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98 Unidade II Unidade II 5 SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E GUERRA FRIA Ainda inconformados com o resultado da Primeira Guerra Mundial (1914‑1918), por conta das imposições geopolíticas que tiveram de acatar, Alemanha, Itália e Japão vão se unir em torno de um objetivo comum: expandir seu domínio territorial, à força, para crescer econômica e militarmente. Nascia, assim, o Eixo, formado inicialmente por esses três países e apoiado depois por outras nações. Seu espírito expansionista vai encontrar, na contramão, os interesses dos norte‑americanos, ingleses, franceses e soviéticos, potências militares que não vão tolerar de braços cruzados os movimentos do nazifascismo. Surgiam, dessa forma, os Aliados, que também mais tarde seriam defendidos por diversos outros países, inclusive o Brasil. Dessa maneira, o que hoje pode parecer um absurdo histórico tornou‑se inevitável: mais de 70 nações seriam levadas à Segunda Guerra Mundial (1939‑1945), provocando a morte de mais de 60 milhões de pessoas entre civis e militares. Para historiadores, trata‑se do evento mais violento e que mais matou em toda a História. Muito mais do que a Primeira, a guerra de 1939‑1945 merece sem dúvida alguma ser chamada de mundial. Propagou‑se por toda a Europa, desde o cabo Norte até a Sicília, de Brest ao Volga. Entrou pelo norte da África antes de estender‑se ao Oriente Próximo e de atingir uma grande parte do Extremo Oriente e do Pacífico. As operações que ocorreram em tais teatros de guerra foram favorecidas por novos sistemas de armas que surgiram, revolucionando os recursos táticos e estratégicos. Tal como o havia idealizado Ludendorff em 1918, a guerra foi total. Mobilizou todas as forças morais e físicas dos beligerantes com a implantação de sistemas de propaganda e de economias de guerra. Finalmente, o segundo conflito mundial foi absoluto não só pela amplidão dos massacres sistemáticos, pelo emprego de meios de destruição maciços ou pela irrupção das paixões, mas também pelo seu desfecho. Contrariamente ao que parecia constituir uma tradição, a guerra não se encerrou por uma paz negociada, ou mesmo ditada, mas pela capitulação total dos vencidos. Fenômeno sem precedente na história moderna dos países civilizados (MASSON, 2011, p. 13). O gesto inicial, aquele que deflagra a Guerra, é a invasão alemã à Polônia. Os alemães, liderados por Adolph Hitler, e italianos, comandados por Benito Mussolini, vão se tornar os principais protagonistas do Eixo. A propaganda nazista promete (ou impõe) ao mundo um novo poder. Um emblemático 99 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA filme documentário encomendado pelo próprio Hitler, O Triunfo da Vontade, produzido em 1934, todo gravado na cidade de Nuremberg durante um Congresso do seu Partido Nacional‑Socialista dos Trabalhadores Alemães, anuncia para o mundo como Hitler enxerga a Alemanha ressurgida das cinzas da Primeira Guerra: um império a ser respeitado e temido. Forças do Eixo vão aos poucos conquistando territórios estratégicos, como Paris, capital francesa, em 1940, e impondo o nazifascismo sobretudo à Europa. Hitler leva adiante o plano de construir campos de concentração, que abrigarão milhões de judeus, ciganos e prisioneiros de guerra em geral. Há relatos de diversas experiências desenvolvidas nesses lugares a título de testar a eficácia de venenos e outros compostos químicos para a matança de pessoas, indiscriminadamente. O mais famoso dos campos foi o de Auschwitz, na Polônia, destino final de aproximadamente 300 mil presos, grande parte dos quais, morta por envenenamento, com gás, em galerias subterrâneas. A esse plano orquestrado pelo próprio Hitler, ou Führer, como ele era mais conhecido, deu‑se o nome de Holocausto. Dentre os motivos que inspiravam o líder alemão, a visão etnocêntrica extremista da “pureza” da raça ariana, contra as “impurezas” sobretudo dos judeus, justificou um dos maiores movimentos de eugenia (matança indiscriminada e planejada de outra etnia, buscando isolar uma determinada tendência étnica). Saiba mais Embora Hitler tenha entrado para a História como o grande genocida do séc. XX, países como os Estados Unidos e a Rússia já praticavam a eugenia contra as suas populações antes que o ditador da Alemanha o fizesse. O documentário Homo Sapiens 1900, dirigido por Peter Cohen, resgata com riqueza de detalhes essa obsessão pela pureza racial e as suas atrocidades. HOMO sapiens 1900. Direção: Peter Cohen. Suécia, 1998. 89 min. Com o fortalecimento das democracias na segunda metade do século XX e a criação de órgãos humanitários internacionais, a ideia de aprisionar e matar pessoas por conta de sua origem étnica pareceria insustentável nos dias atuais, ainda que se tratasse de prisioneiros de guerra. Somente por meio de atos extremos, como os terroristas, isso seria possível diante das instituições que conhecemos atualmente, como a ONU – Organização das Nações Unidas, criada em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra. O governo brasileiro, então liderado por Getúlio Vargas (1930 – 1945), apesar de ter declarado imparcialidade em 1939, vai apoiar os Aliados e declarar guerra à Alemanha e à Itália, depois que um navio brasileiro é atingido no Atlântico por forças do Eixo. Cerca de 25 mil pracinhas, como eram chamados os soldados brasileiros, são enviados para combater na Itália, em 1942. Eles integram a Força Expedicionária Brasileira (FEB). “Ninguém sabia o que era um combate, dos generais aos soldados mais rasos. Aprendemos a guerrear nas dificuldades”, lembra um dos ex‑combatentes brasileiros, Júlio do Valle, aos 93 anos de idade, em entrevista publicada pela edição brasileira do jornal El País em 20/4/2014 (consulta em 26/3/2015). Conta o ex‑pracinha: 100 Unidade II Sofríamos bastante com as baixas temperaturas. A neve chegava até o joelho. Recebemos uma capa de gabardina grande, horrível, de 12 quilos e que com a chuva ficava muito pesada para carregar. Quando o comando norte‑americano viu aquilo, mandou recolher na hora as gabardinas (ROSAS, 2014). O gaúcho Getúlio Vargas chegara ao poder em 1930 respaldado pelos militares durante um conturbado período político. Sob proteção de uma junta militar, Getúlio assume a Presidência e coloca um ponto final na Velha República, período também conhecido pelo apelido “café com leite” – quando os presidentes eram indicados por uma oligarquia rural formada pelos estados de São Paulo (forte produtor de café) e de Minas Gerais (grande produtor de leite), de modo que se revezassem no poder, alternadamente, um paulista e um mineiro. Figura 38 – Presidentes Getúlio Vargas, à esquerda, e Franklin Roosevelt, ao centro Disponível em: https://bit.ly/3NVU4oI. Acesso em: 16 jun. 2022. É nesse período que surge nos Estados Unidos, por iniciativa do presidente Franklin Roosevelt, a chamada “política de boa vizinhança”, estratégia do governo americano de estreitar relacionamento com países latino‑americanos – Brasil, inclusive. Os Estados Unidos ainda sofrem as consequências do crash da bolsa de valores de Nova Iorque, que leva o país à profunda crise econômica. Mais do que isso, não quer ficar para trás em relação às influências políticas que Alemanha e Itália são capazes de gerar, inclusive para países da América Latina. [...] os EUA da década de 1930, debilitados pela Grande Depressão, não pareciam tão temíveis e dominadores quanto antes. O abandono, por Franklin D. Roosevelt, das canhoneiras e fuzileiros de seus antecessores podia ser visto não apenas como “política de boa vizinhança”, mas também (erroneamente) como um sinal de fraqueza. A América Latina da década de 1930 não se inclinava a olhar para o Norte. Mas, visto do outro lado do Atlântico, o fascismo sem dúvida parecia a história de sucesso da década. 101 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA Se havia um modelo no mundo a ser imitado por políticos promissores de um continente que sempre recebera inspiração das regiões culturalmente hegemónicas, esses líderes potenciaisde países sempre à espreita da receita para tornarem‑se modernos, ricos e grandes, esse modelo certamente podia ser encontrado em Berlim e Roma, uma vez que Londres e Paris não mais ofereciam muita inspiração política, e Washington estava fora de ação (HOBSBAWM, 1995, p. 136). O governo americano precisa ampliar seus mercados para intensificar a recuperação da sua economia. E não demora a estabelecer parcerias com o Brasil para fornecimento de tecnologia – o que interessa ao governo brasileiro, que aproveita a oportunidade para desenvolver sua indústria –, bem como garantir o fornecimento de matéria‑prima para atender às necessidades industriais americanas. Além disso, claro, estreitam‑se as relações políticas, o que será importante alguns anos depois durante a Segunda Guerra, como veremos em seguida. A cantora e dançarina Carmem Miranda e o personagem de desenho animado Zé Carioca tornam‑se ícones da cultura brasileira nos Estados Unidos e da aproximação entre os dois países nessa época. Um episódio marcante, em 1942, que ficaria conhecido como “O trampolim para a vitória”, ajudaria a inserir o Brasil no contexto da Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos precisavam de um ponto de apoio na América do Sul para de lá enviar tropas à África e Europa com mais segurança. E Natal, capital do Rio Grande do Norte, está localizada no ponto sul‑americano mais próximo daqueles continentes. O Brasil cedeu o acesso para as tropas norte‑americanas e, dessa forma, aviões vindos da América do Norte passaram a se preparar em Natal antes de alcançar a África, estabelecendo uma nova e bem‑sucedida rota. Ao permiti‑lo, o Brasil estimulou um efeito colateral, o desenvolvimento da região potiguar, que ganhou notoriedade. O portal G1 rememora o significado daquele momento para a população local: Um aeroporto com uma média de 200 voos diários, avenidas asfaltadas e a Base Naval do Alecrim foram marcas importantes do período. Mas, outras coisas menos relevantes, contudo muito apreciadas, também surgiram com a presença dos soldados americanos. Natal foi a primeira cidade brasileira a ter coca‑cola, ketchup, óculos de aviador e calças jeans. Os natalenses também adicionaram ao idioma nativo expressões da língua inglesa, como o ok e o bye‑bye (HOLDER, 2012). Os próprios presidentes Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos, e Getúlio Vargas, do Brasil, chegam a se encontrar e discutir, em Natal, em 1943, sobre o possível envio de tropas brasileiras para a Europa. Os alemães, a essa altura, não apenas já sabiam do funcionamento da base sul‑americana, mas, supostamente, poderiam enviar submarinos ao nordeste brasileiro. O clima de hostilidade era intenso. Aproximadamente 10 mil soldados americanos viviam na cidade potiguar nesse momento, o equivalente a 20% da população local. Destaca o portal G1: Mas nem só de romances e novos costumes viveu a cidade. O clima de guerra também se espalhou por Natal. Os natalenses conviviam com o black‑out, 102 Unidade II momento de apagar as luzes. A população tinha que ficar na escuridão, todas as noites, a partir de uma hora determinada. A medida fazia parte da estratégia de proteção militar (HOLDER, 2012). Desde 1942, a aparente hegemonia militar do Eixo começava a dar sinais de enfraquecimento. Os japoneses são vencidos pelos americanos de modo irreversível em batalhas aeronavais no Oceano Pacífico, entre maio e junho do mesmo ano, no Mar do Coral e em Midway, e os alemães sofrem uma derrota decisiva imposta pelos russos em Stalingrado, em batalha que custou 1,5 milhão de vidas e durou cerca de um ano. Uma conhecida tática de guerra nazista, baseada na velocidade dos ataques e da conquista de territórios, já não surtia o efeito inicial. Em 1943, os norte‑americanos e os ingleses tomam o sul da Itália e iniciam o cerco a Mussolini, que será derrotado mais tarde em Roma. Em 1944, o Brasil envia cerca de 25 mil combatentes para se somarem às forças aliadas e ajudar os Estados Unidos a tomarem o Sul da Itália. Alguns passos estratégicos finais são importantes para o desfecho da guerra. Um deles é a participação da Libéria. Mais de 100 anos antes, em 1822, os Estados Unidos haviam criado a Libéria, na região oeste da África, a partir da compra de terras, com o objetivo de levar para lá ex‑escravos americanos, cuja liberdade havia sido formalmente conquistada – a escravidão nos Estados Unidos acaba antes que no Brasil. Pois seria em solo liberiano, mais de um século depois, que os Aliados poderiam contar com um ponto de reabastecimento crucial para chegar tanto à Europa quanto ao Oriente. Até que em 6 de junho de 1944 acontece o emblemático “Dia D”, o mega‑ataque por parte dos Aliados que combina operações marítimas e aéreas na Normandia, ao noroeste da França, ao longo de aproximadamente 80 quilômetros de costa. Mais de 200 mil soldados chegam por meio de milhares de navios de guerra e mercantes aliados. Centenas de embarcações anfíbias descarregam homens, tanques, canhões, mantimentos e munição. Cerca de outros 25 mil soldados para‑quedistas chegam de madrugada, reduzindo as possibilidades de serem flagrados. As forças do Eixo não estavam preparadas para essa investida. Observação O Brasil não assume uma posição clara contra o nazifascismo assim que a guerra se inicia. Getúlio Vargas se mantém neutro, em posição até confortável, na medida em que continuava a manter relações tanto com os Estados Unidos quanto com a Alemanha. Somente a partir de ataques alemães a navios brasileiros é que Vargas, sem muitas alternativas, junta‑se aos Aliados. A reconquista de Paris – tomada pelos alemães em 1940 – é o passo fundamental para a ofensiva decisiva contra Hitler, que pressionado de todos os lados cometerá suicídio, em 30 de abril de 1945, em Berlim. O ataque anfíbio do Dia D é tido como o maior da história. O fator surpresa – os alemães sabiam que essa investida era iminente, mas não tinham como saber quando nem por que acessos exatamente ela aconteceria – somado ao número extraordinário de combatentes garantiram o sucesso da ação. Depois de perder a Primeira Guerra, a Alemanha perde também a Segunda. 103 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA Um dos capítulos mais dramáticos e emblemáticos da guerra ainda estava por vir, apesar de os resultados finais estarem praticamente definidos com a derrota imposta aos alemães, italianos e ao desmantelamento das esquadras japonesas. Acreditava‑se na ideia de que os japoneses prolongariam a resistência até os últimos homens – eles já adotavam, inclusive, a prática do suicídio dos pilotos kamikazes, que se chocavam propositalmente contra navios Aliados. Figura 39 – Adolph Hitler (à esquerda) e Benito Mussolini, chefes de Estado da Alemanha e da Itália, respectivamente Disponível em: https://bit.ly/3mHQEtF. Acesso em: 16 jun. 2022. Pois nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, bombardeiros norte‑americanos B‑29 lançam duas bombas nucleares sobre o Japão, a primeira contra a cidade de Hiroshima e a segunda em Nagasaki. O mundo ainda não conhecia o poder de destruição nuclear, nem seus sinais pirotécnicos que entrariam para a história, os cogumelos gigantes de fogo e fumaça, que podem alcançar 18 quilômetros de altura. A onda de calor irradiada do ponto de impacto varre o que encontra pela frente por longas extensões, podendo cobrir cidades inteiras. Poucos dias depois, e ainda contabilizando seus milhares de mortos – que chegariam a aproximadamente 250 mil, incluindo‑se os feridos que morreriam nos meses posteriores por conta de queimaduras e da radiação –, o governo japonês assina a sua rendição. Terminava ali a Segunda Guerra Mundial, um dos mais desoladores eventos da modernidade, que pode ter levado à morte, segundo registros, dezenas de milhões de pessoas de todo o mundo, entre soldados e civis, além de ter deixado mais dezenas de milhões de feridos e mutilados. A inusitada demonstração de poder contra os japoneses, considerada uma espécie de ato final da guerra, muitodebatida até hoje por razões éticas, não apenas impressionou a população mundial, mas funcionou como aviso da capacidade armamentista a que o homem teria chegado – um alerta para as próximas décadas, quando as nações voltariam a se ver sob ameaça de uma guerra mundial. Os horrores de Hiroshima e Nagasaki ficariam para sempre. Os chefes de Estado nunca mais quiseram assistir a outra explosão nuclear. Até porque novos testes atômicos, após a guerra, apontaram que o poder de aniquilamento desses artefatos teriam chegado, já em 1952, ao equivalente a 5 mil vezes o poder destrutivo da bomba de Hiroshima. A União Soviética teria sido capaz de desenvolvê‑la. É sobre esse novo momento que passamos a pensar, o pós‑guerra. 104 Unidade II Países europeus membros da Otan Países europeus membros do Pacto de Varsóvia Países europeus neutros Figura 40 – A Otan e o Pacto de Varsóvia, no imediato pós‑Segunda Guerra Disponível em: https://bit.ly/39k6tUp. Acesso em: 16 jun. 2022. Embora os Estados Unidos e a União Soviética (URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que existiu entre 1922 e 1991) fossem aliados no decorrer da Segunda Guerra, eles viriam se tornar, com o final dos combates, oponentes entre si. Ambos tinham visões de mundo diferentes e excludentes, defendiam sistemas econômicos antagônicos – os americanos, o capitalismo; os soviéticos, o socialismo – e se encontravam em posição de lutar por uma hegemonia mundial. Composta por diversos países da região da Eurásia (parte da Europa e da Ásia), a URSS era um poderoso bloco geopolítico governado de Moscou, a capital russa. Os Estados Unidos, por sua vez, continuavam contando com aliados importantes na Europa, a exemplo da Inglaterra. O clima para o surgimento de um novo ciclo de conflitos estava posto. Era o início da Guerra Fria, que duraria mais de 40 anos, entre 1945 a 1989, e que ganhou esse nome porque, ao final, nem um tiro seria disparado. A Segunda Guerra Mundial mal terminara quando a humanidade mergulhou no que se pode encarar, razoavelmente, como uma Terceira Guerra Mundial, embora uma guerra muito peculiar. Pois, como observou o grande filósofo Thomas Hobbes, “a guerra consiste não só na batalha, ou no ato de lutar: mas num período de tempo em que a vontade de disputar pela batalha é suficientemente conhecida” (Hobbes, capítulo 13). A Guerra Fria entre EUA e URSS, que dominou o cenário internacional na segunda metade do breve século XX, foi sem dúvida um desses períodos. Gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava‑se firmemente, podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade. Na verdade, mesmo os que não acreditavam que qualquer um dos lados pretendia atacar 105 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA o outro achavam difícil não ser pessimistas, pois a Lei de Murphy é uma das mais poderosas generalizações sobre as questões humanas (“Se algo pode dar errado, mais cedo ou mais tarde vai dar”) (HOBSBAWM, 1995, p. 223). As inevitáveis tensões entre esses dois mundos, o comunista e o capitalista, foram reproduzidas mundialmente, acentuando em nível global a divergência que tomava conta das duas potências econômicas e militares. Em poucos anos, os americanos anunciam a criação da Otan – Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar instituída em 1949 entre Estados Unidos, França, Inglaterra e outras nações. O acordo previa a automática reação solidária entre os países membros em caso de ataque inimigo. De outro lado, em 1955, a União Soviética responde com a criação do Pacto de Varsóvia, instituído na capital polonesa entre a própria URSS, Polônia, Alemanha Oriental, Checoslováquia, Hungria, Bulgária e Romênia. Era inevitável considerar a possibilidade da Terceira Guerra Mundial. Gestos, símbolos e gastos apontavam nessa direção. A peculiaridade da Guerra Fria era a de que, em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra mundial. Mais que isso: apesar da retórica apocalíptica de ambos os lados, mas sobretudo do lado americano, os governos das duas superpotências aceitaram a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial, que equivalia a um equilíbrio de poder desigual mas não contestado em sua essência. A URSS controlava uma parte do globo, ou sobre ela exercia predominante influência – a zona ocupada pelo Exército Vermelho e/ou outras Forças Armadas comunistas no término da guerra – e não tentava ampliá‑la com o uso de força militar. Os EUA exerciam controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia imperial das antigas potências coloniais. Em troca, não intervinha na zona aceita de hegemonia soviética. (HOBSBAWM, 1995, p. 223). Entretanto, a guerra se daria, na verdade, em torno de ameaças, demonstrações de força – inclusive desportivas, em Olimpíadas –, informações, capacidade armamentista e tecnológica e uma bilionária corrida espacial, coroada pela chegada do homem à Lua em 1969, quando lá desembarcaria o comandante da Apolo 11, o americano Neil Armstrong. Antes dele, o russo Yuri Gagárin tornou‑se o primeiro homem a viajar no espaço. Feitos como esses dominavam a agenda internacional, como parte de uma estratégia de enfraquecer moralmente o adversário. Assim que a URSS adquiriu armas nucleares – quatro anos depois de Hiroshima no caso da bomba atômica (1949), nove meses depois dos EUA no caso da bomba de hidrogênio (1953) – as duas superpotências claramente abandonaram a guerra como instrumento de política, pois isso equivalia a um pacto suicida. [...] Contudo, ambos usaram a ameaça nuclear, quase com certeza sem intenção de cumpri‑la, em algumas ocasiões: os EUA para acelerar as negociações de paz na Coréia e no Vietnã (1953, 1954), a URSS para forçar a Grã‑Bretanha e a França a retirar‑se de Suez em 1956. Infelizmente, a própria certeza de que nenhuma das superpotências iria de 106 Unidade II fato querer apertar o botão nuclear tentava os dois lados a usar gestos nucleares para fins de negociação, ou (nos EUA) para fins de política interna, confiantes em que o outro tampouco queria a guerra. Essa confiança revelou‑se justificada, mas ao custo de abalar os nervos de várias gerações. A crise dos mísseis cubanos de 1962, um exercício de força desse tipo inteiramente supérfluo, por alguns dias deixou o mundo à beira de uma guerra desnecessária, e na verdade o susto trouxe à razão por algum tempo até mesmo os mais altos formuladores de decisões (HOBSBAWM, 1995, p. 3). A bem da verdade, o resultado das explosões em Hiroshima e Nagazaki 20 anos antes era uma referência bastante incômoda e temida. Nenhum dos dois lados queria, de fato, ter de enfrentar ataques de destruição em massa, o que significava aniquilar civis. O nível de cuidado era tal, que registros dão conta de que em 1963, os líderes das duas potências, Nikita Kruchev (URSS) e John Kennedy (EUA), chegaram a instituir um “telefone vermelho”, de comunicação por satélite, capaz de transmitir textos e gráficos, para a eventual necessidade de se esclarecer ou desfazer qualquer dúvida que colocasse o mundo em perigo. Figura 41 – A corrida espacial leva o homem à Lua em 1969 Disponível em: https://bit.ly/3HipV0f. Acesso em: 16 jun. 2022. Foi nesse período que um movimento anticomunista chamado Macartismo se tornou bastante conhecido nos Estados Unidos, liderado por Joseph McCarthy (daí o nome). McCarthy fundou o Comitê de Atividades Antiamericanas, responsável por uma espécie de patrulha anticomunista. Na prática, o órgão monitorava a vida de cidadãos comuns e personalidades, como artistas e intelectuais, que pudessem de algum modo ajudar a propagar ideias de esquerda. O medo do comunismo que assombrava os Estados Unidos naquele momento chegou ao auge. Espionagem, contraespionagem, delações fundadas ou infundadas, uma verdadeira guerra informacional e subterrânea envolvia as instituições políticas –partidos, poderes, governo, lideranças, sindicatos etc. Esse sentimento se replicava em grande parte dos países aliados dos Estados Unidos. Os “inimigos comunistas” poderiam surgir ou se organizar e fortalecer em qualquer país. O Macartismo se torna referencial nos primeiros anos da década de 1950 mas perde força a partir de 1957. 107 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA Saiba mais O filme Boa noite, e Boa Sorte relembra a atuação do jornalista Edward Murrow, que desmascara o senador Joseph McCarthy e a sua “caça às bruxas”, apontando mentiras que deram sustentação às perseguições aos supostos comunistas. BOA noite, e boa sorte. Direção: George Clooney. EUA, 2005. 90 min. Enquanto o Macartismo floresce nos Estados Unidos, inicia‑se mais um governo de Getúlio Vargas no Brasil, em 1951, dessa vez pelo voto direto. Vargas já não governa sob a tutela dos militares, como no período anterior (1930‑45). Ao contrário, será pressionado também por eles ao promover um governo considerado instável e temeroso. A ascensão e radicalização dos movimentos populares fora do controle estatal são considerados os principais fatores desencadeadores da crise política que levaria ao fim o governo Vargas. De acordo com essa linha interpretativa, as classes dominantes ficaram temerosas com o avanço dos movimentos populares e discordaram do modo como o governo respondeu às exigências e demandas sociais que irromperam no cenário político. A oposição ao governo varguista foi crescendo paulatinamente à medida que o país era agitado por manifestações de protesto e greves trabalhistas. Críticas e pressões oposicionistas minaram rapidamente a estabilidade governamental. Na área da política institucional, os principais grupos oposicionistas ao governo de Getúlio Vargas faziam parte da União Democrática Nacional (UDN), que o acusavam constantemente de planejar um golpe em conluio com líderes sindicais objetivando criar um regime socialista no país (CANCIAN, 2013). Pressionado por todos os lados, o suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954 pode ter colocado fim às intenções de um golpe militar que, em razão disso, precisou ser engavetado, até que encontrasse, dez anos depois, um momento político propício. O presidente se encontrava no Palácio do Catete, quando redigiu uma “carta‑testamento” e suicidou‑se com um tiro no peito. O impacto provocado pela notícia do suicídio de Vargas e a divulgação da carta‑testamento foi intenso e acabou se voltando contra a oposição. Grandes manifestações populares de apoio ao ex‑presidente estouraram em várias cidades do país. Comícios organizados por líderes sindicais e políticos ligados ao getulismo responsabilizavam a UDN e o governo norte‑americano pelo fim dramático de Getúlio. Órgãos de imprensa, 108 Unidade II como o jornal O Globo entre outros, e a embaixada dos Estados Unidos foram alvo de ataques populares. Greves de trabalhadores também ocorreram como forma de protesto (CANCIAN, 2013). Figura 42 – O periódico Última Hora anuncia o suicídio de Getúlio Vargas Disponível em: https://bit.ly/3NV8ULS. Acesso em: 16 jun. 2022. De volta ao contexto continental, é preciso destacar que foi da América Central que surgiram dois movimentos revolucionários que mudaram a fisionomia política da América Latina. Na Nicarágua, o líder revolucionário Augusto César Sandino é lembrado até hoje como herói nacional. O mesmo acontece em Cuba em relação a Ernesto “Che” Guevara. Ambos inscrevem seu nome na história ao resistirem armados às forças ditatoriais locais fortemente apoiadas pelos norte‑americanos. Por interesses geopolíticos, Estados Unidos e Grã‑Bretanha competem por influência sobre a Nicarágua. Em 1907, os americanos apoiam a revolução que depõe o então presidente liberal e ditador José Santos Zelaya e intervêm em órgãos estratégicos de governo, como o Banco Central. A presença do poder americano na Nicarágua, habitual, torna‑se ostensiva. Em 1927, Sandino lidera uma rebelião contra a presença das forças norte‑americanas no país. Por meio de guerrilha, ele resiste até 1933, quando os Estados Unidos se retiram do país, após um processo eleitoral que define Juan Bautista Sacasa como presidente. Sacasa é um dos membros revolucionários que, ao lado de Sandino, deu início à revolta contra os americanos. Entretanto, diante da promessa americana de que a Nicarágua promoveria eleições para presidente, Sacasa se acomoda e acaba eleito. Ele e Sandino se reconciliam. No ano seguinte, o general Anastasio Somoza, sobrinho de Sacasa, no controle da Guarda Nacional, executa Sandino. E mais dois anos depois, lidera um golpe de Estado e se declara presidente. Os Somoza vão governar a Nicarágua por cerca de 40 anos. Em 1962, o país vê nascer a Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN, movimento de caráter libertário, cujo nome é uma homenagem ao revolucionário Sandino. A Frente dá início a uma revolução em 1978, processo que se estenderá até 1990. Cria a Junta de Governo de Reconstrução Nacional, coordenada por Daniel Ortega. Em 1985 a Junta é dissolvida, e Daniel Ortega prossegue como presidente. 109 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA Figura 43 – Nicarágua, no destaque Disponível em: https://bit.ly/3Qqcek6. Acesso em: 16 jun. 2022. Em Cuba acontece outro processo revolucionário que, da mesma forma, implica as forças contrárias estadunidenses. É na pequena e estratégica ilha que acontece, em 1959, um dos mais conhecidos movimentos políticos do século XX, liderado por Fidel Castro. O país era então presidido por Fulgêncio Batista, alinhado política e economicamente com os Estados Unidos – época em que Cuba era um destino turístico regular até mesmo para marinheiros americanos, que usavam a ilha para se divertir, sobretudo em prostíbulos e bares, quando retornavam de exercícios militares. A determinação de Fidel no sentido da libertação tanto econômica quanto moral da ilha em relação aos Estados Unidos embalava a visão de mundo dos insurgentes. A ilha se tornaria socialista, em meio a uma América capitalista. Figura 44 – Fidel Castro Disponível em: https://bit.ly/3MVcFQe. Acesso em: 16 jun. 2022. 110 Unidade II Entre os anos 1950 e 1960, o cenário mundial é o da Guerra Fria, protagonizada pelos Estados Unidos e pela União Soviética. A tomada do poder em Cuba vai se tornar um fato tão expressivo externamente quanto para o próprio país. Afinal, a ilha está a menos de 200 km de Miami, Flórida, EUA. Assim que Fidel Castro institui o sistema econômico socialista e declara apoio aos soviéticos, as tensões aumentam, na medida em que Cuba pudesse vir a servir aos camaradas como uma estratégica base militar. Em 1961 é deflagrado um movimento contrarrevolucionário, com apoio e coordenação americanos: um grupo paramilitar cubano de pouco mais de mil homens exilados pelo novo regime político, treinado e apoiado pela Agência Central de Inteligência (CIA), promove a Invasão da Baía dos Porcos, ao sul da ilha de Cuba, com a intenção de derrubar o governo castrista. John Kennedy, eleito presidente dos Estados Unidos há apenas alguns meses, apoia a ação informalmente, para não correr o risco de vincular seu governo oficialmente à ação e acabar acirrando ainda mais a tensão internacional com o Leste Europeu. Mas a tentativa é frustrada e, mais que isso, vai elevar bastante o risco da deflagração de uma guerra mundial. Os contrarrevolucionários não conseguem resistir a mais de três dias, graças à também bem treinada e armada defesa cubana, então apoiada pela URSS. E o que o ataque consegue gerar é um mal‑estar decisivo para que os soviéticos decidam instalar dezenas de mísseis atômicos em Cuba. Não bastasse o gesto atrapalhado e considerado provocativo, os Estados Unidos vinham intensificando sua posição ofensiva na Europa com a instalação de mísseis nucleares na Itália, Inglaterra e Turquia, países vizinhos à União Soviética. A reação soviética parece óbvia e muda o status da Guerra Fria. Apesar do medo recíprocoda capacidade de destruição que existe entre Estados Unidos e URSS – o que garantia o aparente controle da situação –, a chegada de mísseis soviéticos em Cuba vai se tornar um dos momentos mais aflitivos da segunda metade do século XX. Para o pesquisador da Universidade Nacional de Brasília, Carlos Federico Domingues Ávila, A humanidade prendeu a respiração naquela semana de outubro de 1962. Entre os dias 22 e 28, o planeta acompanhou, incrédulo, a mais grave de todas as crises do período da Guerra Fria, a tensão entre os blocos capitalista e comunista, liderados, respectivamente, por Estados Unidos e União Soviética, entre 1947 e 1991. Documentos secretos recentemente disponibilizados no Brasil e em outros países confirmam a extrema gravidade daquele episódio. O mundo esteve à beira da Terceira Guerra, do holocausto nuclear e, eventualmente, do extermínio da humanidade. Quase meio século depois, a crise dos mísseis soviéticos em Cuba ainda é motivo de debates acalorados. A descoberta de bases soviéticas em território cubano, onde eram montados 42 mísseis de alcance intermediário com ogivas nucleares dez vezes mais poderosas que as lançadas contra Hiroshima, e com capacidade para atingir quase todo o território dos Estados Unidos – bem como outros países do continente americano –, deu início à crise sem precedentes no pós‑Segunda Guerra. Em 22 de outubro de 1962, o então presidente dos Estados Unidos, 111 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA John F. Kennedy (1917‑1963), anunciou em rede nacional de rádio e televisão a imposição do que chamou de “quarentena”, que, na verdade, era um bloqueio naval, estendido a todos os navios suspeitos de transportar armas ofensivas em direção à ilha de Cuba, que adotara o socialismo em 1961 e se aproximara da URSS. Kennedy também exigiu a imediata retirada dos mísseis e bombardeiros soviéticos do país caribenho, determinou rigorosa prontidão das Forças Armadas americanas em todo o planeta e manifestou interesse numa saída negociada que pusesse fim ao conflito. Ao mesmo tempo, o governo revolucionário comandado por Fidel Castro desde 1959 anunciou mobilização nacional em Cuba e a disposição de resistir em caso de invasão da ilha. O governo soviético, então dirigido pelo premier Nikita Kruschev (1894‑1971), anunciou medidas semelhantes, ainda que menos ostensivas. Outros países também reagiram à situação tão preocupante criada na bacia do Caribe (ÁVILA, 2012). A revista Veja, que já era um conhecido periódico àquele tempo, estampou a manchete “A crise dos mísseis – o dia em que chegamos perto do fim”, posicionando o leitor sobre o nível de perigo a que se chegou, trazendo na capa três ícones mundiais e protagonistas do episódio: Fidel Castro, John Kennedy e Nikita Kruschev, respectivamente os Chefes de Estado de Cuba, Estados Unidos e União Soviética. Sob olhar jornalístico, mais humanizado e até dramático, foi dessa forma que a revista narrou o que teria sido o momento‑chave da crise: A intrepidez do comandante vermelho durou onze dias repletos de temores, reuniões secretas, mobilizações militares e lances de desespero. Ironia suprema, Nikita Kruschev, o soberano de um império que se vangloria de sua frieza e destemor diante do sentimentalismo dos ocidentais, foi o primeiro a sucumbir. Na noite do dia 26, a Casa Branca recebia uma mensagem incomum. No lugar dos comunicados impessoais e sisudos geralmente assinados por Kruschev, chegava uma carta extensa e franca, claramente escrita sob extrema comoção. Concluiu‑se que os nervos de aço de Kruschev haviam fraquejado – ele tomara para si a decisão de oferecer um acordo aos americanos, e redigira a carta de próprio punho, sem consultar a cúpula comunista. Sua proposta: Kennedy prometeria jamais atacar Cuba, todos os mísseis iriam embora. “Entendemos perfeitamente que, se atacarmos vocês, vocês responderão da mesma forma”, escreveu Kruschev. “Somos pessoas normais, que compreendemos e avaliamos corretamente a situação. Só lunáticos e suicidas poderiam agir de outra forma. Não queremos destruir seu país, mas sim, apesar das nossas diferenças ideológicas, competir pacificamente, e não por meios militares. Somente um louco é capaz de acreditar que as armas são os principais meios de vida de uma sociedade. Se as pessoas não mostrarem sabedoria, elas entrarão em confronto, e a exterminação recíproca começará.” 112 Unidade II Os americanos foram dormir otimistas com a chance de acordo, mas ainda teriam mais um dia de angústia pela frente. Provavelmente convencido pelos camaradas de partido, Kruschev divulgou outra mensagem, desta vez de forma pública, colocando outra exigência na conta dos americanos: a remoção de seus mísseis na Turquia, vizinha da URSS. Moscou comparava a presença das armas dos EUA no país à ameaça dos mísseis soviéticos em Cuba. Kennedy lustrou a cara‑de‑pau e decidiu ignorar o segundo recado: preparou uma resposta apenas para a carta original de Kruschev. Inacreditavelmente, os momentos de espera por uma definição do russo foram, na verdade, os mais perigosos dos treze dias de crise. Se houve um dia em que a pior das guerras esteve mesmo perto de começar, esse dia foi sábado, 27 de outubro de 1962 (VEJA, 1962). Figura 45 – Capa da revista Veja da edição de outubro de 1962 Disponível em: https://bit.ly/3mMMhNP. Acesso em: 10 jun. 2015. A crise é contida, mas a intolerância de parte a parte faz com que a ameaça se mantenha latente. A ONU – Organização das Nações Unidas – passará a ser um palco importante dos debates internacionais. De algum modo, a entidade ajuda a regular as tensões, fazendo crer que há espaço onde quebra‑cabeças diplomáticos possam ser montados a partir do esforço de todos. Durante um dos encontros promovidos pela Organização nesse período, dezembro de 1964, um dos líderes mais reconhecidos da revolução cubana e ministro de governo, Ernesto “Che” Guevara, chega a apelar pelo fim do monitoramento militar americano e pelo direito à soberania de Cuba no sentido de consolidar seu sistema socialista. 113 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA Exemplo de aplicação Pesquise e leia na internet matérias jornalísticas recentes sobre a reaproximação entre Cuba e Estados Unidos, após mais de 50 anos de rompimento diplomático. Procure compreender, em especial, o chamado “embargo econômico” imposto a Cuba desde 1962, seus efeitos e a possibilidade iminente de sua suspensão. “Che”, como é chamado, reclama de voos norte‑americanos de reconhecimento (gravação de imagens) não autorizados em espaço aéreo cubano, assim como de estranhas abordagens marítimas nos arredores da ilha, entre outras iniciativas americanas beligerantes. Exige liberdade e encerra seu discurso entoando o lema “pátria ou morte”. É ovacionado pela plenária durante minutos. A ONU disponibiliza um vídeo desse discurso em: http://www.un.org/content/es/_vidout/video740.shtml. Médico e argentino, “Che” é amigo pessoal de Fidel desde 1954, quando Castro já liderava um grupo de exilados cubanos no México. Ambos são confidentes, dividem os principais momentos da revolução desde a estratégia inicial, tornam‑se parceiros e símbolos do anti‑imperialismo norte‑americano, como eles mesmos se definiam. Figura 46 – O argentino Ernesto “Che” Guevara Disponível em: https://bit.ly/39nk0KF. Acesso em: 16 jun. 2022. A atuação de “Che” (expressão que ele usa sempre que se dirige a alguém) não se limita aos desafios da América Latina. Sob forte influência literária de esquerda, fomentada desde a adolescência, o líder sonha em levar o socialismo a toda a América Latina. Ele ainda lutará no Congo (África), e ao voltar à América Latina, na Bolívia. Era conhecido pelo modo implacável como lidava com os inimigos. É, até hoje, muito criticado pelo elevado número de mortes que impôs aos adversários políticos. 114 Unidade II Em 1965, “Che” parte de Cuba para o Congo, país considerado estratégico para a Guerra Fria, onde ele lidera uma tentativa frustradade promover os ideais de esquerda contra a ordem capitalista local. A ideia de que a experiência da revolução e algumas centenas de homens bastariam para disseminar o ideal socialista cai por terra, uma vez que a própria sociedade local não se convence a aderir ao movimento. Pouco tempo depois Guevara é convencido pelos próprios cubanos a regressar. Ele voltará, mas dessa vez determinado a combater na Bolívia, onde espera ter mais sucesso. Não terá. As condições da guerrilha serão diferentes, o seu conhecimento geográfico mais limitado e a própria população, a exemplo da do Congo, não estará disposta a servir aos anseios de uma revolução. “Che” será preso e morto, como ainda veremos no final desta unidade. A notícia de que “Che” havia escrito um diário durante sua estada no Congo é revelada em 2000. Assim a Folha de S. Paulo registrou a informação, destacando os momentos finais da trajetória do líder: Um capítulo secreto da história dos movimentos revolucionários dos anos 1960 acaba de ser desvendado. Depois de mais de 30 anos, está sendo publicado o diário de Che Guevara na guerra do Congo, uma tentativa fracassada de levar a revolução cubana para a África. [...] Guevara embarcou para a aventura africana em 1965, aos 37 anos, usando o codinome “Tatu” (número três em swahili). Seu projeto era aproveitar sua experiência como líder da revolução cubana para abrir um front contra o “imperalismo yankee” num momento de turbulência política na África. [...] Guevara chegou ao leste do Congo acompanhado por 300 soldados cubanos com o objetivo de liderar os grupos rebelados que se apresentavam como herdeiros das idéias de Lumumba. Mas tudo que ele planejou deu errado. “Essa é a história de um fracasso”, escreveu Guevara num dos trechos do diário publicados pelo jornal Guardian. Guevara esperava encontrar revolucionários, mas achou líderes mais preocupados em brigar entre si e desviar dinheiro da guerrilha para se embriagarem com prostitutas em luxuosos hotéis de capitais africanas. “A idéia que nos guiou era assegurar que homens experientes em batalhas de libertação lutem lado a lado com homens sem experiência e tragam o que nós chamamos de “cubanização” dos congoleses. Mas o que se verá é o exato oposto: a congolização dos cubanos que ocorreu durante esse período”, escreveu Guevara. Numa carta escrita para Fidel Castro, Guevara revela seu desapontamento com o movimento: “Eu queria fazer uma frente única para continuar a luta 115 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA pela libertação da África, mas fomos afetados pelo atraso e pela falta de desenvolvimento político‑ideológico da população.” Em novembro de 1965, Guevara desistiu de “liberar um país que não quer lutar” e pediu ajuda a Cuba para resgatar seus soldados. Che queria ficar no Congo como um exemplo de dever revolucionário, mas acabou sendo convencido a voltar para Havana (GRINBAUM, 2000). Maria Paula Araújo ressalta que: Nunca será demais reforçarmos a ideia do impacto da Revolução Cubana e, em especial, da figura de Che Guevara, para os jovens de esquerda, não só da América Latina mas de todo o mundo. Régis Debray, na época um jovem escritor francês, recém‑saído da universidade, que veio para a América Latina lutar com Che Guevara, tornou‑se um exemplo para inúmeros outros jovens europeus. Debray seguiu com Guevara para a Bolívia, onde ficou preso por quatro anos. O guevarismo – e sua noção particular de heroísmo, combate, ação e urgência revolucionária, na qual se justificava matar e morrer pela revolução – foi particularmente marcante para os militantes da luta armada na América Latina (ARAÚJO, 2008, p. 254). Não exatamente movidos pelos mesmos sonhos de “Che”, mas como se estivessem sintonizados com ele ao menos em seu espírito ousado e crítico, jovens de toda parte farão dos anos 1960 um marco que ganhará o nome de “contracultura”, período em que muitos valores estabelecidos passarão a ser questionados e combatidos. É como se houvesse chegado a hora de se discutir a legitimidade dos sistemas instituídos, principalmente o capitalista, mas também o socialista. Como se “Che” tivesse sido capaz de se antecipar a uma ideia cuja hora estivesse por chegar. Jovens começam a se organizar e expressar seu repúdio à insensibilidade para questões humanas centrais, como os direitos civis e políticos mais elementares, e a defender outras maneiras de pensar a arte, a cultura e a própria ideia de felicidade. Nudismo, emancipação sexual e outras práticas libertárias ganham força e expressão. Diversos movimentos civis encontram na contracultura a atmosfera ideal para a sua eclosão. Dentre os muitos gestos que ajudam a ilustrar essas iniciativas está a nudez praticada em grandes shows de rock nos Estados Unidos. O guitarrista Jimi Hendrix torna‑se um ícone mundial nesse período. 116 Unidade II Figura 47 – Flagrante do mais famoso festival de música da contracultura: Woodstock – “3 dias de paz e música” Disponível em: https://bit.ly/3mP757i. Acesso em: 16 jun. 2022. A postura ocidental beligerante, com tendências para a guerra, é discutida em diversas partes do mundo, principalmente nos próprios Estados Unidos, que, além de serem um dos protagonistas da Guerra Fria, enfrentam uma guerra que se torna emblemática, contra o Vietnã do Norte, comunista. O Vietnã do Sul, capitalista, e o do Norte disputam entre si a hegemonia na região. A disputa tem importância geopolítica, por conta das repercussões do resultado quer para o sucesso do comunismo, quer para o sucesso liberal, capitalista. Embora já apoiassem o Vietnã do Sul com todo tipo de recurso, será a partir de 1965 que os Estados Unidos entrarão na guerra efetivamente. A capacidade fotográfica da imprensa de registrar a dor e a perda de vidas é maior e tecnicamente superior àquela que se tinha na Segunda Guerra. Os efeitos midiáticos junto à sociedade americana são agora muito mais intensos. Soldados que também são filhos, netos, primos, amigos morrem aos milhares sob as objetivas atentas, fortalecendo a percepção de que a guerra é equivocada, desastrosa e irremediável. Os resultados militares não são aqueles que os americanos vislumbravam inicialmente, a guerra dura mais do que se poderia imaginar, de 1959 a 1975, e até hoje milhares de famílias americanas, além de inúmeros ex‑combatentes, veem a guerra como um erro histórico. Lembrete A Guerra do Vietnã é lembrada até hoje por grande parte da sociedade americana como um equívoco histórico, por ter levado à morte tantos jovens americanos e também vietnamitas desnecessariamente. Inúmeros ex‑combatentes amputados (por conta de minas terrestres) ainda protestam pelas consequências. 117 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA A contracultura atinge seu momento mais marcante em 1968. Até hoje ele é chamado por muitos de “o ano que não terminou”, por conta de ter estabelecido uma espécie de marco, já que é a partir dele que a juventude, principalmente no Ocidente, passa a se comportar de forma mais intensa, participativa e questionadora em relação à ordem estabelecida. Os movimentos são pacíficos, em forma principalmente de grandes concentrações em vias públicas, e eventualmente provocam choques com as diversas polícias locais. O repúdio não se limita à visão de mundo ocidental, mas se opõe também às intolerâncias comunistas e ao modo como o socialismo restringe as liberdades. Sinal de que a sociedade civil não suporta mais conviver com os efeitos da Guerra Fria, como o permanente estado de medo. 6 DITADURAS MILITARES Para o Brasil, os anos da contracultura coincidem com o período da segunda ditadura militar vivida pelo País no século XX (depois que Getúlio Vargas instaurou o Estado Novo entre 1937 e 1945). Em 1961, o presidente Jânio Quadros, há meses no poder, renuncia, abrindo a vaga para o vice‑presidente, João Goulart. À época, presidente e vice eram eleitos separadamente, não havia a necessidade de estarem vinculados entre si, ao mesmo partido político.E o vice de Jânio era tido como um simpatizante do comunismo – ele estava, aliás, em visita oficial à China comunista quando da renúncia do titular. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Presidência da República e que pesquisou sobre a violação de direitos durante a ditadura militar (1964‑1985): Segundo os líderes do golpe, Joao Goulart era um agente da subversão no pais, perigoso para a segurança nacional, abertamente identificado com o comunismo internacional. Em um regime presidencialista como o brasileiro, no qual o chefe do Executivo possuía um grande poder discricionário, sua posse seria fatalmente um veículo desagregador da ordem e da segurança nacional (BRASIL, 2014, p. 94). O governo de João Goulart – ou Jango, como é mais conhecido – é conturbado e incomoda alguns setores da sociedade e os militares, estes sempre alertas ao contexto internacional da Guerra Fria. O clima de instabilidade política potencializado pelo receio de que Jango enveredasse pelo caminho do socialismo, como acontecera com Cuba, leva o país a um nível de instabilidade que aos olhos mais conservadores justifica uma tomada de posição radical. E a partir de uma sucessão de manobras decididas no interior da cúpula militar do País, o exército acaba depondo o presidente em 31 de março de 1964. Jango busca exílio no Uruguai. Em 1964, o governo João Goulart via‑se acuado: as direitas civis alardeavam que as reformas de base visavam comunizar o país; o Congresso Nacional, de maioria conservadora e, em boa parte, representante dos grandes latifundiários, recusava‑se a aprovar o projeto de reforma agrária sem indenizações aos proprietários; as esquerdas, que lutaram para garantir sua posse, exigiam veementemente a realização imediata das reformas, sem acordos ou recuos. De aliadas, tornaram‑se ferozes contestadoras. Concomitantemente, os setores militares golpistas já se articulavam visando destituir o presidente. Nesse contexto de ebulição política e crescente 118 Unidade II radicalização, das esquerdas e das direitas, o Comício de 13 de março de 1964, realizado na Estação Ferroviária Central do Brasil, no centro do Rio de Janeiro (então Estado da Guanabara), pode ser considerado um estopim para os acontecimentos que se seguiram. No famoso comício, organizado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e apoiado por Goulart, o presidente discursou sobre a necessidade de mudanças estruturais para o desenvolvimento e a diminuição das desigualdades socioeconômicas no país. O carro‑chefe desse debate era o seu comprometimento com a realização de uma reforma agrária urgente, que tinha como primeiro passo o anúncio do decreto da Superintendência da Política da Reforma Agrária, a Supra, que possibilitava a desapropriação de terras às margens de rodovias e ferrovias federais. Os pronunciamentos do presidente causaram grande comoção em setores conservadores que desejavam sua derrubada do governo. O medo da radicalização dessas medidas e de um suposto “perigo comunista” levou milhares de pessoas às ruas nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, organizadas por clérigos e entidades femininas, realizadas em várias cidades do país, sendo em algumas delas apoiadas pelos seus governantes. Assim como esses setores da classe média, a burguesia industrial ligada ao capital externo temia que medidas nacionalistas e progressistas de Goulart se recrudescessem, uma vez que contrariavam seus interesses econômicos. O apoio desses setores da sociedade civil fez com que vários historiadores e demais pesquisadores caracterizassem o golpe de 1964 como “civil‑militar” e não somente militar, como já se convencionou denominar (ARAÚJO, 2013, p.15). A decisão de depor Jango é atribuída ao necessário cuidado com a integridade institucional do País. A percepção de que o Brasil vive em desordem extrapola os limites do jogo político e supostamente é uma ameaça também às instituições, servindo como justificativa para que as forças armadas administrassem diretamente a crise. Humberto de Alencar Castelo Branco, um dos generais que articulam o golpe, é empossado dias depois como primeiro presidente do novo regime. Dentre os compromissos que a junta militar assume imediatamente junto à sociedade há a promessa da convocação de eleições presidenciais em janeiro de 1966, quando provavelmente o País já estaria estável institucionalmente (o período político que antecedeu à saída de Jânio Quadros e que continuou lhe sucedendo com a crise gerada pela sua renúncia trazia à tona, segundo os militares, uma série de ameaças comunistas internacionais, tal qual a justificativa alegada por Getúlio Vargas em 1937 para liderar o golpe que instaurou o Estado Novo). Nem mesmo a imprensa interpreta o momento como um golpe de Estado. A título de exemplo, conforme no site http://acervo.folha.com.br/, do jornal Folha de S. Paulo, estas são as manchetes de 11 edições diárias do jornal a partir do dia 31 de março de 1964, data da deposição do presidente João Goulart: 119 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA • 31/3 – Os Clubes Naval e Militar tomam posição conjunta. • 1/4 – Segundo Exército domina o Vale do Paraíba. • 2/4 – Congresso declara Presidência vaga; Mazzilli assume. • 3/4 – Lacerda propõe: eleição já do novo presidente. • 4/4 – Kruel diz à Folha por que Goulart caiu. O Congresso vai eleger o novo presidente na próxima semana. • 5/4 – Governadores: Castelo Branco para presidente. • 6/4 – Hoje no Senado projeto de eleição indireta. • 7/4 – Combate sistemático ao comunismo e à corrupção. • 8/4 – Articula‑se o nome de Kruel para presidente. • 9/4 – Iminente a decretação de lei de emergência. • 10/4 – Vigora desde ontem o Ato Institucional. Outros jornais igualmente importantes e representativos da chamada grande imprensa adotam comportamento editorial similar. É notório que essa postura jornalística não é contestadora ou ao menos crítica. Ao contrário, as chamadas de capa vão reportando o dia a dia como se nada de especial estivesse em curso. Alguns jornais se protegem das críticas a essa apatia destacando que aquele momento, de extrema conturbação, exigia uma posição firme de defesa das instituições, e que não se podia perceber até então que os militares não cumpririam a promessa de convocar eleições assim que possível. Daí a ideia, para muitos, de que o golpe, na verdade, não se dá no início do processo, em 1964, mas no decorrer dele, a partir do ponto em que os militares decidem não mais deixar o poder. Outro exemplo da postura tolerante da imprensa na época, este mais veemente a favor da decisão militar, traz na capa do diário Correio da Manhã de 1º/4/64 um texto que se inicia assim: “Fora! (título). A Nação não mais suporta a permanência do sr. João Goulart à frente do Governo. Chegou‑se ao limite final a capacidade de tolerá‑lo por mais tempo. Não resta outra saída ao sr. João Goulart senão entregar o governo [...].” Matéria publicada pela Carta Capital em 17/1/2014, assinada por Marsílea Gombata, dá publicidade à tese de doutorado da historiadora Beatriz Kushnir, segundo a qual a imprensa brasileira acabou por se acomodar à censura que vigorou no país de 1964 a 1985: A resistência, quando houve, deu‑se na imprensa alternativa, enquanto os grandes veículos se adaptaram para conseguir coexistir com os censores exigidos pelos militares. A tese é defendida pela historiadora 120 Unidade II Beatriz Kushnir, que mergulhou em documentos do Arquivo Nacional para destrinchar a ação dos censores nas redações dos principais jornais do País. [...] No livro, que é nada palatável para a imprensa brasileira e foi pouco divulgado, a doutora em história lembra que antes mesmo de os militares tomarem o poder, a própria imprensa pedia o golpe em colunas e editoriais, como o Fora!, no qual o Correio da Manhã pediu a saída de João Goulart em 1º de abril de 1964, data em que o golpe foi consolidado (GOMBATA, 2014). Aos olhos dos próprios militares, o queestá em curso é uma revolução. Portanto, necessária e justificável. Estes são os dois primeiros parágrafos do primeiro Ato Institucional baixado pelo novo governo, o AI‑1, assinado pelo general do exército Arthur da Costa e Silva em 9/4/1964: É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação (BRASIL, 1964). Em seu artigo nono, o documento assegura a convocação de eleições presidenciais, o que ajuda a justificar o próprio Ato: “Art. 9º – A eleição do Presidente e do Vice‑Presidente da República, que tomarão posse em 31 de janeiro de 1966, será realizada em 3 de outubro de 1965�. Eleições que jamais se realizarão. O Artigo seguinte, menos observado quando da publicação do Ato, é que vai provocar consequências bastante sérias: Art. 10 – No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes‑em‑Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos (BRASIL, 1964). O ano de 1966 é atropelado pelo governo, e ao perceber que os militares tomaram gosto pela administração do Estado, setores organizados começam a reagir. A própria imprensa, no início conivente ou indiferente, já não enxerga mais o governo como antes. Denúncias de abusos de poder de todo tipo se acumulam. Estudantes reagem, vão para as ruas, e pouco a pouco a atmosfera do país vai dando lugar a pedidos de mudança e manifestações contra o governo. Não vai demorar para que os militares interpretem as manifestações como uma renovada ameaça à segurança nacional. Até que, em 1968, o governo baixa o AI‑5 – Ato Institucional número 5, que, na prática, aprofunda a tomada de poder iniciada em 1964, suspendendo os poderes do Congresso Nacional, assim como dos 121 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA partidos políticos e sindicatos, entre muitas outras arbitrariedades. A imprensa passa a ser monitorada e censurada diretamente, sem subterfúgios. As polícias dispõem do direito de prisão sem flagrante nem mandado judicial, mediante avaliação de risco à ordem e, claro, à segurança nacional. É, agora, indiscutivelmente, um golpe de Estado. O AI‑5 aprofundava a autorização para as cassações políticas, estabelecendo que o presidente da República, sem as limitações previstas na Constituição, poderia suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. O mencionado ato também suspendia as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo. Ficava suspensa (artigo 10o) a garantia do habeas corpus, instrumento usado por prisioneiros e perseguidos políticos do regime para garantir sua vida e liberdade. Finalmente, todas as ações facultadas ao presidente não eram passíveis de recurso legal. O AI‑5 excluía de apreciação judicial todos os atos alcançados por ele e por seus atos complementares, bem como os respectivos efeitos. O país não tivera, em toda a sua vida republicana, um conjunto de medidas que concentrasse tanto poder discricionário nas mãos de um chefe de Estado. Punido com a decretação de recesso, o Congresso sofreu, em acréscimo, o imediato expurgo de parlamentares. Houve dezenas de cassações na Câmara baseadas no AI‑5. Começando com Marcio Moreira Alves e Hermano Alves, 51 deputados do MDB e 37 da Arena foram privados de seus mandatos. No Senado, houve a acusação de oito senadores. Assembleias estaduais foram fechadas, como as do Rio de Janeiro e de São Paulo (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 101). Os argumentos do governo para justificar o AI‑5 continuam sendo os mesmos que justificaram a tomada de poder de 1964, supostas ameaças de esquerda fortalecidas pelo comunismo internacional. É preciso lembrar que o contexto internacional é o da Guerra Fria. Há apenas alguns anos, 1962, a crise dos mísseis entre URSS e os Estados Unidos levara o mundo a acreditar que a terceira guerra mundial estaria a um passo. Isto é, a argumentação pode, de fato, fazer sentido para quem queira acreditar no discurso oficial. Observação Na reunião da cúpula militar que institui o Ato Institucional nº 5 em 1968, além dos generais, 23 ministros participam e se pronunciam individualmente. Por detrás de suas falas, sirenes policiais indicam o clima de tensão no entorno do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Essa reunião foi gravada e o seu áudio está disponível em: https://bit.ly/2NCEsGu. Acesso em: 10 jun. 2015. 122 Unidade II O período compreendido entre 1968 e 1973 será chamado mais tarde de “anos de chumbo”, em alusão à munição das armas de fogo. É o período mais violento vivido pelo Brasil recentemente no campo político, sob todo tipo de violação de direitos. Prisões arbitrárias, tortura, assassinatos, perseguições ideológicas, desaparecimento de presos políticos, muitos dos quais jamais seriam reencontrados. Algumas das principais redações jornalísticas chegam a contar com um censor de corpo presente, um agente do governo preparado para supervisionar o conteúdo editorial. Na área do entretenimento, incluindo cinema, rádio, televisão, teatro e espetáculos, acontece o mesmo. Todo conteúdo de comunicação e arte, bem como o jornalístico e publicitário, está sob censura prévia (dependendo de autorização por escrito) ou posterior, com sansões que incluem até a prisão, nos casos mais extremos – sempre em nome da segurança nacional. A sociedade vai reagir das mais diversas formas e na medida do possível. A música de protesto será uma delas. Em plena ditadura, 1973, Chico Buarque de Holanda grava “Apesar de você”, canção que se torna um dos hinos para os movimentos de esquerda da época. O desafio artístico de conseguir driblar a censura e obter autorização para a publicação acaba funcionando como prova de criatividade nos mais diversos setores das artes. A letra da canção é emblemática: Apesar de você Amanhã vai ser outro dia (x 3) Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem discussão, não. A minha gente hoje anda Falando de lado e olhando pro chão, viu Você que inventou esse estado Inventou de inventar Toda escuridão Você que inventou o pecado Esqueceu‑se de inventar o perdão. Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Eu pergunto a você Onde vai se esconder Da enorme euforia Como vai proibir Quando o galo insistir Em cantar Água nova brotando E a gente se amando Sem parar 123 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA Quando chegar o momento Esse meu sofrimento Vou cobrar com juros, juro! Todo esse amor reprimido, Esse grito contido, Esse samba no escuro. Você que inventou a tristeza Agora tenha a fineza De desinventar Você vai pagar e é dobrado, Cada lágrima rolada Nesse meu penar. Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Inda pago pra ver O jardim florescer Qual você não queria Você vai se amargar Vendo o dia raiar Sem lhe pedir licença. E eu vou morrer de rir Que esse dia há de vir Antes do que você pensa Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia. Você vai ter que ver A manhã renascer E esbanjar poesia. Cimo vai se explicar Vendo o céu clarear De repente, impunemente Como vai abafar Nosso coro a cantar Na sua frente. Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Você vai se dar mal Etc. e tal Fonte: Holanda (1970). 124 Unidade II A censura não se limita a aspectos estritamente políticos, alcança também questões ligadas, por exemplo, à sexualidade e ao erotismo, assim como a todas as esferas da vidahumana em que o conservadorismo moral possa estabelecer limites. Nada escapa à censura nesse período. Alternativas como o funk, por exemplo, teriam sido impossíveis naquele período. A censura obrigava até autores e diretores de telenovelas a refazerem cenas e capítulos considerados inapropriados à moralidade pública, pelas mais diversas razões. Jornais alternativos, como O Pasquim, atuavam como trincheiras de resistência mantidas com humor, irreverência e espírito crítico. Outras ditaduras militares, não por coincidência, surgem por meio de golpes de Estado e vão varrendo a América Latina durante a Guerra Fria (1945 – 1991). Todas elas se caracterizam por pelo menos três denominadores comuns: a) os golpes são justificados sempre de acordo com motivos muito semelhantes: supostas ameaças comunistas à segurança nacional, apoiadas provavelmente pelo comunismo internacional; b) os Estados Unidos apoiam todas essas iniciativas, uma vez que elas apontam para um suposto inimigo comunista que, em última instância, ameaça a segurança norte‑americana; e c) em graus de intensidade diferentes, todos esses governos adotam o terror como parte da sua política de Estado e padrão de conduta repressiva. Em outras palavras, essa onda ditatorial está mais subordinada a uma certa lógica histórica do que a mera coincidência. A presença hegemônica americana está no epicentro dessa tendência continental. Por conta da profunda polarização internacional entre esquerda e direita e do medo permanente de manobras geopolíticas, os Estados Unidos não querem – ou não podem – permitir que o socialismo conquiste pontos estratégicos no cone sul. Cuba já é preocupante, um alerta para a possibilidade real da disseminação do socialismo no continente. O ideário marxista é então assustador para o mundo capitalista e, por extensão, seus governos representantes. Além disso, a instabilidade econômica que assola a região como um todo após a Segunda Guerra Mundial gera uma atmosfera conveniente para os discursos que reivindicam a ordem como condição para a recuperação econômica. Lembrete Karl Marx foi o fundador da doutrina comunista. Atribui‑se a ele a crítica mais contundente já elaborada contra os ideais do capitalismo. Sua obra mais famosa é O Capital. Ele extrapolou o olhar de economista e propôs ao mundo um projeto político, em nome da igualdade social, uma vez que ele via o capitalismo como caminho para a injustiça social e para a dominação de uma classe de pessoas (proprietários de meios de produção) sobre outra (o operário). Assim o professor Enrique Serra Padrós, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sintetiza a ideia: Na origem das ditaduras latino‑americanas de segurança nacional (SN), situam‑se, pelo menos, dois fatores geradores de inúmeros desdobramentos e que, nas suas possibilidades de combinação, constituem elementos 125 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA elucidativos para a compreensão dessas experiências. De um lado, o fator repressivo de tais sistemas decorreu da pressão exercida pelo capital internacional e pelas elites locais, para a imposição de um novo modelo de acumulação. Por outro, os regimes de SN resultaram da radicalização das contradições de classe e do avanço de projetos reformistas ou revolucionários, principalmente a partir da vitória da Revolução Cubana. Uma das principais premissas da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), marco de diretrizes gerais presentes nas ditaduras da região, é a rejeição da ideia da divisão da sociedade em classes, pois as tensões entre elas entram em conflito com a noção de unidade política, elemento basilar daquela. Segundo os princípios da DSN, o cidadão não se realiza enquanto indivíduo ou em função de uma identidade de classe. É a consciência de pertencimento a uma comunidade nacional coesa que potencializa o ser humano e viabiliza a satisfação das suas demandas. Nesse sentido, qualquer entendimento que aponte a existência de antagonismos sociais ou questionamentos que explicitem a dissimulação de interesses de classe por detrás dos setores políticos dirigentes é identificado como nocivo aos interesses da “nação” e, portanto, deve ser combatido como tal. Mais do que isso, tal coesão política pressupõe o fim do pluralismo político, condição essencial para a resolução dos conflitos e de seus elementos centrífugos (PADRÓS, 2008, p. 143). Nascerá, em 1975, uma iniciativa que dará nome a essa preocupação orquestrada: Operação Condor, uma aliança estabelecida entre os governos ditadores que incrementa o esforço de cooperação que já existia entre as ditaduras militares na região no sentido de combater o comunismo. O acordo, como que por mágica, apaga as fronteiras entre os países envolvidos no que diz respeito à perseguição e captura de suspeitos ou insurgentes. Para o historiador, mestre e doutor em ciências sociais Vitor Amorim de Angelo: O nome do acordo era uma alusão ao condor, ave típica dos Andes e símbolo do Chile. Trata‑se de uma ave extremamente sagaz na caça às suas presas. Nada mais simbólico do que batizar a aliança entre as ditaduras de Operação Condor. Não à toa, foi justamente o Chile, sob os auspícios do governo de Augusto Pinochet, que assumiu a dianteira da operação. Além do Chile, fizeram parte da aliança: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Nos anos 1980, o Peru, então sob uma ditadura militar, também juntou‑se ao grupo. Pode‑se dizer que a operação teve três fases. A primeira consistiu na troca de informações entre os países‑membros. A segunda caracterizou‑se pelas trocas e execuções de opositores nos territórios dos países que formavam a aliança. A terceira ficou marcada pela perseguição e assassinato de inimigos políticos no exterior – muitas vezes no próprio exílio (ANGELO, 2008). 126 Unidade II Sobre os assassinatos e desaparecimentos de presos políticos, o autor resume os números: Calcula‑se que, apenas nos anos 1970, o número de mortos e “desaparecidos” políticos tenha chegado a aproximadamente 290 no Uruguai, 360 no Brasil, 2 mil no Paraguai, 3.100 no Chile e impressionantes 30 mil na Argentina – a ditadura latino‑americana que mais vítimas deixou em seu caminho. Estimativas menos conservadoras dão conta de que a Operação Condor teria chegado ao saldo total de 50 mil mortos, 30 mil desaparecidos e 400 mil presos (ANGELO, 2008). Figura 48 – General Augusto Pinochet Disponível em: https://bit.ly/3NVe5eM. Acesso em: 16 jun. 2022. Augusto Pinochet governa o Chile com mãos de ferro entre 1973 e 1990, após liderar o golpe de Estado que destituiu o socialista Salvador Allende e que o levou à morte. Também apoiado pelos Estados Unidos, Pinochet tornara‑se general justamente sob o governo do seu antecessor. Eis aí outra característica recorrente na trama das ditaduras latino‑americanas: os principais articuladores golpistas estão sempre entre militares que em algum momento recente haviam sido homens de confiança do governo e do chefe a serem derrubados. Allende não aceita a ideia de se render a uma junta militar e escolhe o suicídio. Salvador Allende venceu as eleições presidenciais de 1970 pela Unidade Popular (UP) – uma coalizão de esquerda que tinha como eixo os partidos Comunista (PC) e Socialista (PS), mais os Radicais, o Partido Social‑Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (Mapu) – e governou o Chile até o golpe militar de 11 de setembro de 1973, comandado pelo general Augusto Pinochet, que iria implantar uma ditadura que duraria os 17 anos seguintes. [...] 127 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA A queda de Allende – e é inevitável começar pelo fim – foi o resultado de ações legais e extralegais da direita chilena, com inegável apoio externo. Elas visavam desagregar paulatinamente a legitimidade do presidente por meio de um duplo processo: ataque frontal à legalidade das ações governamentais e, simultaneamente, estímulo ao recrudescimento da polarização ideológica,objetivando a neutralização da Democracia Cristã (DC), partido que ocupava o centro do espectro político chileno. O objetivo era levar a situação a um ponto de desinstitucionalização para, em seguida, desfechar o golpe final (AGGIO, 2008, p. 78). Assim que assume o poder, Pinochet suspende a Constituição, dissolve o Congresso, proíbe o funcionamento de partidos políticos e impõe uma severa censura à imprensa. Milhares de pessoas seriam presas, muitas das quais foram torturadas e exiladas. No Chile, imediatamente após o golpe de 1973, foi formada a Junta de Governo, composta por Augusto Pinochet (comandante‑em‑chefe do Exército), Gustavo Leigh (comandante da Força Aérea), César Mendoza (general diretor dos Carabineros) e José Tombio Merino (almirante da Armada) e foram anunciados os ministros. Assumiram o mando supremo da nação com a missão de “restaurar la chilenidad, la justicia y la institucionalidad quebrantadas”. Os ministérios‑chave foram divididos entre essas quatro forças e nessa cúpula rapidamente se passou a discutir a necessidade de reforma da Constituição de 1925, com o objetivo precípuo de eliminar os resquícios legais que possibilitaram a subida de Salvador Allende ao poder, mesmo com uma minoria de votos (ANTUNES, 2008, p. 222). A ONU, por meio da Comissão dos Direitos Humanos, ainda viria a condenar o líder por abusos de poder. A esse respeito, destaca a pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais Priscila Antunes que: Em 16 de dezembro de 1977, ao condenar a atitude chilena, tanto em relação ao assassinato do ex‑ministro em Washington, quanto à constante violação dos direitos humanos naquele país, a assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU) deu ensejo ao fortalecimento dessa pseudolegitimidade imposta pelo governo militar (ANTUNES, 2008, p. 224). Em 1974, Pinochet cria a Dina – Direção de Inteligência Nacional, órgão de monitoramento, perseguição e repressão a subversivos, que ganhará outro nome em 1977, CNI – Central Nacional de Informações. Essa é mais uma marca desse tipo de regime: o serviço de inteligência e informação. É o que assegura a eficiência da repressão. Tal qual o diagnóstico médico, detectar precocemente as iniciativas subversivas é tarefa fundamental para neutralizá‑las, um ensinamento da escola americana. 128 Unidade II Dessa forma a Dina, organismo técnico‑profissional dependente direto da Junta, tornou‑se responsável por coletar e reunir informações provenientes “de los diferentes campos de acción”, para auxiliar na produção de toda inteligência requerida para a formulação de políticas destinadas a proteger a segurança do país. Na prática, esse órgão dependeu diretamente do general Augusto Pinochet, pois de acordo com o general Gustavo Leigh, um dos principais articuladores do golpe militar, “nadie de la Junta podía meterse en la Dina” (ANTUNES, 2008, p. 226). A Dina faz o serviço “pesado”, pois, diferentemente dos demais órgãos de governo, ela não tem de prestar contas a ninguém, exceto ao próprio ditador. Para não embaraçar os assuntos governamentais, é na Dina que a repressão política é concentrada, até que os Estados Unidos descubram que ela é a responsável pela morte do ex‑chanceler de Salvador Allende exilado em Washington, em 1976, e começam a rever o apoio a Pinochet: O assassinato do general Letelier em 1976 marcaria o ápice do poder desses “exterminadores”, mas também o início de sua queda. Ao confirmar a relação existente entre esse assassinato e a Dina, o governo norte‑americano passou a pressionar o general Pinochet para extingui‑la e restaurar o estado de direito. Somada às críticas internas de importantes setores de dentro do governo e das Forças Armadas, já descontentes com o poder assumido por Contreras, a pressão norte‑americana produziu efeito. A atuação da Dina estaria ameaçando a legitimidade que vários setores que apoiaram o golpe procuravam construir, não apenas dentro do país, mas perante a comunidade internacional. O argumento para a extinção da Dina extrapolava a questão dos direitos humanos e atingia o questionamento em relação à eficiência da agência de inteligência, incapaz de prever possibilidades de guerra entre o país e seus vizinhos, que ameaçariam o regime político vigente (POLICZER, 1998, p. 11‑16 apud ANTUNES, 2008, p. 229). Em 1980, o líder chileno consegue aprovação popular por meio de um plebiscito considerado manipulado, promulga uma nova constituição e estende o seu mandato presidencial por dez anos. Para a oposição, a operação foi fraudulenta, mas na prática funcionou e deu uma década mais a Pinochet. Antunes ressalta que “podemos afirmar que o regime militar chileno foi caracterizado por um elevadíssimo grau de institucionalização do regime e por uma personificação do poder nas mãos do general Pinochet”. Possivelmente, o ditador que mais concentrou poderes em suas próprias mãos. A ditadura chilena se encerra em março de 1990, com a posse do novo presidente civil, Patricio Aylwin, eleito democraticamente, após intensa pressão interna e internacional pela saída de Pinochet. Em 1998, aos 83 anos, o ex‑líder é preso em Londres por atos cometidos durante seu governo. Em 2004, a Suprema Corte Chilena o colocou em prisão domiciliar pelo desaparecimento de nove ativistas da oposição. Ele morre em 2006. 129 HISTÓRIA DA AMÉRICA CONTEMPORÂNEA No Paraguai, o general Alfredo Gustavo Stroessner chega ao governo em maio de 1954, de onde só sairia 34 anos depois. O período conturbado que precede a sua ascensão é marcado por sucessivos golpes, por meio dos quais Strossner se mantém conectado ao poder. Com o Partido Colorado, conservador, ele integra o golpe que faz dele presidente, depondo Federico Chavez, e reelege‑se por sete mandatos – sempre de modo duvidoso –, conduzindo uma ditadura que, a exemplo das vizinhas, estabelece controle ideológico total e sanções a qualquer cidadão considerado subversivo. A ditadura de Stroessner tem características adicionais e marcantes: ela começa muito antes que as demais, já em 1954, e termina depois que as outras ditaduras, totalizando um período atípico, muito longo em comparação com os outros governos autoritários da região e do período. A segunda característica diz respeito ao fato de que a sua chegada ao poder não inaugura um período histórico, pois o Paraguai já experimenta uma sucessão de golpes e conflitos há décadas. O governo Stroessner apenas sucede outros regimes autoritários. A história do Paraguai é a relação de uma extensa lista de governos autoritários e militarizados, com escassas ilhas de períodos democráticos. Essa falta de capacitação cívica da sociedade paraguaia explica, por sua vez, muitas das dificuldades por que passou a transição pós Stroessner e a democracia de baixa qualidade que dela foi gerada como fruto (PA, 2008, p. 28. Tradução nossa). A terceira característica que personaliza o governo Stroessner é o cuidado com as aparências. Apesar de se tratar de uma ditadura que como as demais do cone sul é autoritária e violenta, e a despeito de ela igualmente lastrear seu discurso pela segurança nacional, o governo mantém uma cuidadosa preocupação em simular uma democracia – a ponto, inclusive, de realizar sete eleições presidenciais cujos resultados todos já sabem antecipadamente quais serão. Até uma suposta oposição parlamentar Stroessner “tem” de enfrentar. Stroessner atravessou uma época que era adequada a seu modelo (de ditadura): os anos de Guerra Fria. Ele se tornou o campeão do anticomunismo e exibiria esse fantasma como justificativa das múltiplas violações aos direitos humanos, assim como de manutenção do incessante estado de sítio e do cerceamento das liberdades públicas. Durante seu governo, milhares de paraguaios foram aprisionados e torturados por motivos políticos; o exílio, fundamentalmente para a Argentina, foi massivo. O número de desaparecidos e mortos pela repressão oscila entre 200 e 300, segundo diversas fontes (PA, 2008,
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