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76 Unidade II Unidade II 5 HIPERGÊNERO Caro aluno, verifique nossas dúvidas cotidianas: • Será que gibi (o livro das histórias em quadrinho) é um suporte ou gênero textual? Em relação a essa dúvida, já verificamos que existem diferentes suportes, e o gibi é um deles. O gibi é suporte para o gênero tirinha. • Panfleto é ao mesmo tempo suporte e gênero textual? Temos estudos em pós-gradução que trazem uma resposta afirmativa para a dupla função do panfleto. • Blog é um gênero textual? Mas, se for, como explicar os diversos “gêneros” contidos nele? Para essa dúvida, trataremos a seguir a noção de hipergênero. Hipergêneros são estruturas que estão acima dos gêneros, ou seja, os gêneros textuais são oriundos dos hipergêneros. Estes se enquadram numa larga faixa de textos, por exemplo, o hipergênero textual digital abrange gêneros textuais, como o website. Para Maingueneau (2001, p. 131), o blog não pode ser considerado um gênero, mas sim “uma espécie de hipergênero típico, cujas propriedades comunicativas são mínimas: alguém (com um nome próprio) fala sobre si mesmo(a) para alguém que esteja visitando seu website”. Em uma estrutura considerada hipergênero, podem surgir outros hipergêneros, isto é, se essa nova estrutura for produtora de outras ramificações, aqui classificadas como gêneros textuais. É o que ocorre, por exemplo, com o blog. Este é considerado um hipergênero devido à existência de diferentes tipos de blogs, os quais tratam dos mais diversos gêneros: diário pessoal, diário de viagens, notícias, resenhas de filmes e livros etc. Vale ressaltar que a construção do conceito de hipergênero surgiu com as fundamentações teóricas concebidas por Bakhtin, confirmada por Maingueneau (2001). O autor se apropriou do conhecimento cunhado por Bakhtin e reorganizou conforme as exigências necessárias à sua aplicação atual de modo a tornar a seu estudo funcional, como comprovado a seguir: Um hipergênero, antes de tudo, “formata” um texto: não é um gênero de discurso, um dispositivo de comunicação sócio-historicamente definido, mas um modo de organização textual que encontramos em tempos e em lugares muito variados e no interior dos quais se podem desenvolver uma encenação do discurso muito variada (2001, p. 135). 77 GÊNEROS TEXTUAIS Por meio dos estudos de Maingueneau (2001), é possível entender que o quadrinho é mais que um gênero textual, ou seja, o mundo dos quadrinhos oferece tantas ramificações, passando a ser considerado um hipergênero textual. Charge, cartum, caricatura, tira, gibi, mangá, cada uma das subclassificações possui suas peculiaridades e são considerados gêneros textuais advindos do hipergênero quadrinho. Ramos (2009) explica que, por falta de estudos linguísticos existentes a respeito do assunto, há a uma forte tendência na literatura científica por classificar os quadrinhos como um gênero. No entanto, são notáveis as especificações de cada um deles. Em relação ao gênero, há vários autores que o conceituam. Bakhtin é tido como principal referência. Para o autor, “gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2002b, p. 262). Lembrete Quando falamos de gênero textual, o nome Mikhail Bakhtin é imediatamente lembrado. Foi um filósofo da linguagem, russo, do começo do século XX, e fez parceria com Voloshinov e Medvedev, os quais participaram do grupo Círculo de Bakhtin. O gênero é um mecanismo semiótico múltiplo que permite a produção e a compreensão de textos ao mesmo tempo, visto que são eles que tornam possível a comunicação humana. Desse modo, para que haja comunicação é preciso se adequar à situação comunicativa, ou seja, um e-mail, por exemplo, não é redigido da mesma forma que textos acadêmicos, os quais exigem mais formalidade, diferentemente do que ocorre nas conversas informais. Os textos escritos possuem utilidades singulares de comunicação, de acordo com as várias práticas discursivas. Desse modo, a atuação nessas práticas requer conhecimento de diversos gêneros, sejam escritos, sejam orais, além da adaptação deles às situações de uso e habilidade para entendê-los e produzi-los. Sendo assim, é perceptível a diferença entre uma produção escrita com finalidade de declarar ou anotar alguma coisa ou mesmo que objetiva modificar informações obtidas de uma produção com propósito estético. Da mesma forma, é necessário levar em conta os meios em que os textos circularão. Um texto elaborado na escola não é igual ao produzido no cenário profissional ou jurídico, por exemplo. De acordo com o ambiente ou contexto, existe um gênero textual apropriado e eficaz na comunicação. Por contexto entendemos as variadas necessidades de uso da língua, visto que os textos estão diretamente ligados às práticas comunicativas criadas e fortalecidas no núcleo de comunidades humanas socialmente sistematizadas, considerando alguns costumes, hábitos e princípios configurados no decorrer da história. Os gêneros compartilham determinados parâmetros contextuais que envolvem a finalidade comunicativa, relevando a relação entre os interlocutores, as formas de interação da oralidade ou 78 Unidade II da escrita, o campo social, por serem identificados socialmente, além da aproximação que estruturas linguísticas oferecem como recurso. Cassany (2008, p. 921) confirma que, em cada âmbito de atividade (laboral, científico, familiar), comunidade ou esfera, são requeridos determinados gêneros. É importante destacar ainda que são dinâmicos, mutáveis, determinam comunidades, atendem a propósitos específicos e se colocam em determinadas práticas sociais de uso da língua pelos diferentes sujeitos. Isto é, os gêneros organizam a vida social e possibilitam constatar que o funcionamento da língua não é inerte. Lembrete Tipologia é uma construção definida linguisticamente e abrange restritas categorias conhecidas como: narração, argumentação, injunção, entre outras. Gênero, por sua vez, é a materialização dos textos encontrados em nossa vida diária e apresenta aspectos sociocomunicativos definidos pelo conteúdo, estilo e composição. Marcuschi (2005, p. 18) revela que: Existe uma grande diversidade de teorias de gêneros no momento atual, mas pode-se dizer que as teorias de gênero que privilegiam a forma ou a estrutura estão hoje em crise, tendo-se em vista que o gênero é essencialmente flexível e variável, tal como o seu componente crucial, a linguagem. Pois, assim como a língua varia, também os gêneros variam, adaptam-se, renovam-se e multiplicam-se. Em suma, hoje, a tendência é observar os gêneros pelo seu lado cognitivo, evitando a classificação e a postura estrutural. Esse autor considera ainda o trabalho com gêneros textuais uma maneira de lidar com a linguagem em usos autênticos cotidianos; afinal, tudo o que fazemos linguisticamente está dentro de algum gênero. 5.1 Hipergênero HQ e seus gêneros Histórias em Quadrinhos ou HQ são um meio de linguagem contemporânea e sincronizam cada vez mais perfeitamente imagem (recurso visual, não verbal) com prosa (recurso visual literário), buscando por meio de recursos reconhecidamente próprios, como balões, requadros variados, uso de cores, perspectiva e variações de traço, expressar aspectos dessa linguagem própria. De acordo com Eisner (2010), as primeiras histórias em quadrinhos eram coletâneas de obras curtas. Após cerca de 50 anos, surgiram as novelas gráficas, que nada mais eram que uma espécie de romance contado de forma gráfica, em uma história mais longa, geralmente de volume único com características românticas representada por meio da arte sequencial. 79 GÊNEROS TEXTUAIS Quando examinamos uma obra de quadrinhos como um todo, a disposição de seus elementos específicos assume a característica de uma linguagem concebida como um sistema predefinido pelo qual um dado interlocutor comunica sentimentos, impressões, ideias etc. Desde a primeira aparição dos quadrinhos na imprensa diária (tiras de jornal), na virada do século XX,essa forma popular de leitura encontrou um público amplo e particular que passou a fazer parte da dieta literária inicial da maioria dos jovens. As histórias em quadrinhos comunicam uma linguagem que se vale da experiência visual comum do criador e do público. Os leitores têm uma compreensão fácil da mistura imagem-palavra e da tradicional decodificação de texto. Esse hipergênero é considerado um marco devido a uma estrutura que transcende padrões, quebra paradigmas e entra com uma proposta nova da compreensão do mundo. Da visão do artista denota-se também um modo próprio de observação e de retratação da realidade, pois, por mais fantasiosa que seja a temática de determinada HQ, há a relação verossímil presente para estabelecer parâmetros comparativos (em relação à realidade) aceitáveis e compreensíveis, percebemos, assim, que há variados meios de representar uma mesma situação, momento, emoção, bem como o de representar intenções, discursos, entre outros recursos próprios do homem. Os gêneros do universo das HQ são: a caricatura, a charge, o cartum, a tira e o mangá. Caricatura é um termo que gera muitas divergências no tocante à sua distinção em relação à charge, porém há diferenças entre os dois gêneros. O termo caricatura aborda temas mais específicos, como determinada figura humana, diferentemente da charge, que foca na sátira ou crítica da situação como um todo, trabalhando assim com o uso frequente de um cenário. Na caricatura, por sua vez, prioriza-se a distorção anatômica, por exemplo, com o intuito zombeteiro, revelando, inclusive traços da personalidade que, nesse plano, ficam metaforizados; outro grande diferencial é que ela não visa propriamente à crítica, ao exagero e à zombaria. Charge é um tipo de crítica com teor humorístico que aborda um fato ou acontecimento específico. É a reprodução de uma mídia gráfica que trata um determinado ocorrido, sob a ótica do desenhista que a fez. A charge pode vir sintetizada num misto de imagem e palavra como complementos, ou somente por meio da imagem abarcando seu sentido total. Geralmente aborda acontecimentos que estão em evidência no momento atual. O cartum é outro gênero texto e é atemporal, ou seja, não tem relação com nenhum acontecimento que esteja necessariamente em evidência, ou a alguma personalidade. Pode fazer referência a estes, mas não como meio de crítica ou divulgação, tal como a charge, no período de seu acontecimento. O intuito do cartum é conter um tipo e contexto de humor que seja universalmente compreendido. O cartum é uma anedota gráfica, uma crítica mordaz, que manifesta seu humor através do riso. Faz referências a fatos ou pessoas, sem o necessário vínculo com a realidade, representando uma situação criativa que penetra no domínio da invenção. Mantém-se, contudo, vinculado ao espírito do momento, incorporando eventualmente fatos ou personagens (ARBACH, 2007, p. 212). 80 Unidade II Tira ou tirinha é gênero propriamente dito das HQs. Ela se constitui de até quatro quadros, exibidos, geralmente, de forma paralela (um ao lado do outro), e a tirinha pode se apresentar: em sequência; por capítulos de narrativas maiores; ou fechada, em um episódio por dia, com começo, meio e fim. É um gênero que se popularizou por causa do jornal, por meio do qual cativou um grande número de leitores por seu teor crítico e irônico. As tiras, afinal, podem tratar de questões fundamentais sobre a realidade em que estão inseridas. Ressaltamos que elas têm forte relação, embora nem sempre, e nem de forma obrigatória, com os acontecimentos vigentes. Por fim, outro gênero das HQs é o mangá, cuja origem é japonesa. Os mangás japoneses são segmentados e divididos por faixa etária e sexo. Há publicações diversificadas que atendem ao público infantil, com caráter pedagógico ou para o lazer, e, também, revistas para moças e rapazes e, por isso, os mangás são subdivididos em mangá infantil, mangá feminino, mangá jovem etc. Com base nos estudos de Luyten (2012, p. 38), “as revistas [mangás] infantis, geralmente com caráter pedagógico, são denominadas de shogaku”. Essa categoria de mangá abrange temas diversificados, tais como escolares, hobbies e autoajuda para leitores mirins. Na parte central do mangá há a inserção de uma história em quadrinhos tratando sobre aventura, lendas antigas do país, histórias cômicas etc. Mesmo quando as histórias não estão diretamente ligadas ao campo didático, elas ainda passam ensinamentos como datas comemorativas, língua e esporte. Quanto ao formato, são idênticas aos demais, ou seja, todas são impressas no mesmo tamanho em papel jornal, exceto as páginas iniciais, que são em papel couchê, com muitas cores, destinadas para a inserção de publicidade e informes direcionados para o público-alvo. Já os mangás femininos são classificados de shojo mangá, cujos temas se direcionam para meninas na fase da adolescência. Esse tipo de mangá teve uma grande tiragem na década de 1970 e 1980 por tratar de enredos melodramáticos. Os temas eram diversificados, sempre destacando amores impossíveis, rompimentos e discórdias entre amigas. Uma peculiaridade marcante do shojo mangá é que sua criação foi introduzida por homens. No entanto, a maior parte de sua produção é feita por moças desenhistas. Como confirma Luyten (2012, p. 41): Apesar de o Japão ser conhecido como um país machista, onde as mulheres têm poucas oportunidades profissionais, no campo dos quadrinhos ocorre exatamente o contrário: “Enquanto em outros países as histórias femininas são desenhadas por homens, no Japão é da mulher-desenhista para a mulher-consumidora, geralmente adolescente”. Essas revistas são direcionadas para jovens com idades entre 12 e 17 anos (até um pouco mais). Seu sucesso se deve em parte à empatia existente entre leitoras, histórias e pela delicadeza dos traços e suavidade dos desenhos. O suicídio é um fato curioso da cultura japonesa, o qual é utilizado como mote para o mangá, cujo desfecho é a morte como solução e renascimento. 81 GÊNEROS TEXTUAIS O shonen é a designação para os mangás masculinos, que, assim como o segmento feminino, têm o seu público-alvo específico. São divididos por faixa etária e possuem os mesmos formatos, com adaptações às temáticas de interesse dos rapazes, por exemplo, artigos sobre esporte, robótica e videogames. O mangá masculino, tal qual o feminino, trata de temas melodramáticos envolvendo temáticas do samurai invicto, atletas e do aventureiro, revelando a autodisciplina, perseverança, profissionalismo e competição. Como já mencionado, a cor preta faz parte da estética do mangá e é muito recorrente nas publicações masculinas por ilustrar bem a temática abordada, simbolizando o mistério e a violência. A violência é uma temática recorrente nos mangás, no entanto, não representa a realidade, é vista como uma espécie de compensação de algo que não faz parte da vida dos japoneses, está apenas no campo imaginário, visto que renunciaram a qualquer forma de guerra. Uma ramificação do shonen é a temática de cunho sexual. Ela se mistura nas histórias, mas não é especificamente tratada como erótica ou pornográfica. Apesar de tratar o tema de forma explícita e perturbadora, esse tipo é restrito ao público adulto. O público adulto possui seus próprios mangás. São chamados de Seinenshi os mangás para homens, englobando os temas pornográficos, eróticos e homossexuais de ambos os sexos. No caso das mulheres, não existem muitas diferenças entre as publicações adolescentes e adultas, ambas tratam das mesmas temáticas. De forma geral, então, a HQ é a tentativa gráfica/textual de mostrar de modo verossímil como determinada situação ocorreria, por meio da ótica de um narrador/leitor onisciente que enxerga as várias facetas da situação na maioria dos casos, de forma sequencial, ou seja, através de recortes da realidade (quadrinhos), valendo-se de recursos próprios. Saiba mais Quer saber mais sobre o mundo das HQ: sua linguagem, estrutura e temas?Procure as obras do estudioso Paulo Ramos, entre elas A leitura dos quadrinhos. Ramos baseia-se na concepção bakhtiniana de gêneros textuais. RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. As letras significam muito mais do que a representação gráfica de um fonema. De acordo com a fonte ou estilo utilizado pelo artista, as letras podem denotar vários significados subliminarmente associados, como pode ser visto no exemplo a seguir. 82 Unidade II Figura 13 – Letra ou pictograma chinês executados em dois estilos de pincelada A orientação do texto é um recurso muito útil para a composição do sentido, além da fonte, sendo um recurso que colabora para registrar o clima ao qual se deseja chegar. Figura 14 – Texto em orientação horizontal Nesse exemplo foi utilizada uma fonte garrafal molhada, e o texto está orientado na horizontal, aumentando o pesar causado pela chuva. A iluminação é um recurso utilizado para dar realismo ao requadro, bem como dar clima à cena. O realismo dá-se na relação de sombreamento do objeto e clima, quando é feita uma metáfora com o objeto da cena: Figura 15 – Texto em orientação horizontal 83 GÊNEROS TEXTUAIS Nas cenas da figura anterior, a iluminação entra como recurso emocional, ou seja, é uma forma visível de representar algo abstrato, há o sentimento de solidão, piedade, e ao centro pode-se ver uma prece a ser atendida com a ideia de iluminação do alto. Observação A iluminação torna-se metafórica na linguagem visual das HQs. Inferimos que metáfora é uma manifestação concreta de algo abstrato ou representacional. Tempo é um recurso que gerencia a duração, mas também a intencionalidade por parte do autor, portanto, a impressão que se deseja gerar no leitor. Por exemplo, imaginemos uma cena em que se passa um encontro entre dois homens. De repente a cena se fecha na mão de um deles, que apanha uma arma e no quadro seguinte ele tira a arma do bolso. Só no próximo quadro, conclui o esperado disparo. Note que a ação toda poderia ter ocorrido em um quadrinho de visão geral: Figura 16 – Temporalidade A cena foi propositalmente prolongada, para dar um tom mais melancólico, calculista, de suspense. Se fosse executado rapidamente, não teria o mesmo efeito, mas provocaria até mesmo um efeito cômico na cena, que leva um teor de maior solenidade e suspense, tudo de acordo com o tempo que o fato leva para se desenvolver na sequência de quadros. Balões de fala, conforme Eisner (2010), são um recurso extremo que tenta captar algo etéreo (som) e torná-lo visível. Os balões, na quantidade e ordem em que são dispostos, auxiliam também no tempo e desenvolvimento da cena. Por exemplo, se mais de um balão for utilizado em uma cena, na qual caberia um único balão, ocorre um intervalo maior na fala da personagem. Além disso, a utilidade desse recurso está na ênfase e na intenção de certos discursos e situações. Por exemplo, para um pensamento utilizamos balões em forma de nuvem, para gritos, balões pontiagudos, por vezes balões garrafais também enfatizam sons altos, ou palavras de destaque. 84 Unidade II Quadrinho é talvez o recurso mais útil no auxílio da compreensão do tempo e da sucessão dos eventos e como eles se desenrolam. Se temos uma sequência de vários quadros seguidos da evolução de uma mesma cena, colocados de forma paralela, vemos uma cena mais lenta, pois acompanhamos todas as fases do processo; já em dois quadros de cenas diferentes, vemos cenas rápidas, pois não acompanhamos a transição. O cérebro lê, ocidentalmente, de cima para baixo e da esquerda para a direita. É importante compreender essa ordem, para que se possa compreender o fluxo das ações; porém, em um mangá, a ordem própria dele causa uma percepção totalmente oposta. Além de ser usado como recurso de tempo, o quadrinho é utilizado como foco de câmera, que pode mostrar uma figura inteira, mostrar apenas uma parte ou fechar o foco para um close-up. Por fim o quadro também pode ajudar a estruturar a cena e dar ideia de profundidade, espaço e distância, além de mostrar determinado ponto de vista, expressando assim dimensões sólidas como a profundidade através da perspectiva. Anatomia expressiva é outro recurso útil na HQ. Apenas seu uso possibilita contar toda uma história de forma clara e compreensível, como aconteceria no cinema mudo. A expressão corporal está presente dos pés à cabeça e, empregada da forma correta, dispensa descrições. O rosto, como parte isolada, é a parte mais expressiva em todo o corpo. A variedade de interpretações e expressões possíveis é vasta. O rosto trabalha com um mesmo texto de forma variada denotando claramente diferentes sentidos para uma mesma frase somente alterando a expressão facial. Exemplo de aplicação Exemplo 1 Perfil do leitor: • Você aprecia a leitura de HQ? • Conhece HQ em forma de livro destinado a adulto? • O que você acha de adaptações de obras literárias em HQ? Exemplo 2 A charge é um gênero textual que faz diálogo com um fato mais noticiado da semana. Acompanhe um único fato noticiado em diversas mídias durante uma semana e depois verifique uma charge publicada na mesma semana, cuja temática seja justamente esse fato. Que parte do fato está na charge? Qual é o ponto de vista do autor da charge sobre o fato? Que recursos de estilo (linguagem) foram usados na charge? 85 GÊNEROS TEXTUAIS Exemplo 3 Uma das obras do notório Machado de Assis foi recriada em HQ. Relacione o título do texto com a página da HQ e responda: que recursos da HQ foram usados? Título: Aqueles braços Página: Figura 17 – Uma página da HQ Aqueles braços 6 CRONOTOPO: TEMPO-ESPAÇO COMO LEGITIMIDADE SÓCIO-HISTÓRICA DO GÊNERO Enraizados e legitimados pela sócio-história e definidos pelo tempo e pelo espaço social, os gêneros tornam-se, na concepção bakhtiniana, campos de valores e de representação do mundo. 86 Unidade II Assim, uma das teorias-chave de Bakhtin é o conceito de cronotopo, pois o “homem organiza o universo de suas experiências através de representações do mundo criadas a partir de categorias de tempo e espaço, que são inseparáveis” (FIORIN, 2005, p. 134). Bakhtin apresenta sua visão sobre a característica das relações espaciais e temporais na narrativa, teoria considerada por especialistas como um novo paradigma devido à inovação conceitual introduzida. Afinal: Tal atenção era certamente adequada, dado que a inovação conceitual introduzida por Bakhtin com sua visão idiossincrática das relações espaciais e temporais na narrativa quase poderia ser considerada um novo paradigma, embora menor, visto que seu potencial explanatório ainda não se esgotou totalmente. Inicialmente, visto como um instrumento analítico para estabelecer divisões de gênero na história do romance ocidental, a análise cronotópica foi recentemente proposta como ferramenta conceitual para enriquecer diversos campos, como a narratológica (Scholz, 2003, p. 160-165), a teoria da recepção (Collington, 2006, p. 91-98), as abordagens cognitivas da literatura (Keunen, 2000a) e até estudos dos gêneros (Pearce, 1994, p. 173-195) (BEMONG et al., 2015, p. 16.). Tempo e espaço narrativos são duas categorias que constituem uma unidade fundamental, exatamente como na percepção humana da realidade cotidiana. Sendo a conexão intrínseca das relações temporais e espaciais, conhecida pelo termo “cronotopo”, equivalente à construção de mundo presente em todo texto narrativo, agregando combinações coerentes de indicadores espaciais e temporais. Renfrew trata do aspecto da encarnação e da corporeidade na definição bakhtiniana do cronotopo: Surge, assim, como a tentativa mais extensa, em razão do material literário existente, de classificar os meios de finalização da imagem externa do sujeito humano, inseparável, mas irredutível ao corpo que ocupa espaço e se move no tempo. O princípio dessa classificação será a capacidade de os valores temporais e espaciais de qualquer ambiente fictício facilitarem a“posse” do evento de ser, permitirem a representação de uma imagem viva, em oposição àquela que pode ser descrita como “abstrata”, “fixa” ou “monológica” (apud BEMONG et al., 2015, p. 17-18). Simplificando, os textos narrativos não são apenas compostos de uma sequência de eventos diegéticos e de atos de fala, mas também da construção de um mundo ficcional particular, ou cronotopo. Bakhtin concebe tempo e espaço narrativos, remontando à ideia de que tempo e espaço são categorias em que os seres humanos percebem e estruturam o mundo circundante. Essas categorias, na perspectiva de Bakhtin, não constituem abstrações transcendentais, mas sim formas da realidade mais imediata, pois o autor buscava apenas evidências históricas da atividade perceptual manifestada em textos literários. Bakhtin observa que o mundo físico e o mundo ficcional compartilham uma noção de tempo e espaço interligados, porque, em ambos os mundos, a cronologia não é separada dos acontecimentos e vice-versa. 87 GÊNEROS TEXTUAIS Para Bakhtin, segundo Bemong et al. (2015), o que é verdadeiro das geometrias do espaço também é verdadeiro dos cronotopos, e diferentes aspectos ou sequências do universo não podem supostamente operar com o mesmo cronotopo. Um exemplo representativo do uso do cronotopo na história literária seriam os diferentes aspectos da experiência humana, pela alternância das estações (em relação à ciclicidade) e, até mesmo, em oposição à descrição de verdadeiros eventos históricos (historicidade), e como estes assumem forma narrativa. Em suma, cronotopo expressa a inseparabilidade do espaço e do tempo e seu significado tem quatro níveis diferentes, sendo eles: • tem significado na geração da narrativa do enredo, da trama; • tem significado representacional; • fornece base para distinguir gêneros; • tem significado semântico. Inicialmente, o conceito de cronotopo foi formado como um apoio à teoria de gênero, já que este contribui para a tradição teórica e evidencia a funcionalidade cognitiva dos gêneros literários. Os textos literários possuem estruturas narrativas que servem e devem ser entendidas como meios de armazenagem e transmissão de conhecimento humano. Os cronotopos são equiparados à visão de mundo de um texto, uma vez que correspondem a determinados gêneros e representam visões particulares de mundo. As considerações a respeito do significado da expressão “visão de mundo” variam do mais abstrato ao concreto. A história da prosa de ficção torna-se um laboratório em que a humanidade realiza experimentos com combinações de tempo e espaço, adequando-se ao modelo exterior de realidade e evidenciando existência de padrões cognitivos supostamente universais baseados na alternância entre regularidade e contingência. Os cronotopos são culturalmente sancionados, ordenando princípios capazes de gerar estruturas de enredo típicas. Contrariando a preferência arbitrária da cronologia linear, característica das teorias formalistas-estruturalistas da narrativa, a abordagem bakhtiniana da narrativa leva em consideração a determinação histórica dos princípios geradores de enredo. É o tempo-espaço que estabelece a distinção primordial entre o eu e o outro, definidos ao invocar em termos kantianos dado/criado. Para Bakhtin (2000, p. 147): “Minhas fronteiras espaciais e temporais não me são dadas, mas o outro é completamente dado. Adentro o mundo espacial, mas o outro já o está habitando. A diferença entre o espaço e o tempo do eu e do outro”. Para exemplificar esse fato, assumiremos que o “Eu” e o “outro” são os dois polos de todo diálogo. Quando você e eu nos encaramos, vejo coisas atrás de você que você não vê, e você vê coisas atrás de mim que não consigo ver. As coisas que não posso ver não são uma experiência externa como tal, elas estão simplesmente do lado de fora, “elas transgridem” os limites do que está à minha vista em dado momento. No caso de trocarmos de posição, aquilo que a mim era invisível na posição anterior 88 Unidade II torna-se visível, ocorrendo a mesma coisa com o outro, quando faz o mesmo. Transgrediência é o nome do limite que, através da interação ou da mudança de lugar, pode ser superada, pode ser transgredida na experiência. Em síntese: tempo e espaço no cronotopo nunca estão separados de um tempo particular ou específico. Bakhtin atribui prioridade ao tempo-espaço ao definir um conceito tão fundamental como forma da mais imediata realidade. O poder do tempo-espaço é definitivo sobre os seres humanos, pois cada inserção na esfera do sentido é realizada apenas por meio do cronotopo. Bakhtin introduz o cronotopo para nomear a “imediatidade” existencial de momentos e lugares transitórios, portanto, o cronotopo é um instrumento para ajustar resultados experimentais à existência, considerar fatores externos ou permitir a comparação com outros dados. Por meio do cronotopo, Bakhtin revela que o núcleo da estética literária avança a noção de imaginação, considerando ser esta o fundamento na experiência estética. Na visão de Bakhtin, um cronotopo é a unidade elementar da imaginação literária e só se torna um cronotopo quando demonstra algo, quando traz à tona uma imagem que pode ser observada pelos olhos da mente. Bemong et al. (2015) sugerem que, quando Bakhtin discute o tempo real, pretende um tempo de vir a ser, uma antecipação contínua de eventos futuros com base nos elementos presentes na memória. Ele escreve que o tempo real é o experimentado em uma “totalidade emergente, um evento”: A habilidade de ver o tempo, de ler o tempo, na totalidade espacial do mundo e, por outro lado, de perceber o preenchimento do espaço não como um pano de fundo imóvel, tendo em conta de uma vez por todas que é completo, porém como uma totalidade emergente, um evento – essa é a habilidade de ler em todos os sinais que mostram o tempo em seu curso, iniciando com natureza e terminando com costumes e ideias humanas (até conceitos abstratos) (BAKHTIN, 2000, p. 25). Em sua obra, Bakhtin normalmente se refere ao tempo vivido como real, histórico ou horizontal. Para ele, a mente abstrata não exerce influência sobre experiências temporais. No tempo histórico, a experiência do indivíduo é fruto de cada nova informação trazida pela história, o passado é integrado ao atual momento de consciência. Ele admite que um passado histórico afete o presente e, juntos, gerem o futuro. O passado produz, em conjunção com o presente, uma direção particular para o futuro, e, em certa medida, predetermina o futuro. Sendo assim, o primeiro ativa uma plenitude de tempo. Bakhtin acredita que conceitos abstratos de tempo criam a ilusão de que o passado sempre determina o presente – sendo que a mente abstrata reconstrói o presente a partir de um conhecimento do passado, estabelecendo relações causais entre todas possibilidades e condições existentes no presente. Já a experiência real seria o oposto: é o presente que redefine o passado com dados experienciais que podem ser reinterpretados. Sendo o momento existente uma reorganização virtual do passado, o tempo abstrato e o tempo concreto estão inter-relacionados, da mesma forma que necessidade e liberdade. 89 GÊNEROS TEXTUAIS Para Bakhtin, a formação do homem está concluída no tempo real histórico, com toda sua necessidade, sua plenitude, seu futuro e sua natureza profundamente cronotópica. Uma vez que concepções de tempo são o eixo organizador desse cronotopo, o espaço deixa de ser um mero pano de fundo e torna-se identificável numa era histórica particular, até um ponto em que presente, passado e futuro estejam conectados por um genuíno processo de crescimento, o que significa que mudanças não sucedem de maneiras arbitrária (não é simplesmente qualquer coisa que pode acontecer). Quando tratamos dessa construção de mundo particular utilizamos o assim chamado “cronotopo documentário”. O termo “cronotopo documentário” aparece pela primeira vez em 1997, numa conferência de produtores de documentárioem Chicago, em que Michael Chanan a introduziu para atribuir um novo e bakhtiniano embasamento a certas observações sobre as diferenças e semelhanças entre documentário e espaço ficcional na tela. Num contexto literário mais restrito, o termo foi cunhado autonomamente por Bart Keunen numa monografia a respeito da representação de tempo e espaço em romances ambientados em metrópoles, em que o termo indica a construção de mundo típica do realismo do século XIX. O aspecto de cronotopo documentário reside particularmente no fato de que, dentro do paradigma realista, o mundo ficcional é concebido para ser percebido como uma construção imediatamente reconhecível ao leitor por sua semelhança próxima, ou seja, “documentária” com o mundo extraliterário. Nesse caso, a estrutura narrativa permite descrições extensas de cenas cotidianas. Assumem-se que esses pressupostos descritivos se baseiam em todos os tipos de “documentos” culturais (por exemplo: políticos, econômicos, científicos, religiosos) e que estes funcionem como referências simbólicas dos processos históricos coletivos. Segundo Bemong et al. (2015), o termo parece ampliar o alcance da noção de ficção para não ficção. Logo, o cronotopo documentário pode estar, de fato, “em ação” em textos ficcionais e não ficcionais, como os historiográficos, por exemplo. Além disso, os cronotopos estão relacionados com um número diverso de questões-chave bakhtinianas como o tempo-espaço e a imagem de homem no romance, a configuração de “realidade” dentro do universo de um texto, a relação entre os personagens e o mundo diegético. Os cronotopos definem similaridades no que se refere ao tempo histórico, ao espaço social, a um personagem individual e à ação moral. Assim, eles desempenham no estudo das relações literárias um papel fundamental, principalmente em possiblidades de futuras teorias. Exemplo de aplicação Exemplo 1 Faça um levantamento de cartazes de filmes de duas épocas diferentes, por exemplo, cartazes da década de 1960 e da década de 2010. Esse levantamento pode ser feito pela internet e os cartazes coletados precisam ser separados de acordo com a época. Na visualização dos cartazes de cada época, aplique a noção de cronotopo em sua leitura e responda: que tempo-espaço é construído em cada conjunto de cartazes? Que visão de mundo o espaçotemporal de cada conjunto nos traz? 90 Unidade II Exemplo 2 Podemos relacionar o conceito de cronotopo às adaptações literárias. Uma das estratégias de adaptação é atualizar a fonte, situando-a em um ambiente mais contemporâneo para tornar a obra adaptada mais acessível ao leitor. Selecione uma obra literária (nacional ou internacional) e uma adaptação também escrita (e não cinematográfica, por exemplo) dessa mesma obra. Analise: a) as mudanças diegéticas na obra adaptada. b) as perdas de sentido da obra fonte na adaptação. 6.1 Aplicação do conceito de cronotopo na literatura A autobiografia é um gênero textual que faz parte da esfera discursiva da literatura. Chamada também de literatura confessional ou intimista, esse gênero pode ser descrito como “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, pondo ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade” (LEJEUNE,1994, p. 50). As obras confessionais são normalmente separadas do campo de estudo da literatura por não serem consideradas fictícias, porém não existe literatura sem elementos da realidade. Assim, o gênero autobiografia não retrata fielmente qualquer realidade para a página escrita, portanto, é como qualquer discurso entrecortado de ficção. Partindo do princípio de que o processo de relato (seja ele por meio da autobiografia, seja por meio das memórias, seja por meio dos diários) envolve inevitavelmente uma parcela de criação, podemos perceber uma aproximação da autobiografia com a autobiografia estética, no que se refere ao fator criativo. Na primeira metade do século XX, escritores como Anaïs Nin, Proust, Joyce e Virginia Woolf inovaram ao transformarem fatos de suas vidas pessoais em ficção, tornando o que poderia ter sido uma simples ocorrência do cotidiano em um grande evento na ficção. Nalbantian (1997) afirma que é nesse contexto, início do século XX, que emergem as autobiografias estéticas, assim intituladas por mascararem fatos pessoais em relações poéticas, como uma representação do indivíduo, e não da personalidade. O uso das memórias no desenvolvimento da ficção é essencial, pois, ao recriarem cenas de suas vidas, os autores manipulam a experiência, originando o processo criativo. As obras de autobiografia estética, portanto, não contêm somente as experiências do autor, mas também sua visão e interpretação de tais experiências e, até mesmo, a representação delas de forma idealizada. O papel da ficção autobiográfica, ou autobiografia estética, é intrigar o leitor quanto à veracidade dos fatos, por meio de um jogo de revelar e esconder. Porém, só percebe essa característica o leitor que conhece algo a respeito da biografia do autor. Característica da ficção, o fingir, acaba por envolver, gratificar e transformar, e não deve ser confundido com o falso, que não produziria tal efeito, pois criaria um distanciamento entre leitor e autor. 91 GÊNEROS TEXTUAIS O tempo, na ficção autobiográfica, apresenta-se de forma subjetiva e não é necessariamente cronológico. Existem apenas alguns lembretes de cronologia para dar contornos de realidade e autenticidade. No tempo subjetivo, ocorrem as epifanias, que muitas vezes são desencadeadas por meio de objetos. A experiência, o conteúdo da autobiografia estética, sempre se sobressai aos detalhes da narrativa e, assim, não a limita exageradamente, evitando o distanciamento do leitor em relação aos acontecimentos. Nesse sentido, Anaïs Nin, em sua ficção, define o verdadeiro método autobiográfico estético. A autora cria símbolos poéticos para transformar fatos da vida em metáforas e personalidades míticas. Transplanta as externalidades de sua vida em um mundo mais rico do interior e as transfigura, existindo um constante jogo de aproximação e distanciamento dos fatos no seu processo criativo. Resumindo seu processo criativo, Nalbantian (1997) afirma que Anaïs escrevia por meio de quatro níveis de expressão: • ajudava a criar fatos cintilantes; • escrevia de forma transparente, fiel aos fatos, nos diários originais; • editava os diários para publicação, modificando fatos e pessoas; • transportava as armadilhas da vida para a permanência de sua arte. Entre as características do trabalho de Nin, estão a multifacetação do eu, o uso agudo de metáforas de imagens concretas, a proliferação de metáfora em metonímia e a simbolização variada da obsessão. Parece-nos que Nin tentava criar uma linguagem física e sensorial, como expressão de ritmo, especialmente de desejo, como pode ser visto na descrição da relação sexual entre pai e filha (do conto Inverno de artifício). A orquestra toda agora em uníssono, por um instante, apaixonada, apaixonada pela harpa cantando deus e os violinos sacudindo os cabelos e ela passando o arco do violino delicadamente entre as pernas, extraindo música de seu corpo, seu corpo espumando, a harpa cantando deus, o tambor batendo (NIN, 1991, p. 84). Além da tentativa de incorporar o reino sensorial à linguagem, Nin buscava uma linguagem ideal, de prosa poética, sintética, que conectasse o consciente e o inconsciente, “escrevendo o corpo”, ao trazer ritmo e textura para a linguagem. A linguagem, por sua vez, era vista por Nin como algo maleável, com que se podia trabalhar, como argila ou tinta, em vez de algo natural, invisível, familiar, tendo como único intuito a comunicação diária. Tal visão possivelmente está relacionada ao processo de imigração que a autora viveu durante sua vida. 92 Unidade II Outra característica importante da escrita de Anaïs Nin é a presença da forma feminina, pois a autora procurava mantê-la, enxergandoa criação artística como a criação de filhos: pessoal, natural, afastando-se da arte como artificial e abstrata (a rejeição masculina do humano, sua escrita impessoal). No texto Inverno de artifício, a personagem Stella tem, ao mesmo tempo, 11 e 31 anos. As cenas resgatam o período de espera pelo pai e o processo leva ao desencanto, à morte da necessidade de um pai, que é descrito como envolto em vidro, o que evidencia a falha na comunicação, as barreiras entre pai e filha e a ausência de calor humano, presente no “inverno” do título. Quando o pai é descartado, outra imagem dolorosa é imposta: a de um aborto feito pela autora, como o da própria personagem. A criança em Stella morre. O pai de Anaïs Nin é fundamental no desenvolvimento de sua vida e de sua arte. Sua presença nas atitudes da autora, em seus diários e em sua ficção, como sugere Nalbantian (1997) ao afirmar que a obsessão de Anaïs por seu pai a persegue em seu trabalho e essa figura reencarna em diversos personagens, como se o pai tivesse mil vidas. Na ficção, a personagem Stella descobre que seu amor pelo pai afeta os outros amores e destrói seus relacionamentos. A formação da personagem Stella, de Inverno de artifício, traça um paralelo com a experiência da própria autora, relatada em seus diários, especialmente nas versões não editadas. É importante ressaltar que, apesar de parecer óbvio o paralelo entre o conto Inverno de artifício e os diários, o conto teve publicação muito anterior ao primeiro diário editado. Saiba mais Para conhecer as obras e os diários de Anaïs Nin citados aqui, você pode se orientar com as indicações de leitura a seguir. NIN, A. A casa do incesto e outras histórias. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. NIN, A. Linotte: the early diary of Anaïs Nin, 1914-1920. New York: Harcourt Brace, 1978. NIN, A. Incest: the unexpurgated diary of Anaïs Nin, 1932-1934. New York: Harcourt Brace, 1992. NIN, A. Fire: the unexpurgated diary of Anaïs Nin, 1934-1937. New York: Harcourt Brace, 1995. NIN, A. Nearer the moon: the unexpurgated diary of Anaïs Nin, 1937-1939. London: Peter Owen, 1996. 93 GÊNEROS TEXTUAIS A personagem principal do romance é Stella, uma atriz em busca de si mesma, de um amor que a complete e do desfecho de seu grande trauma: o abandono do pai. Característica da autobiografia estética de Anaïs Nin, aparece a figura da atriz, mulher multifacetada, desempenhando diversos papéis, ou seja, uma forma que a autora encontra de revelar e esconder a verdade, explorando a multiplicidade das possibilidades. Como atriz, ao interpretar diversos papéis, Stella se confunde na percepção de seu “eu” e o procura durante sua história. A figura da mulher procurando pela sua essência e por um maior entendimento de sua vida é característica do movimento feminista que consagrou Anaïs Nin. Ao descrever Stella, o narrador diz: Sentadas perto dela, não a viam; adoravam, atentas, a mulher da tela. Porque ela estava dando a muitos o que a maioria só dá ao amado (NIN, 1991, p. 12). Em Incest, Anaïs diz: I am laughing sadly at the tricks I have had to play on life, the deceits, the lies – to find all its treasures and hold them after so many, so many years of famine. What hunger, oh, my God, what voraciousness! I was cheated once of my Father´s love, and I do not want to be cheated again. I had always so much to give! Nobody would want all I have exclusively for himself because it is too much to answer. I have a desire to travel all through the world fulfilling people´s dreams – magically, carefully, giving to them the minute and tenderly passionate attentiveness I give to my loves in daily life (NIN, 1992, p. 100). A tradução é nossa: Estou rindo tristemente dos truques que fiz na vida, dos enganos, das mentiras – para encontrar todos os seus tesouros e guardá-los depois de tantos, tantos anos de fome. Que fome, oh, meu Deus, que voracidade! Fui enganada uma vez pelo amor de meu Pai e não quero ser enganada de novo. Sempre tive muito para dar! Ninguém iria querer tudo o que tenho exclusivamente para si porque é demais para responder. Tenho o desejo de viajar por todo o mundo realizando os sonhos das pessoas – magicamente, com cuidado, dando-lhes a atenção minuciosa e ternamente apaixonada que dedico aos meus amores no dia a dia. Por meio dos trechos anteriores, percebemos a ausência do “eu” de Stella, pois as pessoas se atraem pelo que ela representa, pelo papel que desempenha em determinado momento, pela ilusão de amor dada a todos ao seu redor, mas são incapazes de enxergar a mulher real. 94 Unidade II A similaridade entre Stella e Anaïs encontra-se na abundância de amor existente em ambas, explicada biograficamente pela privação do pai de Anaïs, na infância, quando ela tinha tanto amor para dar. A dor causada pela perda na infância influencia a vida adulta da autora, assim como a da personagem, e ambas passam a cuidar excessivamente de todos ao seu redor, sendo quase impossível para elas se separarem de alguém, como vemos em Inverno de artifício. E, além disso, ela também tratava o mundo como se fosse uma criança aflita, abandonada. Nunca punha fim a uma amizade por iniciativa própria. Nunca abandonava ninguém; passava a vida curando os outros desse medo sempre que distinguia sua sombra, com pena de todo mundo, e dando a ilusão de fidelidade, de durabilidade, de solidez. Era incapaz de brigar, de impor limites, cortar laços, romper relações, interromper uma correspondência (NIN, 1991, p. 61). Em Incest: I must always make myself believe I am making a sacrifice for somebody. I got cured to make Allendy happy. I don´t die when I want to because I won’t hurt Hugo. I don’t abandon Hugo for the same reason. Human reasons alone restrain me. I do not even believe the things I want are wrong (devoting myself to Henry) – I know they are not wrong. But I guide myself by the pain I may cause others (NIN, 1992, p. 113). Tradução é nossa: Devo sempre me convencer de que estou fazendo um sacrifício por alguém. Eu fui curada para deixar Allendy feliz. Não morro quando quero porque não vou machucar o Hugo. Não abandono o Hugo pelo mesmo motivo. Razões humanas sozinhas me restringem. Eu nem acredito que as coisas que eu quero estão erradas (me dedicar a Henry) – eu sei que elas não estão erradas. Mas eu me guio pela dor que posso causar aos outros. Ainda em Incest: Calm. Joy. Contentment by understanding. […] I feel the all-mother – womb and earth with enormous protective wings! Passion and motherhood fused – the mother as night, covering the world, blanketing it, lulling its pains. And as the night, I am lonely again – active, independent, restless. Hugo sleeps on his security, Henry works in the hammock of my passion; Allendy sleeps on the down of dream marriages; Eduardo sleeps on the warmth of my letter. […] I am the night who watches them through curtained windows with very wide-open eyes (NIN, 1992, p. 109). 95 GÊNEROS TEXTUAIS Tradução é nossa: Calma. Alegria. Contentamento pela compreensão. […] Sinto a mãe – ventre e terra com enormes asas protetoras! Paixão e maternidade fundidas – a mãe como noite, cobrindo o mundo, cobrindo-o, acalmando suas dores. E como a noite, estou sozinha novamente – ativa, independente, inquieta. Hugo dorme na sua segurança, Henry trabalha na rede da minha paixão; Allendy dorme sobre os casamentos dos sonhos; Eduardo dorme com o calor da minha carta. [...] Eu sou a noite que os observa pelas cortinas com os olhos bem abertos. Em Moon: It struck me again, as several times before, that my individual suffering should be merged into the other, that just as when I was a girl and laid aside my personal introspective suffering at the loss of my Father to take care of my mother and my brothers, and lost myself in serving others. Or that, just as I identified once with the war, and with war-torn France, I should again adopt the world’s trouble in replacement of my own (NIN, 1996,p. 73). A tradução do trecho é nossa: Ocorreu-me novamente, como várias vezes antes, que meu sofrimento individual deveria se fundir ao outro, assim como quando eu era uma menina e deixei de lado meu sofrimento pessoal introspectivo pela perda de meu pai para cuidar de minha mãe e de meus irmãos, e me perdi servindo aos outros. Ou que, assim como me identifiquei uma vez com a guerra, e com a França dilacerada pela guerra, deveria novamente adotar os problemas do mundo em substituição aos meus. Os trechos anteriores mostram as características que guiaram a vida amorosa de Anaïs Nin, as quais são refletidas na personagem Stella. Tanto a autora quanto a personagem buscam compensar a dor provocada pela partida do pai ao tentar realizar ao máximo o desejo do próximo e evitando separações. Porém, ao agirem dessa forma, usam de mentiras para não causar sofrimento e acabam por exigir que os outros retribuam seu amor na mesma proporção, o que pode causar decepções. Em Inverno de artifício: Num cenário de opulência, um cenário de elegância tal que exigira o uso de um dos seus chapéus de museu, o da pena real, vieram eles de dois mundos opostos: Stella, consumida por uma fome de amor, e Bruno, pelo vazio de sua vida. 96 Unidade II Quando Stella surgiu entre as mulheres, o que impressionou Bruno foi ver, pela primeira vez, uma mulher com alma (NIN, 1991, p. 16). Em Incest: […] feel that I do not want to go on loving Henry more actively than he loves me (having realized that nobody will ever love me in that overabundant, overexpressive, overthoughtful, overhuman way I love people), and so I will wait for him (NIN, 1992, p. 56). Em tradução nossa, o trecho é: […] sinto que não quero continuar amando Henry mais ativamente do que ele me ama (tendo percebido que ninguém jamais me amará daquele jeito superabundante, superexpressivo, excessivamente pensativo e super-humano que eu amo as pessoas), e então irei esperar por ele. Ainda em Incest: I believe if I have a genius it is a genius for loving. This journal could be a manual of love, passionate love, fleshly love, understanding love, pitying, maternal, intellectual, artistic, creative, non human (NIN, 1992, p. 178). O trecho traduzido por nós é: Eu acredito que, se eu tenho um gênio, é um gênio para amar. Este diário pode ser um manual de amor, amor apaixonado, amor carnal, amor compreensivo, compassivo, maternal, intelectual, artístico, criativo, não humano. Como podemos perceber, por meio do trecho anterior, existe criatividade no diário, pois a autora o compara a um manual que ensinaria sobre todos os tipos de amores, inclusive o criativo. Aparece, nesse momento, o primeiro confronto amoroso de Stella. Assim como acontece com Anaïs, o amor recebido nunca o é em proporção ao dado, portanto ambas as mulheres se sentem incompletas e continuam a esperar pelo relacionamento ideal, acumulando amores pelo caminho. Na figura de Bruno, encontramos semelhança com a figura de Henry Miller, porém, em outros momentos, Bruno adquire características de outros homens com quem Anaïs se relacionou, tornando-se, portanto, um personagem composto. Observação Henry Miller foi um célebre escritor e Anaïs Nin manteve um relacionamento amoroso com ele durante muito tempo. 97 GÊNEROS TEXTUAIS Com medo do abandono, enraizado no drama da infância, a mulher, sendo ela a autora ou a personagem, procura possuir o homem completamente, exigindo amor extremo e provas desse amor, como fica claro nos trechos a seguir. Em Inverno de artifício: Ter tocado nele o ponto de fogo não bastava. Ser seu sonho secreto, sua paixão secreta. Ela tinha de devastar e conquistar o absoluto, em nome do amor (NIN, 1991, p. 22). Em Incest: Allendy, knowing that this is exactly what I would not accept – that to satisfy myself I had to possess the man body and soul – that I would not listen to any reason, compromise, deficiency, neurosis which made fusion impossible – that my possessiveness was tremendous in proportion to my fear of abandon – struggled to impose this realization in me so that I could at last rid myself of pain. It became clear to me how desperately I had sought to possess Allendy wholly, as a trophy, whereas what I want is a father, a friend (NIN, 1992, p. 105). O trecho anterior, traduzido por nós, fica assim: Allendy, sabendo que isso é exatamente o que eu não aceitaria – que, para me satisfazer, eu tinha que possuir o homem de corpo e alma – que eu não daria ouvidos a nenhuma razão, compromisso, deficiência, neurose que tornasse a fusão impossível – que minha possessividade era tremenda em proporção ao meu medo de abandono – lutei para impor essa percepção em mim para que eu pudesse finalmente me livrar da dor. Ficou claro para mim o quão desesperadamente eu havia procurado possuir Allendy inteiramente, como um troféu, enquanto o que eu quero é um pai, um amigo. Ainda em Incest: I know now I am driven to this impasse over and over again, and faced with the same outcome, the physical possession; and that I am interested not in the physical possession but in the game, as Don Juan was, the game, of seduction, of maddening, of possessing men not only physically but their souls, too (NIN, 1992, p. 185). 98 Unidade II A tradução, feita por nós, fica assim: Sei agora que sou impelida a este impasse repetidas vezes e confrontada com o mesmo resultado, a posse física; e que não estou interessada na posse física, mas no jogo, como Don Juan o estava, o jogo da sedução, do enlouquecimento, de possuir os homens não apenas fisicamente, mas também suas almas. Percebemos, nos trechos anteriores, algumas características da escrita de Nin, como a presença da metáfora: “ponto de fogo”, e a intertextualidade “Don Juan”, presente na obra devido ao grande interesse da autora nas artes e seu vasto conhecimento literário. Como ocorre na autobiografia estética, os fatos se aproximam e se distanciam da realidade e há a presença de personagens compostos. A seguir, veremos uma situação semelhante na obra e no diário, porém invertida. Em Inverno de artifício, Stella, que tem um caso com Bruno, homem casado, pede que ele passe a noite com ela, como uma prova de seu amor, o que seria difícil para ele fazer, por ter que dar satisfações à esposa. “Você não vai ficar a noite toda?” O desespero mudo, inarticulado, que continha essas poucas palavras. O grito inaudível, despercebido, sem registro, de solidão que se levanta dos seres humanos (NIN, 1991, p. 24). Em Incest, Anaïs escreve: Henry, Henry. I miss him. When he telephones me I dissolve in yearning. He has been sick. I can only see him on Sunday for a few hours. He says, “Can´t you stay for the evening? It has been a long time” – six days. It is the first time Henry asks, demands. Immediately I know I would take all risks to answer his demand (NIN, 1992, p. 88). A tradução nossa fica assim: Henry, Henry. Sinto falta dele. Quando ele me telefona, eu me desfaço de saudade. Ele está doente. Só posso vê-lo no domingo por algumas horas. Ele diz: “Você não pode ficar esta noite? Já faz muito tempo” – seis dias. É a primeira vez que Henry pergunta, exige. Imediatamente sei que assumiria todos os riscos para atender a sua demanda. Com base nos trechos, Bruno e Stella, interpretados como Henry e Anaïs, trocam de papel, pois é Henry quem pede para que Anaïs passe a noite com ele, mesmo que isso significasse arriscar seu casamento com Hugo. 99 GÊNEROS TEXTUAIS Observamos nesses trechos a presença de paradoxos como “desespero mudo” e “grito inaudível”, que representam a ausência de som por meio do que normalmente teria som, fazendo-nos perceber que o desespero e o grito acontecem no interior da personagem. Outra semelhança na formação da personagem é a falta de autoconfiança e a necessidade de provas de amor que sente a mulher, explícitas no trecho que segue. Em Inverno de artifício: A dúvida e o medo que acompanhavam essa questão a colocavam àparte, como algum deus de antigos rituais que não se curvasse, observando o acúmulo de provas, os fiéis a oferecerem comida, sangue e as próprias vidas. E ainda assim lá estava a dúvida, pois eram provas externas e nada provavam. Não podiam devolver-lhe sua fé (NIN, 1991, p. 24). Constatamos, ao observar o trecho, que existe uma primitividade de Stella em relação ao amor, o que resulta em carência e na necessidade de provas de amor. Em Incest, a autora relata: Allendy had been thinking that he had not enough to give me – that a woman like me needed absolutes – that he was imprisoned in his own life and not free to give me enough. But meanwhile, I, with my usual lack of confidence, was beginning to think he didn´t love me enough! […] At this moment I realized that I had wickedly enjoyed this very victory, defeating the analyst and disturbing the man – that I had wanted this, my gentle revenge on a man on whom I depend too greatly for my happiness! However, I never make a cruel use of my victory. I am so touched by Allendy’s vulnerability (NIN, 1992, p. 88). Esse trecho, traduzido por nós, fica assim: Allendy estava pensando que não tinha o suficiente para me dar – que uma mulher como eu precisava de absolutos – que ele estava preso em sua própria vida e não era livre para me dar o suficiente. Mas, enquanto isso, eu, com minha habitual falta de confiança, estava começando a achar que ele não me amava o suficiente! […] Naquele momento percebi que havia desfrutado perversamente dessa mesma vitória, derrotando o analista e perturbando o homem – que eu queria isso, minha gentil vingança contra um homem de quem dependo muito para minha felicidade! No entanto, nunca faço um uso cruel de minha vitória. Estou tão emocionada com a vulnerabilidade de Allendy. 100 Unidade II A falta de autoconfiança de Nin e de Stella tem origem na figura do pai, pois ambas sofreram humilhação por parte da figura paterna, na infância. A semelhança entre as duas se dá até mesmo na doença que tiveram, assim como a frase dita pelo pai e o que foi necessário para que se livrassem do trauma. Nos trechos a seguir, podemos perceber como a autora trabalha os sentidos na obra, ao explorar o visual, as cores, a textura e ao relacionar sabor e experiência. No relato de Stella, o pai a julga baseando-se na aparência, no estético, o que indica sua superficialidade. Em Inverno de artifício: O pai dissera uma vez que ela era feia. Dissera isso porque ela nascera cheia de vigor, com covinhas, rosada, transbordando de saúde e alegria. Mas, à idade de dois anos, quase morreu de febre. Perdeu o vigor de repente. Voltou à presença dele muito pálida e magra, e o esteta nele disse com frieza: “Como você está feia!”. Essa frase, ela jamais conseguiu esquecer. Levou toda uma vida para provar a si mesma o contrário. Toda uma vida para apagá-la. Foi preciso o amor de outros, a adoração dos pintores, para salvá-la de seus efeitos (NIN, 1991, p. 78). Em Linotte: When I was little, I heard papa say that I was ugly and the idea never left me (NIN, 1978, p. 414). Em tradução, o trecho fica assim: Quando eu era pequena, ouvi papai dizer que eu era feia e a ideia nunca mais me abandonou. Em Fire: The story I presented to my Father about the posing, and to Henry, was not devoid of color or incident, yet it has remained without flavor. It was not unimportant in the chain of my life, since it was my first confrontation with the world. It was the period when I discovered I was not ugly, a very important moment for a woman (NIN, 1995, p. 144). Em tradução nossa, o trecho é: A história que apresentei a meu pai sobre a pose, e a Henry, não era desprovida de cor ou incidente, mas permaneceu sem sabor. Não foi sem importância na cadeia da minha vida, pois foi o meu primeiro confronto com o mundo. 101 GÊNEROS TEXTUAIS Foi o período em que descobri que não era feia, um momento muito importante para uma mulher. Como notamos, a figura paterna é a grande influência da mulher retratada na obra e da mulher que a retratou. Em Inverno de artifício, comparando o sentimento de Stella em relação à vida ao de seu pai e a oposição entre suas personalidades, o narrador afirma: O desejo fundamental dele era escapar da dor; o dela, confrontar tudo na vida (NIN, 1991, p. 89). Em Incest, por sua vez, Anaïs indica como a perda do pai a fez buscar a vida, uma vida vitoriosa, perfeita. Pode-se perceber no trecho a seguir um choque de imagens: o esforço, o desespero, a ansiedade, o terror e a perda que resultam em ascensão, criações e amores. My life has been one long train, one herculean effort and struggle to rise, to surpass in everything, to make myself a great character, to create, to perfect, to develop – a desperate and anxious ascension to efface and destroy a haunting insecurity about my own value. Always aiming higher, accumulating loves to compensate for the initial shock and terror of my first loss. Loves, books, creations, ascensions! (NIN, 1992, p. 153). Em tradução: Minha vida tem sido um longo trem, um esforço hercúleo e luta para ascender, superar em tudo, para me tornar um grande personagem, para criar, aperfeiçoar, desenvolver – uma ascensão desesperada e ansiosa para apagar e destruir uma insegurança obsessiva sobre meu próprio valor. Sempre mirando mais alto, acumulando amores para compensar o choque inicial e o terror da minha primeira perda. Amores, livros, criações, ascensões! A última frase desse trecho resume a própria vida da autora, o que lhe era importante e suas conquistas. Conforme a concepção de cronotopo, o tempo e o espaço narrativos são categorias que constituem uma unidade fundamental exatamente como na percepção da visão de mundo de um indivíduo e seu cotidiano. Assim como nos textos biográficos de Nin, o eu que fala constrói um mundo narrativo, em que os indicadores temporais e espaciais colaboram na imagem externa do sujeito e reconhecem essa imagem como inseparável e irredutível ao indivíduo que ocupa espaço e se move no tempo. Como gênero textual autobiografia, a autora em seu tempo de criação faz uso do cronotopo, pois o acontecimento do ser é uma tarefa e este estaria agindo como uma ferramenta para sua realização através das sutilezas do tempo-espaço que os estabelecem. É importante ressaltar que o tempo e o espaço são concebidos como cronotopo e eles nunca estão separados de um tempo particular ou especifico. 102 Unidade II Bakhtin introduz o cronotopo para nomear a “imediatidade” existencial de momentos e lugares transitórios, portanto, o cronotopo também serve como um instrumento para ajustar resultados experimentais a existência, considerar fatores externos e permitir sua comparação com outros dados. Em nosso entendimento, essa teoria bakhtiniana faz revelar o núcleo da estética literária e avança a noção de imaginação, considerando ser esta o fundamento na experiência estética, em que o cronotopo é a unidade elementar da imaginação literária. Estando a formação do homem concluída no tempo histórico, com toda sua necessidade, plenitude, futuro e sua natureza cronotópica, em que a concepção de tempo é o eixo organizador desse cronotopo, tornando o espaço identificável em uma era histórica particular, até um ponto que ambos estejam conectados. Para tratar dessa construção de mundo particular onde presente, passado e futuro se conectam, utilizaríamos um tipo específico de cronotopo, o cronotopo documentário, porém seu principal aspecto reside particularmente no intrínseco do paradigma realista e o mundo ficcional, sendo concebido para ser percebido como uma construção imediatamente reconhecível ao leitor por sua semelhança com o mundo extraliterário. Afinal, esse processo é baseado na visão de mundo da autora e também do leitor, definindo similaridades no que se refere ao tempo histórico e ao espaço social de um personagem individual ou da ação moral subliminarmente contida na obra literária. Exemplo de aplicação Exemplo1 Você já considerou escrever (ou escreve) um diário, seja pelo suporte convencional, seja pelo digital? Você gosta de ler autobiografias? Se sim, qual obra foi mais apreciada por você? Exemplo 2 O que você percebeu sobre a constituição tempo-espaço no texto autobiográfico? Discuta sobre a diferença que passa a existir entre a marcação do tempo-espaço dos fatos em si narrados em uma autobiografia e a marcação do tempo-espaço do autor ao escrever sobre tais fatos. 103 GÊNEROS TEXTUAIS Resumo Dois aspectos importantes sobre gênero textual são: a noção de hipergênero e de cronotopo. O hipergênero é um termo que serve para explicar a presença de vários gêneros em um quadro comunicativo; por exemplo, o hipergênero história em quadrinho abrange os gêneros tirinha, charge, cartum, mangá, que têm funções sociais e comunicativas diferentes entre si, mas que fazem parte da linguagem visual quadrinista. Outro aspecto é o cronotopo, que significa a constituição de um gênero com base no tipo narrativo, cujos tempo e espaço não são meramente figurativos. O tempo e o espaço são extremamente relevantes, porque constroem na narrativa uma visão de mundo, um posicionamento do “eu” do texto nesse mundo e suas relações com os outros. Em exemplo, o gênero autobiografia é apresentada e, por meio dele, percebemos a diferença entre o cronotopo da narrativa em si, ou seja, de como os acontecimentos sofrem influência do tempo e do espaço em que eles ocorrem, e o cronotopo da produção do texto, uma vez que o autor se distancia dos acontecimentos originais e sua visão de mundo não é a mesma. Exercícios Questão 1. Leia os quadrinhos e o trecho do livro Rita Lee – uma autobiografia. Figura 18 Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/3621/calvin-e-seus-amigos. Acesso em: 29 ago. 2020. 104 Unidade II “Férias Mergulhados na estrada, Rob e eu perdemos algumas gracinhas dos meninos: tipo primeiro dentinho, primeiro passinho, primeiro ‘mamãpapá’. Doía no coração. Quando Beto estava com cinco anos, Juca com três e Tui com um, tentamos carregá-los numa turnê junto com Balú. Misturar filhos à loucura que rolava em shows não era lá muito saudável, se é que me entendem. Para compensar nossa ausência física enquanto estavam em aula, os destinos de nós cinco nas férias eram sagrados: São Paulo–Manaus, Manaus–Miami, Miami–Caribe. Primeiro mostrar a eles o Brasil belo e selvagem, depois um rolê nas magias da Disney e, por fim, o paraíso das praias caribenhas de mar azulzinho e areias brancas.” Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/leia-trechos-da-autobiografia-de-rita-lee. Acesso em: 31 ago. 2020. Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas: I – A tirinha (que pertence ao hipergênero quadrinhos) e o trecho tratam do gênero textual autobiografia, caracterizado por retratar fielmente a vida do autor de acordo com o seu cronotopo histórico. II – O trecho de Rita Lee, em que se nota o relato retrospectivo, é narrado em primeira pessoa. III – A tirinha discute um critério essencial na definição do gênero autobiografia: a sua extensão. Um relato autobiográfico deve abranger, em ordem cronológica, todos os eventos da vida de seu autor. É correto o que se afirma em: A) I, II e III. B) I e II, apenas. C) II e III, apenas. D) I e III, apenas. E) II, apenas. Resposta correta: alternativa E. Análise da questão A autobiografia não retrata fielmente a vida de seu autor, pois também é criação, construção. Além disso, ela não tem a obrigação de narrar todos os fatos da vida do personagem tampouco de seguir a ordem cronológica. O trecho de Rita Lee está em primeira pessoa, como é comum no gênero. A tirinha é, de fato, um tipo de quadrinhos. 105 GÊNEROS TEXTUAIS Questão 2. Leia os quadrinhos. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/3621/calvin-e-seus-amigos. Acesso em: 14 set. 2020. Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas: I – A prática de ensino de gêneros textuais com base na leitura e na produção de “redações”, como se vê na tirinha, é relativamente comum nas escolas. II – A redação de Calvin tem tipologia argumentativa, uma vez que ele apresenta um ponto de vista sobre a sua vida escolar e a sua vida familiar. III – A tirinha é um exemplo de autobiografia, pois Calvin conta episódios da sua vida. É correto o que se afirma apenas em: A) I. B) II. C) III. D) I e III. E) I e II. Resposta correta: alternativa A. Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: a produção de textos é uma das práticas comumente utilizadas para o ensino dos gêneros textuais. 106 Unidade II II – Afirmativa incorreta. Justificativa: a redação de Calvin não tem estrutura argumentativa, pois ele descreve a situação, evidentemente ficcional, a que é submetido em sua casa. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: a tirinha não é autobiográfica. Ela narra uma cena do personagem Calvin na escola, com as criações e as atitudes que lhe são peculiares.
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