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TRAVERSO, Enzo O passado, modos de usar

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, 
o PASSADO, 
MODOS DE USAR 
HISTÓRIA, MEMÓRIA E POLÍTICA 
ENZO TRAVERSO 
edições unipop 
o passado, modos de usar. 
História, memória e política. 
'1'111 1(' \ dil( :1, \1 J.C passé, modcs J'cmploi: 
histoirc, mi'mmrc, po1itiyUl' 
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1. J I 1)1' \() JiC\'crciro dc 2012 
Introdução - A emergência da memória 9 
I - História e memória: uma dupla antinómica? 21 
Rememorafão 21 
Jeparaf'ÕeJ 29 
Empatia 38 
11 - O tempo e a força 
Tempo histórico e tempo da memória 
((Memórias fortes) e «memórias fracaJ) 
111 - O historiador entre juiz e escritor 
Memóna e eJI.Tita da hútória 
~ érdade e jUJtifu 
IV - Usos políticos do passado 
A memória da Jhoah como ((religião ávih) 
O edipxe da memória do (,'l)munúmo 
V - Os dilemas dos historiadores alemães 
O deJapareámellto dofasciJ'mo 
Li Shoah, a RDA e o ant[fascúmo 
VI - Revisão e revisionismo 
MetamotjiueJ de um mnceito 
A palavra e a roisa 
Nota bibliográfica e agradecimentos 
Notas 
55 
55 
71 
89 
89 
100 
109 
109 
120 
129 
129 
138 
149 
149 
155 
165 
169 
A memória de &/and Lew (19~~-2005) 
,(A história é sempre contemporânea, 
ou seja, polítiCa)} 
Antonio Gramsci 
Quaderni dei can:ere 
Introdução 
A emergência da memória 
São raras as palavras tão banalizadas como «memó-
ria), A. sua difusào é ainda mais impressionante dada a 
sua entrada tão tardia no domínio das ciências sociais. 
Durante os anos 1960 e 1970 ela estava praticamente 
ausente dos debates intelectuais. Não figura na edição 
de 1968 da lntertlational Encydopedia oi lhe Soda! SúenreJ, 
publicada em Nova Iorque sob a direcção de David L. 
Sills, nem na obra colectiva intitulada Faire de I'lIÍ.rtoire, 
publicada em 1974 sob a direcção de Jacques le GofE 
e Pierte Nora, nem mesmo em Krywords, de Raymond 
Williams, um dos pioneiros da história culturaP. Alguns 
anos mais tarde teria já penetrado profundamente no 
debate historiográfico. 
9 
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Realce
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.-\ «memória» é recorrentemente utilizada como si-
nónimo de história e tcm uma particular tendência para 
absorvê-la, tornando-se ela própria numa espécie de 
\categoria meta-histórica. Captura o passado numa rede 
de malha mais larga do que a disciplina tradicionalmen-
te denominada história, aí depositando uma dose bem 
maior de subjectividade, de «vivido», Em suma, a me-
mória aparece como um história menos árida e mais 
«humana»2. ~-\ memória invade hoje em dia o espaço 
público das sociedades ocidentais. a passado acompa-
nha o presente e instala-se no seu imaginário colectivo 
como uma ((memória» extremamente amplificada pelos 
meios de comtmicação e frequentemente regida pelos 
poderes públicos, ~.\ memória transforl!la..::.s.c em «ob~es­
sã?_.<;<?-,::~~~nl:?~~~V:~}) .e. a v:alorização, por vezes mesmo a 
sacraliza~ão, dos «lugares de memória» engendra uma 
verdadeira «topolatriro,.',. Esta memória superabllildan-
te e saturada sinaliza o espaço-t, Tudo doravante con-
tribui para «fazer» memória. a passado transforma-se 
em memória colectiva depois de ter sido seleccionado 
e reinterpretado segundo as sensibilidades culturais, 
as interrogações éticas e as conveniências políticas do 
presente. Assim toma forma o «turismo da mem~.~~l»!. 
com a transformação de locais históricos em museus e 
em lugares de visitas organizadas, dotadas de estruturas 
de acolhimento adequadas (hotéis, restaurantes, lojas de 
10 r 
recordaçõcs, etc), e promovido junto do público atra-
vés de estratégias publicitárias dirigidas. 
Os centros de investigação e as sociedades de his-
tória local são incorporados nos dispositivos deste 
turismo da memória em que por vezes encontram os 
seus meios de subsistência. Por um lado, este proces-
so decorre indubitavehnente de uma rqjicarãfL.dsL-RJJ,f.f11-
~~, ou seja, da sua transformação em objecto de con-
sumo, estetizado, naturalizado e rentabilizado, pronto 
para ser utilizado pela _indústria do turismo. e do es-
pectáculo, especialmente pelo :§;~a, .o historiador é 
frequentemente chamado a participar nesse processo, 
na qualidade de «profissional» e de «especialista» que, 
nos termos de alivier Dumouhn, faz da sua arte um 
«produto comerciab) da mesma forma que o são os 
bens de conswno que invadem as nossas sociedades. 
A Public IIútory americana, com os seus historiado-
res a trabalhar para instituições ou mesmo empresas 
privadas sujeitas à lógica dO J~'c~~~': há muito que nos 
indica o caminhos. Por outro lado, este fenómeno 
parece-se igualmente, em vários aspectos, ao que Eric 
Hobsbawm chamo~~'<~~ inven~ã~'~ d~ tradi~ç-ã~~~ um 
'---.~-, -'~-'-~' "." 
passado real ou mítico em torno do qual se constro-
em práticas ritualizadas que visam reforçar a coesão de 
um grupo ou de uma comunidade, legitimar algumas 
instituições e inculcar valores na sociedade. Por outras 
11 
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palavras, a memória tende a tornar-se o vector de uma 
«religião civil» do mundo ocidental, com o seu sistema 
de ~;f~;~~, ~~~~ças, símbolos e !!nugiaS7. 
____ •• __ •• ___ " •• '--_0.' ._ ••• ,_ o •• _ ~"--' 
De onde vem esta obsessão memorial? A sua prove-
niência é múltipla, mas deve-se sobretudo a uma crise 
de IrmumúJào no seio das sociedades contemporâneas. 
Poderia evocar-se a esse propósito a distinção sugeri-
da por \Valter Benjamin entre a «experiência transmi-
tida» (l-!.ifahruniJ e a «experiência(~yid~»_ (Erlebnú). A 
primeira perpetua-se quase naturalmente de uma ge-
ração para a outra, forjando as identidades dos gru-
pos e das sociedades num tempo longo; a segunda é 
a vivência individual, frágil, volátil e efémera. No seu 
Parsagen-Ü:/erk, Benjamin considera a «experiência vivi-
da» como um traço marcante de modernidade, com o 
ritmo e as metamorfoses da vida urbana, os choques 
eléctricos de urna sociedade de massas e o caos calei-
doscópico do universo mercantil. .-\ Etjàhrung é típica 
das sociedades tradicionais e a Erlebnú é própria das so-
ciedades modernas, por vezes como marca antropológi-
ca do liberalismo, do individualismo possessivo, outras 
vezes como produto das catástrofes do século Àrx, com 
o seu cortejo de traumas que afectaram gerações intei· 
ras sem que fosse possível inscreverem-se como urna 
herança no curso natural da vida. A modernidade, se-
gundo Benjamin, caracteriza-se precisamente pelo de-
12 
climo da experiência transmitida, um declínio marcado 
---:-:--- '"------- --" 
simbolicamente ~lo início da Primeira Guerra l\Iun-
diaL Durante esse ,momento de grande trauma europeu, 
muitos milhões de pessoas, sobretudo jovens campo-
neses que tinham aprendido com os seus antepassados 
a viver segundo os ritmos da natureza, no interior dos 
códigos do mundo rural, foram brutahnente arranca-
dos ao seu universo social e mentaiS, Foram subitamen--'-te submersos «numa paisagem em que quase nada era 
reconhecível além das nuvens e, no meio, num campo 
de forças atravessado de tensões e explosões destruti-
vas, o minúsculo e frágil corpo humaoQ))Q, Os milhares 
de soldados que voltaram da frente de guerra, mudos e 
amnésicos, comocionados pelos Shell Shotk/ provoca-
dos pela artilharia pesada que bombardeava, sem cessar, 
as trincheiras inimigas, corporizaram esse corte entre 
duas épocas; a da tradição forjada pela experiência her-
dada e a dos cataclismos que se furtam aos mecanismos 
naturais de transmissão da memória, As desventuras do 
Jmemorato di Co!!egno - um ex-combatente amnésico de 
dupla identidade, ao mesmo tempo filósofo de Verona 
e operário tipográfico de Turim- que apaixonaram os 
italianos no período entre as duas guerras, e inspira-
ram obras de Luigi Pirandello, José Carlos l\Iariátegui 
-" Noml: dado na Prirnl:ira GUl:rra Mundial ao ljUl: hojl: SI.: 
dl.:signa, na hríria militar, por combal Jlress readio» (CSR). N.T 
13 
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Pedro
Realce
Pedro
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e Leonardo Sciascia, inscrevem-se nessa mutação pro-
funda da paisagem memorial europeia 10. Mas, no fun-
do, a Grande Guerra não fazia mais do que completar, 
de uma forma convulsiva, um processo cujas origens 
foram magistralmente estudadas por Edward Palmer 
Thompson num ensaio sobre o advento do, ,te_~p(~)" ~e­
cânico, produtivo e disciplinar da sociedade industriaP I. 
Outros traumas marcaram a «experiência vivida}) do 
século X.X, sob a forma de guerras, genocídios, depu-
rações étnicas ou repressões politicas e militares. A re-
cordação que deles resultou não foi efémera nem frágil. 
Para várias gerações incapazes de ter uma percepção da 
realidade que não fosse a de um universo fracturado foi 
> 
mesmo uma recordação fundadora que, porém, não se 
constituiu como uma experiência do quotidiano trans-
missível a uma nova geração 12 . Uma primeira resposta 
à nossa questão inicial poderia, assim, formular-se da 
segtúnte forma: a obsessão memorial dos nossos dias é 
um produto do declinio da experiência transmitida num 
mundo que perdeu as suas referências, desfigurado pela 
violência e atomizado por um sistema social que apaga 
as tradições e fragmenta as existências. 
É necessário que nos interroguemos sobre as formas 
dessa obsessão. A memória - a saber, as representações 
colectivas do passado tal como se forjam no presente 
- estrutura as identidades sociais, inscrevendo-as numa 
14 
continuidade histórica e dotando-as de um sentido, ou 
seja, çie um conteúdo e de uma direcção. A sociedades 
humanas possuíram, sempre e em todo o lado, uma me-
mória colectiva mantida através de ritos, cerimónias e 
mesmo po/itú't/J'. /\s estruturas elementares da memó~~_ 
<;9.I.~<:!~~_~!:~_~dem na comemoração dos mortos. Tradi-
cionalmente, no mundo ocidental, os ritos e os monu-
mentos funerários celebravam a transcendência cristã 
- a morte como passagem para o Além - c, ao mesmo 
tempo, reafirmavam as hierarquias sociais «aqui em bai-
xo». N a modernidade, as práticas comemorativas meta-
morfoseiam-se. Por um lado, com o fim das sociedades 
do Antigo Regime, democratizam-se ao investirem a 
sociedade no seu conjunto; por outro, secularizam-se 
e tornam-se funcionais, veiculando novas mensagens 
dirigidas os vivos. A partir do século XIX, os monu-
mentos comemorativos consagram os valores laicos (a 
Pátria), defendem princípios éticos (o Bem) e politicos 
(a Liberdade) ou celebram acontecimentos fundadores 
(guerras, revoluções). Começam a tornar-se símbolos 
de um sentimento nacional vivido como uma «religião 
civih>. Segundo Reinhart Koselleck, «O declínio da in-
terpretação cristã da morte deixou o campo livre para 
interpretações puramente políticas e sociais}}':>. Iniciado 
com a Revolução Francesa, berço das primeiras guerras 
democráticas do mundo moderno, o fenómeno apro-
15 
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Nota
utilização do termo "trauma"
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Nota
dá para relacionar com bourdieu?
Pedro
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fundou-se depois da Grande Guerra, quando os mo-
numentos aos soldados caídos em combate começaram 
a organizar o espaço público em todas as povoações. 
Hoje, o trabalho de luto mudou de objecto e de 
formas. Nesta viragem de século, Auschwitz tornou-
-se a base da memória colectiva do mundo ocidenta1. A 
política da memória - comemorações oficiais, museus, 
filmes, etc. - tende a fa7:er da Shoah a metá~?!~_~~,:.j 
culo x.~ como idade de guerras, de totalitarismos, de " 
genocidios e de crimes contra a humanidade. N o centro 
deste sistema de representações instala-se uma figura 
nova, a y;~;;;~~71ã,\o sobrevivente dos campos nazis. 
,-_._- _ ... -- _. '''" ~ -- .. 
1\ recordação de que é portador e a atenção que lhe 
é reservada (após décadas de indiferença) abalaram o 
historiador, ao criarem desordem na sua oficina c ao 
perturbarem o seu modo de trabalho. Por um lado, o 
historiador teve de se render à evidência das limitações 
dos seus procedimentos tradicionais e das suas fon-
tes, bem como ao contributo indispensável das teste-
munhas para a reconstrução de experiências como o 
universo concentracionário e a máquina exterminadora 
do nazismo. A testemunha pode oferecer-lhe elemen-
tos de conhecimento factual inacessíveis através de 
outras fontes, mas sobretudo pode ajudá-lo a restituir 
a qualidade de uma experiência histórica cuja textura se 
modifica depois de enriquecida pelas vivências dos seus 
16 
actores. Por outro lado, o aparecimento da testemunha 
c, em consequência, a entrada da memória na oficina 
do historiador vieram pôr em causa alguns práticas ha-
bituais, como por exemplo as de uma história estrutural 
concebida enquanto um processo de acumulação) no 
tempo longo, de vários estratos (território, demografia, 
trocas, instituições, mentalidades) que permitem apre-
ender as coordenadas globais de uma época, mas que 
deixam muito pouco espaço à .~':!,!Ü~!!~~da~e dos ho-
mens e das mulheres que fé;em a História1.\. 
Entrámos, para usar as palavras de Annette 
Wieviorka, na ~<~ra da, testemunha», que, colocada sobre 
wn pedestal, encarna um passado cuja recordação é pres-
crita como wn dt:ver cívicol~JA testemunha identifica-se 
cada vez mais com a vítima, outra marca desta era. Igno-
rados durante décadas, os sobreviventes dos campos de 
extermínio nazis tornaram-se hoje,5_0~tra ª sua vontade, 
ícones~~os., São cristalizados nwna posição que não 
escolheram e que nem sempre corresponde à sua ne-
cessidade de transmitir a experiência vivida. Outras tes~ 
temunhas, antes apontadas como heróis exemplares, tal 
como a resistência que pegou em armas para combater 
o fascismo, perderam a sua aura ou caíram mesmo no 
esquc,çims:;nto •. engolidas pelo «fim do comunismo» que, 
eclipsado da história com os seus mitos, na sua queda 
arrastou as utopias e as esperanças que havia encarnado. 
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Pedro
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A memória destas testemunhas já só a poucos interessa, 
numa época de humanitarismo onde já não há venádos 
mas apcna(;7i~~sta dissiroetria da recordação - a sa-
cralização das vítimas antes ignoradas e o esquecimento 
de heróis anteriormente idealizados - indica a ancora-
gem profunda da memória colcctiva no presente, com as 
suas mutações e regressões paradoxais. 
A memória conjuga-se sempre no presente, que de-
termina as suas modalidades: a sucessào de aconteci-
mentos de que se devem guardar recordações Cc de tes-
temunhas a escutar), a sua interpretação, as suas «lições)), 
etc. Ela transforma-se em questão política e toma a for-
ma de uma injunção ética - 9.<idc.ycr.da mcrnó!ia~-=- que 
frequeftemente se transforma em fonte de abusos]('. Os 
exemplos não faltam. Todas as guerras destes últimos 
anos, da primeira à segunda guerra do Golfo, passan-
do pela guerra do Kosovo e pela do ~\feganistão, foram 
também guerras da _rne~-~~_i~ pois foram justificadas pela 
evocação ritual do dever de memória l7• Saddam Hussein, 
Arafat, i\.filosevic e George W Bush foram comparados 
co~_,~_~e.~ nas palavras de ordem das manifestações, 
nos cartazes, nos meios de comunicação e no discurso 
de alguns líderes políticos. O islamismo político é muitas 
vezesidentificado com o fanatismo nazi. O historiador 
israelita Tom Segev indica que Menahem Bcgin tinha 
vivido a invasão israelita do Lbano, em 1982, como um 
18 
acto reparador, um sucedâneo fantasmático de um exér-
cito judaico que teria expulso os nazis de Varsóvia em 
194yH. i\Iais recentemente, em 2002, o Consistório cen-
tral dos israelitas de 1 "rança declarou que o país estava à 
beira de uma onda de antissemitismo comparável à que 
se abateu na Alemanha nazi durante a Noite de Cristal 
em Novembro de 19381'J. Para o escritor português José 
Saramago, em contraposição, a ocupação israelita dos 
territórios palestinos seria comparável ao Holocaus-
t020• Durante a guerra na ex-]ugoslávia, os nacionalistas 
sérvios viam as depurações étnicas contra os albaneses 
do Kosovo como uma vingança contra a antiga opres-
são otomana, enquanto em França os profissionais do 
anticomunismo viam as bombas sobre Belgrado como 
tuua defesa da liberdade contra o totalitarismo. ~\ lis-
ta poderia cont.inuar, .\ dimensão política da memória 
colectiva - e os abusos que a acompanham - não pode 
deixar de afectar a maneira de escrever a história, 
Este livro propõe-se explorar as relações entre a 
história e a memória e analisar alguns aspectos do uso 
público do passado. A matéria que se oferece a essa 
reflexão é inesgotável. Baseei-me em alguns temas co-
nhecidos e sobre os quais tenho trabalhado nos últimos 
anos. Outros de igual importância ficaram excluídos ou 
são pouco evocados neste ensaio, que pretende partici-
par num debat~;;'~o-e'aínda'emábe::J 
19 
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Pedro
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I 
História e memória: 
uma dupla antinómica? 
Rememorarão 
História e memória nascem de uma mesma preocu-
pação c partilham o mesmo objecto: a elaboração do 
____ pass_ad? No entanto, existe uma «hierarquia)) entre as 
duas. De acordo com Paul Ricoeur, a memória possui 
um estatuto matriáa/1• A história é um relato, uma es-
crita do passado segundo as modalidades e as regras de 
um oficio - de uma arte ou, com muitas aspas, de uma 
«ciência» - que tenta responder a questões suscitadas 
pela memória. A história nasce, portanto, da memória, 
libertando-se desta ao colocar o ,passado à distância, ao 
considerá-lo, segundo a expressão de Oakeshott, como 
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Nota
Importante debate
Pedro
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Pedro
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Pedro
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«um passado em SD)~. A história acaba, enfim, por fa-
zer da memória um dos seus domínios de investigação, 
como prova a história contemporânea. Também cha-
mada de «história do tempo presente», a história do sé-
culo XX analisa o testemunho dos actores do passado e 
integra o relato oral nas suas fontes, a par dos arquivos e 
de outros doclUTIentos materiais ou escritos. Em suma, 
a história nasce da memó~a, de que é uma das dimen-
sões, e posteriormente, adaptando uma postura auto-
-reflexiva, transforma a memória num dos seus ol!}"ect?J. 
Proust continua a ser uma referência obrigatória 
para toda e qualquer meditação sobre a memória. Nos 
seus comentários sobre a obra Em BUJm do Tempo Per-
dido, Walter Benjamin sublinha que Proust «não descre-
veu uma vida tal como ela foi, mas uma vida como a re-
memora alguém que a vivew). E continua comparando 
a {{memória involuntária» de Proust - que traduz como 
«trabalho de rememo ração espontânea» (1-!.inl!,edenken), 
onde a recordação é a embalagem e o esquecimento é o 
conteúdo - com um «trabalho de Penélope» onde é «o 
dia que desfaz o que a noite tinha fcito». Cada manhã, 
ao acordar, «não temos em mãos mais do que algumas 
franjas, em geral frágeis e lassas, da tapeçaria do vivido 
. .; 
que o esque~lffiento em nos tecew) . 
Tirando a sua força da experiência vivida, a memó-
ria é eminentemente sul?jectiva. Fica ancorada aos fac-
22 
tos a que assistimos, dos quais fomos testemunhas, ou 
mesmo actores, e às impressões que deixaram no nosso 
espírito. A memória é qualitativa, singular, pouco preo-
cupada com comparações, com a contextualização, ou 
com generaliza~ões. Quem a transporta não necessita 
de apresentar provas. O relato do passado prestado por 
tuna testemunha - sempre que não seja um mentiroso 
consciente - será sempre a sua verdade, ou seja, a ima-
gem do passado em si d~post~. Pelo seu carácter sub-
jectivo, a memória nunca é cristalizada; mais se parece 
com um estaleiro aberto, em contínua operação. Nào 
é apenas, segundo a metáfora de Benjamin, «a tela de 
Penélope» que se modifica todos os dias devido ao es-
quecimento que «ameaça» em permanência, para reapa-
recer mais tarde, por vezes muito mais tarde, tecida de 
lUTIa forma diferente. Não é só o tempo a erodir e a en-
fraquecer a recordação. A memória é uma construção, 
sempre filtrada por conhecimentos adquiridos poste-
riormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, 
por experiências que se sobrepõem à primeira e modifi-
cam a recordação. O exemplo clássico é, uma vez mais, 
o dos sobreviventes dos campos nazis. Muitas vezes, o 
relato da permanência em Auschwitz por um ex-depor-
tado judeu e comunista modifica-se consoante a sua re-
lação com o Partido Comunista. Durante os anos 1950, 
antes da ruptura com o Partido, coloca a sua identidade 
23 
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Nota
Texto relacionado ao artigo do HD!!! Nostalgia da Luz
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Nota
A memória nunca é cristalizada, segundo Traverso
Pedro
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política em primeiro plano ao apresentar~se como um 
deportado antifascista. Depois, durante os anos 1980, 
conswnada a ruptura, considera-se em primeiro lugar 
um deportado judeu, perseguido como judeu e teste-
mWlha do aniquilamento dos judeus na Europa. Bem 
entendido, seria absurdo distinguir entre dois testemu-
nhos prestados pela mesma pessoa em dois momentos 
diferentes da sua vida, elegendo um como falso e outro 
como verdadeiro. Os dois são autênticos, mas cada um 
deles ilumina uma parte da verdade filtrada pela sensi-
bilidade, pela cultura e também, poderia acrescentar-se, 
peIas representações identitárias, ou mesmo ideoló-
gicas, do presente. Resumindo, a memória, individual 
ou colectiva, é uma visão do passado que é sempre fil-
trada pelo presente. Nesse sentido, Benjamin definiu o 
procedimento de Proust como uma «presentificação» 
(Vet:.~egenwdrligulJi/. Seria ilusório pensar-se no «antes» 
(das GeweJ"ene) como uma espécie de «ponto h.X(M de que 
nos poderíamos aproximar através de wna reconstrução 
mental a pOJ/enon. O «acontecido» é em larga medida 
configurado pelo presente, visto ser a memória a «esta-
beleceD) os factos: trata-se, segundo Benjamin, de uma 
«revolução coperniciana na visão da histórill»5. Benjamin 
reafirma es t:r conceito nas «reflexões teóricas» do seu 
PaJJagen-Werk, quando considera «o passado em colisão 
com o presente», acrescentando que «é o presente que 
24 
polariza o acontecimento (das Gwhehen) em história 
anterior e história posterioo). A história, continua Ben-
jamin, «não é apenas uma ciência», já que é «ao mes-
mo tempo uma forma de rememoração (c.illgedenken»)ú. 
?-.1ais recentemente, numa linha semelhante, François 
Hartog forjou a noção de «presentismo» a fIm de des-
crever uma situação em que «o presente se tornou o 
horizonte», um presente que, «sem futuro e sem pas-
sado», permanentemente engendra os dois segundo as 
suas necessidades 7. 
1 \ história, que no fWldo, lembrava Ricoeur, não é 
mais do que wna parte da memória, escreve-se sem-
pre no presente. Para existir como campo do saher, no 
entanto, a história deve emancipar-se da memória,não 
rejeitando-a mas colocando-a à distância. Um curto-cir-
cuito entre história e memória poderia ter consequên-
cias prejudiciais para o tt""J.balho do historiador. 
Uma boa ilustração deste fenómeno é oferecida 
pelo debate dos últimos anos em torno da «singula-
ridade) do genocídio judeuil • A irrupção desta contro-
vérsia no domínio do historiador relaciona-se, inevi-
tavelmente, com o percurso da memória judaica, com 
a sua emergência no seio do espaço público e a sua 
interferência nos métodos tradicionais de pesquisa que 
foram subitamente confrontados com autobiografias 
e com arquivos audiovisuais que apresentam os teste-
25 
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Nota
Muito importante
munhas dos sobreviventes dos campos de concentra-
ção. Se uma tal «contaminação» da historiografia pela 
memória se revelou extremamente frutuosa, nào deve 
no entanto ocultar uma observação metodológica tão 
banal como essencial: a memória JÚIJ"ulariza a histó-
ria, na medida em que é profundamente subjectiva, 
selectiva, muitas vezes desrespeitadora da cronologia, 
indiferente às reconstruções de conjunto e às raciona-
lizações glo bais . .A sua percepção do passado não pode 
ser senào irrcdutivelmente singular. Onde o historia-
dor não vê mais do que uma etapa de um processo, 
do que um aspecto de um quadro complexo em mo-
vimento, a testemunha pode captar um acontecimento 
crucial, o ponto de viragem numa vida. O historiador 
pode decifrar, analisar e explicar as fotografias conser-
vadas do campo de Auschwitz. Ele sabe que aqueles 
que descem do comboio são judeus, ele sabe que o SS 
que os observa fará uma selecçào e que a grande maio-
ria das figuras daguela fotografia não terá mais dos 
que algumas horas de vida à sua frente. A uma teste-
munha, essa fotografia dirá muito mais. Lembrar-se-á 
das sensações, das emoções, dos ruidos, das vozes, dos 
cheiros, do medo e da desorientação da chegada ao 
campo, da fadi&.a de wna longa viagem efectuada em 
condições horrf~·eis, sem dúvida da visão do fumo dos 
crematórios. Dito de outra forma, lembrar-se-á de um 
26 
conjunto de imagens e de recordações todas elas sin-
gulares e completamente inacessíveis ao historiador, 
senào com base num relato a pOJteriori, fonte de uma 
empatia incomparável àquela que a testemunha pôde 
reviver. A fotografia de um Hiijt/iI{p'· significa aos olhos 
do historiador uma vítima anónima; para um paren-
te, um amigo ou um camarada de detenção, evoca um 
mundo absolutamente único; para o observador exte-
rior, não representa - como diria Siegfried Kracauer 
- mais do que uma realidade «não redimida)) (1I1!er/rir/f· 
O conjunto daquelas recordações forma uma parte da 
memória judaica, uma memória que o historiador nào 
pode ignorar e que deve respeitar, que deve explorar 
e compreender, mas à qual não se deve submeter. O 
historiador nào tem o direito de transformar a sin-
gularidade dessa memória num prisma normativo da 
escrita da história. A sua tarefa consiste muito mais 
na inscrição dessa singularidade da experiência vivida 
num contexto histórico global, tentando esclarecer as 
causas, as condições, as estruturas, a dinâmica de con-
junto. Isto significa aprender com a memória depois 
de a passar pelo crivo de uma verificação objectiva, 
empírica, documental e factual, assinalando, se ne-
cessário for, as suas contradições e armadilhas. Este 
* Prisioneiro. N.T 
27 
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Nota
Muito importante para refletir
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procedimento pode ajudar a recordação a tornar-se 
mais nítida, a clarificar os seus contornos, a tornar-se 
mais exigente, e também a trazer luz sobre aquilo que 
na lembrança não é redutível a elementos factuais](). 
Se pode haver uma singularidade abJolJlta da memó-
ria, a da história será sempre relativa" . Para um judeu 
polaco, Auschwitz significa qualquer coisa de terrivel-
mente único: o desaparecimento do universo humano, 
social e cultural onde nasceu. Um historiador que não 
consiga compreender isso jamais conseguirá escrever 
um bom livro sobre a Shoah, mas o resultado da sua 
pesquisa também não seria melhor se concluísse - tal 
como o fez, por exemplo, o historiador norte-america-
no Steven Katz - que o genocídio judaico foi o único 
da história'~. Segundo Eric Hobsbawm, o historiador 
não se deve subtrair a um dever de universalismo: 
«Uma história que diga respeito apenas aos judeus (ou 
aos negros americanos, aos gregos, às mulheres, aos 
proletários, aos homossexuais, etc.) não será uma boa 
história, mesmo que possa reconfortar quem a prati-
ca.»!.}. É normalmente muito difícil, para os historia-
dores que trabalham sobre fontes orais, encontrar o 
equilíhtto justo entre empatia c distanciação e entre 
o reconhecimento das singularidades e a perspectiva 
geral. 
28 
5 eparafões 
É apenas a partir do início do século XX, quando os 
paradigmas do historicismo clássico entraram em 
crise, questionados simultaneamente pela filosofia 
(Bergson), pela psicanálise (Freud) e pela sociologia 
(T Ialbwachs), que história e memória passaram a for-
mar um par ant1nómico. Até então a memória era con-
siderada o substrato subjectivo da história. Para I regel, 
a história (GcJ(hú;hte) possuía duas dimensões comple-
mentares, uma objectiva e outra subjectiva: de um lado, 
os acontecimentos (reJ geJtae); do outro, a sua narração 
(hiJtoria remm geJtarum); isto é, os «factos» e o seu ({re-
lato históricQ)'~. A memória acompanha o desenrolar 
da história como uma espécie de sua protectora, já que 
constitui o seu «fundamento interion), c as duas encon-
tram a sua rea/i:;pf-ão no Estado, cuja história mnla (<<a 
prosa da História»)L') rcllccte, como um espelho, a ra-
cionalidade intrínseca. Hegel apresenta esse domínio 
estatizado do passado sob a forma alegórica do conflito 
entre Cronos, o deus do tempo, c Zeus, o deus políti-
co. Cronos mata os seus próprios filhos. Engole tudo 
à sua passagem, não deixando rasto. Mas Zeus conse-
gue dominar Cronos, porque criou o Estado, capaz de 
transformar em história tudo aquilo que Mnemósina, a 
deusa da memória, pôde colectar após a passagem de-
vastadora do tempo. Na Fenomenologia do Espírito, a me-
29 
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mária define a historicidade do Espírito (Ceist), que se 
manifesta simultaneamente como «recordaçãm) (Erin-
nerunJ'J e movimento de «interiorização» (Er-Innerunj) , 
enquanto que o Estado constitui a sua expressão exte-
rioru,. Para Hegel, apenas os povos estatizados, dota-
dos de uma história escrita, possuem uma memória. Os 
outros - «os povos sem história» (gexchúhtlose V01ker), ou 
seja, o mundo não europeu desprovido de um passado 
estatal e do seu relato codificado pela escrita - não po-
dem superar o estádio de uma memória primitiva, feita 
de «imagens» mas incapaz de se condensar em consci-
ência histórica17• Daqui resulta uma visão dupla da his-
tória, como prerrogativa ocidental e como dispositivo 
de dominação. Nào só é pertença exclusiva da Europa, 
como só pode existir enquanto relato apologético do 
poder1/l, aquilo que Benjamin denunciou como empatia 
historicista com os vencedores1!). 
No entanto, no seguimento da crise do historicis-
mo, da crítica ao paradigma eurocentrista no período da 
descolonização e, depois, com a emergência das clas-
ses subalternas como sujeitos políticos, a história e a 
me~ria dissociaram-se. A história democratizou-se, 
rompendo as fronteiras do Ocidente e o monopólio das 
elites dominantes; a memória, por sua vez, emancipou-
-se da dependência exclusiva da escrita. A relação entrehistória e memória reconfigurou-se como uma tensão 
30 
dinâmica. ~\ transição não foi nem linear nem rápida 
e, de runa certa forma, ainda nào foi concluída. Nos 
últimos trinta anos, os historiadores alargaram as suas 
fontes, mas continuam a privilegiar os arquivos, que nào 
deixaram de ser o depósito dos vestigios de um pas-
sado conservado pelo Estado. Só recentemente é que 
os «subalternos» foram reconhecidos como sujeitos da 
história e se tornaram objecto de estudo. E foi ainda 
mais recentemente que se começou a tentar escutar a 
sua voz. Em 1963, François Furet ainda pensava que 
podia integrar as classes subalternas na história apenas 
num plano quantitativo, tomando-as em consideração 
unicamente sob o signo «do número e do anonimato», 
como elementos «perdidos no estudo demográfico ou 
sociológico», ou seja, como entidades condenadas a 
permanecer «silenciosas)f~(). No fundo, para aguele ad-
mirador de Tocqueville, as classes trabalhadoras perma-
neciam ainda como «povos sem história». 
no decurso dos 
;\ mutação 
anos 1960. operou-se precisamente 
~\ primeira grande obra de história social das classes 
subalternas, The Makilzg qf the Englúh Lf70rkin
e
g ClaJJ, de 
Edward Palmer Thompson, data de 1963; a Hútoire de la 
folie à I'âge daJJique, de Foucault, data de 1964; e o pon-
to de partida da micro-história, 11 formaggio e i vermi, de 
Carlo Ginzburg, que reconstrói o universo de um mo-
leiro de Prioul no século XVI, data de 1976::1• De igual 
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Nota
visão eurocêntrica
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modo, para a historiografia, as mulheres só passaram a 
ter uma história há trinta anos22• Até então, as mulheres 
estavam excltúdas da mesma forma que o estavam os 
«povos sem história}} de Hegel. Os Suba/tern StudieJ, por 
seu lado, nasceram na Índia no início dos anos 1980. 
O seu objectivo é rescrever a história já não como «a 
obra da Inglaterra na Índia}), nem como a das elites 
indianas formadas durante a dominação colorrial, mas 
como história dos «subalternos», o povo cuja «pequena 
voz» (sma/f voice) procura escutar-se e que «a prosa da 
contra-insurreição» depositada nos arquivos de Estado 
não nos pode restituir, pois a sua função consiste exac-
tamente em submergi-Ial-'. É neste contexto de alarga-
mento das fontes do historiador e de questionamento 
das hierarquias tradicionais que se inscreve a emergên-
cia da memória como uma nova oficina de escrita do 
passado. 
O primeiro a codificar a dicotomia entre as flutu-
ações emocionais da recordação e as construções ge-
ométricas do rdato histórico foi ;\faurice I-Ialbwachs, 
na sua ohra já clássica sohre a memória colectiva. Aí 
denunciou o carácter contraditório da expressão «me-
mória histórica» por unir dois elementos que, a seu ver, 
se opõem. Para Halbwachs, a história começa onde ter-
mina a tradição ~(se decompõe a memória social»l~, 
estando as duas separadas por uma clivagem insanável. 
32 
A história supõe wn olhar exterior sobre os aconteci-
mentos do passado, enquanto a memória implica uma 
relação de interioridade com os factos relatados. A 
memória perpetua o passado no presente, enquanto a 
história fixa o passado numa ordem temporal fechada, 
acabada, organizada seguindo procedimentos racionais 
i nos antípodas da sensibilidade subjectiva do vivido. i\ 
I 
I
I memória atravessa as épocas, enquanto a ~is.t~ria as se- . 
para. No fundo, Halbwachs opõe a multlplicH.lade das 
memórias - ligadas aos indivíduos e aos grupos que 
delas são portadores e sempre elaboradas em quadros 
SOCIaIS definidos25 - ao carácter unitário da história, 
que se declina em histórias nacionais ou em história 
universal, mas que exclui a coexistência de vários re-
gimes temporais nwn mesmo rclato::'i,. Em resumo, 
Halbwachs opõe uma história positivista - o estudo 
científico do passado, sem interferências com ü presen-
te - a uma memória subjectiva baseada nas vivências 
dos indivíduos e dos grupos. Radicalizando a pers-
pectiva, compara a clivagem que separa a história da 
memória à que opõe o tempo matemático ao «tempo 
vivido» de Bergson17• A história, refere o autor, igno-
ra as percepções subjectivas do passado ao privilegiar 
cortes convencionais, impessoais, racionais e objectivos 
(Halbwachs refere o exemplo da Cbronologie univerJelfe, de 
Dreyss, publicada em Paris em 1858fH. 
33 
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Nota
Interessante
Essa dicotomia foi retomada, mais recentemente, 
por Yosef IIaym Yerushalmi que, na sua qualidade 
de historiador, se apresenta como um recém-chegado ao 
mundo judaico. Numa comunidade unida pela religião, 
a imagem do passado foi forjada no decorrer dos sé-
culos graças a uma memória ritualizada que fixava as 
modalidades e os ritmos de uma temporalidade judaica 
separada do mundo exterior. Por consequência, a his-
toriografia judaica nasce de uma ruptura com a memó-
ria judaica, a única que anteriormente tinha assegurado 
uma continuidade, em termos de identidade e de auto-
-representação, no seio do mundo judaico. Essa ruptura 
foi marcada pela Emancipação judaica, movimento que 
engendrou um processo de assimilação cultural com o 
meio envolvente e, no interior da comunidade, o des-
moronamento da antiga organização social centrada na 
sinagoga. Inscrevendo-se num mundo secularizado e 
adaptando as divisões temporais da história profana, a 
história judaica - cujo início foi marcado pela escola da 
l17úienid}~/i dej' .1udet1tumi, nascida em Berlim no início 
do século XIX - não poderia senào operar uma ruptu-
ra, pelas suas modalidades, fontes e objectivos, com a 
memória judaica~'). 
A antinomia entre história e memória foi reafir-
mada por Pierre Nora, a quem se deve a renovação, a 
partir dos anos 1980, do debate historiográfico sobre 
34 
a memóna. Recuperou para si a tese de Ilalbwachs, 
mas apresentando uma visão bem mais problemática 
das vicissitudes da escrita da história. i\lemória e histó-
ria, explica Nora, estão longe de ser sinónimos, já que 
«tudo as opõe). A memória é «a vid.,\», o que a expõe «à 
dialéctica da recordação e da amnésia, inconsciente das 
suas deformações sucessivas, vulnerável a todas as uti-
lizações e manipulações, susceptível de longas latências 
e de súbitas revitahzações». Ora, esse «vínculo vivido 
no presente eterno» não pode ser assimilado à história, 
representação do passado que, mesmo se problemática 
e sempre incompleta, se quer objectiva e retrospectiva, 
fundada na distância. A memória é «afectiva e mágica», 
com tendência para sacrahzar as recordações, enquanto 
a história é uma visão secular do passado, sobre o qual 
constrói «um discurso critiCO»). A memória tem uma vo-
cação singular, ligada à subjectividade dos indivíduos e 
dos grupos, a história tem uma vocação universal. «.Ao. 
memória é um absoluto e a história apenas conhece o 
relativo».311 A partir dessa constatação, Nora não pode 
conceber senão uma relação entre história e memória, 
a de uma análise e reconstrução da memória segundo 
os métodos das ciências sociais de que a história faz 
parte. Nessa perspectiva, Nora abriu um novo campo 
historiográfico extremamente ambicioso: reconstruir a 
história nacional em torno dos «lugares da memória», 
35 
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sacralizar
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do território às paisagens, dos símbolos aos monumen-
tos, das comemorações aos arquivos, dos emblemas aos 
mitos, da gastronomia às instituições, de Joana d'Arc à 
Torre Eiffel. 
Todavia, longe de serem o quinhão exclusivo da 
memória, os riscos de sacralização, mitificação e am-
nésia espreitam permanentemente a escrita da própriahistória e uma grande parte da historiografia moderna 
e contemporânea caiu nessa armadilha, O projecto de 
Nora não escapa a essa regra, ao reservar um espaço 
bem modesto para o passado da França colonial en-
tre a multitplicidade de «lugares de memória>" Segundo 
Perry Anderson, o mais severo dos seus críticos, o pro-
jecto editorial de Nora reduz as guerras coloniais fran-
cesas, da conquista da Argélia à derrota na Indochina, 
«a uma exposição de bugigangas exóticas que poderiam 
ter estado presentes na exposição universal de 1931. O 
que valem os lugares de memón'a que se esquecem de in-
cluir Diên Biên Phú?,)"'l 
i\. história, da mesma forma que a memóna, não 
tem apenas as suas falhas; pode também desenvolver-
-se e encontrar a sua razão de ser no desaparecimento 
de outras histórias e na negação de outras memórias, 
Como referiu Edward Saíd, a arqueologia israelita, que 
procura trazer à superfície os traços milenares do pas-
sado judaico da Palestina (vista por alguns como uma 
36 
«arqueologia - religião nacionab), escavou a terra com 
o mesmo afinco com que os bulldozeri destruíram os 
traços materiais do passado árabo-palestino~2, 
Por outro lado, deve ter-se em conta a influência da 
história sobre a própria memória, já que não existe me-
mória literal, original e não contaminada: as recorda-
ções são constantemente elaboradas por uma memória 
inscrita no espaço público, submetidas aos modos de 
pensar colectivos, mas também influenciadas pelos pa-
radigmas especializados da representação do passado, 
Esta situação deu lugar a lul)ridos - certas autobio-
grafias cntram nessa categoria - que permitem à me-
mória revisitar a história, destacando os pontos cegos 
e as generalizações apressadas, e à história corrigir as 
armadilhas da memória, obrigando-a a transformar-se 
em análise auto-reflexiva e em discurso crítico, Uma 
obra como Oi que mmmbem e OJ que Je Ja/vam, de Pri-
mo Levi3\ articula história e memória num relato de 
novo tipo, inclassificável, fundado sobre um vai e vem 
permanente entre os dois, Pierre Vidal-Naquet, na sua 
auto-biografia, relata as suas recordações com o rigor 
de um historiador que verificou as suas fontes e sub-
mete a sua memória ao teste de apresentação de provas, 
dando-lhe, no entanto, a forma de um balanço retros-
pectivo e muitas vezes crítico, Não se trata apenas do 
Jetl relato, como refere no prefácio, porque ele tem em 
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conta a correspondência dos seus pais, o diário do seu 
pai e o diário que a sua irmã começou a escrever depois 
da detenção e deportação dos seus pais, mas também 
e sobretudo porque se apoia no seu conhecimento de 
todo um período histórico. «É nesse sentido - escreve 
- que se trata tanto de um livro de história como de mc-
mória, um livro de história de que sou, a uma Só vez, o 
autor e o objccto.)r'~ Pcrtencendo ao mesmo tempo ao 
registo da memória e ao da história, estes dois exemplos 
não entram na dicotomia estabelecida por Halbwachs, 
Yerushalmi e Nora. 
Empatia 
A mesma oposição entre história e memória está for-
temente presente na historiografia do nacional-socia-
lismo, como ° demonstrou claramente, em meados 
dos anos 1980, a correspondência entre dois grandes 
historiadores, Martin Broszat c Saul FriedEinderJ·'i. Pro-
curando sustentar a sua defesa de uma historicização 
do nazismo capaz de romper a tendência para «insu-
larizan> o período de 1933-1945 por ra7:ões morais, 
Bros7,at reivindica um método cientifico capaz de se 
emancipar da «recordação mítica» das vítimas.v,. A me-
mória dos sobreviventes do genocídio dos judeus sus-
cita evidentemente o seu respeito, mas deveria ficar ex-
38 
cluída das fontes do historiador e não interferir com o 
seu trabalho. Face ao positivismo radical de tal posição, 
perguntamo-nos se ela não encobre a parte de memó-
ria vivida e afectiva presente na historiografia alemã do 
pós-guerra, nomeadamente a historiografia do nazismo 
elaborada pela «geração da Hillet:j/(gend\> li. Para lá dos 
julgamentos que sobre esses resultados - muitas vezes 
notáveis - possam ser feitos, wna constatação impõe-
-se: wna característica partilhada pela maior parte dos 
seus representantes reside precisamente na exclusão das 
vítimas do nazismo do seu campo de investigação, para 
não dizer do seu horizonte epistemológico. Essa carac-
terística perpetuou-se, aliás, no trabalho de uma nova 
geração, muitas vezes centrada na análise da máquina de 
morte do nazismo, mas que raramente se interessa pelo 
testemunho das vítimas, Nessa historiografia, as vítimas 
ficam num plano secundário, anónimas e silenciosas·1H• 
Esse problema poderia ser também abordado a par-
tir de uma outra perspectiva. O recalcamento dos anos 
negros na Alemanha do pós-guerra - recalcamento da 
S'thuk!lrC{g/* e dos crimes nazis - não terá tido, entre os 
seus efeitos, o de transformar numa espécie de tabu os 
bombardeamentos que destruíram as cidades alemãs, 
* Juventude hitleriana. N.T 
** A questão da culpa. N.T. 
39 
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Nota
Pilar Calveiro e seu livro sobre desaparecimento forçado pode entrar aqui?
tema que tem sido ignorado até a uma época recente, 
tanto pela literatura como pelo cinema e pela historio-
grafia? Essa é a hipótese sugerida por W. G. Sebald, para 
quem a ausência de qualquer debate público e de obras 
literárias sobre esse trauma colectivo se deve ao facto 
de «um povo que havia assassinado e explorado até à 
morte milhões de homens ter ficado impossibilitado de 
exigir às potências vitoriosas que prestassem contas so-
bre a lógica de uma política militar que tinha ditado a 
erradicação de cidades alemãs»"w. 
Opor radicalmente história e memóna é, pOIS, 
uma operaçào perigosa e discutível. Os trabalhos de 
Halbwachs, Yerushalmi e Nora contribuíram para mos-
trar as diferenças profundas que existem entre história 
e memória, mas seria errado deduzir daí a sua incom-
patibilidade ou considerá-las como irredutíveis. O que 
a sua interacção cria é um campo de tensões no interior 
do qual se escreve a história. Sem dúvida que Amos 
Fukenstein tem razào quando indica, no ponto de en-
contro entre história e memória, a emergência de um 
terceira instância, a que chamou IXJIlJt:iêmia húlónaio. 
A correspondência com Broszat foi, aliás, o ponto 
de partida de Saul Friedlander para uma reflexão fecun-
da sobre as condições de escrita da história. Se o histo-
riador não trabalha fechado na clássica torre de marfim, 
ao abrigo dos rumores do mundo, também não vive 
40 
dentro de uma câmara frigoríf1ca, imune às paixões do 
mundo. Ele está submetido às condicionantes de um 
contexto social, cultural e nacional. Não escapa às influ-
ências das suas recordações pessoais, nem às de um sa-
ber herdado, de que pode tentar libertar-se, não através 
da sua negação, mas de um esforço de distanciamento 
crítico. Nessa perspectiva, a sua tarefa não consiste em 
tentar pôr de lado a memória - pessoal, individual e 
colectiva - mas em colocá-la à distância e em inscrevê-
-la num conjunto histórico mais vasto. Há então no tra-
balho do historiador uma dimensào de frall!ferenáa que 
orienta a escolha, a abordagem e o tratamento do seu 
objecto de pesquisa, e da qual ele deve estar consciente. 
Friedlander define assim a escrita da história, recorren-
do ao léxico da psicanálise, como um acto de «perla-
boraçãQ) (working Ihrough) . .-\ distância cronológica que 
separa o historiador do objecto da sua investigação 
cria uma espécie de ecrã protector, mas a emoção que, 
muitas vezes de forma imprevista e súbita, ressurge no 
decurso do seu trabalho inevitavelmente quebra este 
diafragma temporal41 . Esta empatia ligada à vivência in-
dividual do historiadornão tem necessariamente efeitos 
negativos. Pode também revelar-se frutuosa, se o histo-
riador dela estiver consciente e a souber «dominaD)~2. 
A obra de FriedIander constitui um bom exemplo 
de uma tal capacidade de domínio. Em Nazi Germal!Y 
41 
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and lhe Jewj', inscreveu uma constelação de «destinos in-
dividuais» num relato histórico global da Alemanha no 
período anterior à Segunda Guerra :Mundial. Foi assim 
capaz de ultrapassar a chvagem tradicional dos estudos 
do nazismo: de wn lado as pesquisas, feitas essencial-
mente nos arquivos, que focalizam a atenção sobre a 
ideologia e as estruturas do regime; do outro lado, uma 
reconstrução do passado exclusivamente fundada sobre 
a memória das vítimas, por vezes baseada numa vasta 
literatura testemunhal, outras preservada nos arquivos 
visuais e sonoros. FriedEinder tentou integrar essas duas 
perspectivas para chegar a uma reconstrução global 
do processo histórico, introduzindo a voz das vítimas 
numa narrativa que de outro modo se reduziria à análise 
das decisões políticas e dos decretos administrativos-tl. 
Apesar da sua postura positivista, os historiadores 
alemàes da geração da Hitletjux,cl1d, ou seja, aqueles que 
nasceram entre 1925 e o início dos anos 1930 (Martin 
Broszat, Hans Mommsen, Andreas Hillgruber, Ernst 
Noite, Hans-Ulrich \Xlehler, etc.), tendem, também 
eles, a estabelecer uma empatia com os actores de um 
passado que implica recordações pessoais. As investi-
gações sobre a história da vida quotidiana sob o na-
zismo (AI!ta..~igesthü#e) desenham, na maior parte das 
vezes, um quadro social de que as vítimas simplesmente 
desaparecem+!. Outros não escaparam à armadilha do 
42 
relato apologético. Para Andreas Hillgruber, jovem sol-
dado da \Xlehrmachf em 1945, ao descrever o último 
ano da Segunda Guerra Mundial, o historiador «deve 
identificar-se com o destino da população alemã de 
leste e com os esforços desesperados e custosos do 
Oi/hee," ( ... ) que visavam defender essa população 
contra a vingança do exército vermelho, as violações 
colectivas, os assassinatos arbitrários e as inúmeras de-
portações, e manter abertas rotas terrestres e marítimas 
que permitissem aos alemães dos territórios orientais 
fugir em direcção ao Oeste ... »I~. Ora, como lhe re-
cordou Jürgen Habermas, a resistência encarniçada da 
Wehrmacht nesse último ano de guerra foi também o 
que permitiu a continuação das deportações para os 
campos de concentração nazis, onde as câmaras de gás 
continuavam a funcionar. 
Tradicionalmente, a historiografia não se apresen-
tou sob a forma de um relato polifónico pela simples 
razão de que as classes subalternas não eram tomadas 
em consideração, o que resultou na redução da narra-
ção do passado aos relatos dos vencedores. Foi esse 
historicismo que Benjamin denunciou nas suas TCJeJ 
* Conjunto da:; força:; armada:; da ,\\cmanha durantc o 
Tcrcciro Rcich. 
H I ':xército de Le:;te. NT. 
43 
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Jobre o conceito de hiJtóna, descrevendo o seu método 
como uma forma de empatia unilateral com os ven-
cedores~(,. Na verdade, essa «empatia» - a Einjiihlung 
do historicismo clássico - não é sempre sinónimo de 
apologia. Alguns recusam-na, como Ian Kershaw, na 
sua biografia de Hitler, por ele apresentada como um 
trabalho de um historiador «estruturalist3),~7. A sua 
escolha é motivada tanto pela inconsistência da vida 
privada do führer, que reduziria toda a empatia a uma 
adesão aos seus desígnios políticos, como pelo seu de-
sejo de distinhJUir a sua biografia da, mais antiga, de 
Joachim Fest. Fascinado pela (rgrandiosidade demoní-
aca)) de Hitler, Fest não conseguiu deixar de lhe reser-
var, mesmo sem intenção, «um bom lugar no panteão 
dos heróis alemães»~s. Outros adaptaram uma atitude 
de empatia critica - muito mais um motivo de abalo 
do que de identificação (mais do que empatia, devería-
mos falar de aproximação ({heteropática,,)~<) - que ajuda 
a «compreendem o comportamento dos actores sem 
procurar justificá-los. p, o esforço empreendido por 
Hanna Arendt ao penetrar no universo mental do .r.r 
_Adolf Eichmann, esforço que não foi compreendido 
e que não lhe foi perdoado aquando da publicação do 
seu ensaio sobre a «banalização do mah,~(l. É também 
o sentido do trabalho micro-histórico de Christopher 
Bowning, que tentou compreender por que meio e por 
44 
que etapas certos «homens comuns", como os mem-
bros do 101.0 batalhão de reserva da policia alemã na 
Polónia em 1941, se puderam transformar numa equi-
pa dc massacre prof1ssionaPl. 
Os percalços que resultam de uma empatia de sentido 
único, desprovida de distância critica em relação ao seu 
objecto, são mais frequentes quando a polifonia dos ac-
tores se torna inaudível, escutando-se apenas uma voz, 
não havendo lugar a uma interacção entre memórias an-
tagonistas no espaço público. Se na Argélia a indepen-
dência deu rapidamente lugar a uma história oficial da 
guerra de libertação, em França o esquecimento não se 
podia eternizar. Deveria, mais tarde ou mais cedo, dar 
lugar a uma escrita da história alimentada pela multiplici-
dade de memórias. A memória da França colonial, a dos 
pied-noir/, a dos harki/"', a dos emigrantes argelinos e dos 
seus filhos, e ainda a do movimento nacional argelino, 
mantida também pelos seus representantes entretanto 
exilados, enleiam-se numa memória da guerra da Ar-
gélia que impede uma escrita da história fundada sobre 
uma empatia unilateral, exclusiva. A escrita dessa histó-
ria só se pode fazer sob o olhar vigilante e critico de vá-
rias memória paralelas, que se exprimem no espaço pú-
t Cidadãos franceses LJue viviam na ,\rgdia. N'!'. 
H Milicianos nativos ao serviço do exército francês. N:L 
45 
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blico. Esta interacção de memórias obrigou mesmo os 
próprios torcionários a sairem do seu silêncio, a formu-
larem a sua versão do passados2• Concluindo, história e 
memória interagem aqui, para retomar uma expressão 
muito pertinente de David N. J\lyers, como «categorias 
flutuantes no seio de um campo dinâmico»~-'. 
Do outro lado dos Alpes, a paisagem memorial e his-
toriográfica é bem diferente. Pouco antes da sua morte, 
George L. Mosse, um dos mais fecundos historiadores 
do fascismo do pós-guerra, fez o elogio do seu cole-
ga italiano Renzo De Felice, bem conhecido pela sua 
monumental biografia de Mussolini. O principal méri-
to de De Felice, segundo ~fosse, residia precisamente 
na sua empatia com o fundador do fascismo, no facto 
de ter «tentado proceder desde o interior, imaginando 
como o próprio .i\fussolini concebia os seus actos»''>-I. 
Na sua autobiografia, Mosse conta, em jeito de anedo-
ta, wn episódio da sua adolescência em que se cruzou 
com o ditador italiano. Em 1936, T\Iosse estava em Flo-
rença com a sua mãe. O Eixo, entre a Itália fascista e 
a Alemanha nazi, tinha acabado de ser estabelecido, o 
que provocou agitação entre os judeus alemães que se 
tinham refugiado na península, temendo ser entregues 
às autoridades nazis (ameaça que se concretizará pela 
expulsão em massa em 1938, com a promulgação das 
leis raciais). A mãe do jovem Mosse decidiu então escre-
46 
ver a J\Iussolini para lhe pedir a sua protecção, depois 
de lhe relembrar o auxílio financeiro que o seu marido, 
um importante editor alemào durante a República de 
Weimar, lhe havia oferecido antes da sua chegada ao po-
der. A curta chamada telefónica que o Dm;e fez à sua mãe 
para a tranquilizar mostra, segundo George L. i\.-fosse, 
o «carácter de ;\fussolini, ou pelo menos o seu sentido 
de gratidãQ)-'i~. Ao contrário de }.fosse, De Felice não 
tinha anedotas pessoais para contarsobre o ditador ita-
liano, mas tentou compreender a sua personalidade ao 
longo dos diferentes volumes da sua biografia, enorme 
traballio escrito com uma Eit~fiihllJllg sempre crescente 
ao longo dos anos. Pouco antes da sua morte, De Felice 
publicou uma obra muito controversa, RoJ"J"o e J\.Tero, na 
qual interpreta a última etapa do itinerário de ~lussolini, 
ou seja, o seu papel na guerra civil italiana de 1943-1945. 
Segundo De l'elice, «j\.Iussolini, agrade-nos ou não, acei-
ta o projecto de Hitler por motivação patriótica: foi um 
autêntico "sacrifício" no altar da defesa da pátria»~('. Os 
historiadores franceses estão familiarizados com esta 
tese, já defendida por Robert Aron, que apresentou o 
regime de Vichy como um ~~escudo» proteetor contra 
os tormentos de uma ocupação total do país~7 (evitando 
desta forma um destino semelhante ao da Polônia). 
Os historiadores do colonialismo fascista trouxeram 
à luz documentos que tinham sido ignorados pelas pes-
47 
luisaelvira
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quisas arquivísticas, bastante extensas, de De Felice. O 
ditador italiano demonstra aí um aspecto diferente do 
seu carácter e esses documentos emprestam um outro 
significado tanto ao seu sentido de gratidão como ao 
seu espírito de sacrificio. A 8 de Julho de 1936, Mussoli-
ni telegrafou a Rodolfo Graziani, um dos principais res-
ponsáveis militares durante a guerra da Etiópia, uma di-
rectiva autorizando-o «mais uma vez ( ... ) a levar a cabo 
de forma sistemática a política de tcrror e de extermínio 
contra os rebeldes e populações suas cúmpliCCs>}S8. Com 
uma notável devoção patriótica, Graziani não hesitou 
em utilizar as armas químicas para pôr fim à resistência 
criope. E foi com gratidão que Mussolini reconheceu os 
seus méritos, ao nomeá-lo ministro da Defesa da Repú-
blica de Saló no Outono de 1943. 
Foi através da pesquisa de runa enorme quantidade 
de documentos destc género que alguns investigadores 
italianos puderam reconstituir a história do genocídio 
fascista na Etiópia em 1935-1936. ivIas o rcconheci-
mento desse gcnocídio permanece uma aquisição (no 
fim de contas, muito recente) exclusivamente historio-
gráfica. Nunca penetrou verdadeiramente na memória 
colectiva dos italianos, para quem, no seu con;lUlto, a 
recordação da guerra da Etiópia permanece como uma 
aventura ingénua e inocente, bem resluuida pela letra 
de uma célebre canção da época, que todos conhecem, 
48 
F"a:ella nera, um concentrado de estereótipos do imagi-
nário colonial. Um conjunto de circunstâncias históricas 
(as crises, guerras e ditaduras conhecidas pela Etiópia 
até ao presente, tal como a reduzida imigração etiope 
em Itália, que nunca foi wn lugar de formação de uma 
elite intelectual e política africana) impediu que a voz 
das vítimas desse genocídio encontrassem um lugar no 
relato italiano dessa guerra. Apesar dos seus esforços, 
a historiografia não poderá tapar os buracos de uma 
memória mutilada. No melhor dos casos, esta tornar-
-se-á, como na Alemanha, uma história na qual haverá 
«crimes sem vítimas}) ou vítimas completamente anó-
nimas sem identidade e sem rosto. Nós não conhece-
mos a·versão da guerra contada pelos companheiros de 
I-Iailou Tchebbedé, um dos chefes de resistência etíope; 
dele conhecemos apenas as fotos da sua cabeça exibida 
como um troféu pelos soldados italianos;'). Esperemos 
que os estudos pós-coloniais venham brevemente que-
brar esta dialéctica asfixiada entre história e memória. 
Na sua última obra, Hülo~y. Tbe L.aJt ThingJ" Bq(ore lhe 
I AS!, Siegfried Kracauer utiliza duas metáforas para de-
finir o historiador. A primeira, a do judeu errante, visa a 
historiografia positivista. Como «Punes, cl memorios(»), 
o herói do célebre conto de Borges, Ahasvérus, que atra-
vessa os continentes e as épocas, nada pode esquecer e 
está condenado a deslocar-se incessantemente, carrega-
49 
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do com o seu fardo de recordações, memória viva do 
passado de que é o infeliz guardião. Alvo de compaixão, 
ele não encarna qualquer sabedoria, nenhuma memória 
virtuosa ou educativa, apenas wn tempo cronológico, 
homogéneo e vazid'jo. A seglUlda metáfora, a do exilado 
- poderíamos também dizer a do estrangeiro, seglUldo a 
definição de Georg Simmel -, faz do historiador uma 
figura de e_',:traterntonalidade. À semelhança do exilado, 
dividido entre dois países, a sua pátria e a sua terra de 
adopção, o historiador encontra-se clivado entre o pas-
sado que explora e o presente em que vive. É assim 
obrigado a adquirir wn estatuto «extraterritoriab~, em 
equihbrio entre o passado e o presente(,]. Como o exila-
do, que é sempre um outsider no país de acolhimento, o 
historiador procede a uma intrusão no passado. No en-
tanto, da mesma forma que o exilado se pode familiari-
zar com o país de acolhimento, e sobre ele fazer incidir 
um olhar crítico, simultaneamente interior e exterior, 
feito de adesào e distanciação, o historiador - não é a 
norma, é uma virtualidade - pode conhecer em pro-
fundidade uma época já passada e, graças ao seu olhar 
retrospectivo, reconstituir os seus traços com uma mui-
to maior dareza do que os contemporâneos. A sua arte 
consiste em reduzir ao máximo as desvantagens que a 
distância provoca e tirar o maior proveito das vantagens 
epistemológicas que dela provêm. 
50 
Enquanto «passado!) (Gren:::gánger) extraterritorial, 
o historiador é devedor da memória, embora, por seu 
lado, actuc sobre esta, já que contribui para a formar e 
para a orientar. Precisamente porque, em vez de viver 
encerrado numa torre, participa na vida da sociedade 
civil, o historiador contribui para a formaçào de uma 
consciência histórica e, portanto, de wna memória mledi-
va (plural e inevitavelmente conflituosa, atravessando o 
conjunto do corpo social). Dito de outra forma, o seu 
trabalho contribui para aquilo que Habermas chamou 
«uso público da história>~62. Trata-se de uma constatação 
que não precisa de ser sublinhada: os debates alemães, 
italianos e espanhóis em torno do passado fascista, os 
debates franceses em torno do passado vichista e colo-
nial, os debates argentinos e chilenos em torno do lega-
do das ditaduras militares, os debates europeus e ameri-
canos em torno da escravatura - a lista seria inesgotável 
_, ultrapassam largamente as fronteiras da investigação 
histórica. Invadem a esfera pública e interpelam o nos-
so presente. 
o livro de Ludmila da Silva Catela, f\.To babrá flores en 
la tumba dei paiado, sobre a memória das vítimas da dita-
dura militar argentina, é um bom exemplo de investiga-
ção histórica que faz da memória o seu objecto, ao mes-
mo tempo que se inscreve num contexto sensível, ine-
vitavelmente participando numa utilização pública da 
51 
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história(,". Trata-se, desde logo, de hútória ora!, porque a 
autora fez um inquérito entre os familiares (pais, filhos, 
irmãos e irmãs) dos desaparecidos de La PIata, cidade 
onde a repressão militar foi particularmente virulenta 
e extensiva. É o relato do seu medo, da sua esperança, 
da sua espera, da sua ira, da sua coragem, da sua ne-
cessidade de agir, do seu alívio depois de cada pequena 
acção pública. Trata-se, em seguida, de história polítúu: 
como se começaram a organizar, como encontraram a 
força para agir publicamente, como inventaram formas 
de luta (denúncia, contra-informação) e símbolos (o 
paiiue!o", etc.). De que forma estas acções responderam 
a um imperativo moral, a uma necessidade pessoal, e 
Como deram lugar a um movimento político Com um 
forte impacto no conjunto da sociedade civil. Como 
as mães, e por vezes as avós, que eram domésticas, se 
tornaram as dirigentes de um movimento da socieda-
de civil contra a ditadura militar. Trata-se ainda, a par 
da história oral e da história política, de antropologiae 
púcologia: um estudo sobre o sofrimento e sobre a im-
possibilidade do luto ligados ao desaparecimento. Os 
familiares sabem que os desaparecidos morreram mas 
não os podem considerar como tal porque os seus cor-
pos nunca foram encontrados. Daí a especificidade, e 
* Ll.:oço quI.: as mulhl.:rcs usam na cabl.:ça. N:L 
52 
até a criatividade, de uma rememoração que acompa-
nha esse luto simultaneamente inesgotável e impossível 
(os desfiles das Madrel, o aparecimento dos panuelos, as 
fotografias dos desaparecidos na imprensa, o «assédio» 
às autoridades, a abertura dos arquivos, os processos, 
a procura dos corpos das vítimas, os eüTadles, ou seja, 
as denúncias públicas em frente às casas dos torcioná-
rios, etc.). Uma rememoração profundamente ancorada 
no presente, como o provam as madrej" e os hijoj" que 
apoiam os piquetes dos desempregados, porque a luta 
dos piqueteroi pela «dignidade humana» é a mesma que 
a dos seus filhos e dos seus pais mortos pela ditadura, 
Assim é este livro de história, fundado numa empatia 
crítica que volta a dar um rosto e uma voz a quem a 
ditadura militar tinha querido apagar sem deixar rasto, 
explorando a sua memória, através da suas famílias, na 
Argentina de hoje, 
53 
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II 
o tempo e a força 
Tempo hÍJlórico e tempo da memória 
A história e a memória têm as suas próprias temporah-
dadcs, que se cruzam, se chocam e se entretecem cons-
tantemente, sem que, no entanto, cheguem a coincidir 
inteiramente entre si. A memória é portadora de uma 
temporalidade que tende a pôr em causa o continuum da 
história. Walter Benjamin ilustra-o nas suas Teses sobre 
o cOflaito de históda. Na tese XV é evocado um episó-
dio curioso da revolução de Julho de 1830: ao cair da 
noite, depois dos combates, em vários locais de Paris e 
ao mesmo tempo, as pessoas disparavam sobre os reló-
gios como se quisessem parar o dia 1• A temporalidade 
da revolução - a Revolução Francesa tinha introduzido 
55 
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um novo calendário - não é a dos relógios, mecânica e 
vazia, mas antes, esclarecia Benjamin, a da «lembran-
ça», a da revolução como acto redentor da memória 
dos vencidos. Nos seus comentários sobre as teses de 
Benjamin, l'vrichael Lówy mostra uma outra imagem es-
pantosamente homóloga à dos insurrectos de 1830. É 
uma fotografia datada de Abril de 2000, onde figuram 
indígenas a disparar sobre o relógio das comemorações 
oficiais do quinto centenário da descoberta do BrasiF. 
~"\ memória dos oprimidos não se priva de protestar 
contra o tempo linear da história. Ela exige, segllildo 
Benjamin, «um presente que não é de forma alguma 
a passagem do tempo, mas antes a sua paragem e blo-
queÍQ)-'. 
Para ter lugar, a prática historiográfica exige um dis-
tanciamento, uma separação ou mesmo uma ruptura 
com o passado, pelo menos na consciência dos con-
temporâneos. Isto constitui uma premissa essencial 
para proceder a uma his/oáâzação, ou seja, uma perspec-
tivação histórica do passado. Essa distância instala-se 
muito mais através de fracturas simbólicas (por exem-
plo na Europa, 1914, 1917, 1933, 1945, 1968, 1989, 
etc.) do que em virtude de um simples distanciamento 
temporal. A essa distância engendrada por uma ruptu-
ra corresponde normalmente a acumulação de certas 
premissas materiais da investigação; desde logo, a cons-
56 
f 
tituição e abertura de arquivos privados e públicos. Mas 
esta condição é secundária e derivada. A Era dos Extre-
mos de Eric Hobsbawm ou a obra colectiva O Sérulo dos 
Comunismos não poderiam ter visto a luz do dia antes da 
queda do Muro de Berlim e do desmoronamento da 
URSS~. Um trabalho pioneiro como Le Breviaire de la 
IJaine de Uon Pohakov (1951) pressuplUlha nào apenas 
o fim da guerra e a queda do nazismo, como também a 
possibilidade de consultar os arquivos que tinham per-
mitido instruir os processos de Nuremberga'. Enfim, 
para escrever um livro de história que nào seja somen-
te um trabalho de erudição é também necessária uma 
procura social, pública, o que remete para a intersecção 
da investigação histórica com os percursos da memória 
colectiva. É por isso que La Des/n/dio" deJjlJ~fs d'l;;urope 
de Raul Hilberg teve um impacto muito reduzido no 
momento da sua primeira edição em 1960, tornando-se 
uma obra de referência apenas a partir dos anos 1980(). 
A memória, por seu lado, tende a atravessar várias 
etapas que poderíamos, retomando o modelo proposto 
por Henry Rousso em Le S)ndrome de Vidry, descrever 
da seguinte forma: pritneiro, um acontecimento mar-
cante, uma viragem, muitas vezes um trauma; depois, 
uma fase de recalcamento, mais tarde ou mais cedo 
seguida de uma inevitável anamnese (o «regresso do 
recalcadQ)) que pode, por vezes, converter-se em ob-
57 
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sessão memoriaF. No caso do regime de Vichy, esse 
modelo corresponde ao fim da guerra e à Libertação, 
ao recalcamento dos anos 1950 e 1960, à anamnese a 
partir dos anos 1970 e, por fim, à obsessão actual. No 
caso alemão: a Schulc!frage de ]aspers em 1945, o recal-
camento no período de Adenauer, a anatnnese a partir 
de 1968 e, por fim, uma obsessão com o passado que 
teve o seu ponto culminante com a Hislorikerstreit', o 
caso Goldhagen, a polêmica Bubis-Walser e a exposição 
sobre os crimes da Wehrmacht organizada pelo InstituI 
.flk S o~/a!forschung de Hamburgo. 
Duran te a fase do recalcamento, a reivindicação do 
«direito de memória» assume um tom critico, quando 
não a aparência de uma revolta ético-política contra 
o silêncio cúmplice. Quando o governo de Adenauer 
incluiu entre os seus ministros antigos nazis, como 
Hans Globke, um dos autores das leis de Nuremberga, 
: Adorno considerou a expressão «superar o pa~~-ad-~):' 
(Vergangenheif Bewii/t(f!,ung), então muito em voga, como 
uma mistificação que procurava «virar definitivamente 
a página e se possível apagá-la da própria memória». 
Falar de «reconciliação» significa neste caso reabilitar 
os culpados, numa época em que «a sobrevivência 
do nazismo dentro da democracia representa maior 
* A controvérsia dos historiadores. NT 
58 
perigo potencial do que a sobrevivência de tendências 
fascistas dirigidas !'"ontra a democracia»ll. Jean Améry 
reivindica o seu «ressentimento» quando «o tempo fez 
o seu trabalho, em paz», e «a geração dos extermina-
dores» envelhece placidamente, sob o respeito geral; 
e neste cenário, conclui, é ele quem «carrega o fardo 
da culpa colectiva», não eles, «o mundo que perdoa 
e esquece»'). Pelo contrário, durante a fase da obses-
são, como a que hoje atravessamos, o «dever de mem-
ória» tende a se tornar uma fórmula retórica e con-
formista. 
A historiografia seguiu, grosso modo, o percurso 
da memória. Não seria difícil mostrar que a produção 
histórica sobre Vichy e sobre o nazismo conheceu um 
assinalávcl desenvolvimento no momento da anamne-
se e alcançou um pico durante a fase da obsessão. Foi 
alimentada por essas etapas e, por sua vez, moldou-as. 
Basta pensar na Alemanha Federal, que domina hoje 
em dia a investigação sobre o genocídio dos judeus, 
mas onde, nos anos 1950, os trabalhos pioneiros de 
]oseph Wulf c Léon Poliakov foram rejeitados como 
<<I1ão científicos»w. Esta correlação não é, todavia, li-
near: as temporalidades histórica c memorial podem 
também entrar em colisão, numa espécie de {(llão-con-
temporaneidade» ou de «discordância dos tempos» (a 
U/lgleúh~eitl~f!,keit teorizada por Ernst Blochll). 
59 
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São Inumeráveis os exemplos de coexistência de 
temporalidades diferentes.A literatura, o cinema e uma 
imensa produção sociológica analisaram o conflito 
entre tradição e modernidade, que assume, sobretudo 
nas grandes cidades, a forma de wn choque geracional 
entre pais emigrados e filhos nascidos no país de aco-
lhimento. Os judeus polacos de Nova Iorque descritos 
por Isaac Bashevis Singer, os paquistaneses de Londres 
narrados por Hanif Kureishi, os italo-americanos fil-
mados por Martin Scorcese nos seus primeiros traba-
lhos, justapõem no seio de uma mesma familia visões 
do mundo e modos de vida distintos que remetem para 
percepções do tempo e para memórias completamen-
te diferentes, por vezes incompatíveis. Os zapatistas de 
Chiapas fazem coabitar o tempo cíclico das comunida-
des indígenas com wn projecto político de libertação 
que se inscreve numa narrativa marxista da modernida-
de (embora liberta de mitologias progressistas) e tam-
bém no «presente perpétuo)) do mundo contemporâ-
neo, o da dominação globalizada que combatem12. 
Queria apresentar como exemplo um caso significa-
tivo e paradoxal de discordância de tempos, de colisão 
entre o olhar histórico e a memória colectiva: a recep-
ção do ensaio de Hannah Arendt sobre o processo de 
Eichman em Jerusalem, cujo subtítulo, «a banalidade 
> do mah); provocou escândalo 0. Esse processo foi pre-
60 
cisamente uma viragem que pós fim ao longo período 
de ocultação e esquecimento do genocídio dos judeus 
e deu início ao momento da anamnese. Pela primeira 
vez, o judeucídio' tornou-se um tema de reflexão para 
a opiniào pública internacional, muito além do mundo 
judaico. Foi também um momento catártico de liber-
tação da palavra, já que um grande número de sobre-
viventes do extermínio nazi veio ao processo prestar 
testemunho. Ora, no momento em que o mundo to-
mava consciência da amplitude do genocídio judaico, 
que aparecia agora como um crime monstruoso e sem 
precedentes, Hanna Arendt focalizava o seu olhar em 
Eichmann, um representante típico da burocracia ale-
mã que encarnava, a seus olhos, a banalidade do mal. 
_Arendt, cujos escritos dos anos 1940 provam ter sido 
dos primeiros, nwn mundo então cego, a perceber a 
dimensào desse crime, já nào concentrava a sua atenção 
nas vítimas mas nol~arrasco. i\doptava aquilo que Raul 
Hildberg definiria, bastante mais tarde, como a «pers-
pectiva do executoo)l"', um executor que ela podia enfim 
observar olhos nos olhos, em carne e osso. Ao adoptar 
essa perspectiva, Arendt confrontava-se com um crime 
monstruoso perpetrado por executores que nào eram 
monstros habitados pelo ódio e pelo fanatismo, mas 
* Na vcrsão orihrinal, «judéocidc). N:J: 
61 
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gente normal., Os observadores e os comentadores do 
1 processo, pelo contrário, tinham adoptado uma outra 
perspectiva, a da memória dos sobreviventes que re-
viviam o seu sofrimento no presente. A ferida estava 
ainda aberta e a sangrar; apenas tinha estado escondida 
e aparecia agora à luz do dia. A sua atenção estava con-
centrada nos testemunhos dramáticos prestados duran-
te o processo pelos sobreviventes, em face dos quais 
Eichmann não era mais do que um símbolo. Em tais 
circunstâncias, a bailai idade do mal invocada por .-\rendt 
nào foi vista como uma noção susceptível de compre-
ender as motivações e as categorias mentais dos execu-
tores mas, muito simplesmente, como uma tentativa de 
banalizar um dos piores crimes da História da huma-
nidade''>, 
O modelo tomado de empréstimo a Henry 
Rousso pode, contudo, conhecer numerosas variantes. 
Na Turquia, por exemplo, a memória e a história do 
genocidio dos armênios nunca podem ser elaboradas 
e escritas no espaço público. Foram desenvolvidas fora 
do país, na diáspora e no exílio americano, com todas 
as consequências que isso implicau,. Por um lado, a me-
mória erigiu-se não apenas contra o esquecimento, mas 
sobretudo contra um regime político que oculta e nega 
o crime no presente. Por outro lado, a escrita da história 
sofreu diversos entraves, visto que a ocultação passou 
62 
r 
pelo encerramento dos arquivos e a multiplicaçào dos 
obstáculos à investigação17 . 
O recalcamento pode perpetuar-se também de ou-
tras formas. A. memória do estalinismo é profundamen-
te heterogéllea, uma vez que é simultaneamente memória 
da revolução e do Gulag, da «grande guerra patriótica» 
e da opressão burocrática. Acompanhou, durante várias 
décadas, um regime no poder. Nesse contexto, a sua ex-
pressão pública aparecia como uma forma de combate 
- e assim foram considerados os livros de Gustav I-Icr-
ling, de Alexandre Soljenitsyne, de Vassili Grossman e 
de Varlam Chalamov - contra um regime que não se 
podia arquivar como passado, nem colocar à distância. 
Essa memória é hoje em dia asfixiada, dez anos depois 
da queda da URSS. O processo de integração da me-
mória do estalinismo na consciência colectiva iniciou-se 
no decurso dos anos 1980, no período de Gorbatchev, 
quando se multiplicaram as associações dos antigos 
deportados e as reivindicações em favor da reabilita-
ção das vítimas. Esse movimento foi bruscamente in-
terrompido sob a presidência de Ieltsine, que marcou 
uma viragem. O trabalho de luto e de apropriação de 
um passado proibido abriu caminho a para uma reabi-
litação massiva da tradição nacional. A vergonha ligada 
à tomada de consciência do estalinismo foi substituída 
pelo orgulho de um passado russo (a que pertencem tan-
63 
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to os czares como Estaline)IH. Um fenômeno análogo 
caracterizou os países do ex-Império Soviético, onde a 
in tradução da economia de mercado e a emergência de 
novos nacionalismos marginalizaram completamente a 
recordação das lutas por wn ((socialismo de rosto hu-
mano», 
Em I tália, onde o antifascismo foi o pilar das ins-
tituições republicanas nascidas no fim da Segunda 
Guerra j\.fundial, a interpretação histórica do fascismo 
foi, durante uns bons trinta anos, indissociável da sua 
condenação ética e política. A partir do fim dos anos 
1970 desenvolveu-se uma nova leitura do passado, 
muito mais preocupada em colocar em evidência os 
consensos sobre os quais se apoiou o regime de Mus-
solini e, ao mesmo tempo, decidida a libertar-se dos 
constrangimentos da tradição anti fascista. Durante os 
anos 1990, essa viragem historiográfica acentuou-se 
com o fim dos partidos que tinham criado a república 
(o Partido Comunista, a Democracia Cristã e o Partido 
Socialista) e a legitimação dos herdeiros do fascismo 
como força de governo (a actual Aliança Nacional). 
Esta mutação foi acompanhada pelo regresso do re-
calcado (o fascismo) ao espaço público, com efeitos 
inesperados e paradoxais. Por um lado, traduziu-se no 
fim do esquecimento das vítimas do genocídio judai-
co (anteriormente sacrificados no altar da guerra de 
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libertação nacional, na qual todos os deportados se 
tornaram automaticamente mártires da pátria, portan-
to deportados políticos) e, por outro lado, na reabili-
tação do fascismo, ou seja, dos seus perseguidores. A 
crise dos partidos e das instituições que encarnavam a 
memória anti fascista criou as condições para a emer-
gência de uma outra memória, até então silenciosa e 
estigmatizada. O fascismo é agora reivindicado como 
uma parte da história nacional, o antifascismo rejeita-
do como uma posição ideológica «antinacionah> (o 8 
de Setembro de 1943, data da assinatura do armistício 
e início da guerra civil, foi apresentado como um sím-
bolo da «morte da pátria»I'). O resultado foi, no Outo-
no de 2001, um discurso do presidente da República, 
Carla Azeglio Ciampi, comemorando indistintamente 
«todas» as vítimas da guerra, ou seja, judeus, soldados, 
resistentes e milicianos fascistas, agora afectuosamen-
te apelidados «(OS rapazes de Salà»2(1. Dito de outro 
modo, tratou-se de uma comemoração conjunta dos 
que morreram nas câmaras de gás e dos que os identi-

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