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C A P Í T U L O 1 | Q ? 251 T b h Os dois textos a seguir são de autores contemporâneos que se dedicam a estudar a prática científica e seus limi- tes. Em ambos, são destacadas as relações entre ciência e política, em uma direção similar àquela que vimos ante- riormente, na produção de Bruno Latour. Texto 1 Isabelle Stengers, química belga e doutora em filosofia das ciências, discute neste texto o interesse na pesquisa cien- tífica. O cientista precisa ser capaz de despertar interesse por aquilo que pesquisa, para que possa obter verbas para suas investigações – o que revela as questões políticas en- volvidas na ciência. Ciência, interesse e poder O cientista que quer ser inovador, que quer criar histó- ria, deve ser um estrategista de interesses. Ele deve criar vín- culos, encontrar aliados, criar relações de força favoráveis. Ele deve certamente aceitar certas imposições: Lyssenko é o exemplo daquilo que é preciso evitar, aquele que jogou de maneira direta o poder do Estado soviético contra seus co- legas. Se um biólogo, porém, consegue fazer com que, por exemplo, se aceite um vínculo entre sua pesquisa e o pro- blema da Aids, ele terá mais crédito financeiro, mais pres- tígio e terá feito seu trabalho de cientista: se suas pesqui- sas não contribuírem para a resolução do problema, nin- guém o censurará. As ciências não são nem empreendimentos puros, ino- centes, vítimas de poderes que desviam o sentido das pes- quisas, nem os cúmplices servis dos poderes. O cientista procura interessar àqueles que o ajudarão a fazer a diferen- ça, a criar história, e nenhum limite intrínseco define aque- les a quem ele não deve procurar interessar. Eventualmente certas preocupações políticas ou morais impedirão um físico de dizer aos militares: “nós poderíamos conceber um novo tipo de arma a partir de minha proposição”. Eventualmente, mas não seria na qualidade de cientista que ele se recusaria a isso. Enquanto cientista seu trabalho é de interessar, e in- teressar a todos aqueles que podem ajudá-lo a criar uma história que passe por ele. Tal cientista, porém, poderá tam- bém, e com a consciência limpa, enganar os militares, con- seguir interessá-los por aquilo que ele sabe que não passa de uma ficção. Isso também faz parte da profissão. As ciências não traduzem de maneira servil os interesses daqueles de quem dependem, e sim reinventam o sentido para seu pro- veito. Em contrapartida, há uma coisa que elas traduzem fielmente: as relações de forças sociais que determinam aqueles a quem é interessante interessar, aqueles que po- dem ajudar a fazer a diferença. [...] A utopia que minha crítica propõe não é a de uma ciên- cia “pura”, “desinteressada”, “sem ideologia”. Não se trata de dizer aos cientistas: “parem de interessar”, o que signifi- caria dizer: “deixem de ser cientistas”. O verdadeiro proble- ma é político. A ciência é amoral no sentido em que interes- sa a quem pode fazer a diferença, e no sentido em que colo- ca o problema geral de nossas sociedades. Mas, como sem- pre é o caso, ela o coloca de um modo singular, ao qual po- dem corresponder, aqui e a agora, respostas singulares. No que me concerne, aqui e agora, eu tento complicar a situa- ção, isto é, a diferenciação clara demais entre aqueles a quem os cientistas interessam (e surpreendentemente que, em francês, essa última frase tenha um duplo sentido inde- cidível: não se pode saber quem é o sujeito, quem é o alvo) e o “público”. Por isso tento fazer proliferar os interesses a propósito da ciência, multiplicar o número daqueles que se- rão capazes de apreciar, avaliar as operações científicas, admirá-las e rir delas. [...] [...] As escolhas e as orientações em matéria de ciên- cia serão reconhecidas por aquilo que são: questões políti- cas. Que elas o sejam é algo que muitos sabem, em princí- pio, mas, de maneira geral, eles sempre chegam tarde de- mais, criticam uma ciência já feita. É preciso que as con- trovérsias interessem ao que então não se chamará mais de “público”. Político também é o modo de formação dos cientistas, acerca do qual sabemos que ele é feito para separar ao má- ximo a competência dos especialistas e a eventual “boa von- tade” do cidadão que o cientista também é. Nem todos os cientistas estão prontos para interessar a qualquer custo, mas mesmo aqueles que não o estão calculam mal o sentido do interesse que seu trabalho pode suscitar. [...] STENGERS, Isabelle. Quem tem medo da ciência?: ciências e poderes. São Paulo: Siciliano, 1990. p. 104-107. Glossário Trofim Lyssenko (1898-1976): Biólogo ucraniano que se tornou diretor do Instituto de Genética da Acade- mia de Ciências da União Soviética em 1940, durante o governo de Stalin. Defendia teses completamente di- ferentes da biologia clássica e apoiadas pelo regime soviético. Perseguiu os geneticistas que tinham ideias contrárias, vários dos quais foram demitidos ou mes- mo presos. Seu trabalho foi oficialmente desacredita- do em 1964. Questões sobre o texto 1 Por que, segundo o texto, o cientista precisa despertar o interesse dos outros em suas pesquisas? 2 Quais as relações entre ciência e política, segundo a autora? 3 Como as questões políticas interferem na ciência? E o inverso também acontece? Explique.