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Seria difícil pensar em um único tema mais falado, mais cantado e mais celebrado do que o amor. No entanto, em parte por ser tão familiar, o amor é quase sempre tido como favas contadas e com frequência é entendido erradamente pelas mesmas pessoas que mais falam a respeito. E, encaremos a realidade: isso é verdade até mesmo na igreja. Somos gratos a Philip Ryken por essa análise maravilhosamente renovada e bíblica do que o amor verdadeiro é, quando o vemos na perfeita pureza de Cristo. Ao mesmo tempo simples e profundo, esse livro certamente questionará suas pressuposições sobre o amor e o ajudará a ver o amor autêntico sob uma luz inteiramente nova. John MacArthur, pastor na área de ensino da igreja Grace Community Church, Sun Valley, Califórnia, Estados Unidos, e autor de vários livros Usando um esquema peculiar, Ryken torna compreensível o Capítulo do Amor, escrito por Paulo, por meio de relances da vida de Jesus e dos discípulos. Dessa maneira, ele nos mergulha no amor superabundante de Jesus e nos anima a passá-lo adiante. Que esse livro o cubra por completo com a plenitude do amor exuberante do Deus triúno! Marva J. Dawn, professora de Teologia Espiritual na Regent College e autora de Truly the community Philip Ryken destaca o que é verdadeiramente importante quando se concentra no atributo central que, em teoria, deve caracterizar aqueles que seguem Jesus: que amemos uns aos outros. E a definição de amor que ele apresenta não é uma abstração teórica, mas é solidamente personificada pelo próprio Jesus. Não consigo imaginar um livro mais oportuno do que esse ou uma mensagem de que a igreja precise mais desesperadamente do que o chamado a amar como Jesus amou. Ryken prestou um grande favor a todos nós, levando-nos como um pastor a buscar o aspecto central de nosso chamado para sermos como Jesus. Carolyn Custis James, presidente da Synergy Women’s Network e autora de When life and beliefs collide Boa parte de seguir Jesus é uma questão de sermos lembrados daquilo que aprendemos no passado. Eu aprendi que ele me amou primeiro e que seu amor está no âmago da minha pequena capacidade de amar os outros. Eu aprendi certa vez que, quando meu amor se acabasse, ele permaneceria comigo e me reabasteceria até transbordar. Eu aprendi essas coisas, mas tinha esquecido delas. Serei sempre grato a Philip Ryken por esse importantíssimo lembrete. Michael Card, músico, professor de Bíblia e autor de A better freedom Com base em um estudo cuidadoso, imerso na Escritura e muito consciente do mundo em que vivemos e das experiências pelas quais as pessoas passam, Ryken mostra como podemos amar com o tipo de amor que Deus demonstrou por nós. Essas qualidades fizeram de Ryken um de meus autores favoritos, e também de minha esposa. Ajith Fernando, diretor de ensino da Mocidade para Cristo, Sri Lanka e autor de A supremacia de Cristo (Shedd) Outra contribuição notável de Philip Ryken, a qual, na minha condição de seguidor de Cristo, me desafia lá no íntimo do meu ser. Se, de fato, tudo se resume ao amor — ao amor de Deus por um mundo perdido e ferido —, então a pergunta é: como seguidor de Cristo, até que ponto estou imitando esse amor? Caso ousemos pensar que estamos amando como Cristo, esse olhar perspicaz sobre o Capítulo do Amor nos levará a repensar o assunto. Emery Lindsay, bispo-presidente da junta diretiva da denominação Church of Christ (Holiness), nos Estados Unidos Existem muitas exposições de 1Coríntios 13, mas bem poucas mostram como o amor de Deus em Cristo Jesus é a melhor de todas as exibições e a mais verdadeira personificação do amor. Analisando o Capítulo do Amor por esse prisma, Ryken dá grande clareza à meditação de Paulo sobre o amor e mostra como esse amor nos leva de volta a uma renovada adoração de Cristo. Refletir sobre como Cristo, mediante sua vida e morte, faz com que 1Coríntios 13 salte aos nossos olhos é algo que nos leva a ver com clareza a frequente ausência de amor em nossa própria vida, desnuda todas as noções de amor que são pouco mais do que conversa mole sentimental e dá ao amor uma robustez e concretude que é parte integrante de confiar em Cristo e segui-lo. D. A. Carson, professor-pesquisador de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, e autor de Cristo e cultura (entre muitos outros publicados por Vida Nova) Amar como Jesus ama é profundamente instrutivo sobre a natureza do verdadeiro amor cristão, sobre a magnitude das manifestações desse amor pelo próprio Jesus e sobre as maneiras como nós, seus seguidores, devemos exibir seu amor em nossa vida. Esse estudo honra a Cristo de duas maneiras: destacando-o como o grande amante que é e chamando-nos a imitar nosso Senhor em uma vida que é cada vez mais a vida de amor que ele manifestou. Meditação sobre o amor de Cristo e sobre amar como Jesus — é isso que esse livro incentiva com grande perspicácia e profundidade. Bruce Ware, professor de Teologia Cristã no Southern Baptist Theological Seminary e autor de Teísmo aberto (Vida Nova) O amor incondicional de Deus detona todas as nossas categorias condicionais. É indomável e indiscriminado. Surge em nosso caminho sem nenhum mérito nosso. É mão única vertical, mas constrange a uma expressão horizontal. O amor da parte de Deus inevitavelmente se mostra no amor pelos outros. E é isso que Philip Ryken demonstra tão bem. Escrevendo como alguém que é ao mesmo tempo pastor e erudito, Ryken faz um apelo apaixonado à igreja para que redescubra aquilo que Francis Schaeffer chamou de “a derradeira apologética”, a saber, o amor. Isso é o que mais importa. Tullian Tchividjian, autor de Fora de moda (Cultura Cristã) Como alguém que tem conhecido a alegria, experimentado a disciplina e provado a comunhão do amor de Deus por mais de quarenta anos, encorajo-o a ler esse livro. Escrito por um homem que ama a Deus e é profundamente amado por ele, essa obra olha para o amor de Deus com ponderação, perspicácia e cuidado. James MacDonald, pastor titular da igreja Harvest Bible Chapel, em Rolling Meadows, em Illinois, Estados Unidos, e autor de Senhor, transforma minha atitude antes que seja tarde demais (Vida Nova) Amor é uma palavra que muitos tendem a usar de uma maneira que faz com que perca sua força. Mas esse problema é agravado quando Jesus — o amante supremo de Deus e do homem — é apresentado de forma reducionista e inócua, como um amante passivo que aceita tudo. Mas, ao examinar essa obra do dr. Ryken, encontramos o amor multifacetado de Jesus exibido como pano de fundo de 1Coríntios 13. Esse amor também é exibido gloriosamente com mais clareza na obra consumada de Jesus na cruz. O amor de Deus, conforme apresentado nesse livro, desafiará e inspirará todos os que o lerem a exibi-lo para suplantar os estereótipos de amor que permeiam o nosso mundo. Eric Mason, pastor principal da igreja Epiphany Fellowship, Filadélfia, Pensilvânia Existem dois livros que causaram um impacto permanente em mim e mudaram o curso da minha vida. O primeiro chegou às minhas mãos na faculdade, enquanto procurava respostas para a vida. Cristianismo básico (Ultimato), de John Stott, me ajudou a conhecer Jesus Cristo como meu Senhor e Salvador. Agora, Amar como Jesus ama está me ensinando a viver uma vida cristã vitoriosa até que, pela graça de Deus, eu seja chamado para ir para meu lar eterno. O livro não trata apenas de conhecer o amor de Deus em Cristo, mas de viver o amor de Deus. É a mais esplêndida exposição sobre o amor de Deus que já li. Leia-a você mesmo para entender a luta de viver pela graça de Deus e para se envolver nessa luta. Creio que esse livro transformará o mundo ao nosso redor. I. Henry Koh, coordenador de Korean Ministries, Mission to North America, Presbyterian Church in America O texto de 1Coríntios 13 é com certeza um dos capítulos mais conhecidos e ao mesmo tempo menos compreendidos de toda a Bíblia. Lido com sinceridade em incontáveis cerimônias de casamento, nós concordamoscom um balançar da cabeça, mas sem considerar como as palavras de Paulo podem ter um propósito bem mais profundo do que simplesmente ser uma bênção matrimonial. E é exatamente isso que Ryken deu à igreja: um novo olhar sobre essa passagem desafiadora, não mais presa a questões de casamento, mas exposta eloquentemente ao longo da vida de Cristo. Ryken revela uma visão surpreendentemente profunda e iluminadora para cada crente, e não apenas para noivos e noivas. Phil Vischer, criador das animações computadorizadas O que está na Bíblia? e Os vegetais, autor de Me, myself & Bob Insistirei para que todos os pequenos grupos de nossa igreja estudem esse livro em um futuro próximo. Sabemos que Jesus nos deu a ordem de fazer discípulos de todas as nações, e dizemos que isso significa que devemos aprender com Jesus para que possamos nos tornar parecidos com ele. Mas como fazemos isso? O dr. Ryken apanhou o grande capítulo da Bíblia sobre o amor e nos mostrou como era o amor na vida de Jesus, em termos práticos. O livro é bíblico e prático e, ao mesmo tempo que condena nossa falta de amor, também nos incentiva. Eu o recomendo muitíssimo a todos os que têm um desejo profundo de se tornarem completos em Cristo. Greg Waybright, pastor titular da igreja Lake Avenue Church, Pasadena, Califórnia, Estados Unidos CDD 241.677 18- 0777 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Ryken, Philip Graham Amar como Jesus ama : um novo olhar sobre 1Coríntios 13 / Philip Graham Ryken ; tradução de Marcio L. Redondo. -- São Paulo: Vida Nova, 2018. ISBN 978-85-275-0865-0 Título original: Loving the way Jesus loves 1. Amor – Aspectos religiosos 2. Cristianismo – Doutrina bíblica 3. Bíblia. N.T. Coríntios - Crítica, interpretação, etc. I. Título II. Redondo, Marcio L. Índices para catálogo sistemático: 1. Amor – Aspectos religiosos - Cristianismo ©2012, Philip Graham Ryken Título do original: Loving the way Jesus loves, edição publicada por CROSSWAY (Wheaton, Illinois, EUA). Todos os direitos em língua portuguesa reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020 vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br 1.ª edição: 2018 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da English Standard Version (ESV). As citações com indicação da versão in loco foram traduzidas diretamente da New International Version (NIV). DIREÇÃO EXECUTIVA Kenneth Lee Davis GERÊNCIA EDITORIAL Fabiano Silveira Medeiros EDIÇÃO DE TEXTO Lucília Marques Rosa Ferreira PREPARAÇÃO DE TEXTO Victória Cardoso Marcia B. Medeiros REVISÃO DE PROVAS Abner Arrais GERÊNCIA DE PRODUÇÃO Sérgio Siqueira Moura DIAGRAMAÇÃO Wirley - Layout Produção Gráfica CAPA Lico Rolim CONVERSÃO PARA EPUB SCALT Soluções Editoriais A LISA MAXWELL, meu primeiro, único e verdadeiro amor, e a JESUS CRISTO, a eterna fonte de todo verdadeiro amor SUMÁRIO Prefácio 1 Nada sem amor 2 Amor que é melhor que a vida 3 O amor não é irritável 4 O amor e sua santa alegria 5 O amor espera 6 O amor em toda a sua amplitude 7 O amor tem esperança 8 O amor não é egoísta 9 O amor suporta todas as coisas 10 O amor confia 11 O amor perdoa 12 O amor nunca falha Índice de passagens bíblicas PREFÁCIO “Escrever sobre o amor de Deus é privilégio e responsabilidade supremos do teólogo cristão.” Assim diz Kevin Vanhoozer, que leciona teologia na Wheaton College. Além de privilégio e responsabilidade, escrever sobre o amor de Deus também é a suprema humilhação de um teólogo. Presume-se que só um enamorado é capaz de escrever sobre o amor. Mas, se existe uma área na minha vida em que sei que não alcanço o caráter de Cristo, essa área é amar a Deus e a meu próximo verdadeiramente. Ainda assim, meu coração, que às vezes é sem amor, é forçado a dar testemunho da verdade do amor de Deus em Jesus Cristo. Este livro começou praticamente com a última série de sermões que preguei na Décima Igreja Presbiteriana da Filadélfia. O amor daquela congregação — um amor sincero e como o de Cristo — ajudou a sustentar meu ministério ali por quinze anos. No entanto, apesar de todo o amor que partilhamos como família da igreja, ainda assim descobrimos que tínhamos um espaço aparentemente infinito para crescer no amor de Deus. Estudar 1Coríntios 13 de uma forma cristocêntrica nos ajudou — assim como espero que venha a ajudar você — a aprender a amar do mesmo modo que Jesus ama. Como demonstração de amor, vários amigos e colegas ajudaram a melhorar este livro enquanto era preparado para publicação. Lynn Cohick, David Collins, Lois Denier, Tom Schwanda e LaTonya Taylor leram o manuscrito, fazendo as correções necessárias e sugerindo inúmeras maneiras de reforçar a exposição e a aplicação do texto bíblico. Robert Polen conferiu fatos e prestou ajuda administrativa. Nancy Ryken Taylor preparou as perguntas de estudo. Marilee Melvin participou das revisões finais. Lydia Brownback e outros amigos da editora Crossway editaram o livro e conduziram carinhosamente a produção do livro até a hora da impressão. Esses esforços de amor ajudarão você a ver, com mais clareza, o amor de Jesus nas páginas deste texto. Enquanto eu estudava 1Coríntios 13, li o testemunho dado por alguém da World Harvest Mission que expressa minha própria necessidade de ter mais do amor de Jesus. Um missionário escreveu: Ao voltar para casa depois de um dia distribuindo ajuda humanitária, fui para a cozinha, onde estava minha filha de três anos de idade. Ela estava fazendo um desenho de nossa família. Notei que no desenho eu parecia estar a certa distância do restante da família e tinha a testa claramente franzida. — Esse é o papai? — perguntei. — É, sim — veio a resposta meio tímida. — Por que eu estou com a testa franzida? Ela disse: — Papai, é que você nunca mais dá um sorriso. O homem começou a pedir ajuda. “Orem por mim”, ele escreveu. Quero “aplicar essa mensagem do amor de Deus neste coração frio e duro”. A oração do missionário é a minha oração também, e espero que você a torne sua oração enquanto lê este livro: “Senhor Jesus, aplica o evangelho do teu amor ao meu coração frio e duro”. Philip Ryken Wheaton College 1 NADA SEM AMOR Se eu doar tudo o que tenho e se eu entregar meu corpo para ser queimado, mas não tiver amor, nada obtenho. (1CO 13.3) E Jesus, olhando para ele, o amou e lhe disse: “Falta-lhe uma coisa: vá, venda tudo o que tem e dê aos pobres, e você terá um tesouro no céu; e venha me seguir”. (MC 10.21) Não há nada de que eu mais precise em minha vida do que mais do amor de Jesus. Preciso de mais de seu amor por minha esposa — a mulher a quem Deus me chamou para servir até a morte. Preciso de mais de seu amor por meus filhos e pelo restante de minha família. Preciso de mais de seu amor pela igreja, incluindo aqueles irmãos e irmãs na fé que às vezes é difícil amar. Preciso de mais de seu amor pelos meus semelhantes que ainda precisam ouvir o evangelho e por todos os perdidos e pessoas solitárias que estão perto do coração de Deus, mesmo quando estão longe dos meus pensamentos. Aonde quer que eu vá e em cada relacionamento que tenho na vida, preciso de mais do amor de Jesus. A área em que eu mais preciso desse amor é no meu relacionamento com o próprio Deus, o Amante da minha alma. E você? Está amando da maneira que Jesus ama? Ou precisa de mais do amor dele em sua vida — mais amor por Deus e pelas outras pessoas? O CAPÍTULO DO AMOR Um dos primeiros lugares em que as pessoas procuram amor na Bíblia é 1Coríntios 13. É uma das passagens mais famosas da Escritura, principalmente porque é lida com bastante frequência em casamentos. Algumas pessoas a chamam de o “Capítulo do Amor”, o que é apropriado porque menciona amor (agape)explícita e implicitamente mais de uma dúzia de vezes. O texto de 1Coríntios 13 é o mais completo retrato do amor na Bíblia. Um professor de literatura diria que é um encômio, que é “uma expressão formal ou exagerada de louvor”.1 O Capítulo do Amor é uma canção que exalta o amor e na qual o apóstolo Paulo demonstra a necessidade do amor (v. 1-3), esboça a natureza do amor (v. 4-7) e comemora a permanência do amor (v. 8-13) como o maior dos dons de Deus. Por mais familiar que seja, esse capítulo não é tão bem compreendido quanto deveria ser. Para começar, em geral, as pessoas o leem fora de contexto. É verdade que às vezes começam lendo o final de 1Coríntios 12.31, em que Paulo diz “Eu lhes mostrarei um caminho ainda mais excelente”. Esse é um bom lugar para começar, porque o capítulo 13 é “o caminho mais excelente” que o apóstolo tinha em mente. Mas há um contexto mais amplo a considerar — um contexto que muitos leitores deixam de perceber. Conforme Gordon Fee escreve em seu comentário, “o caso de amor das pessoas com esse capítulo sobre o amor também tem permitido que seja costumeiramente lido sem levar em conta o seu contexto, o que não o torna menos verdadeiro, mas faz com que se perca muita coisa de vista”.2 Uma forma de garantir que não deixemos de perceber aquilo que Deus tem para nós em 1Coríntios 13 é lembrar quem eram os coríntios e o que Deus lhes disse nessa carta. Se havia uma coisa de que os coríntios precisavam, era de mais do amor de Jesus. A igreja estava profundamente dividida quanto a teologia, prática, classes sociais e dons espirituais. Alguns diziam que seguiam Paulo. Outros seguiam Pedro ou Apolo — “meu apóstolo é melhor do que o seu!”. E havia aqueles — e essa era a forma suprema de superioridade espiritual — que afirmavam seguir a Cristo. Havia conflitos parecidos acerca de ministério, com vários coríntios afirmando que seus dons carismáticos eram o suprassumo do cristianismo — “meu ministério é mais importante do que o seu!”. Essa foi a questão no capítulo 12, em que o apóstolo lembrou aos coríntios de que, embora a igreja seja composta de muitas partes, todos pertencemos a um único corpo. De modo que, quando Paulo escreveu sobre o amor no capítulo 13, ele não estava tentando dar às pessoas algo bonito para ler nos casamentos. Afinal, o amor sobre o qual ele escreve aqui não é o eros (o amor romântico do desejo), mas o agape (o amor altruísta de irmãos e irmãs em Cristo). Então, em vez de preparar as pessoas para o casamento, o apóstolo estava tentando desesperadamente mostrar a uma igreja cheia de cristãos egocêntricos que existe uma maneira melhor de viver — não apenas no dia de você se casar, mas todos os dias pelo resto da sua vida. Em primeiro lugar, o Capítulo do Amor não é para amantes, mas para todas as pessoas sem amor na igreja que acham que seu jeito de falar sobre Deus, ou de adorar a Deus, ou de servir a Deus, ou de ofertar a Deus é melhor do que o de todas as outras pessoas. Esse é outro erro que muitas pessoas cometem: tendemos a ler 1Coríntios 13 como uma passagem bíblica que dá ânimo, promove o bem-estar e está repleta de pensamentos agradáveis sobre o amor. Em vez disso, para mim, a passagem é quase aterrorizante, porque estabelece um padrão para o amor que eu sei que jamais conseguirei atingir. Nenhum de nós vive com esse tipo de amor, e existe um jeito fácil de prová-lo: comece a ler pelo versículo 4 e, cada vez que você encontrar a palavra “amor”, substitua-a pelo seu nome. Por exemplo: “O Phil é paciente e bondoso; o Phil não inveja nem se vangloria; não é arrogante ou grosseiro. Ele não insiste em que as coisas sejam feitas do seu jeito; não fica irritado nem ressentido; não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. O Phil sofre tudo, crê em tudo, espera tudo, suporta tudo. O Phil nunca falha”. Faça você mesmo esse exercício e descobrirá como me sinto: absolutamente nada amoroso. O AMOR COMO MARCA INDISPENSÁVEL O problema é que o amor deve ser a característica definidora do nosso cristianismo. Jonathan Edwards disse que o amor é, dentre todas as virtudes do Novo Testamento, aquela em que “mais se insiste”.3 Com certeza Paulo insiste no amor em 1Coríntios 13.1-3, passagem em que ele apresenta um argumento lógico que demonstra a necessidade do amor. O amor é tão essencial que sem ele não somos nada. De acordo com os cânones da literatura antiga, em geral um encômio começa com uma comparação em que o autor apanha aquilo que ele quer louvar e o compara com alguma outra coisa. Isso está bem próximo daquilo que o apóstolo Paulo faz em 1Coríntios 13: Ele apanha o amor e faz uma série de comparações condicionais para mostrar como o amor é necessário. Cada comparação tem alguma relação com dons ou realizações espirituais — coisas que cristãos talentosos e virtuosos têm ou fazem. A ideia básica é, de acordo com Charles Hodge, que “o amor é superior a todos os dons extraordinários”.4 Paulo começa com o falar em línguas, que é um dom que alguns coríntios tinham, e outros não. Mas, mesmo que de fato tivessem o dom, eles não eram nada sem o amor: “Se eu falar nas línguas de homens e de anjos, mas não tiver amor, sou um gongo barulhento ou um címbalo que retine” (v. 1). “Falar nas línguas de homens” é comunicar a verdade espiritual por meio do miraculoso dom de enunciação em uma língua humana. “Falar nas línguas de anjos” é um dom ainda maior, pois é falar o próprio idioma do céu. Paulo não minimiza esse dom da eloquência celestial, mas diz que sem o amor ele não é nada. Alguns estudiosos acreditam que, quando Paulo falou sobre um “gongo barulhento”, estava se referindo aos jarros ocos de bronze que eram usados como caixas de ressonância nos teatros da antiguidade — um sistema greco-romano para a amplificação do som.5 Então, a ideia básica deve ter sido que, sem o amor, nossas palavras produzem apenas “um som vazio procedente de um vaso oco e sem vida”.6 Outros creem que Paulo estava se referindo aos gongos que eram usados para adorar divindades pagãs, tais como a deusa Cibele.7 Nesse caso, ele está dizendo que, sem amor, somos meros pagãos. A imagem nesse versículo sempre me lembra o programa de televisão The gong show [O show do gongo], que foi transmitido na década de 1970 e no qual julgava-se a capacidade de os concorrentes cantarem ou dançarem. Caso os juízes não gostassem de determinado número, eles se levantavam e batiam em um enorme gongo para acabar com a apresentação. Gongos podem fazer muito barulho, mas não produzem muita música. Címbalos produzem música quando usados da maneira certa. Mas, se alguém fica martelando em um címbalo, o barulho é ensurdecedor. Não importa quanto sejamos dotados de dons, é assim que ficamos, caso não usemos nossos dons de uma maneira amorosa. Ninguém consegue ouvir o evangelho anunciado pela vida de um cristão sem amor. As pessoas só ouvem “bangue, bangue, bangue, pam, pam, pam”! Colocando a metáfora em linguagem contemporânea: “Se eu usar a internet para o evangelho, mas não tiver amor, sou apenas um blogue ruidoso ou um tuíte sem sentido”.8 No versículo 2, Paulo começa relacionando outros dons, muitos dos quais já foram analisados no capítulo 12. Ele menciona profecia: “se eu tiver poderes proféticos”. Alguém com esse dom pode predizer o futuro ou tem uma percepção sobrenatural para interpretar o que está acontecendo no mundo do ponto de vista de Deus. Paulo menciona o dom de discernir “todos os mistérios e todo o conhecimento”. A palavra “todos” é enfática. A pessoa que tem esse dom espiritual tem uma compreensão abrangente dos grandes mistérios de Deus, inclusive dos planos dele para o futuro, à semelhança dos mistérios que o profeta Daniel revelou ao rei Nabucodonosor na Babilônia. Com “conhecimento”, o apóstolo quer dizer conhecimento espiritual da verdade bíblica — algo que a mente humana só consegue saber mediante a revelação do Espírito Santo.Os coríntios tinham dons de conhecimento e discernimento, conforme Paulo diz várias vezes nessa carta (e.g., 1.5; 8.1). Mas, sem amor, alguém que tem esses dons não é nada. Um homem pode ter uma visão mística; uma mulher pode conhecer os profundos mistérios de Deus. Mas, sem amor, esses dons proféticos e intelectuais não são nada. De modo que Paulo diz: “Se eu tiver poderes proféticos e entender todos os mistérios e todo o conhecimento [...], mas não tiver amor, não sou nada” (13.2). Ninguém se importa com o quanto sabemos a menos que também saiba quanto nos importamos. Considere agora o dom da fé absoluta. Paulo diz: “Se eu [...] tiver toda a fé, a ponto de mover montanhas, mas não tiver amor, não sou nada” (v. 2). Aqui o apóstolo não está se referindo à fé salvadora, mediante a qual cada crente confia inicialmente em Cristo para a salvação, mas ao dom extraordinário que alguns crentes têm de confiar em Deus naquilo que parece impossível, em especial no trabalho da igreja de Deus e no crescimento do seu reino. Genádio de Constantinopla afirmou que “com a palavra ‘fé’ Paulo não quer dizer a fé comum e universal dos crentes, mas o dom espiritual da fé”.9 Anthony Thiselton descreve o que o apóstolo chama de “toda fé” como “uma fé particularmente robusta, contagiante, ousada, confiante [...] que executa uma tarefa especial dentro de uma comunidade que enfrenta problemas aparentemente insuperáveis”.10 Essa fé tem o poder de mover montanhas, conforme Jesus disse a seus discípulos. Em outras palavras, mediante a graça de Deus, a fé consegue realizar o impossível. Mas, sem amor, até mesmo esse tipo de fé não é nada. No versículo 3, Paulo passa dos dons que temos para as boas obras que realizamos. Aí seu argumento chega ao ponto alto: “Se eu doar tudo o que tenho e se entregar meu corpo para ser queimado, mas não tiver amor, nada obtenho”. Esses dois exemplos são excepcionais. Bem poucas pessoas vendem todos os seus bens terrenos e doam aos pobres 100% do dinheiro recebido. Bem poucas pessoas sofrem o martírio por meio do ato de sacrifício da própria vida. Essas são duas das maiores coisas que alguém pode chegar a fazer por Cristo. Com certeza, as pessoas que fazem isso merecem algum tipo de recompensa! Ainda assim, até mesmo as maiores boas obras podem ser feitas sem amor. Elas podem, em vez disso, ser feitas para alimentar nosso orgulho espiritual ou para obter algo de Deus. Mas nem mesmo as dores terríveis de martírio nas chamas são suficientes. A menos que sejamos motivados por um amor genuíno por Deus, tudo isso não vale nada. O amor de Deus é a única coisa que importa. Entenda que, quando Paulo nos dá essa lista de coisas que, sem amor, não são nada, ele está de fato incluindo todos os nossos dons e aquilo que chamamos de realizações espirituais. Não importa o que Deus nos tenha dado e não importa o que tenhamos feito para Deus, sem amor isso não significa nada. Deus talvez nos conceda o dom de ajudar ou de hospitalidade, de ensino ou de administração. Talvez tenhamos o privilégio de ter uma posição de liderança espiritual, servindo como presbíteros ou diáconos na igreja. Deus talvez permita que sirvamos como missionários ou evangelistas ou servos dos pobres. Ainda assim — o que é chocante —, é possível usarmos nossos dons para o ministério sem ter amor no coração por ninguém, exceto por nós mesmos. Somos tão egoístas, que é até mesmo possível fazermos algo que parece ser para outra pessoa, quando na verdade é para nós — para melhorar nossa própria reputação ou insuflar nossa satisfação pessoal. Paulo não está negando o valor dos dons espirituais nem minimizando a importância do ministério na igreja. Louvado seja Deus por profetas e mártires! Mas ele está dizendo que cada dom espiritual tem de ser usado de uma maneira amorosa. O que mais importa não é quanto nós somos cheios de dons, mas quanto somos amorosos. Conforme Jonathan Edwards disse: “Não importa o que se faça ou sofra, se o coração não for entregue a Deus, na realidade nada foi dado a ele”.11 Entenda que essa mensagem é para pessoas na igreja. Não é basicamente para os incrédulos, mas para cristãos com dons e talentos que estão ativamente servindo no ministério. Em vez de nos felicitar por todas as coisas que fazemos para Deus, ou de olhar com superioridade para pessoas que não servem a Deus da mesma maneira que nós servimos, ou de pensar que estamos certos e todos os outros estão errados, Deus está nos chamando a fazer tudo por amor. Caso contrário, estaremos fazendo tudo à toa. O HOMEM QUE ACREDITAVA SABER AMAR Ao ler os versículos iniciais de 1Coríntios 13, fico a imaginar qual a esperança que existe para mim. Não conversei com anjos, até onde sei, nem movi montanhas nem sofri até a morte. Fiz muito menos — bem pouco, na verdade —, e até mesmo aquilo que fiz foi feito com bem menos amor do que deveria. No entanto, sei que no evangelho existe esperança para pecadores sem amor. Um bom lugar para ver essa esperança é em uma história que Marcos contou sobre Jesus. Sempre que falamos de amor, temos de voltar para Jesus. O amor descrito no Capítulo do Amor é, na realidade, o amor dele. De modo que, à medida que formos estudando cada expressão de cada versículo de 1Coríntios 13, retornaremos repetidas vezes à história de Jesus e seu amor. Jamais aprenderemos a amar mediante o desenvolvimento desse amor a partir de nosso próprio coração, a não ser que tenhamos mais de Jesus em nossa vida. A Escritura diz: “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4.19). Uma vez que isso é verdade, a única maneira de nos tornarmos mais amorosos é termos mais do amor de Jesus, conforme o encontramos no evangelho. O texto de Marcos 10 conta a história de um homem que Jesus encontrou na estrada para Jerusalém. As pessoas costumam chamá-lo de “o jovem rico” ou “o jovem rico e poderoso”, mas, por razões que logo ficarão claras, também poderíamos chamá-lo de “o homem que achava que sabia como amar”. Qualquer que seja nossa maneira de chamá-lo, esse homem estava interessado na vida eterna e supunha que havia alguma coisa que pudesse fazer para obtê-la. Assim, ele correu até Jesus, ajoelhou-se diante dele e fez esta pergunta: “Bom Mestre, o que tenho de fazer para herdar a vida eterna?” (v. 17). Com essas palavras, o homem estava levantando a mais importante de todas as questões espirituais: a vida eterna. Todos estamos destinados a morrer. Portanto, se existe algo como a vida eterna, todos os esforços para obtê-la valem a pena. Mas o problema é que aquele homem estava fazendo uma suposição incorreta. Ele supunha que a salvação vem em consequência de fazer, e não de crer. De maneira que perguntou a Jesus o que tinha de fazer para obter a vida eterna. Essa suposição é incorreta porque nenhum de nós é bom o suficiente para ser salvo pelas coisas boas que faz. Todos temos feito um número excessivo de coisas erradas, e não o suficiente de coisas certas. Além disso, mesmo as coisas certas que temos feito foram feitas até certo ponto ou de forma errada ou pelo motivo errado. Então, Jesus disse ao homem: “Ninguém é bom, exceto um, que é Deus” (v. 18). Ninguém é bom: nem o jovem que estava conversando com Jesus, nem você, nem eu, nem ninguém. Só Deus é perfeitamente bom. Para provar isso, Jesus recitou o padrão da justiça de Deus. “Você conhece os mandamentos”, ele disse ao homem: “Não mate; não cometa adultério; não roube; não dê falso testemunho; não engane; honre seu pai e mãe” (v. 19). Se esses mandamentos soam familiares, é porque estão nos Dez Mandamentos que Deus deu a Moisés no monte — a lei eterna de Deus. Todavia, quero considerar esses mandamentos a partir de uma perspectiva ligeiramente diferente. Esses mandamentos não são apenas as leis de Deus, mas também exibem o amor que Deus exige. Cada mandamento exige que amemos nosso próximo. Quando Deus diz: “Não mate”, ele está nos dizendo para amar nossos semelhantes,protegendo a vida deles. Quando diz: “Não cometa adultério”, está nos dizendo para amar as pessoas, defendendo a pureza sexual delas. E assim por diante. Preservar a propriedade, honrar a reputação ou posição social de alguém — todas essas coisas são formas de demonstrar amor. Poderíamos tomar todos os mandamentos que Jesus menciona e resumi-los assim: “Ame seu próximo como a si mesmo”. Na verdade, foi exatamente dessa forma que Jesus de fato os resumiu no Evangelho de Mateus, quando disse que o primeiro e grande mandamento é amar a Deus de todo o coração e que o segundo grande mandamento é amar o próximo. De modo que esta foi a resposta que Jesus deu ao jovem rico quando ele perguntou o que tinha de fazer para herdar a vida eterna: “Eu lhe direi o que você tem de fazer. Se você quer ser salvo, tudo o que tem de fazer é amar o seu próximo”. “Bem, isso é fácil!” — o homem pensou consigo. “Nunca matei ninguém, nem dormi com a mulher de outro homem, nem me envolvi em roubo de carruagens”. O que ele disse em voz alta foi: “Mestre, tudo isso tenho guardado desde minha juventude” (Mc 10.20). Se tudo o que é preciso para obter a vida eterna é evitar quebrar os grandes mandamentos, o jovem achava que havia cumprido tudo direitinho. Jesus não estava lhe dizendo nada que ele já não soubesse. Ele tinha aprendido isso tudo na escola sabatina! Mas entenda o que o homem estava realmente dizendo. Se essas leis mostram o amor que Deus exige, então ele estava afirmando que sabia como amar, que em seu coração ele já tinha amor suficiente. Isso é o que você diria? Você se apresentaria perante Deus e diria: “Eu venho amando as pessoas a vida inteira”. É claro que jamais sairíamos por aí dizendo isso, pelo menos não nessas palavras; mas, ainda assim, é dessa maneira que muitos de nós agimos. Geralmente, a maioria de nós tende a crer que está se saindo muito bem, no que se refere a amar as outras pessoas. Portanto, raramente nos arrependemos da falta de amor em nosso coração. Perdemos de vista o fato de que aprender a amar como Jesus é uma de nossas maiores prioridades. Esquecemos de orar para que o Espírito Santo nos torne melhores no dever de amar. Isso tudo se aplicava ao jovem rico. Jesus lhe mostrou que ele não era quem pensava ser em matéria de amor, e fez isso submetendo o jovem a um teste simples e objetivo. “Falta-lhe uma coisa”, disse Jesus, admitindo por um momento que o homem de fato guardava os mandamentos de Deus. “Vá, venda tudo o que tem e dê aos pobres, e você terá um tesouro no céu; e venha seguir-me” (v. 21). Esse foi o teste do amor generoso. O homem afirmava que nunca tinha enganado ninguém. Agora Jesus estava pondo sua palavra em xeque: “Você nunca enganou ninguém? É isso mesmo? Vamos pôr isso à prova. Que dizer dos pobres? Como seres humanos semelhantes a você, como pessoas feitas à imagem de Deus, eles têm direito à sua compaixão. Ora, você os ama o suficiente para doar aquilo que tem, para que eles possam ter aquilo de que necessitam?”. Ao exigir compaixão pelos pobres, Jesus estava pondo à prova o amor daquele homem pelo próximo. Ao mesmo tempo, também estava pondo à prova o amor do homem por Deus. Ele ainda reivindicava o direito de ser senhor de sua própria vida? Ou renunciaria a todos os seus próprios recursos e confiaria somente em Jesus? Infelizmente o homem falhou nessa prova. O Evangelho de Mateus nos diz que ele ficou “desanimado com aquelas palavras” e “foi embora triste, pois tinha muitos bens” (v. 22). A palavra grega para “desanimado”, ou “deprimido” é stugnasas, que dá a ideia de choque ou desânimo. A verdade espiritual é que o coração daquele homem estava exposto. Embora achasse que sabia como amar, ficou claro que ele amava o dinheiro mais do que amava Jesus e as outras pessoas. O SALVADOR AMOROSO Meu propósito ao contar essa história é, em parte, nos convencer de que não amamos muito mais do que aquele homem amava. Na verdade, se Jesus nos apresentasse a mesma exigência — dar aos pobres tudo o que temos —, a maioria de nós logo apresentaria uma longa lista de motivos pelos quais não deveríamos fazê-lo. Diríamos que nem todo mundo é chamado a vender todos os seus bens. Jesus disse àquele homem para se desfazer de tudo o que tinha, mas seu chamado não é o nosso chamado. Temos de suprir as necessidades de nossa família e cuidar de nossas próprias necessidades básicas, sem mencionar dar nosso dinheiro para sustentar outros tipos de trabalho do reino — e não apenas alimentar os pobres. Todas essas objeções são bem razoáveis, mas o verdadeiro problema para a maioria de nós é que sempre queremos impor limites ao nosso amor. Estamos prontos a dar, mas só quando temos algo sobrando. Estamos dispostos a nos importar, contanto que isso não seja inconveniente demais. Somos capazes de amar, desde que as pessoas nos retribuam com amor. De fato, temos de admitir que não amamos do modo que Jesus ama. Podemos não ser nada sem amor, mas infelizmente não somos nada parecidos com os amantes que Deus quer que sejamos. O apóstolo Paulo estava disposto a admitir isso. Observe que em 1Coríntios 13 ele usa a primeira pessoa do singular. Em vez de dizer aos coríntios: “Se vocês falarem as línguas de homens e de anjos e tiverem poderes proféticos e assim por diante”, ele diz: “Se eu fizer essas coisas sem amor, não sou nada”. O apóstolo não está simplesmente repreendendo, mas incluindo a si mesmo e dando testemunho daquilo que havia aprendido sobre seu próprio coração pecador. Paulo tinha todos esses dons espirituais: línguas, profecia, conhecimento e fé. Ele havia doado seus bens e oferecido seu próprio corpo até a morte. Mas sabia que isso não era absolutamente nada e que ele mesmo não era nada sem amor. Infelizmente, ao contrário de Paulo, o jovem rico, no Evangelho de Marcos, não estava pronto para confessar a falta de amor em seu coração pecador. Isso nos leva àquilo que talvez seja o detalhe mais notável dessa passagem. No versículo 20, o jovem rico se vangloriou de que havia guardado todas as leis de Deus sobre amar o próximo. A Bíblia diz que, quando o homem disse isso, Jesus olhou para ele e “o amou” (v. 21). Esse detalhe é notável porque uma das pessoas mais difíceis de amar é o pecador presunçoso, que acha que conseguiu vencer na vida espiritual. Esse jovem rico era um sabichão. Tinha uma opinião tão elevada de si mesmo, que se recusava a confessar seu pecado. A maioria de nós não teria sentido absolutamente nenhuma afeição por esse homem. Mas Jesus o amou. Na verdade, foi somente porque Jesus amou esse homem que aplicou nele o teste do amor generoso. Jesus queria que ele visse que não era o amante que achava que era e que precisava de mais do amor de Jesus em sua vida. Esse detalhe notável nos dá um vislumbre do amor que Jesus tem por nós. Não somos em nada mais amáveis do que o homem que achava que sabia como amar. Mas Jesus ainda olha para nós com um coração de amor. De igual maneira, ele nos ajuda a ver que não somos os amantes que pensamos que somos. Mas ele não para por aí. Mediante sua morte na cruz, oferece perdão para nosso coração sem amor. Então, ele nos envia o Espírito Santo, para que possamos começar a amar do jeito que ele ama. Não somos nada sem amor — essa é a mensagem de 1Coríntios 13.1-3. Mas Jesus não faz nada sem amor — essa é a mensagem de Marcos 10 e, na verdade, a mensagem de tudo o mais em toda a Bíblia. Foi amor que trouxe Jesus do céu para Belém, que o levou a realizar milagres e pregar o evangelho, que o conduziu em meio aos sofrimentos do Calvário e da cruz e que o exaltou à glória. Jesus Cristo é a encarnação eterna do amor de Deus. Por isso, é com amor que ele olha agora para nós — com tanto amor quanto o que ele teve pelo homem que encontrou em Marcos 10. Anteriormente, vimos como o Capítulo do Amor soa ridículo quando substituímos a palavra amor pelos nossos próprios nomes. Mas é bem diferente quandocolocamos Jesus no quadro. Se 1Coríntios 13 é um retrato do amor, então ele é realmente um esboço do Salvador que encontramos nos Evangelhos: “Jesus é paciente e bondoso; Jesus não inveja nem se vangloria; não é arrogante ou grosseiro. Jesus não insiste em que as coisas sejam feitas do seu jeito; não fica irritado nem ressentido; não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Jesus sofre tudo, crê em tudo, espera tudo, suporta tudo. Jesus nunca falha”. Paulo nos incentiva a ler o Capítulo do Amor de uma forma cristocêntrica, mediante a mudança expressiva que ele faz entre, de um lado, os versículos 1 a 3, em que fala na primeira pessoa, e, de outro, os versículos 4 a 8, em que o amor é personificado. Primeiro, o apóstolo nos diz o que ele não consegue fazer sem amor; em seguida, nos diz o que só o amor consegue fazer.12 E o motivo pelo qual o amor consegue fazer todas essas coisas é que ele se encarnou em Jesus Cristo. Jesus é tudo o que eu não sou. Só ele tem “o amor divino que a todo amor excede”.13 Essa percepção não me pressiona; ela me liberta, porque o amor de Jesus é tão grande, que ele ama até a mim. E, porque me ama, ele prometeu me salvar, me perdoar e me transformar. Não somos nada sem amor. Mas, quando conhecemos Jesus, que não faz nada sem amor, ele nos ajudará a amar do jeito que ele ama. Em uma carta posterior aos coríntios, Paulo deu testemunho do amor de Jesus, que tem o poder de transformar vidas, que inverte totalmente nossas afeições ao nos obrigar a parar de amar a nós mesmos e começar a amar os outros: “Pois o amor de Cristo nos controla, porque chegamos a esta conclusão: que um morreu por todos, portanto todos morreram; e ele morreu por todos, para que aqueles que vivem já não vivam para si mesmos, mas para aquele que por causa deles morreu e ressuscitou” (2Co 5.14,15) — o Salvador, que morreu e ressuscitou para que você conseguisse viver com o amor dele. Eu o convido a receber o amor dele em sua vida. Confesse que você não é o amante que deveria ser e peça a Jesus para mudar seu coração. Diga algo assim: “Jesus, tu és tudo o que eu não sou. Tu és puro amor, e eu sou apenas o pecador sem amor que tu sempre soubeste que eu seria. Mas, em teu amor perfeito, peço que perdoes meus pecados odiosos e ensines meu coração sem amor a amar do jeito que tu amas”. GUIA DE ESTUDO As pessoas falam sobre alguém ser “um amor de pessoa”, sobre “fazer amor” e sobre a perda de pessoas “amadas”. Nós até dizemos que “amamos” sorvete ou determinado local. Tendo em vista a maneira de falarmos sobre o amor, não é de admirar que a palavra tenha perdido a força. Mas um novo olhar para 1Coríntios 13 nos lembra como é belo o amor que imita a Cristo. 1. Fale sobre uma ocasião em que alguém de fora de sua família fez algo que demonstrou amor por você. O que fez com que aquele ato ou expressão de amor fosse significativo para você? 2. Leia o conhecido Capítulo do Amor em 1Coríntios 13.1- 13. O que poderia ser diferente em sua igreja, caso esse capítulo fosse aplicado principalmente ao amor pelos outros membros do corpo de Cristo, e não ao amor entre os casais? 3. O que distingue atos de misericórdia feitos sem amor daqueles atos que são motivados pelo amor? A pessoa que é objeto desses atos ou um observador consegue dizer a diferença? 4. O texto de 1Coríntios 13.1 nos diz que dons espirituais oferecidos sem amor são como um gongo barulhento ou um címbalo que retine. Em que aspectos um cristão sem amor é como um gongo barulhento? Qual a impressão que uma pessoa com fé e conhecimento, mas sem amor, dá aos incrédulos? 5. Uma boa ilustração do amor de Jesus pelos pecadores se encontra em Marcos 10. Leia os versículos 17-27. Qual foi a motivação do jovem ao perguntar a Jesus como podia ser salvo? Fundamente sua resposta com o que está escrito no texto. 6. Como se pode ver o amor de Jesus por aquele homem em Marcos 10.17-27? 7. Em Marcos 10.17-27, Jesus respondeu à pergunta do homem dizendo que ele precisava amar o próximo. Em última análise, o jovem falhou no teste do amor porque não estava disposto a vender todos os seus bens e dar o dinheiro aos pobres. Por que esse homem foi incapaz de abrir mão daquilo que tinha? Pensando em termos mais gerais, por que é especialmente difícil para os ricos entrar no reino de Deus? Que desafios espirituais eles enfrentam que os pobres não? 8. Em 1Coríntios 13.3 lemos que apenas abrir mão de nossos bens e dá-los aos pobres não é suficiente. O que mais é necessário? Por que as boas obras não são suficientes sem o amor? 09. Pense na última vez em que você foi confrontado com as necessidades de um estranho. Você passou no teste do “amor”? Em caso negativo, qual foi o impedimento? 10. Que limites você é tentado a impor ao seu amor? O que você pode fazer para remover alguns desses limites e verdadeiramente amar o próximo como a si mesmo? 1Oxford English dictionary, verbete “encomium”, 13. ed. 2Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 626 [edição em português: 1Coríntios: comentário exegético, tradução de Marcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova, a ser publicado)]. 3Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr. Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 1 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 4Hodge, An exposition of the First Epistle to the Corinthians (reimpr., London: Banner of Truth, 1958), p. 264. 5Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1036. 6W. W. Klein, “Noisy gong or acoustic vase? A note on 1Cor 13.1”, New Testament Studies 32 (1986): 286-9. 7J. Moffatt, The First Epistle of Paul to the Corinthians, Moffatt New Testament Commentary (London: Hodder & Stoughton, 1938), p. 192. 8Josh Moody fez essa comparação em um sermão pregado em 19 de setembro de 2010, na College Church, em Wheaton, nos Estados Unidos. 9Genádio de Constantinopla, “13:1-3 The law of love”, citado em Gerald Bray, org., New Testament, 1-2 Corinthians, Ancient Christian Commentary on Scripture (Downers Grove: InterVarsity, 1999), vol. 7, p. 131. 10Thiselton, First Epistle to the Corinthians, p. 1041. 11Edwards, Charity, p. 57. 12Outro insight totalmente novo do sermão de Josh Moody sobre essa passagem. 13O autor está citando o título do hino Love divine, all loves excelling, da autoria de Charles Wesley. (N. do T.) 2 AMOR QUE É MELHOR QUE A VIDA O amor é bondoso. (1CO 13.4) Mas, quando a bondade e a benignidade de Deus nosso Salvador apareceram, ele nos salvou não por causa de obras feitas com justiça por nós, mas de acordo com sua própria misericórdia, mediante a lavagem regeneradora e renovadora do Espírito Santo, que ele derramou ricamente sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador. (TT 3.4,5) Os sofrimentos terrenos de Elizabeth Payson Prentiss foram lentos e dolorosos.1 Ela lutou a vida toda contra a insônia e fortes dores de cabeça que a deixavam exausta. Ela também sofreu a dor da perda: dois de seus filhos morreram, um logo depois do outro. Depois disso, a saúde frágil da mãe enlutada quase se foi. Em profunda angústia de alma, ela exclamou: “Nosso lar está despedaçado; nossas vidas, arrasadas; nossas esperanças, esfrangalhadas; nossos sonhos, acabados. Acho que não consigo viver por nem mais um instante”.2 Ainda assim, durante aqueles dias sombrios e de desespero, quando suas dores e perdas a levaram a pensar que não conseguiria viver nem mais um dia, Elizabeth Payson Prentiss nunca perdeu a esperança no amor de Deus. Na verdade, bem naqueles dias ela começou a escrever um hino pedindo a Jesus mais do seu amor. “Mais amor por ti, ó Cristo”, ela orou. “Mais amor por ti.” Então, ela pediu a Deus para que ele usasse astristezas terrenas que ela sentia para ensiná-la a amar: Outrora por alegria terrena eu ansiava; procurava paz e descanso; agora só a ti eu busco; dá-me o que é melhor. Esta será toda minha oração: “Mais amor por ti, ó Cristo; mais amor por ti, mais amor por ti!”. Que a tristeza opere, envia pesar e dor; doces são teus mensageiros, doce é o seu refrão, quando cantam comigo: “Mais amor por ti, ó Cristo; mais amor por ti, mais amor por ti!”. O que Elizabeth Prentiss encontrou, quando perdeu todas as esperanças na própria vida, foi um amor que é melhor que a vida. Tempos depois, ela escreveu: “Amar mais a Cristo é a necessidade mais profunda, o grito constante da minha alma. [...] Lá fora no bosque, e na minha cama. e na charrete, quando estou feliz e ocupada, e quando estou triste e ociosa, o sussurro continua a subir, pedindo mais amor, mais amor, mais amor!”.3 UM RETRATO DO AMOR Onde uma alma sofredora consegue encontrar mais amor por Cristo e mais amor por outras pessoas? Estamos encontrando esse amor em 1Coríntios 13, o Capítulo do Amor na Bíblia, o qual o apóstolo Paulo escreveu para ajudar a igreja em Corinto— uma igreja cheia de dons, mas ainda assim dividida — a aprender a amar. Paulo começou demonstrando que o amor é absolutamente indispensável. Nada mais importa, apenas o amor. Não importa quanto sejamos dotados de dons ou o que façamos para Deus — sem amor, não somos nada. Profecia sem amor, teologia sem amor, fé sem amor, ação social sem amor, até mesmo martírio sem amor são todos igualmente sem valor. Nada pode compensar a ausência de amor. João Crisóstomo ia mais longe. Quando pregou sobre essa passagem à sua congregação em Constantinopla, em algum momento durante o século quarto, Crisóstomo disse: “Se eu não tiver amor, não sou apenas inútil, mas definitivamente um estorvo”.4 O problema é que somos menos amorosos do que pensamos ser e ainda menos do que deveríamos ser. Se não quisermos ser um estorvo, precisamos, portanto, aprender a amar. O texto de 1Coríntios 13 esclarece, ao oferecer um esboço da natureza do amor: “O amor é paciente e bondoso; o amor não inveja nem se vangloria; não é arrogante ou grosseiro. Ele não insiste em que as coisas sejam feitas do seu jeito; não fica irritado nem ressentido; não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. O amor sofre tudo, crê em tudo, espera tudo, suporta tudo. O amor nunca acaba” (v. 4-8). Crisóstomo descreveu esses versículos como “um esboço da beleza incomparável do amor, ornamentando a imagem do amor com todos os aspectos de excelência moral, como se estivesse usando muitas cores”.5 O que torna esses versículos tão belos é que eles realmente são um retrato de Jesus e de seu amor. A técnica literária que Paulo usa aqui tem o nome de personificação. Ele apanha a ideia de amor e descreve o que o amor faz, como se o amor fosse uma pessoa. Mas é claro que o amor é uma pessoa, porque Jesus Cristo é a encarnação do amor de Deus. Portanto, tudo o que esses versículos dizem sobre o amor é característico de Jesus. Seu amor é paciente e bondoso; não é arrogante nem fica irritado; crê e suporta todas as coisas; nunca falha. Então, se quisermos saber com que o Capítulo do Amor se parece quando é vivenciado, tudo o que precisamos fazer é olhar para a pessoa e obra de Jesus Cristo. Vemos a humildade amorosa de Jesus ao deixar a glória do céu para assumir a carne de nossa humanidade. Vemos sua paciência amorosa com todas as pessoas que o comprimiam em busca de cura. Vemos sua submissão amorosa no Getsêmani, quando, a caminho da cruz, Jesus não insistiu em fazer sua própria vontade. Vemos sua perseverança amorosa na maneira de sofrer pelo pecado. Vemos sua misericórdia amorosa no perdãoque ofereceu a seus inimigos. Vemos sua confiança amorosa de que o Pai o ressuscitaria da sepultura. Do começo ao fim, nossa salvação toda é uma história do amor infalível de Jesus, o amor de Deus por nós em Cristo — aquilo que C. S. Lewis chamou de “amor doação” de Deus.6 Uma forma de enxergarmos o amor de Jesus é ilustrar com sua vida e ministério o Capítulo do Amor. Esta será nossa abordagem no estudo de 1Coríntios 13: Apanhar o que esse capítulo diz sobre o amor e ver como Jesus nos mostra cada aspecto particular do amor. Ao longo do estudo acompanharemos o curso da vida terrena de Jesus, sua morte salvífica e sua ressurreição gloriosa. Ao seguirmos a cronologia de Jesus e de seu amor, nem sempre seguiremos a ordem exata de 1Coríntios 13. Esse método parece apropriado para o nosso estudo, porque esse capítulo é um retrato, e não uma biografia. O texto de 1Coríntios 13 nos apresenta um quadro multifacetado do amor. Para ver esse quadro da forma mais clara possível, vamos associar cada palavra com Cristo, e então fazer novas associações com a nossa vida. O amor que Jesus demonstrou por nós revela-se o mesmo amor que ele quer que demonstremos pelos outros. Ele não nos ama apenas por nossa causa, mas também para amar outros por meio de nós, conforme aprendemos a amar como ele ama. SOBRE A BONDADE Começamos com um aspecto do amor que pode parecer uma virtude débil. A Escritura diz que o amor é “bondoso” (1Co 13.4). A maioria das pessoas aprecia a bondade — em especial quando alguém é bondoso com elas —, mas nós talvez não levemos isso muito a sério. Falamos sobre ser “bondosos com os animais” ou demonstrar “bondade com estranhos”. Ser bondoso é compartilhar algum doce ou ajudar uma velhinha a atravessar a rua. Mas, se isso é tudo o que a bondade faz, então dizer que “o amor é bondoso” seria exaltar o amor numa proporção muito menor do que ele merece. Na verdade, se o amor é “bondoso” apenas no sentido convencional da palavra, então a Bíblia estaria colocando o amor em um nível que todos podemos alcançar — mesmo sem a graça de Deus — porque todo mundo é capaz de mostrar pelo menos um pouco de bondade. Contudo, se achamos que bondade é algo pequeno, certamente não conhecemos o pleno significado bíblico de bondade nem entendemos a extraordinária bondade de Deus. Porque, quando estudamos o que a Bíblia diz sobre esse assunto, logo descobrimos que a bondade é um chamado sublime e que toda a história da salvação pode ser entendida como uma operação graciosa da bondade extraordinária de Deus em relação a nós, em Jesus Cristo. A palavra que Paulo usa para bondade em 1Coríntios 13.4 ocorre uma única vez. Essa é a única passagem em que a palavra aparece na Bíblia ou em qualquer outro texto antigo (com exceção de fontes cristãs posteriores que, pelo que se presume, tomaram o termo emprestado de Paulo). O apóstolo era muito talentoso no uso das palavras, e a palavra que parece que ele inventou neste caso (chresteuetai) é um verbo. De modo que, em vez de dizer “o amor é bondoso”, talvez devamos traduzir a frase por algo assim: “o amor demonstra bondade”.7 Este é um bom ponto para mencionar uma característica importante de 1Coríntios 13: As palavras que esse capítulo usa para descrever o amor não são substantivos, mas verbos (há pelo menos quinze deles). Isso significa que, quando Paulo diz que o amor é isto e não é aquilo, ele não está nos dando uma definição abstrata ou filosófica, nem está descrevendo um sentimento que temos em nosso coração. Em vez disso, está falando sobre algo que nós fazemos — o amor como uma ação, não como uma afeição. Conforme Henry Drummond escreveu em seu famoso livreto The greatest thing in the world, o amor “não é uma espécie de emoção repleta de entusiasmo”, mas “uma expressão profunda, forte e enérgica [...] da natureza semelhante a Cristo no mais pleno desenvolvimento dela”.8 Essa profunda verdade — que o amor é um verbo ativo — nos ajuda a entender o ensino bíblico sobre o amor de uma maneira extremamente prática. Muitos cristãos se preocupam por não se sentirem de determinada maneira em relação a Deus: “Eu sei que devo amar a Deus”, dizemos, “mas nem sempre me sinto muito amoroso.Deve ter alguma coisa errada com as minhas emoções! Eu digo que sigo a Deus, mas às vezes nem mesmo tenho certeza de que o amo”. Assim, ficamos imaginando como podemos ter mais sentimento amoroso por Deus. O Capítulo do Amor nos ensina que a natureza do amor é o que o amor faz. “Ao contrário de outros amores”, escreve o teólogo francês Ceslaus Spicq, “que podem permanecer ocultos no coração, para a caridade é essencial se manifestar, demonstrar a si própria, fornecer provas, exibir-se”.9 Isso não quer dizer que o amor seja algo que nunca sentimos ou que algum dia devamos parar de pedir ao Espírito Santo que encha nosso coração com uma afeição mais calorosa por Deus. No entanto, quando se trata de amor, nossos atos são, em todos os aspectos, tão importantes quanto o que dizemos com as palavras ou sentimos no coração, ou até mais importantes. O apóstolo João disse: “Filhinhos, não amemos de palavra ou de boca, mas com ações e em verdade” (1Jo 3.18). Paulo via o amor da mesma maneira. Ele acreditava em amar por meio de ações, não apenas mediante palavras ou sentimentos. O amor é como vivemos para Deus, mesmo quando acontece de não nos sentirmos particularmente amorosos. Quando Paulo tomou a bondade e a transformou em um verbo ativo, ele começou com uma palavra que aparece com bastante frequência no Novo Testamento: o substantivo mais comum para “bondade” (chrestos). Vemos, por exemplo, essa palavra em Gálatas 5, em que aparece na lista do “fruto do Espírito” (v. 22). Também a vemos em Colossenses 3, em que Paulo a menciona como uma das virtudes que o povo cristão deve vestir como parte de nosso vestuário espiritual diário (v. 12). Em outras passagens, ele diz que a bondade é uma característica do ministério dos apóstolos (2Co 6.6) e nos ordena que sejamos bondosos uns com os outros (Ef 4.32). Quando interpretamos essas passagens no seu todo, vemos que a bondade é uma das virtudes comuns da vida cristã. Ser bondoso é ser “afetuoso, generoso, atencioso, prestativo”.10 Para mostrar que essa bondade é um verbo, Gordon Fee a define como “bondade ativa em favor de outrem”.11 Outros comentaristas descrevem uma pessoa bondosa como alguém que está “disposto a ser útil” e “a fazer o bem a outros espontaneamente” — as definições que enfatizam a prontidão e a ânsia da bondade em se envolver no serviço a outros.12 Lewis Smedes chama a bondade de “prontidão do amor para melhorar a vida de outra pessoa”.13 Alguns comentaristas ligam a bondade à paciência, que também é mencionada no versículo 4. Eles acham que Paulo tem em mente a bondade com os inimigos, com as pessoas que nos trataram mal. Por esse motivo, em sua exposição dessa passagem, João Crisóstomo perguntou como devemos reagir aos ressentimentos irados e ao impulso de nos vingarmos de pessoas que nos maltratam: “Não apenas suportando com grandeza de caráter”, ele disse (que é onde entra a paciência), “mas também acalmando e consolando”, para que possamos “amenizar a dor e curar a ferida” de um relacionamento rompido.14 Às vezes descreve-se alguém que é “bondoso demais” como uma pessoa “que mata com bondade”, mas, de acordo com a Escritura, também nos é possível curar com nossa bondade, trazendo esperança e cura para pessoas destroçadas. A BENIGNIDADE DE DEUS A melhor maneira de aprender esse tipo de bondade é vê-la no caráter de nosso Deus, cujo amor está sempre pronto para melhorar a vida dos outros. O título deste capítulo — “O amor que é melhor que a vida” — vem de uma frase que certa vez o rei Davi disse a respeito de Deus. Davi começou o salmo 63 afirmando que sua alma estava sedenta de Deus, tal como um moribundo em um deserto árido. Então, quando começou a louvar e bendizer a Deus, ele explicou por que Deus merecia sua adoração: “Porque teu amor inabalável é melhor que a vida, meus lábios te louvarão” (Sl 63.3). A versão King James usa uma terminologia ligeiramente diferente. Ela diz: “Tua benignidade é melhor que a vida”. As palavras “amor inabalável” e “benignidade” são tentativas de tomar a profunda ideia veterotestamentária de amor pactual e expressá-la de uma maneira compreensível para nós. Davi estava louvando a Deus por sua fidelidade absoluta em manter as promessas de amor que ele havia feito ao seu povo, salvando-o e sendo seu Deus eterno. Foi por causa de sua benignidade que Deus tornou Abraão uma grande nação, livrou Israel do Egito, estabeleceu o reino de Davi, resgatou da Babilônia o remanescente de seu povo e realizou muitos outros atos poderosos de libertação salvadora. O que o Antigo Testamento chama de “benignidade” é nada menos do que a salvação total. E, no entendimento de Davi, conhecer tamanha bondade é melhor que a própria vida. O Novo Testamento fala em termos parecidos, colocando a bondade de Deus no contexto de salvar seu povo. O apóstolo Paulo disse aos romanos que a bondade de Deus nos leva ao arrependimento (Rm 2.4). Disse ainda que é por causa da bondade de Deus que o evangelho é pregado a todas as nações (Rm 11.22). Mas talvez a máxima expressão da bondade de Deus surja na carta de Paulo a Tito: Mas, quando a bondade e a benignidade de Deus nosso Salvador apareceram, ele nos salvou não por causa de obras feitas com justiça por nós, mas de acordo com sua própria misericórdia, mediante a lavagem regeneradora e renovadora do Espírito Santo, que ele derramou ricamente sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, para que, sendo justificados por sua graça, nos tornássemos herdeiros segundo a esperança de vida eterna (3.4-7). Não se deve subestimar a bondade! Talvez sejamos tentados a vê-la como algo pequeno, mas aqui a Bíblia considera tudo o que Deus tem feito para nossa salvação e chama de bondade sua cura salvadora. Considere, então, a benignidade de Deus, conforme resumida em Tito 3. Para começar, a bondade de Deus é um amor salvador. A Escritura diz que, quando apareceu a benignidade de Deus — essa é uma referência a Jesus vir ao mundo —, “ele nos salvou” (Tt 3.5). A maneira mais geral e abrangente de descrever o que Deus tem feito por nós é simplesmente dizer que ele nos salvou. Jesus é o Salvador, aquele que traz libertação do pecado e da morte. Ele nos salva do castigo que nossos pecados merecem, o que é nada menos do que a condenação eterna. Portanto, quando dizemos que Deus é bondoso, estamos dizendo que ele nos resgatou de uma eternidade no inferno. A bondade de Deus é também um amor misericordioso — um amor demonstrado a pessoas que nem mesmo merecem ser amadas. A passagem de Tito 3.5 deixa claro que, quando Deus nos salvou, isso aconteceu “não por causa de obras feitas por nós com justiça, mas segundo sua própria misericórdia”. Nós não nos salvamos. Não conseguimos nos habilitar para o céu com base nas coisas justas que temos feito. Leon Tolstoi estava certo quando disse que não havia cumprido nem um milésimo dos mandamentos de Deus — não porque não tivesse tentado, mas porque era incapaz de cumpri-los.15 Esse é também o nosso problema — nós não fazemos nem conseguimos fazer todas as coisas justas que sabemos que devemos fazer. Por isso, se Deus nos salva, é apenas por sua misericórdia bondosa e amorosa. Não é porque sejamos amáveis, mas porque ele é amor. Além disso, a bondade de Deus é um amor transformador de vidas. O texto de Tito 3.5 diz que Deus nos salva “mediante a lavagem regeneradora e renovadora do Espírito Santo”. A regeneração é a obra íntima em que Deus Espírito Santo dá vida nova e eterna a um pecador sem vida. Aqui a obra de transformação de vida chama-se “a lavagem regeneradora”. Isso nos lembra o batismo cristão, o sacramento que usa água para simbolizar a purificação. Quando a bondade de Deus entra em sua vida, ela elimina todos os seus pecados. Também torna você uma pessoa totalmente nova. Isso acontece imediatamente quando o Espírito assume o controle, mas depois continua pelo resto da sua vida. Existe “regeneração”, que é umnovo nascimento espiritual, mas existe também “renovação”, que é a obra contínua do Espírito Santo. Deus está nos fazendo e nos refazendo como pessoas totalmente novas. Não somos aquilo que éramos no passado — louvado seja Deus! Não continuaremos sendo aquilo que somos — louvado seja de novo, pois essa é a bondade de Deus. Certa vez ouvi um pai dizer que sentia como se alienígenas tivessem assumido o controle do corpo de seu filho. De uma hora para outra, o rapaz havia se tornado mais respeitoso, obediente, arrependido, disciplinado, compassivo e ensinável — tudo o que um pai deseja de um filho. Então o pai percebeu que era isso mesmo: um poder alienígena e sobrenatural havia assumido o controle de seu filho. Alguém estava vivendo dentro dele! Era o Espírito Santo de Deus com todo o seu poder transformador de vida. A benignidade divina salvadora e transformadora de vida também é um amor generoso. Em sua bondade, Deus nos enviou o Espírito Santo, “que ele derramou sobre nós profusamente por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador” (v. 6). Esse versículo dá testemunho da bondade triúna de Deus. Há um único Deus em três pessoas, cada uma cheia de benignidade. Já vimos a bondade do Filho, em vir e ser nosso Salvador, e a bondade do Espírito, em nos regenerar e renovar. Aqui vemos a bondade do Pai, em nos enviar o Espírito por meio do Filho. O que a Bíblia enfatiza especialmente é a generosidade desse dom. O Espírito Santo é algo que Deus tem derramado profusamente. O Espírito é o melhor de todos os dons, porque ele é o dom do próprio Deus. E, quando Deus derrama esse dom, não é apenas um gotejamento, mas um manancial. Há muito mais que podemos dizer sobre a benignidade de Deus. O texto de Tito 3.7 explica por que Deus tem derramado seu Espírito sobre nós e em nós: “Para que, sendo justificados pela sua graça, pudéssemos nos tornar herdeiros de acordo com a esperança da vida eterna”. Esse versículo demonstra a justiça e a graciosidade do amor de Deus. Em nossa justificação, Deus declara que somos justos. Ele perdoa nossos pecados por meio da morte expiatória de Jesus Cristo. Ele também nos adota como seus próprios filhos e filhas amados. O grande pastor presbiteriano Henry Boardman disse: “A adoção é a maior prova de amor que alguém pode conceder a outrem, com exceção de morrer por ele; e Cristo fez as duas coisas por nós”.16 Então, Deus faz algo mais: Ele nos concede a herança da vida eterna, prometendo que viveremos com ele em seu reino glorioso para todo o sempre. A benignidade de Deus nunca chega ao fim, porque ele continua agindo graciosamente em nosso favor para sempre. Sua bondade é um amor eterno. A partir do momento em que experimentamos a bondade de Deus — sua bondade salvadora, misericordiosa, generosa, transformadora de vida e eterna por nós em Jesus Cristo —, nunca mais conseguimos pensar que a benignidade é algo pequeno e insignificante. A benignidade de Deus se estende até a eternidade. Ela realmente é melhor que a vida, porque, quando Deus nos salva em seu amor, viveremos para sempre. SEJA BONDOSO Você já experimentou a bondade de Deus? Será que você consegue dizer: “Deus tem sido tão bondoso comigo! Deus Pai me adotou como seu filho amado. Jesus Cristo tem transformado minha vida. Mediante sua morte na cruz, ele perdoou todos os meus pecados. Ele me deu seu Espírito Santo e me prometeu vida eterna. Sou alguém que tem se beneficiado da benignidade de Deus”? Todo aquele que é capaz de dar testemunho da bondade de Deus é chamado a mostrar aos outros a bondade divina. Essa é a questão prática tanto em Tito quanto em 1Coríntios. Quando 1Coríntios 13 nos diz que “o amor é bondoso”, não está apenas definindo amor para nós; também está nos dizendo como viver. O mesmo vale para Tito 3. A razão pela qual Paulo fala a Tito a respeito da benignidade de Deus é para que ele ajude pessoas de sua igreja a aprenderem a amar. O contexto é importante. Tito era o pastor em Creta, e os cretenses não eram muito bondosos. Ao que parece, precisavam ser lembrados de não dizer coisas ruins sobre os outros e de não entrar em discussões inúteis (Tt 3.2). Isso não causa surpresa, tendo em vista o que o versículo 3 diz sobre como costumavam viver: passando os dias “na maldade e na inveja, odiados pelos outros e odiando uns aos outros”. Nós mesmos poderíamos fazer a mesma confissão, porque temos a mesma necessidade espiritual. Não somos amorosos por natureza, mas inimigos. É por isso que temos a mensagem evangélica da bondade salvadora de Deus. Quando o apóstolo quis ajudar as pessoas a aprenderem a amar, ele não lhes deu simplesmente uma longa lista do que fazer e do que não fazer; também lhes contou a história de Jesus e de seu amor — a bondade com que Deus em Cristo transforma vidas. Quando essa história se torna nosso próprio testemunho, mediante a fé em Jesus Cristo, podemos então viver com o mesmo tipo de amor. Conforme Paul Miller escreve em seu livro Love walked among us: “O amor não começa com amar, mas com ser amado [...] só podemos dar aquilo que temos recebido”.17 Portanto, somente por meio da fé em Cristo podemos começar a amar do jeito que Jesus ama. Conhecer a bondade de Deus nos capacita a começar a mostrar a bondade de Deus. Todos os dias temos oportunidades de melhorar a vida de outros por meio da bondade, o que em alguns casos pode vir a ser uma bondade salvadora. Não que possamos chegar a ser salvadores de alguém ou a purificar alguém de seu pecado. Seria loucura tentar. Mas uma coisa que podemos fazer é apresentar o Salvador às pessoas, contando-lhes acerca de Jesus e de seu amor. A maior bondade que podemos chegar a mostrar a alguém é compartilhar o evangelho. Por isso, seja bondoso com vizinhos e estranhos da forma mais bondosa: convidando-os para ir à igreja, conversando com eles sobre assuntos espirituais e testemunhando a eles sobre Jesus Cristo. O trabalho amoroso de evangelismo pessoal é a maior bondade do mundo. A bondade que somos chamados a mostrar é também uma bondade misericordiosa, o que significa que podemos mostrá-la a pessoas que nem sequer a merecem. Nas palavras de Lewis Smedes: “Bondade é o poder que move uma pessoa egocêntrica a ajudar os fracos, os feios, os feridos e a passar a cuidar de outros sem expectativa de receber qualquer recompensa”.18 É fácil demais dividir o mundo entre pessoas que merecem nossa ajuda e pessoas que não merecem. Se Deus dividisse o mundo dessa maneira, nenhum de nós jamais conseguiria ajuda dele, porque nenhum de nós jamais a mereceria. Mas nós somos os beneficiários de bondade imerecida. De nossa parte, nós agora somos chamados a mostrar bondade altruísta às próprias pessoas que têm sido maldosas conosco. O amor doação de Deus, escreve C. S. Lewis, permite-nos “amar aquilo que não é amável por natureza”.19 Quando a Bíblia nos diz para sermos bondosos com nossos inimigos, como acontece com frequência, ela quase sempre nos diz para fazermos algum tipo de bem a eles (e.g., Mt 5.44; Rm 12.21; 1Ts 5.15; 2Tm 2.24). Somos chamados não apenas a tolerar as pessoas, mas também a tratá-las com bondade. Não espere que os outros sejam agradáveis com você antes de ser agradável com eles, mas trate as pessoas de forma tão bondosa quanto Deus o tratou por meio da cruz de Jesus Cristo. “Se eu posso escrever uma carta maldosa”, escreveu Amy Carmichael, “falar uma palavra maldosa, ter um pensamento maldoso — tudo isso sem sentir tristeza e vergonha —, então não conheço nada do amor do Calvário”.20 Que mais podemos dizer acerca da bondade que Deus nos chama a mostrar a outras pessoas? Deve ser uma bondade generosa. Dê mais — e não menos — à caridade evangélica. Passe mais tempo — e não menos — com os doentes e os sem-teto, com crianças carentes e pessoas na prisão. É claro que há horas em que a misericórdia nos ensina a dizer não a um pedido de ajuda, porque só alimentará um vício destrutivo ou uma dependênciaprejudicial. Mas, em vez de pensar “Como posso me livrar de fazer isso?”,ou justificar nosso desejo de não nos envolver, nosso primeiro instinto deve ser sempre o de ver se existe uma maneira de ajudar. Às vezes, nossa bondade pode até mesmo ser uma bondade transformadora de vida, em especial quando mostramos bondade espiritual às pessoas. Normalmente, pensamos em bondade da perspectiva da realização de alguma tarefa prática para ajudar alguém com uma necessidade física. Mas, conforme destacado por Jonathan Edwards em seu ensino sobre 1Coríntios 13, devemos tentar mostrar bondade à alma das pessoas. Como conseguimos isso? Edwards disse que conseguimos fazer isso ao levá-las ao conhecimento das grandes coisas da religião; e ao aconselhar e advertir outros, e ao estimulá- los a cumprir seu dever e a dedicar uma atenção oportuna e minuciosa ao bem-estar de suas próprias almas; e, de novo, ao darmos uma repreensão cristã àqueles que podem estar fora do caminho do dever; e ao sermos bons exemplos para eles, o que é uma das coisas mais necessárias e comumente a mais eficaz de todas para a promoção do bem da alma. 21 Em linguagem simples, mostramos benignidade ao partilharmos as Escrituras, ao darmos conselhos espirituais sábios, ao oferecermos palavras ternas de repreensão, quando realmente necessárias, e, acima de tudo, ao sermos um exemplo piedoso. Todos esses são atos de bondade que o Espírito Santo pode usar para o bem da alma de outras pessoas. É claro que a nossa bondade jamais poderia ser eterna como é a bondade de Deus. No entanto, ainda há uma maneira de sermos um reflexo da bondade eterna de Deus em nossa vida, e essa maneira é nunca parar de mostrar bondade. Se continuarmos sendo bondosos, isso fará uma diferença para Cristo e seu reino. Em geral as pessoas pensam na bondade como algo pequeno. Porém, se cada crente assumisse um compromisso pessoal com a bondade, isso mudaria o mundo. Os perdidos seriam encontrados. Os moribundos seriam libertados. Os indignos receberiam graça. Os sem amor e os impossíveis de amar seriam amados com um amor eterno. Tertuliano nos conta que, nos dias da igreja primitiva, os pagãos às vezes chamavam os cristãos de chrestiani em vez de christiani.22 As duas palavras soam parecidas, mas havia outra razão para a confusão. Christiani significa “cristãos”, mas chrestiani vem da palavra grega para “bondade”. De acordo com Tertuliano, mesmo quando os crentes não eram conhecidos como o povo de Cristo, ainda eram conhecidos como o povo da bondade, e essa bondade conduzia outros a Cristo. E quanto a nós? Será que somos conhecidos como pessoas de bondade, ou será que na maioria das vezes as pessoas associam o cristianismo a atitudes de mesquinhez, crítica e hipocrisia? Nosso chamado é para viver com tanto amor que a bondade se torne sinônimo de cristianismo. Às vezes dizemos que as pessoas saberão que somos cristãos por causa do nosso amor, mas aqui está outra maneira de dizer a mesma coisa: eles saberão que somos cristãos por causa da nossa bondade. GUIA DE ESTUDO Alguns anos atrás, houve um movimento para incentivar as pessoas a praticar “atos aleatórios de bondade” em favor de estranhos. Pensava-se em coisas simples, tais como deixar um valor no caixa para ajudar a pagar o pedido da pessoa que está no carro atrás de você, no drive-thru — o tipo de coisa que faria a outra pessoa sorrir de surpresa e gratidão. Mas a definição bíblica de benignidade é muito mais profunda. É amor em ação para o benefício espiritual dos outros. 1. Como é que a cultura de hoje define o amor? Em geral, em que uma pessoa comum baseia a confiança de que seu cônjuge ou familiares a amam? 2. Foi assim que João Crisóstomo, um pregador do século 4, definiu mostrar bondade àqueles que nos têm feito mal: “Não apenas suportando com grandeza de caráter, mas também acalmando e consolando” para “amenizar a dor e curar a ferida” de um relacionamento rompido. Dê exemplos de como você tem visto a bondade curar relacionamentos rompidos. 3. Leia Tito 2.1-15 e 3.1-3. Com base nesses versículos, que problemas eram visíveis na igreja de Tito? 4. Leia Romanos 2.4 e 11.22 e Tito 3.4-7. Cite algumas características da definição bíblica de bondade, conforme ela se manifesta por meio de Cristo. 5. Como a bondade de Deus nos afeta, tanto a curto quanto a longo prazo, no tempo presente e por toda a eternidade? 6. De acordo com Tito 3.4-7, por que Deus tem derramado essa bondade sobre nós? 7. Jesus contou uma história sobre a impressão que passamos quando demonstramos bondade pelos outros (Lc 10.30-37). Que partes dessa história devem ter sido surpreendentes ou ofensivas para o especialista em leis religiosas com quem Jesus estava conversando? 8. Que paralelos você consegue identificar entre a bondade do bom samaritano (Lc 10.30-37) e a bondade que Deus demonstra por nós? 9. Com base em Lucas 10.30-37, o que podemos aprender sobre as formas de demonstrar autêntica bondade bíblica por outra pessoa? Como isso difere da definição de bondade que o mundo adota? 10. Pense na última vez em que você encontrou uma pessoa necessitada. Você agiu mais como o bom samaritano ou como o sacerdote e o levita? O que o motivou ou impediu de demonstrar bondade? 11. Pense em alguém que talvez não pareça merecer o seu amor — alguém a quem você poderá mostrar bondade nesta semana. Que tipo de gesto você fará por ele ou por ela em nome de Cristo? Compartilhe seu plano com alguém a quem você possa prestar contas pela execução do plano. 1Conforme narrado em Melissa Howard, “Understanding More love to thee, o Christ”, disponível em: http://christianmusic.suite101.com/article.cfm/understanding_more_love_to_the e_o_christ, acesso em 7 set. 2009. 2Elizabeth Payson Prentiss em William J. Peterson; Ardythe Peterson, The complete book of hymns: inspiring stories about 600 hymns and praise songs (Carol Stream: Tyndale, 2006), p. 348. 3Elizabeth Payson Prentiss, citado em Robert J. Morgan, Then sings my soul: 150 of the world ’s greatest hymn stories (Nashville: Thomas Nelson, 2003), p. 133. 4John Chrysostom, “Homilies on the Epistles of Paul to the Corinthians”, 32.6, in: Gerald Bray, org., New Testament, 1-2 Corinthians, Ancient Christian Commentary on Scripture (Downers Grove: InterVarsity, 1999), vol. 7, p. 131. 5Ibidem, p. 131. 6C. S. Lewis, The four loves (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1960), p. 11 [edição em português: Os quatro amores, tradução de Paulo Salles (São Paulo: Martins Fontes, 2005)]. 7Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1047. 8Henry Drummond, The greatest thing in the world (New York: Grosset & Dunlap, s.d.), p. 28 [edições em português: A maior coisa do mundo, tradução de Almir dos Santos Gonçalves (Rio de Janeiro: JUERP, 1969); Amor: a melhor coisa do mundo, tradução de Edson Bini (São Paulo: Via Leitura, 2014)]. 9Ceslaus Spicq, “Agape”, in: Theological lexicon of the New Testament, tradução para o inglês e organização de J. D. Ernest (Peabody: Hendrickson, 1994), 3 vols. 10Ceslaus Spicq, Agape dans le Nouveau Testament (Paris: Études Bibliques, 1959), 2:151. 11Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 636 [edição em português: 1 Coríntios: comentário exegético, tradução de Marcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova, a ser publicado)]. 12Veja Charles Hodge, An exposition of the First Epistle to the Corinthians (reimpr. London: Banner of Truth, 1958), p. 269; Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr. Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 96 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 13Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids:Eerdmans, 1978), p. 15. 14John Chrysostom, Homilies on the Epistles of First Corinthians, tradução para o inglês de Talbot W. Chambers, in: Philip Schaff, org., Nicene and post- Nicene Fathers, First Series (1889; reimpr., Peabody: Hendrickson, 1994), 10:195 [edição em português: Comentários às cartas de São Paulo, 2, tradução de Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo, Série Patrística (São Paulo: Paulus, 2010), vol. 27/2]. 15Leon Tolstoi, resumido por Alan Paton em A journey continued: an auto- biography (New York: Collier, 1988), p. 285. 16Henry Boardman, A handful of corn (New York: Anson D. F. Randolph, 1884), p. 137. 17Paul E. Miller, Love walked among us: learning to love like Jesus (Colorado Springs: NavPress, 2001), p. 164 [edição em português: O amor andou entre nós, tradução de Eulália Pacheco Kregness (São Paulo: Vida Nova, 2011)]. 18Smedes, Love within limits, p. 12. 19Lewis, Four loves, p. 177. 20Amy Carmichael, If (London: SPCK, 1938), p. 9. 21Edwards, Charity, p. 97. 22Tertullian, Apology (3:39), in: David E. Garland, First Corinthians, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker, 2003), p. 617. 3 O AMOR NÃO É IRRITÁVEL O amor não é irritável. (1CO 13.5) E, quando ficou tarde, seus discípulos vieram a ele e disseram: “Este é um lugar deserto, e a hora já está avançada. Manda-os embora para que vão à região rural e a vilarejos ao redor e eles mesmos comprem algo para comer”. (MC 6.35,36) Existe alguém que irrita você? É claro que existe! Pode ser alguém em casa, na escola, no trabalho, na estrada, atrás da caixa registradora ou do outro lado do telefone celular — sempre existe alguém que nos tira do sério. Robert Browning capta esse sentimento com perfeição e de um jeito muito divertido em seu Soliloquy of the Spanish cloister [Solilóquio do convento espanhol]. Conforme o título sugere, o poema é um relato na primeira pessoa do singular, contado da perspectiva de um monge em um mosteiro espanhol. O monge está observando o irmão Lawrence trabalhar em um jardim isolado e fica resmungando palavras rudes sobre tudo o que o irmão Lawrence faz. Cada minúsculo movimento que Lawrence faz é motivo de irritação para o colega monge, desde a maneira de regar suas rosas até a maneira de podar os arbustos de murta. O monge irritado também descreve como é sentar-se ao lado de Lawrence às refeições e vê-lo engolir o suco de laranja, ouvi-lo falar sobre o tempo ou ouvir suas perguntas irritantes. “Como se diz ‘salsinha’ em latim?” — Lawrence pergunta com inocência. Irritado com a simples pergunta, o monge pensa consigo mesmo: “Como é que se diz ‘focinho de porco’ em grego?”. Depois do jantar, com todo cuidado, Lawrence limpa sua travessa até ficar brilhante e lava seu cálice sagrado, que ele marcou com sua inicial, “L”. O monge despreza cada gesto desse ritual diário, até mesmo a maneira cuidadosa como Lawrence coloca o prato de volta em sua prateleira pessoal. O poema de Browning reproduz bem a realidade da vida. Com imaginação fértil, ele mostra até que ponto uma pessoa pode ficar irritada com outra. Não é apenas o que as pessoas fazem que nos irrita, mas também como fazem. Em geral os motivos para nossa irritação são pequenos: como as pessoas comem, sobre o que elas conversam, como elas atravessam o jardim. Ao mesmo tempo, Browning mostra até onde nossas pequenas irritações podem levar. Perto do final do poema, o monge está tentando imaginar uma maneira de levar Lawrence a cometer um pecado abominável ou de fazer algum pacto com o diabo para destruir a alma do irmão. Ao situar esse poema em uma comunidade religiosa, Browning nos mostra algo mais, isto é, que a probabilidade de nos irritarmos com nossos irmãos e irmãs em Cristo é tão grande quanto a de nos irritarmos com qualquer outra pessoa. O poema termina com sinos da capela chamando a comunidade monástica para o culto da noite. Até quando começa a recitar o credo, o monge ainda está abrigando pensamentos odiosos contra Lawrence em seu coração hipócrita. “Gr-r-r”, ele diz, “seu porco!”. UMA DEFINIÇÃO DE IRRITABILIDADE A maioria de nós tende a pensar na irritabilidade como uma reação natural às pequenas frustrações da vida. Também tendemos a não nos preocupar demais com nossa irritabilidade, embora alguns cristãos talvez sejam suficientemente sábios para torná-la motivo de oração. Qual foi a última vez que você pediu ao Senhor para ajudá- lo a reagir com benevolência em relação àquela pessoa especial que sempre o irrita? Devemos levar nossa irritabilidade muito mais a sério, porque ela é o exato oposto do amor. Sabemos disso porque 1Coríntios 13.5 diz que o amor “não é irritável”. A irritabilidade é a antítese da caridade. Por isso, ela não é uma mera maneira de se queixar, mas, na realidade, é uma maneira de odiar. Esta é a primeira vez que analisamos uma das definições paulinas do amor baseadas no seu oposto. Só para lembrar, não estamos seguindo tudo o que é tratado no Capítulo do Amor na ordem em que aparece. À medida que estudamos esse retrato do amor, estamos ligando tudo à vida de Cristo, considerada cronologicamente. Mas primeiro precisamos definir nossos termos. Às vezes Paulo define o amor de acordo com o que ele é, e às vezes o define de acordo com o que não é. Esta é uma boa maneira de definir quaisquer termos: mostrar o que é em contraste com tudo o que não é. Uma definição dessas resulta em clareza maior e mais completa. Aqui, Paulo nos diz que o amor “não é irritável”. O termo que o apóstolo usa para irritabilidade (paroxunetai) tem uma gama de significados. Um léxico grego padrão traduz a palavra por “facilmente provocado”.1 A New International Version traduz da seguinte maneira: “facilmente irado”. De modo parecido, Charles Hodge define o termo como “irritadiço”.2 Anthony Thiselton oferece uma análise linguística mais detalhada e conclui que a palavra pode se referir a uma simples irritação, ou à ira total, ou a qualquer coisa entre esses dois extremos. No final, ele apresenta a palavra exasperado como talvez a melhor tradução.3 David Garland nos oferece algo um pouco mais pitoresco quando diz que o amor não é “rabugento”.4 Poderíamos acrescentar outros sinônimos. O amor não é mal-humorado nem enfezado. O amor não se aborrece. O amor não explode com violência ou com palavras de ódio. O amor não dispara ataques verbais, nem trata as pessoas com greve de silêncio, nem se deixa levar pelo aborrecimento, nem faz nenhuma outra coisa que é tentador fazer quando estamos com raiva ou irritados. Presume-se que os coríntios eram culpados de alguns ou de todos esses pecados. Caso contrário, por que Paulo se daria ao trabalho de dizer que a irritabilidade raivosa é um pecado sem amor? Tendo em vista todas as discussões que estavam acontecendo em sua igreja sobre teologia, idolatria, imoralidade sexual e dons espirituais, imagina-se que os coríntios estivessem tendo dificuldade para controlar sua raiva. Brigar faz com que as pessoas fiquem irritáveis. Temos a mesma luta. Tal como os coríntios, vivemos em um mundo caído, cheio de pessoas caídas, inclusive pessoas que nos irritam, nos aborrecem e nos deixam irados. Todos nós precisamos crescer em todas essas áreas, mas quero focar na irritabilidade. Quando Paulo disse que o amor não se exaspera, é bem possível que tenha pretendido incluir a ira no seu grau mais elevado. Mas a irritabilidade é o dedo que puxa o gatilho da raiva — aquilo que Lewis Smedes chama de “uma prontidão espiritual para ficar irado”.5 Se conseguirmos aprender a lidar com o primeiro impulso de ira no coração, conseguiremos aprender a amar do jeito que Jesus ama. NO FIM DE UM LONGO DIA Para ilustrar esse tipo específico de amor, reflita sobre um incidente famoso ocorrido nos primeiros dias do ministério terreno de nosso Salvador. Jesus estava ensinando e realizando milagres junto ao mar da Galileia. Isso aconteceu antes deele ir a Jerusalém, morrer na cruz e se levantar da sepultura. Os Evangelhos falam de uma ocasião em que os discípulos estavam irritados, mas Jesus não estava. Ver a diferença nos ajudará a aprender a amar com o amor pacificador de Jesus. Os doze discípulos estavam voltando de sua primeira viagem missionária de curta duração. Jesus os tinha enviado de dois em dois, sem pão nem dinheiro, para pregar arrependimento, curar os enfermos e expulsar demônios (Mc 6.7-13). Pelo poder de Deus, os discípulos tinham visto pessoas abandonarem seus pecados. Pessoas cujas almas eram dominadas pelo poder demoníaco tinham sido libertadas e pessoas cujo corpo estava alquebrado por viverem em um mundo caído tinham sido totalmente renovadas, de modo que podemos imaginar a vibração nas vozes dos discípulos quando Jesus os inquiriu e eles compartilharam o que Deus havia realizado por meio do ministério deles. Conforme Marcos nos diz: “Os apóstolos voltaram até Jesus e lhe contaram tudo o que haviam feito e ensinado” (v. 30). Essa viagem missionária deve ter sido exaustiva, e, quando terminaram de compartilhar tudo o que tinham no coração, os discípulos estavam esgotados. Jesus cuidou deles com compaixão amorosa, oferecendo descanso e recuperação das energias. Ele disse a seus discípulos: “Saiam sozinhos para um lugar solitário e descansem um pouco”. Marcos passa a especificar porque esses homens precisavam “desligar” por uns momentos: “Muitos estavam indo e vindo, e eles não tinham tempo livre nem mesmo para comer” (v. 31). Qualquer um que já tenha servido a pessoas necessitadas sabe que o ministério abomina a ausência de atividade. Sempre existem mais pessoas que precisam de mais ajuda, e às vezes precisamos apenas dar uma escapada. Então, Jesus e seus discípulos “foram embora sozinhos no barco para um lugar isolado” (v. 32). A essa altura, é difícil não invejar Filipe e Bartolomeu e os demais discípulos pelo aprazível privilégio de ir embora com Jesus para descansar por algum tempo. Infelizmente, as coisas não transcorreram exatamente como esperavam. Afinal, Jesus era o homem mais popular em Israel. Assim, havia uma demanda constante de seu ensino e ministério de cura. As pessoas iam atrás de Jesus da mesma maneira que os paparazzi vão atrás dos artistas de cinema, exceto pelo fato de que iam sem as câmeras. Quando as pessoas olharam para o outro lado do lago e viram a familiar vela do barco de Jesus no mar azul, elas correram ao longo da costa para chegar ao lugar onde o barco dele iria atracar: “Ora, muitos os viram indo e os reconheceram e, vindos de todas as cidades, correram até ali lá a pé e chegaram ali à frente deles” (v. 33). Creio que dá para desculpar os discípulos, caso tenham ficado um pouco decepcionados ao verem as multidões se reunirem mais uma vez ao longo da margem do lago. Quando teriam uma chance de descansar? Ainda assim, Jesus foi direto para a praia e, quando viu a multidão, “teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. E começou a lhes ensinar muitas coisas” (v. 34). Essa sessão de ensino durou o dia inteiro, como acontecia com frequência. Jesus continuava falando, e, quanto mais ele falava, mais exaustos e famintos os discípulos ficavam. Finalmente, “quando ficou tarde”, eles vieram e disseram a Jesus: “Este é um lugar deserto, e a hora já está avançada. Manda-os embora para que vão à região rural e a vilarejos ao redor e eles mesmos comprem algo para comer” (v. 35,36). De uma perspectiva puramente humana, essa sugestão parece perfeitamente razoável e totalmente prática. Sem dúvida, as pessoas estavam ficando com fome. Os discípulos com certeza estavam! Lembre-se de que eles não tinham nem mesmo tempo para comer. Também estava chegando perto do fim do dia. Logo seria tarde demais para todas essas pessoas — milhares delas — encontrarem algo para comer em qualquer lugar da vizinhança. Na verdade, era hora de voltarem para casa! Assim mesmo, por mais razoáveis que as palavras deles pudessem soar, os discípulos estavam ficando irritados e exasperados. A impaciência deles vinha crescendo durante horas, até que finalmente irrompeu, como acontece com a ira. Quando, enfim, vão falar com Jesus, interrompendo seu sermão (!), eles se dirigem a ele com uma ordem: “Manda- os embora”. O tom deles torna fácil imaginar o que vinham pensando consigo mesmos e talvez dizendo uns para os outros, antes de finalmente dizerem a Jesus o que fazer — coisas do tipo: “Estou morrendo de fome!”, ou: “Por que essas pessoas não nos deixam em paz?”, ou: “Será que Jesus não sabe quando deve parar?”. Jesus tinha uma ideia diferente de como reagir, e, quanto mais olharmos para aquilo que ele disse e fez nesse dia, mais veremos seu coração amoroso. Primeiro, Jesus devolve a exigência para os discípulos: “Deem vocês a eles algo para comer” — ele disse (v. 37). Se os discípulos queriam assumir o comando, por que eles mesmos não providenciavam o jantar? É claro que os discípulos pensaram que a ideia era absurda. A resposta meio sarcástica é outra indicação da irritação deles: “Será que devemos ir e comprar duzentos denários de pão e dar para que comam?” (v. 37). É claro que, no final, foi Jesus quem providenciou o jantar para todos, pegando cinco pães e dois peixes, invocando a bênção de seu Pai e depois multiplicando a comida até que “todos comeram e ficaram satisfeitos” (v. 42) — todos os cinco mil do povo. Dessa maneira, Jesus providenciou pão para seu povo. Em vez de ficar irritado com a multidão carente ou com seus discípulos insistentes, Jesus lhes deu maná no deserto. UMA ANATOMIA DA IRRITABILIDADE O que podemos aprender com essa história? Antes de olharmos para o amor de Jesus, vamos começar com os discípulos e examinar mais de perto a irritação deles, porque seu exemplo negativo pode nos ensinar muitas coisas sobre nossa própria irritação. Em primeiro lugar, os discípulos nos mostram quem fica irritado: todo mundo fica, inclusive as pessoas que estão ocupadas servindo ao Senhor. Lembre-se de que, quando Paulo disse aos coríntios que o amor “não é irritável”, ele estava escrevendo a crentes em Cristo que eram ativos em sua igreja local. Os cristãos têm tanta probabilidade de ficar irritados quanto qualquer outra pessoa. Os discípulos são um exemplo perfeito (ou talvez eu deva dizer um exemplo imperfeito). Eles vinham servindo ao Senhor, realizando milagres e pregando o reino. Agora, sentados na primeira fileira, estavam observando Jesus trabalhar mediante seu ensino e operação de milagres. Mas, antes mesmo que acabasse aquela experiência de enlevo espiritual, eles ficaram irritados com a situação e exasperados com Jesus. Se um apóstolo consegue ficar irritado enquanto passa seu tempo com Jesus, então nós também conseguimos. Não importa quem somos ou o que fazemos para Deus, a ira pode ser um problema espiritual real para nós. Sempre que começamos a ficar exasperados, devemos ver esse problema como realmente é: um fracasso em amar. Sabemos disso porque o Capítulo do Amor nos diz que o amor não é irritável. Portanto, quem fica irritado? Eu fico, se sou honesto sobre o pecado do meu coração sem amor. Os discípulos também nos ensinam quando é provável que fiquemos irritados. Eles foram tentados a cometer esse pecado no final de um dia cheio de atividades, depois de uma longa viagem, quando estavam cansados e com fome. Isso acontece com todos nós. A fraqueza física nos coloca no caminho do perigo espiritual. De modo que, se virmos que estamos ficando mais irritados do que o habitual, talvez precisemos dar um passo pequeno, mas bem prático, de conseguir algo para comer e beber ou descansar um pouco. Isso também é algo que os pais devem ter em mente quando seus filhos estão ficando irados: cuidar devidamente deles os ajudará a lutar contra o pecado. Observe também que os discípulos foram tentados a ficar irritados logo depois que tinham sido bem-sucedidos emservir ao Senhor. Isso também vale para a vida cristã, conforme qualquer pessoa no ministério pode dar testemunho. Algumas das tentações mais fortes vêm logo depois de termos andado ocupados fazendo a obra do reino, e o diabo está desesperado em recuperar o terreno perdido. Por isso, se queremos resistir à tentação da irritação, precisamos prever quando será provável que estaremos física ou espiritualmente fracos e, portanto, precisando especialmente de oração e da ajuda do Espírito Santo. Missionários devem orar pedindo graça depois de um período de ministério frutífero. Estudantes devem orar pedindo graça para o dia depois de uma longa noite de estudo. Pais e mães devem orar pedindo graça antes de entrarem pela porta de casa depois de um longo dia de trabalho. Quando estamos fracos, podemos ser fortes somente pelo poder de Deus. Outra lição a aprender com os discípulos é como a irritabilidade trata as outras pessoas. Basicamente, a irritabilidade não quer nada com elas. Quando os discípulos ficaram irritados por terem de esperar pelo jantar por um tempo tão grande, quiseram que Jesus mandasse todo mundo embora. Essa não foi a única vez que os discípulos tentaram manter as pessoas longe de Jesus: fizeram a mesma coisa quando mães estavam trazendo seus bebês para Jesus abençoar (veja Lc 18.15-17). Quando estamos irritados, queremos nos afastar de outras pessoas — membros da nossa família, nossos vizinhos, nossos colegas de classe, nossos colegas de trabalho —, mesmo que isso também signifique manter outras pessoas longe de Jesus. Observe também que os discípulos esperavam que as pessoas usassem seus próprios recursos para resolver seus problemas. Em vez de pedir ajuda a Jesus ou de oferecer seu próprio serviço como parte da provisão de Deus para suprir as necessidades práticas de outras pessoas, os discípulos mandaram embora as pessoas carentes. Eles se importaram menos com o genuíno bem-estar de pessoas necessitadas e mais com o impacto que os problemas das outras pessoas estavam tendo neles. É possível que a ideia de mandar embora as multidões tenha sido apresentada como uma forma de elas conseguirem algo para comer, mas (surpresa, surpresa!) também foi uma forma de os discípulos conseguirem o que queriam (a saber, um pouco de paz e tranquilidade). Às vezes, até mesmo nossa maneira de ajudar alguém acaba sendo um pouco egoísta. É assim que a irritabilidade trata os outros: colocando o que queremos à frente daquilo que eles precisam e, se possível, tentando evitar totalmente atender às suas necessidades. O verdadeiro problema somos nós, não eles. Precisamos ser honestos quanto a isso, porque com frequência culpamos as pessoas ao nosso redor pela maneira de reagirmos. “Ele realmente me deixa louco!”, dizemos, como se alguém fora de nós fosse direta e totalmente responsável pela nossa atitude pecaminosa. Isso não quer dizer que as outras pessoas nunca sejam importunas. Às vezes elas são. Mas, para mim, a questão espiritual não é quanto as outras pessoas são irritantes, mas, sim, quanto eu sou irritável. Se nós somos facilmente provocados, se tendemos a ficar irados da maneira errada por motivos errados e se nossa ira é desproporcional à situação, isso é prova clara de um coração sem amor. Jonathan Edwards estava certo quando disse que “o amor vai no sentido contrário da ira e não cede a ela em ocasiões triviais”.6 De modo que, se ficamos mesmo irados por causa de trivialidades — por exemplo, sobre a maneira de alguém dirigir, ou sobre algo que alguém nos pede para fazer, ou sobre algo que alguém esqueceu de limpar ou guardar, ou sobre qualquer coisa que outra pessoa fez (ou não conseguiu fazer) e que deixa nossas vidas um pouco menos cômodas —, o problema é o nosso próprio fracasso em amar. Em vez de colocar a culpa em alguma outra pessoa (“Se ela fizer isso mais uma vez, juro que vou fazê-la se arrepender pelo resto da vida, e ela terá de culpar só a si mesma!”), precisamos confessar nossa própria necessidade de mais do amor de Jesus. Mais uma coisa para aprendermos com os discípulos é como a irritabilidade reage a Deus. Nossa exasperação não é apenas um fracasso em amar outras pessoas, mas também um fracasso em amar a Deus. Conforme já vimos, os discípulos tentaram dizer a Jesus o que ele devia fazer e em seguida falaram com ele com bastante sarcasmo. Em vez de aprender o que ele estava tentando lhes ensinar — a saber, que ele sempre tem os recursos para prover nossas necessidades —, eles fizeram um comentário mordaz. A irritabilidade é assim: faz uma ideia negativa de Deus. Recusando-se a procurar a ajuda de Deus, a irritabilidade prefere, em vez disso, ficar irada. Se o dinheiro está acabando, ou se o tempo está acabando, ou se problemas estão saindo do controle, a pessoa que cede à irritação não confia que Deus providenciará o que é necessário. Em lugar de nos voltarmos para Deus naquele momento, exageramos nossos problemas e ficamos exasperados com Deus. Para nos ajudar a ver o que essa irritabilidade faz com a nossa alma, Lewis Smedes faz uma paráfrase de um famoso dito de Agostinho: “Somos irritáveis, ó Senhor, até que nos reconciliemos contigo”.7 A irritabilidade está diretamente ligada ao nosso relacionamento com Deus, o que é uma das principais razões pelas quais ela é um problema espiritual tão sério. A ira não apenas machuca outras pessoas; ela também impede nosso próprio relacionamento com Deus. UMA DEMONSTRAÇÃO DE AMOR O que pessoas irritáveis precisam — o que nós precisamos — é de mais do amor de Jesus. Felizmente, vemos esse amor na história de Marcos sobre a alimentação dos cinco mil. O que vemos não é apenas um exemplo a seguir, mas também um Salvador a receber em nossa vida, um Salvador que tem o poder de transformar a ira em amor. Tudo o que Jesus fez nessa história é exatamente o oposto do que seus discípulos fizeram. Isso se deve ao fato de que Jesus é tudo o que não somos. Ele é a demonstração viva da não irritabilidade, que é simplesmente outra forma de dizer que Jesus é amor. Com toda probabilidade, Jesus estava igualmente cansado e com tanta fome quanto seus discípulos. Com frequência, Jesus ficava esgotado em razão dos esforços árduos de seu ministério. Dessa vez, ele tinha pregado e curado o dia todo. Era um trabalho duro, como qualquer pregador pode dar testemunho. Certa vez, ouvi um professor de homilética afirmar que uma hora de pregação consome energia física equivalente a quatro horas de trabalho físico pesado. Ainda assim, em vez de querer que as multidões fossem embora e de ficar irritado quando elas se recusaram a partir, Jesus continuou a abençoá-las. Quando nós o vemos alimentando os cinco mil, tanto com o pão de cada dia quanto com a Palavra de Deus, vemos o que o amor é capaz de fazer quando não é irritável. Observe o jeito como Jesus ama. Seu amor é atraído por pessoas necessitadas. Em vez de afastá-las, que é o que os discípulos fizeram, Jesus as trouxe para perto. Ele fez isso quando, logo no início, viu a multidão se ajuntando na praia e decidiu deixar a privacidade de seu barco e ir até ela. Marcos nos diz que Jesus fez isso por causa de seu amor: “Ele teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem um pastor” (Mc 6.34). Jesus considerou a carência deles mais importante do que sua própria necessidade de recuperar as energias. É isso o que amor faz: permite que as necessidades dos outros determinem nossas prioridades, em vez de deixar que nossas prioridades limitem quanto estamos dispostos a servir, em especial quando nosso serviço pode dar às pessoas uma oportunidade de ouvir a palavra de Deus. Quaisquer limites que decidamos colocar em nosso serviço não devem ser determinados por nossos desejos egoístas, mas pela vontade de Deus, por outros chamados legítimos que temos e por aquilo que é verdadeiramente misericordioso com as pessoas que estão pedindo nossa ajuda. Um exemplo bem conhecido de comoo amor nos move na direção de pessoas necessitadas vem da vida de Madre Teresa. A primeira vez que ela resgatou um leproso que estava morrendo nas ruas de Calcutá — acolhendo-o, alimentando-o e limpando-o —, o homem perguntou a ela por que estava fazendo isso. “Porque eu amo você”, ela disse.8 Isso é o que o amor faz: ele nos move na direção de outras pessoas, não para longe delas, mesmo quando as necessidades delas são imensas. Com compaixão amorosa e sacrifício incansável, Jesus continuou ensinando as pessoas o dia todo. Mesmo quando era hora de jantar e os discípulos lhe disseram para mandar todos para casa, Jesus ainda se sentia atraído por elas, com um coração amoroso. De modo que realizou sua multiplicação miraculosa, alimentando a multidão com cinco pães e dois peixinhos. Jesus fez isso olhando para seu Pai no céu com confiança, o que é outra coisa que o amor faz: crê que Deus providenciará o que é necessário. Uma das principais razões por que os discípulos queriam mandar as pessoas embora — e por que falaram com Jesus com tanto sarcasmo — era que estavam pensando apenas da perspectiva de seus próprios recursos. Não é preciso dizer que eles não tinham em mãos pão suficiente para alimentar cinco mil pessoas. Jesus também não tinha, mas ele confiou que o Pai lhe daria o poder miraculoso de suprir as necessidades. A lição a aprender com essa história verdadeira não é que, se tiver o número certo de pães e peixes, você conseguirá operar milagres. Em vez disso, veja onde o amor encontra a força para servir: ao confiar no poder e na graça de Deus. Quando as pessoas vêm até nós com problemas que estão além de nossa capacidade — fazendo perguntas que não sabemos responder, ou pedindo algo que não temos, ou esperando que façamos algo que não temos força para fazer —, é fácil ficar irritado com elas por nos buscarem. Mas o amor toma aquilo que tem em mãos, ergue os olhos para o céu e pede a Deus para tornar nossa vida uma bênção para as pessoas de uma maneira que vai bem além do que somos capazes de oferecer. É desse jeito que Jesus ama: confiando no Pai. Em dependência do Espírito Santo e em conversa com Deus Pai por meio de oração, Jesus abriu seu coração para ser preenchido com a afeição triúna de Deus. AMANDO PESSOAS DIFÍCEIS DE AMAR Também é dessa maneira que Jesus nos chama a amar. Onde aprendemos a amar com amor terno, pacificador e não irritável? Aprendemos esse amor ao confiarmos no amor do Pai e ao pedirmos a ajuda do Espírito Santo, tal como Jesus fez. Também o aprendemos vendo o amor que Jesus tem por nós. Uma das coisas notáveis sobre essa história no Evangelho de Marcos é como Jesus trata seus próprios discípulos. Quando eles demonstram irritação com Jesus, este não fica irritado com eles, mas os trata com a mesma compaixão que tinha por todos. Os cinco mil não foram as únicas pessoas que comeram pão e peixe naquele dia. Quando Marcos diz que “todos comeram e ficaram satisfeitos” (v. 42), é bem possível que aí estivessem incluídos os discípulos. Contudo, mesmo que não estivessem incluídos, eles com certeza tiveram sobras em abundância! Depois que todos haviam sido alimentados, os discípulos “encheram doze cestos com pedaços de pão e de peixe” (v. 43). Essa foi uma lição prática e inesquecível sobre o poder e a provisão de Deus: um cesto por discípulo. Portanto, talvez devêssemos chamar esse incidente de “A alimentação dos cinco mil e doze”, e não de “A alimentação dos cinco mil”. Aqueles discípulos irritáveis e irritantes foram bem alimentados porque também eram amados pelo amor de Jesus. Jesus tem o mesmo amor por todos os seus discípulos. Mesmo depois de todas as vezes em que fiquei irritado ou exasperado com Deus por causa daquilo que ele tem ou não tem feito em minha vida, ele nunca fica irritado ou cansado demais para tratar comigo, mas continua me amando. Todos os meus irritantes pecados estão cobertos pela cruz onde Jesus morreu pelos meus pecados. Os seus pecados também estão cobertos por causa do amor de Jesus. Agora somos chamados a amar do jeito que Jesus ama, com um amor não irritado e não irado. Com certeza, algumas pessoas vão nos irritar todo santo dia. Quando fizerem isso, como reagiremos? Reagiremos com amor, caso peçamos a Jesus para que coloque seu amor em nossa vida — uma oração que ele adora responder. Conforme Henry Drummond disse sabiamente: “As almas se tornam agradáveis não por meio da retirada de fluidos cáusticos, mas mediante a introdução de algo — um grande amor, um novo espírito, o Espírito de Cristo. Cristo, por meio de seu Espírito, ao interpenetrar o nosso espírito, torna agradável, purifica, transforma tudo”.9 O doce amor de Jesus nos fará desejosos de sermos importunados por problemas de outras pessoas, inclusive os problemas de pessoas que nem mesmo conhecemos, que estão sofrendo em bairros pobres e esquecidos, em orfanatos caindo aos pedaços e em regiões devastadas pela guerra em um planeta caído. Esse amor nos capacitará e nos dará condições de amar mesmo quando achamos que não temos nada para dar. E isso nos ajudará a continuar confiando em Deus, quando somos tentados a estar tão irados com ele quanto com qualquer outra pessoa. Quando temos o amor de Jesus, cada irritação se torna mais uma oportunidade de amar do jeito como ele ama. Em seu livro The four loves, C. S. Lewis observa que os “atritos e frustrações” diários com que deparamos em nossas relações cotidianas comprovam que nosso amor natural não é suficiente, que precisamos de algo mais. Em geral pensamos que o que precisa mudar é tudo aquilo que nos irrita na outra pessoa. Lewis dá vários exemplos. “Se ao menos eu tivesse tido mais sorte com meus filhos”, as pessoas dizem. Mas Lewis ressalta que “todas as crianças às vezes são extremamente desagradáveis”. “Se ao menos meu marido fosse mais atencioso, menos preguiçoso”, diz a mulher; ao que o marido responde: “Se ao menos minha esposa tivesse menos momentos de mau humor e mais bom senso”.10 E assim por diante. Em cada um de nós existem atitudes e ações que com certeza irritarão alguém. Mas isso não significa que tenhamos de responder com ira. Se ficamos irados, então o que precisa mudar é o nosso coração, que precisa ser de novo enchido com o amor pacificador de Jesus. Uma ilustração simples, mas maravilhosa, de amor não irritável aconteceu em um jogo de beisebol entre os times do Philadelphia Phillies e do Washington Nationals, durante a temporada de 2009. Steve Montforto, um torcedor do Philadelphia Phillies, estava sentado com Emily, a filha de três anos de idade, quando uma bola fora começou a vir na direção da arquibancada superior. Montforto inclinou-se sobre o parapeito para apanhar a primeira e única bola fora de sua vida — o sonho de todo torcedor. Mas, quando ele deu a bola para a pequena Emily, ela imediatamente a jogou de volta, por cima do parapeito, para a arquibancada inferior. Todo mundo ficou chocado. Ao vê-la jogar fora a bola, o próprio Montforto ficou tão surpreso quanto todos os demais. Mas, em vez de ficar irritado com sua garotinha, ele fez o que um pai amoroso deve fazer: envolveu a filha em um abraço carinhoso. É desse jeito que Deus nos ama. Ele coloca presentes em nossas mãos que jamais conseguiríamos alcançar por nós mesmos. Sem perceber o que estamos fazendo, às vezes nós os jogamos fora. Ainda assim, em vez de ficar irritado conosco, ele nos ama novamente. E então ele nos dá a liberdade de ir amar outra pessoa com o mesmo tipo de amor. Ele mesmo nos dá a graça de voltar até as pessoas que jogam fora o nosso amor e amá-las de novo em todos os aspectos. Quem são as pessoas sem amor que Deus está o chamando para amar? Você vai amá-las do jeito que Jesus ama? GUIA DE ESTUDO Pense na última vez em que você ficou irritado com alguém a quem ama. É provável que você consiga se lembrar exatamente daquilo que ele ou ela fez para aborrecê-lo, mas pode ser mais difícillembrar com honestidade qual foi sua reação. É possível que, depois de o incidente ter passado, você não tenha pensado muito em como reagiu. Mas a Bíblia nos considera responsáveis por nossa irritabilidade, mesmo que tenhamos uma “justificativa realmente boa” para nosso pavio curto. Com frequência, desculpamos nossos acessos de raiva dizendo que fomos provocados ou estávamos cansados. Contudo, lá pelo meio de 1Coríntios 13, Paulo nos lembra de que o amor e a irritabilidade são mutuamente exclusivos. Nossa explosão de irritação foi, na verdade, um ato de ódio. 1. É fácil ficar irritado com os outros, sobretudo com aqueles que vivem ou trabalham bem próximos de nós. Quais os fatores que contribuem para você ficar irritado com os outros? 2. Qual das definições de irritabilidade apresentadas nas páginas 60-2 é mais útil para você? Por quê? Que outros sinônimos ou exemplos de irritabilidade você acrescentaria para completar estas frases: “O amor não é _______” ou: “O amor não ______”? 3. Leia Marcos 6.30-32. Jesus e seus discípulos estavam saindo de um período movimentado no ministério. O que os discípulos estavam aguardando com bastante expectativa? 4. Leia Marcos 6.33-37. Em vez de desfrutar de um retiro, Jesus e seus discípulos foram recebidos por mais multidões necessitadas. Que indícios você vê nesses versículos de que os discípulos estavam ficando irritados, em vez de amarem? Que fatores podem ter contribuído para o pavio curto deles? 5. Leia Marcos 6.38-40. A partir de uma perspectiva meramente humana, quais motivos Jesus teria para estar aborrecido com as multidões? Mas, em vez disso, como ele reagiu? 6. Depois de tudo o que os discípulos viram e experimentaram ao conviverem e trabalharem com Jesus, seria de esperar que eles tivessem manifestado um pouco mais de paciência e compaixão. Mas em parte alguma de Marcos 6.30-40 Jesus os censurou pelo pavio curto. Como Jesus ajudou os discípulos a superarem a ira? 7. Se você estivesse no lugar dos discípulos, como sua atitude teria mudado entre o início e o final desse episódio? 8. O que podemos aprender, com base em Marcos 6.38-40, sobre demonstrar compaixão em meio a circunstâncias difíceis? 9. Que estratégias práticas você pode implementar para ajudar asi mesmo a ser menos irritável? Como você pode ajudar a atenuar situações estressantes, de modo que outras pessoas também tenham controle sobre o próprio temperamento? 10. Descreva uma ocasião quando você ou alguma outra pessoa demonstrou irritação e, em seguida, pediu desculpas. Depois de descontrolar-se com alguém, o que você pode dizer ou fazer para restabelecer o relacionamento? 1James Hope Moulton; George Milligan, The vocabulary of the Greek Testament: illustrated from the papyri and other non-literary sources (Grand Rapids: Eerdmans, 1963), p. 496. 2Charles Hodge, An exposition of the First Epistle to the Corinthians (reimpr. London: Banner of Truth, 1958), p. 270. 3Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1052. 4David E. Garland, First Corinthians, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker, 2003), p. 618. 5Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 60. 6Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr. Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 196 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 7Smedes, Love within limits, p. 58. 8Essa história é contada por Brad S. Gregory em “Saints’ lives decoded?”, Books and Culture (Jul/Aug 2009): 12. 9Henry Drummond, The greatest thing in the world (New York: Grosset & Dunlap, s.d.), p. 24 [edições em português: A maior coisa do mundo, tradução de Almir dos Santos Gonçalves (Rio de Janeiro: JUERP, 1969); Amor: a melhor coisa do mundo, tradução de Edson Bini (São Paulo: Via Leitura, 2014)]. 10C. S. Lewis, The four loves (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1961), p. 154 [edição em português: Os quatro amores, tradução de Paulo Salles (São Paulo: Martins Fontes, 2005)]. 4 O AMOR E SUA SANTA ALEGRIA O amor não se alegra com as más ações, mas se alegra com a verdade. (1CO 13.6) Então, virando-se para a mulher, disse a Simão: “Vê esta mulher? Entrei em sua casa; você não me deu água para os pés, mas ela molhou meus pés com suas lágrimas e os secou com os cabelos. Você não me deu beijo, mas, desde o momento em que entrei, ela não parou de beijar meus pés. Você não ungiu minha cabeça com óleo, mas ela ungiu meus pés com unguento. Portanto, digo a você que os pecados dela, que são muitos, estão perdoados — porque ela muito amou. Mas quem é pouco perdoado, pouco ama”. (LC 7.44-47) O ano de 2009 assinalou os quinhentos anos do nascimento de João Calvino, o famoso reformador cuja pregação levou a verdade, a misericórdia e a alegria à cidade de Genebra. Naquele verão, centenas de cristãos vindos de todo o mundo se reuniram na antiga catedral de Calvino, a catedral de Saint Pierre, no alto da colina, com vistas para o lago Genebra. Eles se reuniram para adorar a Deus e ouvir de novo as grandes verdades que a Reforma recuperou para a Suíça e para o mundo — verdades como a soberania de Deus, a autoridade única e suprema da Escritura e a salvação apenas pela graça e somente por meio da fé em Cristo, e apenas nele. Na véspera do aniversário de quinhentos anos de Calvino, uma festa bem diferente estava acontecendo lá embaixo, às margens do lago, onde trezentos mil foliões dançavam pelas ruas na Marcha do Lago, que ocorre todos os anos na cidade. O clima não era de despreocupação e diversão, mas de desordem e rebeldia. O álcool circulava à vontade. A embriaguez levou a nudez e obscenidades, tanto por parte de gays quanto de héteros. Na manhã seguinte, havia lixo por toda parte e — deitados no lixo — os corpos prostrados de festejantes confusos demais para pegar o caminho de casa. O contraste entre as duas festas era gritante. Uma delas estava focada em Deus e deixou as pessoas mais bem equipadas para viver para Cristo em meio aos sofrimentos de um mundo caído. A outra estava focada no prazer pessoal e deixou as pessoas vazias e solitárias. Fui testemunha ocular disso e, enquanto dava minha corrida ao longo da margem do lago no dia seguinte, com o sol bem cedo de manhã cintilando na água, um jovem com os olhos vermelhos estava gritando no celular com a voz no volume máximo. Ele tinha estado fora a noite toda e não estava nada contente com a situação, possivelmente porque seus supostos amigos o haviam deixado para trás. O que você vai escolher festejar e onde essa festa deixará você? Quando você vê outras pessoas fazendo a escolha errada e depois se deleitando nisso, acaso você fica contente com a oportunidade de se sentir moralmente superior ou você fica com o coração partido por causa do pecado e desejoso de compartilhar o evangelho? Quando a Bíblia fala sobre essas decisões, ela diz que o que faz a diferença é o amor, pois o amor “não se alegra com as más ações, mas se alegra com a verdade” (1Co 13.6). DOIS TIPOS DE ALEGRIA O apóstolo Paulo escreveu essas palavras para os primeiros cristãos em Corinto. À semelhança dos genebrinos dos dias de hoje, os coríntios eram conhecidos por sua prosperidade material e sexo sem compromisso. Portanto, mesmo depois que vieram a Cristo, eram tentados a se alegrar com as coisas erradas. De modo que Paulo lhes ensinou sobre a escolha que o amor faz pela santidade. Os termos más ações e verdade são tão amplos, que é difícil saber com exatidão por que Paulo os incluiu em seu retrato do amor. Jonathan Edwards assim parafraseou o versículo: “A caridade é contrária a tudo o que é mau na vida e na prática, e se inclina a tudo o que é bom”.1 De modo parecido, Gordon Fee entende más ações e verdade como doislados de uma mesma realidade geral. O amor é a favor de tudo o que é piedoso e contra tudo o que é ímpio. Ele escreve: A pessoa cheia de amor divino se alegra, junto com outras, com o comportamento que reflete o evangelho — por cada vitória alcançada, cada perdão oferecido, cada ato de bondade. Essa pessoa se recusa a ter prazer no mal, tanto em suas formas mais globais — guerras, a violência contra os pobres — quanto naquelas mais próximas — a queda de um irmão ou irmã, o mau comportamento de uma criança. [...] Ele não se alegra quando outra pessoa cai. 2 Quando a Bíblia fala sobre a verdade, ela não está falando apenas sobre o que nós sabemos, mas também sobre o que fazemos. Em geral achamos que o contrário de verdade é falsidade. Contudo, a Bíblia comumente contrapõe verdade e más ações. Esse não é um “erro de categoria”, como um filósofo o chamaria, mas simplesmente um reconhecimento de que a verdade é algo que vivemos, e não apenas algo em que acreditamos. Os cristãos são chamados a “praticar a verdade” (1Jo 1.6) e a andar na verdade (3Jo 3). “Não podemos fazer nada contra a verdade”, Paulo escreveu mais tarde, “mas apenas a favor da verdade” (2Co 13.8). “A verdade” é, portanto, tudo o que é certo e bom, na fé e na prática. De acordo com Edwards, “ela indica toda virtude e santidade, incluindo tanto o conhecimento e o acolhimento de todas as grandes verdades das Escrituras quanto a conformidade a elas na vida e na conduta”.3 Essa verdade se opõe à injustiça, à imoralidade ou a qualquer outra forma de má ação. Quando consideramos o significado de 1Coríntios 13.6, precisamos indagar por que alguém iria “se alegrar com as más ações”. A resposta mais óbvia é que quem comete más ações ama as más ações que comete. O fofoqueiro adora contar um segredo; o ladrão gosta de tomar aquilo que pertence a outra pessoa; o atormentador tem prazer em ferir as pessoas; o pecador sexual ama o ato lascivo que traz prazer físico; e assim por diante. O que o pecador festeja é o pecado em si. No entanto, a redação exata do versículo 6 aponta para um significado diferente. Paulo diz que o amor não se alegra “com” (epi) as más ações. Se ele estivesse falando sobre o fato de o pecador comemorar seu próprio pecado, talvez pudéssemos esperar que dissesse que o amor não se alegra “nas” (en) más ações. Em vez disso, ao dizer que o amor não se alegra “com” as más ações, ele coloca o pecado em algum lugar fora da pessoa que está se alegrando.4 Portanto, nesse contexto, o que o amor se recusa a fazer é festejar o pecado de alguma outra pessoa. Às vezes as pessoas festejam os pecados dos outros porque isso lhes dá liberdade para cometer os mesmos pecados. Essa era parte da dinâmica da Marcha do Lago de Genebra quando todos os outros estão agindo de forma obscena ou se embriagando, é fácil se unir ao grupo naquele momento. Mas essa não é a escolha que o amor faz, porque o amor verdadeiro se importa com a santidade de Deus e, portanto, toma cuidado para evitar ser tentado pelos prazeres do pecado. Mas é possível que Paulo tivesse algo mais específico em mente. Lembre-se de que, ao escrever aos coríntios, ele estava se dirigindo a pessoas que iam à igreja. Com certeza os cristãos são tentados a ter prazer em muitos pecados que são odiosos para Deus. Mas também somos tentados — talvez mais do que a maioria das pessoas — a ter uma leve sensação de satisfação quando alguém faz algo de errado, em especial alguém de quem discordamos. Por exemplo, quando um pastor de uma denominação diferente ou de um ministério rival cai em pecado gritante, ou quando um líder da extremidade oposta do espectro político é apanhado em uma situação comprometedora, é difícil não se sentir pelo menos um pouco moralmente superior. Há um sentimento vanglorioso de felicidade pecaminosa que só surge quando alguém é apanhado fazendo o tipo de coisa que sempre suspeitamos que ele fizesse. O amor, contudo, jamais se sentiria assim, porque o amor não se alegra com as más ações. “Não tem prazer”, escreveu Henry Drummond, “em expor a fraqueza dos outros”.5 Em vez disso, o que o amor faz é “se alegrar com a verdade”. Aqui a palavra traduzida por alegrar-se não é a mesma usada anteriormente no versículo com relação às más ações, mas, sim, algo mais intenso (sunchairein). Em suma, a pessoa que se alegra com a verdade — não “diante” da verdade, mas “com” a verdade — tem maior alegria. O sentimento que vem por conhecer e viver com sinceridade absoluta eleva o espírito e traz profundo deleite à alma. Essa é a santa alegria do amor, a alegria que só vem por buscar o que é certo e verdadeiro, mas nunca em consequência de estar feliz com as más ações. Alguns comentaristas dizem que aqui Paulo usa o artigo definido porque está falando mais especificamente sobre o evangelho.6 Nessa interpretação, o que a pessoa amorosa festeja não é apenas uma verdade qualquer, mas a verdade — a verdade evangélica de que Jesus morreu por nossos pecados na cruz e ressuscitou com a promessa de vida eterna. O problema com essa interpretação é que ela corre o risco de forçar uma conclusão com base no artigo definido a. O que a Bíblia parece ter em vista não é simplesmente a verdade do evangelho, mas a verdade em todas as suas formas, com que a pessoa amorosa sempre se alegra. Isso inclui a verdade sobre o caráter de Deus, a saber, que ele é um Deus amoroso, santo, gracioso e justo. Há a verdade da Palavra de Deus, de que cada parte de cada versículo do Antigo e do Novo Testamento é total, absoluta e inerrantemente verdadeira. Isso também inclui a verdade da criação, que em todos os lugares dá testemunho do poder e da beleza de Deus. Em seguida, existem todas as grandes verdades da fé cristã: a soberania de Deus; o ser triúno do Pai, do Filho e do Espírito Santo; o destino glorioso de um novo céu e de uma nova terra; e assim por diante. Ainda assim, no âmago da fé cristã existe uma verdade em particular que faz mais em produzir santa alegria do que todas as outras verdades. É uma verdade para ser obedecida e uma verdade que possibilita amar — uma verdade para festejar. Essa verdade é a graça de Deus a pecadores perdidos e necessitados. A graça de Deus talvez não seja a única verdade que Paulo tinha em mente quando disse que o amor “se alegra com a verdade”, mas nenhuma verdade proporciona mais santa alegria a um coração amoroso. SIMÃO E A MULHER PECADORA Um bom texto para ver essa verdade na vida de Cristo — e ver a diferença entre alegrar-se com as más ações e alegrar-se com a verdade — é a história do que aconteceu certa noite, por ocasião de um jantar. É a história de Simão e a mulher pecadora, e a pergunta a se fazer sobre a história é: “Onde me situo com relação a Jesus?” Será que sou mais como a pessoa religiosa dessa história ou mais como a pecadora? À medida que vemos a interação de santidade, verdade e alegria, o relato abre nosso coração para a graça de Deus e nos ajuda a ver o que o amor pode fazer. De acordo com Lucas, um dos fariseus — um homem de nome Simão — convidou Jesus para jantar. Não sabemos todas as razões para Simão fazer esse convite, mas fica óbvio que ele estava tentando decidir se Jesus era um verdadeiro profeta da parte de Deus (o que é claro que era). Também sabemos que Jesus aceitou o convite, “entrou na casa do fariseu e reclinou-se à mesa” (Lc 7.36). Essa era uma situação familiar para Jesus. Com frequência os Evangelhos mostram Jesus à mesa de jantar. Mas o incomum nesse caso em particular foi os dois tipos inteiramente diferentes de pessoas estarem lado a lado. Era frequente Jesus comer com dirigentes de uma sinagoga ou outros líderes religiosos locais — homens que estavam intrigados com seu ministério e queriam conversar sobre teologia, embora nem sempre com a melhor das intenções. Em muitas outras ocasiões, Jesus comeu com cobradores de impostos e outras conhecidas pessoas de má fama, que os cidadãos de respeitotentavam evitar. Pessoas desesperadas por amor sempre se sentiam atraídas por Jesus, o “amigo de [...] pecadores” (v. 34). Normalmente os fariseus e os cobradores de impostos não se relacionavam. Mas, em certa mesa de jantar, os dois mundos se chocaram. Aqui o relato ganha ritmo com uma cena inesquecível: E eis que uma mulher da cidade, que era pecadora, quando soube que ele estava reclinado à mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com unguento e, ficando atrás dele, a seus pés, chorando, ela começou a molhar os pés dele com as lágrimas e os secou com os cabelos; e beijou-lhe os pés e os ungiu com o unguento (v. 37,38). Lucas nos conta que Jesus estava “reclinado à mesa.” Em outras palavras, ele estava jantando no estilo formal da época da Bíblia, inclinando-se em um lado e com os pés esticados para fora da mesa. Para nós talvez cause surpresa que alguém não convidado apareça no jantar, mas uma refeição como essa deve ter acontecido em um pátio ao ar livre, não em alguma sala de jantar sem acesso. Portanto, a mulher se aproximou, como as pessoas muitas vezes faziam, de modo parecido como hoje em dia alguém que está passando observa o movimento de uma festa na rua. O que a mulher fez a seguir foi uma das coisas mais extraordinárias que alguém chegou a fazer para Jesus. Com toda a probabilidade ela tinha ouvido Jesus pregar. Talvez estivesse no meio da multidão que pouco antes o tinha ouvido falar sobre João Batista e o reino de Deus (veja v. 24-30). De alguma maneira, a mulher tinha ouvido falar que Jesus estava à mesa de jantar. Rapidamente, ela correu para casa para apanhar seu bem mais precioso: um frasco de alabastro com um perfume marcante. Ela teve uma ideia. Enquanto Jesus jantava, ela banhou os pés dele com o perfume delicioso, dando-lhe o bem mais custoso que ela podia dar. Enquanto estava ali, a mulher ficou tão tomada de amor e de alegria que começou a chorar. Imagine como as lágrimas dela devem ter vertido em profusão a ponto de ela sentir a necessidade de secar os pés de Jesus. No entanto, foi isso que aconteceu. Emoção liquefeita escorria pelo rosto da mulher e molhava os pés de seu Salvador. Imediatamente ela pegou os longos cabelos e começou a secar as lágrimas. Então começou a beijar e a beijar seus pés (Lucas usa um verbo intensivo que indica ação repetida). Para entender a natureza pessoal e a humildade desse encontro, precisamos saber que, naquela época, cuidar dos pés de alguém era uma tarefa servil, reservada para escravos. Também existe alguma razão para crer que, naquela época, uma mulher de respeito jamais soltava os cabelos em público. Isso era algo que ela fazia apenas na privacidade do seu quarto de dormir, na sagrada companhia de seu amado marido.7 Por isso, o que essa mulher ofereceu a Jesus foi muito mais que seu perfume. Tudo o que ela fez — desde ficar aos pés de Jesus até beijá- los — foi feito com santo descomedimento. Era como se ela e Jesus fossem as duas únicas pessoas no mundo. Seu bem precioso, suas lágrimas, seu cabelo, seus lábios — era tudo para ele. A mulher estava dando vazão a seu coração com a fragrância do amor que tinha. SIMÃO FALA Simão ficou escandalizado com tudo isso. O que Jesus aceitou como sagrado na intimidade amorosa daquele gesto, o fariseu considerou algo inoportuno e que ia além dos limites. Embora ele fosse demasiado cortês para dizer isso em voz alta, por dentro sentiu-se ofendido e constrangido. Lucas nos diz o que Simão estava dizendo para si mesmo, dentro da privacidade moralista de seu coração crítico: “Se esse homem fosse profeta, saberia quem é essa mulher que o está tocando e que tipo de mulher que é, pois é uma pecadora” (v. 39). Essas palavras duras devem nos lembrar para ter cuidado quanto ao que dizemos dentro do nosso coração, onde até mesmo um único e rápido comentário pode nos condenar de mil maneiras. Ao fazer essa análise, o fariseu estava dizendo algo acerca de Jesus, a saber, que ele não era nenhum profeta de Deus. É claro que Simão estava completamente errado em sua avaliação, mas, com base em suas suposições, essa era uma dedução lógica. Ele supôs que, se Jesus soubesse quem era essa mulher, ele não a aceitaria. Portanto, quando Simão viu Jesus deixar que ela o tocasse e o beijasse, só podia concluir que Jesus não sabia que tipo de mulher ela era, e, nesse caso, não tinha nenhum acesso especial a Deus nem qualquer conhecimento revelado da verdade. Simão também estava dizendo algo sobre a mulher. Lucas já nos dissera que ela era “uma mulher da cidade”, o que talvez seja uma maneira indireta de dizer que era uma prostituta. Com certeza era uma pecadora — todos concordam com isso. Quando Lucas a chama de pecadora (v. 37), ele não coloca o termo entre aspas, mas nos diz a plena verdade sobre sua impiedade. Também Simão a chamou de pecadora (v. 39), e a mulher tinha consciência disso. Foi exatamente por isso que ela se sentiu atraída por Jesus: ela sabia que precisava ser perdoada. Jesus sabia a mesma coisa. Aliás, ele foi ainda mais longe, dizendo que os pecados dela eram “muitos” (v. 47). De modo que, de certa maneira, Simão estava certo sobre a mulher e suas más ações, ainda que estivesse errado sobre Jesus. Mas o fariseu também dizia algo sobre si mesmo, e é aqui que ele talvez tenha cometido o erro mais grave de todos. Ao identificar a mulher como uma pecadora, ele a colocou em uma categoria separada da sua, afirmando de modo sutil, mas inconfundível, sua própria virtude religiosa. Observe que as palavras que usa para descrever a mulher são extremamente depreciativas. Ele se refere a ela dizendo “tipo de mulher” (v. 39), que é outra maneira de dizer “não uma pessoa justa como eu”. Entenda o que Simão estava realmente fazendo: Estava se alegrando com as más ações da mulher. Não estava se alegrando no sentido de querer participar do pecado dela, necessariamente, mas no sentido de que estava feliz em usar o pecado dela como uma maneira de confirmar sua avaliação de justiça pessoal. Ele se alegrou com as más ações dela e deixou que isso alimentasse seu orgulho espiritual. Enquanto houver alguém por aí que pareça ser um pecador maior do que eu, fico feliz em dizer para mim mesmo que sou bom o suficiente para Deus. Ora, se alguém tivesse dito a Simão que ele estava se alegrando com más ações, ele teria protestado em voz alta de que ninguém ficava mais ofendido com a conduta imprópria do que ele. Isso talvez transpareça no linguajar que ele usa no versículo 39, em que reclama de como a mulher estava “tocando” (haptetai) os pés de Jesus. Às vezes, esse termo tem conotações sexuais (e.g., 1Co 7.1). Talvez, da perspectiva do fariseu, portanto, ela não estivesse apenas tocando os pés de Jesus; estava acariciando-os. Em vez de se alegrar com esse tipo de coisa, ele foi ágil em condená-la. No entanto, apesar de toda a sua aparente indignação, o próprio Simão estava cometendo um pecado — um pecado muito mais mortal do que a prostituição: o pecado do orgulho. Ele estava declarando os méritos de sua própria justiça, negando que pessoalmente precisasse da graça e, portanto, deixando de mostrar amor pelos perdidos ou de festejar a verdade da graça de Deus aos pecadores necessitados. Até onde Simão conseguia ver, algumas pessoas não eram suficientemente boas nem para ser perdoadas. Ao se ofender com algo que Jesus considerou sagrado, a única pessoa que ele realmente condenou foi a si mesmo. O FARISEU SEM AMOR Se existe uma verdade que eu gostaria de poder comunicar com mais clareza, é a abundância da graça que Deus tem para qualquer um que tenha caído em pecado. Jesus tinha o mesmo desejo. O objetivo de todo o seu ensino — um objetivo que ele alcançou de forma plena e final ao morrer na cruz e ressuscitar com perdão para o mundo — era ajudar as pessoas a se afastarem de seu pecado e aceitarem a livre graça de Deus. Ele fez a escolha que o amor faz, jamais sealegrando com as más ações, mas sempre se alegrando com a verdade. Vemos esse tipo de amor aqui — não apenas na maneira de Jesus perdoar à mulher pecadora e a defender, mas também na maneira de questionar esse fariseu moralista. Jesus estava totalmente comprometido com a verdade, inclusive a verdade sobre Simão e seu coração sem amor. Ele queria que Simão visse a graça que Deus tem para os pecadores e experimentasse o amor que sua graça produz na vida de qualquer pessoa cujos pecados são perdoados. Para ajudar o fariseu a ver isso, Jesus contou uma pequena parábola que teve o poder de virar o mundo daquele homem de cabeça para baixo. A história era assim: “Certo agiota tinha dois devedores. Um devia quinhentos denários, e o outro, cinquenta. Quando não puderam pagar, ele cancelou a dívida de ambos. Agora qual deles o amará mais?” (v. 41,42). A resposta era óbvia, mas, sempre que alguém faz uma pergunta assim tão fácil, geralmente começamos a suspeitar que é uma cilada. Podemos dizer, com base na resposta hesitante de Simão, que ele estava preocupado em não cair em uma pegadinha: “Aquele, suponho, de quem ele cancelou a dívida maior” (v. 43). Mesmo com toda sua desconfiança, Simão estava certo: a dívida dos dois homens foi perdoada, mas aquele que devia quase dois anos de salário amaria mais o agiota. Jesus estava dando uma aula de economia espiritual, mostrando a transação direta entre perdão e amor: aqueles que mais foram perdoados também amam mais. Mas Jesus não parou por aí. Ele passou a aplicar a parábola de uma forma pessoal, como um bom pregador sempre faz. A história do agiota e dos dois devedores era na realidade sobre Jesus e os dois pecadores à mesa de jantar, um dos quais era o fariseu Simão (quer ele soubesse, quer não). Jesus começou sua aplicação pessoal com uma pergunta irônica. “Vê esta mulher?”, Jesus perguntou. É claro que ele vira a mulher! O olhar de Simão tinha se fixado nela desde o momento em que a viu. Então Jesus estabeleceu um contraste entre o que a mulher fez e o que o fariseu deixou de fazer: “Entrei em sua casa; você não me deu água para os pés, mas ela molhou meus pés com suas lágrimas e os secou com os cabelos. Você não me deu beijo, mas, desde o momento em que entrei, ela não parou de beijar meus pés. Você não ungiu minha cabeça com óleo, mas ela ungiu meus pés com unguento” (v. 44-46). O contraste era total. Um bom anfitrião teria beijado os convidados nas duas faces e ungido a cabeça deles com óleo. Simão não tinha cumprido nenhum dos deveres da hospitalidade normal. Por outro lado, a mulher pecadora tinha feito coisas que eram um serviço mais humilde e revelavam uma afeição mais desmedida. Em vez de usar uma toalha e uma bacia, ela banhou os pés de Jesus com as lágrimas e os secou com os cabelos. Em vez de beijar Jesus na face, beijou-lhe os pés — um gesto radical de amor submisso. Em vez de ungir Jesus com óleo, ela havia lhe dado um perfume delicioso. O que tudo isso dizia sobre essas duas pessoas? O que seus atos revelam sobre a condição do coração de cada um? De acordo com Jesus, a diferença foi o amor, e o que provocou a diferença foi o perdão. Foi isso que ele disse a Simão para que todos ouvissem: “Portanto, digo a você que os pecados dela, que são muitos, são perdoados — porque ela muito amou. Mas quem é pouco perdoado, pouco ama” (v. 47). Quando falou sobre alguém que ama pouco e, portanto, necessariamente foi pouco perdoado, Jesus estava falando de Simão. O coração do fariseu estava totalmente exposto. Apesar de toda sua teologia e moralidade, o homem simplesmente não sabia como amar. Sabemos disso porque ele não recebeu Jesus como alguém que ama receberia. Também sabemos disso porque ele se alegrou com as más ações da mulher, que é algo que o amor nunca faz. Simão nunca havia experimentado de verdade a graça de Deus em sua própria vida e, por isso, era incapaz de festejar essa graça na vida de outro pecador. É assim que Paul Miller explica o raciocínio daquele homem: “Seu choque com essa mulher é resultado da crença de que (1) ele jamais faria algo tão mau quanto o que ela fez e, portanto, (2) ele é melhor do que ela, de modo que (3) ele não precisa de nada do que Jesus talvez tenha a oferecer”.8 Se formos honestos, temos de admitir que nosso próprio coração pode, em todos os aspectos, ser de várias maneiras sem amor. Durante esta semana, você fez pelo menos uma única coisa que mostrasse a Jesus o amor desmedido de um pecador perdoado? Você se alegrou com a presença dele na oração, beijando-o com louvor? Você lhe ofereceu algum bem precioso que foi custoso dar ou lhe prestou algum serviço que só um escravo prestaria? Todas essas são coisas que o amor faz quando se alegra com a verdade. Pense também como tem tratado outras pessoas. Você já não suporta mais “o pecador” que está no seu caminho? Será que você é compreensivo com as fraquezas pecaminosas dele? Ou será que, lá no íntimo, você está contente por não ter os problemas que ele tem nem ceder às tentações que ele enfrenta? Será que você desistiu daquilo que Deus pode fazer na vida do outro pecador? E qual é sua atitude para com pessoas que são pobres e necessitadas? Será que sua tendência é pensar que elas são responsáveis pela própria situação e, portanto, não merecem que você as trate com misericórdia? Tudo isso são coisas que o amor nunca faria, porque ele se recusa a se alegrar com as más ações. DE ONDE VEM O AMOR Ao considerarmos quão pouco amor existe em nosso coração, devemos passar para algumas perguntas práticas: Onde posso encontrar mais amor? Que preço pagarei para crescer no meu amor por Deus e por outras pessoas? Como posso aprender a amar do jeito que Jesus ama? Com base no que Jesus disse a Simão, sabemos que o amor começa quando somos totalmente honestos em relação ao nosso pecado. Simão não amava muito porque não tinha sido muito perdoado. Mas o motivo de não ter sido muito perdoado era o fato de que ele não achava que tinha muitos pecados para serem perdoados. O mesmo vale para nós: se não amamos, é porque não somos suficientemente honestos sobre nosso pecado a ponto de levá-lo até a cruz. O resultado é um moralismo que atrofia nossa alma. O que Simão precisava — o que todos nós precisamos — é da mesma experiência que a mulher pecadora teve no final desse incidente em que Jesus a amou o bastante para perdoá-la. Alegrando-se com a verdade da graça de Deus, ele disse: “Seus pecados estão perdoados” (v. 48). Então, certo de sua fé, ele lhe disse que fosse para casa, levando consigo a promessa de paz que ele dava e o chamado alegre de amar outras pessoas do jeito que ela mesma havia sido amada. “Sua fé a salvou”, disse Jesus. “Vá em paz” (v. 50). Sou atraído por esse amor, ou pelo menos quero ser. Você é atraído por esse amor? Entenda que Jesus tem tanto amor por nós quanto teve pela mulher pecadora e por Simão, a quem ele amou o bastante para revelar o segredo de seu coração sem amor. Jesus não se alegra com as más ações, mas se alegra na verdade da graça de Deus. Com esse propósito, ele oferece o perdão que tocará seu coração e encherá seus olhos de lágrimas. Tudo de ruim que você já fez — incluindo as coisas secretas que ninguém mais sabe e as coisas tão erradas que você mal consegue reunir coragem para pensar a respeito — foi pregado na cruz quando Jesus morreu. A partir do momento em que sabe o que significa ser perdoado— perdoado de verdade —, você nunca mais precisa olhar com desprezo para qualquer outra pessoa. Agora você pode enfrentar a verdade sobre si mesmo, porque sabe — sabe de verdade — que não é justo de modo algum. Você não precisa fingir que é melhor do que alguma outra pessoa para compensar os sentimentos negativos que tem em relação a si mesmo por não atingir as expectativas. Sua aceitação por Deus lhe dá a graça de aceitar os outros. A partir do momento em que você sabe que Deus o ama do jeito que é, vocêfica livre para fazer a escolha que o amor faz: não se alegrar com as más ações, mas se alegrar com a verdade de que Deus tem graça para outros pecadores. Você também está pronto para fazer o que o amor faz: está pronto para perdoar, pronto para servir e pronto para derramar para Jesus o bem precioso que é seu coração. GUIA DE ESTUDO A vida é uma sequência de festas e comemorações. Depois do Natal vem o Ano-Novo e, mais tarde, a Páscoa, com aniversários entre uma comemoração e outra, porque a festa não pode parar. É maravilhoso poder celebrar com a família e os amigos. Mas às vezes, no íntimo do coração, nos alegramos com coisas erradas. Experimentamos um prazer secreto quando alguém não consegue um emprego ou deixa de ganhar um prêmio. Ou ficamos contentes com o fato de que o filho “perfeito” do fulano e da sicrana não foi bem no jogo, enquanto nosso filho foi um sucesso. Ou, pior ainda, celebramos o pecado. Ficamos felizes em poder testemunhar a queda moral de alguém de cuja política ou teologia discordamos. Ou participamos da folia desenfreada de promiscuidade e de autogratificação. Nesses momentos, estamos nos regozijando com as más ações, algo que o amor verdadeiro nunca faz. 1. Descreva uma experiência pessoal em que uma celebração se transformou em algo ímpio ou maligno. Como você se sentiu com isso? 2. Dê alguns exemplos de ocasiões em que o cristão pode ser tentado a “se alegrar com as más ações”. Que atitudes do coração nós exibimos, caso nos alegremos nessas ocasiões? 3. Quando você se alegrou com a verdade? Quais eram as circunstâncias e quais verdades você estava celebrando com alegria piedosa? 4. Leia Lucas 7.36-38. Como você descreveria essa mulher e suas ações? 5. Leia Lucas 7.39-50. O fariseu proporciona um contraste gritante com a mulher. Como as ações dele demonstram que ele foi tão pecador quanto a mulher em todos os aspectos? 6. O fariseu na história de Lucas pensava que a reação de Jesus à mulher provava que ele não era profeta, quando na realidade o inverso foi verdadeiro — a reação de Jesus provou que ele era profeta. Que elementos nessa passagem comprovam que Jesus era o verdadeiro Profeta de Deus? 7. Em Lucas 7.36-50, Jesus contrapõe o amor inferior do fariseu ao amor desmedido da mulher pecadora. O que o fariseu tinha negligenciado em fazer por Jesus, e como a mulher compensou cada dever negligenciado? Quais virtudes ela exibe? 8. O que podemos aprender com essa passagem sobre regozijar-se com as más ações e regozijar-se com a verdade? 9. Em que aspectos você é parecido com a pessoa religiosa na história de Lucas e em que outros aspectos é parecido com a pecadora? Em que área você vê mais necessidade de crescer na forma de reagir ao grande perdão de Deus? 10. Pense em como você reage aos que cometem pecados “maiores” ou mais óbvios do que os seus. Você é compreensivo com a fraqueza deles ou, no íntimo, fica contente porque “jamais faria algo assim”? Descreva uma situação em que você reagiu de maneira piedosa e outra em que não reagiu dessa forma. Pensando em como reage a pessoas que cometem pecados mais óbvios, como você pode melhorar nesse aspecto de regozijar-se com a verdade? 11. De acordo com a história em Lucas, onde o amor começa? Como você pode experimentar mais profundamente o perdão de Deus para poder amar mais profundamente? Cite algumas características exteriores que mostrarão que você realmente sabe que não é mais justo do que qualquer outra pessoa? 1Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr. Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 221 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 2Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 639 [edição em português: 1Coríntios: comentário exegético, tradução de Marcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova, 2018)]. 3Edwards, Charity, p. 222. 4Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1054. 5Henry Drummond, The greatest thing in the world (New York: Grosset & Dunlap, s.d.), p. 27 [edições em português: A maior coisa do mundo, tradução de Almir dos Santos Gonçalves (Rio de Janeiro: JUERP, 1969); Amor: a melhor coisa do mundo, tradução de Edson Bini (São Paulo: Via Leitura, 2014)]. 6E.g., Fee, First Epistle, p. 639. 7Veja Paul E. Miller, Love walked among us: learning to love like Jesus (Colorado Springs: NavPress, 2001), p. 51 [edição em português: O amor andou entre nós, tradução de Eulália Pacheco Kregness (São Paulo: Vida Nova, 2011)]. 8Ibidem, p. 52-3. 5 O AMOR ESPERA O amor é paciente. (1CO 13.4) Ora, Jesus amava Marta, sua irmã e Lázaro. Então, quando soube que Lázaro estava doente, ficou mais dois dias no lugar em que estava. (JO 11.5,6) O idoso e a esposa estavam lá na garagem sentados no banco dianteiro do carro. Estavam sentados e conversando, como haviam feito tantas vezes nos últimos sessenta anos. Mas agora a mulher tinha Alzheimer, então muitas vezes sua mente vagueava de volta à adolescência, quando a mãe dela tinha morrido e todas as noites ela acendia as luzes e colocava comida na mesa para o pai fazer a refeição quando chegava em casa do trabalho ou do bar ali perto. Essa noite ela estava insistindo em voltar para casa e cuidar do pai. — Bem, minha querida — o marido estava lhe dizendo com todo carinho —, você sabe o que eu vou lhe dizer? — Sei — ela respondeu. — Você vai me dizer que meu pai morreu há cinquenta anos. Mas sinto em meu coração que ele vai estar esperando por mim. Não vou sair do carro até você me levar para casa. — Mas, minha querida — o marido insistiu —, nós estamos em casa. Temos um lindo apartamento aqui com nosso filho. — Não! — ela respondeu com firmeza. — Aqui não; já para casa! Assim, a conversa continuou, até que por fim o filho deles chegou em casa e os encontrou sentados ali na garagem. — Há quanto tempo vocês estão aqui, pai? — ele perguntou. — Ah — o pai respondeu —, umas duas horas.1 Muitas pessoas, quando explicam algo, têm dificuldade em manter a paciência por dois minutos, quanto mais por duas horas. Mas esse homem tinha aprendido algo que pode se levar a vida inteira para aprender, se é que chegamos a aprender. Ele tinha aprendido a paciência do amor. LONGANIMIDADE O apóstolo Paulo começou o retrato do amor que fez para os coríntios dizendo: “O amor é paciente” (1Co 13.4). O maior desafio para nós aqui não é entender o que Paulo quis dizer, mas o que ele disse. Por isso, eu me lembro de um dos comentários geniais de Mark Twain: “Não são aquelas partes da Bíblia que não consigo entender que me incomodam; são as partes que eu entendo!”. O que o apóstolo diz sobre a paciência do amor parece bastante fácil de entender, por mais difícil que seja pôr isso em prática. No entanto, antes de vermos esse aspecto do amor exemplificado na vida de Cristo, um amor cujo poder nos é dado pelo Espírito Santo, é importante ter certeza de que entendemos o que Paulo quis dizer quando afirmou que “o amor é paciente”. De acordo com a King James Version, “o amor sofre por longo tempo”, isto é, tem um ânimo longo. Isso aponta para uma tradução legítima da palavra bíblica para “paciência” (makrothumei): o amor é “longânimo”. Em outras palavras, ele “suporta com paciência a provocação e não é ágil em fazer valer seus direitos nem em se ressentir de uma ofensa”.2 Esse é o tipo de amor que Jesus quer que demonstremos pelos nossos inimigos, e falaremos mais a respeito dele quando chegarmos ao versículo 7, que nos diz que o amor “tolera todas as coisas” e “suporta todas as coisas”. Contudo, a longanimidade não é só para os inimigos; é também algo que precisamos ter com os nossos amigos. O principal tipo de paciência que Paulo tem em mente, escreveLeon Morris, é a “paciência com as pessoas”.3 É a capacidade de suportar, sem nos queixarmos, as frustrações que enfrentamos todas as vezes que nos relacionamos com alguém que é tão falho e em todos os aspectos tão pecador como nós. Um bom sinônimo é tolerância. Anthony Thiselton preferiria usar a expressão pavio longo, isto é, a qualidade de alguém que mantém a calma sob pressão, e lamenta o fato de a expressão não existir em nosso idioma.4 É de presumir que a ausência dessa expressão ocorra porque muitos de nós não têm muita tranquilidade, isto é, temos pavio curto, de maneira que a ideia de alguém ser “pavio longo” nem mesmo nos ocorre! Na definição de paciência, é importante lembrar que todas as virtudes listadas em 1Coríntios 13 são verbos, não apenas substantivos ou adjetivos. Por isso, a paciência que Paulo tem em mente é ativa. Talvez a melhor tradução diga algo assim: “O amor espera pacientemente”. A Bíblia ensina a mesma verdade em outras passagens. Nós a descobrimos em passagens como Eclesiastes, que diz que “o paciente de espírito é melhor do que o orgulhoso de espírito” (7.8). Também a encontramos no Novo Testamento. Em sua Primeira Carta aos Tessalonicenses, o apóstolo Paulo exortou seus irmãos de ministério a “admoestarem os ociosos, encorajarem os desanimados, ajudarem os fracos, serem pacientes com todos eles” (1Ts 5.14). Ao nos dizer que devemos exercitar a paciência, a Bíblia está simplesmente nos chamando a imitar o caráter de nosso Deus, que é paciente tanto no sentido de demorar para se irar quanto no sentido de esperar pelo momento certo para fazer alguma coisa. Em sua Carta aos Romanos, Paulo diz que “a tolerância e a paciência” de Deus fazem parte de sua “bondade”, a qual visa a nos levar ao arrependimento (Rm 2.4). Por isso, a paciência não apenas é um dos atributos essenciais de Deus, mas nossa própria salvação depende dela. Como Deus é paciente conosco! Ele não age com parcialidade em relação a nós por causa de nossos pecados — louvado seja Deus! —, nem nos condena pela nossa falta de paciência, nem nosdestrói antes de termos uma chance de nos arrepender. Em vez disso, aguarda com paciência que peçamos que nossos pecados sejam perdoados. Paulo tinha experimentado na própria vida essa tolerância divina. Embora anteriormente tivesse odiado o evangelho e se revoltado contra o reino de Deus, por fim o Espírito Santo revelou o Cristo ressuscitado a ele. Portanto, quando Paulo dava testemunho da obra de Deus em sua vida, ele descrevia aquela obra como uma exibição da “paciência perfeita” de Jesus Cristo, a qual conduz os pecadores à vida eterna (1Tm 1.16). Você já experimentou a paciência do amor de Deus? Não se acomode por causa da longanimidade divina, mas deixe que ela o constranja a entregar sua vida a Jesus Cristo. Então obedeça ao chamado de Deus para ser paciente como ele é. Será que preciso dizer como isso é difícil de fazer? É provável que não. A maioria de nós sabe como somos impacientes. Por isso, aquilo de que precisamos, mais do que da convicção de nosso pecado, é da ajuda do Espírito Santo. Contudo, caso precisemos ser lembrados de como ficamos impacientes, John Sanderson tem algumas perguntas a fazer sobre as frustrações da vida. Ele pergunta: “Por que será que os pneus ficam murchos quando estamos com pressa para um compromisso? Ou por que o aspirador de pó para de funcionar justo no dia em que vamos receber visitas?”. Então, ele faz a pergunta mais importante de todas: “Por que ficamos tão infelizes e frustrados quando essas coisas ocorrem?”.5 Seria fácil acrescentar mais perguntas à lista de Sanderson: por que colocaram no meu quarto um colega que é tão bagunceiro (ou alguém tão fanático por limpeza)? Por que minha filha espera até as nove da noite da véspera do dia em que tem de entregar um projeto importante para me pedir se posso levá-la até a papelaria para comprar cartolina? Por que a pessoa mais difícil de se relacionar no meu emprego foi promovida para o cargo de minha supervisora? E, num nível ainda mais sério, por que as pessoas que mais precisam de mudança espiritual parecem menos abertas à obra santificadora do Espírito Santo? E a pergunta mais importante de todas: “Por que Deus não se apressa e não põe tudo em ordem neste mundo?” Com certeza os coríntios devem ter se debatido com perguntas parecidas. Por que Paulo começaria pela paciência sua lista de virtudes do amor, se não pelo fato de eles precisarem crescer nessa área? É de presumir que os coríntios eram tão impacientes quanto nós. Eram rápidos em julgar uns aos outros (veja 1Co 4.5), mas lentos em aguardar a realização da obra do Espírito neste mundo cansativo. Por isso, tal como nós, eles precisavam ser lembrados de que o amor é paciente. UM ATRASO QUE CUSTOU CARO Um bom texto para aprender a paciência do amor é a história de Lázaro e o túmulo vazio. Em João 11, Jesus não teve pressa e deixou um homem morrer antes de trazê-lo de volta à vida. Em meio a tudo isso, ele exibe sua paciência amorosa para nos mostrar por que também devemos ser pacientes. A história começa com um homem no leito de morte. Lázarode Betânia, irmão de Maria e Marta, estava com uma doença fatal. Então, suas irmãs mandaram uma mensagem para Jesus, a qual dizia: “Senhor, aquele que você ama está doente” (v. 3). Essa não era uma simples constatação, mas um pedido de ajuda urgente. Mariae Marta queriam que Jesus largasse o que quer que estivesse fazendo e viesse salvar seu irmão. Elas tinham toda a expectativa de que ele viria o mais rápido possível, porque sabiam que Lázaro era alguém que Jesus amava. Apesar disso, em vez de reconhecer a urgência da situação, Jesus deu uma resposta aparentemente indiferente, quase de pouco caso. “Essa doença não leva à morte”, ele disse. “Ela é para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por meio dela” (v. 4). Mas, se com isso Jesus quis dizer que Lázaro não tinha uma doença fatal, estava totalmente enganado, porque de fato Lázaro morreu. Portanto, como deve ter sido exasperante que Jesus esperasse dois dias inteiros antes de começar a voltar para Betânia, onde, por fim, chegou com quatro dias de atraso. De uma perspectiva meramente humana, os versículos 5 e 6 dificilmente parecem fazer sentido: “Ora, Jesus amava Marta, sua irmã e Lázaro. Então, quando soube que Lázaro estava doente, ficou mais dois dias no lugar em que estava”. Seria de esperar que o versículo 6 nos contasse que, quando soube que Lázaro estava doente, Jesus fora direto para Betânia. Se Jesus amava essas pessoas, então com certeza ele se apressaria em ajudá-las! Em vez disso, ele se atrasou de propósito, o que resultou em sofrimento e morte. Jesus também estava plenamente satisfeito com isso. Ele disse a seus discípulos: “Lázaro morreu, e por causa de vocês estou contente porque eu não estava ali” (v. 14,15). Se eu fosse um dos discípulos, teria ficado agitadíssimo de preocupação, desesperado para que Jesus se apressasse e chateado pelo fato de que, ao que parece, ele chegara tarde demais para salvar Lázaro. A primeira parte de João 11 é como uma cena de filme de suspense em que uma das personagens demora tanto para fazer o que precisa ser feito com urgência que os espectadores começam a gritar para a tela do cinema, tentando fazê-la ir mais rápido. João não nos diz se os discípulos ficaram impacientes, mas com certeza Maria e Marta ficaram. A recriminação delas é patente. Quando Jesus chegou à casa, as primeiras palavras saídas da boca de Marta foram: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” (v. 21). A grande fé de Marta em Jesus e em seu poder de curar se misturava com o lamento pelo fato de que ele tinha perdido a oportunidade de salvar seu irmão. Nesse ínterim Mariapermanecia dentro de casa, talvez para tratar Jesus com frieza. Mas, quando ela finalmente chegou a falar, disse exatamente o que a irmã tinha dito. Durantedias, Maria e Marta tinham visto seu irmão ficar cada vez pior, e ficavam imaginando quando Jesus se apressaria e iria para Betânia. Quando ele não chegou a tempo, elas lhe disseram exatamente o que pensavam de sua demora, cujo preço havia sido tão alto: a vida do irmão. Em meio a tudo isso, Jesus não teve nenhuma pressa. Com paciência, ele esperou dois dias inteiros antes de partir para Betânia. Com paciência, explicou que, mesmo que Lázaro estivesse morto, ele ainda tinha um plano para glorificar a Deus e ajudar seus discípulos a crerem em seu nome. Com paciência, Jesus dissea Marta que seu irmão ressuscitaria, confirmando a fé que ela depositava na ressurreição final dos mortos e, ao mesmo tempo, anunciando seu próprio poder sobre a sepultura. Com paciência, consolou Maria, deixando que as lágrimas dela provocassem tristeza no coração dele. A essa altura, uma multidão já havia se reunido em torno do túmulo. Essas pessoas também criticaram Jesus por chegar tarde. “Será que aquele que abriu os olhos do cego também não poderia ter evitado que esse homem morresse?” (v. 37). Sim, Jesus poderia ter evitado que o homem morresse — caso tivesse chegado cedo, em vez de ficar enrolando por dois dias! No entanto, quando Jesus finalmente ficou na frente do túmulo deu a primeira de suas ordens memoráveis, nenhum dos resultados daquele atraso continuou importando por um momento sequer: “Tirem a pedra”. Preocupada com o fato de que ele estava atrasado demais, Marta disse a Jesus que ele havia perdido a oportunidade: “Senhor, a esta altura haverá mau cheiro, pois ele morreu há quatro dias” (v. 39). Com paciência, o mestre de Martarespondeu: “Eu não lhe disse que, se você cresse, veria a glória de Deus?” (v. 40). Para prová-lo, Jesus deu sua segunda ordem: “Lázaro, venha para fora” (v. 43). Com seu poder milagroso, apenas com o som de sua voz, Jesus trouxe o morto para fora do túmulo. Então, o que parecia ter sido um atraso com um preço tão alto acabou sendo o arranjo perfeito para um milagre de dádiva de vida: Lázaro foi posto em liberdade! O que isso prova não é apenas a paciência de Jesus, mas também seu amor. Há testemunhos de seu amor ao longo de todo o capítulo 11 de João: seu amor por Lázaro, por Marta e Maria e por seus discípulos. Se fôssemos tentados a duvidar daquele amor quando Jesus deixou Lázaro morrer, teríamos de voltar a crer, no final do capítulo, ao ver o morto voltar do túmulo. Quaisquer que tenham sido os motivos que Jesus teve para o atraso, isso não significa que ele não se importava. Na verdade, perto do final da história, sua paciência acaba sendo uma expressão de sua afeição. Conforme James Boice diz em seu comentário sobre essa passagem, no final os atrasos de Cristo se tornam os atrasos do amor.6 DEUS ESTÁ NO CONTROLE A passagem de João 11 faz algo mais do que nos mostrar a paciência amorosa de Jesus Cristo. Ela também nos ajuda a entender por que nós devemos ser pacientes — pacientes com Deus, pacientes com as circunstâncias de nossa vida e pacientes com outras pessoas. Por que o amor espera? Em primeiro lugar, porque Deus está sempre no controle. Na perspectiva de Maria e Marta, tudo parecia fora de controle. Seu irmão estava morrendo, e qualquer ajuda que Deus pudesse dar chegara tarde demais para fazer diferença. Da mesma maneira, nossa própria impaciência normalmente desponta sempre que algo está fora de nosso controle. As crianças ficam impacientes com os pais: “Vocês nunca me deixam fazer o que eu quero!”. Os pais ficam impacientes com os filhos: “Quando é que eles vão aprender?”. Na escola, ficamos impacientes com o tempo que levamos para aprender tudo o que temos que aprender antes de podermos sair e fazer o que Deus nos chamou para fazer. No trabalho, ficamos impacientes com os colegas que mais atrapalham do que ajudam. No mundo dos negócios, ficamos impacientes com pessoas preguiçosas ou incompetentes. No fim de semana, ficamos impacientes com nossos amigos, quando seus interesses não combinam com os nossos planos. Isso acontece sempre que outras pessoas deixam de respeitar nossas prioridades ou de atender às nossas exigências de eficiência: em vez de esperar que Deus opere, tentamos “fazer o papel de Deus” para outras pessoas. Por trás de nossa impaciência com outras pessoas está nossaimpaciência com Deus. Quando verdadeiramente entregamos nossos lares, nossos empregos e nossos relacionamentos ao senhorio de Jesus Cristo, somos capazes de esperar pacientemente pelo tempo dele. Mas, até lá, estamos sempre lutando por mais controle e ficamos muito impacientes quando deixamos de obtê-lo. O texto de João 11 pode nos ajudar, mostrando-nos que Deus está sempre no controle, mesmo quando parece que não está. Ao longo dessa passagem, Jesus está no controle total. Desde o início, ele conhece o fim da história. Então, quando fica sabendo que Lázaro está doente, afirma que sua doença não é para morte. Dois dias depois, Jesus também está no controle, mesmo que Lázaro tenha morrido. Ele diz: “Nosso amigo Lázaro dormiu, mas vou acordá-lo” (v. 11). Outras pessoas estavam dizendo: “De que adianta? Lázaro já está morto!”. Mas o Senhor da vida estava ocupado pondo seu plano em prática, mesmo que fosse preciso um milagre. Nem mesmo a morte é capaz de desafiar seu governo soberano. Crer nisso é não só conhecer a Deus, mas também amá-lo. Como disse Jonathan Edwards, amar a Deus nos predispõe “a ver sua mão em tudo; a tê-lo como o governador do mundo e como o diretor da providência; e a reconhecer que ele dispõe tudo o que acontece”.7 Essa é uma das principais coisas de que devemos nos lembrar, sempre que começamos a ficar impacientes: Deus ainda está no controle. O verdadeiro amor tem paciência para enxergar isso. De acordo com John Sanderson: “Nosso ressentimento é contra o cronograma que o soberano Deus nos impôs, baseado em um plano que em geral desconhecemos. É esse desconhecimento que produz nossa frustração, a aparente falta de sentido do atraso, da perda ou do fracasso. Mas esse é o motivo pelo qual a impaciência é uma erva daninha tão nociva: ela deixa Deus fora do nosso raciocínio”.8 Não deixe Deus fora do seu raciocínio! Ao contrário, creia sempre que Deus ainda está no controle. Creia nisso porque, conforme James Boice disse certa vez, “ainda que nós não consigamos ver como a situação acabará ou porque ela nos sobreveio, sabemos que ela é resultado do amor de Cristo e é controlada por ele”.9 Uma vez que saibamos disso e aprendamos a viver de acordo com isso, estamos prontos a amar as pessoas com a paciência que é consequência de confiar que Deus está no controle. DEUS ESTÁ TRABALHANDO Esse é outro motivo para sermos pacientes: o amor espera porque Deus está trabalhando. Não é apenas que Deus está no controle, mas também que está fazendo algo bom na vida de seu povo. Deus está realizando coisas para o nosso bem e para a sua glória. No início dessa história, quando soube que Lázaro estava doente, Jesus disse que essa doença era “para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por meio dela” (v. 4). No final da história, quando Marta insistiu que, sem nenhuma sombra de dúvida, seu irmão estava morto e que duvidava que Jesus pudesse fazer alguma coisa a respeito, ele tornou a dizer: “Eu não lhe disse que, se você cresse, veria a glória de Deus?” (v. 40). Todos os acontecimentos de João 11 são dirigidos pelo mesmo objetivo que dirige o universo, a saber, a glória de Deus. Se cressem nesse fato, as pessoas veriam isso: Deus está sempre trabalhando para exibir sua glória. Para começar, ele estava trabalhando em seus discípulos, que aprenderam sobre a paciênciae o poder de Jesus. Esse episódio todo foi uma oportunidade para que crescessem na fé. O motivo pelo qual Jesus ficou contente que Lázaro tivesse morrido foi justamente o fato de que sua morte deu aos discípulos a oportunidade de crer no poder dele sobre a sepultura.Deus também estava trabalhando na vida de Marta. Houve uma ocasião em que a impaciência dela com a irmã tomou conta, e ela despejou sobre Jesus tudo o que estava errado com Maria (veja Lc 10.38-42). Mas agora ela estava pronta a aprender de Jesus e a crescer na fé. “Mesmo agora”, — mesmo agora que seu irmão estava morto —, ela disse a Jesus, “eu sei que o que quer que pedires de Deus, Deus te dará” (Jo 11.22). Jesus também estava ensinando a Marta sobre a ressurreição. Ela achou que os mortos seriam ressuscitados apenas em algum momento no futuro, mas Jesus queria que ela soubesse que ele mesmo, em sua própria pessoa, detinha no presente o poder sobre a morte. Jesus disse: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem quer que creia em mim, embora venha a morrer, ainda assim viverá, e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá” (v. 25,26). Em resposta, Marta fez sua grande confissão de fé. Ela creu em Jesus? O Espírito Santo estava operando fé dentro da mente e do coração dela? “Sim, Senhor, eu creio”, ela disse. “Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que está vindo ao mundo” (v. 27). Deus também estava trabalhando na vida de Maria. Quando viu Jesus chorar junto ao túmulo do irmão, ela aprendeu sobre a aflição de seu Salvador por todos os que sofrem. Houve também todas as coisas que os enlutados dali aprenderam. Deus estava igualmente trabalhando na vida deles, mostrando-lhes sua glória por meio de um dos maiores milagres que Jesus realizou. Deus está sempre trabalhando. Ele está, sim, no controle, mas também está trabalhando para nos mostrar sua glória, ajudando-nosa conhecê-lo como ele é. Isso é algo para nos lembrarmos sempre que ficarmos impacientes. Mesmo que não compreendamos o que Deus está fazendo, cremos que ele ainda está trabalhando. Confiar na bondade soberana de Deus nos ajudará a voltar nossa atenção para os outros com amor, em vez de focá-la em nossas próprias frustrações. Mesmo quando a vida parece fora de controle, Deus ainda está trabalhando. Isso acontece todos os dias. Um casal tem problemas com o carro em uma praia isolada e os dois ficam presos ali por um dia inteiro — um dia em que fazem um novo amigo e têm a oportunidade de compartilhar o evangelho. Mãe e filha vão de papelaria em papelaria, frustradas porque não encontram os materiais escolares necessários — mas, na última papelaria, elas acabam em uma fila ao lado de uma mulher que está ansiosa com o primeiro dia do filho na nova escola e precisa de encorajamento espiritual. E existem também todas aquelas maneiras pelas quais Deus está trabalhando em nossa vida. Muitas vezes, queremos que Deus opere urgentemente na vida de alguma outra pessoa, quando na verdade ele está ocupado querendo fazer algo em nós. Portanto, em vez de ficarmos impacientes com nossos problemas e com pessoas problemáticas, precisamos praticar a presença de Deus. Faça uma oração como esta: “Senhor, neste momento estou tão impaciente, que quase não estou aguentando. Mas lá no fundo sei que tu estás nesta situação, e não fora dela, e que estás fazendo algo de bom aqui. Ajuda-me a ver o que estás fazendo, ou pelo menos a crer que sabes o que estás fazendo, ainda que eu não consiga ver”. Deus está sempre ocupado fazendo mais bem espiritual do que sabemos e levando mais glória ao seu nome do que jamais conseguiríamos imaginar. Se formos sábios, esperaremos com paciência que ele faça seu trabalho, não deixando que nossa impaciência tome conta de nós, mas permitindo que o amor de Jesus opere por meio de nós para a glória de Deus. SOFREDORES, MAS AINDA AMADOS Deus está no controle. Deus está trabalhando. Tudo isso é verdade, mas conhecer essas verdades não significa que não sofreremos. Essa é outra lição que o texto de João 11 nos ensina sobre a paciência: o amor espera em meio ao sofrimento. Lembre-se de que uma boa maneira de traduzir 1Coríntios 13.4 é dizer: “O amor sofre por longo tempo”. Aliás, um dos motivos pelos quais temos de ser tão pacientes é a grande quantidade de sofrimentos por que passamos na vida. Deus usa esses sofrimentos para, por meio deles, produzir paciência e esperança (veja Rm 5.3,4). Vemos em João 11 alguns dos sofrimentos mais dolorosos da vida: doença, morte e aflição. Todos nessa história sofreram. Lázaro sofreu em seu leito de aflição. Suas queridas irmãs sofreram a agonia de vê-lo morrer e, em seguida, lutar para entender por que Deus deixou isso acontecer. Os amigos de Lázaro partilharam dessas tristezas como comunidade enlutada. Todos eles sofreram essas coisas apesar do fato de que — aliás, por causa do fato de que — Jesus os amava. Essa é, em si mesma, uma lição espiritual: o fato de passarmos por sofrimento não significa que não sejamos amados por Deus. No entanto, de todas as pessoas que sofrem em João 11, nenhuma sofreu mais do que Jesus. Vemos isso na maneira de ele interagir com Maria: “Quando Jesus a viu chorar e viu que os judeus que tinham vindo com ela estavam chorando, ficou profundamente tocado em seu espírito e bastante perturbado” (v. 33). O coração do Salvador foi tocado pelas dores de seus amigos. Aqui o vocabulário indica uma emoção de extrema intensidade. A tristeza que Jesus sentiu por essa perda e a fúria dele contra os horrores da morte vieram das profundezas de sua alma. Desse modo, sua reação emocional seguiu seu curso natural, conforme vemos no versículo mais curto da Bíblia — também um dos mais extraordinários: “Jesus chorou” (v. 35). A razão das lágrimas do Salvador não deixou de ser percebida por aqueles que também pranteavam ali, que disseram: “Vejam como ele o amava!” (v. 36). É claro que nada disso teria sido necessário se Jesus tivesse simplesmente voltado para Betânia logo que soube que Lázaro estava doente ou se o tivesse curado à distância. Mas Jesus estava esperando pacientemente pela glória de Deus, mesmo que em meio ao sofrimento. O atraso teve um preço tão alto para ele quantopara quase todo mundo. Mas o amor espera. Ver Jesus sofrer nos ajuda a ter mais paciência em nossos próprios sofrimentos. Enquanto esperamos que nosso sofrimento chegue ao fim, nesse mesmo tempo estamos sendo cobertos pelo amor de Jesus. Jesus entende. Ele sabe o que é experimentar um atraso com um preço tão alto. Então, quando Deus nos chama a esperar com paciência em meio ao sofrimento, o Salvador que ele envia para nos ajudar e nos consolar é um Salvador que entende. Essa é mais uma coisa para lembrar sempre que ficarmos impacientes: Jesus conhece nossas lutas terrenas e se importa com elas. Portanto, temos de aprender a interpretar nossas circunstâncias à luz de seu amor e a não julgar, com base em nosso sofrimento, os motivos dele.10 TUDO É BOM QUANDO ACABA BEM Um último motivo para sermos pacientes é que Deus garantirá que no final tudo acabe bem. Então, o amor continua esperando e esperando pelo dia em que Deus enxugará todas as nossas lágrimas. Na Bíblia, a ressurreição de Lázaro é um dos sinais mais claros de que Deus tem o poder de fazer tudo certo. Jesus poderia ter operado um milagre imediatamente, no momento em que soube que Lázaro estava doente. Mas esse só teria sido um milagre de trazer de volta a saúde, não um milagre de trazer de volta a vida. Deus tinha um plano de expor seu imenso poder de um modo mais completo. Então, Jesus esperou por seu Pai com uma fé total e absoluta. Quando chegou o momento certo de revelar sua glória, ele agradeceu ao Pai por ouvir sua oração e ordenou a Lázaro que saísse do túmulo (v. 41-43). É claro que essa não foi a ressurreição final, porque Lázaro voltaria a morrer. Mas foi um sinal inconfundível do poder de Deus sobre a morte — um testemunho de que, no último de todos os dias, os filhos de Deus ressuscitarão com esplendor imortal, para nunca mais voltarem a morrer. Essa é a esperança evangélica que Jesus confirmou mediante sua própria ressurreição. Primeiro Jesus morreu na cruz para pagar o preço de todosos nossos pecados. Depois, no terceiro dia, ressuscitou com o poder da vida eterna por todos aqueles que creem nele. Quando o Senhor Jesus ressuscitado vier de novo, os mortos serão ressuscitados e tudo será endireitado. Cada injustiça será corrigida. Cada boa ação será recompensada. Cada gesto de bondade resultará na glória de Deus. Cada pecado que foi confessado e levado à cruz será perdoado. Cada um que morre em Cristo ressuscitará. E isso tudo acabará melhor do que jamais esperamos ou imaginamos. O apóstolo Tiago nos diz para sermos “pacientes, portanto, irmãos, até a vinda do Senhor” (Tg 5.7). Quando esse dia chegar, será difícil para nós até mesmo nos lembrarmos de como era sofrer na terra ou por quanto tempo tivemos de esperar para que Jesus voltasse. Isso deve ter acontecido com Maria e Marta. Alexander Maclaren descreve como o atraso deve ter parecido longo enquanto elas estavam esperando ansiosamente que Jesus viesse socorrê-las. “Durante dois dias, durante quarenta e oito horas, ele adiou a resposta”, escreve Maclaren, “e para elas isso foi uma eternidade, enquanto as longas horas se arrastavam e elas só diziam: ‘Como isso cansa! Ele não chega’”. Então, houve os longos dias de luto que se seguiram, quando Maria e Marta colocaram o irmão no túmulo e prantearam sua morte. Mas Maclaren fica imaginando: “Quanto tempo será que esse sofrimento pareceu durar para elas, até receberem Lázaro de volta?”.11 Assim que Lázaro voltou dos mortos, o sofrimento deles tinha ficado para trás, e Maria e Marta descobriram que as palavras do salmista são verdadeiras: “O choro pode demorar a noite toda, mas a alegria vem pela manhã” (Sl 30.5). Assim que nossos sofrimentos chegam ao fim, a dor é apenas uma lembrança, e nós somos envolvidos na alegria que Deus faz surgir. Isso também é algo para se lembrar sempre que ficarmos impacientes: Deus fará tudo dar certo no final. Jesus nunca está adiantado e nunca está atrasado, mas sempre na hora certa. Ele não fica indiferente ao sofrimento de um mundo caído, assim como não ficou indiferente a Lázaro e suas irmãs. Em seu amor, ele tem um plano para dar fim a todos os nossos sofrimentos. Seu grande dia virá exatamente no momento certo. Quando esse dia vier, veremos a glória de Jesus. Então saberemos que ele esteve no controle o tempo inteiro, trabalhando todas as coisas para o bem, mesmo por meio do sofrimento, e que nunca houve absolutamente nenhum motivo para ficarmos impacientes. GUIA DE ESTUDO Quando somos crianças, queremos crescer. Quando já somos crescidos, queremos algo mais ou algo diferente — um emprego melhor, outro diploma, ter nossa própria família, segurança financeira etc. Mas com frequência Deus nos faz esperar por aquilo que ele quer que tenhamos, e age assim sempre com bons motivos. O amor de Deus por nós é paciente e, porque ele nos ama tanto, também nos pede que sejamos pacientes, para nosso bem maior e para sua glória suprema. 1. Qual é sua maior queixa, aquilo que o deixa mais impaciente com seus entes queridos? Como você expressa sua impaciência (um suspiro profundo, voz alta, alguma outra coisa)? 2. Leia Romanos 2.4; 1Timóteo 1.16; 2 Pedro 3.9. O que esses versículos nos dizem sobre a paciência de Deus? 3. Leia João 11.1-16. Que detalhes no início da história apontam para a urgência da situação? Por que causa surpresa o fato de Jesus ter demorado mais dois dias, antes de ir até seu amigo enfermo? Por que ele esperou? 4. A resposta de Jesus diante da preocupação dos discípulos com a segurança dele (Jo 11.9,10) é, de certo modo, enigmática. O que você acha que ele quis dizer? 5. Leia João 11.17-44. Que indícios você vê do amor paciente de Jesus? 6. O que Maria e Marta aprenderam sobre Jesus e seu amor nesse acontecimento narrado no Evangelho de João? 7. Que desejo pessoal intenso torna você mais impaciente? Por que é tão difícil esperar? 8. Qual é a relação entre a paciência e a confiança em Deus e entre a paciência e o amor de Deus? 9. A paciência de Jesus em João 11 causou muito sofrimento. Como, por sua vez, o sofrimento pode levar a uma paciência maior? (veja Rm 5.3,4). Como você tem visto essa verdade testada ou demonstrada em sua própria experiência? 10. De que maneira entender a paciência de Deus com você pode ajudá-lo a ter mais longanimidade com outros? 11. Medite sobre João 11.40-44. Quando você se sente tentado a ficar impaciente com as coisas que demoram a acontecer em sua vida, como esses versículos podem ajudá-lo a se regozijar com o tempo de Deus e com a glória que isso traz para ele? 1Essa história é contada pela família de Kimberly Wynne, cujo marido, Carroll, foi por muitos anos meu colega de ministério na Décima Igreja Presbiteriana de Filadélfia. 2Charles Hodge, An exposition of the First Epistle to the Corinthians (reimpr. London: Banner of Truth, 1958), p. 269. 3Leon Morris, The First Epistle of Paul to the Corinthians, Tyndale New Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), p. 184 [edição em português: 1Coríntios: introdução e comentário, tradução de Odayr Olivetti, Série Cultura Bíblica (São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1981)]. 4Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1046. 5John W. Sanderson, The fruit of the Spirit (1972; reimpr., Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1985), p. 88. 6James Montgomery Boice, The Gospel of John: those who received him: John 9—12 (Grand Rapids: Baker, 1999), vol. 3, p. 826. 7Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 79-80 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 8Sanderson, Fruit of the Spirit, p. 88. 9Boice, Gospel of John, p. 826. 10James Montgomery Boice apresenta uma ideia parecida em seu comentário sobre João (p. 828). 11Alexander Maclaren, Expositions of Holy Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), vol. 7: St. John chapters 9-14, p. 78. 6 O AMOR EM TODA A SUA AMPLITUDE O amor não inveja nem se vangloria; não é arrogante nem grosseiro. (1CO 13.4,5) Jesus, sabendo que o Pai havia entregado todas as coisas em suas mãos e que ele viera de Deus e estava voltando para Deus, levantou-se da mesa da ceia. Ele colocou de lado seu manto e, apanhando uma toalha, amarrou-a ao redor da cintura. Então pôs água em uma bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a secá-los com a toalha que estava enrolada em volta dele. (JO 13.3-5) Um trabalhador é definido pelas ferramentas de seu ofício. No teste oral que um dos meus filhos teve de fazer para obter uma vaga no jardim de infância, perguntaram-lhe qual era a profissão de seu pai. “Ele trabalha com computadores”, disse o menino. Era verdade: ao me preparar para pregar, eu fazia a maior parte do meu trabalho em um notebook. Hoje em dia, quase todo mundo trabalha com computadores, mas as ferramentas para alguns ofícios são mais tradicionais. Um arquiteto trabalha com lápis, régua e mesa de desenho. Um encanador trabalha com um balde e um conjunto de chaves. Um exímio violinista trabalha com um Stradivarius. Todo ofício tem suas ferramentas. Quando Jesus era menino, trabalhando com o pai, que era carpinteiro, as ferramentas que usava todos os dias eram o martelo e o formão. No final da vida, quando chegou a hora de morrer, a única ferramenta de que precisou foi uma cruz velha e áspera. Mas, pouco antes de sua paixão, Jesus usou as ferramentas de trabalho de um servo humilde. Amarrou uma toalha em volta da cintura, apanhou uma bacia com água e lavou os pés sujos de seus discípulos. Com esse gesto simples de infinita concessão, o Senhor do universo demonstrou o caráter abnegado de sua obra salvadora e chamou cada um de seus discípulos a uma vida de serviço humilde. GENEROSIDADE, HUMILDADE, CORTESIA Em seu gesto extraordinário e afetuosode lavar os pés dos discípulos, Jesus ilustrou a definição que o apóstolo Paulo dá acerca do amor em 1Coríntios 13: “O amor não inveja nem se vangloria; não é arrogante nem grosseiro” (1Co 13.4,5). Expressos de modo afirmativo, esses termos estreitamente relacionados nos chamam à generosidade, à humildade e à cortesia — um estilo de vida que considera as outras pessoas mais importantes do que nós mesmos. Cada termo é cuidadosamente escolhido. Conforme veremos, Paulo usou as mesmas palavras anteriormente nessa epístola, quando estava criticando os coríntios pela maneira que estavam tratando uns aos outros. Eram invejosos, presunçosos, arrogantes e grosseiros — tudo o que o amor não é. Essas palavras têm algo em comum: todas estão ligadas à nossa maneira de lidar com as coisas boas que acontecem na vida.1 Todo mundo sabe como é difícil lidar com as coisas difíceis que acontecem — as adversidades, os desânimos e as decepções —,mas às vezes é igualmente difícil lidar com o sucesso. A inveja é uma reação pecaminosa ao sucesso de outros, ao passo que presunção, arrogância e grosseria são reações pecaminosas a qualquer sucesso pessoal. Comecemos com o sucesso dos outros. A palavra do Novo Testamento para inveja (zelos) significa, mais literalmente, “queimar ou ferver”. É por isso que Anthony Thiselton traduz da seguinte maneira: o amor “não arde de inveja”.2 A inveja é a dor que sentimos com a prosperidade de outra pessoa. É “ressentimento em relação a algo de bom que acontece com outra pessoa, somado à enorme vontade de arruiná-lo”.3 Em vez de alegrar-se com aqueles que se alegram, a inveja tem aquilo que Jonathan Edwards descreveu como “um espírito de insatisfação com a prosperidade e a felicidade dos outros e de oposição a elas, quando as comparamos com nossa própria prosperidade e felicidade”.4 A inveja é, na realidade, uma forma de hostilidade. Não é apenas o desejo de ter algo que outra pessoa tem, que é o pecado da cobiça (veja Êx 20.17). É, na verdade, o desejo de ver nossos rivais perderem o que têm. Citando de novo Jonathan Edwards: “Em vez de se alegrar com a prosperidade dos outros, o homem invejoso ficará incomodado com ela. Para seu espírito, será motivo de ressentimento vê-los subir tão alto e alcançar tanto reconhecimento e progresso”.5 Um exemplo claro é a história de José e seus irmãos, que ficaram tão invejosos da posição do seu irmão como o filho favorito, que o atiraram dentro de uma cova profunda e escura. Outro exemplo é encontrado na história de Hamã, o agagita. Hamã tinha quase tudo o que qualquer homem poderia chegar a desejar. No reino da Pérsia, era a segunda pessoa mais importante, ficando atrás apenas do próprio rei Assuero. Ainda assim, Hamã ficou profundamente ressentido quando o judeu Mardoqueu se recusou a prestar-lhe a honra que ele achava que merecia. Não satisfeito com sua própria posição de destaque, Hamã quis derrubar Mardoqueu. Então, quando o rei decidiu escolher Mardoqueu para receber uma honra especial, Hamã ficou tão invejoso que imaginou um plano nefasto para fazer com que Mardoqueu fosse morto. Um exemplo mais simples de animosidade invejosa é visto nas páginas da revista New Yorker, em uma charge que mostra dois cães conversando enquanto tomam um drinque. Um deles diz: “Não é só que os cães têm de ganhar; os gatos têm de perder!”. Os coríntios eram culpados desse tipo de inveja. No capítulo 3, o apóstolo os havia acusado de inveja e contenda. Em uma comunidade que se caracterizava por nítidas diferenças sociais e teológicas, os coríntios eram tentados a ter um espírito de competição com membros da igreja que tinham dons espirituais diferentes dos seus. Em vez de verem o lado bom das outras pessoas, criticavam os dons dos outros e menosprezavam suas habilidades. Isso é algo que o amor nunca faz. O verdadeiro amor “não ambiciona a posição e a honra do outro, mas tem prazer no sucesso do outro, por amor a ele”.6 Amar é não fazer “nada por ambição egoísta ou por presunção”, mas com a humildade que considera os outros “mais importantes” do que nós mesmos (Fp 2.3). Quando outra pessoa ganha uma promoção, recebe um elogio ou progride de alguma maneira, a pessoa amorosa está plenamente satisfeita com sua própria situação -e, por isso, pode ter alegria e satisfação com o sucesso do outro. Como você realmente se sente quando alguém com capacidade igual ou menor que a sua progride mais do que você? Esse é um teste em que a inveja sempre falha e no qual só o amor consegue passar. Também existem alguns pecados que precisamos evitar quando experimentamos nosso próprio sucesso na vida. Por mais difícil que possa ser observar alguma coisa boa acontecer com um de nossos rivais, pode ser igualmente difícil lidar de forma piedosa com nosso próprio êxito. A Bíblia diz que o amor não se vangloria nem se gaba. Em outras palavras, a pessoa amorosa não exige atenção para suas próprias realizações. Aliás, é impossível amar e vangloriar-se ao mesmo tempo. Porque, quando nos vangloriamos, exigimos ser o centro das atenções, ao passo que o amor redireciona a atenção para um dos outros atores no drama da vida. A diferença entre amar e vangloriar-se ficou bem clara para mim no final do meu segundo ano de faculdade, quando meu novo parceiro de debates e eu vínhamos tendo uma série de vitórias. Depois de derrotar algumas das melhores equipes de faculdade no estado, esperávamos ter ainda mais sucesso no torneio estadual. Não me lembro o que foi exatamente que eu disse, mas sem dúvida foi alguma coisa de vanglória, porque um dos meus treinadores de debate disse: “Phil, não fique contando vantagem. Deixe que eu fale para os outros como você é bom”. É claro que meu treinador estava me dizendo para não me vangloriar, mas também me deu um bom exemplo do que o amor faz, porque sua repreensão deixou claro que ele se importava comigo e queria o meu bem. Vangloriar-se é um pecado da língua pelo qual usamos nossas palavras para garantir que as pessoas reparem como somos importantes. Lewis Smedes chama a vanglória de “nossa agência particular de publicidade, nossa pequena campanha para divulgar uma imagem de nós mesmos”.7 Mas “o que sai da boca procede do coração” (Mt 15.18), de modo que Paulo também se assegura de mencionar a arrogância, que é um pecado de atitude. A imagem por trás da palavra neotestamentária para arrogância (phusiosis) é de algo que está inchado. De modo que a tradução de Anthony Thiselton talvez seja a melhor: o amor não “infla sua própria importância”.8 Aqui está outra coisa que o amor não faz: comportar-se com grosseria ou de forma ofensiva. A palavra grosseiro (aschemonei) pode ser usada para se referir a praticamente qualquer forma de comportamento impróprio ou inadequado — qualquer coisa, desde maus modos até pecado sexual vergonhoso. Nesse contexto específico, em que Paulo vem falando sobre a inveja e a arrogância, parece que ele está usando a palavra para descrever a maneira negativa de tratarmos as pessoas quando achamos que somos melhores do que elas. Citando Lewis Smedes, mais uma vez: “A arrogância nos leva a ser grosseiros com as pessoas que não têm nada a nos oferecer, nada que nos ajude a melhorar nossa imagem”.9 Ter maus modos pode parecer uma falha pequena, se é que chegamos a pensar que é uma falha. Mas a Bíblia diz que, quando não tratamos bem e adequadamente as pessoas, estamos falhando em amar, o que é sempre o nosso chamado, mesmo nas pequenas coisas. Muito do que Paulo disse nessa carta deixa evidente que os coríntios eram culpados exatamente desses pecados. Alguns deles se vangloriavam de sua sabedoria e conhecimento superiores (1Co 3.18;14.2) ou se vangloriavam de ser mais espirituais do que seus irmãos e irmãs (14.37). Outros membros da igreja tinham um sentimento exagerado de sua própria importância. Ao longo de sua carta, vez após vez, Paulo usa termos associados a arrogância para mostrar como estavaminchados de orgulho. “Vocês são arrogantes!”, ele disse (5.2). Ao usar as mesmas palavras no capítulo 13, Paulo estava mostrando aos coríntios que a raiz de seu problema espiritual era falta de amor. Esse também é nosso problema. Por que ficamos morrendo de inveja quando outra pessoa consegue o que quer? Por que para nós é tão importante que outras pessoas elogiem as nossas realizações? Por que somos grosseiros com determinadas pessoas em certas situações? É porque amamos a nós mesmos ao máximo e às vezes mal chegamos a amar os outros. AMOR ETERNO O que precisamos é de mais do amor de Jesus: uma consciência mais profunda de seu amor por nós e uma medida crescente do seu amor em nós, à medida que aprendemos a amar outras pessoas. Vemos esse amor em cada página dos Evangelhos, mas em parte alguma vemos isso com mais clareza do que na cena incrível que Jesus protagonizou para seus discípulos em João 13. No final de sua vida, apenas horas antes de seu sofrimento, morte e sepultamento, Jesus se reuniu com seus discípulos para jantar. João nos diz que, “quando Jesus soube que havia chegado sua hora de partir deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, ele os amou até o fim” (Jo 13.1). Esse versículo dá testemunho do amor eterno de Jesus Cristo. No que diz respeito ao passado, João nos diz que Jesus havia mostrado seu amor pelos seus discípulos. Ele havia amado os seus, ao operar milagres, tais como a alimentação dos cinco mil e doze. Ele os havia amado ao perdoar seus pecados, tal como no caso da mulher que ungiu os pés de Jesus com suas lágrimas. Ele até mesmo os havia amado ao ressuscitar os mortos de volta à vida, tal como fez com Lázaro. Enquanto esteve neste mundo, Jesus amou seus próprios discípulos. No entanto, agora que havia chegado o momento de sua partida — agora que era hora de Jesus morrer na cruz por nossos pecados, ser ressuscitado da sepultura com o poder da vida eterna e voltar para a glória à destra do Pai —, Jesus mostraria a seus discípulos ainda mais do seu amor. Ele iria “amá-los até o fim”, ou, como menciona a New International Version (1984), lhes mostraria “toda a magnitude do seu amor”. O que significa o Filho de Deus amar seus discípulos até o fim? Não significa simplesmente até o fim da vida dele ou até o fim de nossa vida, embora as duas coisas sejam verdadeiras. Significa algo mais: Jesus nos amará até o fim de todas as coisas.10 A palavra usada por João para “fim” também é a palavra grega para perfeição (telos). O amor eterno que Jesus tem por nós nunca acabará. A perfeição desse amor é eterna. Mas como é que Jesus nos mostra esse amor especificamente? A passagem de João 13.1 assinala um ponto crucial na história do evangelho. Jesus havia acabado de fazer sua entrada triunfal na cidade de Jerusalém, o lugar aonde foi para morrer. O capítulo 12 terminou com ele anunciando que tinha vindo para “salvar o mundo” (v. 47). Então Jesus passou a fazer exatamente isto: salvar o mundo, dando sua vida como expiação pelos pecados. De maneira que, no início do capítulo 13, quando João diz que Jesus “lhes mostrou a plena magnitude do seu amor”, ele estava se referindo em termos amplos à obra salvadora de nosso Salvador na cruz, à sua passagem pela sepultura e à sua ascensão aos céus. Quando Jesus morreu e ressuscitou por seus discípulos, também fez essas coisas por nós. Todos somos dele — cada um de nós que nasceu de novo pelo Espírito Santo, crê em Jesus Cristo como Salvador e Senhor e está destinado a viver com Deus para sempre. Se somos dele, isso significa que Jesus nos ama, nos amou e nos amará até o fim. Quando Jesus fez o que fez para nossa salvação — a cruz, o túmulo vazio e o trono glorioso —, tudo isso foi por amor. Foi tudo “por causa do grande amor com que nos amou” (Ef 2.4). Aliás, não existe amor maior do que este: “que alguém dê a vida por seus amigos” (Jo 15.13) e em seguida ressuscite para lhes dar glória eterna. AMOR DE JOELHOS Tudo isso faz parte do contexto mais amplo de João 13.1, que serve de introdução a tudo o mais que se segue. Quando João disse que Jesus amou os seus até o fim, estava falando sobre o amor que ele mostrou na obra completa da salvação. Mas há também um contexto mais imediato para a afirmação de João. A plena magnitude do amor do Salvador está resumida exatamente naquilo que Jesus fez em seguida. Por isso, a passagem de João 13.1 faz algo mais do que resumir a segunda parte do Evangelho. Ela também serve de introdução perfeita para aquilo que Jesus fez por seus discípulos à mesa de jantar. Dizem que ações falam mais alto do que palavras. É possível que sim. Lorne Sanny serviu no ministério The Navigators durantemais de cinquenta anos, principalmente como líder na área de discipulado pessoal. Seu ensino fez diferença para Cristo na vida demilhares de pessoas. Mas, quando por acaso ouvi membros de sua igreja falarem de seu ministério, eles se lembravam de algo que havia tido um impacto mais profundo neles do que qualquer coisa que Sanny havia dito: eles se lembravam de uma manhã de domingo em que, depois do culto da igreja, ele tirou o paletó e a gravata e trocou o pneu vazio do carro de uma mãe solteira. Às vezes, até mesmo um simples gesto de serviço humilde pode ajudar a confirmar a verdade daquilo que dizemos. O ministério de Jesus era assim: ele não apenas dizia, mas fazia o que dizia. Vemos isso em João 13, quando nosso Salvador tomou uma toalha e uma bacia para lavar os pés dos discípulos. Jesus estava sendo uma parábola viva que mostrava sua generosidade, humildade e cortesia. Estava fazendo uma exibição impactante da não arrogância e da não grosseria de seu amor não invejoso, o qual nunca inveja quaisquer das coisas boas que temos, mas sempre continua nos dando mais e mais. Quando Jesus realizou esse ato humilde de serviço, não estava se esquecendo de quem era. Pelo contrário, ele fez o que fez “sabendo que o Pai havia entregado todas as coisas em suas mãos e que ele viera de Deus e estava voltando para Deus” (v. 3). Jesus sabia que era o único e incomparável Filho divino de Deus, que tinha vindo da glória e voltaria para a glória. Mas, longe de se apegar à sua posição com orgulho ou de tratar as pessoas com grosseria e arrogância, Jesus prestou um serviço humilde aos seus discípulos. João nos conta que Jesus “levantou-se da mesa da ceia. Ele colocou de lado seu manto e, apanhando uma toalha, amarrou-a ao redor da cintura. Então, pôs água em uma bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a secá-los com a toalha que estava enrolada em volta dele” (v. 4,5). Nenhuma dessas ações devia ser habitual para quem oferecia um jantar. O dono da casa não ficava de pé junto à mesa de jantar; ele se reclinava com luxo majestoso. O dono da casa não tirava a roupa a ponto de ficar só com a roupa de baixo; ele usava belíssimos mantos. O dono da casa não derramava água nem segurava uma toalha. Com certeza não lavava os pés de ninguém! Aliás, se alguém merecia ter os pés lavados, essa pessoa era Jesus, cujos pés foram lavados pela mulher na casa de Simão (Lc 7.37,38) e mais tarde por Maria de Betânia (Jo 12.1-3). De modo que Jesus estava tomando todas as expectativas normais e pondo-as de pernas para o ar. O Senhor se tornou o servo. Pedro viu tudo isso acontecer. Viu Jesus andando ao redor da mesa de jantar, lavando os pés de todos. Mas, quando chegou a hora de seus próprios pés serem lavados, Pedro questionou o que Jesus estava fazendo: “Senhor, tu lavas os meus pés?” (Jo 13.6). Parafraseando: “Senhor, você não vai lavar os meus pés, certo?”. Como resposta, Jesus deu a Pedro uma indicação de que, embora não entendesse o que Jesus estava fazendo, no final tudo faria sentido (v. 7). Mas Pedro não quis aceitar. Ele disse a Jesus: “Jamais lavarás os meus pés” (v. 8). Isso era típico de Pedro, que sempre falava o que pensava. Mas, dessa vez, as palavras de Pedro denunciaram o orgulhode um coração arrogante. Ele foi grosseiro com Jesus, dizendo-lhe o que ele devia fazer. Em sua arrogância, era orgulhoso demais para deixar Jesus servi-lo. Estava se vangloriando de que estava limpo demais para precisar de alguma limpeza. Em outras palavras, Pedro era tudo o que o amor não é. Nas palavras de James Boice, ele foi “suficientemente humilde para sentir o disparate de seus pés serem lavados por Jesus”, mas não “suficientemente humilde para se abster de dizer a seu mestre o que não fazer”.11 Como resposta, Jesus explicou a Pedro que estava encenando uma parábola da salvação: “Se eu não o lavar, você não tem nenhuma parte comigo” (v. 8). A essa altura Jesus já não estava falando em termos literais; estava falando sobre a necessidade de seu discípulo purificar-se do pecado. O que ele disse a Pedro vale para todos: temos de ser inteiramente lavados do nosso pecado. No fundo, Pedro sabia que era um pecador. Aliás, foi por isso que ele começou a seguir Jesus, afinal de contas. Então, com uma bravata típica, disparou: “Senhor, não apenas os pés mas também as mãos e a cabeça!” (v. 9). No que dizia respeito a Pedro, se isso era algo que valia a pena fazer, então quanto mais melhor. Um instante antes ele tinha dito a Jesus para não lhe tocar os pés; agora ele queria ser lavado da cabeça aos pés. Com amor, Jesus disse a Pedro que ele ainda não tinha entendido: “Quem já se banhou não precisa se lavar, com exceção dos pés, mas está totalmente limpo. E você está limpo” (v. 10). Para entender essa comparação, é esclarecedor conhecer os costumes da época da Bíblia. Quando alguém era convidado para jantar, essa pessoa tomava um banho e vestia roupas limpas e bonitas antes de pôr as sandálias e ir a pé para o jantar. Quando chegava, o corpo ainda estava limpo, mas os pés estavam sujos do caminho empoeirado. Então, a primeira coisa que um bom anfitrião faria era providenciar que seus servos lavassem os pés dos convidados. Jesus usou esse costume para abordar uma verdade espiritual profunda. Quando disse que Pedro estava limpo, estava dizendo que Pedro já estava justificado perante Deus (ao contrário de Judas, que não estava nada limpo; v. 2,10,11). Mas isso não significava que Pedro nunca voltaria a pecar. À semelhança do restante de nós, Pedro voltaria, sim, a pecar e, quando pecasse, precisaria de uma nova limpeza — não da cabeça aos pés, porque sua justiça estava completa pela fé, mas em qualquer área da vida em que ainda estivesse se envolvendo em pecado. James Boice explicou da seguinte maneira: “Pedro é uma pessoa justificada e, portanto, precisa apenas de limpeza dos efeitos contaminantes do pecado, e não do perdão do castigo do pecado”.12 Tal como alguém convidado para um jantar que havia banhado o corpo, mas depois seguiu a pé por um caminho poeirento, Pedro estava fundamentalmente limpo, mas ainda assim precisava de purificação. Enquanto ouvimos essa conversa, devemos ver quanto amor Jesus tinha por Pedro e também como é grande seu amor por nós. Quando Pedro entendeu errado o que seu Senhor estava fazendo, Jesus lhe explicou com paciência. Quando Pedro lhe disse para parar, Jesus não ficou irritado, mas continuou servindo. Quando Pedro voltou a entender errado e disse a Jesus para lavar-lhe as mãos e o rosto, e não apenas os pés, com bondade Jesus lhe assegurou sua salvação. Em resumo, Jesus fez o que a Bíblia diz que o amor faz: Jesus foi paciente e bondoso; ele não era irritável. Além disso, quando passou a lavar os pés de Pedro, Jesus demonstrou que não era arrogante, nem presunçoso, nem grosseiro, mas generoso e humilde. Ali estava o amor de joelhos,13 aquele exato amor que estenderia os braços para oferecer a vida por nossos pecados. Em breve, Jesus mostraria a plena magnitude de seu amor ao morrer na cruz, mas seu amor já estava em exibição quando ele pôs uma toalha em volta da cintura, encheu uma bacia de água e começou a fazer o trabalho de um escravo. Jesus nos trata da mesma maneira amorosa. Ele não fica impaciente com nossas perguntas equivocadas nem irritado com nossos repetidos erros. Ele vem para nós com amor, corrigindo-nos bondosamente, explicando pacientemente o caminho da salvação, nos purificando graciosamente e servindo humildemente a cada uma de nossas necessidades. ASSUMINDO A POSIÇÃO MAIS BAIXA Em seguida, Jesus nos chama a viver com o mesmo serviço amoroso e humilde. Quando Jesus lavou os pés de seus discípulos, estava dando um exemplo deliberado, mostrando-nos como amar. Depois disso, Jesus tornou a vestir o manto, ocupou seu lugar à mesa e disse: “Vocês entendem o que fiz por vocês? Vocês me chamam de Mestre e Senhor, e estão certos, pois eu sou. Então, se eu, o Senhor e Mestre de vocês, lavei seus pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Pois eu lhes dei um exemplo para que vocês também façam exatamente como eu fiz” (v. 12-15). Jesus estava usando o argumento da autoridade. Ele é o Senhor, conforme Pedro e os outros discípulos corretamente o chamaram. Jesus Cristo é o governante supremo de tudo o que existe, o Senhor Deus do céu e da terra. No entanto, apesar de sua sublime e majestosa grandeza — ou talvez por causa dela —, ele assume a posição mais baixa. Essa é a maior concessão possível: o Filho de Deus e Senhor do universo se ajoelha para servir e, então, curva-se para salvar. Se Jesus fez isso por nós, então devemos fazer o mesmo pelos outros. A conclusão lógica e prática daquilo que Jesus fez e disse é que somos chamados a servir da mesma maneira que o Maior serviu e a amar do jeito que ele ama. Jesus estruturou seu argumento da seguinte maneira: “Em verdade, em verdade, eu lhes digo que um servo não é maior que seu senhor, nem um mensageiro é maior do que aquele que o enviou. Se vocês sabem essas coisas, são bem- aventurados se as praticarem” (Jo 13.16,17). Não somos maiores do que Jesus. Na verdade, somos muito menores. Não somos divinos, mas humanos, não somos infinitos, mas finitos, não somos sem pecado, mas pecadores. Por isso, é ainda mais adequado que assumamos a posição mais baixa. Se somos os seguidores de um Salvador que lava os pés dos outros, então nenhum ato de serviço poderia estar abaixo de nossa dignidade. Contudo, não basta simplesmente saber essas coisas. Nosso chamado é praticar essas coisas, pondo de lado nossa arrogância, dedicando nossa vida ao serviço amoroso e dessa forma recebendo a bênção que Jesus prometeu dar. “Na origem de todo serviço cristão no mundo”, escreve Donald English, “está o Senhor crucificado e ressuscitado, que morreu para nos libertar para esse serviço”.14 Entenda que, quando Jesus nos disse para seguir seu exemplo, ele não estava instituindo o lava-pés como um sacramento da igreja cristã (embora alguns cristãos pratiquem o lava-pés como um lembrete da humildade do seu Salvador), mas nos chamando a todo um estilo de vida de serviço humilde. Ele não estava necessariamente nos entregando uma toalha e uma bacia, mas nos convidando a pegar as ferramentas de serviço onde quer que as encontremos. Colocar-se sob o senhorio de Jesus Cristo é seguir seu exemplo de atitude de servo. Jamais faremos isso se estivermos cheios de inveja, porque, na nossa inveja, só pensamos no que podemos obter, não no que podemos dar. A inveja quer levar o outro a ficar de joelhos. Também não serviremos se formos presunçosos e arrogantes, porque vamos esperar que outras pessoas se ajoelhem e nos sirvam, e não o contrário. Só ficaremos de joelhos para servir quando formos suficientemente humildes para ir até a cruz, confessar nossos pecados e então pedir a Jesus que nos ajude a amar do jeito que ele ama. Quais são as ferramentas de nosso ofício de servo? Servimos os outros com nossas palavras quando não monopolizamos a conversa e não ficamos chamando a atenção sobre nós mesmos, mas usamos o que dizemos para encorajar e edificar, voltando a atenção para os outros e, em última instância,para a graça de Deus. Servimos quando falamos menos e ouvimos mais. Em vez de dizer coisas grosseiras e presunçosas, tais como: “Olhe para mim!” ou “Não entendo por que deram aquele prêmio para ela”, somos chamados a dizer coisas mais humildes, como: “Fiquei feliz por você ter tido uma promoção” ou “Admiro seus dons e talentos e como você os usa”. Servimos os outros com nossas mãos, como Jesus fez. Alguns de nós são chamados a servir em casa, com uma esponja de lavar louça ou um cesto de roupa. Alguns de nós servem na cozinha, usando panelas e frigideiras para fazerem refeições para os sem-teto. Alguns de nós servem empurrando cadeiras de rodas e tocando instrumentos musicais para pessoas no lar de idosos. Alguns de nós servem construindo um lar para órfãos, ou abraçando uma criança com necessidades especiais, ou pondo um estetoscópio no peito de um menininho ou menininha que de outra forma jamais receberia cuidados médicos. Existem milhões de maneiras de servir, se estivermos dispostos. Que papel tem na sua vida o serviço que mostra a humildade do seu Salvador? Procure todas as oportunidades de servir. Assuma a posição mais baixa. Não pense que determinado serviço é trabalho para alguma outra pessoa, e não um chamado para você, porque, no momento em que disser isso, estará afirmando ser maior que seu Senhor. Lembre-se do serviço de Jesus, com uma toalha em volta da sua cintura e seu amor de joelhos. Então, tome em suas mãos as ferramentas do ofício de servo. GUIA DE ESTUDO Há dias em que é fácil fazer coisas bondosas pelos nossos entes queridos. Somos dominados por um sentimento de afeição por eles e, quando temos um pouquinho de tempo sobrando, queremos fazer coisas legais para lhes mostrar quanto os amamos. Mas, em outros dias, não é assim tão fácil. Não queremos ouvir nossos entes queridos se queixarem de seus problemas. Estamos cansados e não queremos lavar a louça depois do jantar. Estamos ofendidos e não queremos tomar a iniciativa e pedir desculpas pela nossa parte em um desentendimento. Mas é nesses momentos que podemos mostrar a plena magnitude do nosso amor, apanhando uma bacia e toalha para lavar os pés deles, tal como Jesus fez. 1. Descreva uma ocasião em que você assistiu a um gesto surpreendente e humilde de serviço, feito em seu favor ou em favor de outra pessoa. Que impacto esse serviço teve na pessoa que o recebeu? 2. Cite algumas situações que lhe causam inveja. Em que casos você se sente mais tentado a ter inveja da bênção ou do favor recebido por outra pessoa e, por consequência, ficar secretamente ressentido com isso ou querer arruinar o que a pessoa recebeu? 3. Às vezes, ao recebermos dons de Deus, ficamos tentados a nos vangloriar e a nos deixar levar pelo orgulho. Cite algumas maneiras de nos precavermos contra essa tentação. 4. Como a inveja, a vanglória, a arrogância e a grosseria estão relacionadas? Por que são a antítese do amor bíblico? 5. Leia João 13.1-11. Que palavras você usaria para descrever as ações de Jesus aqui? O que é surpreendente no que ele fez? 6. Por que inicialmente Pedro não quis que Jesus lavasse seus pés? Por que depois ele quis que também suas mãos e cabeça fossem lavadas? Por que era desnecessário, tanto física quanto espiritualmente, que Jesus lavasse a cabeça e as mãos de Pedro? 7. João 13.11 nos diz que Jesus sabia que Judas iria traí-lo. O que o fato de ele ter lavado os pés de Judas junto com os dos outros discípulos mostra a respeito do amor de Jesus? O que isso significa para nós? 8. Como Jesus mostrou toda a magnitude do seu amor? Quais características do amor, conforme descrito em 1Coríntios 13, são exibidas nas ações de Jesus em João 13? 9. Essa cena acontece pouco antes de Jesus ir para a cruz. Como isso prepara o palco para o que iria acontecer na cruz? 10. De que modo o ato de servir a outra pessoa, e não a nós mesmos, nos ajuda a vencer os pecados de inveja, vanglória, arrogância e grosseria? 11. Leia João 13.12-17. Como você pode imitar o exemplo de amor de Jesus, que se dá totalmente? Mencione um ato de serviço humilde que você pode fazer esta semana. Dentre as várias formas de servir, qual foi a que Deus o chamou a escolher e usar em favor de alguém que talvez não pareça merecê-la? 1Devo esse insight a Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 111 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. Em seus comentários sobre 1Coríntios 13.4, Edwards faz distinção entre nossa reação ao “bem possuído pelos outros” e ao “bem possuído por nós mesmos”. 2Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1048. 3Cornelius Plantinga Jr., Not the way it’s supposed to be: a breviary of sin (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), p. 169. 4Edwards, Charity, p. 112. 5Ibidem, p. 113. 6Thiselton, First Epistle, p. 1048. 7Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 28; grifo no original. 8Thiselton, First Epistle, p. 1048. 9Smedes, Love within limits, p. 33. 10James Montgomery Boice, The Gospel of John (Grand Rapids: Baker, 1999), vol. 4: Peace in storm: John 13—17, p. 999. 11Ibidem, p. 1011. 12Ibidem. 13“Love on its knees” [O amor de joelhos] é o título que James Boice dá a uma de suas exposições de João 13.2-15. Ibidem, p. 1007. 14Donald English, The message of Mark: the mystery of faith (Downers Grove: InterVarsity, 1992), p. 182. 7 O AMOR TEM ESPERANÇA O amor espera todas as coisas. (1CO 13.7) Pai, eu desejo que eles também, os quais me deste, estejam comigo onde eu estou, para verem a minha glória, que me deste porque me amaste antes da fundação do mundo. (JO 17.24) No ano de 1453, a grande cidade de Constantinopla estava sitiada. Ao longo de sua história de mil anos, a capital do Império Bizantino tinha resistido a incontáveis ataques, mas todos sabiam que dessa vez era diferente: a cidade iria cair. O invasor — o sultão otomano Maomé II — tinha mais de cem mil soldados treinados em seu exército turco, enquanto o imperador cristão, Constantino XI, não chegava a ter sete mil homens para proteger sua cidade. Apesar de todas as suas defesas naturais e as construídas pelo homem, tanto por terra quanto por mar, não havia nenhuma maneira de proteger Constantinopla do supercanhão alemão dos otomanos, que conseguia atirar balas de quase quinhentos quilos para mais de um quilômetro e meio de distância, com uma precisão mortal e um impacto enorme, ou contra o caminho de quase dois quilômetros e meio que Maomé abriu nas colinas da Galácia para contornar o bloqueio feito por Constantino e levar seus navios de guerra direto para a península do Chifre de Ouro. Logo “a cidade eterna”, como Constantinopla era chamada, cairia sob controle islâmico. Maomé II planejou o assalto final para o dia 29 de maio. Enquanto o sultão fazia seus preparativos militares, os cidadãos de Constantinopla estavam com um terrível pressentimento. Mas, na noite anterior ao dia fatídico da queda da cidade, eles se reuniram para um dos mais extraordinários cultos de adoração da história do mundo. Havia muitos cristãos em Constantinopla, oriundos de muitos lugares e de muitas tradições eclesiásticas. Havia bispos, sacerdotes, monges, freiras e leigos provenientes da Grécia, de Roma, da Rússia e da Terra Santa. Embora todos declarassem Jesus Cristo como Salvador e Senhor, estavam tão profundamente divididos na doutrina e na prática, que nenhum deles jamais adorava junto com os demais. No entanto, na noite de 28 de maio de 1453, todos eles se reuniram na catedral de Santa Sofia, que por mais de um milênio tinha sido o lar espiritual da igreja bizantina. O imperador começou o culto, pedindo perdão aos bispos de várias igrejas presentes. Então, todoscelebraram o sacramento da ceia do Senhor, proclamando a morte expiatória do Cristo ressuscitado e demonstrando sua comunhão uns com os outros como membros do corpo espiritual de Cristo.1 O culto terminou à meia-noite. Poucas horas depois, o silêncio da cidade foi destroçado pelo som do ataque otomano, e, no fim da manhã, Constantinopla havia se tornado Istambul, a cidade dos turcos muçulmanos. Istambul continua islâmica até hoje. Mas, por um breve momento, antes da queda da cidade, o mundo testemunhou uma resposta específica à oração esperançosa de Jesus Cristo pela unidade da igreja — a oração que ele fez a seu Pai na noite anterior ao dia fatídico de sua crucificação. Que eles “todos sejam um”, Jesus orou; “assim como tu, ó Pai, estás em mim e eu em ti, que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21). A ESPERANÇA DO AMOR A oração que Jesus fez em João 17 comprova a verdade de algo que Paulo disse em 1Coríntios 13: “O amor espera todas as coisas” (v. 7). Quem quer que ouse ter esperança de ver a unidade da igreja, assim como Jesus ousou, é capaz de esperar por qualquer coisa, e tem disposição para isso! Lembre-se da abordagem que estamos adotando neste livro: para aprender a amar do jeito que Jesus ama, estamos estudando 1Coríntios 13, olhando cada frase em seu contexto e em seguida vendo como esse aspecto particular do amor é demonstrado na pessoa e obra de Jesus Cristo. Desta vez, analisaremos uma oração que Jesus fez pouco depois de ter lavado os pés de seus discípulos e pouco antes de ser traído — uma oração que nos ensina a esperança do amor. Perto do final de seu elogio ao amor, quando seu poema chega ao clímax, Paulo diz: “O amor sofre todas as coisas, crê em todas as coisas, espera todas as coisas, suporta todas as coisas” (v. 7). Esse versículo é intrigante, porque no início parece estar dizendo algo falso ou até mesmo ímpio. Faz sentido dizer que o amor “sofre todasas coisas” e “suporta todas as coisas”, porque o amor verdadeiro é longânimo. Mas como a Bíblia pode diz que o amor “crê em todas as coisas” ou “espera todas as coisas”? Será que isso significa que o amor crê em coisas que são falsas ou espera em vão por coisas que jamais acontecerão? De jeito nenhum! Paulo não está dizendo que o amor crê em algo irracional ou espera algo irreal, como se o amor fosse “infinitamente crédulo e, total e indiscriminadamente, cresse em qualquer coisa e esperasse qualquer coisa”.2 Em vez disso, está dizendo que, por causa do poder e da graça de Deus, o amor espera em todas as situações, inclusive situações que parecem totalmente sem esperança. Segundo Gordon Fee explica: “Paulo não quer dizer que o amor sempre crê que o melhor acontecerá com tudo e com todos, mas que o amor nunca deixa de ter fé; ele nunca perde a esperança”.3 Por isso, poderíamos traduzir assim 1Coríntios 13.7: O amor “nunca se cansa de dar apoio, nunca perde a fé, nunca esgota a esperança, nunca desiste”.4 Outra maneira de traduzir a palavra grega usada para “todas as coisas” (panta) é “sempre”.5 O amor nunca perde a esperança, mas sempre é esperançoso quanto à bondade de Deus e ao seu poder de operar na vida de alguém. Aqui alguns comentaristas dão ênfase à espera em Deus e na misericórdia que ele nos dá em Cristo Jesus. Mas, tendo em vista o contexto, no qual Paulo vem falando basicamente sobre nosso amor uns pelos outros, parece provável que ele também esteja pensando nas esperanças que temos em relação a outras pessoas (com base, é claro, naquilo que Deus pode fazer nelas e por elas). Foi assim que João Crisóstomo (que por muitos anos serviu como pastor da catedral de Santa Sofia) entendeu o versículo, quando pregou que a esperança “não desiste do amado, mas, ainda que ele seja indigno, continua a corrigi-lo, a prover-lhe as necessidades, a cuidar dele”.6 No que diz respeito ao amor, não há nenhum caso sem esperança. Esse é um dos motivos pelos quais o apóstolo Paulo continuou oferecendo esperança para os coríntios. Apesar de todo o pecado que via na vida deles e apesar de todos os problemas que eles tinham na igreja, ele ainda os amava o suficiente para dizer: “Nossa esperança em vocês é inabalável” (2Co 1.7; veja também 10.15). Na vida não existe nenhuma situação que seja tão sombria ou tão desesperadora que a esperança não esteja lá, se tão somente tivermos o amor de Jesus. O amor não desiste das pessoas quando elas estão passando por percalços. Não cede ao desespero em face da dificuldade extrema. Não afirma que o coração de alguém jamais poderá mudar ou que uma comunidade dividida nunca poderá ser curada. De modo que, quando uma voz desanimadora (talvez a nossa própria) diz: “Não existe esperança”, o amor responde: “Ah, existe, sim. Eu sei que existe. Sempre existe esperança em Jesus!”. O amor espera todas as coisas. Entenda que, sempre que desistimos da esperança, isso é na realidade um fracasso em amar, porque o amor espera. O amor espera que alguém perdido no pecado venha a crer no evangelho. Espera que um relacionamento despedaçado experimente reconciliação. Espera que, pela graça de Deus, o pecado seja perdoado e perdoado ainda mais uma vez. Espera que, mesmo depois de uma longa luta, ainda haja progresso espiritual. Espera que alguém que caiu e se afastou possa ser restaurado para prestar serviço útil no reino de Deus. Espera até mesmo que, quando um corpo fica doente e morre, ele seja ressuscitado no último dia. O amor espera todas essas coisas, e então oferece essa esperança para as pessoas que ama. O amor está disposto a esperar porque deseja o melhor na vida da outra pessoa. É capaz de esperar porque coloca sua derradeira confiança no Deus de amor e em sua graça em favor das pessoas necessitadas. A ORAÇÃO MAIS ESPERANÇOSA DO MUNDO Quero mais uma vez ilustrar esse aspecto do amor considerando a vida e o ministério de Jesus Cristo, cujo espírito foi sustentado pela atitude esperançosa de seu amor. Vemos isso na oração que talvez tenha sido a mais esperançosa que alguém já fez. Era a última noite da vida mortal do nosso Salvador na terra. Se parece estranho que já estejamos chegando perto do final, lembre-se da estrutura dos Evangelhos bíblicos, que dedicam um terço de seu conteúdo para tratar unicamente da morte de Jesus e de todos os acontecimentos imediatos que levaram a ela. Na noite em que foi traído, pouco depois de participar da Última Ceia, Jesus orou pedindo a bênção de Deus sobre seus discípulos. Ele intercedeu diante de seu Pai, fazendo pedido após pedido em favor das pessoas que amava. Quando ouvimos nosso Salvador orar no texto de João 17, ouvimos o que ele esperava — não no sentido de um desejo impossível, mas no sentido de confiar plenamente naquilo que seu Pai faria. Então, o que Jesus esperava? Ele esperava que fosse glorificado. Antes de o Filho de Deus se fazer homem, ele vivia na glória do céu, onde era adorado por anjos. Ao se colocar na pele de nossa humanidade, Jesus pôs de lado essa glória celeste. No entanto, ele esperava voltar a ela. Ele tinha toda a esperança de que, depois que morresse, seu corpo mortal se tornaria radiante de esplendor imortal. De modo que Jesus orou: Pai, chegou a hora; glorifica teu Filho para que o Filho te glorifique, visto que lhe deste autoridade sobre toda a carne, para dar vida eterna a todos que lhe deste. E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que tu enviaste. Eu te glorifiquei na terra, tendo realizado o trabalho que me deste para fazer. E agora, Pai, glorifica-me em tua presença com a glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse (Jo 17.1-5). Esses versículos dão testemunho da glória mútua da Trindade, de que o Pai e o Filho vivem para glorificar um ao outro dentro da Divindade. Eles falam do poder e da autoridade que Jesus tem de conceder vida eterna, a qual ele dá apenas àqueles que o conhecemde maneira pessoal e confiante. Mas esses versículos também nos mostram a esperança de Jesus de receber glória eterna. Esse é necessariamente um homem que espera todas as coisas, porque esperava até mesmo que, depois de morrer, fosse glorificado. Em seguida Jesus voltou seus pensamentos para seus discípulos — especificamente os discípulos originais que testemunharam seu ministério terreno e estiveram com ele na Última Ceia. Enquanto Jesus orava ao Pai, contou o que havia feito por seus discípulos: Manifestei teu nome àqueles que do mundo me deste. Eram teus, e tu os deste para mim, e eles têm guardado a tua palavra. Agora sabem que tudo o que me deste vem de ti. Pois eu lhes dei as palavras que me deste, e eles as receberam e vieram a conhecer de verdade que vim de ti; e creram que tu me enviaste. Estou orando por eles. Não estou orando pelo mundo, mas por aqueles que me deste, pois são teus (v. 6-9). Jesus deixou claro que não estava orando por todos. Não estava intercedendo em favor do mundo em geral, mas especificamente pelos seus. Estava orando pelas pessoas que seu Pai lhe deu: aqueles que tinham a Palavra de Deus e criam em Jesus como o Filho de Deus, aqueles que pertenciam a Deus. Assim que identificou seus discípulos, Jesus começou a orar por eles, transformando em petições suas esperanças amorosas. Jesus esperava que os seus perseverassem. Portanto, orou para que Deus os guardasse em segurança até o fim: Todos os meus são teus, e os teus são meus, e neles sou glorificado. Eu não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo, e eu estou indo para ti. Pai Santo, guarda-os em teu nome, que me deste, para que sejam um, assim como nós somos um. Enquanto estava com eles, eu os guardei em teu nome, que me deste. Eu os tenho resguardado, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da destruição, para que a Escritura se cumprisse. Mas agora estou indo para ti, e essas coisas falo no mundo, para que eles tenham a minha alegria cumprida neles. Eu lhes dei a tua palavra, e o mundo os odiou porque eles não são do mundo, assim como eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal (v. 10-15). Durante seu ministério terreno, Jesus protegeu seus discípulos do perigo espiritual. Mas agora, quando estava deixando o mundo — um mundo que em todos os aspectos odiaria seus discípulos tanto quanto o havia odiado —, Jesus tinha a esperança amorosa de que seu Pai os guardaria contra o Maligno, mantendo-os em segurança. Depois de orar pela proteção dos seus, Jesus passou a orar pela santificação deles. Jesus esperava que seu povo fosse santo. De maneira que orou assim: “Eles não são do mundo, assim como eu não sou do mundo. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como me enviaste ao mundo, da mesma maneira eu os enviei ao mundo. E por causa deles eu me consagro, para que eles também sejam santificados na verdade” (v. 16-19). Por mais preocupado que estivesse em fazer com que os seus chegassem até o fim, Jesus estava igualmente preocupado com o tipo de pessoas que eles se tornariam ao longo do caminho. Esperava que crescessem em santidade pessoal. Com esse objetivo, orou para que seu Pai usasse sua Palavra para realizar sua obra na mente e no coração de cada um deles. Enquanto orava, Jesus tinha a esperança amorosa de que a Bíblia faria aquilo para o que fora concebida e tornaria santo o povo dele. O versículo 20 assinala uma mudança importante na oração de nosso Salvador. Até aqui, Jesus vinha orando bem especificamente por seus discípulos originais. Contudo, nos versículos 20 a 23, começou a orar por todos os discípulos que viriam depois. Na noite que antecedeu sua morte por nossos pecados, ao se dirigir a seu Pai em oração, o Salvador do mundo pensou em nós. Jesus esperava que fôssemos um. De modo que orou por nossa unidade espiritual: Não peço apenas por estes, mas também por aqueles que crerão em mim por meio da palavra deles, para que todos sejam um; assim como tu, ó Pai, estás em mim e eu em ti, que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. A glória que me deste eu a dei a eles, para que sejam um assim como nós somos um, eu neles e tu em mim, para que se tornem perfeitamente um, a fim de que o mundo saiba que me enviaste e os amaste, da mesma maneira que me amaste (v. 20-23). Essas petições se baseiam na unidade da Trindade. Da mesma maneira que o Pai, o Filho e Espírito Santo são um em propósito e amor, Jesus orou para que fôssemos unidos a ele e uns aos outros. Hoje em dia é frequente vermos a igreja dividida pela doutrina e pela prática, mas Jesus orou para que fôssemos unidos em nosso amor uns pelos outros e em nosso sagrado chamado de mostrar ao mundo que Jesus é o Filho amado que Deus enviou para salvar a humanidade. Quando cristãos adoram juntos sem ficar presos às suas denominações, quando cooperam em esforços de evangelização para alcançar a cidade toda ou quando reagem a catástrofes naturais com um esforço coordenado de ajuda humanitária, nós nos tornamos a resposta à oração de nosso Salvador pela unidade cristã. Jesus terminou sua oração intercedendo por nossa salvação eterna. Ele esperava que um dia participássemos de sua glória. Foi assim que Jesus orou por nossa entrada no lar eterno e por nossa aceitação eterna no amor de Deus: Pai, desejo que eles também, os quais me deste, estejam comigo onde eu estiver, para verem a minha glória que me deste, porque me amaste antes da fundação do mundo. Ó Pai justo, ainda que o mundo não te conheça, eu te conheço, e estes sabem que tu me enviaste. Eu fiz conhecido a eles o teu nome e continuarei a fazê-lo conhecido, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles (v. 24-26). Foi dessa maneira que Jesus orou por nós e por todos os seus discípulos. Orou por nossa proteção, nossa santificação, nossa unificação e nossa glorificação. O motivo pelo qual chamo essa oração de “a oração mais esperançosa do mundo” é que nenhuma dessas coisas é remotamente possível sem o trabalho sobrenatural do Deus todo-poderoso. Somos fracos demais para nos mantermos a salvo das tentações de Satanás, pecadores demais para nos santificarmos, divididos demais para nos unirmos e mortais demais para nos elevarmos à vida eterna. Apesar disso, Jesus ousou esperar que nos tornássemos uma igreja una, santa e amorosa, guardada em segurança até o fim dos tempos, quando viveríamos por toda a eternidade no amor de Deus. ONDE DEUS ESTÁ PRESENTE, HÁ ESPERANÇA Qual era a base para essa esperança? O que permitiu que Jesus orasse por tantas coisas aparentemente impossíveis? Se conhecemos 1Coríntios 13, então sabemos a resposta. É o amor que espera todas as coisas. Por esse motivo, Jesus necessariamente tinha a esperança que vem apenas do amor de Deus. O texto de João 17 está repleto de esperança porque está repleto de amor. Considere quanto Jesus deve nos amar para orar por nós como orou. Às vezes temos dúvidas se chegaremos até o fim. Temos o receio de que cairemos e nos desviaremos ou de que Satanás nos arrancará da mão de Deus. Mas Jesus nos ama demais para nos levar só até a metade do caminho que leva à glória e depois deixar que voltemos para trás. Por esse motivo, ele ora amorosamente por nossa proteção. Temos dúvidas parecidas sobre nossa santificação. Às vezes achamos difícil crer que algum dia chegaremos a ficar livres de algum pecado específico. Mas Jesus nos ama demais para nos deixar em escravidão, de modo que ora para que sua palavra nos torne santos. Além disso, há ainda todas as dúvidas que temos sobre o céu e a ressurreição. É mesmo verdade que Deus ressuscitará nosso corpo do pó e nos levará para sua glória eterna? A verdade é que Jesus nos ama demais para nos deixar morrer e apodrecer. De modo que ora para que estejamos com ele para sempre. Jesus faz todas essas orações esperançosas com um coração amoroso. Há outra afeição esperançosa que permeiaessas orações: é o amor do Pai. Anteriormente, Jesus havia garantido a seus discípulos: “Assim como o Pai me amou, da mesma maneira eu os amei” (Jo 15.9). Era por conhecer esse amor que Jesus podia orar com esperança. Vemos isso com clareza em João 17.24, em que ele diz ao Pai: “Tu me amaste antes da fundação do mundo”. Aqui temos um vislumbre da intimidade do amor triúno de Deus. Desde antes do início do tempo, o Pai sempre amou o Filho. Jesus confiou que esse amor continuaria, de modo que, quando desse a vida pelos nossos pecados, o Pai o faria ascender de volta com glória. A esperança que Jesus tinha de sua ressurreição não era um desejo impossível; estava baseada no amor do Pai. Mas isso não é tudo. Ao amar o Filho, o Pai também ama todos os discípulos de seu Filho. Conforme Jesus diz a seu Pai no versículo 23: “Tu os amaste da mesma maneira que me amaste”. Tanto o Pai quanto o Filho desejam nos atrair para o amor de Deus. Para apresentar uma analogia imperfeita, ouvir Jesus orar ao Pai é como uma criancinha apanhar os pais se beijando junto da pia da cozinha e, dessa maneira, ter um vislumbre do amor que mantém a família unida. Com encantamento e prazer, a criança sente as profundezas ocultas do amor que seus pais partilham e, ao mesmo tempo, é atraída para aquele amor e quer se unir àquele abraço. Embora a criança não possa participar de cada afeição partilhada por seus pais, ainda assim ela participa do amor deles. Assim é com o amor eternamente partilhado pelo Pai e pelo Filho. Nós estamos incluídos no amor do Pai. Isso explica por que Jesus ousou fazer essa oração tão esperançosa. Sua oração estava fundamentada no caráter amoroso de Deus. Jesus tinha a confiança certa e segura de que seu Pai ouviria e responderia a essas orações porque sabia quanto o Pai nos ama. É o amor que espera todas as coisas, e a esperança que encontramos em João 17 está alicerçada no amor do Pai e do Filho. OFERECENDO ESPERANÇA Agora o poder do amor de Deus coloca essa mesma esperança em nosso coração. Quando amamos do jeito que Jesus ama, somos capazes de “esperar todas as coisas” na vida das pessoas que amamos. Encontramos essa esperança no mesmo lugar em que Jesus a encontrou: no amor do Pai — amor que recebemos por meio do Espírito Santo. O motivo pelo qual nossa “esperança não nos envergonha” é que “o amor de Deus foi derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5.5). Esse presente de amor flui do coração do Pai. De acordo com Jonathan Edwards: “O amor tende a esperar, pois o espírito de amor é o espírito de uma criança, e, quanto mais uma pessoa sente dentro de si esse espírito em relação a Deus, mais natural será que ela olhe para Deus e busque a Deus como seu Pai”.7 Você está esperando no amor do Pai? Jesus disse: “O próprio Pai os ama” (Jo 16.27). Essa promessa é suficientemente sólida para servir de alicerce para a vida. Por isso, você já aprendeu a ir a Deus em busca de ajuda da mesma maneira que uma criancinha vai até um pai amoroso? Henry Drummond conta a história de um pastor escocês que foi visitar um menino em idade escolar que estava acamado, à beira da morte. Na hora de sair do quarto, o pastor simplesmente colocou a mão na fronte do menino que sofria e disse: “Rapazinho, Deus ama você”. O garoto se levantou e, com toda a força que ainda conseguia reunir, começou a gritar para todos na casa: “Deus me ama! Deus me ama!”.8 Como filho de Deus, ele estava deslumbrado com o amor do Pai, e isso o encheu de uma nova esperança. Nossa esperança vem do amor de Deus Pai e do amor de Jesus, o Filho. Jesus nos amou o suficiente para orar por nós, pedindo que víssemos a sua glória. Mais do que isso, Jesus nos amou o suficiente para morrer por nós, dando sua vida por nossos pecados na cruz em que foi crucificado. Nossa esperança jorra eternamente da fonte de seu amor imperecível. Essa esperança não nos decepcionará porque flui do Deus de amor. A esperança não é um simples desejo ilusório. Ela não depende de as coisas funcionarem do jeito que planejamos ou de conseguir que nossos problemas sejam resolvidos quando queremos que isso aconteça. Pelo contrário, nossa verdadeira esperança é o próprio Jesus e as promessas de seu amor. Lewis Smedes escreve: Lá no fundo, a esperança olha além da cura de uma doença, da solução de um problema, da fuga da dor, buscando a garantia da parte de Deus de que a vida tem objetivo e sentido, apesar das doença, do problema e da dor. A esperança contempla a promessa da vitória final de Jesus Cristo sobre tudo o que fere e mata. Essa é a esperança que dá a alguém a coragem para louvar hoje e enfrentar o amanhã com expectativa, mesmo quando não espera uma solução para o problema. 9 Essa é também a esperança que oferecemos aos outros. Na maioria das vezes, está além do nosso alcance resolver qualquer um dos grandes problemas que surgem na vida das pessoas que amamos. Os crentes continuam lutando com o pecado. As famílias ainda têm dificuldades financeiras. Pais brigam; crianças falham; amigos sofrem doença e morte. Mas, se amarmos as pessoas, não desistiremos daquilo que Deus pode fazer. Quando temos o amor de Jesus em nós, conforme ele orou para que tivéssemos, então fazemos pelos outros aquilo que ele fez por nós. Nós não apenas desejamos o melhor, mas, por ausa da esperança que temos em Jesus, vamos orar pelo melhor. Oraremos pelos outros, pedindo as mesmas coisas que Jesus pediu ao orar por nós em João 17. Oraremos por proteção, para que Deus guarde do Maligno as pessoas que amamos. Também oraremos pela santificação delas, pedindo a Deus que use as atuais tribulações para produzir fé e esperança e todas as outras graças da piedade. Finalmente, oraremos pela glorificação delas, pedindo a Deus que as exalte no último dia. Eu me pergunto: alguma vez você já orou especificamente por alguém para que veja a glória de Deus? Isso faz parte daquilo que “espera todas as coisas” quer dizer em relação às pessoas que amamos. Enquanto aguardamos para ver a glória de Jesus, podemos até mesmo esperar ver a resposta às suas orações esperançosas pela unidade e pela glória da igreja. Quando viajei para a Turquia, tive a experiência incrível de estar ali na galeria da catedral de Santa Sofia e olhar para o santuário ali embaixo, onde no passado milhares de crentes cultuaram em nome de Cristo — o exato lugar onde cristãos de toda Constantinopla se reuniram para orar como um único povo de Deus, na noite que antecedeu a queda da cidade em mãos muçulmanas. Enquanto estava ali naquele santuário, fiquei triste ao ver que a catedral de Santa Sofia não é mais usada para cultos cristãos. Enormes medalhões com o nome de Alá e Maomé pairam sobre o santuário. O altar, na frente, foi colocado em um ângulo distorcido, voltado para Meca — um sinal inconfundível de que honra e glória foram desviadas do único e verdadeiro Deus e, em vez disso, foram dadas a um falso profeta. Não fiquei apenas entristecido com o que vi; fiquei irado. Neste mundo caído, há muitas coisas para nos deixar tristes e irados. Mas, enquanto eu refletia sobre aquilo que vi, comecei a ter uma esperança que veio do amor. Minha esperança foi que um dia meus irmãos e irmãs na Turquia consigam que Santa Sofia volte a sua legítima e devida finalidade — que consigam abrir suas portas para que pessoas de todas as nações a encham de louvor a Jesus Cristo. Quais são as coisas aparentemente impossíveis que você está esperando, não apenas em sua própria vida, mas também na vida das pessoas que ama? Que esperanças você tem para o ministério de sua igreja, ou para regiões da cidade dominadas pela pobreza, ou para o avanço do evangelho em terras distantes? Se sua esperança está no Deus de amor, então você não está simplesmente “esperando o impossível”, mas esperando do jeito que Jesus espera, porque você ama do jeito que Jesus ama, enquanto espera ver o que Deus fará. GUIA DE ESTUDOMuitas vezes, logo no início de um romance, as pessoas enxergam apenas o lado bom de seus amados. Mas, com o passar do tempo, a realidade começa a se impor. Percebemos que às vezes a pessoa que amamos fica irritada ou intransigente com certas coisas. Ele ou ela tem hábitos irritantes ou discorda de nós em questões essenciais. É então que o verdadeiro amor começa a esperar e a orar por coisas boas para a pessoa amada. Amar do jeito que Jesus ama significa desejar intensamente o bem daqueles a quem amamos e manter a fé de que eles se tornarão mais semelhantes a Cristo. Isso significa jamais abandonar a esperança de que, pelo poder do Espírito Santo, eles podem vencer os pecados com que se debatem. 1. Cite uma coisa que você espera que venha a acontecer com você durante os próximos doze meses. Cite uma coisa que espera que venha a acontecer na vida de um ente querido. 2. Você já se sentiu tentado a desistir de ter esperança na transformação de alguém porque a mudança que você tanto deseja que aconteça nele ou nela parecia impossível? Descreva essa experiência. Como Romanos 5.2-5 estimula você a orar por amigos e familiares sem desistir? 3. A passagem de 1Coríntios 13.7 nos diz que o amor espera todas as coisas. O que a palavra esperança significa nessa definição de amor? Por quais tipos de coisas o verdadeiro amor espera? 4. Como o amor de Jesus inspira o nosso amor e nos capacita a ter esperança? 5. Leia Hebreus 6.18,19. Como a esperança bíblica é diferente da esperança do mundo? 6. Leia João 17.1-19. O que Jesus estava esperando ou confiando que Deus fizesse? De que formas a oração de Jesus tem sido respondida em sua vida? Você já a viu ser respondida na igreja? 7. De que maneira o amor de Jesus é evidente em sua oração por seus discípulos em João 17.6-19? 8. Leia João 17.20-26. Qual é a oração de Jesus em nosso favor? Qual é a base para esse pedido? 9. Em João 17.20-26, qual é a missão ou propósito final da unidade que Jesus quer para nós? Como sua oração reorienta ou redireciona as esperanças que você tem para si mesmo ou para seus entes queridos? 10. De que maneira o exemplo da oração de Jesus em João 17 influencia nossas próprias orações? 11. Como podemos ter um amor mais esperançoso por aqueles que estão à nossa volta? Que coisas práticas podemos fazer para lhes mostrar que o nosso amor espera por coisas boas para eles? 1James R. Edwards narra esses acontecimentos em “The one time the church was one”, in: The Edwards Epistle (Summer 2009), vol. 18, p. 1-2. 2Richard B. Hays, First Corinthians, Interpretation (Louisville: John Knox, 1997), p. 228. 3Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 640 [edição em português: 1Coríntios: comentário exegético, tradução de Marcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova, a ser publicado)]. 4Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1057. 5Tertullian [Tertuliano], Apology (3:39), in: David E. Garland, First Corinthians, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker, 2003), p. 619. 6John Chrysostom [João Crisóstomo], Homilies on the Epistles of First Corinthians, tradução para o inglês de Talbot W. Chambers, in: Philip Schaff, org., Nicene and Post-Nicene Fathers, First Series (1889; reimpr., Peabody: Hendrickson, 1994), p. 198 [edição em português: Comentário às cartas de São Paulo, tradução de Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo, Série Patrística (São Paulo: Paulus, 2010), vol. 27/2]. 7Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 271 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 8Henry Drummond, The greatest thing in the world (New York: Grosset & Dunlap, s.d.), p. 32 [edições em português: A maior coisa do mundo, tradução de Almir dos Santos Gonçalves (Rio de Janeiro: JUERP, 1969); Amor: a melhor coisa do mundo, tradução de Edson Bini (São Paulo: Via Leitura, 2014)]. 9Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 103. 8 O AMOR NÃO É EGOÍSTA Amor não insiste em que as coisas sejam feitas à sua maneira. (1CO 13.5) Indo um pouco mais adiante, caiu prostrado e orou, dizendo: “Meu Pai, se for possível, que este cálice passe de mim; no entanto, não seja como eu quero, mas como tu queres”. (MT 26.39) Foi um momento de honestidade chocante e inesperada. Um amigo cujo nome não vou dizer — tudo bem, foi meu cunhado, Jeff — estava em um culto cantando o mais alto que podia. Mas, quando as pessoas começaram a olhar para ele de modo estranho, ele percebeu que alguma coisa estava errada. Não era sua voz, que é agradável e melodiosa, mas a letra. Todos os outros estavam cantando o hino clássico de Adelaide Pollard: “Seja à tua maneira, ó Senhor! Seja à tua maneira, ó Senhor!”. Mas, sem perceber, Jeff estava usando um pronome diferente e provavelmente sendo mais honesto. “Seja à minha maneira, ó Senhor!”, ele estava cantando com toda a força. “Seja à minha maneira, ó Senhor!” Pedindo desculpas a Walt Whitman, autor do poema Song of myself [Canção de mim mesmo], as palavras cantadas pelo meu cunhado são a verdadeira “Canção de mim mesmo” — aquela que pecadores egoístas adoram cantar, mesmo que em geral tentemos não cantá-la na igreja. Com toda honestidade, há momentos na vida em que nós preferiríamos que as coisas fossem feitas da nossa maneira, e não da maneira de Deus. Caso tivéssemos escolha, preferiríamos assumir o controle total de nossa aparência, nossa saúde, nossas notas na escola, nosso salário e qualquer situação na vida que nos estivesse criando grande dificuldade. Se nosso coração pudesse reescrever a canção, ela diria algo como Como eu quero, Senhor, sou meu. Oleiro e barro, ambos sou eu. Nada precisas fazer; enfim, minha vontade se cumpra em mim. O ALTRUÍSMO DO AMOR A forma egoísta e egocêntrica como a maioria de nós costuma viver é diretamente contrária ao amor, o qual a Bíblia diz que “não insiste em que as coisas sejam feitas à sua maneira” (1Co 13.5). “O espírito de caridade”, escreveu Jonathan Edwards, “é o oposto de um espírito egoísta”.1 Foi assim que o grande teólogo caracterizou o contraste: “O egoísmo é um princípio que encolhe o coração e o limita a si mesmo, ao passo que o amor o amplia e o estende aos outros”.2 Infelizmente muitas de nossas atitudes e ações são exatamente o oposto daquilo que deveriam ser, e, em consequência disso, nosso coração se torna menor. Essa é uma das razões pelas quais 1Coríntios 13 é um desafio tão grande para nós. Todas as coisas que essa passagem nos diz que o amor faz são quase impossíveis de cumprirmos, ao passo que todas as coisas que ela nos diz que o amor nunca faz nós fazemos o tempo todo. Isso acontece porque amamos a nós mesmos mais do que amamos outras pessoas ou até mesmo a Deus. Ponderando sobre tudo o que Paulo diz a respeito do amor em 1Coríntios 13, David Garland comenta com sabedoria que “cada coisa que o amor faz é algo em que o ego não domina”, mas “cada coisa que o amor não faz é algo em que o ego domina”.3 Por isso, se achamos difícil fazer o que o Capítulo do Amor nos diz para fazer e para amar outras pessoas, esse é um sinal claro de que nossa vida é dominada por sentimentos egoístas. É claro que, em um sentido limitado, devemos amar a nós mesmos. Quando Jesus nos disse para amar o próximo como a nós mesmos (veja Mt 19.19), ele pressupôs que teríamos o bom senso de cuidar de nós mesmos. Mas ele também se recusou a deixar que limitássemos nosso amor ao horizonte de nossos interesses pessoais. Além disso, ele insistiu em que precisamos propositadamente amar os outros e resistir às muitas tentações de nos colocarmosem primeiro lugar. Uma maneira de amar os outros é não fazer questão de que as coisas sejam feitas da nossa maneira. Existem várias formas de traduzir e interpretar 1Coríntios 13.5. Dizer que o amor “não insiste em que as coisas sejam feitas à sua maneira ” é dizer que o amor “não é interesseiro” (NIV). O amor não procura satisfazer a ambições egoístas nem busca sua própria vantagem às custas de outras pessoas. Gordon Fee diz que o amor “não se sente fascinado por obter recompensas, justificar-se aos olhos dos outros, nem alimentar a autoestima”.4 À lista de Fee poderíamos acrescentar outras frases que destacam a ideia de pensar só em si. O amor não vive para satisfazer a interesses pessoais ou obter vantagens pessoais. Ele não busca a autossatisfação, mas, em vez disso, pratica a negação de si mesmo. Este é um bom momento para distinguir entre diferentes tipos de amor, todos eles encontrados no Novo Testamento. Eros é o amor do desejo. Não é um amor altruísta, mas um amor que deseja obter algo de outra pessoa. Isso explica por que em geral a mitologia retrata Eros (ou Cupido) como um caçador armado com um arco e flecha; seu amor é possessivo. Philia, ou amor fraterno, é um afeto de família. Seu amor se baseia em uma conexão pessoal com pessoas que pertencem à mesma família, igreja, cidade ou nação. E existe, então, o tipo específico de amor que Paulo aborda em 1Coríntios 13, que é chamado agape e às vezes é traduzido por “caridade”. Agape é um tipo de amor que é particularmente parecido com Cristo. Sua afeição não se baseia no apego romântico, como eros, ou na conexão de família, como philia, mas tem um desejo puramente altruísta de abençoar outras pessoas. Com toda franqueza, essa era uma área em que os coríntios se debatiam. Eles não amavam uns aos outros com um amor altruísta, mas com frequência insistiam em satisfazer sua própria vontade. Agiam assim quando tinham discordâncias teológicas, tais como a disputa deles sobre a idolatria (veja 1Co 10). E, quando celebravam a ceia do Senhor, alguns membros da igreja se apressavam em comer, sem esperar por seus irmãos e irmãs (1Co 11.21,22). Algo parecido acontecia em seus cultos: algumas pessoas continuavam falando quando era a vez de outra pessoa falar (1Co 14.26-33). De modo que, no capítulo 10, Paulo disse aos coríntios, usando palavras quase idênticas às do capítulo 13: “Ninguém procure seu próprio bem, mas o bem do próximo” (v. 24). Questões como quem tem preferência, quem diz a última palavra, ou quem está certo ou errado em assuntos não essenciais de prática cristã não são mais importantes do que nossa maneira de amar as outras pessoas. Ao darem um mau exemplo, os coríntios nos oferecem algumas boas formas de testar nossos afetos. Quando estou envolvido em uma discussão, será que estou disposto a admitir que a outra pessoa esteja certa? Quando os recursos são limitados, será que costumo deixar que outras pessoas sejam as primeiras? Quando outra pessoa tem algo a dizer, será que sou capaz de me calar e ouvir? Infelizmente, a maioria de nós tem tantos problemas nessas áreas quanto os coríntios. O egoísmo está tão profundamente arraigado na cultura ocidental, que muitas pessoas consideram o amor narcisista uma virtude; colocar nossas próprias necessidades em primeiro lugar é sinal de saúde mental. Nas palavras de um influente psicólogo, nossa suprema vocação na vida é “cuidar de nós mesmos com muito carinho”.5 O amor perpétuo por nós mesmos é o único caso amoroso que a maioria de nós nunca abandona. Vemos esse amor na maneira em que as pessoas se empenham em suas carreiras, sempre tentando estar à frente de alguma outra pessoa. Vemos esse amor em como gastam seu dinheiro, usando-o para o prazer pessoal, e não para o bem público. Vemos esse amor na maneira de tratarem suas famílias: negligenciando os filhos (ou então controlando-os implacavelmente), abandonando seus cônjuges, internando os idosos. As pessoas vivem dessa maneira porque estão apaixonadas por si mesmas. Ninguém expressou isso melhor do que a atriz Shirley MacLaine, que certa vez disse ao jornal Washington Post: O único envolvimento amoroso permanente é com você mesma. [...] Quando você olha para trás na vida e tenta descobrir onde esteve e para onde está indo; quando olha para seu trabalho, seus casos amorosos, seus casamentos, seus filhos, sua dor, sua felicidade — quando examina tudo isso de perto, o que realmente descobre é que a única pessoa com quem você realmente vai para a cama é você mesma. A única pessoa que você realmente veste é você mesma. A única coisa em que você está trabalhando é o aperfeiçoamento de sua própria identidade. E isso é o que venho tentando fazer a minha vida inteira. 6 O apóstolo Paulo adotou uma perspectiva bem diferente, não só em 1Coríntios 13.5 mas também em 2Timóteo 3.2, em que identificou o fato de pessoas se apaixonarem por si mesmas como um sinal do juízo vindouro. De sua parte, o apóstolo tentou viver de modo diferente. Conforme disse aos coríntios: “Tento agradar a todos em tudo o que faço, não buscando vantagem própria, mas a de muitos, para que possam ser salvos” (1Co 10.33). Isso foi a chave da filosofia de ministério de Paulo e o segredo de seu sucesso na evangelização. Ele não estava vivendo para si, mas para os outros, e então, em vez de promover seus próprios interesses, conseguia levar o evangelho adiante. Somos chamados a viver da mesma maneira altruísta, pois, como Paulo diz mais à frente: “Sejam meus imitadores, assim como eu sou de Cristo” (1Co. 11.1). NO JARDIM A exortação de Paulo a imitar Cristo nos leva de volta à obra salvadora e ao exemplo perfeito de Jesus, cuja vida é o próprio amor. Cada parte do retrato do amor em 1Coríntios 13 aparece em cores vivas quando o vemos exibido em Jesus Cristo. Conforme já vimos, o amor de Jesus é o mais paciente e bondoso, o menos invejoso e presunçoso de todos os amores possíveis. Também é o menos egoísta de todos os amores e o mais persistente na busca do bem dos outros. O “amor doação” de Deus, escreve C. S. Lewis, “deseja aquilo que é simplesmente melhor para o amado”.7 Jesus nunca insistiu em satisfazer sua própria vontade, mas seguiu o caminho que levaria à nossa salvação. Essa foi a história de toda a sua vida. Em Filipenses 2, quando o apóstolo Paulo disse: “Que cada um de vocês não olhe apenas para seus próprios interesses, mas também para os interesses dos outros” (v. 4), ele passou a reconstituir a história do Cristo encarnado como o exemplo perfeito de como viver para os outros, e não para nós mesmos. Jesus não se apegou a todas as glórias do céu. O Filho de Deus se fez homem e, embora fosse Senhor, aceitou o chamado de servo. Em vez de salvar sua vida, ele a ofereceu, humilhando-se “até o ponto de morrer, e morrer em uma cruz” (v. 8). De modo que, se indagarmos em que instante nosso Salvador se recusou a insistir em que as coisas fossem da sua maneira, a resposta é “em todos os instantes!”. Ele viveu a vida inteira para os outros, e não para si. Apesar disso, existe um momento em particular nos Evangelhos em que Jesus enfrentou a decisão deliberada de fazer ou não as coisas à sua maneira. Quando confrontado com essa decisão, fez a escolha que só o amor faz. Vemos Jesus fazer essa escolha em solo sagrado, no jardim do Getsêmani. Foi na noite antes de morrer — na mesma noite em que partilhou a Última Ceia com seus discípulos, lavando seus pés e fazendo sua oração esperançosa pela unidade e pureza da igreja. Em breve, Jesus seria traído e morto. Mas, antes de passar pelo sofrimento e a morte na cruz, teve de fazer uma escolha. Mateus descreve a cena, dizendo-nos que Jesus e seus discípulos foram “a um lugar chamado Getsêmani” (Mt 26.36). Getsêmani é o jardim no monte das Oliveiras que dá vista para a cidade de Jerusalém. Quando chegaram a esse lugar isolado, Jesus disse a seus discípulos: “Sentem-se aqui, enquanto vou ali orar”(v. 36). Então, ele foi mais para dentro do jardim, junto com Pedro, Tiago e João. Essa não foi uma reunião comum de oração. Logo Jesus “começou a ficar entristecido e perturbado” (v. 37) — palavras que indicam emoção extrema. Ele disse aos discípulos que estavam perto dele: “A minha alma está muito entristecida, a ponto de morrer; fiquem aqui e vigiem comigo” (v. 38). Naqueles momentos angustiantes de oração, enquanto Jesus era confrontado com o terrível sofrimento que o aguardava, podemos ter um vislumbre de quanto custou ao nosso Senhor nos salvar. Jesus estava encarando as dores da morte por crucificação, que, por definição, era uma maneira dolorosíssima de morrer. Mais ainda, ele estava encarando a dor psicológica de separar-se de seu Pai. Logo ele tomaria sobre si o peso da culpa dos pecados da humanidade. Enquanto Jesus sofresse esse fardo, seu Pai o abandonaria, amaldiçoando-o até a morte e condenando-o a ela. Por isso, o puritano Richard Baxter concluiu que a agonia de nosso Salvador “não foi resultado do medo da morte, mas da sensação da profunda ira de Deus contra o pecado, a qual ele, como nosso sacrifício, deveria suportar em uma dor maior do que apenas a de morrer”.8 Portanto, quando Jesus disse que sua alma estava entristecida a ponto de morrer, ele não estava exagerando. Ao descrever a mesma cena, Lucas nos diz que, enquanto Jesus orava, “seu suor se tornou como grandes gotas de sangue caindo ao chão” (Lc 22.44). Quando Jesus disse que estava “entristecido a ponto de morrer”, era como se dissesse que quase morreu no Getsêmani antes de ir para o Calvário. “Naqueles momentos extremos”, escreveu B. B. Warfield, “nosso Senhor expressou a mais profunda angústia humana [...]. Diante dessa angústia mental, as torturas físicas da crucificação vão para um segundo plano, e podemos muito bem crer que nosso Senhor, embora tenha morrido na cruz, ainda assim não morreu por causa da cruz, mas por causa de um coração partido, isto é, da tensão de seu sofrimento mental”.9 SEJA FEITA A TUA VONTADE Enquanto estava sob a tensão desse sofrimento supremo, Jesus fez o que tinha vindo fazer no Getsêmani e começou a orar: “E, indo um pouco mais adiante, caiu prostrado e orou, dizendo: ‘Meu Pai, se for possível, que este cálice passe de mim; no entanto, não seja como eu quero, mas como tu queres’” (Mt 26.39). Não sabemos todos os motivos pelos quais Jesus perguntou a seu Pai se havia, talvez, alguma alternativa para a cruz, mas a palavra “cálice” nos dá uma pista. As Escrituras do Antigo Testamento mencionavam dois tipos bem diferentes de cálice. Um era o cálice de bênção, como é o caso do cálice que “transborda”, no salmo 23, ou “o cálice da salvação”, no salmo 116. O outro era um cálice de maldição, tal como o cálice da ira que Jerusalém bebeu nos dias do profeta Isaías (Is 51.17) ou como o cálice de juízo que Jeremias profetizou para as nações (Jr 25.15). Esse era o mesmo cálice que Jesus beberia até a última gota: a bebida amarga do juízo de Deus. Portanto, não é de estranhar que Jesus tenha perguntado se havia alguma alternativa. Ele estava totalmente sozinho. Seus discípulos mais próximos eram fracos demais para permanecer acordados com ele e orar — mesmo que fosse por uma hora. Jesus estava com medo — é claro que não com o medo pecaminoso, mas naturalmente com medo das dores da morte e com medo do sofrimento que viria por suportar a ira de Deus contra nosso pecado. O sofrimento físico da crucificação seria tão doloroso para ele quanto para qualquer outra pessoa, mas o pavor espiritual e psicológico seria ainda pior. Logo Jesus seria abandonado: o Pai veria nossos pecados na cruz e se afastaria. Na véspera de sua crucificação, Jesus poderia ter insistido em que as coisas fossem da sua maneira. Se pudesse escolher, ele teria preferido não suportar o peso dos nossos pecados, não sofrer a ira de Deus e não ser morto na cruz. Apesar disso, o Filho, em sofrimento, rendeu-se à vontade do Pai, demonstrando a submissão do amor. Jesus fez isso quando orou do mesmo jeito que nos ensinou a orar: “Seja feita a tua vontade” (Mt 6.10). Jesus orou assim três vezes. Primeiro orou: “Meu Pai, se for possível, que este cálice passe de mim; no entanto, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26.39). Sua oração no versículo 42 é parecida, mas não idêntica: “Meu Pai, se isto não pode passar a menos que eu o beba, seja feita a tua vontade”. Mais tarde, Mateus nos diz que Jesus “afastou-se e orou pela terceira vez, voltando a dizer as mesmas palavras” (v. 44). A repetição dessa petição deixa claro que Jesus, sem sombra de dúvida, não queria morrer. No que diz respeito à sua vontade humana, ele teria preferido alguma outra forma de salvação. Contudo, não havia nenhuma outra maneira. A única forma de expiar nossos pecados era oferecendo um sacrifício de sangue perfeito. Então, Jesus se rendeu à vontade de seu Pai. Ele não insistiu em que as coisas fossem do seu jeito, mas decidiu a luta de sua vontade humana optando por satisfazer seu Pai. Vemos a rendição do nosso Salvador no desenvolvimento progressivo de sua oração — não há apenas repetição, mas também um desenvolvimento. Inicialmente, Jesus diz: “Se for possível”. Mas, na segunda vez, ele diz: “Se isto não pode passar”. É possível que nesse segundo caso o se não seja condicional. Aliás, às vezes se na verdade significa “visto que”. Por exemplo, uma criança pode dizer: “Se é hora de eu ir para a cama, você pode ler uma história para mim?”. Nessa frase, o se significa “visto que”. Foi o que aconteceu no jardim do Getsêmani, quando, na prática, Jesus disse para seu Pai: “Visto que este cálice não pode passar a menos que eu o beba, seja feita a tua vontade”.Com essas palavras, ele avançou, parando de querer explorar as possibilidades para ver que havia apenas uma coisa a ser feita. Enquanto ouvimos Jesus orar, não podemos simplesmente permanecer como observadores desinteressados, porque nossa salvação depende disso. Jesus jamais teria chegado ao Calvário caso não tivesse primeiramente passado pelo Getsêmani. Se jamais tivesse chegado ao Calvário, jamais chegaríamos à glória, que é justamente o motivo por que Jesus orou da maneira que orou. Nosso Salvador estava comprometido em fazer o que fosse preciso para nos salvar. Por quê? Porque ele nos ama. De acordo com 1Coríntios, o que nos capacita a não insistir em nossa própria vontade é o amor. Então, quando vemos Jesus escolhendo fazer a vontade do Pai, sabemos que ele está agindo por amor. Há apenas uma força no mundo que escolhe abrir mão de seus direitos, de seus planos, de seus confortos e desejos, até mesmo da própria vida, e essa força é o amor como o amor de Jesus. OS OUTROS EM PRIMEIRO LUGAR Agora Jesus nos dá a capacidade e o poder de viver com o mesmo tipo de amor — amor que não insiste em que sua vontade seja feita, mas põe as outras pessoas em primeiro lugar. João Calvino disse: “É bem óbvio [...] que aquele que vive e se esforça pensando o mínimo possível em seu próprio bem é aquele que tem a vida melhor e mais santa, e que ninguém vive de maneira pior ou mais nociva do que aquele que vive e se esforça pensando apenas em si e tem em mente e busca apenas o seu próprio bem”.10 Infelizmente, o que Calvino chamou de “a vida melhor e mais santa” é extremamente raro. A maioria de nós se esforça pensando o máximo possível em nosso próprio bem, pensando sobre nós mesmos, tendo em mente a nós mesmos quase o tempo todo e buscando nosso bem sempre que pudermos obtê-lo. Isso é tão verdadeiro na igreja quanto em qualquer outro lugar. Quando Paulo elogiou o ministério do jovem pastor Timóteo, teve de admitir com tristeza: “Não tenho ninguém como ele, que está sinceramente preocupado com o bem-estar de vocês. Porque todos buscam seus interesses, não os de Jesus Cristo” (Fp 2.20,21). Para mostrar os limites de nosso amor, C. S. Lewis gostava de citar a mais curta resenhaque tinha visto um crítico fazer de uma obra literária. William Morris escreveu um poema com o pretensioso título Love is enough [O amor é suficiente]. Um crítico reagiu com apenas duas palavras: “Não é”.11 O que o crítico quis dizer é que o mero amor humano nunca é suficiente. Pessoas deixam de amar todos os dias. Achamos difícil continuar amando quem não retribui nosso amor. Ficamos esgotados cuidando de pessoas com necessidades muito grandes. Mesmo quando tentamos amar as outras pessoas da maneira certa, o amor- próprio continua interferindo. Nosso amor narcisista é como um enorme sofá-cama que é grande demais para um apartamento quitinete. Não importa quantas vezes mudemos a posição dos móveis, o sofá-cama ainda é grande demais. É assim com nosso amor narcisista. Mesmo quando tentamos pôr outras pessoas em primeiro lugar, ainda há muitíssimo de nós interferindo. O que precisamos é de mais do amor de Jesus. Precisamos doamor que Amy Carmichael pediu, conforme registrado em seu diálogo com a palavra de Jesus por meio da oração: Amados, amemos. Senhor, o que é o amor? Amor é aquilo que inspirou minha vida, e me conduziu à minha cruz, e me manteve na minha cruz. Amor é aquilo que fará com que tua alegria seja dar tua vida por teus irmãos. Senhor, dá-me sempre desse amor. 12 Podemos dar aos outros apenas aquilo que nós mesmos recebemos. Louvado seja Deus porque somos objeto de uma afeição desmedida! O Filho de Deus pôs de lado sua própria vontade para fazer o trabalho de nossa salvação. Agora, no poder e na presença do seu Espírito, podemos mostrar seu amor aos outros. Aliás, é isso o que significa amar: é ser “propício com os outros da mesma maneira que Deus em Cristo tem sido propício conosco”.13 Jesus disse isso repetidas vezes: “Este é meu mandamento: que vocês se amem uns aos outros assim como eu os amei” (Jo 15.12); “Um novo mandamento lhes dou: que vocês se amem uns aos outros; assim como eu os amei, vocês também devem amar uns aos outros” (Jo 13.34). Quando Jesus chamou isso de um “novo mandamento”, não estava dizendo que Deus nunca tinha dito a seu povo para amar. O que ele estava dizendo é que nosso chamado a amar vem com um novo poder — o poder de sua pessoa e obra. Jesus morreu na cruz para pagar o preço de todos os nossos pecados egoístas. Depois, voltou da sepultura para vencer o nosso pecado para sempre. Agora, com base em sua crucificação e ressurreição, o Espírito de Jesus nos dá o poder de amar. Amar do jeito que Jesus ama significa ser menos insistente em ter a minha vontade satisfeita e mais persistente em pôr outras pessoas em primeiro lugar. Temos inúmeras oportunidades de fazer isso diariamente. Colegas de quarto podem mostrar amor por meio do que decidem deixar na geladeira ou por aquilo que propositadamente não deixam no balcão da cozinha. Uma criança pode demonstrar amor deixando que o irmão ou a irmã receba algo de bom antes dela, deixando que um amigo decida qual o próximo jogo ou brincadeira ou parando imediatamente o que quer que esteja fazendo e indo fazer o que a mãe ou o pai querem que ela faça. Maridos e esposas podem mostrar amor quando reorganizam a vida para ajudar um ao outro. No final de um longo dia de trabalho ou de um longo dia em casa, você está basicamente esperando que seu cônjuge faça algo por você ou você está procurando descobrir o que pode fazer por seu cônjuge? Praticamos o mesmo tipo de amor na igreja, ou pelo menos deveríamos praticar. Podemos ter nossas próprias ideias sobre o que deve acontecer no ministério, mas será que temos amor suficiente para reconhecer quando precisamos parar com nossa insistência e deixar que outra pessoa resolva um problema do jeito dela, em vez de resolvê-lo do nosso jeito? Não insistir na nossa vontade tem implicações no que fazemos com nosso dinheiro e nossos bens. Aliás, uma tradução legítima de 1Coríntios 13.5 é: “[O amor] não procura suas próprias coisas”. No entanto, isso é exatamente o que a maioria de nós tem: uma quantidade excessiva das próprias coisas. Nos Estados Unidos, segundo quase todas as estatísticas a esse respeito, os cristãos têm cada vez mais, porém dão cada vez menos.14 Nunca antes um número tão grande de pessoas teve tantas coisas e, apesar disso, deu tão pouco. O que nossa mesquinhez mostra é um fracasso em amar. Quanto menos insistimos em obter coisas da nossa maneira e quanto mais pomos as outras pessoas em primeiro lugar, menos gastaremos conosco e mais daremos para o ministério da igreja, para as necessidades dos pobres e para o trabalho do reino de Deus ao redor do mundo. Jonathan Edwards disse que é “o espírito de caridade” que nos predispõe, “por causa dos outros, a renunciar às nossas próprias coisas e abrir mão delas”.15 Não insistir na nossa vontade também tem implicações para a forma de usarmos nosso tempo, que pode ser o mais precioso de todos os nossos bens. Conforme você analisa sua agenda, faça esta pergunta: quanto do meu tempo é dedicado aos meus próprios objetivos e ambições e quanto dele é separado para fazer algo por alguma outra pessoa porque eu amo essa pessoa mais do que a mim mesmo? Enquanto tentamos amar do jeito que Jesus ama — não insistindo na nossa vontade —, devemos orar do jeito que Jesus orou: não “seja feita a minha vontade”, mas “seja feita a tua vontade”. Foi esse tipo de oração que inspirou Adelaide Pollard a escrever seu famoso hino de rendição a Deus. Em 1902, Pollard tinha esperança de ir para a África como missionária, mas não conseguia levantar fundos suficientes para fazer a viagem. Todos os seus planos sobre sua maneira de servir ao Senhor tinham caído por terra. Profundamente desanimada, ela participou de um culto de oração em que ouviu uma senhora idosa orar: “Na verdade não importa o que fazes conosco, ó Senhor. Apenas age da tua maneira em nossas vidas”.16 Naquela noite, Pollard foi para casa e escreveu: Como tu queres, Senhor, sou teu. Tu és o Oleiro, o barro sou eu. Quebra e transforma até que, enfim, tua vontade se cumpre em mim. Esse é o desejo do coração de todo aquele que quer amar do jeito que Jesus ama: que ele viva em nós de forma tão completa, que seu amor flua por meio de nós até a vida de outras pessoas. Isso nunca acontecerá enquanto continuarmos insistindo na nossa própria vontade, mas só quando fizermos o que Jesus fez e nos rendermos à vontade ao Pai. GUIA DE ESTUDO As crianças são naturalmente egocêntricas. Têm de ser ensinadas, bem gradualmente, a compartilhar e a pensar nas necessidades dos outros. Como adultos, é fácil pensar que já entendemos essas lições. Afinal, nós fazemos de fato coisas pelos outros e tentamos ter consideração por suas necessidades. Mas quantas vezes nós realmente nos esforçamos em favor dos outros a ponto de restringir nossas próprias necessidades e desejos? E quantas vezes nos sacrificamos em favor de um estranho ou de um inimigo? 1. Cite algumas situações em casa, na escola, no trabalho ou na igreja em que você pode dizer que, lá no fundo, está amando mais a si mesmo do que aos outros. Quais circunstâncias revelam seu egoísmo, em vez de sua autonegação? 2. Pense sobre a vida de Jesus e destaque algumas situações em que ele abriu mão de suas preferências e conforto por causa de seu amor pelos outros. 3. O ato altruísta supremo de nosso Salvador foi morrer pelos nossos pecados. Leia sobre o momento de decisão de Jesus, em Mateus 26.36-46. Que palavras a passagem usa para mostrar a intensidade da angústia de Jesus? Cite alguns dos motivos dessa grande angústia. Destaque o que se pode descobrir sobre Jesus com base nessa passagem e em outras. 4. Que desenvolvimento gradual você vê na oração de Jesus, entre Mateus 26.39 e 42? 5. Com base em Mateus 26.36-46, que princípios podemos aprender sobre a oração? 6. Por que é tão difícil amarmos os outros mais do que a nós mesmos? Cite alguns obstáculos que podem nos impedir de amar os outros de formadesinteressada. 7. Como a morte de Jesus na cruz se relaciona com nosso amor pelos outros? De que modo a consciência do amor de Jesus pode nos ajudar a amar os outros de forma mais altruísta? 8. Pense em seus compromissos para os próximos sete dias. Quanto do seu tempo é dedicado a você mesmo — ao seu bem-estar, objetivos, conforto e prazeres pessoais? Quanto do seu tempo é separado para os outros? Você está satisfeito com essa proporção? Em caso negativo, o que pode fazer para mudar essa situação? 9. Considere como gasta seu dinheiro. Você é mesquinho ou generoso quando toma consciência de pessoas com necessidades financeiras? Pense na última vez em que, para suprir as necessidades de outra pessoa, você teria que abrir mão de algo que desejava para si. O que você fez e por quê? 10. Cite uma maneira prática pela qual você pode pôr a si mesmo e a seus interesses de lado, para amar as pessoas que Deus colocou em seu caminho. Cite algo que você pode fazer para colocar alguém em primeiro lugar esta semana. 1Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 157 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 2Ibidem, p. 172. 3David E. Garland, First Corinthians, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker, 2003), p. 616. 4Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 638 [edição em português: 1Coríntios: comentário exegético, tradução de Marcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova, a ser publicado)]. 5Erich Fromm, citado em Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 46. 6Entrevista de Shirley MacLaine ao jornal Washington Post em 1977, citada em Charles R. Swindoll, Growing deep in the Christian life: essential truths for becoming strong in the faith (Grand Rapids: Zondervan, 1995), p. 89. 7C. S. Lewis, The four loves (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1960), p. 177 [edição em português: Os quatro amores, tradução de Paulo Salles (São Paulo: Martins Fontes, 2005)]. 8Richard Baxter, citado em J. C. Ryle, Expository thoughts on the Gospels, Luke (1858; reimpr., Cambridge: James Clarke, 1976), 2:427. 9Benjamin Breckinridge Warfield, “The emotional life of our Lord”, in: Samuel G. Craig, org., The Person and work of Christ (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1950), p. 132-3. 10John Calvin [João Calvino], citado em Alan Jacobs, org., Original sin: a cultural history (New York: Harper Collins, 2008), p. 170-1. 11Citado em Lewis, Four loves, p. 163. 12Amy Carmichael, If (London: SPCK, 1938), p. 82. 13Fee, The First Epistle, p. 631. 14Veja Christian Smith; Michael O. Emerson; Patricia Snell, Passing the plate: why American Christians don’t give away more money (Oxford: Oxford University Press, 2008). 15Edwards, Charity, p. 171. 16A história por trás do hino Have thine own way [Seja da tua maneira] é narrada em: “Sarah Pollard didn’t like her name”, Glimpses of Christian history, disponível em: http://www.christianity.com/ChurchHistory/11630530, [versão em português: Hinos do povo de Deus comentados, hino 194, disponível em www.luteranos.com.br/textos/hinos-do-povo-de-deus-comentados]. 9 O AMOR SUPORTA TODAS AS COISAS O amor suporta todas as coisas, persevera em todas as coisas. (1CO 13.7) Então, os soldados do governador levaram Jesus para o palácio [...] e cuspiram nele e apanharam a vara e bateram em sua cabeça. E, depois de terem zombado dele, despiram-lhe o manto e o vestiram com suas próprias roupas e o levaram embora para o crucificarem. (MT 27.27,30,31) Como diz o título do best-seller que é a autobiografia espiritual do evangelista romeno Richard Wurmbrand, o autor foi torturado por amor a Cristo. Judeu de nascimento, Wurmbrand entregou a vida a Jesus Cristo já perto dos trinta anos de idade e começou a pregar o evangelho alguns anos mais tarde, quando a União Soviética ocupou a Romênia e o comunismo empurrou o cristianismo para a clandestinidade. Indiferente ao perigo, Wurmbrand continuou pregando o evangelho. Pouco depois, foi sequestrado pela polícia secreta enquanto estava indo para a igreja, sendo mandado para a prisão, onde passou um total de catorze anos em cativeiro comunista. Ao longo dos inúmeros períodos no cárcere, Wurmbrand experimentou sofrimentos terríveis. Foi ridicularizado e espancado, foi submetido a queimaduras e congelamento, sofreu lavagem cerebral e todo tipo de violência. Por horas a fio os comunistas lhe diziam: “Ninguém mais ama você, ninguém mais ama você, ninguém mais ama você”. Apesar de seus muitos sofrimentos, Richard Wurmbrand se recusou a desistir de sua fé no evangelho, de sua esperança em Jesus Cristo ou de seu amor pelos próprios comunistas que o mantinham preso sob condições brutais. O que é que lhe permitiu suportar toda essa perseguição e perseverar em todo esse sofrimento? Simplesmente isto: o amor de Jesus. Aqui está é o que Wurmbrand escreveu sobre o que chamava de “derrotar o comunismo por meio do espírito amoroso de Cristo”: Presos na solitária, não conseguíamos mais orar como antes. Nossa fome era inimaginável; havíamos sido dopados até que ficamos como idiotas. Éramos só pele e osso. A Oração do Senhor era longa demais para nós. Não conseguíamos nos concentrar o suficiente para dizê-la. Minha única oração, repetida vez após vez, era: “Jesus, eu te amo”. E, então, em um dia glorioso, recebi a resposta de Jesus: “Você me ama? Agora eu lhe mostrarei como eu o amo”. Naquele instante, senti em meu coração uma chama que ardia como o sol [...] Eu conheci o amor daquele que deu sua vida na cruz por todos nós. 1 Wurmbrand observou o mesmo amor agindo na vida dos companheiros de prisão que também declaravam seguir a Cristo: Nas prisões comunistas, vi cristãos com correntes de 50 quilos presas nos pés, torturados com barras de ferro incandescentes, forçados a engolir colheradas de sal, sendo depois disso mantidos sem água, morrendo de fome, chicoteados, sofrendo de frio e orando com fervor pelos comunistas. Isso é humanamente inexplicável! É o amor de Cristo, que foi derramado em nosso coração. 2 O QUE O AMOR SOFRE O apóstolo Paulo poderia dar o mesmo testemunho, com base em experiências parecidas de sofrimento por causa de Cristo. Ele também foi posto na prisão por pregar o evangelho. Paulo foi espancado e maltratado, escarnecido e torturado. No entanto, em meio a tudo isso, ele cria que era um privilégio sofrer por amor ao seu Salvador. O apóstolo nunca parou de viver para Cristo nem de conduzir amorosamente as pessoas até o reino de Deus. De modo que aquilo que escreveu aos coríntios era uma verdade que havia comprovado por experiência própria: “O amor suporta todas as coisas” e “persevera em todas as coisas” (1Co 13.7). Essas palavras aparecem perto do fim do retrato que Paulo faz do amor no Capítulo do Amor na Bíblia. Nos versículos 1 a 3, o apóstolo começou declarando que não somos nada sem o amor. Ele prosseguiu, nos versículos 4 a 6, relacionando algumas das coisas que o amor faz e outras que ele não faz. Então, no versículo 7, ele nos diz que o amor está disposto a sofrer. A palavra “suportar” (gr., stegei) tem gerado bastante debate entre os estudiosos, porque existem várias maneiras diferentes de traduzi-la. Charles Hodge explicou assim duas das principais possibilidades: “Isso pode significar que aguenta em silêncio todos os aborrecimentos e problemas, ou então que oculta todas as coisas, no sentido de esconder ou desculpar as falhas dos outros, em vez de ter prazer em divulgá-las”.3 Consideremos primeiramente a segunda possibilidade. A palavra grega stegei pode significar “cobrir” ou “manter escondido”, pois é um verbo estreitamente ligado ao substantivo “telhado”. Nessa interpretação,a ideia seria que o amor sabe quando deve manter as coisas ocultas ou em sigilo. Embora Pedro não tenha usado a mesma terminologia, expressou uma ideia parecida quando escreveu: “Acima de tudo, continuem amando com empenho uns aos outros, visto que o amor cobre uma multidão de pecados” (1Pe 4.8). É claro que existem momentos em que o pecado precisa ser exposto publicamente para a glória de Deus e para o verdadeiro bem da pessoa que pecou. Para dar um exemplo bíblico bem conhecido, quando Acã pecou por roubar bens que pertenciam a Deus, depois da batalha de Jericó, Josué expôs o pecado cometido e lhe deu oportunidade de glorificar a Deus mediante uma confissão pública (veja Js 7). Contudo, há também muitas ocasiões em que o amor exige que tratemos com o pecado de uma forma mais privada. É nesses momentos, escreve Lewis Smedes, que “o amor tem o bom senso de quando deve manter a boca fechada”.4 Isso explica por que uma parte tão grande do trabalho de pastores e outros líderes espirituais acontece a portas fechadas. O amor oculta as coisas, não com o objetivo de esconder o que deveria ser revelado, mas de proteger alguém que precisa de tempo para se curar; daí a tradução bastante livre na New International Version: “O amor sempre protege”. Essa, no entanto, não é a única maneira de traduzir o versículo. A palavra stegei também pode significar sustentar, no sentido de transportar uma carga pesada. Nessa interpretação, o amor sustenta ou apoia outras pessoas em tempos de dificuldade. É capaz de suster “todos os fardos, privações, problemas, dificuldades e labutas criados por outros”.5 Quando as outras pessoas estão lutando, o amor as sustenta, assim como paredes e vigas sustentam o telhado de um prédio. Com certeza, esse é o tipo de amor que Deus mostrou por nós em Jesus Cristo, que “suportou nossas aflições e levou nossas tristezas” (Is 53.4). Jesus realizou o trabalho pesado da nossa salvação. A Bíblia diz que “ele suportou o pecado de muitos” (v. 12) e que “ele próprio levou nossos pecados em seu corpo no madeiro” (1Pe 2.24). Jesus nos amou quando carregou o peso do nosso pecado para que pudéssemos ser perdoados. Os dois significados que consideramos até aqui são possíveis, mas uma terceira interpretação é a mais provável de todas. Ela interpreta que a palavra grega stegei significa “suportar”, no sentido de sofrer pacientemente todas as dificuldades resultantes de lidar com outras pessoas, inclusive pessoas que tentam nos fazer mal. Uma coisa é estar ao lado das pessoas para ajudá-las a carregar seus fardos, como o amor certamente faz. Outra coisa — com frequência mais difícil — é enfrentar com paciência todas as dores que surgem em nosso caminho quando as pessoas nos atacam. Ainda assim, o amor consegue aguentar qualquer coisa e continuar amando. Está disposto, disse Jonathan Edwards, “a se submeter a todos os sofrimentos por amor a Cristo”.6 Essa é a tradução mais provável, porque é como Paulo usa o termo stegei em todas as outras passagens, inclusive anteriormente em 1Coríntios. Lá atrás, no capítulo 9, enquanto explicava e defendia seu ministério, Paulo disse: “Perseveramos em todas as coisas, em vez de colocar obstáculo no caminho do evangelho de Cristo” (v. 12). Ao dizer isso, Paulo não estava falando de carregar os fardos de outras pessoas, mas de suportar críticas pela causa de Cristo. O amor está pronto a aguentar todas as coisas por causa do evangelho. O que Paulo diz no final de 1Coríntios 13.7 é semelhante: o amor “persevera em todas as coisas”. Existe alguma diferença real entre “suportar todas as coisas” e “perseverar em todas as coisas”? As ideias estão intimamente relacionadas, mas, se há uma diferença, é possível que Charles Hodge estivesse certo quando disse que suportar todas as coisas tem relação com “aborrecimentos e problemas”, ao passo que perseverar em todas as coisas está relacionado com “sofrimento e perseguições”.7 Hodge também destacou que a palavra traduzida por “perseverança” — o verbo grego hypomenei — é um termo militar que significa “permanecer firme diante do ataque de um inimigo”. A pessoa com esse tipo de amor é capaz de resistir aos “ataques de sofrimento ou perseguição, no sentido de permanecer firme diante deles e perseverar neles com paciência”.8 Muitos comentaristas têm destacado que essa persistência não é meramente passiva, mas também exige coragem ativa. Ela “não é uma aquiescência paciente e resignada, mas uma força moral ativa e positiva. É a resistência do soldado que, no ardor da batalha, não se deixa abalar”.9 É “a capacidade de viver com vitalidade, se não vitoriosamente, em face do mal”.10 Esse tipo de resistência aparece em outras passagens das epístolas do Novo Testamento, tipicamente no contexto de perseguição que só é possível perseverar com grande coragem. Em sua carta seguinte aos coríntios, Paulo escreve que ele mesmo havia perseverado nas “aflições, dificuldades, perdas, espancamentos, prisões, tumultos, labutas, noites sem dormir, fome” (2Co 6.4,5). Mas ele também lhes diz como foi capaz de perseverar em tudo aquilo: pelo “Espírito Santo” e por “amor genuíno” (v. 6). Isso mesmo, é o amor que nos capacita a perseverar: amor a Deus e aos nossos inimigos, que jamais virão a Cristo, a menos que lhes mostremos o seu amor. Como Paulo escreveu posteriormente a Timóteo, ao explicar por que jamais cedeu nem desistiu, mas continuou servindo ao Senhor até o fim da vida: “Suporto todas as coisas por causa dos eleitos, para que eles também obtenham a salvação que está em Cristo Jesus com glória eterna” (2Tm 2.10). Por causa do evangelho, o amor sempre persevera. O amor “não falhará”, disse Jonathan Edwards, “mas prosseguirá [...]. Quaisquer que sejam as agressões feitas contra ele, ainda assim e apesar de tudo, ele permanece e persevera, e não cessa, mas continua firme e prossegue com constância, perseverança e paciência”.11 O SALVADOR EM SOFRIMENTO Jamais houve e jamais haverá um exemplo mais claro ou mais convincente de amor perseverante do que o amor que Jesus mostrou quando foi para a cruz. Já que 1Coríntios 13 é lido com tanta frequência em cerimônias de casamento, muitas pessoas associam a passagem ao casamento. Apesar disso, quanto mais estudamos o que esses versículos ensinam sobre o amor, mais claro se torna que na realidade eles tratam de morte e sacrifício. A imagem predominantemente associada a esses versículos não é o vestido de noiva, mas a cruz.12 Quando João Crisóstomo pregou sobre 1Coríntios 13.7, ele disse que “o amor suporta todas as coisas, ainda que causem aflição ou angústia, ainda que sejam insultos, açoites ou mesmo a morte”.13 Essas são justamente as coisas que Jesus sofreu por nós enquanto caminhava para a cruz e na própria cruz, onde deu a vida pelos pecados do mundo. De uma certa perspectiva, a vida toda de Cristo foi marcada pelo sofrimento: sua descida da glória, seu nascimento em um estábulo improvisado, seu exílio no Egito, a tentativa de homicídio em sua própria cidade natal e depois suas andanças na terra sem ter onde se abrigar. Por fim, seus passos exaustos o levaram até o jardim do Getsêmani, onde, em suor sangrento, ele sofreu profundamente com a crucificação que se aproximava. Jesus sofreu a vida inteira, mas os maiores horrores foram reservados para a última noite de sua vida mortal e para o dia em que morreu. Enquanto orava no jardim com seus discípulos adormecidos, Jesus foi traído com um beijo. Embora fosse bem no meio da noite, a polícia do templo o arrastou até a presença do sumo sacerdote para enfrentar um julgamento judaico. Ali, foi acusado falsamente e condenado injustamente sob a acusação de blasfêmia. Em seguida, na primeira luz do alvorecer, Jesus foi levado à presença de Pôncio Pilatos, o governador romano. Pelo que Pilatos conseguia perceber, Jesus era inocente. Ainda assim, os judeus continuaram gritando para que fosse condenado, de maneiraque o governador o mandou para o rei Herodes, que tinha jurisdição sobre a Galileia. Antes que Pilatos se desse conta, Jesus estava de volta ao seu palácio. Todo mundo estava gritando: “Crucifique! Crucifique!”. Por fim, o governador cedeu: Então, quando Pilatos viu que não estava ganhando nada, mas que, na verdade, estava se iniciando um tumulto, ele pegou água e lavou as mãos diante da multidão, dizendo: “Sou inocente do sangue deste homem; cuidem vocês mesmos disso”. E todo o povo respondeu: “Seu sangue caia sobre nós e nossos filhos!”. Em seguida, ele lhes soltou Barrabás e, tendo açoitado Jesus, o entregou para ser crucificado (Mt 27.24-26). Poucas coisas causam sofrimento maior do que a condenação injusta de um inocente. Contudo, isso é apenas parte daquilo que nosso Salvador teve que suportar, daquilo em que seu amor foi obrigado a perseverar pela nossa salvação. Até mesmo seu juiz sabia que ele era totalmente inocente. No entanto, Jesus foi considerado culpado de um crime passível de morte e condenado à execução. Ao longo dos seus vários julgamentos, Jesus foi submetido a tortura física. Mateus nos conta que Pilatos mandou que fosse açoitado. Talvez o governador esperasse aplacar os líderes judeus ao torturar Jesus, em vez de matá-lo. Nesse caso, o açoite romano era um instrumento ideal de maus- tratos, um castigo cruel (talvez incomum). Pedaços de metal ou osso eram amarrados em tiras de couro, e esse chicote vergastava as costas do preso, dilacerando-as. A tortura era tão intensa que alguns presos morriam antes de ser crucificados.14 O que havia acontecido com Jesus até esse momento era um erro judicial tão grande, que é difícil encontrar palavras adequadas para descrever o horror do que ele sofreu. Mas o que aconteceu em seguida foi ainda pior: Jesus foi pública, verbal, emocional e fisicamente maltratado por um batalhão inteiro de soldados. Quando eu era criança, muitas vezes folheava um livro de pinturas que retratavam a vida de Cristo. Uma das obras- primas exercia enorme fascínio sobre mim: uma pintura com imagens disformes, feita por Hieronymus Bosch, intitulada Christ mocked (Crowning with thorns) [Cristo ridicularizado (Coroação com espinhos)]. Os homens ao redor do Cristo de Bosch têm uma expressão cruel no rosto. Um soldado com um punho de ferro segura uma coroa de espinhos, que ele está prestes a enterrar na cabeça inocente de Jesus. Um velho enrugado olha para cima, para o Salvador, com olhos ávidos, ansiosos por vê-lo sofrer. Outro homem pega a ponta de seu manto, pronto para arrancá-lo e deixar Jesus nu. Com óleo sobre madeira, Bosch procurou transmitir a cena repulsiva que Mateus descreveu em seu Evangelho: Então, os soldados do governador levaram Jesus para o palácio e reuniram o batalhão inteiro diante dele. Eles o despiram, puseram nele um manto de cor escarlate, fizeram uma coroa de espinhos entrelaçados, a qual puseram em sua cabeça, e colocaram uma vara na sua mão direita. E, ajoelhando-se diante dele, zombaram dele, dizendo: “Salve, rei dos judeus!”. E, cuspindo nele, apanharam a vara e bateram com ela em sua cabeça (v. 27-30). Para entender o que o Filho de Deus amorosamente suportou por nossa salvação, é preciso nos determos em alguns desses detalhes. A situação toda tinha o propósito de intimidar e aviltar o preso, submetendo-o a maus-tratos físicos e à ridicularização pública. Quando o batalhão inteiro estava reunido, os soldados sabiam que estavam ali para o que chamavam de “diversão”. Primeiro despiram Jesus, deixando-o totalmente nu. Na carne desnuda de sua verdadeira humanidade, o Filho de Deus ficou totalmente vulnerável à dor física. Golpeiem sua carne, e ela ficará machucada. Furem sua cabeça, e ela sangrará. Acrescente-se a isso o sofrimento emocional de estar nu diante de uma multidão perversa. Então, os soldados começaram a zombar de Jesus, ridicularizando sua afirmação de ser rei. Um rei deve usar uma coroa, então eles apanharam alguns espinhos e improvisaram um diadema. Enterrando-o em sua cabeça, arrancaram sangue de sua fronte real. Um rei deve ter um manto, então eles o cobriram de cor escarlate. Um rei deve segurar um cetro, então colocaram uma vara comprida em sua mão direita. Um rei deve ter súditos para governar, então os soldados se ajoelharam, fingindo prestar honras, e disseram: “Salve, rei dos judeus!”. Dessa maneira, os soldados ridicularizaram Jesus por ser quem realmente era: o rei de Israel. Essa é a tática mais cruel do intimidador. Quando um calouro sofre trote por ser calouro, quando o membro de um grupo é ameaçado por ser membro do grupo, quando alguém baixo ou gordo ou deficiente físico é caçoado por ser baixo ou gordo ou deficiente físico, não existe nenhuma defesa. Quando alguém é ridicularizado por ser quem é, não lhe resta nenhuma alternativa, exceto sofrer mais maus-tratos. Contudo, a zombaria que Jesus recebeu não se limitou ao seu ministério régio. À medida que acompanhamos seus sofrimentos, nós o vemos ser ridicularizado por quase todos os aspectos centrais de sua pessoa e obra. Jesus foi escarnecido como profeta. Quando estava sob custódia dos judeus, os guardas da prisão vendaram seus olhos, deram socos nele e então disseram: “Profetize! Quem é que o golpeou?” (Lc 22.64). Mais tarde, ele foi ridicularizado por ser filho do Pai. Seus importunadores disseram: “Se você é o Filho de Deus, desça da cruz” (Mt 27.40). Em seguida zombaram dele pelos seus milagres e poder salvador. “Salvou os outros”, disseram os líderes religiosos, mas “não consegue se salvar” (v. 42). Zombaram até mesmo de sua fé: “Ele confia em Deus; se Deus lhe quer bem, que o livre agora” (v. 43). Todos esses eram motivos para Jesus ser exaltado, não humilhado! Jesus é o Rei dos reis, o profeta do Deus Altíssimo, o operador de milagres, o Filho de Deus, o Salvador. Todavia, em vez de ser louvado por sua régia majestade e poder salvador, o verdadeiro Filho de Deus sofreu insultos cruéis de homens perversos. Por isso, quando nós mesmos somos ofendidos com palavras, não devemos jamais imaginar que ninguém consegue entender o que já passamos. Jesus entende. O Homem de Dores suportou o mesmo tipo de sofrimento enquanto seguia para a cruz. A etapa seguinte foram as cusparadas. Alguém já cuspiu em sua cara? Cuspir é um sinal universal de menosprezo. É um dos atos mais repulsivos, humilhantes e desrespeitosos que alguém pode cometer contra outrem. No entanto, foi exatamente assim que o Filho de Deus foi tratado quando se fez homem. Ponha isso na nossa conta, juntamente com todos os outros pecados hediondos da raça humana: nós cuspimos na cara de Jesus. Mas isso não é tudo. Por fim, os soldados de Pilatos, cansados de apenas ofender com palavras e imitar uma coroação, tornaram-se violentos. Isso é característico de quem maltrata: a menos que alguém interfira, o agressor machuca cada vez mais, até que finalmente passa a ameaçar a própria vida de sua vítima. De maneira que os soldados tomaram a vara que haviam dado a Jesus — seu cetro improvisado — e começaram a bater com ela em sua cabeça. Esses homens eram brutais, sádicos e desumanos. SOFRENDO IGNOMÍNIA, MAS SEM PECADO Você consegue ver o régio Filho de Deus de pé, diante dos soldados cruéis, com seu manto escarlate, com uma coroa na cabeça e com sangue e cuspe no rosto? Mas nem isso foi o pior de tudo, porque, “depois de terem zombado dele, despiram-lhe o manto, vestiram-no com suas próprias roupas e o levaram embora para o crucificarem” (v. 31). Tudo o mais que Jesus sofreu foi apenas um prelúdio de seu maior sofrimento, que ele suportou na cruz. A crucificação era uma maneira dolorosa de morrer — uma das formas mais cruéis de execução já inventadas. Pregos foram fincados nas mãos e nos pés do Salvador. Em seguida, ergueram a cruz áspera de madeira e a deixaram se encaixar pesadamente no chão. Jesus ficou ali pendurado até que seus pulmões foram esmagadose o sangue foi drenado de seu corpo. A crucificação também era uma maneira vergonhosa de morrer. As pessoas condenadas à cruz eram crucificadas nuas para mostrar que a sociedade as desprezava. Mas a lei de Deus dizia algo ainda pior, como qualquer judeu devoto devia saber. De acordo com Deuteronômio, qualquer um que for pendurado em um madeiro é amaldiçoado por Deus (21.22,23; veja também Gl 3.13). Essa foi a maldição que Jesus experimentou na cruz, quando foi abandonado por seu Pai. Foi a maldição do juízo de Deus, a qual ele suportou para nossa salvação. Nas palavras de um hino clássico de autoria de Philip Bliss: “Suportando vergonha e zombaria grosseira, em meu lugar ele foi condenado, com seu sangue selou meu perdão: Aleluia! Que Salvador!” Jesus aguentou a dor e a vergonha de sua crucificação com coragem majestosa. A Escritura diz que ele “suportou a cruz, desprezando a vergonha” e aguentou “a reprovação” (Hb 12.2; 13.13). Jesus não apenas sofreu essas coisas, mas corajosamente as suportou, indo até o fim, até a morte, sem pecar ou se queixar. Conforme predito pelo profeta Isaías: “Ele foi oprimido e estava aflito, mas ainda assim não abriu a boca” (53.7). E isso foi confirmado pelo apóstolo Pedro: “Ele não cometeu nenhum pecado, nem se achou engano em sua boca. Quando foi insultado, não revidou com ofensa; quando sofreu, não ameaçou” (1Pe 2.22,23). A obediência de nosso Senhor para perseverar em todas essas coisas sem pecado é apresentada com doçura nas palavras de um cântico afro-americano: Crucificaram meu Senhor, e ele nunca disse uma palavra de resmungo. Crucificaram meu Senhor, e ele nunca disse uma palavra de resmungo. Nem uma palavra — nem uma palavra — nem uma palavra. 15 O silêncio de Jesus foi fundamental, porque, para expiar nossos pecados, ele tinha de oferecer um sacrifício perfeito. Desse modo, perseverar sem queixas era uma parte necessária da obediência a Deus que ele ofereceu para a nossa salvação. Foi também a prova de seu amor. Por que Jesus sofreu a dor e a vergonha da cruz? Ele fez isso porque nos ama. Foi necessariamente por amor, porque a Bíblia diz que existe uma única coisa em todo o mundo que tem o poder de suportar tudo e perseverar em tudo, assim como fez Jesus, e tal coisa é o poder do amor. PERSEVERANDO COMO JESUS Se somos os destinatários do amor perseverante do Filho de Deus, qual deve ser nossa reação? Devemos, antes de tudo, reagir com fé salvadora, crendo de modo pessoal que, quando Jesus morreu na cruz, ele o fez por nós, tanto quanto por todos os demais. Não temos de aguentar a culpa de nossos próprios pecados, mas pela fé podemos transferir esse fardo para o Filho de Deus, que “nos amou e se entregou por nós” (Ef 5.2). Uma troca aconteceu — a troca do amor —, com a qual Jesus deu sua vida por nossos pecados. Creia nisso, e pela fé você receberá o dom gratuito da vida eterna. Em segundo lugar, devemos reagir com gratidão amorosa. Para agradecer devidamente a Jesus por nossa salvação, precisamos incluir mais do que apenas a cruz. Precisamos incluir toda a violência e maus-tratos que ele suportou enquanto ia para cruz: o despimento e o espancamento, a zombaria e as cusparadas. Você já agradeceu especificamente a Jesus pela humilhação régia que ele sofreu por você? No livro The hiding place, Corrie ten Boom escreve sobre a lição de gratidão evangélica que ela e sua irmã Betsie aprenderam quando estavam na fila para a inspeção médica semanal em um campo de concentração nazista: Eu tinha lido milhares de vezes a história da prisão de Jesus — como os soldados o esbofetearam, riram dele, chicotearam-no. Agora esses acontecimentos tinham rostos e vozes. A sexta-feira era o dia da recorrente humilhação da inspeção médica [...] [Nuas,] tínhamos de nos manter aprumadas com as mãos uma em cada lado, enquanto passávamos lentamente por um grupo de guardas com largos sorrisos. [...] Mas foi em uma dessas manhãs, enquanto esperávamos e tremíamos de frio no corredor, que mais uma página da Bíblia ganhou vida para mim. Ele estava pendurado nu na cruz. Eu não tinha entendido — eu não tinha pensado. [...] As pinturas, os crucifixos esculpidos mostravam pelo menos um pedaço de pano. Mas isso — de repente percebi — foi por respeito e por reverência por parte do artista. Mas ah! — quando o fato realmente aconteceu, naquela outra manhã de sexta-feira — não houve nenhuma reverência. Não houve mais reverência do que a que agora eu via nos rostos ao nosso redor. Inclinei-me na direção da Betsie, à minha frente na fila. Suas omoplatas, angulosas e delgadas, se destacavam debaixo de sua pele com manchas azuladas. — Betsie, eles tiraram as roupas dele também. Ouvi um pequeno suspiro à minha frente. — Ah, Corrie! E eu nunca agradeci a ele. 16 Assim como Betsie ten Boom entendeu instantaneamente, sermos verdadeiramente gratos pelo dom da nossa salvação significa dizer a Jesus como somos gratos por tudo o que suportou. É dizer: “Eu te amo, Jesus, pelos espancamentos e machucados que suportaste para a minha redenção. Obrigado pelo sangue em tua fronte, pelo cuspe em teu rosto e pelo amor imperecível em teu coração!”. Finalmente — e esta talvez seja a parte mais difícil —, reagimos ao amor de Jesus amando outras pessoas do jeito que ele ama. Como poderíamos chegar a suportar a perseguição ou perseverar na opressão sem o amor de Jesus? Se somos capazes de perseverar no sofrimento pela causa de Cristo, esse é um sinal claro de que a graça de Deus Espírito Santo está operando de maneira poderosa, dando-nos o amor de Jesus. O apóstolo Pedro disse que, se perseveramos no sofrimento por causa de Jesus, isso é algo precioso aos olhos de Deus (1Pe 2.20). Isso não significa que todos nós somos chamados a dar a vida da mesma maneira que Jesus deu, ou que é errado usarmos formas piedosas para nos protegermos de maus- tratos pecaminosos. Mas significa, sim, que o amor é capaz de aguentar muitas dificuldades e suportar muitos sofrimentos por amor de Jesus. Em seguida, Pedro disse: “Pois para isso vocês têm sido chamados, porque Cristo também sofreu por vocês, deixando-lhes exemplo, para que vocês possam seguir em seus passos” (v. 21). Qual é a circunstância de vida que Deus está chamando você a suportar? Para alguns cristãos, seu chamado para sofrer é debaixo da opressão de um governo hostil ao evangelho. Alguns de nós sofrem na escola, onde somos ridicularizados por seguir a Cristo. Alguns de nós sofrem no trabalho, onde pessoas cultivam atitudes de queixas constantes que são difíceis de suportar ou fazem comentários maldosos que são penosos e nos quais é difícil perseverar. E existem também todos aqueles problemas que temos em nossas famílias — com nossos pais, nossos cônjuges, nossos filhos — ou em outros relacionamentos próximos. Há pessoas que nos têm prejudicado. Elas nos têm ferido com palavras maldosas e nos agredido com golpes dolorosos, quer físicos, quer psicológicos. Como seria possível suportar essas pessoas a ponto de amá-las? Só o amor de Jesus pode nos capacitar a continuar amando as pessoas quando é doloroso amá-las. As pessoas às vezes dizem: “Sei que Deus nunca me dará mais do que consigo suportar”. Na verdade, há momentos em que Deus nos dá, sim, mais do que achamos que conseguimos suportar. Mais cedo ou mais tarde, todos nós sofremos perdas insuportáveis, ou enfrentamos problemas insolúveis, ou temos de lidar com pessoas impossíveis. Mas, embora Deus possa nos dar mais do que podemos suportar, ele nunca nos dá mais do que ele consegue suportar. Não estamos sozinhos. Jesus está conosco — o Salvador que sofreu todo tipo de maus-tratos, inclusive a morte por tortura. Isso não diminui necessariamente nossa dor nem resolve todos os nossos problemas imediatamente, mas com certeza significa que não temos de suportar sozinhos todas as coisas nem perseverar sozinhos em todas as coisas. O amor de Jesus nos ajudará a perseverar.Quanto mais conhecemos seu amor — o amor do nosso Rei sofredor e salvador —, mais somos capazes de suportar todas as coisas por ele. GUIA DE ESTUDO Amar os outros é suportá-los, perdoando-os pelas feridas que nos infligem, tanto consciente quanto inconscientemente. Às vezes, a tolerância não exige nada mais do que ignorar a grosseria ou o comportamento desrespeitoso deles. Outras vezes, o custo é muito maior. Ao nos dizer que o amor suporta as coisas, Paulo aborda todo o espectro de sofrimentos que talvez tenhamos de suportar nas mãos de outros. 1. O capítulo 9 oferece dois sentidos possíveis para “suportar todas as coisas”: aguentar em silêncio aborrecimentos e incômodos e esconder e perdoar as falhas de outra pessoa, em vez de expô-las. Descreva uma ocasião em que alguém amorosamente aguentou as suas falhas. Como você se sentiu com isso? Que impacto isso teve em seu relacionamento? 2. O mais provável é que 1Coríntios 13.7 esteja falando do amor que suporta com paciência as feridas que fazem parte da maioria dos relacionamentos. Que ofensas e injustiças específicas você tem de suportar? Quais fardos são mais difíceis de carregar? 3. Leia Mateus 26.45-50,59-68 e Mateus 27.27-31. O que Jesus suportou por nós em suas horas finais, antes da crucificação? Faça uma lista de todos os sofrimentos, tanto físicos quanto psicológicos, descritos nessas passagens. 4. De acordo com Mateus 26.45-50,59-68 e Mateus 27.27- 31, por que motivo zombaram de Jesus? 5. A pior maldição que Jesus suportou foi a cruz, talvez a forma mais dolorosa de tortura jamais concebida e uma maneira vergonhosa de morrer (veja Dt 21.22,23). Leia Isaías 53.2-12. Que palavras são usadas nessa passagem para descrever o que Jesus aguentou por nossos pecados? De acordo com essa passagem, como Jesus reagiu a esses insultos e sofrimentos? 6. Que coisas boas Isaías profetiza que seriam resultado do sofrimento de Jesus na cruz? 7. Como Isaías 53.2-12 pode nos incentivar e desafiar, quando sofremos por causa de mágoas causadas pelos outros? 8. Você já agradeceu a Jesus por todas as coisas que ele aguentou por você na cruz? Volte a Isaías 53 e agradeça a Jesus especificamente por todo sofrimento e angústia que ele suportou em seu lugar. 9. Às vezes, não é um gesto verdadeiramente amoroso suportar em silêncio as falhas dos outros. Algumas coisas precisam ser expostas para que possam ser devidamente tratadas, e por vezes precisamos nos proteger de atos que constituem puro abuso. Quais são os critérios que devemos usar na hora de decidir quando levar os problemas de um ente querido a uma terceira pessoa — um pastor, um conselheiro ou alguma outra pessoa que esteja envolvida na situação? 10. Quando você tem de suportar golpes que parecem impossíveis de suportar, o que lhe dá condições de ir em frente? No nível prático, quais estratégias você emprega para ajudá-lo a lembrar-se de confiar em Jesus? 1Richard Wurmbrand, Tortured for Christ (1967; reimpr., Glendale: Diane Books, 1976), p. 58 [edição em português: Torturado por amor a Cristo: narrativa dos sofrimentos e do testemunho da igreja secreta nos países atrás da Cortina de Ferro, 7. ed., tradução de Israel Gueiros Filho (São Paulo: A. D. Santos, 1998)]. 2Ibidem, p. 57. 3Charles Hodge, An exposition of the First Epistle to the Corinthians (reimpr., London: Banner of Truth, 1958), p. 271; grifo no original. 4Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 86. 5H. A. W. Meyer, citado em Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1058. 6Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 251 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 7Hodge, Exposition, p. 271. 8Ibidem. 9Leon Morris, The First Epistle of Paul to the Corinthians, Tyndale New Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), p. 186 [edição em português: 1Coríntios: introdução e comentário, tradução de Odayr Olivetti, Série Cultura Bíblica (São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1981)]. 10Smedes, Love within limits, p. 112. 11Edwards, Charity, p. 286. 12Josh Moody destacou essa ideia em um sermão pregado em 19 de setembro de 2010, na igreja College Church, em Wheaton, nos Estados Unidos. 13John Chrysostom [João Crisóstomo], “Homilies on the Epistles of Paul to the Corinthians”, 32.6, citado em Gerald Bray, org., New Testament,1—2 Corinthians, Ancient Christian Commentary on Scripture (Downers Grove: InterVarsity, 2003), vol. 7, p. 133. 14James Montgomery Boice, The Gospel of Matthew, (Grand Rapids: Baker, 2001), vol. 2: The triumph of the King: Matthew 18-28, p. 610. 15Esse spiritual, tipo de hino ou canção de louvor cantada por negros do sul dos EUA, é citado por John Lovell Jr. em Black song: the forge and the flame (New York: Paragon, 1972), p. 467. 16Corrie ten Boom; John Sherrill; Elizabeth Sherrill, The hiding place (Washington Depot: Chosen, 1971), p. 178-9 [edição em português: O refúgio secreto, 2. ed., tradução de Myrian Talitha Lins, Clássicos Betânia (Belo Horizonte: Betânia, 2000)]. 10 O AMOR CONFIA O amor crê em todas as coisas. (1CO 13.7) Então, Jesus, gritando em alta voz, disse: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!”. E, tendo dito isso, deu seu último suspiro. (LC 23.46) Você ainda confiaria em Deus se...? Você ainda confiaria em Deus se tivesse de deixar a família para trás e viajar para o outro lado do mundo a fim de seguir o chamado de Deus para a sua vida? E se você seguisse esse chamado e seus planos de servir a Deus fracassassem? Nessa situação você ainda confiaria nele? O que aconteceria se você fosse abandonado e acabasse sozinho? E se você tivesse que morrer uma morte miserável? Então, como ficaria? Você ainda confiaria em Deus se estivesse a ponto de perder tudo o que tinha na vida, inclusive a própria vida? Em 7 de setembro de 1850, sete missionários britânicos zarparam de Liverpool. Liderados pelo capitão Allen Francis Gardiner — um condecorado veterano da Real Marinha Britânica —, o destino deles era a Patagônia, no extremo sul da América do Sul. Tinham provisões para seis meses e grandes esperanças para a obra do evangelho e do reino de Deus. Apesar disso, a viagem terminou em fracasso total. Os nativos eram hostis. O clima era severo e implacável. O navio de reabastecimento não conseguiu chegar antes que fosse tarde demais. Os missionários morreram, um a um, de fome. O médico do grupo era Richard Williams, e, quando seu corpo foi mais tarde resgatado, a equipe de busca encontrou também o seu diário. A última página era o testemunho agonizante da fé imortal do médico em Jesus Cristo. Imagine o homem encolhido no casco de seu pequeno bote, sofrendo de escorbuto e escrevendo as seguintes palavras como seu derradeiro testamento: Caso alguma coisa me impeça de acrescentar algo a isso, quero que meus queridos lá em casa tenham certeza de que eu estava feliz, muito mais do que consigo expressar, na noite em que escrevi essas linhas e de que eu não trocaria minha situação pela de nenhum homem. Que também tenham a certeza de que minhas esperanças estavam transbordando de imortalidade; de que o céu e o amor e Cristo, que são a mesma coisa divina, eram a minha alma; de que a esperança da glória enchia todo o meu coração de alegria e satisfação; e de que para mim o viver é Cristo e o morrer é ganho. 1 Richard Williams confiava em Deus, não importava o que viesse a acontecer. Nenhum se na vida ou na morte jamais o forçaria a abandonar sua fé. Até o fim, ele creu no amor de Deus, na glória de Jesus Cristo e na esperança da vida eterna. Seu diário é, portanto, um testemunho duradouro da verdade de 1Coríntios 13.7: o amor sempre crê. TODAS AS COISAS, DE TODAS AS MANEIRASA tradução bíblica English Standard Version diz: “O amor [...] crê em todas as coisas”. Isso não significa que o amor vai acreditar em tudo, sem exceção. O amor não é tão ingênuo a ponto de acreditar em algo que é logicamente impossível, ou que engana a fé, ou que é contra a santa vontade de Deus. Pelo contrário, é a pessoa que não ama a Deus que tem maior probabilidade de ser enganada por falsidade espiritual. Quando as pessoas deixam de crer no único Deus verdadeiro, isso não quer dizer que passaram a não crer em absolutamente nada, mas que creem em quase tudo! Ainda tendo esperanças de vida eterna, creem, por exemplo, em reencarnação ou em preservação criogênica. Quer imaginem que voltarão à vida como alguém totalmente diferente, quer imaginem que cientistas futuros conseguirão reaquecê-las e trazê-las de volta à existência, o fato é que creem em qualquer coisa que lhes dê a esperança da imortalidade. Ou, para dar outro exemplo, muitos ateus acreditam que a ciência é o único meio de chegar ao conhecimento e que os seres humanos não têm alma — mas apenas substâncias químicas no cérebro. Ao crerem nisso, deixam de lado muitas outras coisas imateriais que também dão sentido à vida. Então, o que a Bíblia quer dizer quando afirma que “o amor crê em todas as coisas”? Alguns comentaristas pensam que esse versículo nos ensina a amar outras pessoas o suficiente para acreditar no melhor a respeito delas. Essa interpretação remonta a Agostinho. Em vez de simplesmente aceitar cada palavra de rumores maliciosos que chegam até nós, devemos proteger a reputação das pessoas que somos chamados a amar, inclusive de nossos inimigos. Dizer que o amor “crê em todas as coisas”, escreve Leon Morris, é dizer que o amor “está sempre pronto a levar em conta as circunstâncias e enxergar o melhor nos outros”.2 O amor dá às pessoas o benefício da dúvida. Em vez de supor o pior sobre elas e de chegar a nossas próprias conclusões sobre os motivos ocultos, o amor sempre tenta crer no melhor. Por esse motivo, Lewis Smedes contrasta o amante com o cético, que basicamente se recusa totalmente a crer em qualquer coisa, mas sempre suspeita o pior a respeito das outras pessoas. Quando vê pessoas fazerem algo altruísta, o cético tende a pensar que elas estão agindo por interesse próprio. Em vez de correr o risco de que outros o firam ou tirem vantagem dele, o cético se abstém de amar verdadeiramente outras pessoas. Mas o texto de 1Coríntios 13.7 diz que devemos nos tornar mais vulneráveis e estar prontos a crer em outras pessoas. De acordo com Smedes, “o amor é um poder que tem fé, um impulso que nos move a confiar nas pessoas”.3 O cínico nos adverte a não confiar demais em outras pessoas, mas, por sua vez, o amante prefere confiar demais do que de menos e, por conseguinte, crê em tudo em que se deve crer. Existe, contudo, outra maneira de interpretar esse versículo, que é adotada pela maioria dos comentaristas. Em vez de interpretar a palavra “todos” (gr. panta) como substantivo, isto é, com o sentido de “todas as coisas”, podemos interpretá-la como advérbio, com o sentido de “sempre”.4 Essa interpretação evita qualquer equívoco em relação àquilo em que o amor crê ou não crê. O versículo não é sobre o objeto da fé do amor (aquilo em que cremos); mas, sim, sobre a perseverança da fé do amor (em que circunstâncias continuaremos crendo). O amor é capaz de continuar acreditando em meio às situações mais extremas de dificuldades e sofrimento. Gordon Fee se expressa assim: “Inspirado por sua absoluta confiança no futuro,o amor tem no presente uma tenacidade que permite à pessoa viver em todo tipo de circunstância e continuamente dar-se em favor de outros”.5 Não há limite para a confiança do amor. Ele “nunca perde a fé”.6 MEU DEUS! Encontramos a perfeição desse amor, e de todo o amor, na vida de Jesus Cristo. Já aprendemos que seu amor é humilde e paciente, esperançoso e altruísta. Acompanhamos o amor de Jesus ao longo de sua vida. Testemunhamos esse amor em seus ensinos e em seus milagres, em suas conversas com pessoas comuns e em suas orações a seu Pai no céu. Vimos seu coração amoroso na maneira em que se rendeu à vontade de Deus no jardim do Getsêmani e depois, com coragem e sem pecado, sofreu maus-tratos enquanto seguia para a cruz. Observamos seu amor na própria cruz, quando, para nossa salvação, aguentou a dor e suportou a vergonha da crucificação. O que ainda não vimos é a fé das afeições de Jesus, a maneira em que seu amor sempre confia. Talvez o melhor lugar para ver isso seja na própria crucificação, quando Jesus experimentou o sofrimento humano em seu grau máximo. Portanto, voltamos a olhar para a cruz e a ouvir as últimas palavras do Filho de Deus como um testemunho de sua fé no Pai. Os relatos dos Evangelhos acerca da crucificação não são descrições exageradas, mas frugais. Lucas simplesmente nos diz que, “quando chegaram ao lugar chamado a Caveira, ali o crucificaram” (Lc 23.33). Não é preciso dizer nada sobre as dores mortais desse ato bárbaro, exceto aquilo que já dissemos: do ponto de vista do sofrimento físico, essa era uma maneira extremamente dolorosa de morrer. Nesse aspecto, a morte de Jesus dificilmente poderia ser considerada exclusiva. Muitos homens foram crucificados na época do Império Romano. Aliás, pelo menos dois outros homens foram executados da mesma maneira no mesmo dia, um de cada lado de Jesus. O que foi, no entanto, exclusivo foi o tormento psíquico que Jesus suportou — o sofrimento de sua alma. Na cruz aconteceu uma transferência espiritual. Pela vontade de Deus e de acordo com sua própria intenção deliberada, Jesus, o Filho de Deus, assumiu a culpa de nossas transgressões. Como vítima de um sacrifício expiatório, ele carregou nosso pecado. Por esse motivo, nas horas em que esteve pendurado na cruz, o Filho foi separado do Pai. Aqui nos deparamos com um grande mistério de pecado e culpa, de juízo e sacrifício, e do ser triúno de Deus. Enquanto sufocava lentamente, Jesus citou o salmista e gritou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27.46). Essas palavras procedem do versículo inicial do salmo 22, no qual Davi, sob ameaça iminente de morte, sofre a angústia da oração sem resposta. Ao tomar essas palavras em seus lábios, Jesus estava declarando que estava enfrentando uma morte em total abandono por Deus. Durante toda a eternidade passada, o Deus Filho tinha vivido em comunhão ininterrupta com o Pai. Mas, quando tomou nossos pecados sobre seus ombros, ele sofreu a ira e a maldição do juízo divino contra o pecado humano. Parte dessa maldição consistiu em o Filho ser separado do Pai. Essa realidade psicológica encontrou um símbolo natural nas trevas que caíram sobre a face da terra. É assim que Lucas descreve o milagre turvo que foi o sinal exterior da realidade de ficar espiritualmente separado de Deus: “Agora era a hora sexta, e houve trevas sobre toda a terra até a nona hora, enquanto a luz do sol falhava” (Lc 23.44,45). A crucificação de Cristo foi uma morte sombria. Durante três longas horas, o sol se recusou a brilhar. Independentemente de suas causas materiais, a descida dessas trevas demonstrava que Jesus estava sofrendo a maldição de Deus contra o nosso pecado. Isso foi para cumprimento de uma antiga profecia feita por Sofonias: “Um dia de ira é aquele dia, um dia de aflição e angústia, um dia de ruína e devastação, um dia de trevas e escuridão, um dia de nuvens e trevas espessas” (Sf 1.15). Essas trevas e escuridão simbolizavam a ira de Deus contra o nosso pecado. Isaac Watts expressou-o muito bem em um dos seus hinos sobre a crucificação: Bem pôde o sol na escuridão se esconder e conter sua glória, quando Cristo, o poderoso Criador, morreu pelo homem, pelo pecado da criatura. Perto do fim daquelas horas de escuridão Jesus abriu uma janela de sua alma, permitindo que vislumbrássemos o que estava sofrendo lá dentro. Essa éa única vez na Bíblia em que Jesus chegou a falar com Deus sem chamá-lo de “Pai”. Todas as suas outras orações começaram da maneira que ele nos ensinou a orar, com a palavra Pai. Jesus orou dessa maneira junto ao túmulo de Lázaro, quando levantou os olhos para o céu e disse: “Pai, eu te agradeço porque tens me ouvido” (Jo 11.41). Orou da mesma maneira depois da Última Ceia: “Pai, chegou a hora; glorifica teu Filho para que o Filho te glorifique” (Jo 17.1). Contudo, quando Jesus estava à beira da morte, enquanto suportava o peso morto de nosso pecado na hora em que estava morrendo na cruz, ele gritou para seu Pai e o chamou de “Deus”. Isso foi em parte para cumprir o salmo 22, mas também revelou a ruptura no relacionamento deles, a separação entre Pai e Filho, enquanto Jesus tinha uma morte em total abandono por Deus. A FÉ DE JESUS Para alguém que se sente abandonado, é desesperadamente difícil continuar confiando em Deus. Qualquer um que já tenha tido essa experiência sabe disso. Quando Deus parece ausente e você teme que ele não esteja nem aí, pode ser quase impossível orar. Quando tudo fica escuro, é somente pela fé — não pela visão — que somos capazes de nos apegar a Deus. Foi assim com Jesus na cruz. O céu estava em trevas. Em sua alma ele se sentiu abandonado pelo Pai. Mas sua declaração de estar abandonado não foi a última coisa que disse. Depois de dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, suas palavras finais foram: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito!” (Lc 23.46). Foi só então que Jesus deu seu último suspiro. Essas palavras são outra citação de Salmos. Elas vêm do salmo 31, em que Davi orou para que Deus o livrasse de todos os seus inimigos. “Em tua mão entrego meu espírito”, Davi disse e, em seguida, expressou sua confiança total de que Deus o salvaria: “Tu me redimiste, ó Senhor, Deus fiel” (Sl 31.5). Lucas nos diz que Jesus exclamou essas palavras “em alta voz” (Lc 23.46). Esse não foi, portanto, um pedido tímido e com dúvidas, mas uma petição ousada e confiante. Aliás, foi uma confissão da fé do Salvador. Tal como Davi, Jesus cria na redenção. Ele tinha o tipo de amor descrito em 1Coríntios 13.7: um amor que sempre crê. O apóstolo Pedro deu um testemunho mais explícito dessa fé quando disse que, enquanto estava sofrendo por nossos pecados, Jesus “continuou se confiando aos cuidados daquele que julga com justiça” (1Pe 2.23). Mesmo nas circunstâncias mais desesperadoras, com a morte iminente, quando foi abandonado pelo Pai e esmagado pelo peso execrável do juízo divino, Jesus ainda confiou no amor de seu Pai. Considere algumas das coisas em que nosso Salvador cria. Primeiro, Jesus cria que Deus estava ali. Ele tinha de crer nisso para chegar a orar. Mesmo quando se sentiu abandonado e não conseguiu sentir a presença de Deus, ele continuou crendo que Deus estava ali para ouvir sua oração e, por consequência, intercedeu. Em segundo lugar, Jesus cria em Deus como Pai. Sendo o Filho eterno, ele tinha conhecido o Pai já antes de o mundo existir. Mas, na fraqueza de sua humanidade, enquanto estava tendo uma morte com total abandono por Deus, ele se sentiu distante do Pai. Ainda assim, orou a Deus como seu Pai. Antes tinha sido “Meu Deus, meu Deus”, mas agora de novo era “Pai”. Essa forma de tratamento era um testemunho claro de sua fé na paternidade de Deus. Em terceiro lugar, Jesus cria na vida após a morte. Ao entregar o espírito ao Pai, estava declarando que a morte por crucificação não seria o fim para ele, porque sua alma continuaria vivendo, imortal. Ao citar o salmo 31, expressou sua confiança de que Deus faria por ele o que outrora havia feito por Davi e redimiria da sepultura a sua vida. Pela fé, Jesus creu que há uma vida vindoura. Em quarto lugar, Jesus cria no amor do Pai. Ao colocar seu espírito sob a guarda do Pai, estava colocando sob os cuidados do Pai tudo o que lhe era caro. Jesus só poderia fazer isso se tivesse plena confiança no amor do Pai. Quando entregou o espírito ao Pai, Jesus, o Filho, acreditava ter com o Pai um relacionamento amoroso que prosseguiria por toda a eternidade. Em quinto lugar, Jesus cria que sua morte expiaria o pecado. Ele não disse isso de forma tão clara, mas essa certeza estava implícita em sua oração. Quando pediu ao Pai para recebê-lo, pediu também que aceitasse o sacrifício que havia feito pelos nossos pecados ao morrer na cruz. Ele estava deixando sua obra de salvação nas mãos de Deus, confiando que o Pai ressuscitaria da sepultura o seu corpo e concederia perdão a todo o seu povo. Com suas últimas palavras, Jesus expressou sua plena confiança de que seríamos salvos. Quando vemos Jesus na cruz, vemos um homem nos mostrando como crer em todas as coisas. O que lhe permitiu crer em todas essas coisas foi o amor: o amor por seu Pai e o amor por nós. Não é apenas a fé que tem o poder de confiar, mas também o amor. Quando temos o tipo de relacionamento amoroso que Jesus tinha com o Pai, somos capazes de confiar totalmente até a morte e além dela. O Pai sempre havia declarado que Jesus era seu “Filho amado”. O próprio Filho tinha dito isso, quando orou ao Pai: “Tu me amaste antes da fundação do mundo” (Jo 17.24). E, quando chegou a hora de morrer, foi esse amor que o sustentou. NAS MÃOS DE DEUS Você tem o tipo de amor de que Paulo fala em 1Coríntios 13 — o amor que crê em todas as coisas e que Jesus demonstrou na cruz? Ter esse tipo de amor começa com a consciência do quanto Deus o ama. Quando Jesus testemunhou do amor do Pai em João 17 — em sua oração esperançosa pela unidade da igreja —, ele também orou para que conhecêssemos o amor do Pai. Jesus disse que o Pai nos ama da mesma maneira que ama seu único Filho. Pense nisto: em tudo Deus Pai o ama tanto quanto ama seu único e amado Filho! E o próprio Filho orou para que conhecêssemos esse amor, para que o amor do Pai pelo Filho também vivesse em nós. Conhecer o amor do Pai fortalece nossa fé. Lewis Smedes estava certo quando disse que “o motivo mais profundo para crer é a consciência de ser amado por Deus”.7 Por isso, se temos dificuldade de confiar em Deus, precisamos voltar até sua Palavra e considerar tudo o que ela diz sobre o amor dele. Ali leremos estas palavras transformadoras de vida: “O próprio Pai ama vocês” (Jo 16.27). Também veremos a prova dessas palavras na dádiva do Filho de Deus, que veio a este mundo para nos mostrar seu amor. É dessa maneira que Deus nos transforma em crentes: ele nos dá seu amor. Quanto mais experimentarmos o amor do Pai, mais aprenderemos a confiar nele, mesmo em épocas de extrema necessidade e total desamparo. Aprenderemos a orar com fé do jeito que Jesus orou: “Pai, nas tuas mãos entrego...”. Em tempos de necessidade financeira, quando não sabemos onde conseguiremos o dinheiro de que precisamos para pagar a escola ou o aluguel, ou consertar o carro, ou fazer as compras de supermercado, ou cobrir as despesas médicas, ou bancar o plano de aposentadoria, oramos: “Pai, em tuas mãos entrego minhas finanças”. Oramos dessa maneira porque cremos que, em seu amor, Deus providenciará aquilo de que precisamos. Oramos da mesma maneira em nossa luta contra o pecado. Podemos nos sentir derrotados por alguma transgressão específica — um pecado repetido que o diabo nos tenta a pensar que jamais conseguiremos vencer. Mas o amor de Deus nos convence a dizer: “Pai, em tuas mãos entrego a minha santificação. Por teu amor, livra-me do Maligno e dá-me teu poder sobre esse pecado!”. É desta maneira que oramos acerca de nossa saúde (ou da saúde das pessoas que amamos): “Pai, em tuas mãos entrego este corpo, pedindo que cures essa enfermidade e consoles essa alma em sua luta com a dor física”. Também é desta forma que oramos a respeito de nossos estudos: “Pai, em tuas mãos entrego a lição de casa que eu não entendo, as notas que não consigo alcançar, o ano com que estou preocupado porque acho que vou repetir”.Podemos orar assim por tudo na vida: “Pai, em tuas mãos entrego o meu casamento (ou o fato de ser solteiro)”; “Em tuas mãos entrego minha família, com todos os seus problemas”; “Em tuas mãos entrego o meu ministério — seja como for que queiras que eu te sirva”; “Em tuas mãos entrego a comunidade que me chamaste a amar, com todos os seus problemas”; “Pai, em tuas mãos entrego o meu futuro, com todas as suas esperanças e medos”. E quando, por fim, chegarmos ao final da vida, estaremos prontos para fazer a mesma petição que Jesus fez quando chegou a hora de morrer: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Muitos cristãos fizeram dessas exatas palavras sua oração final. O primeiro a fazê-la provavelmente foi Estêvão. Quando o digno diácono foi martirizado por sua fé em Jesus Cristo, ele disse: “Senhor Jesus, recebe meu espírito” (At 7.59). Um século depois, quando o bispo Policarpo foi martirizado, ele morreu com as mesmas palavras nos lábios. Houve outros: Martinho Lutero, Filipe Melanchthon, Jerônimo de Praga, João Huss. Quando Huss foi condenado pelo Concílio de Constança em 1415, o bispo que presidia a reunião disse: “E agora entregamos tua alma ao diabo”. Ao que Huss respondeu com toda calma: “Entrego o meu espírito em tuas mãos, Senhor Jesus Cristo; a ti entrego o meu espírito, que redimiste”.8 Outro exemplo notável é Lady Jane Grey (1536-1554), que foi rainha de Inglaterra por apenas dezesseis dias. Porque se recusou a renunciar à sua fé em Cristo, Lady Grey foi condenada à execução. Ao subir ao cadafalso, ela se dirigiu aos espectadores, dizendo as seguintes palavras: “Morro como mulher verdadeiramente cristã e aguardo ser salva por nenhum outro meio que não a misericórdia de Deus e o sangue de seu Filho, Jesus Cristo”. Então, ela se ajoelhou e recitou o salmo 51 como confissão de seus pecados. O carrasco sentiu-se levado a se ajoelhar com ela e a pedir- lhe perdão, que ela concedeu de bom grado. Então ela disse: “Por favor, acabe logo comigo”. Tendo amarrado um lenço ao redor de seus olhos, tateou até achar o cepo de madeira e ali deitou a cabeça para ser decapitada, pronunciando as palavras “Senhor, em tuas mãos entrego meu espírito”. Lady Jane Grey tinha apenas dezessete anos de idade.9 A maioria de nós terá uma morte menos violenta. Contudo, morreremos (a menos que Jesus venha primeiro) e, quando morrermos, precisaremos de toda a fé que pudermos ter. Precisaremos de fé para saber que, quando passarmos desta vida para a próxima, confiando na morte que Jesus experimentou por nossos pecados, também passaremos para as mãos amorosas de um Pai amoroso que está esperando para nos receber de braços abertos. Crendo nisso, seremos capazes de orar: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Alan Paton orou dessa maneira quando sua querida esposa Dorrie estava morrendo, depois de uma longa luta contra o enfisema. Enquanto participava da luta de vida ou morte da esposa, o escritor sul-africano escreveu uma versão ampliada da oração feita por Jesus na cruz: Senhor, dá-me a graça de morrer na tua vontade. Prepara-me para qualquer lugar ou condição que me aguarda. Deixa-me morrer fiel àquelas coisas que acredito serem verdadeiras e não permitas que por algum medo e que da morte eu me afaste de ti. Senhor, dá-me também a graça de viver na tua vontade. Ajuda-me a dominar qualquer medo, qualquer desejo que me impeça de viver na tua vontade. Faze-me, ó Senhor, o instrumento de tua paz, para que eu conheça a vida eterna. Em tuas mãos entrego o meu espírito. 10 É preciso fé para orar dessa maneira. A chave para crescer nessa fé é conhecer mais do amor de Jesus, que não apenas nos ensinou a viver, mas também nos mostrou como morrer. Quando conhecemos o amor de Jesus, confiamos nele em tudo: tudo na vida, tudo na morte e tudo acerca da vida vindoura. GUIA DE ESTUDO Confiança e amor são praticamente inseparáveis, porque é quase impossível amar aqueles em quem não confiamos. A confiança que depositamos em pessoas que amamos se baseia no que cremos a seu respeito. Acreditamos que não nos farão mal, que manterão as promessas que nos fizeram e que se comportarão de acordo com certas expectativas. Em última instância, ninguém é totalmente confiável, exceto Deus. Por conseguinte, ele é o único que cumpre totalmente o “sempre crer” que caracteriza o verdadeiro amor em 1Coríntios 13.7. 1. Você conhece alguém que confiou em Deus em circunstâncias difíceis? Descreva como a história dessa pessoa influenciou você ou outros a confiarem em Deus. 2. Pense de novo na história de Richard Williams (veja p. 205-6), que confiou em Deus o tempo todo até o final desesperador de sua vida. Você seria capaz de confiar em Deus em circunstâncias assim? Qual é a situação extrema que, caso aconteça, você pede a Deus para ser capaz de suportar com total confiança nele? 3. Leia Mateus 27.45,46 e Salmos 22.1-5. O que Jesus estava dizendo sobre seu relacionamento com o Pai naquele momento? Por que isso é importante para nossa salvação? 4. As últimas palavras de Jesus são encontradas em Lucas 23.46. Leia esse versículo junto com Salmos 31.1-5, texto do salmo que Jesus estava citando. O que Jesus estava afirmando crer a respeito de Deus Pai e de seu próprio sofrimento? Por que é importante que ele tenha terminado sua vida terrena com as palavras de Lucas 23.46, em lugar das palavras de Mateus 27.46? 5. Com base em Salmos 31.1-5, em que devemos crer em relação ao Deus que nos ama? 6. Qual deve ser o impacto de nossas crenças em relação ao amor de Deus sobre nossos relacionamentos com os que nos rodeiam? Em que aspectos o amor de quem que não ama a Deus é diferente do amor de quem o ama de verdade? 7. Ser tão ingênuo a ponto de crer somente em coisas boas sobre aqueles a quem amamos não é amar de verdade. Portanto, o que Paulo quer dizer quando afirma que o amor “sempre crê”? Em que tipo de coisas devemos crer a respeito daqueles que amamos? 8. Charles Spurgeon disse certa vez: “Tomei a decisão de que, se todos os meus sentidos contradisserem a Deus, prefiro negar cada um deles a acreditar que Deus possa mentir”. Já aconteceu de seus sentidos parecerem contradizer a Deus? Você negaria seus sentidos e, em vez disso, creria em Deus? Explique sua resposta. 9. Em épocas de sofrimento, às vezes descobrimos que a maior dificuldade que enfrentamos não são as próprias circunstâncias ou a dor física, mas a dúvida ou a depressão espiritual. Você já se sentiu abandonado por Deus? Naqueles momentos sombrios, o que você fez para manter a fé? 10. Que coisas de sua vida você precisa entregar a Jesus agora mesmo, a fim de seguir o exemplo dele na entrega de sua alma ao Deus que o ama? Finanças? Saúde? Hábitos pecaminosos? Problemas familiares? Os desafios que você enfrenta no ministério? Gaste algum tempo orando pelas circunstâncias atuais de sua vida de uma maneira que demonstre sua confiança em Deus. 1Ian MacPherson, The punctuality of God (Manchester: Puritan, 1946), disponível em: http://www.christianity.co.nz/life_death9.htm. 2Leon Morris, The First Epistle of Paul to the Corinthians, Tyndale New Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), p. 185 [edição em português: 1Coríntios: introdução e comentário, tradução de Odayr Olivetti, Série Cultura Bíblica (São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1981)]. 3Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 99. 4David E. Garland, First Corinthians, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker, 2003), p. 619. 5Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 640 [edição em português: 1Coríntios: comentário exegético, tradução de Marcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova, a ser publicado)]. 6Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians, New InternationalGreek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), p. 1057. 7Smedes, Love within limits, p. 96. 8Esses exemplos são narrados por James Montgomery Boyce em The heart of the cross (Wheaton: Crossway, 1999) [edição em português: O coração da cruz (São Paulo: Cultura Cristã, 2008)]. 9 Disponível em: http://www.christianity.com/ChurchHistory/11629983/. 10Alan Paton, Journey continued: an autobiography (New York: Collier, 1988), p. 275. 11 O AMOR PERDOA O amor não fica ressentido. (1CO 13.5) Ele lhe disse pela terceira vez: “Simão, filho de João, você me ama?”. Pedro se entristeceu porque ele havia lhe dito pela terceira vez: “Você me ama?”, e respondeu: “Senhor, tu sabes todas as coisas; tu sabes que eu te amo”. Jesus lhe disse: “Apascente as minhas ovelhas” . (JO 21.17) Que sensação deliciosa é ter sede de vingança! Embora seja moralmente inaceitável e em última instância não traga satisfação, é intenso o puro prazer que se tem ao alimentar o rancor. Quando alguém nos faz mal, nossa ira arde lentamente, e, para dizer a verdade, nós temos prazer nesse sentimento. Aliás, algumas pessoas alimentam seu ressentimento a vida inteira. Elas dizem: “Jamais vou esquecer o que essa pessoa fez comigo!”, e jamais esquecem, porque, por mais que odeiem o que lhes aconteceu, ainda assim têm prazer em lamber suas feridas. Quem é a pessoa que você considera mais difícil de perdoar? Você já deixou todos os ressentimentos irem embora, ou ainda está predisposto contra alguém por causa de alguma coisa? Se você tem um apetite por vingança — se gosta daquele acentuado sabor agridoce de um antigo ressentimento —, precisa saber que, além de torná-lo culpado diante de Deus, deixar de perdoar também vai corroê-lo por dentro. Os médicos Daniel Amen, Marian Diamond e Caroline Leaf descreveram o que os sentimentos de vingança fazem ao cérebro humano. Com base em pesquisa na área de bioquímica, esses neurocientistas documentaram a enorme quantidade de produtos químicos tóxicos que nosso corpo libera no cérebro sempre que temos pensamentos maldosos. As microfotografias que eles tiraram mostram como os produtos químicos que são liberados vão queimando e, assim, abrindo túneis até as ramificações de nossas células nervosas.1 A dra. Leaf chama esses neurônios queimados de “buracos negros emocionais”. São espaços vazios no cérebro, produzidos pelos ressentimentos irados de uma alma amargurada. Ainda assim, o que é surpreendente, é possível que o cérebro faça crescer fibras nervosas que preenchem esses buracos negros. Novas memórias podem substituir as antigas. E uma das virtudes que, de acordo com a dra. Leaf, mais traz cura é o perdão.2 LIVRANDO-SE DO RESSENTIMENTO O apóstolo Paulo dá testemunho do poder do perdão em seu retrato do amor, em que nos diz que o amor “não fica [...] ressentido” (1Co 13.5). Ou, expressando a mesma verdade de um modo afirmativo, o amor perdoa. A tradução King James, em sua versão mais antiga, diz: “O amor não pensa mal”. Essa maneira de expressar dá a impressão de que Paulo está nos dizendo para não termos maus pensamentos sobre outras pessoas. O amor não vive pecaminosamente em suspeita. Se isso é verdade, então o motivo pelo qual temos uma atitude tão negativa com algumas pessoas tem de ser que nós não as amamos. Nas palavras de Jonathan Edwards, o amor “é contrário à tendência de pensar nos outros ou de julgá-los sem ser caridoso”.3 Outros comentaristas veem uma semelhança verbal entre 1Coríntios 13.5 e um versículo do profeta Zacarias do Antigo Testamento, o qual disse: “Não planejeis em vossos corações o mal uns contra os outros” (8.17). Com certeza é verdade que o amor não é maquinador; ele não elabora planos escusos contra outras pessoas. No entanto, um estudo cuidadoso da terminologia de 1Coríntios 13.5 revela que não é contra pensar mal ou planejar o mal que Paulo está alertando os coríntios. Sua preocupação não é com o mal que estamos pensando em fazer aos outros; pelo contrário, sua preocupação é com o que pensamos sobre o mal que os outros nos fizeram. O verbo grego que Paulo usa em 1Coríntios 13.5 (logizomai) é relativamente comum em todos os seus escritos. Tem origem no mundo dos negócios — especificamente na área da contabilidade. Significa “calcular” ou “pôr na conta de alguém”. Por exemplo, em sua Segunda Carta aos Coríntios, Paulo declarou que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, sem computar suas ofensas contra eles” (5.19). Ao calcular o saldo de nossos registros espirituais, Deus decidiu não computar nossos pecados contra nós, mas, em vez disso, considerou que foram pagos na cruz. Usando o linguajar dos teólogos, Deus imputou nossos pecados a seu Filho, tirando-os de nós e colocando-os na conta de Jesus Cristo. Além de não computar nossos pecados contra nós, Deus também decidiu computar a justiça de Cristo em nosso favor. Paulo usa o mesmo verbo para descrever essa transação em Romanos, em que a justiça é calculada em favor de Abraão e de nós, com base na fé (e.g., Rm 3.28; 4.3,5). Então, a ideia de pôr algo na conta de alguém ajuda a explicar tanto a doutrina da expiação quanto a doutrina da justificação — o pagamento de nossos pecados na cruz e o dom gratuito da justiça imputada de Jesus Cristo. Quando voltamos nossa atenção para 1Coríntios 13.5, encontramos o mesmo verbo, mas usado para uma contabilidade do mal. Literalmente, o amor “não calcula o mal”, com o sentido de que o amor não “põe o mal na conta de alguém”. A ideia não é que o amor ignora o mal por completo, como se ele nem sequer existisse. A ideia é que o amor se recusa a computar aquele mal contra as pessoas. De acordo com David Garland: “A imagem é de manter registros de erros, com o intuito de retribuir com algum dano”.4 Nesse caso, a New International Version tem talvez a melhor tradução, porque usa um termo da área de contabilidade: o amor “não mantém nenhum registro de erros”. Em outras palavras, o amor não guarda uma lista dos erros dos outros para poder acertar as contas mais tarde. Em vez disso, oferece o perdão, que pode ser definido como “abrir mão de nosso direito de continuar irado e desistir de nossa pretensão a um reembolso futuro do prejuízo que sofremos”.5 Eis uma definição mais completa: Uma pessoa perdoadora é alguém que, por uma profunda consciência de que Deus lhe concedeu o perdão de uma grande dívida, pede perdão facilmente a outra pessoa; é alguém que repudia a ira, a amargura e o desejo de vingança, a fim de iniciar uma abordagem amorosa de quem quer que o tenha ferido; e é alguém que voluntariamente se oferece para perdoar e esquecer o dano sofrido, com a esperança de que a reconciliação seja alcançada. 6 Essa é uma área em que todos nós temos dificuldades. Quando as pessoas fazem algo que nos fere, tendemos a nos lembrar disso para sempre, e, se tivermos uma oportunidade, vamos lhes fazer alguma coisa que seja em todos os aspectos tão ruim, se não um pouco pior. No mínimo, nós as lembraremos daquilo que nos fizeram, guardando essa informação e usando-a contra elas. Dessa maneira, podemos nos sentir moralmente superiores, ao mesmo tempo em que desculpamos nosso próprio pecado de não estarmos dispostos a perdoar. Como é difícil deixar para trás um ressentimento antigo! Lewis Smedes define ressentimento como “a irritação de ontem, riscada a faca nas membranas sensíveis de nossa memória”.7 Os riscos são profundos e, em alguns casos, ainda sangram. Alguém traiu nossa confiança ou abusou de sua autoridade sobre nós. Disse palavras ferinas que nunca conseguimos esquecer. Prejudicou nossa saúde ou feriu nosso corpo. Fez com que perdêssemos tempo, desprezou nosso carinho ou roubou nossa felicidade. Quando essas coisas más acontecem, muitas pessoas acham mais fácil se apegar à dor do que deixá-la passar. Elas se recusam a desistir do direito de ferir a outra pessoa por tê-las ferido. Continuam assistindo novamente, na telado computador interno de sua mente e coração, aos males que sofreram. A menos que tudo seja completamente resolvido e totalmente reconciliado, e até que isso aconteça, elas nunca perdoarão. Quando o ressentimento ergue tal tipo de barreira, só o amor tem o poder de derrubar esse muro e libertar “a memória de ficar presa ao mal do passado”.8 O amor não ignora a iniquidade; ele está dolorosamente consciente de qualquer mal que tenha sido feito. Ainda assim, em vez de retribuir mal com mal, procura vencer o mal com o bem. O amor “atura o mal sem avaliar como retaliar”.9 Que mal Deus está chamando você a aturar? Que lembranças Deus está lhe dizendo para deixar ir embora? Que pessoa ele está chamando você a amar? É um membro da família? Um colega de trabalho? Um colega de classe? Um vizinho? Um membro ou líder de sua igreja local? Em vez de arder lentamente por causa de um ressentimento antigo ou de desejar vingança, o amor tem o poder de renovar as coisas. Conforme Lewis Smedes explica: “O amor deixa o passado morrer. Leva as pessoas a um novo começo, sem acertar contas com o passado. O amor não tem de esclarecer todos os mal-entendidos. [...] O amor prefere amarrar firmemente no perdão todas as pontas soltas de erros e acertos do passado — e nos empurra para um novo começo”.10 Em resumo, o amor perdoa. A QUEDA DE PEDRO Ao ligarmos esse aspecto do amor à pessoa e obra de Jesus Cristo, é natural que tornemos a voltar nossa atenção para a cruz. Em suas horas finais, Jesus perdoou os próprios homens que o ridicularizaram e crucificaram. Ele disse: “Pai, perdoa-os” (Lc 23.34). Ao dizer isso, Jesus estava nos mostrando o poder que o amor tem de perdoar. Estava perdoando seus inimigos pela traição cruel, pela injustiça irracional, pela tortura brutal e pelo tratamento covarde, para não mencionar o mal ultrajante de assassinar o Filho de Deus. Existe ainda outro ato de perdão que pode nos afetar mais de perto e tocar mais fundo no nosso coração. Não foram apenas os seus inimigos que Jesus perdoou — inclusive estranhos que mal o conheciam —, mas também seus amigos. Em geral, as mágoas mais profundas são causadas pelas pessoas que estão mais próximas de nós, e para Jesus isso incluía seus discípulos. Refiro-me especificamente a Pedro e à ocasião em que Jesus o perdoou. Pedro foi o primeiro e o mais ousado dos doze discípulos originais. Foi o primeiro que Jesus chamou para ser discípulo, o primeiro e único a sair do barco e andar sobre a água e o primeiro a reconhecer que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16). Foi o primeiro a jurar que seguiria Jesus até a morte. Pedro foi o primeiro no discipulado, o primeiro na obediência, o primeiro na fé e o primeiro no sacrifício. Pedro também foi o primeiro a ter uma queda. A história é contada de maneira honesta e dolorosa em todos os quatro Evangelhos bíblicos. Depois que Jesus foi preso, Pedro foi suficientemente corajoso para segui-lo até seu julgamento perante o sumo sacerdote Caifás. Enquanto ele estava esperando lá fora no pátio, uma serva que estava perto da porta disse: “Você também é um dos discípulos desse homem, não é mesmo?” (Jo 18.17). Essa pergunta inesperada deu a Pedro uma chance de apoiar Cristo na hora da sua maior provação. Em vez disso, ele negou ser discípulo. “Não sou”, ele disse. Logo em seguida Pedro se encontrava junto à fogueira em que soldados e servos estavam se aquecendo, em uma fria noite de primavera. Naturalmente a conversa girava em torno de Jesus. Eles disseram a Pedro: “Você também é um dos discípulos desse homem, não é mesmo?” (v. 25). De novo, Pedro negou. Não demorou muito para que negasse mais uma vez, quando outro servo perguntou: “Por acaso não vi você no jardim com ele?” (v. 26). Pedro respondeu, dizendo: “Homem, não sei de que você está falando” (Lc 22.60). Mateus acrescenta o detalhe incriminador de que, para tornar sua terceira negação mais convincente, Pedro invocou maldições sobre si mesmo (Mt 26.74). Para entender o que custou a Pedro ser perdoado de todas essas negações, é importante compreender a natureza e a magnitude de seu pecado. Geralmente pensamos que Pedro cometeu três vezes um único pecado, mas na verdade ele foi culpado de muitos pecados, que cometeu repetidamente. É óbvio que Pedro foi culpado de traição; ele traiu seu compromisso com Cristo, negando que tivesse absolutamente qualquer relacionamento com Jesus. Em parte, esse foi um pecado de mentir. Em vez de dizer o que era verdade, Pedro deu testemunho de algo falso. Também foi um pecado de blasfêmia: ao invocar maldições, estava tomando o nome do Filho de Deus em vão. Acrescente-se a isso o pecado de idolatria: Pedro deu mais valor à sua própria segurança e proteção do que à adoração do único Deus verdadeiro. Seu pecado também foi o de deixar de evangelizar. Pedro estava tão ocupado tentando salvar o próprio pescoço, que perdeu a oportunidade de dar testemunho do poder salvador e da misericórdia graciosa de Jesus Cristo. Poderíamos até mesmo dizer que foi cúmplice de um assassinato, porque, em vez de defender um homem inocente que estava prestes a morrer, Pedro não quis ter nada que ver com ele. Tudo isso é acentuado pelo fato de que Pedro tinha o dever de saber. O que ele fez já seria bastante ruim para um recém-convertido, mas Pedro era um dos discípulos mais antigos e estimados de Jesus. Por isso, dificilmente poderia alegar que desconhecia aquilo que Deus exigia. Pelo contrário, muitas vezes ouviu o que Jesus afirmou sobre dizer a verdade, adorar a Deus e compartilhar o evangelho. Porque tinha sido tão bem instruído, Deus o consideraria alguém com uma responsabilidade duas ou três vezes maior. Além disso, Pedro tinha sido explicitamente advertido de que corria perigo espiritual. Anteriormente, naquela mesma noite, Jesus lhe tinha dito: “Em verdade, em verdade eu lhe digo que o galo não cantará até que você me negue três vezes” (Jo 13.38). Apesar disso, Pedro seguiu em frente e cometeu aquele exato pecado que fora avisado para não cometer. Para piorar as coisas, a pessoa que Pedro negou foi o próprio Filho de Deus. Em certo sentido, todo pecado é obviamente um pecado contra Deus, mas nesse caso esse fato é especialmente inegável. Pedro pecou contra Deus. Quando consideramos a natureza exata e toda a magnitude do pecado de Pedro, devemos reconhecer que dentro de nós existe bem mais do que um Pedrinho. Você já cometeu o mesmo pecado duas vezes? Três vezes? Você já disse algo que não era verdade simplesmente para fazer melhor figura na frente de outras pessoas? Você já teve uma boa oportunidade de compartilhar o evangelho, mas mudou de assunto porque não tinha certeza sobre o que dizer ou como as pessoas reagiriam? Você já usou linguagem vulgar que incluía ofender o nome de Deus? E você já fez essas coisas mesmo sabendo que não devia? Nesse caso, então, você fez a mesma coisa que Pedro e negou seu Salvador. O ARREPENDIMENTO E O PERDÃO DE PEDRO Como você acha que Jesus deveria ter reagido com Pedro? Muitas pessoas — talvez a maioria delas — teria acabado com o relacionamento naquela mesma hora. Se os discípulos fossem empregados, Pedro poderia ter sido despedido por justa causa. Afinal, o homem era irresponsável, desleal e era alguém em quem não se podia confiar. Quando você quis que ele ficasse do seu lado, ele se virou contra você. Quando você precisou de que ele permanecesse firme, ele caiu. Por isso, Jesus teria tido plena razão, caso decidisse que Pedro não era digno de ser um de seus discípulos. Jesus poderia dizer a mesma coisa sobre cada um de nós, porque nós também temos falhado com ele de muitas maneiras. Há pecados que sua Palavra nos advertiu para não cometermos, mas assim mesmo fomos em frente e os cometemos. Houve pessoas que tentamos amar em nome dele, mas ficamos tão cansados de lidar com elas, que desistimos. Tivemos oportunidades de nos posicionar em defesa de seu evangelho,mas, em vez disso, nos acovardamos. Então, quando vemos Pedro falhar, também precisamos ver como Jesus reagiu, porque isso dirá se existe alguma esperança de que nossos pecados sejam perdoados. O que Jesus fez? A primeira coisa que ele fez foi simplesmente olhar para seu discípulo. No exato momento em que proferiu sua terceira e última negação, Pedro ouviu o som que congelou a sua alma: o primeiro cantar do galo ao amanhecer. Pedro tinha sido advertido de que, antes que o galo cantasse, ele negaria Jesus três vezes. Naquele exato momento — esse é um detalhe que Lucas registra com cuidado em seu Evangelho — “o Senhor se virou e olhou para Pedro” (Lc 22.61). Lucas não nos diz qual expressão Jesus tinha no rosto, mas podemos inferir que ele olhou para Pedro com amor. Jesus sabia exatamente o que seu discípulo tinha feito. Mas, em vez de querer magoar Pedro por isso, estava começando a ajudá-lo. O olhar que Jesus deu para seu discípulo foi um chamado ao arrependimento. Imediatamente Pedro saiu e chorou por aquilo que havia feito. Eram lágrimas de tristeza? É muito provável que fossem, porque seu Senhor estava nas mãos dos homens maus. Eram lágrimas de confusão? Talvez fossem; quem sabia o que aconteceria com Jesus? Eram lágrimas de desespero? De jeito nenhum. O discípulo que morreu em desespero foi Judas, que lamentou o que havia feito, mas nunca se arrependeu. Pedro também pecou contra Jesus, mas depois disso ele se arrependeu pelo que tinha feito. Suas lágrimas brotavam de um coração que estava realmente triste pelo pecado. O olhar amoroso de Jesus era tudo de que Pedro precisava para saber que tinha que se arrepender. No entanto, Jesus fez mais por Pedro do que simplesmente chamá-lo a se arrepender. Poucas horas depois, ele foi para a cruz e pagou o preço dos pecados de seu discípulo. Jesus morreu por Pedro e por sua tríplice negação, da mesma maneira que morreu pelo pecado de qualquer outra pessoa. Esse foi o evangelho que Pedro pregou pelo resto da vida: por meio da cruz, existe perdão para o pior dos pecadores. Depois disso, Pedro pregou que Cristo “sofreu uma única vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para que pudesse nos levar a Deus” (1Pe 3.18). E, quando se referiu aos “injustos”, Pedro estava se incluindo como o discípulo que negou Jesus na noite anterior à crucificação. Ele sabia que fora perdoado por meio da cruz. Nós também somos. O perdão que Pedro recebeu como pecador arrependido é o mesmo perdão que ele pregou para todo mundo. Ele proclamou que Jesus havia sido crucificado e morto pelas mãos de homens iníquos, antes de ser ressuscitado e exaltado à destra de Deus (At 2.23,32,33). Em seguida, Pedro nos exortou a fazer exatamente o que ele fez em relação a isso: arrepender-nos para perdão de nossos pecados (At 2.38). A RESTAURAÇÃO DE PEDRO Quando nos arrependemos de verdade, recebemos o que Pedro recebeu. Não importa o que fizemos, seremos totalmente perdoados. Sabemos disso porque o que Jesus fez por Pedro na cruz — o que ele fez por todos nós — preparou o terreno para a notável reconciliação que ocorreu entre os dois amigos, depois que Jesus voltou dos mortos. Aconteceu na margem do mar da Galileia. Os discípulos haviamdecidido ir pescar, com Pedro, como de costume, à frente. Pescaram a noite toda, mas não apanharam nada até que um estranho na praia lhes disse para lançarem as redes do outro lado, quando então apanharam uma quantidade tão grande de peixes, que não conseguiam nem mesmo trazê-los para dentro do barco. Assim que Pedro percebeu que o estranho era Jesus, pulou do barco e nadou até a praia. Esse simples gesto já foi uma clara indicação do arrependimento de Pedro. Ele não estava se movendo para longe de Jesus, mas na direção dele, que é o que sempre devemos fazer quando sabemos que pecamos. Não devemos permanecer longe de Jesus, como se conseguíssemos lidar sozinhos com o pecado, mas, em vez disso, devemos ir direto até o Salvador em busca de graça, misericórdia e perdão. Logo, todos os discípulos estavam de volta a terra com a pesca do dia. Servindo com amor, Jesus havia feito uma fogueira e preparado uma deliciosa refeição matinal com pão e peixe. Depois disso, Pedro e Jesus tiveram uma conversa sincera à beira do lago, a qual para Pedro foi mais como uma cirurgia de coração. Vale a pena notar o que Jesus não disse. Ele não condenou Pedro por suas negações. Não lhe disse que teria de fazer por merecer sua volta ao discipulado. Não falou com Pedro de modo algum para feri-lo ou demonstrando ressentimento, que é como a maioria das pessoas falaria, caso alguém as tivesse tratado tão mal quanto Pedro tratou Jesus. O fato de que Jesus não disse nenhuma dessas coisas demonstrou que Pedro estava perdoado, no sentido pleno e bíblico da palavra. Jesus não estava mantendo um registro permanente dos erros de Pedro. Ele não estava predisposto contra Pedro por causa de seu pecado, mas, em vez disso, estava mostrando seu amor sem nenhum ressentimento. Em vez de pôr a transgressão de Pedro na conta do próprio Pedro, Jesus considerou que a conta de Pedro tinha sido totalmente paga na cruz, na qual ele mesmo havia morrido pelos pecados de Pedro. Em consequência disso, Pedro experimentou o perdão amoroso que Deus mostra a todos que nele creem. Ele recebeu a bênção do homem descrito no Salmo 32, “cuja transgressão é perdoada, cujo pecado é coberto” e “contra quem o SENHOR não computa nenhuma iniquidade” (Sl 32.1,2). Depois disso, Pedro pôde dar o mesmo testemunho que o salmista: “Se tu, ó SENHOR, registrasses as iniquidades, quem conseguiria suportar, ó Senhor? Mas contigo há perdão, para que sejas temido” (Sl 130.3,4). Portanto, o que Jesus de fato disse a Pedro? Ele só fez uma simples pergunta: “Você me ama?”; e deu uma simples ordem: “Apascente as minhas ovelhas”. Jesus fez essa pergunta não uma nem duas vezes, mas três. Está claro que isso visava a lembrar Pedro de sua tríplice negação — não porque Jesus estivesse predisposto contra ele por causa daquele pecado, mas porque queria que Pedro experimentasse o tipo de perdão que poderia motivá-lo para o ministério. Na primeira vez em que Jesus fez a pergunta, ele disse: “Simão, filho de João, você me ama mais do que esses?” (Jo 21.15). Quando disse “mais do que esses”, é bem possível que Jesus estivesse se referindo aos outros discípulos. Anteriormente, Pedro havia tentado afirmar que, mesmo que os demais discípulos abandonassem Jesus, ele seria fiel até o fim. O que ele diria agora, depois de não ter conseguido cumprir a promessa de que tinha anteriormente se vangloriado? Desta vez, Pedro se recusou a fazer qualquer comparação insensata, mas simplesmente disse: “Sim, Senhor; tu sabes que eu te amo” (v. 15). Pedro deu a mesma resposta uma segunda vez: “Sim, Senhor; tu sabes que te amo” (v. 16). Mas a terceira vez foi diferente. A Bíblia nos diz que “Pedro se entristeceu porque ele lhe disse pela terceira vez ‘Tu me amas?’” (v. 17). É evidente que Pedro se entristeceu porque as três perguntas o lembraram das três negações. Assim mesmo, ele permaneceu firme na declaração de seu amor: “Senhor, tu sabes todas as coisas; tu sabes que eu te amo” (v. 17). Pedro não teve medo de dizer que, apesar de toda sua fraqueza, ele de fato amava Jesus. Ele tinha o tipo de amor que a graça incita. É isso o que o amor de Jesus pode fazer por qualquer um de nós. Primeiro ele apanha nossos fracassos e os perdoa. Isso nos dá uma gratidão tão grande que, em retribuição, começamos a amar Jesus. Mas isso não é tudo. O amor de Jesus nos permite, então, servir aos outros com o mesmo tipo de amor. Pedro não apenas foi perdoado e em seguida teve o pecado esquecido, mas também foi chamado para o serviço de amor. Três vezes Jesus lhe ordenou que pastoreasse o povo de Deus — ou seja, que amasse esse povo. “Alimente meus cordeiros”, disse Jesus (v. 15). “Cuide de minhas ovelhas” (v. 16). “Apascente minhas ovelhas”(v. 17). O fracasso de Pedro não o desqualificou para o serviço do Senhor. Na verdade, Jesus estava confiando a ele seu bem mais precioso: os filhos de Deus comprados com sangue. Pedro foi chamado a cuidar das ovelhas que Jesus ama, alimentando-as com a Palavra de Deus e vigiando-as com amor, como um bom pastor faria. PERDOANDO DO JEITO QUE JESUS PERDOA A restauração de Pedro nos ajuda a entender nosso próprio chamado a amar. Basicamente, “ter amor” é “ter com os outros a atitude que Deus em Cristo tem tido conosco”.11 Isso inclui oferecer-lhes o mesmo tipo de perdão que temos recebido. Amar do jeito que Jesus ama sempre começa com o entendimento do quanto Deus nos tem amado. Quando se trata de perdão, descobrimos que ele não computa nossos pecados contra nós, mas nos perdoa por meio da cruz de Cristo. Temos negado Jesus mais vezes do que Pedro chegou a negar, mas ainda assim somos perdoados. Conforme Pedro escreveu mais tarde, “o amor cobre uma multidão de pecados” (1Pe 4.8). Quando Pedro disse isso, não estava pensando basicamente no perdão de nossos pecados, mas no perdão que oferecemos pelos pecados dos outros. Agora, somos chamados a amar os outros com o mesmo amor de Jesus. Tendo sido perdoados, somos chamados a perdoar. Embora talvez não sejamos chamados a servir como pastores espirituais como Pedro, todos nós somos chamados a amar. Somos chamados a viver e a distribuir aquilo que recebemos graciosamente: o amor e o perdão de Jesus. Se falharmos em perdoar, então falharemos em pôr em prática as implicações do perdão que nós mesmos recebemos por meio do evangelho. Amy Carmichael aplicou esse princípio à sua condição de discípula, com uma série de declarações condicionais: Se eu não tenho compaixão de meus conservos, ainda que meu Senhor tenha tido compaixão de mim, então não conheço nada do amor do Calvário. Se não conheço quase nada de sua compaixão, se não conheço quase nada de seu incentivo à esperança para os realmente humildes e arrependidos, então não conheço nada do amor do Calvário. Se jogo na cara de uma pessoa arrependida um pecado confessado e abandonado, e deixo que minha lembrança daquele pecado afete meu pensamento e alimente minhas suspeitas, então não conheço nada do amor do Calvário. Se fico ofendida com facilidade, se me sinto satisfeita em continuar com uma fria animosidade, embora a amizade seja possível, então não conheço nada do amor do Calvário. Se digo: “Sim, eu perdoo, mas não posso esquecer”, como se o Deus que lava a areia de todas as praias do mundo duas vezes por dia não pudesse lavar essas memórias de minha mente, então não conheço nada do amor do Calvário. 12 Em contraste com isso, se temos de fato compaixão, se demonstramos de fato misericórdia, se buscamos de fato a reconciliação, se perdoamos e esquecemos de fato, então estamos mostrando aos outros o mesmo tipo de amor que Jesus nos mostrou quando morreu por nossos pecados no Calvário. Você está aprendendo a amar? Você consegue perdoar? Ou você ainda está ardendo de ressentimento contra todas as pessoas que “lhe têm feito mal”? Talvez você possa se identificar com as palavras de John Newton, que, pela incrível graça de Deus, foi resgatado de sua vida de pecado como traficante de escravos. “Tanto perdão”, Newton disse, mas “tão pouco, tão pouco amor. Tanta misericórdia, tão pouca retribuição. Privilégios tão grandes e uma vida tão lamentavelmente abaixo deles”.13 Infelizmente, nosso amor não é o que poderia ser, e nosso perdão não é o que deveria ser. No entanto, ainda há esperança para nós em Jesus. Vemos essa esperança na vida de Kim Phuc. Embora talvez você não a reconheça pelo nome, é possível que a reconheça por sua foto. Kim Phuc é a menina nua de nove anos de idade em uma famosa foto da guerra do Vietnã, que mostra pessoas aterrorizadas fugindo de um ataque de napalm perto de Saigon. O que se segue é o que ela escreveu sobre aquele ataque, sobre suas consequências dolorosas e sobre a graça de Deus que a capacitou a perdoar: Em 8 de junho de 1972 eu saí correndo do templo caodaísta em Trang Bang, meu vilarejo no Vietnã do Sul. Vi um avião diminuindo de altitude e então quatro bombas caindo. Vi fogo por todo lado ao meu redor. Então vi o fogo no meu corpo, especialmente no meu braço esquerdo. Minhas roupas tinham sido totalmente queimadas pelo fogo. Eu tinha 9 anos, mas ainda me lembro de meus pensamentos naquele instante: Eu ficaria feia, e as pessoas iriam me tratar de modo diferente. Minha foto foi tirada naquele momento na Rodovia1, que ia de Saigon a Phnom Penh. Depois que um soldado me deu algo para beber e jogou água no meu corpo, fiquei desacordada. Vários dias depois percebi que estava no hospital, onde passei 14 meses e fui submetida a 17 cirurgias. Foi um momento muito difícil para mim quando saí do hospital e voltei para casa. Nossa casa estava destruída; perdemos tudo e íamos apenas sobrevivendo dia a dia. A raiva dentro de mim era como um ódio tão grande quanto uma montanha. Eu odiava minha vida. Eu odiava todas as pessoas que eram normais, porque eu não era normal. Na verdade, muitas vezes eu quis morrer. Eu passava o dia na biblioteca, lendo uma porção de livros religiosos para encontrar um propósito para minha vida. Um dos livros que li foi a Bíblia Sagrada. No Natal de 1982, aceitei Jesus como meu salvador pessoal. Foi uma virada incrível na minha vida. Deus me ajudou a aprender a perdoar — a mais difícil de todas as lições. Isso não aconteceu da noite para o dia, e não foi fácil. Mas, por fim, entendi. O perdão me libertou do ódio. Ainda tenho muitas cicatrizes no corpo e fortes dores quase todos os dias, mas meu coração está limpo. Napalm é muito poderoso, mas a fé, o perdão e o amor são muito mais poderosos. Se aquela garotinha da foto consegue fazê-lo, pergunte a si mesmo: Você consegue? 14 Sim, pela graça de Deus, você consegue fazê-lo! Você pode receber o perdão de seus pecados por meio de Jesus Cristo. Então, o Espírito de Jesus o libertará do ressentimento e lhe dará seu amor, que tem o poder de perdoar. GUIA DE ESTUDO Quando as pessoas nos fazem mal, às vezes queremos ficar relembrando o dano que sofremos para poder justificar nossa ira. Lá no subconsciente, temos a sensação de que, se deixarmos nosso ressentimento ir embora, estamos deixando que a pessoa se safe com demasiada facilidade. Por isso, ficamos pensando horas e horas sobre o assunto e contamos a outros a respeito, para justificarmos nossa ira. Mas o verdadeiro amor não mantém um registro de erros. Devemos perdoar e não aceitar alimentar ressentimentos contra os que nos prejudicaram. 1. Quando você fica realmente irado com alguém, como lida com isso? Descreva uma ocasião em que não lidou bem com a ira. Quais foram os resultados de suas ações? 2. Quando decidimos perdoar alguém, que ações precisam vir em seguida à nossa decisão para podermos executá- la? Que passos práticos são uma parte necessária do perdão? 3. A palavra usada em 1Coríntios 13.5 para perdão significa “pôr na conta de alguém”. Que dimensões o uso do vocabulário comercial acrescenta às nossas definições comuns de perdão? De que maneira pensar da perspectiva de uma conta bancária nos ajuda a perdoar mais plenamente? 4. Leia Mateus 26.30-35,69-75. De que pecados Pedro foi culpado? 5. Com base em Mateus 26.30-35,69-75, que palavras você usaria para descrever Pedro? De que maneira você se identifica com ele? 6. Como você tem negado Jesus? Sua negação pode ser um incidente específico de seu passado ou ações diárias que, se você realmente refletir a respeito delas, são pequenas formas de negar a Cristo. 7. Leia João 21.1-8. Qual foi a reação de Pedro à atitude de Jesus?Que emoções podemos inferir que ele estava sentindo? 8. Leia João 21.9-19. Como Jesus mostra a Pedro que ele está perdoado? Faça uma lista das ações e palavras de Jesus que devem ter tido um significado especial para o Pedroarrependido. 9. Que princípios podemos extrair do perdão de Jesus e de sua restauração de Pedro e que também se aplicam à maneira que Jesus nos trata? O que podemos aplicar dessa história para nos ajudar a perdoar da maneira certa? 10. Quais são os benefícios que o perdão traz para aquele que perdoa? Quais são os resultados negativos de nos apegarmos à ira e ao ressentimento? 11. Lewis Smedes escreve: “O amor deixa o passado morrer. Leva as pessoas a um novo começo, sem acertar contas com o passado. O amor não tem de esclarecer todos os mal-entendidos. [...] O amor prefere amarrar firmemente no perdão todas as pontas soltas de erros e acertos do passado — e nos empurra para um novo começo”. Quem vem à sua mente quando você lê essa citação? Que passos você quer dar para perdoar de verdade essa pessoa? 1Disponível em: http://www.amenclinic.com, “Brain disorder research”. 2A pesquisa científica sobre buracos negros emocionais está resumida em Tom White, “Holes in your head — or helmet of salvation?”, Voice of the Martyrs (September, 2008): 2. 3Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth, 2005), p. 204 [edição em português: A caridade e seus frutos: uma exposição clássica sobre o amor, tradução de Tiago F. Cunha (s.l.: KDP, 2016)]. 4David E. Garland, First Corinthians, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker, 2003), p. 618. 5Brian J. Dodd, Praying Jesus’ way: a guide for beginners and veterans (Downers Grove: InterVarsity, 1997), p. 101. 6Eric E. Wright, Revolutionary forgiveness (Auburn: Evangelical Press, 2002), p. 147. 7Lewis B. Smedes, Love within limits: a realist’s view of 1 Corinthians 13 (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 67. 8Ibidem, p. 67. 9Garland, First Corinthians, p. 619. 10Smedes, Love within limits, p. 71. 11Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 631 [edição em português: 1Coríntios: comentário exegético, tradução de Marcio Loureiro Redondo (São Paulo: Vida Nova, a ser publicado)]. 12Amy Carmichael, If (London: SPCK, 1938), p. 4, 11, 19, 36, 40. 13John Newton, citado em Steve Turner, Amazing Grace: the story of America’s most beloved song (New York: HarperCollins, 2002), p. 110. 14Kim Phuc com Anne Penman, “The long road to forgiveness”, Canadian Broadcasting Corporation (30 jun. 2008). 12 O AMOR NUNCA FALHA O amor nunca acaba. (1CO 13.8) Porque estou certo de que nem a morte nem a vida, nem anjos nem governantes, nem coisas presentes nem coisas futuras, nem poderes, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra coisa em toda a criação conseguirá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor. (RM 8.38,39) Qual é a sua experiência com o amor de Jesus? Uma coisa é ouvir sobre o seu amor, outra é experimentar o poder dele na própria vida. Então, você encontrou o amor de Jesus e aprendeu a viver de acordo com ele? Você já o recebeu e começou a partilhá-lo? Para Agostinho, que foi um dos principais teólogos da igreja antiga, chegar à fé em Jesus Cristo era como apaixonar-se depois de procurar em todos os lugares errados. “Foi tarde que eu te amei”, lamentou Agostinho em sua famosa obra Confessions, escrevendo sobre os anos que desperdiçou fugindo de Deus: “Foi tarde que eu te amei, uma beleza tão antiga e tão nova, tarde eu te amei! [...] Eu te procurei e, na minha maldade, lancei-me nas belezas que fizeste. Tu estavas comigo, e eu não estava contigo. Essas belezas exteriores me mantiveram longe de ti”.1 Como foi que Agostinho chegou a encontrar o amor de Cristo? Apenas pela graça de Deus, que o alcançou e o salvou. É assim que Agostinho descreve como recebeu o amor de Deus: “Tu chamaste, tu gritaste, tu despedaçaste minha surdez; tu cintilaste, tu brilhaste, tu dispersaste minha cegueira; exalaste perfume, e eu aspirei e fiquei ofegante por ti; eu experimentei e estou faminto e sedento; tu me tocaste, e eu ardi desejando tua paz”.2 Nem todo mundo descreveria sua conversão da mesma maneira que Agostinho, mas o que ele capta tão profundamente é a forma que o amor de Jesus penetra nossos sentidos físicos. Conhecer Jesus é ouvir seu amor, ver seu amor, sentir o gosto de seu amor e ser tocado por seu amor. AMOR ETERNO Uma das melhores formas de aprender mais do amor de Jesus é estudar 1Coríntios 13 junto com os Evangelhos. Em Mateus, Marcos, Lucas e João, descobrimos que tudo o que o apóstolo Paulo disse aos coríntios sobre o amor é ilustrado de forma magistral na vida perfeita, na morte expiatória e na ressurreição gloriosa de Jesus Cristo. Jesus nunca faz nada sem amor. Na verdade, o amor de Jesus é tudo o que o Capítulo do Amor diz que o amor deve ser. É paciente com os pecadores e bondoso com estranhos. Não inveja nem se vangloria, mas se oferece em serviço humilde. Não insiste em sua própria vontade, mas se submete ao Pai. É capaz de perdoar, confiar, esperar e perseverar. Em outras palavras, o amor de Jesus é tudo o que não somos. Retratamos isso lá no início de nosso estudo de 1Coríntios 13, substituindo a palavra “amor” pelos nossos próprios nomes e, em seguida, substituindo pelo nome “Jesus”. Quando inserimos nossos próprios nomes na passagem, obtemos declarações estranhas, tais como “Philip é paciente e bondoso”, ou “Philip suporta todas as coisas”. Mas, quando tentamos usar o nome de “Jesus”, a passagem toda fica esplêndida: “Jesus não é arrogante nem grosseiro”; “Ele não insiste em que as coisas sejam feitas à sua maneira”; e assim por diante. Jesus Cristo é o amor vivo e perfeito. Em nenhuma outra passagem o contraste entre nosso amor e o amor de Jesus é mais absoluto do que no início do versículo 8, quando a Escritura diz que o amor “nunca acaba” ou “nunca falha” (NIV). Caso fôssemos colocar nossos nomes no início desse versículo, acabaríamos com uma impossibilidade lógica, porque o nosso amor sempre falha. Mas o versículo é verdadeiro no que diz respeito a Jesus: seu amor nunca falha. Se lermos 1Coríntios 13.8 um pouco mais literalmente, o versículo diz que “o amor nunca cai”. De acordo com David Garland,“Existem diferentes tipos de quedas. Paulo pode estar querendo dizer que o amor nunca sai derrotado, que nunca é destruído, que nunca fracassa, que nunca é insatisfatório ou que nunca deixa de ter algum resultado”.3 O verdadeiro amor nunca deixa nenhuma dessas coisas acontecer; ele nunca decepciona. Mas, com base no que Paulo diz em seguida, fica evidente que ele está pensando basicamente em como o amor continua amando, não em como o amor se mantém. Os versículos seguintes descrevem vários dons que “cessarão” ou “passarão”, em contraste com o amor, que “nunca acaba”, mas “continua” para sempre (v. 8,10,13). Para deixar isso claro, o apóstolo menciona vários dons espirituais que estavam provocando controvérsia em Corinto porque algumas pessoas os estavam transformando no elemento mais importante da vida cristã. O argumento de Paulo é simplesmente que, por mais úteis que possam ser, esses dons são temporários e transitórios e, portanto, não são tão importantes quanto o amor, que durará para sempre. Veja a profecia, por exemplo. A profecia é um dos maiores dentre todos os dons espirituais. Quando o profeta fala, até mesmo o rei tem de ouvir. Mas, “quanto a profecias”, Paulo diz que elas “passarão” (v. 8). O profeta fala antecipadamente o que Deus fará. Os profetas do Antigo Testamento aguardavam com expectativa a vinda de Cristo. A profecia do Novo Testamento é sobre a volta de Cristo. Mas, quando ele voltar, a história chegará ao fim e não haverá necessidade de nenhuma profecia. O mesmo vale para o dom de línguas, que era ponto de controvérsia em Corinto. Alguns membros da igreja pareciam pensar que, por falarem a língua do céu, “já eram participantes do estado final da existência espiritual”.4 Não é bem assim, disse o apóstolo: “quantoa línguas, elas cessarão” (v. 8). Até mesmo o conhecimento “passará” (v. 8) — não o conhecimento no sentido de compreender a verdade, o qual durará para sempre, porém o conhecimento como um dom espiritual para compreender mistérios que no momento estão além da nossa compreensão, mas que um dia serão revelados. Esse significado fica claro a partir do que Paulo diz nos versículos seguintes: “Pois conhecemos em parte e profetizamos em parte; mas, quando o que é perfeito vier, o que é parcial passará” (v. 9,10). Um dia, Jesus virá para tornar perfeitas todas as coisas; quando esse dia chegar, não mais precisaremos de dons espirituais — tais como conhecimento e profecia —, que nos ajudam a nos prepararmos para a vinda dele. Mas ainda precisaremos de amor. AGORA E MAIS TARDE Paulo mostra a diferença entre como as coisas são agora e como serão quando Deus tornar tudo perfeito; para isso, ele usa duas analogias: a da criança e a do espelho. “Quando eu era criança”, ele diz, “falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei homem, desisti dos modos infantis. Porque agora vemos obscuramente em um espelho, mas então veremos face a face. Agora conheço em parte; então conhecerei plenamente, assim como tenho sido plenamente conhecido” (v. 11,12). O que uma criança entende sobre o mundo é verdadeiro até certo ponto. Mas, quando se trata de entender como as coisas funcionam, há uma enorme diferença entre a infância e a idade adulta. Também há uma enorme diferença entre ver o reflexo de alguém em um espelho e encontrar alguém pessoalmente. A cidade de Corinto produzia alguns dos melhores espelhos de bronze do mundo antigo.5 No entanto, mesmo o melhor espelho só nos dá uma percepção indireta; não pode substituir um relacionamento real nem a interação pessoal face a face. Paulo faz essas comparações para mostrar que qualquer conhecimento que obtenhamos por meio de quaisquer dos dons espirituais que temos é apenas parcial, quando comparado com o conhecimento perfeito que teremos na eternidade, quando virmos Jesus face a face. Quando a perfeição de Jesus finalmente vier, tudo o que não é permanente passará. Isso inclui os dons de profecia, de conhecimento e de línguas, que Deus planejou para se tornarem obsoletos. De modo que, em vez de fazer dos dons espirituais nossa prioridade principal, devemos aprender a amar, que é algo que durará para sempre. Mark Dever exprime lindamente o pensamento: “Embora a profecia e o conhecimento passem, o amor permanecerá, ainda que na rarefeita atmosfera celestial da presença direta de Deus”.6 De fato, o que Paulo diz sobre os dons espirituais vale para todas as coisas terrenas: tudo desaparecerá. Até mesmo o próprio mundo será destruído com fogo (2Pe 3.7). Mas o amor sobreviverá a todas as coisas. A afeição divina preencherá todas as coisas em “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21.1), inclusive nosso próprio coração e vida. Como escreveu Jonathan Edwards: “Então, em cada coração, esse amor que agora parece ser apenas uma faísca será aceso até se tornar uma chama brilhante e incandescente, e cada alma resgatada será como se estivesse em uma labareda de amor divino e santo e, por toda a eternidade, permanecerá e crescerá nessa perfeição e bem-aventurança gloriosa!”.7 Já que o próprio Deus é amor, o amor continuará para sempre. É acima de tudo o poder duradouro do amor que explica a declaração triunfante e apoteótica na conclusão do Capítulo do Amor: “De modo que agora permanecem a fé, a esperança e o amor, esses três; mas o maior deles é o amor” (1Co 13.13). O amor é superior até mesmo às virtudes cardeais da fé e da esperança. Para citar o título de um famoso e antigo sermão sobre essa passagem, o amor é “a maior coisa do mundo”.8 O que o torna tão grande é o fato de que nunca terminará. De acordo com Charles Hodge, o amor “não é projetado nem adaptado apenas para o estado presente da existência, mas também para nossa existência futura e imortal”.9 A durabilidade do amor é inigualável. Não é apenas para agora; é para sempre. A PROVA DO AMOR DE DEUS Se 1Coríntios 13 é um retrato do amor, então é necessariamente um retrato de Jesus Cristo, que é o amor encarnado. A perfeição de todos os aspectos do amor se encontra no afeto de Jesus Cristo. Vivenciar o Capítulo do Amor é aprender a amar do jeito que Jesus ama. Só o amor dele é constantemente paciente e perfeitamente bondoso. Só o amor dele nunca inveja e nunca se vangloria, mas sempre coloca as outras pessoas em primeiro lugar. Só o amor dele nunca se irrita pecaminosamente e nunca fica injustamente irado, mas sempre serve e sempre perdoa. Só o amor dele tem a força para aguentar todas as coisas, a fé para crer em todas as coisas e a perseverança para suportar todas as coisas. Agora podemos acrescentar isto a tudo mais que dissemos sobre o amor de Jesus: seu amor é todas essas coisas... para sempre. O amor de Jesus nunca, jamais falha. Onde fica a melhor passagem da Bíblia para provar isso? Em sua promessa no final nos Evangelhos, Jesus nos diz que estará conosco “até o fim dos tempos” (Mt. 28.20). Mas, no final de Romanos 8, Paulo estende essa promessa para além do final da história, para mostrar que o amor que Deus tem por nós em Jesus nunca acabará: Se Deus é por nós, quem conseguirá ser contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como também não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem trará alguma acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os há de condenar? Jesus Cristo é o único que morreu — mais do que isso, que ressuscitou —, que está à destra de Deus, que está de fato intercedendo por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? Acaso será a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Conforme está escrito: “Por tua causa estamos sendo mortos o dia inteiro; somos considerados ovelhas para o abate”. Não, em todas essas coisas somos mais do que vencedores por meio daquele que nos amou. Porque estou certo de que nem a morte nem a vida, nem anjos nem governantes, nem coisas presentes nem coisas futuras, nem poderes, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra coisa em toda a criação conseguirá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor (v. 31-39). Há momentos na vida em que somos tentados a pensar que Deus se voltou contra nós, ou a ter medo de que ele nos abandone, ou a nos preocupar de que ele possa deixar de nos amar. Existem muitas razões pelas quais temos esses pensamentos e medos. Às vezes, nossos sofrimentos são tão grandes, que não conseguimos ver como Deus poderia de alguma maneira ser amoroso. Às vezes, a culpa do nosso pecado leva à sensação de que o amor de Deus está bem distante. Às vezes, nossos receios levam a melhor sobre nós, e ficamos preocupados com coisas que, lá no fundo, sabemos que não correspondem à verdade da Palavra de Deus. Mas sempre que somos tentados a duvidar do amor de Deus, o que devemos buscar é a passagem final de Romanos 8, em que o apóstolo Paulo apresenta um argumento decisivo e contundente para provar que nada jamais poderá nos separar do amor de Jesus. MAIS DO QUE VENCEDORES Paulo começa com o argumento de que quem pode o mais, pode o menos. “Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como também não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (Rm 8.32). Acompanhe a lógica de Paulo. Deus Pai já nos deu a maior dádiva do mundo: seu próprio Filho para ser nosso Salvador. Ele não poupou o Filho, mas por meio de seu sofrimento e morte o deu para nossa salvação. Se Deus nos ama o suficiente para nos dar seu Filho — é o raciocínio da Escritura —, então ele fará por nós toda e qualquer outra coisa amorosa de que possamos precisar — tudo, desde nos adotar como filhos até nos levar para nosso lar na glória (v. 29,30). Ainda assim,poderemos ser tentados a duvidar do amor de Deus. Portanto, o apóstolo lista algumas coisas que talvez pudessem roubar esse amor. Nos versículos 33 e 34, ele contempla a possibilidade de problemas legais. Algumas pessoas se preocupam com a possibilidade de ser moralmente desqualificadas. Seus pecados são tão grandes, que elas têm medo que Satanás (aquele promotor inteligente) possa aparecer um dia, acusando-as, e elas sejam banidas para sempre da presença de Deus. Mas a Bíblia diz que não! Se confiamos em Jesus para o perdão de nossos pecados,então o próprio Deus — o Deus infinito e todo-poderoso — declarará que somos justos. Portanto, quem “trará alguma acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica” (v. 33). Mesmo que ninguém faça uma acusação legal contra nós, talvez ainda assim sejamos condenados pelo próprio Juiz. Paulo responde a essa dúvida com uma pergunta retórica: “Quem os há de condenar?” A resposta é: “Ninguém!”. Se Deus não nos condena, então ninguém mais pode fazê-lo, porque Deus governa o mundo. Deus prometeu não nos condenar porque somos cobertos pela justiça de Jesus Cristo. Neste exato momento, Jesus está orando— eficazmente — pela nossa salvação. De modo que Paulo responde à sua própria pergunta retórica, dizendo: “Jesus Cristo é o único que morreu — mais do que isso, que ressuscitou —, que está à destra de Deus, que está de fato intercedendo por nós” (v. 34). Quem, portanto, teria a possibilidade de nos condenar, se o próprio Jesus — que morreu por nós e foi ressuscitado dentre os mortos para a nossa justificação — está lá para nos defender contra toda acusação de crime? Em seguida, o apóstolo deixa para trás problemas legais e passa a tratar de outros problemas da vida. Eis outra pergunta retórica: “Quem nos separará do amor de Cristo? Acaso será a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?” (v. 35). Todos esses são perigos sérios, conforme Paulo bem sabia, porque ele mesmo os havia enfrentado. Aqui ele descreve os tipos de perigos físicos a que toda a humanidade está sujeita, mas especialmente o povo de Deus, pois realiza a obra do reino e por vezes sofre pela causa de Cristo. Há tribulação e perseguição, pobreza e fome, guerra e violência — todas essas coisas, chegando até mesmo ao martírio. Essa tem sido a experiência do povo de Deus ao longo dos séculos. Paulo demonstra isso ao citar um dos antigos salmos de Davi, em que ele vê o mesmo tipo de sofrimento: “Por tua causa estamos sendo mortos o dia inteiro; somos considerados ovelhas para o abate” (v. 36). Quando nós mesmos sofremos esses problemas, é tentador pensar que certamente Deus não nos ama. Caso contrário — é o nosso raciocínio —, ele não estaria deixando isso acontecer conosco! Mas a Bíblia insiste em que, se tentarmos interpretar as afeições de Deus com base em nossas atuais circunstâncias, estamos fadados a interpretar de forma errada as intenções dele. Não importa aquilo pelo que estamos passando, Deus está nos amando o tempo todo. Não há nenhum problema ou dificuldade que realmente nos separe do amor de Deus. “Não”, diz o apóstolo, “em todas essas coisas somos mais do que vencedores por meio daquele que nos amou” (v. 37). Esse tem sido o testemunho de crentes sofredores, mas vencedores, ao longo dos séculos. Pela graça de Deus e pela obra do Espírito Santo, esse será nosso próprio testemunho em todas as duras lutas da vida. Quando somos tentados a duvidar do amor de Deus, precisamos pregar o evangelho a nós mesmos, dizendo: “Deus, meu Pai, não se poupou de me dar seu próprio Filho. Meu Senhor Jesus Cristo sacrificou a vida pelos meus pecados e agora mesmo está orando pela minha salvação. Portanto, pela obra de seu Espírito em minha vida, nada pode nunca, jamais, me separar do amor de Deus”. No final da vida, com o corpo envelhecido e frágil, Caspar Oleviano, um dos teólogos da Reforma, permanecia cheio de fé no amor que Deus tinha por ele em Jesus Cristo. Mesmo quando os órgãos dos sentidos já estavam quase incapazes de perceber o mundo ao redor, Oleviano não perdeu sua compreensão do amor de Deus. Seu testemunho à beira da morte foi: “Minha audição se foi, meu olfato se foi e minha visão está indo; minha voz e minhas sensações já quase se foram; mas a benignidade de Deus ainda é a mesma e nunca se afastará de mim”.10 AMOR INVENCÍVEL Você crê que o amor de Deus nunca o deixará? O apóstolo Paulo com certeza cria. Ele estava absolutamente convencido de que sua vida inteira — até mesmo com todo o sofrimento — estava debaixo do amor de Deus. De modo que, à medida que sua defesa do amor inelutável de Deus caminhava na direção de seu ápice lógico e retórico, Paulo relacionou cada obstáculo que conseguiu imaginar e, então, disse que nenhum deles jamais poderia interferir no amor de Deus por nós em Jesus. Ele disse: “Porque estou certo de que nem a morte nem a vida, nem anjos nem governantes, nem coisas presentes nem coisas futuras, nem poderes, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra coisa em toda a criação conseguirá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor” (v. 38,39). Paulo começa com a morte, que em outra passagem ele chama de “o último inimigo” (1Co 15.26). A morte é o mais temível de todos os causadores de divisão, porque tem o poder de nos separar daqueles a quem amamos. Mas a morte não pode nos separar do próprio amor, porque, para aqueles que creem em Cristo, a morte é uma porta para a presença de Deus. Nosso Salvador Jesus Cristo “aboliu a morte e trouxe à luz vida e imortalidade por meio do evangelho” (2Tm 1.10). Por conseguinte, a morte não nos afasta do amor de Deus, mas de fato nos une a Deus e a seu amor para sempre. Nas palavras de Alexander Maclaren: “O que separa se torna aquilo que une; ela nos arranca do mundo para poder ‘nos levar a Deus’”.11 A incapacidade da morte de nos separar do amor de Deus é ilustrada pelo testemunho de um jovem pastor chamado a visitar uma senhora idosa que estava acamada e já no final de seus dias. Quando tentou consolá-la, murmurando algo sobre como ele estava triste porque ela ia morrer, a idosa o interrompeu. “Deus o abençoe, meu jovem”, ela disse. “Não há nada para ter medo. Vou apenas atravessar o Jordão em poucas horas, e meu Pai é o proprietário das terras dos dois lados do rio”.12 A morte não consegue nos separar do amor de Deus, mas que dizer da vida? Se essa parece uma pergunta estranha para se fazer, então você é realmente abençoado, porque muitas pessoas sabem que a vida pode ser mais cruel que a morte. Ainda assim, a Escritura nos assegura que não importa o que sofremos na vida: Deus ainda está conosco. Jesus sabe o que é sofrer, porque ele próprio sofreu, e em nosso sofrimento ele continua a nos mostrar seu amor. Tendo considerado as grandes questões da vida e da morte, em seguida Paulo passa a tratar de várias autoridades. Ele está convencido de que “nem anjos nem governantes” conseguem nos separar do amor de Deus. Não está claro se “anjos” é referência a anjos bons ou a anjos maus, que são os demônios que caíram em pecado junto com Satanás e estão sempre tentando perturbar o povo de Deus. Na verdade, a palavra grega para “diabo” (diabolos) significa “separador” ou “criador de discórdia”. Também não está claro se governantes é referência a poderes terrenos ou a poderes celestiais — a governos ou a deuses. Quem quer que sejam esses governantes, eles não conseguem nos separar do amor de Deus. Por mais poderosos que sejam, o máximo que os demônios conseguem fazer é nos tentar a pensar que Deus não nos ama. Mas eles não conseguem impedir Deus de realmente nos amar, como ele sempre ama. Os poderes terrenos são ainda mais fracos. Eles podem fechar igrejas, expulsar Deus dos tribunais e mantê-lo fora da escola pública, mas não podem impedi-lo de amar o seu povo, da mesma maneira que fechar a janela ou baixar a persiananão consegue impedir o sol de brilhar. O amor de Deus é sempre vitorioso contra todos os “poderes que existem”. Em seguida, Paulo considera o tempo e a eternidade. “Nem coisas presentes nem coisas futuras” conseguirão jamais nos separar do amor de Deus. No tempo presente, os problemas não têm fim. Quanto ao futuro, sentimos todo tipo de incerteza. Mas Jesus Cristo é o Senhor da história. Ele é quem governa tanto esta vida quanto a vida vindoura. Portanto, somos, desde agora e para sempre, amados com um amor eterno. Já vimos o suficiente no que diz respeito ao tempo — aquilo que alguns chamam de “a quarta dimensão”. No versículo 39, Paulo passa a tratar da segunda e da terceira dimensões: “nem a altura nem a profundidade”. Aqui o apóstolo fala em termos espaciais para mostrar que não há em todo o universo nenhum lugar que esteja fora do amor de Deus. Não importa aonde vamos, Deus está lá (veja também Sl 139.7-10). É isso que dá a algumas pessoas a coragem de ir aos lugares mais perigosos do mundo, incluindo aqueles em que eles não têm um único amigo, e compartilhar o evangelho. O amor de Deus está em toda parte.Portanto, sempre que nos sentimos solitários, podemos dizer: “Senhor Jesus, eu me sinto solitário, mas sei que estás aqui comigocom todo o teu amor”. Vida e morte, anjos e demônios, presente e futuro, no alto e embaixo — existe alguma dimensão do amor de Deus que Paulo tenha deixado de mencionar? Aparentemente não, mas, só para ter certeza, ele termina dizendo “nem qualquer outra coisa em toda a criação”. Em outras palavras, não há absolutamente nada que jamais consiga nos separar do “amor de Deus em Cristo”. “Criação” inclui tudo o que existe, com exceção do próprio Deus, pois, antes de mais nada, ele é aquele que criou todas as coisas. De modo que, se Deus é por nós, não há absolutamente nada que consiga nos manter longe dele. Seu amor nunca nos deixará ir. Estamos presos ao Deus vivo, escreveu James Montgomery Boice, “por um amor gracioso, imutável, eterno e indestrutível”.13 Esse é um amor sobre o qual podemos construir nossa vida, do início ao fim. Esse ponto está ilustrado com perfeição no testemunho do pactualista escocês Robert Bruce, quando estava à beira da morte. Na manhã de sua morte, Bruce sentou para tomar o café da manhã com a família. De repente, ele gritou: “Espere, filha, espere. Meu mestre está me chamando”. Bruce pediu, então, uma Bíblia e a abriu em Romanos 8. Sua vista estava falhando, então ele citou de memória o final do capítulo. À semelhança do apóstolo Paulo, ele deu testemunho de que estava “certo de que nem a morte nem a vida, [...] nem qualquer outra coisa em toda a criação conseguirá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor”. Depois de ler essas palavras para a família, Bruce pediu que colocassem seu dedo nessas exatas palavras da Bíblia. Então ele disse: “Deus esteja com vocês, meus filhos. Tomei café da manhã com vocês e jantarei com meu Senhor Jesus esta noite. Morro crendo nessas palavras”.14 Robert Bruce tinha descoberto o que todo crente descobre: o amor de Jesus que dura por toda a vida estará ali conosco no momento da morte e depois prosseguirá por toda a eternidade. BUSQUE O AMOR! Visto que somos amados dessa maneira, somos chamados a viver dessa maneira — amando do jeito que Jesus ama. Deus não nos deu o seu amor para que o guardemos só para nós mesmos, e sim para que o partilhemos com outros. Jesus disse: “Este é meu mandamento: que vocês se amem uns aos outros como eu os amei” (Jo 15.12). Quanto mais conhecermos o amor inseparável e indivisível de Jesus, mais esse amor fluirá por meio de nosso coração para alcançar a vida de outras pessoas. O texto de 1Coríntios 13 termina com uma ordem simples que deve motivar e inspirar tudo o que vimos aprendendo sobre o amor de Jesus. A ordem aparece no início do capítulo 14, mas, na realidade, serve de conclusão prática para o Capítulo do Amor. É uma ordem que todo cristão deve levar a sério. A ordem é simplesmente esta: “Busquem o amor” (v. 1). Traduzindo o versículo mais literalmente: “Sigam o amor”, “Corram atrás do amor” ou até mesmo “Persigam o amor”. O verbo grego (diokete) descreve alguém que busca o amor com empenho. Essa ordem nos apresenta uma maneira simples de testar nosso compromisso com Cristo. Um cristão é alguém que tem experimentado o amor de Jesus e, por isso, busca o amor no relacionamento com outras pessoas. Então, a pergunta é: Eu estou buscando o amor? Estou buscando o amor com empenho? Tornei o amor meu propósito de vida? Jonathan Edwards disse: “Se o amor é uma coisa tão destacada no cristianismo, tão essencial e tão característica — isso mesmo, a exata soma de todas as virtudes cristãs —, então, com certeza, aqueles que se professam cristãos devem viver em amor e abundar nas obras do amor”.15 Qualquer um que tenha lido e estudado 1Coríntios 13 deve ter alguma ideia de como é viver na busca impetuosa do amor. Significa ser paciente com as falhas de outras pessoas. Significa ser bondoso com as pessoas, mesmo quando elas não parecem merecer. Significa não promover a nós mesmos, nem nos vangloriarmos de nossas conquistas, nem insistir em que a nossa vontade seja feita. Significa dar menos importância a nós mesmos e mais aos outros. Significa perdoar as pessoas quando elas nos ofendem e não aceitar ficar irados com elas quando nos irritam. Significa crer na melhor verdade acerca de outras pessoas e não na pior mentira. Significa que, mesmo nas circunstâncias mais desesperadoras, somos capazes de continuar crendo, continuar tendo esperança e continuar amando. Esse é o sublime chamado do amor de Jesus — um chamado para a vida inteira em que, é claro, todos fracassamos vergonhosamente. Quando lemos que o amor nunca falha, sabemos imediatamente que ficamos muito aquém da perfeição de Deus. Achamos tão difícil amar outras pessoas, que desistimos muito antes de Deus parar de exigir nosso amor ou de outras pessoas pararem de precisar dele. Ficamos cansados de correr atrás do amor; nossos afetos diminuem de velocidade, primeiro ficando mais como um trote, em seguida como uma caminhada, antes de finalmente desistirmos totalmente de persegui-lo. Nosso amor com frequência falha. Aliás, falhamos em amar assim como falhamos em todas as demais coisas da vida. Quando ficamos sem amor, é aí que mais precisamos nos lembrar do amor infalível de Jesus. Quando a Escritura diz que nada consegue nos separar do amor de Deus, isso inclui nossos próprios e frágeis esforços de amar como Jesus. Enquanto tentamos amar e continuamente fracassamos nisso, ao mesmo tempo estamos sendo amados por Deus, porque jamais poderemos ser separados daquele amor! Por conseguinte, nunca deveríamos dizer: “Não me sobrou nenhum amor para dar”, porque, no exato momento em que dizemos isso, ainda estamos sendo amados pelo amor invencível de Jesus. Em cada área da vida em que achamos difícil amar, o amor de Jesus está ali para nos ajudar. Nem mesmo um coração sem amor consegue nos separar do amor dele. Pela fé no Filho de Deus, estamos o tempo inteiro conectados a uma fonte de amor que nunca falhará, e, por esse motivo, nosso amor pode voltar a se renovar. Então, busque o amor! Continue aprendendo a amar do jeito que Jesus ama, reconhecendo essa jornada como um processo que levará a vida inteira. Viva com esperança naquele dia em que, pela graça de Deus e pela obra do Espírito Santo, sem nenhum constrangimento, você poderá escrever seu próprio nome no Capítulo do Amor: “O Phil é paciente e bondoso; a Carina não inveja nem se vangloria; o Júlio não é arrogante ou grosseiro. A Daniele não insiste em fazer tude de seu próprio jeito; o Ibraim não fica irritado nem ressentido; a Renata não se alegra com o mau procedimento, mas se regozija com a verdade. O Davi sofre todas as coisas, a Rose crê em todas as coisas, o Carlos espera todas as coisas, a Elizabete suporta todas