comunidade possui uma organização interna mais delimitada e é mais importante do que a missão, as lideranças devem possuir dons especiais, a fé é vista como a sã doutrina, a piedade é expressão da fé e as falsas doutrinas devem ser combatidas. Apocalipse de JoÃo A revelação pode ser vista de vários pontos de vista, sob diferentes luzes. É assim que vemos o livro do Apocalipse e ao mesmo tempo somos convidados a lê-lo sem resignação ou terror diante dos acontecimentos narrados. No fundo, ele situa a realidade atual e futura do mundo à luz de Deus e do cordeiro, visão de justiça e misericórdia. O Apocalipse de João só tem sentido se visto a partir da sua revelação última e simbólica e a certeza de que tudo pode acabar, exceto a vida. Veja o que o autor francês Leloup (2014, p. 13-14) fala a respeito da revelação: Diante dessas diversas mortes anunciadas pelos religiosos, os cientistas e um determinado número de indivíduos que pretendem ter uma “revelação”, podemos reagir de diferentes maneiras: pelo fascínio ou pelo desprezo, pelo medo, a angústia ou a fobia [...]. Esta não é a função de um apocalipse e particularmente do Apocalipse de São João. Seu papel não é o de alimentar nossas fobias, sequer de despertar um medo ou uma angústia que poderia mostrar-se salutar diante da situação em si; é, antes, a revelação de uma saída, o exercício de uma lucidez não desesperada. Alguns dirão que todas essas advertências são preparativos efi cientes 146 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS para um “parto” (tradução igualmente possível da palavra “apocalipse”): antecipar a dor permite que possamos enfrentá- la de uma maneira melhor. Quando aprendemos a relaxar e nos entregamos de coração à experiência devastadora, isso permite que a atravessemos, não “sem dor”, mas, ao menos, de modo menos doloroso. Revelação é o sentido principal do livro do Apocalipse, ou seja, são comunicações dadas a um profeta chamado João e por ele transmitidas a sete comunidades da Ásia Menor, região anteriormente evangelizada por Paulo. Possivelmente o profeta está na prisão numa ilha ao fi nal do primeiro século d.C. A ideia desse profeta é animar as comunidades que viviam perseguidas, por isso tanto insistia que resistissem a toda essa perseguição na esperança de que dias melhores estavam por vir. De que esperança o profeta estava falando? No projeto de Jesus e acreditando fi rmemente que o mal e a injustiça não teriam a última palavra. No período em que essa narrativa circulava pelas comunidades, o Império Romano obrigava todos os subordinados a cultuarem o imperador como a divindade suprema. Para o autor dessa revelação apocalíptica, o sistema político e econômico perverso do império não poderia ser aceito ou admitido pelos seguidores de Jesus. Uma proposta extremamente perigosa e radical, diferente de muitos outros grupos religiosos que acabavam por aderir à proposta imperial e à de Jesus, concomitantemente. Se trata do mesmo sistema que crucifi cou Jesus e a consequência disso é muito clara: não é possível servir a dois senhores. Com o intuito de animar as comunidades na esperança, a mensagem comunicada oferece em riqueza de detalhes a visão do céu e do trono de Deus, com a liturgia que aí se celebra ao juiz três vezes justo e santo. Ao mesmo tempo, expõe critérios, através de imagens, fi guras, sinais, a maioria deles já conhecida das escrituras judaicas. Isso porque as comunidades podiam captar a dinâmica da história e convencer-se de que elas estão nas mãos de Deus e do seu Messias, e que o domínio do Império, bem como das forças do mal que ele representa, não seja capaz de iludir a nenhum membro da comunidade. As comunidades do Apocalipse se desenvolvem em meio à sociedade helenista, escravagista. O Imperador é chamado o Senhor = κυριος, o (Kyrios). Ele está no topo da pirâmide e controla tudo. A maioria dos que frequentam as comunidades são escravos. O grande imperador desse período é Nero. Ele persegue com bastante empenho as comunidades de Jesus, porque elas apresentam um projeto bem diferente do império: escravagismo X projeto comunitário.147 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 Os grupos formados pelas comunidades não possuem o controle da história. Nessa perspectiva, as elites se divertem levando os cristãos para os leões devorarem. A sociedade é desumana. A vida das pessoas é mercadoria: (cf. Ap 18,13). Deus não é somente o Senhor de Israel, mas um Deus dos puros e impuros (Is 56,3-7). Na mesma ideia estão os autores do livro do Apocalipse. Deus está ao lado daqueles que buscam o seu reino. No Apocalipse impera a ideia da inclusão, de somar forças no desejo de incluir todos na proposta do reino de Deus. As comunidades não podem manipular para si as ações de Deus no mundo. Javé, o Deus libertador, não é prioridade de nenhuma comunidade. Ele ama quem o busca e procura a justiça nesse mundo. De acordo com Comblin (1998, p. 44-52): O apocalipse de João pretende ser a palavra fi nal da Bíblia dos judeus. É uma releitura de todo o Antigo Testamento. João nunca cita os autores que usa, mas o seu texto é feito sempre de citações implícitas da Bíblia. Isto quer dizer que pretende dar a interpretação ofi cial, certa, de toda a Bíblia. Ele faz da Bíblia a leitura cristã. Seu livro é como uma visão global de todo o Antigo Testamento. Pois na visão dele, todo o Antigo Testamento culmina no anúncio do Messias e na espera do fi m do mundo, com o advento do reino de Deus. João organiza o Antigo Testamento em função desta interpretação. Visivelmente é um autor cristão que toma posse da Bíblia de Israel. Os judeus cristãos, além do sistema escravagista do império, estavam sem a proteção das sinagogas, e por isso mesmo expostos a todo tipo de perseguição. Assim, o primeiro livrinho do Apocalipse 4-11, ou seja, o roteiro do Novo Êxodo, não era mais sufi ciente, por isso foi necessário que a comunidade elaborasse um segundo livrinho: Ap 12-22, em que descreve o roteiro do julgamento fi nal: Novo Céu e Nova Terra X o sistema opressor. Aqui temos: • O sistema do império, escravagismo, perseguição – é a grande Besta. • A perseguição dos judeus fariseus: as Bestinhas. Essas são piores, porque estão presentes no cotidiano, na intimidade das comunidades. A perse- guição fi cou mais forte e se espalhou por todo o império. Era preciso “au- mentar a bateria”. O livro do Êxodo não era sufi ciente. A comunidade retoma a imagem da “nova criação” – todo o universo está dividido entre o bem e o mal. Vejamos o exemplo de Ap 12,1-4: a mulher representa o bem X o dragão que representa o mal. 148 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Essa luta começou no céu, no mundo de cima. Agora essa mesma luta acontece na vida das comunidades. A mulher, grávida, dando à luz, é a comunidade cristã, na sua fragilidade para gerar vida. Se trata da nova Eva (cf. Gn 3,20). É um símbolo novo que surge no interior da história. Ela representa um mundo novo em gestação, considerando a ressurreição de Jesus. A nova Eva traz consigo os sinais do novo: sol, lua, estrelas (Lc 21,35). O dragão é a antiga serpente (cf. Ap 12,9) que cresceu e virou um bicho forte, feio e feroz. Símbolo do mal e da morte, do sistema político e econômico que oprime a vida dos pequenos. A serpente antiga (Ap 12,9) representa a raiz do mal que age na história e se encarna nas práticas do Império Romano: totalitário e enganador. Traz sinais de poderes absolutos e ilimitados. A luta é desigual: mulher x dragão. A vida parece perder para a morte. Deus opta pela vida e defende a mulher. É interessante notar que o dragão nunca ganha. 12,4-5: Deus tira a mulher do perigo do dragão. O dragão não consegue devorar o fi lho. Um fi lho que foi arrebatado para junto do Pai. Eis uma nítida referência à ascensão de Jesus. A citação do Salmo 2,7-9 não deixa dúvida da referência ao Cristo (cf. Ap 19,11). Ele governará com cetro de ferro. Senhor defi nitivo da história. A mulher segue para o deserto num período de 1260 dias e é alimentada por Deus. Tempo de dura perseguição (Ap 11,2-3), isto é, três anos e meio, metade de sete (Dn 7,25). 12,7-8: Miguel derrota o dragão. Ele é o protetor do resto de Israel. Ele vence as batalhas e traz um novo tempo messiânico (cf. Dn 10). O dragão recebe títulos que indicam a gravidade da ameaça junto aos homens e mulheres: diabo e Satanás, sedutor de todo o mundo (v. 7-9). A imagem do grande julgamento é central no livro do Apocalipse. Este juiz é visto como o Deus Goêl – um deus vingador semelhante ao defensor declarado de Jó (19,25). Um Deus que se revela no mundo de baixo junto aos oprimidos. O texto enaltece o testemunho dos cristãos: Seu testemunho é de luta contra os poderes do mal, que se manifestam nas garras do Império. A força do testemunho vem do próprio sangue do Cordeiro, que morreu na cruz mas triunfou sobre a morte. O testemunho está na fi delidade à Palavra de Deus, a qual leva a preferir a morte à própria vida (GORGULHO; ANDERSON, 1978, p. 133). 149 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 12,11: aquele que luta e testemunha derrota o dragão. O povo celebra a vitória, provavelmente citando o livro do Êxodo 19,4. O dragão/o mal continua a agir no mundo. Os poderes desse mundo devem ser enfrentados no interior da história, com coragem e certeza da vitória já garantida. O dragão não pode mais atingir o Cristo, por isso persegue os seus seguidores. O dragão vomitará contra as comunidades rios da perseguição (v. 15-16), mas isso não trará o fi m. 12,16: a terra mãe ajuda a mulher. O vômito do império (cf. Is 8,7-9), ao comparar a invasão assíria, simboliza que a perseguição não triunfará e será engolida pela história. O capítulo 12 termina no ano 95, ano da defl agração imposta durante o governo de Domiciano (81-91 d. C.) contra os seguidores de Cristo. Cristo venceu os poderes do mundo (Cl 1,13) para nos dar a plena liberdade (Gl 5,1. 14-16). A vitória de Cristo deve ser continuamente atualizada na vida dos cristãos (1Cor 15, 25.28). Essa posição radical do livro do Apocalipse é uma chave de leitura importante, para animar as comunidades cristãs de todos os tempos que são constantemente desafi adas pelas seduções e armadilhas dos impérios que teimam em se reproduzir na história. Vivemos em um mundo submerso a perturbações e complexidades, seja por previsão de anúncios ou previsões apocalípticas, que fazem parte dessa sede humana por descobrir o futuro de maneira quase que mágica, talvez com o intuito de diminuir a angústia humana mediante a busca de sentido para a própria existência. Contudo, o mais célebre e temido Apocalipse, o de João, que os profetas que veneram a desgraça e o caos adoram invocar, tem como objetivo continuar alimentando esse medo e angústia? A viagem que fi zemos por algumas comunidades cristãs primitivas apontam para um cristianismo que é plural em sua origem. Essa constatação é importante. Hoje, como ontem, nossas comunidades precisam valorizar as diferentes formas de entender e colocar em prática a Boa Nova de Jesus. Os confl itos que podem surgir dessa diversidade não devem nos dividir, mas ser estímulo para que nossas comunidades e cada um de seus membros testemunhem que a diversidade e a pluralidade são fatores de crescimento individual e comunitário. Em um mundo globalizado, deparamo-nos cotidianamente com essa realidade. Acolher a diversidade e conviver com ela faz parte da nossa identidade cristã. Lastimavelmente, da forma como o cristianismo é vivido por muitos de nós, não suscita seguidores, mas apenas adeptos de uma religião. Não é capaz de suscitar discípulos que estejam identifi cados com o seu projeto, com o intuito de abrir caminhos para o reino de Deus, mas apenas membros de uma instituição que cumpre bem ou mal suas obrigações religiosas. Disso pode resultar que nunca descubramos de fato a experiência cristã originária e apaixonante. 150 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Assista a esse vídeo e faça memória do pouco que conhecemos sobre o livro de Apocalipse: <https://www.youtube.com/watch?v=CvgZku3SUkY&t=73s>. Para aprofundar mais a sua refl exão sobre o livro do Apocalipse e desconstruir muito do que aprendeu por meio dos “mitos” populares, indicamos que você leia: LELOUP, Jean-Yves. O Apocalipse de João. Petrópolis: Vozes, 2014. Atividade de Estudos: 1) De acordo com o que estudamos nesse capítulo sobre o Segundo Testamento, o que você aponta como novidade na refl exão? Faça uma lista de cinco tópicos que chamaram a sua atenção e que você gostaria de aprofundar. Em seguida argumente, em forma de texto, contendo esses tópicos, ao menos uma página, sobre as suas inquietações e que revelações novas você propõe, enquanto teólogo, para a atualização dessas narrativas bíblicas que atravessam mais de dois mil anos de história. ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ 151 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 2) Leia o texto de Paulo Mendes Pinto - Jesus, o perfeito supremacista branco e o eunuco etíope. Disponível em: <https://www.publico. pt/2017/08/26/mundo/noticia/jesus-o-perfeito-supremacista-branco- e-o-eunuco-etiope-1783247>. Em seguida dê sua opinião a respeito da questão: A pluralidade estava intrinsecamente no movimento de Jesus, como reagimos a essa diversidade? __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ Algumas ConsideraÇÕes Ao longo desse capítulo pudemos verifi car algumas informações ou chaves de leitura que nos ajudam a ler e entender melhor as narrativas do Segundo Testamento. Pudemos perceber que os textos bíblicos não são autobiografi a e/ ou biografi a de Jesus, e que os manuscritos foram compilados e entendidos como sagrados muito tempo depois da morte e ressurreição de Jesus. Por esse motivo, precisamos ter bem claro que se tratam de textos escritos por simpatizantes ou seguidores, posteriores aos primeiros discípulos, que se identifi cavam com o projeto de Jesus, como é o caso do apóstolo Paulo, que foi uma fi gura fundamental para que o cristianismo se espalhasse pelos confi ns do Império Romano e, consequentemente, chegasse até nós hoje. Vimos também que as narrativas foram escritas entre os séculos I e II d.C., em meio à civilização greco-romana. Essas narrativas do Segundo Testamento aparecem na língua falada dessa civilização, o chamado grego koiné, e giram em torno da mensagem de Jesus. Quando esses escritos foram compilados, os Evangelhos se tornaram o fundamento de todos os outros livros do Segundo 152 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Testamento que, por sua vez, os explicitam e aplicam à vida prática. Não podemos compreender sufi cientemente a mensagem de Jesus nem os escritos que a explicitam, sem conhecermos as circunstâncias históricas em que nasceram, por isso pudemos conhecer um pouco mais sobre a organização política, socioeconômica e ideológica da Palestina no período em que Jesus viveu, bem como os seus primeiros seguidores. Jesus anunciou a Boa Nova da salvação de forma oral, em aramaico, a língua falada na Palestina. Os seus discípulos também não escreveram, estavam muito mais preocupados com o anúncio oral dos ensinamentos de Jesus. A atitude de Jesus e dos seus discípulos faz do Cristianismo, não uma religião da escrita, mas a religião que se centra na pessoa de Jesus. Depois de terem ouvido a mensagem oral, durante a primeira geração cristã, é que os discípulos da segunda geração registraram por escrito as palavras e os fatos da vida de Jesus para incutir nos cristãos maior fi delidade à mensagem e os conduzir à fé e à salvação em Cristo. Para que a mensagem de Jesus fosse divulgada e para a formação destas coleções de livros a que temos acesso nos dias de hoje, muito contribuiu a autoridade dos apóstolos, em nome dos quais esses textos foram escritos. Grande parte dos livros da Bíblia é atribuída a pseudônimos, ou seja, são obras atribuídas a um personagem famoso ou importante, para que fosse melhor aceito pelas comunidades. Nessa época não existiam direitos autorais, por exemplo, no caso do Apocalipse, de um profeta chamado João, que foi associado ao apóstolo João. De outra forma, este livro teria tido ainda maiores difi culdades em entrar no Cânon dos livros inspirados. Para concluirmos essa disciplina, devemos ainda considerar que os textos bíblicos que temos em mãos passaram por muitas traduções. Isso pode comprometer a mensagem original dos escritos bíblicos, por isso, para que cheguemos a uma maior proximidade da mensagem em que os textos bíblicos foram escritos, se faz necessário o conhecimento do idioma em que foi escrito, para que não corramos o risco de afi rmar ou negar informações que seus autores não tinham intenção nenhuma de fazer. Nesse sentido, ganharemos autonomia na refl exão e, sobretudo, respeito à mensagem escrita pelos seguidores de Jesus. À frente, temos o grande desafi o de fazer Jesus ser conhecido não a partir daquilo que nos é pregado, mas a partir da nossa busca por conhecer Jesus na sua fonte originária! Bons estudos! 153 SEGUNDO TESTAMENTO Capítulo 4 ReFerÊncias CASONATTO, Odalberto Domingos. Quando surgiu a Sinagoga? 2011. Dispo- nível em: <http://www.abiblia.org/ver.php?id=1817>. Acesso em: 27 ago. 2017. COMBLIN, José. O Apocalipse de João e o fi m do mundo. Estudos Bíblicos. Petrópolis: Vozes, p. 44-52, 1998. GASS, Ildo Bohn. Uma introdução à Bíblia. As comunidades cristãs da primeira geração. São Paulo: Paulus; Cebi, 2005. GORGULHO, G. S.; ANDERSON, Flora. Não tenham medo: Apocalipse. São Paulo: Paulinas, 1978. HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império. Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2011. JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1983. LELOUP, Jean-Yves. O Apocalipse de João. Petrópolis: Vozes, 2014. PAGOLA, José Antonio. O caminho aberto por Jesus. Marcos. Petrópolis: Vo- zes, 2013a. ______. O caminho aberto por Jesus. Mateus. Petrópolis: Vozes, 2013b. PORTAL DA EDUCAÇÃO. Cidadania em Roma. Disponível em: <https://www. portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/iniciacao-profi ssional/cidadania-em-ro- ma/1879>. Acesso em: 25 ago. 2017. ROSA, Luiz da. Por que os evangelhos de Lucas, Marcos, João e Mateus são chamados de sinóticos? 2015. Disponível em: <http://www.abiblia.org/ver. php?id=8220>. Acesso em: 29 ago. 2017. SAULNIER, Christiane; ROLLAND, Bernard. A Palestina no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1979.