Buscar

DOC-20221122-WA0004.

Prévia do material em texto

As origens do apolitismo brasileiro 
“Nada nos é mais alheio que o que tem importância pública” (Tertuliano)
Joaquim Nabuco, em seu texto O abolicionismo faz uma análise geral dos efeitos institucionais, políticos e econômicos da Escravidão na formação nacional: a Escravidão afetaria elementos da produção cruciais para a sociedade, pois “estragava o solo, impedia as indústrias, preparava a [SIC] bancarrota econômica, afastava a imigração”[footnoteRef:1]. Defendo que seu quadro analítico fornece – em forma questionável e problemática, em alguns pontos - um panorama holístico que compreende “liberdade” como uma atividade objetiva, não restringida aos preceitos legais como pode ser sugerido neste trecho: [1: NABUCO, 2002, p.154.] 
Além de tudo isso, e da ilegalidade insanável da escravidão perante o direito social moderno e a lei positiva brasileira, o abolicionismo funda-se numa série de motivos políticos, econômicos, sociais e nacionais, da mais vasta esfera e do maior alcance. Nós não queremos acabar com a escravidão somente porque ela é ilegítima em face do progresso das idéias [SIC] morais de cooperação e solidariedade (NABUCO, 2000, p.110).
A idealização nacionalista da modernidade é o parâmetro especular que o autor se apoia e, a respeito do “patriotismo comum” de que ele se refere, cabe lembrar o apontamento de Florestan Fernandes sobre a contradição do requisito emancipatório que Nabuco evoca, uma vez que ele compreende até mesmo o próprio senhor de engenho[footnoteRef:2], consideração esta que enfraquecia os próprios princípios que, aqui, foram elencados como que contendo elementos políticos importantes de luta contra a Escravidão. Fica facilmente presumido que “a raça negra” em si, foi uma das consequências negativas da Escravidão. Entretanto, outra tese a ser pontuada é a de que o autor, pela forma ambígua de seus apontamentos, realiza, mais ou menos, uma divisão entre sua angústia racial no texto, e sua idealização da nação de forma que compreende os diferentes componentes da sociedade. Em certo aspecto, o autor também delineia a incompetência em lidar com a “heterogeneidade” e dos traçados de uma nacionalidade criada sob “um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta e retrógrado [cujo] molde fundiu durante séculos as três raças heterogêneas que hoje constituem a nacionalidade brasileira”[footnoteRef:3]. É importante nos determos ao fato de que o autor lamenta este molde, reclamando uma nova ordem, baseada em princípio de liberdade, sem privilégios de classe, em que os indivíduos se emancipem e ajam como entre pares, politicamente[footnoteRef:4]. [2: FERNANDES, 1978, p. 258.] [3: Ibid., p.133.] [4: O sentido de “político” segue o sentido dado por Hannah Arendt. 
] 
 O que se conclui é que haveria uma condição para tal liberdade -que seria a proteção de um Estado - que possibilita um questionamento: qual seria a situação daqueles que não são contemplados por esta proteção que efetivaria, de fato, a liberdade? Essa é uma condição suficiente, visto que o próprio Nabuco reconhece a continuidade, em 1883, da escravidão nas capitanias, ainda em uma dimensão de desumanização radical? Em seu raciocínio do domínio legal, detecta um problema que seria a interpretação legal dos escravizados como “apátridas” ou “estrangeiros” visto que estes são destituídos de cidadania. Nos termos interpretativos justificatórios legais, no período do tráfico, o escravizado estava em uma situação social de desumanização marcada por uma oscilação de seu estatuto mesmo, em que poderia ser inserido como um sujeito dentro de uma nação (que seria a sua) que não o reconhece, mesmo habitando a Terra (de forma radicalmente assimétrica). A esfera legislativa não daria cabo do reconhecimento desses indivíduos, e, igualmente, do sentimento de pertencimento à esta Terra por parte destes, pois uma real emancipação deveria ser efetivada, a fim dos escravizados adentrarem a comunhão e o grêmio sociais, em que “os elementos de ordem [se fundariam] sobre a liberdade, e a liberdade [deixaria] de ser privilégio de classe”. 
Simultaneamente à assinalação da “nódoa” que Portugal imprimiu no Brasil - que seria a africanização e os efeitos institucionais do sistema social que a possibilita - Nabuco afirma ser este elemento a “única obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar”[footnoteRef:5] (um elemento eminentemente brasileiro?). Na leitura de seu texto é perceptível uma angústia racial e etnocêntrica, no mesmo momento em que condena a escravidão por forjar consequências estruturais que truncaram nosso desenvolvimento social, político e econômico, ao mesmo tempo que assevera não ser “a raça negra [o mau elemento], mas a raça reduzida ao “cativeiro”. [5: Ibid., p.130.] 
Há trechos em que Nabuco atrela uma responsabilização às pessoas negras, em seu texto, nos termos da explicação das influências da Escravidão, a partir destes sujeitos, como no aparecimento das doenças e de características “imanentes” a esta população, que seria uma atribuição racista, por parte do autor, coextensiva a invocação de um “nós” o qual ele provavelmente se reconhece; um “nós” que não conseguimos definir de forma geral, senão a partir de algumas características idealisticamente expostas por ele. 
A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana - influencia ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa população, e que pela ama-de-leite, pelos contatos da escravidão doméstica, chegou até os mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas sobre a constituição física de parte do nosso povo (Ibid., p.132).
Porém, o autor denuncia a condição destes seres aos quais confere um conjunto de atribuições racistas típicas de sua época. Sua concepção especular da nacionalidade brasileira compreende estes sujeitos no campo político que efetiva as transformações sociais necessárias, e não a sua continuidade em um sistema abominável. É invocado um “nós” que seria toda a humanidade quando justifica o caráter insanável da escravidão, em contraposição à relação estrutural característica da Escravidão, entretanto, ele assume um exercício de desígnio particular do conteúdo desta “humanidade” ao atrelar características a partir da própria norma do político e do humano de que se vale:
Pode-se descrever essa influência, dizendo que a escravidão cercou todo o espaço ocupado do Amazonas ao Rio Grande do Sul de um ambiente fatal a todas as qualidades viris e nobres, humanitárias e progressistas, da nossa espécie, criou um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta e retrógrado, e nesse molde fundiu durantes séculos as três raças heterogêneas que hoje constituem a nacionalidade brasileira. (Ibid., p.133).
Existem elementos políticos que endossem a reivindicação de uma norma de coexistência dos diferentes grupos habitantes deste território? O país é composto, de forma heterogênica, pelos três grupos bastante estudados, e, sendo assim, a questão que emerge diz respeito a como se deu a forma de coexistência destes grupos no Brasil. Florestan Fernandes em A integração do negro na sociedade de classes nos fornece um certo balanço de como isto se deu, no contexto da emersão da sociedade de classes no Brasil. “O negro” teria sido, de forma bastante truncada, integrado, atrelado a uma forma de acomodação e ajustamento raciais dentro de uma forma de convívio com “o branco” que representava a recorrência de modos de relacionalidade do período tradicional e clássico.	
Ainda sobre o tema da coabitação e da política mesma, Hannah Arendt em A condição humana afirma que a pluralidade é a condição humana da política, esta entendida como o aparecimento do sujeito entre outros, na esfera pública, resultando, no caso de uma abstenção deste aparecimento, o momento de uma “desumanização”, uma vez que o homens devem agir e falar no espaço público, efetivando sua promessa – de seu nascimento que marca a potência da liberdade - e excedendo o seu mero aparecimentofísico original. O quadro de Arendt nos é crucial pois a singularidade dos seres humanos (mankind) é assinalada no exercício político, minguando a oclusão da pluralidade humana na política. A escravidão engendrou problemas de uma gravidade tal que o raciocínio meramente jurídico não alcançaria, mesmo possibilitando seu fim legal, a inauguração “dos negros” no campo político, nos termos que aqui nos valemos, da ação arendtiana, em que sinalizaria o começo da autodeterminação da população negra, dos prolegômenos de uma nova situação social que seria marcada pelo tratamento das feridas que a Escravidão deixou, pelas consequências impremeditadas e irreversíveis das ações até então já efetivadas por aquelas que não os negros. Entretanto, não foi este o desdobramento, em vez de uma situação deste caráter, o que se deu foi uma forma de coexistência entre os diferentes grupos étnicos-raciais fermentada pelos antigos parâmetros de convívio, em uma organização política dentro da qual “os negros” não poderiam plenamente agir na esfera pública. No sentido arendtiano de pensar o político, “os negros” seriam “desrealizados” em tal situação social, pois escapariam dos lampejos da esfera pública em que tornariam inteligíveis suas demandas e onde agiriam, deslocando a teia de relações constituída pelas consequências de outras ações, novamente, não deles. A influência do pensamento político antigo é clara no pensamento político de Nabuco, desse ponto de vista, cabe elencar uma leitura daquela autora a respeito da política na pólis em que as leis seriam mais como uma fabricação, assinalando, uma disposição de evasão do domínio da ação. Esta evasão nos forneceria, quiçá, uma sugestão do que ocorre entre a configuração política brasileira, pois a cegueira de Nabuco seria possibilitada por este domínio da “fabricação” no político. Isso ganharia mais sentido com a dedução de Florestan da inércia dos dirigentes pós-abolição. Em outras palavras, as estruturas políticas brasileiras seriam marcadas por uma articulação restrita - e este é meu ponto – em que, concernente aos apontamentos de Florestan, determinados homens conservariam seu poder, em concerto, pelos padrões de relações sociais próprios e estruturais da Escravidão que não foram lidados, e que, em referência a Nabuco, tais estruturas seriam esnobadas, em virtude da mesma angústia racial pela configuração demográfica deste país; isso, claro, efetivos do regime escravocrata. 
Sobre efeitos sociais e políticos do regime “servil”
Abolir a Escravidão seria suficiente para resolver os problemas? O que seria “problema” propriamente? Os antagonismos que se implicariam geneticamente deste regime perpassariam as relações elementares entre os indivíduos, dentro de uma ordem social marcada pela prerrogativa de certos grupos sobre outros. Expomos um trecho que Nabuco elucida isto:
A escravidão não consente, em parte alguma, classes operárias propriamente ditas, nem é com patível com o regime do salário e a dignidade pessoal do artífice. Este mesmo, para não ficar de baixo do estigma social que ela imprime nos seus trabalhadores, procura assinalar o intervalo que o se para do es cravo, e imbui-se as sim de um sentimento de superioridade, que é apenas baixeza de alma, em quem saiu da condição ser vil, ou esteve nela por seus pais. (Ibid., p.156). 
 
O corpo social seria todo impactado pelo regime escravocrata e, em termos analógicos de que Nabuco se vale, seria diferente da escravidão na Grécia antiga, pois os escravizados negros não estariam apenas fora da “pólis” assegurando a sustentação da sociedade, mas teriam uma condição coextensiva à constituição social conforme prescritas pelo estatuto requerido do regime. Ainda sobre este campo comparativo, cabe articula-lo com a situação do escravo romana, durante o Império, em que, como Arendt salienta, não poderia agir e falar, como não deixaria o registro de sua existência na Terra, situação que gerava um medo da condição de escravo. 
É salientado por Nabuco que não há linhas raciais divisórias como nos EUA, os escravizados norte-americanos seriam componentes “inorgânicos” de sua sociedade, o que nos faz sugerir e questionar se, aqui, os escravizados seriam “orgânicos” e não afetados por uma profilaxia social.
O escravo, que, como tal, praticamente, não existe para a sociedade, porque o senhor pode não o ter matriculado e, se o matriculou, pode substituí-lo, e a matrícula mesmo nada significa, desde que não há inspeção do estado nas fazendas, nem os senhores são obrigados a dar contas dos seus escravos às autoridades. Esse ente, assim equiparado, quanto à proteção social, a qualquer outra coisa de domínio particular, é, no dia seguinte à sua alforria, um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos, e o mesmo grau de elegibilidade (p.153, grifo do autor). 
 
O autor parece admitir os contratos como suficientes para verificar o domínio desmoralizante do regime escravocrata e deduzir, apressadamente, uma posterior igualdade entre os grupos étnico-raciais, e aqui cabe salientar que, em nosso ponto de vista, não seria interessante “radicar” da natureza os princípios de justiça, igualdade e liberdade que gostaríamos, ou como Nabuco gostaria, a respeito da liberdade dos escravos, como ele faz quando tenta mostrar o progresso do direito internacional por condenar a Escravidão e mostrar as contradições desta com princípios políticos a que se baseia. Em termos interpretativos, poderíamos considerar sua conclusão final a respeito da investidura dos direitos políticos aos ex-escravos como meramente formal; o escravo na Grécia tinha uma condição caracterizada por restrição à movimentação, uma violabilidade pessoal e a não possibilidade de atividade econômica, podemo-nos, assim, sugerir que o sentido de liberdade para Nabuco compreende o rompimento destes elementos, deste regime que engloba um modo de vida que restringe a possibilidade de movimento e atividades. O autor pode estar equivocado em sua conclusão apressada, baseada em preceitos legais, mas seu raciocínio sobre o aparecimento de sujeitos políticos “mestiços” aponta para um aspecto da configuração da racialização específica do Brasil que a difere dos EUA. Neste, predominaria o tabu da mestiçagem, a impossibilidade da convergência entre “as raças”, diferentemente do que ocorreria aqui, aspecto muito salientado por Freyre que destacou a “plasticidade” do português, sem dar a devida ênfase ao processo em sua dimensão desmoralizante ante às mulheres indígenas e negras, por exemplo. O quadro de Nabuco tem igualmente problemas – assim como Gilberto Freyre, o preconceito de cor é quase inexistente em sua análise da Escravidão -, mas não deixa de oferecer alguns aspectos que possibilita elaborar uma explicação da racialização que interrompe uma que seja “universalizante”, ainda que o autor paradoxalmente opere em um campo comparativo, quando faz analogias fracassadas com a Escravidão na América do Norte - exercício este inconveniente.
No que diz respeito ao aspecto de “institucionalização hegemônica” da concepção de Nabuco, talvez - como ele coloca -, a “escravidão [...] manteve-se aberta e estendeu os seus privilégios a todos indistintamente [...]”, provavelmente, porque suas consequências impremeditadas penetraram como propriedades estruturais “[...] que possibilitam a existência de práticas sociais discernivelmente semelhantes por dimensões variáveis de tempo e de espaço, e lhes emprestam uma forma ‘sistêmica'". Nesse sentido exposto, não há “estruturas”, nos termos de uma explicação da reprodução dos sistemas sociais, mas “propriedades estruturais” que marcam o caráter virtual da ordem estabelecida destes sistemas, a estrutura apenas existe como presença espaço-temporal, em suas exemplificações nas práticas e nos traços mnêmicos que orientam a conduta dos agentes dotados estes de uma capacidade cognoscitiva[footnoteRef:31018]. Os apontamentos de Nabuco são caracteristicamente ambíguos: O autor, por exemplo, afirma não existir um preconceito racial entre duas “castas sociaisperpétuas”, que seria este comportamento como não significativo, ou seja, não é devidamente julgado e/ou incluso no quadro de elementos impremeditados das consequências dele, na natureza do estudo por ele empreendido ou de sua teoria em desenvolvimento[footnoteRef:29367], que coloca aquele comportamento perverso como fadado ao desaparecimento sinalizando uma eventual “igualdade absoluta”, como conjecturava o autor. Em suma, poderíamos questionar se a análise institucional da Escravidão oferecida por Nabuco, se fornece proposições sobre as consequências impremeditadas, escorregaria por não incluir os padrões de comportamento como viabilizador deste regime em si ou mesmo não colocaria ênfase mais detidamente nestas relações de tal forma que duvide da confiança de suas descontinuidades no futuro, e sobre esta temporalidade, Florestan destaca em suas análises que a Escravidão exige dentro de sua dinâmica a manifestação explícita, regular e irresistível do preconceito e da discriminação raciais e manter as distâncias sociais que até hoje se mantêm. Tais apontamentos são problemáticos, consideramos isso, entretanto, e ao mesmo tempo, ele afirma que a Escravidão se estendeu para todas as classes[footnoteRef:8]. Conclui, também, uma pomposa coexistência entre os elementos heterogêneos da sociedade Brasileira na assinalação cabal do contágio, do “caos étnico”, como se, teleologicamente, a presença desta heterogeneidade cultural, étnica e racial constituiria, por ela mesma, em uma coexistência plausível. Talvez, os esforços de Nabuco sobre a emancipação “dos negros” seguem um princípio de progresso que não levam em conta o destino destas populações, ao concluir uma situação especular de “igualdade absoluta”. A presença desta heterogeneidade significa, para o autor, uma “desordem dos mundos incandescentes” que, num primeiro momento, pode ser mera expressão de sua angústia racial, mas que é, posteriormente, assumido que seu problema seria atribuir cidadania aos componentes desta heterogeneidade, elementos de um regime cuja razão de ser é a exploração, medium da própria presença desta característica que forma os aspectos de nossa demografia. Da perspectiva do autor, a Escravidão constituiu-se como a matriz de nossa formação nacional, derivando uma afinidade que perpassaria e delimitaria a constituição de nossa sociedade, principalmente nos termos políticos e econômicos. [31018: O quadro que me valo, aqui, como se nota, para interpretar as elaborações de Nabuco sobre a institucionalidade da Escravidão, é giddensiano em GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. 3.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p.20.] [29367: Ibid., p.14.] [8: Ibid., p.154] 
No que toca a religião, se “nem os bispos, nem os vigários, nem os confessores, estranham o mercado de entes humanos”, não estariam os escravizados sendo percebidos como inumanos? O que seria adequadamente “humano”, tanto para Nabuco quanto para estes líderes religiosos? Mesmo no regime escravocrata, os escravizados tinham uma interioridade humana, decerto, eram seres humanos, mas como não foram percebidos como tais? Se eles “eram”, mas passavam despercebidos como seres que não poderiam jamais estarem naquelas condições, e, ainda sobre isso, Florestan destaca a compatibilidade perversa (não para as figuras religiosas da época) entre os mores cristãos e a escravidão, mesmo aspecto salientado por Nabuco, então eles não eram propriamente humanos, eram desumanizados, e a desumanização, aqui, ocorre no momento em que a precariedade deles é suspendida, afinal, “[...] os prelados se entregam o mais que podem a suas inclinações criminosas, porque não temem um castigo que não os atinge de modo visível e no qual não acreditam”[footnoteRef:9], como bem elencou Maquiavel. Tratar-se-ia, agora, de saber como então eram percebidos os escravizados e em que medida este quadro epistemológico suportou as ações estruturais do regime, um engajamento com estes seres de tal forma; estamos, certamente, falando de uma ontologia social destes seres e de um possível engendramento cultural do phýsei. [9: MAQUIAVEL, 1994, p.303.] 
O cristianismo adentra o espaço público convergindo com o espírito da escravidão sem mais problemas. Nabuco opõe-se às tendências nacionalistas que preconizam um “patriotismo de casta racial”, pois a constituição da comunidade seria marcada por uma disjunção de determinados grupos raciais e étnicos - cabe notar que, para o autor, isto é lamentável. Se se opera a norma do humano (man-kind), em virtude do despercebimento da precariedade das vidas escravizadas, proposição que sugeri a necessidade de um esquema interpretativo para a apreensão e reconhecimento de uma vida como valiosa, então estamos supondo que a visualização desta precariedade é crucial para discernir quando, em parte, ocorre uma desumanização (em nosso caso, radical); “vida” e “morte” não sendo interpretados imediatamente como dois estados da vida biológica, ou como dadas imediatamente, pois estes dois termos, pelo contexto social, o mesmo que os delimita, pode condicioná-los, destarte, seria um equívoco supor que são absolutos, sendo o pano de fundo a negação dos “desiguais”. 
Em suma, em nosso raciocínio, há uma norma do humano que operaria dentro do domínio demográfico do regime escravocrata, em que rebaixariam aqueles seres como “não-humanos”, e este estatuto medonho seria normalizado e apropriado para uma exploração compulsória e produtiva. A existência desta norma assinalaria o fracasso das elaboração e sugestão realizadas pelo autor de “igualdade”, pois a postulação presume (a) ser “igualdade” um mero ajuntamento da pluralidade apartada de uma jurisdição que a reconheça e (b) que ela se efetivaria pressupondo um conjunto demográfico não-declaradamente revelado, senão meramente um “aglomerado de unidades livres” (Ibid. p.69) dentro de uma formação nacional truncada, sem levar em conta uma perscrutação da efetivação plena da cidadania plena destas unidades. Só poderia existir a igualdade de que se refere Nabuco, se a pluralidade social fosse admitida e incorporada ao exercício da política, e, nesse sentido, o autor parece evocar impulsos de ação que poderíamos relacionar com o que asseverou tanto Hannah Arendt. Teria Nabuco aspirado algo parecido com o que Arendt postulou como uma “vida activa” ao apontar para o problema do poder irresponsável, a nulidade de cargos políticos, o governo pessoal e a abnegação por parte do “povo” no exercício político? O rebaixamento que o autor aponta no exercício político dos indivíduos por terem a consciência de que estariam no seio de uma multidão heterogênea, em uma organização política sem uma razão de ser e, na visão dele, sem um assujeitamento[footnoteRef:5637], traduziria um aviltamento da política, consequência, como ele constata, da efetivação do regime escravocrata. Este aviltamento seria coextensivo à angústia racial pela característica demográfica do Brasil. [5637: Ibid., p.168.] 
Morte como política: “ficção da igualdade radical”
	Hannah Arendt (2014) em sua obra já supracitada aborda de forma categórica as condições que proporcionam a vida aos homens, entre eles (inter homines esse) na Terra em que habitam, cuja condição sine qua non e conditio per quam da vida política seria a pluralidade humana, e esta marcaria o rompimento da versão sugestiva de um único modelo do “humano” como se fossemos repetições deste modelo. Somos todos humanos, ao mesmo tempo que singulares, em relação aos outros; o ciclo vital da espécie que, no caso na existência humana, seria sempre interrompido, nunca linear, em virtude do caráter singular das externalizações humanas em artefatos, bem como pela condição da própria história, a lembrança, que ganharia vida pela ação. O trabalho, a obra e a ação são as três atividades fundamentais atreladas ao nascimento e a morte, pois levam em conta a preservação e a promoção de um mundo adequado aos recém-chegados. A postulação do modelo único e incontornável do “humano” tornaria desimportante a ação e a considerariauma interferência naquilo que seria a coextensão quase natural do que comporia uma natureza dos homens[footnoteRef:10]. A ação, no sentido propriamente arendtiano, seria aquilo que possibilitaria a constituição de corpos políticos fundamentados precisamente na mobilização que subscreva o “entre homens”; a atividade do interrompimento do modelo único do que se apresenta como o “propriamente” humano. Esta ação opera-se como meio de efetivação de uma potencialidade que sinalizamos ao nascer, pois somos sempre um começo e uma forma de ser que nunca mais existirá na Terra após a morte, e a atividade política - que sempre conceberia uma localização adequada no mundo - conceberia como que o impacto do sujeito neste mundo, nas instituições políticas, em termos de concretude que é o sentido que Arendt reveste à “ação” (práxis). [10: 2014, p.10.] 
[…] Das três atividades, a ação tem uma relação mais estreita com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa, a todas as atividades humanas é inerente um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico. (Ibid., p.11)
	Nos termos deste trecho, o que seria a mortalidade como categoria política? Se há sempre uma promessa que adviria dos recém-chegados e que encontraria realidade no exercício dos mecanismos políticos, o inverso disso seria a política exercida de forma que, em tese, se oporia à existência desta suposta pluralidade, que se realizaria atrelando ao seu exercício uma “unicidade” mais ou menos discernível que, por sua vez, deve ter amostras de inteligibilidade, uma vez viabilizadora. Por outro lado, a “ação mórbida” negligenciaria as singularidades humanas pela operação institucional de uma norma especular do humano, como pela suspensão da ação. Em suma, a mortalidade como política é a ação política cuja condição humana de “estar entre os homens” é contida e intervinda de alguma forma. 
A mundanidade designaria nossa capacidade de produzir coisas conformáveis a uma eternidade reversível que configuraria o que seria plenamente humano, em contraposição ao domínio diferencial animal, que seria a satisfação de prazeres oferecidos pela natureza[footnoteRef:11]. Esta “naturalidade” corresponderia a um modo de existência apartado do “domínio dos assuntos humanos”, com ênfase na práxis necessária para estabelecê-lo e mantê-lo”[footnoteRef:12]. A preocupação neste fazer (erga) sobre o vestígio de quem produz, assumiria um momento de desatenção a eternidade a ser estabelecida. Trocando em miúdos, quer-se propor que Nabuco tenha disposto a estudar a Escravidão da perspectiva de sua estrutura de “produto humano” (nómos), mas que ele escorregou pela sua dedução fracassada de um fim que (a) não logrou da forma que foi previsto e que, por isso, (b) revelaria desdobramentos que escaparam do quadro esquemático do autor, sinalizando que alguma omissão se tenha realizado e que se incorporou ao resultado final sua própria obra. Por outro lado, o autor ingressa, de uma determinada forma, na vida activa, uma vez que o conjunto de suas críticas ao regime diz respeito a desdobramentos – ainda que falhado como supracitado – nas configurações políticas posteriores; que de suas palavras emana uma inquietude, disposição ao desajustamento da inércia que dá vida a uma eternidade mundana. Esta deve constantemente ser interrompida ativamente pelo envolvimento assinalado da pluralidade dos homens, e esta pluralidade é requisitada pelo autor, de alguma forma. [11: p.24.] [12: p.16] 
Ainda sobre os elementos desmoralizantes da dominação do poder pessoal e arbitrário do senhor, a compulsão violenta, representada, em parte, pelos atos danosos aos, aproximadamente, dois milhões de seres humanos, denotaria como que um imperativo organizacional, justamente este requisito que Nabuco opõe-se enfaticamente. Estes sujeitos seriam como que demiurgos, em virtude das barreiras à ação política, à segunda vida, no caso, na politica, (bios politikos); estes - principalmente as mulheres escravizadas sob a esfera doméstica, como lembrou Nabuco - estariam restritas a esfera da necessidade e abstraídas de sua prerrogativa propriamente humana da ação, estando esta condição "mórbida" subsumida aos próprios termos daquele imperativo. A natureza histórica destes imperativos tem sua particularidade no caso brasileiro, e isto pode ser elucidado se referirmos a positivação feita por Gilberto Freyre a respeito do relaxamento deles que, nos EUA, desdobrou-se no tabu da miscigenação e que, em nosso caso, tal idealização não seria normativamente ponderada como naquele país, em virtude da realização da possibilidade do "cruzamento", mas que não significaria, por si só, uma espécie de contraposição ao caráter violento destes processos, senão uma particularidade que deve ser elencada, para fins explicativos, se se quiser. 
Podemos sugerir que a estabilização angustiante de um modelo humano, representada pelo conjunto de condutas durante o regime escravocrata, denotaria uma operação de enquadramentos humanos condicionantes da atividade política, precisamente pela previsibilidade e fechamento ideológico daqueles que deveriam compreender à "companhia natural, meramente social, da espécie humana". Estamos falando de uma situação estrutural de descontinuidade matricial da sociedade brasileira em que determinados sujeitos são, e a um só tempo, eximidos da esfera de ação dos assuntos do mundo, ao mesmo tempo que eram, pela compulsão do “fazer viver” de que necessita a humanidade (mankind), no nosso caso, da espécie humana (man-kind). “Espécie humana”, pois o que se traçou foi um rompimento, uma destituição radical dos escravizados do domínio crucial que asseguraria a autenticidade de sua existência. A manutenção individual e a da espécie são dois âmbitos prementemente necessários. 
Ainda sobre a condição humana da política que se aloca como requisitada, de certa forma, no quadro de Nabuco, cabe delinear que a “companhia dos outros” (Arendt), tão fundamental para a sobrevivência da espécie e da manutenção individual (leia-se da possibilidade de ação e discurso) não poderia igualmente ser, de imediato, já-estabelecida, e a respeito deste problema a filósofa Judith Butler bem salientou:
Talvez possamos dizer que uma universalização está presente na formulação de Arendt que busca estabelecer a inclusão para toda a sociedade, mas ela não postula um princípio definidor único para a humanidade que reúne. Essa noção de pluralidade não pode apenas ser internamente diferenciada, pois isso nos levaria à questão sobre o que delimita essa pluralidade; como a pluralidade não pode excluir sem perder seu caráter plural, a ideia de uma forma dada ou estabelecida para a pluralidade representaria um problema para as reivindicações de pluralidade. [...] a pluralidade [caracteriza] uma condição em potencial (um processo) (2017, p.130).
A estrutura da coordenação das atividades na administração doméstica, no regime escravocrata, não seria a de que “o trabalho do homem [forneceria] o sustento e o trabalho da mulher no parto”[footnoteRef:13], - nem poderia ser apressadamente equiparado à escravidão na pólis. A “necessidade” estaria não apenas atrelada ao sustento da vida material, uma vez que engloba igualmente um governo das atividades a ela correspondidos, sendo, então, a Escravidão definida por uma estruturação social em cuja necessidade seria delimitada de tal forma que o ônus da vida fosse submetido a intervenções diretivas e violentas a sujeitos específicos, e o domínio dos assuntos humanos rigidamente restringidos a outros. [13: Ibid., p.37.] 
A ficção da harmonia racial especulada por Nabuco, tão real quanto a hipótese liberal da “mão invisível”, pode ser correspondidaà “ficção comunista”, presente no utilitarismo liberal, de que exista um único interesse comum, ideal político que presume um só interesse da totalidade da sociedade, equivalente a ideia de que a sociedade é concebida como um único sujeito e isto significa ignorar que a atividade social é resultado das intenções de vários indivíduos, e postular um “lar nacional”[footnoteRef:14], construção que nos é perigosa, marcando a criação do Estado-Nação, que se lembre deste perigo nas leituras do problema nacional como Alberto Torres o detalha, não como se ele o fizesse e/ou endossasse, não alego isso a seu respeito com minha parca leitura dele, mas que uma formação estatal baseada no pertencimento pode gerar a ameaça ou a efetivação mesma da produção necessária de apátridas, como Arendt assevera em As origens do totalitarismo. Uma vitória completa da sociedade - o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobre-humana em uma forma política organizacional denominada de "nação” - produziu sempre algum tipo de “ficção comunista”, cuja principal característica política é a de que realmente será governada por uma “mão invisível”, isto é, por ninguém. Nabuco, antecipando os apontamentos mais bem acabados de Arendt, destaca os “resquícios tradicionais”, em nossa formação, o advento da “admissão das atividades domésticas e da administração do lar no domínio público”[footnoteRef:15] que se desdobraria no Brasil: [14: Ibid., p.54.] [15: Ibid., p.56.] 
A) Abdicação geral das funções cívicas, o indiferentismo político, o desamor pelo exercício obscuro e anônimo da responsabilidade pessoal, sem a qual nenhum povo é livre, por que um povo livre é somente um agregado de unidades livres: causas que deram em resultado a supremacia do elemento permanente e perpétuo, isto é, a Monarquia.[footnoteRef:16] [16: Ibid., p.169.] 
B) Autônomo, só há um poder entre nós, o poder irresponsável; só esse tem certeza do dia seguinte; só esse representa a permanência da tradição nacional. Os ministros não são mais que as encarnações secundárias, e às vezes grotescas, dessa entidade superior.[footnoteRef:17] [17: Loc. cit. ] 
O regime escravocrata foi uma experiência que assinalou a entrada do processo da vida no “domínio público”, de alguma forma, entendendo este domínio como a teórica política concebe. O domínio privado era a esfera da continuidade da espécie humana, o homem que existia nesta esfera assumia um estatuto de “exemplar da espécie animal humana”, não como ser verdadeiramente humano – que só se conceberia no domínio em que a individualidade, onde possa mostrar quem realmente é, bem como sua insubstituibilidade –, este esquema pode ser mobilizado, de alguma forma, para compreendermos os germes dos problemas que Nabuco assinala; os corpos escravizados estariam confinados à esfera privada, suportando o mundo que estava sendo erigido por outros corpos que detinha a prerrogativa para tal, bem como suas condições. Mesmo irrompendo a burocratização, o “governo de ninguém”, nas instituições políticas, se exige que os que os membros da sociedade ajam como se fossem membros de uma enorme família que tem apenas uma opinião e um único interesse[footnoteRef:18], e considerando que, a despeito do “jogo de sombras”[footnoteRef:19], estas forças especificas não se realizaram de forma inócua. Talvez, em nosso caso, uma imposição de “exigências niveladoras” da sociedade se gestou na prossecução do regime escravocrata, no processo de formação social e política. O que Arendt categoriza como “sociedade de massas” - enquanto a nomeação de uma absorção de grupos sociais por uma sociedade única (fac-símile). temos aqui algo semelhante ao que ela postula como as formas de equacionamento do indivíduo a sua posição social, marcando o “conformismo” em que a ação é substituída pelo “comportamento”, ou seja, a disposição acional humana que é caracterizada pela espontaneidade é, de alguma forma, solapada; um conjunto de constrições específicas agem para produção de regras que regulam a orientação destas ações humanas, potencialmente extraordinárias, por conseguinte, regulando a efetivação da iniciativa "genética”. [18: Op. cit., p.48.] [19: Ibid., p.168.] 
O caráter monolítico de todo tipo de sociedade, o seu conformismo, que só admite um único interesse e uma única opinião, tem raízes basicamente na unicidade da espécie humana. [...] A sociedade de massas, onde o homem como animal social reina supremo e onde aparentemente a sobrevivência da espécie poderia ser garantida em escala mundial, pode ao mesmo tempo ameaçar de extinção a humanidade.[footnoteRef:20] [20: ] 
A disposição teórica, em Arendt, de exceder a prerrogativa do “mero sobreviver” assinala o problema da concentração da atividade de manutenção da vida, de que uma dimensão essencial da humanidade é deixada de lado, e nesse aspecto, as ameaças de extinção da própria humanidade operam justamente nesta dimensão, uma vez que alguma interrupção pode intervir na “dependência mútua em prol da vida”, sugerindo diferentes engendramentos da unicidade e do caráter monolítico da sociedade. A concentração das atividades vitais no espaço público e o vilipêndio podem ser interpretados como uma viabilidade do “governo de ninguém”, pois a libertação do ônus não dispõe de meios para sua assunção e concretude, sendo, então, condicionado. Este “governo de ninguém”, que gira em torno da orientação das consequências impremeditadas e irreversíveis que não são tratadas devidamente, marcam um domínio de desamparo, de privação de um lugar no mundo diligenciado por este domínio que coincide à esfera do lar, da privação que, em nosso caso, se gesta no processo inicial de formação societal O que chamamos por “Brasil” começa no contexto da promessa de uma decadência do domínio público, como supracitado. A nação se forma, operando uma desvinculação de atividade políticas, fornecendo condições para, posteriormente, delimitar a cidadania como uma prerrogativa. Se “não possuir um lugar privado próprio [...] significava deixar de ser humano”[footnoteRef:21], esta é justamente a condição social e política dos corpos afetados pelo regime escravocrata, pelo poder senhorial, principalmente dos escravizados e de seus” descendentes”. O país se forma, institucionalizando uma forma de privação dentro das estruturas políticas, configurando a cidadania como uma prerrogativa, situação esta que pode ser mudada pela efetivação da promessa dos recém-chegados que, dentro de tal conjuntura, podem e devem exigir o direito de discurso (lexis) e de ação política (práxis). [21: Ibid., p.79.] 
Espaço público e nacionalidade
No texto de 1958, Arendt tem uma sugestão importante para o entendimento do substrato do fazer político que é a de que os homens são paradoxalmente marcados por uma pluralidade enquanto seres únicos, sendo eles os únicos capazes de exprimir a distinção que eles partilham com tudo o que vive e a alteridade com tudo o que existe, que toda definição é uma forma de distinção, uma vez que a definição opera-se distinguindo de uma outra coisa[footnoteRef:22]. O que nos interessa desta tese é que, concordando com a afirmação de que é sempre necessário agir e falar no espaço público-político para a efetivação da singularidade - de que a autora assevera termos à luz da promessa de nosso nascimento -, nunca poderíamos supor de antemão que a efetivação desta singularidade seria desnecessária, ou mesmo que tal efetivação já logrou em viger, sendo estas antecipações formas esnobes e relativistas de lidar com os recém-chegados no mundo, aos quais supostamente poderíamos prefigurar a forma humana que assumiriam, bem como o conjunto de suas necessidades certas. Estas considerações de que me valo são feitas como arcabouço novo para que questionemos a disposição histórica nas abordagens teórico-interpretativas de nosso país que sugerem uma suposta harmonia social aprioristica, ou, em última instância, uma estado social, uma sensação de comunhão, que não podem ser prefiguradosapressadamente, em virtude da condição humana da pluralidade e da “necessidade” da ação para que exceda a mera aparição física original dos homens preparando-os para o espaço de aparição no mundo qua homens; tal processo pode ser precarizado ou negligenciado por estar condicionado à vontade dos homens, pois a ação humana não é mediada pela matéria, nem pelas coisas[footnoteRef:23], tratando-se de saber como e quais certos indivíduos ou grupos são impossibilitados de sua viabilidade na esfera de aparição, onde agiriam e falariam, no espaço público-político, para tratar de assuntos “comuns” a todos, tendo em conta também que estas ações produzem consequências irreversíveis e impremeditadas no mundo preparando uma esfera relacional em que cada ação me enredaria no contexto de efetivações anteriores. [22: Ibid., p.218.] [23: Ibid., p.9.] 
No que diz respeito às operações de poder no bojo dos processos políticos decisórios, não fica muito bem discernido as diferentes relações de poder que podem e são articuladas de modo a restringir os círculos humanos que são compreendidos e orientam objetivamente as estruturas políticas, e não é nossa tarefa neste ensaio. Quero apenas nessa seção tratar brevemente sobre a questão nacional em Alberto Torres, pressupondo, novamente, como operadoras as reflexões políticas de Arendt, destacando mais especificamente, em nosso quadro, as populações negras que são alvo da idealização vacilante e antecipada a qual pontuamos. 
Alberto torres, em seu texto de 1914, aponta que o fato de estarmos vivos nos impõe certas condições cruciais de manutenção da vida, e que o animal humano carrega um conjunto de características, propriamente humanas, necessidade geral de equilíbrio e harmonia das coisas: a síntese da história “sintetiza-se, então, nesse esforço do homem por assentar e amparar a segurança da sua existência”[footnoteRef:24]. A Nação - como a associação dos indivíduos e famílias que habitam em território protegidos pelo Estado, sentido de comunidade, memória e condições práticas de tranquilidade e o prolongamento da(s) estirpe(s) – organiza a subsistência e o êxito de todos, gerando um sentimento generalizado de confiança dos meios de vida. Entretanto, qual seria a natureza da relação entre as diferentes estirpes e a confiança em relação a estes meios de vidas? Será que efetivamente todos seriam contemplados pela máxima segundo a qual “a fortuna do indivíduo é a fortuna da nação; a fortuna da nação, fortuna do indivíduo”? [24: 1978, p.38.] 
Uma estrutura de continuidade aos recém-chegados é estabelecida, uma vez que “as condições sociais da vida individual, conservando, nestas novas sociedades, o caráter de permanência, firmaram o de continuidade[footnoteRef:25], sendo assim, a continuidade dos seres, bem como a confiança deles às estruturas políticas, às orientações objetivas, é fundamental, e estas orientações são articuladas de uma forma que, na visão dele, há uma possibilidade de previsão das consequências das ações, o que não é possível para Arendt, muito menos dispor de algum controle soberano sobre elas, sendo este um dos motivos do “preconceito” à política que ela detalha em certos contextos e localidades, no texto de 1958, que, na sua visão teria como remédio a realização do perdoar e do prometer. Diferente do que Alberto Torres assevera, “contestar ao homem e à sociedade [a] capacidade para prever o futuro”[footnoteRef:26], não significa lançar mão de uma falha crônica que negaria a reflexão ética-política destas consequências, mas representa uma crítica mais ampla que compreenderia que a capacidade do homem, que ele acredita ser viável e que, por lógica, compactuaria com o inverso da contestação que tende ao “anarquismo” que ele antevê, de “reger e administrar os universais” é, na verdade, marcada por uma [25: Ibid., p.39.] [26: Ibid., p.40] 
Relação estabelecida entre [o si mesmo], de sorte que o certo e o errado nas relações com os outros são determinados pelas atitudes com relação ao si mesmo, até que todo domínio público passa a ser visto à imagem do ‘homem escrito em maiúsculo’, da ordem adequada entre as capacidades individuais da mente, da alma e do corpo do homem. (Ibid., p.294)
Estas orientações devem ser conjugadas para ele no sentido da constituição de uma nacionalidade com “os obstáculos e as possibilidades encontradas”[footnoteRef:27], acabando fazer florescer as populações sobre as zonas exploradas e em exploração, em vez de sermos tentados por “melhoramentos materiais artificiosos”, promovendo a revelação da heterogeneidade social, o que implicaria a constituição justamente de uma consciência nacional que representaria a autonomia de um povo. A tese de que “o homem começa apenas a praticar a ciência do sentimento e a arte do amor em suas relações com os outros seres, com a terra e com seus semelhantes”[footnoteRef:28] parece sugerir uma igualdade fictícia dos seres que, como já asseveramos não é estabelecida aprioristicamente e que pode ser negligenciada pelo fato de que nem todos podem ter uma reflexão ética bem ajustada nas relações da vida concreta com os outros homens sobre a Terra[footnoteRef:29] e por ser o complexo de sentimento que refletem uma comunidade bem consolidado, no Brasil, “inadvertências juvenis”, na verdade, nada sinceros. [27: Ibid., p.45.] [28: Ibid., p.47.] [29: Ibid., loc. cit.] 
Alberto elabora que temos um problema governamental no que diz respeito à nossa consciência nacional, criticando o “hábito de apreciar os fatos políticos e sociais sob sugestão das emoções morais, à barra do ‘julgamento’ [levando] a não ver os assuntos públicos senão pelo dilema do bem e do mal, do honesto e do desonesto”[footnoteRef:30], um argumento direcionado ao poder patriarcal e patrimonial das formas de dominação. Um problema envolto de uma disposição “cosmopolita” de compadecer por outros Estados e não pelo nosso, em virtude, em parte, de sua “luta pelas posições”. Esta disposição produz um desconhecimento de nossa própria Terra, dos problemas que a ela está relacionada. O que é importante nos questionar é como se poderia contemplar as demandas dos diferentes grupos que ele descreve existir em nosso território e incluir no contexto de um modo de pertencimento. Florestan Fernandes já destacara que as populações negras, no desenvolvimento da sociedade de classes, são integradas da forma mais desajustada e até desmoralizante, resultado que o autor desta seção não testemunhou, mas constatou seu germe, até mesmo reproduzindo suas condições em termos de seus modos culturais e psicossociais ao definir algo denominado de “raça”. Sua crítica ao tipo de poder senhorial, marcado pelos interesses privados, é importante, mas os elementos demográficos em sua integridade política como sujeito de ação devem ser elencados e incorporados à ordem política que ele prognostica. A constituição de uma formação lastreada na nação pode produzir e produz uma idealidade racial em sua formatividade, podendo culminar na constituição de um Estado-Nação, o que não significa impedir um desenvolvimento nacional em um sentido de coletividade, proteção, e assistência, mas analisar de forma esmiuçada possíveis relações de poder na administração em uma forma patrimonial, e, como tal, marcada pela tradição, sendo esta tradição em nosso caso, saturada de um horizonte cultural que suporta um regime de castas. Sobre os “interesses comuns", seria crucial, pelo menos em minha cosmovisão, recorrer a uma pluralidade política - tendo em conta nossa heterogeneidade social e as formas ignóbeis e/ou irresponsáveis que nossa sociedade e os mecanismos políticos têm lidado - no processo de criação do Estado de direito e das ações políticas. Esta articulação nacional baseada na pluralidade contemplaria estes diferentes grupos, sondando o poder soberano e monocrática, impedindo a gestão tão interessada e exploratória que ele assinala em algumas exemplificações de seu texto. [30: Ibid., p.52.] 
As asseverações do autor da necessidade de pensar a nacionalidade no sentidoque ele coloca que envolve a manutenção da vida dos seres em um território é importante e pode nos fornecer um aporte político para pensarmos o exercício político como condicionado pelo lugar e comunidade. Operações políticas, nesse sentido, podem ser feitas para destituir certas populações de direitos políticos mais amplos pela condição de se estar condicionado pela vontade política dos círculos humanos. A destituição pode ocorrer no momento em que estes círculos omitem conflitos mais complexos no bojo da própria sociedade. Alberto torres evoca um sentimento de paz social em outros países como sendo de uma característica plausível em uma ordem social sensata, porém, em nosso caso, estes conflitos são absorvidos pelos modos de acomodação racial que “’assinalam’ estados de harmonia”, ainda que ele sugira um desafio de apaziguar os diferentes grupos, ou, na sua perspectiva, das diferentes “raças”; a invocação da tranquilidade pode ser um problema pela não consideração, em última instância, da mundanidade dos seres, do caráter de produção social, a vida ativa realiza-se como uma inquietação e a crítica social compreende este sentimento. Não se pretende, aqui, analisar uma genealogia dos discursos que supõe uma ontologia social marcada por uma harmonia, baseada em uma percepção tênue da exterioridade dos ajustamentos raciais. Já foi dito que as ações políticas tem consequências impremeditadas e irreversíveis que nos aloca, no momento que aparecemos no mundo e efetivamos nossa promessa, em uma teia de relações das gerações passadas, sendo assim, “os males inacessíveis do mundo cósmico [...] imprevistos e ocultos, que não alcança (o homem) e não pode combater” sejam justamente estas consequências que podem ser mais ou menos antecipadas de forma elaborada pela natureza do caráter e do valor que normalmente determina as tendências[footnoteRef:31], e, sobre isso, é interessante expor que, para o autor, na época, não se tinha o preparo ético e político que permitisse [31: Ibid., p.51.] 
Perceber que, entre a figura do homem e seu espírito, entre a vida que ele vai fazendo e suas qualidade, há um mundo de causas de variação, que se estendem do mais remoto passado até o momento atual, e sobre o qual se esbatem reflexos e refrações de todas as vidas e de todos os fatos que nos cercam (Ibid., loc. cit)
O fenômeno que esbocei de maneira bem breve é marcado pela disposição restritiva do político, do campo de ação dos seres humanos como seres plurais. Em um país marcado por um regime escravocrata cujos padrões de relações foram revitalizados pelos comportamentos, mentalidades e atividades as mais elementares e, por consequência, não permitiu a inovação dessas relações, senão uma manipulação delas como Florestan detalhou, não tivemos uma experiência democrática sensata, uma vez que o espaço público foi pervertido pelos princípios que regiam o regime de castas, os estamentos, típicos de um domínio patrimonial e tradicionalista. O espaço público-político deve ter esses vícios tradicionais expurgados para que uma democracia radical possa ser exercida e este caminho começa pela crítica dos modos culturais que preparam e regulam os sujeitos políticos adequados, e restringem ao serem operados discursos que prefiguram o espaço público como “já-preenchido”, marcando um exemplo daquilo que chamo por apolitismo brasileiro. 
Teríamos de reformular profundamente nossa concepção de democracia, tendo em vista as possíveis articulações dos padrões de relações tradicionalistas durante o regime de castas, e em relação às formas de dominação pré-burocrática, Weber já teria apontado os limites da democratização que se requisita na dominação burocrática, pois estaria orientado para o nivelamento dos estamentos e seleção de funcionários, agora, sobre o peso da influência da opinião pública, o que nos incita a questionar se o novo modo de legitimação do poder, no contexto demográfico, poderia articular com aqueles padrões de relações sociais pré-burocráticas. Weber deixa constatado estas possibilidades e Florestan constata essas “continuidades” no pós-abolição, no caso particular brasileiro, em relação ao regime escravocrata, demonstrando a permanência das assimetrias típicas do domínio tradicionalista e senhorial, bem como o isolamento sociocultural e os distanciamentos sociais que perdurou, mantendo uma “contradição” com aqueles requisitos democratizantes de uma sociedade de classes. Weber, em Economia e sociedade, já esboça a possibilidade da democracia, no domínio burocrático, ameaçar o “domínio” em si, o que nos sugere uma possibilidade do contrário, tendo em vista a possibilidade de um impacto na sustentação do poderio; ele também afirma que o sentido da democratização é precisamente o nivelamento jurídico dos dominados e um novo reordenamento dos funcionários[footnoteRef:27260]. Aquelas restrições no espaço público-político que me referi é semelhante à figura do honoratiores que o sociólogo se refere, cuja posição seria sustentada pelo privilégio e o prestigio que esses homens detinham socialmente, podendo, à escala de um círculo humano restrito, transformar-se uma casta. [27260: WEBER, Max. economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p.220.] 
A construção nacional de uma nação com determinadas particularidades como o nosso, teria de compreender uma distribuição e descontinuação efetiva do poder soberano e lançar mão de um quadro de referência político que seria a pluralidade social, sendo a continuidade de um poder de mando arbitrário em alguma forma determinada e em alguma instância, uma forma de delimitar a arena política e desafiar a consciência nacional e a ordem social requerida de que se refere Alberto Torres, e para nós, a ordem política legítima deve ser baseada na igualdade.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. A condição humana. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
BUTLER, Judith. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2017, p.119-155.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro da sociedade de classes. (capitulo 03). 3.ed. São Paulo: Ática, 1978. 
MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 3.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p.301-6.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 
TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. 4.ed. São Paulo: universidade de Brasília, 1982.

Continue navegando