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E-book 1 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS RÍTMICAS E EXPRESSIVAS Ana Roberta Almeida Comin Neste E-Book: INTRODUÇÃO ����������������������������������������������������������� 3 O CORPO E O MOVIMENTO ���������������������������������4 O MOVIMENTO E A CULTURA AO LONGO DOS ANOS ����������������������������������������������������������������� 9 O MOVIMENTO NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA �����������������������������������������20 O RITMO DE TUDO ������������������������������������������������29 CONSIDERAÇÕES FINAIS ����������������������������������� 33 2 INTRODUÇÃO Neste e-book você poderá aprender o conceito de corpo e sua incrível capacidade de gerar movimento. Será abordado o papel do movimento no desenvol- vimento individual de cada um de nós e como ele influenciou o avanço da humanidade. Além disso, você também vai aprender como o surgi- mento das sociedades influenciou a cultura e a sua relação com o movimento, passando pela história até chegar nos dias atuais. Com destaque para a nossa cultura brasileira. Por fim, analisaremos como o ritmo dita o compasso da vida, da fisiologia à arte, conectando o movimento à cultura. 3 O CORPO E O MOVIMENTO Para começarmos, proponho a você o seguinte ques- tionamento: o que é o corpo? Em princípio, em uma visão reducionista, podemos pensar que se trata de um conjunto de sistemas fisiológicos compostos por órgãos, ossos e tecidos diversos. Mas podemos julgar correta uma definição tão rasa? O conceito de corpo é amplo e a cada análise podemos ter uma resposta diferente. O corpo pode ser descrito pela ciência como matéria, definido ainda por outras áreas como um conjunto de sistemas que trabalham harmonicamente visando ao equilíbrio e à preservação da vida. Essa dinâmica envolve desde diminutas células até estruturas ma- croscópicas como órgãos, ossos, pele, músculos etc. É interessante notar que o mesmo conceito é expli- cado pela Psicologia de maneira bastante ampla e reflexiva. Freud pontuava que o corpo possui dois significados, um o corpo real, que podemos tocar e ver, que ocupa um espaço e é galgado na anatomia, e outro o corpo como princípio de vida e individua- lização, com significados particulares ao indivíduo. A relação entre o corpo e a mente produz uma visão única do indivíduo – a chamada imagem corporal, que pode ser compreendida como a forma com que o corpo se apresenta para o indivíduo, sendo esta relação única e subjetiva, uma vez que está ligada à percepção do próprio. No entanto, essa relação 4 não é imutável, ou seja, ela pode mudar, uma vez que é construída com base em experiências vividas anteriormente e anseios futuros. Esse corpo, dotado de dinamismo, conceitos intrínse- cos e demandas próprias que envolvem a existência e a percepção, serve ainda de instrumento de lin- guagem e expressão. Graças a complexas estrutu- ras, o corpo é capaz de produzir algo fantástico que move a humanidade e permite a nossa evolução: o movimento. Vencer a inércia faz do homem um ser único, uma vez que é capaz de empregar o corpo não somente em tarefas voltadas para a sobrevivência, mas tam- bém em tarefas minuciosas que requerem destreza, cognição e treinamento. Enquanto os animais se movimentam de forma a buscar a preservação da vida, isto é, caçar, fugir de predadores e encontrar abrigo, nós seres humanos vamos além. Fazemos o uso do movimento na arte, no esporte, na recreação e em muitas outras situações. Mais do que isso, o movimento serve também para manifestar ideias e para expressar emoções e sentimentos. O movimento é natural ao ser humano. O bebê movi- menta-se dentro do ventre da mãe, sem ao menos ter visto o mundo de fora. Ao nascer, chora, agita braços e pernas, abre os olhos. Até o primeiro semestre de vida ele não compreende o seu corpo como uma identidade única, ele ainda acredita ser uma extensão de sua mãe. 5 A descoberta do bebê em relação a si e ao seu corpo e à sua desvinculação à ideia de “extensão da mãe” se dá através do movimento. Ao movimentar-se, a criança aprende a reagir a estímulos, expressar emo- ções e desejos e firmar a sua identidade e o seu processo de descoberta do mundo. Hoje em dia o movimento é altamente valorizado e reconhecido como parte fundamental do desenvol- vimento infantil, sendo fortemente incentivado por médicos e entidades de saúde voltadas à criança. No passado, era comum que mães e pais aninhassem seus bebês em cueiros, popularmente chamados de “charutinhos” – técnica que consiste em enrolar a criança em mantas ou tecidos reduzindo a sua mo- bilidade. Atualmente, reconhece-se que a prática não deve ser incentivada, uma vez que a diminuição da capacidade de movimento da criança aumenta as chances de morte por Síndrome da Morte Súbita Infantil, além de comprometer o seu desenvolvimento. Figura 1: Bebê enrolado em um cueiro. Fonte: Maesdepeito 6 https://www.maesdepeito.com.br/wp-content/uploads/2017/02/31900741534_8fbc566df3_z.jpg O movimento está ligado a processos biológicos, psicológicos e sociais, pois é por meio dele que so- mos estimulados e nos desenvolvemos. É através do movimento que a criança explora o mundo e constrói conhecimentos através dessas experiências. Além do repertório motor, esse processo permite ganhos nos domínios cognitivo e afetivo, pois a criança passa a aprender a lidar com o outro e como estabelecer relações. Um exemplo disso são os jogos infantis. A criança, por meio do movimento, aprende a lidar com os colegas, a seguir regras, a realizar gestos específicos, além de experimentar os conceitos de ganhar e perder. Até agora pudemos observar a importância do movi- mento no desenvolvimento e na maturação de cada indivíduo. Mas, e quando pensamos na importância do movimento para o todo? Vimos anteriormente que o movimentar-se estava ligado às atividades fundamentais de sobrevivência como a caça, por exemplo. Deixo aqui o seguinte questionamento: quando o ser humano passou a de- dicar sua capacidade motora para outras finalidades? 7 Figura 2: Pintura rupestre representando o movimento. Fonte: Todamateria Pinturas rupestres, isto é, representações artísticas que datam a chamada pré-história, feitas em superfí- cies de cavernas, retratam o movimento e as expres- sões corporais na forma de dança, além de outras situações cotidianas. Presume-se que a dança nesse período tinha função ritualística ligada às colheitas, chuvas, à caça, à fertilidade e a outros temas que permeavam a existência desses antepassados. A evolução da humanidade mediante sua capacida- de de movimentar-se e a ressignificação do corpo levaram ao surgimento das sociedades e da cultura, como veremos a seguir. 8 https://www.todamateria.com.br/o-que-e-danca/ O MOVIMENTO E A CULTURA AO LONGO DOS ANOS Inegavelmente somos seres sociais. Graças ao inte- lecto e à capacidade de interagir nós nos tornamos seres políticos, exploramos as relações sociais e estabelecemos a nossa convivência através da for- mação de grupos. Nos tempos primórdios essa aproximação entre in- divíduos se deu mediante à noção de quão frágeis e vulneráveis éramos frente às ameaças que rondavam o meio ao qual estávamos inseridos. Isso nos apro- ximou e foi o embrião do modelo que conhecemos hoje como “sociedade”. O fator “estar junto” garantiu a proteção e a segu- rança que eram necessárias e criou o sentimento de “unidade”, o que avançou para a busca de objetivos em comum que garantissem também o bem-estar do até então “ser indefeso”. Por exemplo, foi nesse período ainda na pré-história que o homem dominou as técnicas de agricultura e pecuária. Com isso, a maior parte desses grupos deixou de ser nômade para fixar suas raízes e desenvolver suas sociedades. Além de fatores ligados à subsistência, o homem se organizou em sociedades não apenas por questões relacionadas à segurança, mas também por razões 9 afetivas e biológicas. De fato, não fomos criados para vivermos sós. A princípio, a organizaçãodas sociedades primitivas se baseava no uso da força. O mais forte ditava as regras e ficava sob sua cautela. E assim foi por muitos anos, até o surgimento do que hoje conhecemos por política, graças ao emprego da racionalidade para resolvermos questões naturais da convivência e a busca de meios para concretizar objetivos em comum. Quando passamos muito tempo com alguém, é na- tural que desenvolvamos muitos comportamentos em comum. Seja no modo de falar, nos gestos ou na forma de se vestir. Um exemplo claro é a nossa família. A família é a primeira amostra do que é a sociedade. Um conjunto de pessoas convivendo, dividindo ideais e deveres. Pensando nesse exemplo, maximize essa ideia para milhares de pessoas. O produto que temos é a cultu- ra de um determinado povo ou determinada região, que combina de forma abrangente os costumes, os comportamentos e as tradições, que em geral são transmitidas de geração para geração, seja por meio da oralidade ou da imitação. A ideia de cultura, como pudemos observar, é bastan- te ampla, o que permite incluir diversos componentes como a fé, a linguagem, a indumentária, as relações interpessoais, os valores, as crenças, a noção de tempo, a arte, o conceito de universo, os alimentos e tudo mais que tange o comportamento humano. 10 A cultura é fruto da história e da convivência entre pessoas de um determinado lugar, portanto cada uma delas possui diferentes nuances e conceitos próprios, o que nos faz resgatar a premissa de Claude Lévi-Strauss, um dos mais importantes antropólogos do século 20: não é possível estratificar ou hierarqui- zar as culturas, ou seja, não existe melhor ou pior, mais ou menos avançada etc., cada uma é única, que surgiu e se estabeleceu com a sua própria identidade. É neste vasto caldeirão que emerge do conceito de cultura que o movimento se destaca. Danças, rituais religiosos, combates, esportes, tudo é produto do movimento e suas manifestações. E isso não é um fenômeno recente. Um forte exemplo do movimento como manifesta- ção cultural é a própria origem do que hoje conhe- cemos como Educação Física. Sua origem remete aos primórdios da civilização grega. Nessa cultura, sua fé politeísta era representada por diversos deu- ses, como Apolo. Essa divindade, filha de Zeus com uma titã, representava o sol, a perfeição, a cura e a verdade. Sempre representado muito jovem, atlético e bonito, Apolo era considerado o patrono da ginás- tica e de todos os espaços de prática. Portanto, o movimento era extremamente valorizado e difundido nessa cultura, juntamente ao culto do corpo ideal, sempre registrado de maneira forte e atlética, como Apolo. Além do fundo religioso, o movimento na for- ma da ginástica também estava ligado ao culto ao corpo, à saúde e ao intelecto, o que fazia com que 11 fosse adotado por todos – religiosos, soldados, in- telectuais e demais cidadãos. Figura 3: Representação em mármore do deus Apolo. Fonte: Wikipedia A civilização grega antiga ruiu, mas seus valores fo- ram perpetrados para a humanidade. A cultura do movimento desse povo deixou como herança tam- bém o que hoje chamamos de Jogos Olímpicos, além da própria palavra “ginástica”, do grego gymnádzein (“treinar” ou “exercitar-se nu”), uma vez que o movi- mento era amplamente utilizado em modalidades como as atuais: atletismo, hipismo, lançamento de disco, salto em distância, lançamento de dardo e luta. 12 https://pt.wikipedia.org/wiki/Apolo Podcast 1 Além do movimento empregado na ginástica e nas manifestações religiosas, o mesmo também con- templava as artes. Os gregos da antiguidade foram exímios artistas no teatro e na dança. A dança era considerada um presente divino, útil para esquecer as mazelas terrenas, portanto era comum que pos- suíssem uma para cada momento importante da sociedade. Então criaram danças militares, bailes que festejavam uniões, celebrações de batalhas, danças fúnebres e outras que marcavam nascimentos. O movimento no teatro também era fundamental na sociedade grega com grandes estruturas dedicadas às encenações. Surpreendentemente, algumas des- sas construções resistiram ao tempo, sendo possível visitá-las. Figura 4: As ruínas do antigo anfiteatro na Acrópoles de Atenas, Grécia. Fonte: Todamateria 13 https://famonline.instructure.com/files/1063551/download?download_frd=1 https://www.todamateria.com.br/teatro-grego/ Você deve estar se perguntando qual é a importância de conhecermos a herança grega do movimento. A resposta é simples: praticamente todas as civili- zações ocidentais posteriores beberam da cultura grega. Seja na arquitetura, na arte, na política, na filosofia, na medicina, na dança ou no esporte. A Grécia antiga deixou um legado vasto que podemos ver até mesmo nos dias atuais, como a própria ideia de democracia. Finda a civilização grega clássica, houve a ascensão do Império Romano, que sobretudo manteve muitos preceitos gregos, como a cultura do movimento. Esse grandioso império ocupou territórios do que hoje co- nhecemos como Europa, Ásia e África. Naturalmente, é de se pensar que tais regiões não foram cedidas gentilmente aos romanos, mas sim como frutos de muitas batalhas. Nessa época, as relações eram frá- geis e tudo podia se tornar motivo para um confronto. Por esse motivo, os romanos possuíam um poderoso contingente militar, o qual era preparado por meio de treinamentos e ginástica. Além disso, os romanos mantiveram algumas tradições gregas como danças para marcar momentos importantes e o teatro. Não à toa, foi na Roma Antiga que a frase “mente sã num corpo são” surgiu, oriunda de um poema de Juvenal – do latim “mens sana in corpore sano”. Uma clara demonstração da importância do movi- mento para os romanos eram as apresentações fei- tas por gladiadores em arenas, representadas em diversos filmes e encenações, além da lamentável política do Panem et circenses, ou a política do pão 14 e circo, com a qual as elites controlavam os seus cidadãos – sobretudo os mais pobres, por meio de espetáculos gratuitos e a distribuição de trigo para se alimentarem, desviando assim as suas atenções de problemas sociais. Apesar dos progressos das civilizações grega e ro- mana, houve uma importante ruptura nesses ideais. O avanço do tempo trouxe um período histórico que não foi favorável ao corpo e ao movimento: a Idade Média. Nesse momento da história, a Igreja Católica passou a exercer o controle e o domínio dos costumes, das artes e da vida cotidiana nas pessoas. A fé polite- ísta e o culto à beleza do corpo foram fortemente reprimidos. Tudo agora era pautado na religiosidade e na moral. Ao menor sinal de um comportamento que fugisse às regras, a pessoa era delatada e se- veramente punida. A estruturação da fé cristã na unidade da Igreja Católica deixou de lado a dança e o movimento como formas de adoração. Logo, isso não era mais visto com bons olhos e deveria ser coibido. Ainda assim, a dança recreativa era praticada so- bretudo pelas classes mais baixas em momentos de celebração e festas, apesar dos apelos papais que a associava à indecência e à imoralidade. Com o enfraquecimento do regime feudal, no intuito de diferenciarem-se dos plebeus, os nobres adotaram danças diferentes ao som de outra métrica musical. 15 Uma forma bastante popular de entretenimento na época eram as apresentações de cavaleiros com espadas. Embora fossem necessários força, destreza e treinamento, a ginástica não era praticada, uma vez que a modalidade caiu no ostracismo graças à repressão da igreja. As manifestações corporais ficaram restritas ao treinamento militar com a pre- paração física, a equitação, arco e flecha, esgrima, corrida e luta. Como nem tudo dura para sempre, a Idade Média se encerrou, dando lugar a um novo período em que a cultura do corpo e do movimento ganharam outro sig- nificado. A Idade Moderna foi um marco na história e trouxe à luz muitos conceitos e ideias esquecidos durante os anos de imposiçãoda Igreja Católica. É nesse momento histórico que acontecem as grandes navegações, o Renascimento e a reforma religiosa. A ciência ganha espaço, os fenômenos não são mais explicados por meio do sobrenatural e a cultura e a arte passam a ser valorizadas. A exploração da ciência como meio de explicar fenô- menos e acontecimentos da vida cotidiana levaram à evolução do conhecimento em diversas áreas do saber, inclusive na Educação Física. Nesse cenário, o movimento é considerado parte importante da educação e da formação intelectu- al de jovens, sobretudo da burguesia. A ginástica reaparece na forma de modalidades como o salto, a corrida, a natação, a luta, a equitação, o jogo da pelota, a dança e a pesca. 16 As danças também emergiram com força nesse pe- ríodo, como o início do ballet. Nas artes também sur- giram nomes como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Caravaggio, dentre tantos outros. A cultura e o movi- mento, até então, nunca haviam sido tão valorizados. A exaltação do saber proposta na Idade Moderna foi fundamental para a construção dos valores atuais de cultura e movimento. Essa concepção permitiu que o período histórico seguinte estruturasse os conhe- cimentos e os difundisse. A chamada Idade Contemporânea é marcada pelo início da Revolução Francesa e perdura até os dias atuais. É nesse período que o conceito de movimento ganha outros contornos. Se anteriormente a ginástica era praticada de forma empírica, isto é, sem se ter o conhecimento estrutu- rado, agora ela é um campo do conhecimento reco- nhecido e agrupado em quatro vertentes diferentes: a escola alemã, a sueca, a francesa e a inglesa. Cada uma com as suas práticas e particularidades. Surgem também acessórios para as rotinas de exercício e centros especializados no início do século 19. 17 Figura 5: Movimentos calistênicos sendo reproduzidos em aula de educação física escolar em Porto Alegre nos anos 1930. Fonte: Acervo O Globo Vale destacar-se que nesse período a ideia de “gi- nástica” passou a ser enquadrada em rotinas de exercícios coreografados que visavam à saúde, a educação e o rigor, respaldados pela comunidade médica da época. Além da ginástica, a expressão do movimento tam- bém era encontrada em danças coreografadas e pe- ças teatrais, dada a importância dos valores culturais vigentes. Com o avanço dos anos, o movimento e a cultura se tornaram campos de estudo com milhares de estu- diosos e pesquisadores dedicados a essas ques- tões. A ginástica ganhou novas perspectivas, sendo empregada desde o preparo de um astronauta para ir ao espaço até a reabilitação de uma pessoa com lesão medular. 18 https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/educacao-fisica-no-brasil-20369943 https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/educacao-fisica-no-brasil-20369943 A ginástica passou a ser classificada de acordo com o seu objetivo: condicionante, terapêutica, competi- tiva, alternativa, demonstrativa, geral e laboral, cada uma com uma finalidade e caráter. Saltando-se para os anos 1990, nessa década surgiu o conceito de cultura do movimento, proposto pela professora Elenor Kunz. Nele é proposto que o mo- vimento não se reduz a um fenômeno meramente físico, ele transcende e toma significações culturais. A autora questiona que o movimento sempre foi en- xergado como um ato mecânico, sem se contextu- alizar o aspecto espacial e cultural que o envolve. Hoje nossa cultura é altamente dependente do mo- vimento, seja no esporte, nas academias, na dança ou nas representações, apesar dos crescentes índi- ces de sedentarismo – algo totalmente contraintui- tivo à nossa natureza. São as contradições da vida contemporânea. Mediante a linha do tempo apresentada, vemos que o movimento é inerente ao ser humano e está entre- laçada às suas manifestações culturais. 19 O MOVIMENTO NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA O Brasil é um país de dimensões continentais. Sendo o maior do Hemisfério Sul e o quinto dentre todo o globo. Nosso passado revela a influência de diferen- tes países, o que se observa até mesmo nos dias de hoje, com o êxodo moderno de imigrantes que buscam em nosso território uma nova vida. Antes da chegada dos portugueses e do processo de colonização, o movimento era a força motriz dos povos indígenas que aqui habitavam. Caçar, pescar, construir moradas e plantar eram substanciais para eles. Além disso, nadar em rios, manter cuidados coletivos e brincar também faziam parte da cultura dos indígenas. Tristemente, com o processo escra- vagista, esses indivíduos perderam não somente a sua liberdade, mas também a sua identidade cultural, reprimida pelo homem branco. Apesar disso, parte desta rica cultura resistiu à barbá- rie e ao tempo e até hoje são elementos importantes da nossa identidade nacional, como pratos com aipim (ou mandioca), milho, açaí e peixes – um exemplo é o Tacacá, um prato tradicional do Pará que leva a goma de tapioca e o tucupi, ambos derivados do aipim. Os povos indígenas também deixaram raízes na arte. As máscaras, o culto à natureza, as pinturas corpo- rais e as danças ritmadas até hoje ecoam na nossa 20 cultura. Na língua portuguesa também encontramos diversas palavras cuja etimologia remete aos primei- ros habitantes do Brasil. Por exemplo, um famoso ponto da cidade de São Paulo, o parque do Ibirapuera significa, em tupi, “lugar que já foi mato” ou, ainda, o Rio Tietê – “caudal”, “volumoso” na mesma língua. Os indígenas também contribuíram para o que hoje conhecemos por folclore. Graças às tradições orais, conhecemos as histórias de personagens como a sereia Yara, o boitatá, a caipora, o boto cor-de-rosa e o curupira. As crianças para a aldeia eram de responsabilidade coletiva e usufruíam da liberdade de crescerem em meio à natureza. O movimento aparecia em diversas brincadeiras que ainda hoje fazem parte da infância dos brasileiros como a peteca e o cabo de guerra, típicos da nossa cultura. Podcast 2 Figura 6: Indígenas disputando cabo de guerra. Fonte: Escolaeducacao 21 https://famonline.instructure.com/files/1063552/download?download_frd=1 https://escolaeducacao.com.br/10-brincadeiras-indigenas/cabo-de-guerra-4/ O fim da escravidão indígena foi o resultado da soma de diversos fatores. Primeiramente, a cultura dos indígenas era baseada na subsistência e não na ex- ploração predatória dos recursos naturais, o que con- flitava com suas crenças. Depois, eram exímios co- nhecedores da natureza, não raro aconteciam muitas fugas e conflitos. Por fim, a matança desses povos especialmente por doenças trazidas pelos europeus, nunca vistas até então. A necessidade de mudanças na colônia e a pressão exercida pelos padres jesuítas contribuíram para o fim da escravidão indígena, mas infelizmente não para os seus ideais. E é nesse momento que a Europa volta os olhos para a África e começa um novo mer- cado altamente lucrativo: a compra e a venda de pessoas negras escravizadas. Essas pessoas escravizadas vindas do continente africano chegaram aqui em aproximadamente 1538 e gradualmente substituíram a mão de obra indígena. Africanos de diferentes regiões, tribos e costumes eram capturados e trazidos para as Américas – lem- brando que tristemente a escravidão não foi um pro- cesso exclusivo do Brasil, apesar de nosso país ter sido um dos últimos a aboli-la. Logo no transporte, realizado por navios insalubres e em péssimas condições, as pessoas eram sepa- radas de seus grupos étnicos e limitadas a viverem entre desconhecidos, que, apesar de partilharem o mesmo continente de origem, não falavam a mesma língua. Tudo para dificultar a comunicação e evitar 22 uma possível revolta. Muitos morriam durante a via- gem através do oceano Atlântico, vítimas de doenças, maus-tratos e fome. O trabalho rigoroso e forçado somado a diversos castigos físicos que iam de estupros a espanca- mentos eram a rotina de milhões de pessoas cuja existência se resumiu a ser um produto nas mãos de seus feitores. Como dito anteriormente,a África é um continente formado por diferentes povos, com linguagem, cos- tumes e crenças diferentes. A vinda dessas pessoas ao Brasil (ainda que forçadamente) contribuiu de ma- neira importante para a construção da nossa cultura. A herança negra na gastronomia nos contemplou com a feijoada, o acarajé, o vatapá, o mugunzá, o caruru e a pamonha, além dos temperos como pi- mentas, leite de coco e o azeite de dendê. É natural para muitos frente a uma situação difícil recorrer à fé e à religiosidade para buscar conforto, amparo e esperança. Além de todo abuso físico e psicológico imposto pelo homem branco, os negros ainda eram obrigados forçosamente a converterem- -se ao cristianismo. No entanto, muitos mantiveram suas tradições religiosas em segredo, originando o sincretismo religioso que temos em nosso país. O candomblé, a umbanda, o catimbó e a quimbanda são partes importantes da cultura brasileira que até hoje possuem milhões de fiéis e devotos. 23 No campo do movimento, a matriz africana deixou inúmeras contribuições. A capoeira teve como ori- gem um ato de resistência, não apenas física, mas também uma forma de resguardar a identidade afri- cana dessas pessoas. Como eram proibidos de pra- ticarem qualquer tipo de luta, a música era utilizada como uma forma de disfarce, podendo assim ser praticada e facilmente confundida com uma dança ou coreografia. Na atualidade estima-se que 6 mi- lhões de pessoas sejam praticantes da modalidade, sendo representada até mesmo por atletas de elite em competições internacionais de mixed matial arts (MMA). Ao falarmos sobre a capoeira, é impossível não pen- sarmos nas canções que acompanham os movi- mentos, todas ritmadas e marcadas pelo som do berimbau. A matriz africana deixou contribuições importantíssimas na nossa música, que podem ser vistas e apreciadas até os dias de hoje. Desde instru- mentos como o tambor, a cuíca, o agogô, o atabaque, a marimba e o próprio berimbau até ritmos musicais como o popular samba e as suas variações, o axé, o jongo, o maracatu, a congada e a umbigada. A últi- ma trata-se de uma dança originária nos quilombos, na qual os pares tocam os seus umbigos ao som de uma música, com movimentos que festejam a fertilidade. 24 Figura 7: Grupo dançando a umbigada, dança de matriz africana ori- ginada nos quilombos. Fonte: Globo No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel fi- nalmente assinou a lei que abolia a escravidão. Novamente, as elites se perguntavam quem seriam seus próximos trabalhadores. O racismo cerceou direitos básicos dos cidadãos negros, inclusive o di- reito ao trabalho, uma vez que fazendeiros e donos de estabelecimentos passaram a ser favoráveis à vinda de imigrantes de diversos países para trabalharem em seus negócios. A imigração europeia e asiática marca outra impor- tante face na nossa cultura. Diversos países enfren- tavam grandes crises, sem recursos ou perspectivas seus cidadãos se lançavam na aventura de recome- çar a vida em um novo país junto de suas famílias. Vale lembrarmos que o governo brasileiro criou con- dições particularmente favoráveis para que a propos- 25 https://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2019/03/15/espetaculo-resgata-tradicao-e-mistura-danca-e-historia-em-bauru.ghtml ta se tornasse atraente o bastante para convencer essas pessoas a largarem tudo por uma vida nova em solo brasileiro. Grande parte dos japoneses imigrantes se instalaram no interior do estado de São Paulo para se dedicarem à agricultura. Trouxeram da ilha nipônica a sua arte, o hábito por chás e introduziram na dieta brasileira a soja, o arroz cateto, o feijão azuki, a couve japonesa, o pepino, a acelga, o nabo, o rabanete, a batata-doce e a cebolinha, além dos tradicionais pratos tão apre- ciados nos dias de hoje. A influência da colônia japonesa em nossa cultura, graças à sua presença maciça, rendeu-nos até mes- mo famosos redutos com arquitetura típica, como é o caso do bairro da Liberdade, em São Paulo. Vale a nota de que antes da presença nipônica a região era palco de punições de pessoas negras. No campo do movimento, a colônia japonesa contri- buiu para a introdução e difusão do judô e posterior- mente do jiu-jitsu, sendo atualmente o Brasil um dos principais representantes dessas práticas e o judô uma modalidade Olímpica desde o ano de 1964, nos jogos sediados na cidade de Tóquio. O jiu-jitsu brasileiro, internacionalmente conhecido como brazilian jiu-jitsu, foi fruto do encontro de um imigrante japonês, conhecido como Conde Koma e um brasileiro, Carlos Gracie. Anos mais tarde o es- porte seria regulamentado e difundido mundo afora. 26 Sobre a participação dos europeus na construção do que hoje entendemos por cultura brasileira, podemos destacar as festas juninas. Comemoradas anterior- mente em território europeu como uma festividade pagã, a festa chegou ao Brasil com um tom religioso que foi desaparecendo com o tempo. Hoje ainda há a comemoração dos santos católicos São João, Santo Antônio e São Pedro, mas impera a celebração da figura do matuto do campo. A dança típica da comemoração é a quadrilha, cuja origem remete à França, que inspirou o restante da elite europeia, que, por sua vez, inspirou a nossa cultura ao chegar aqui. Figura 8: Representação da quadrille que inspirou a nossa quadrilha junina. Fonte: Papodegordo Uma constatação interessante: o futebol, a “paixão nacional”, uma das máximas manifestações de mo- vimento em nosso país, foi não apenas criado, mas impulsionado por europeus. O seu início no Brasil se 27 https://www.papodegordo.com.br/2009/06/27/historia-da-quadrilha-de-sao-joao/ deu em 1894, pelo jovem Charles Miller, filho de ingle- ses que retornou a São Paulo após uma temporada de estudos na Europa. Já a difusão do futebol foi um fenômeno creditado aos imigrantes, sobretudo italianos. Em uma tentativa de promover a interação e a adaptação dessas pessoas surgiram diversas associações e clubes, nos quais muitos praticavam o futebol de várzea. Inclusive, nessa época, a própria seleção brasileira era composta em partes por filhos de imigrantes. É importante destacar-se que a cultura é um com- ponente dinâmico que sofre influências a todo mo- mento. Indígenas, africanos e europeus constituíram a nossa identidade nacional, que está em constante construção. As crises mundiais e demais conflitos trouxeram nos últimos anos uma leva de novos imigrantes de diversas partes do mundo, enriquecendo ainda mais a cultura brasileira. A internet também contribuiu com esse processo. Hoje uma música vinda de um país distante pode fazer sucesso e ganhar uma co- reografia por aqui rapidamente. 28 O RITMO DE TUDO Até agora discorremos sobre a cultura e o movimento sem entrarmos em um mérito importantíssimo, que cabe uma sessão somente a ele. O quicar de uma bola, as batidas do coração, o compasso de um re- lógio, as estações do ano, o dia e a noite – tudo é ditado por um ritmo. A começar pelo nosso corpo e o de tantos outros seres vivos. O chamado ritmo ou ciclo circadiano é um mecanismo que tem como principal função sin- cronizar as funções fisiológicas dentro do período de 24 horas, de acordo com a luminosidade. Esse ritmo dita diversos processos biológicos como a temperatura corporal, o sono, a secreção de hormô- nios, a função intestinal, a homeostase, dentre outros – inclusive somos dotados de genes responsáveis especificamente pelo controle do ritmo circadiano. O ritmo está por todo lugar e ele pode ser compre- endido como um som ou movimento coordenado ou uma repetição. É impossível pensar em ritmo e não o associar à música. O ritmo é o produto de uma repetição sonora, que cria um dos aspectos fundamentais da música. Vimos anteriormente que a música é uma forma de manifestação cultural, assim como as expressões do corpo. Mas de que maneira o ritmo se encaixa nesse contexto? 29 Desde os tempos primórdios o homem se relaciona com o ritmo e os sons. Artefatos arqueológicosindi- cam instrumentos sonoros tão antigos quanto as pin- turas rupestres apresentadas no início deste e-book. Seguir um ritmo é uma tendência natural do ser hu- mano. Curiosamente, nossos ascendentes primatas, apesar da inteligência e semelhança, não conseguem identificar ritmos. Graças à evolução, nós seres hu- manos conseguimos não somente acompanhar um ritmo, mas também o prever. Por exemplo, consegui- mos prever os cliques de um metrônomo e podemos bater ou batucar com nossos dedos com precisão no ritmo ditado pelo aparelho. Sem essa capacidade de antecipação, precisaríamos ouvir o clique para então produzir uma resposta, o que invariavelmente nos deixaria atrasados em relação ao som. Macacos, mesmo que treinados, não conseguem antecipar a batida, um feito exclusivo de nós humanos. 30 Figura 9: O metrônomo é um instrumento que dita o andamento musical graças ao balanço de uma haste metálica. Fonte: Wikipedia Sentir o ritmo de uma batida requer conexões entre diferentes partes do cérebro. Essa estrutura intrinca- da em diversas partes responsáveis por diferentes funções é rara no reino animal. Isso se deve pelo fato de que o nosso cérebro possui neurônios que disparam na frequência exata do som ouvido, algo realmente complexo. Ritmo e cultura se entrelaçam ao pensarmos em dife- rentes sons e na musicalidade de cada região. Nessa pluralidade podemos pensar nos diferentes ritmos musicais que encontramos mundo afora e sobretudo no nosso país. É difícil pensar nesses elementos e 31 https://en.wikipedia.org/wiki/Metronome#/media/File:Metronome_Nikko.jpg não os associar à dança, um tema bastante rico que veremos futuramente. O ritmo pode ser marcado de diferentes maneiras e está relacionado ao tempo musical. Pode ser mar- cado por uma batida, como um instrumento de per- cussão, com o próprio corpo, como o gesto de bater palmas ou pés, ou por meio de uma contagem – e é fundamental para a cadência do som. Não à toa as músicas são classificadas de acordo com as batidas dadas dentro do período de um minu- to, o que é popularmente chamado de batidas por mi- nuto (BPM). Essa medida leva em conta o andamento do som, isto é, o grau de velocidade do compasso. Músicas com maior BPM tendem a ser mais rápi- das, enquanto um menor BPM representa o oposto. Interessante pensar na relação BPM da música com o BPM do nosso coração. Músicas com maior BPM tendem a aumentar a frequência cardíaca, uma vez que está ligada às emoções, sendo o contrário tam- bém verdadeiro. Sons com menos BPM comumente levam a um estado de relaxamento ou tranquilidade, o que invariavelmente mantém uma frequência car- díaca também mais baixa ou dentro da normalidade. Esse fenômeno é bastante revelador ao pensarmos na relação ritmo e fisiologia. 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste material pudemos aprender que o corpo e o movimento transcendem o aspecto físico e estão relacionados ao nosso desenvolvimento pessoal. E não somente, foi graças a ele que o homem pode evoluir quanto espécie e posteriormente sociedade. Ainda nesse âmbito, as nossas necessidades pes- soais nos fizeram procurar semelhantes e assim formamos as primeiras comunidades/sociedades. Ao longo do tempo, o valor e a compreensão do mo- vimento foram mudando de acordo com a visão de diferentes culturas e povos. Os gregos, por exemplo, tinham no movimento um mote sagrado de adoração, além da sua finalidade de treinamento. Os romanos viam no movimento uma forma de preparar os seus soldados e ainda proporcionar entretenimento, como as apresentações de gladiadores. Na Idade Média, o movimento passou a ser desencorajado dadas as re- gras de conduta moral e espiritual da Igreja Católica. Na Idade Moderna, tudo o que até então era coibido passou a ter outro valor – o movimento e os estudos a seu respeito eram desenvolvidos e praticados. Por fim, exploramos o movimento em tempos recentes até mesmo dentro do âmbito do pensar, com a cha- mada “cultura do movimento”. Pudemos aprender como cada povo contribuiu para a nossa ideia, concepção, cultura e prática do movi- mento em nosso país, desde a caçada dos indígenas, 33 passando pela influência dos negros escravizados e pelos europeus e asiáticos trabalhadores imigrantes. Todo esse contexto foi costurado por um elemento fundamental: o ritmo. Estudamos como ele dita o mundo, desde fenômenos da natureza como as es- tações do ano até a fisiologia cardíaca do homem, tudo possui um ritmo. Ainda, discutimos a incrível capacidade do cérebro humano de seguir e prever ritmos, para então acompanhá-los. Algo reservado unicamente à nossa espécie. Por fim, observamos também como o ritmo se faz presente na música na forma das batidas por minuto (BPM) e como isso pode nos influenciar. 34 SÍNTESE MANIFESTAÇÕES CULTURAIS RÍTMICAS E EXPRESSIVAS O corpo e o movimento O movimento e a cultura ao longo dos anos O movimento na construção da cultura brasileira O ritmo de tudo Referências bibliográficas & consultadas ARAÚJO, U. F. Temas transversais, pedagogia de projetos e mudanças na educação: práticas e reflexões. São Paulo: Summus, 2014. [Biblioteca Virtual]. BELTRÃO, L. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de ideias. Porto Alegre: Edipucrs, 2014. [Biblioteca Virtual]. CAMPOLIM, D. Batuque de Umbigada. 2009. 17 f. Monografia (Especialização) - Curso de Gestão de Projetos Culturais, Centro de Estudos Latino-americanos Sobre Cultura e Comunicação (CELACC). Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2009. FELLET, J. A época em que a seleção brasileira era formada por filhos de imigrantes. BBC, 2018. 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Introdução O corpo e o movimento O movimento e a cultura ao longo dos anos O movimento na construção da cultura brasileira O ritmo de tudo Considerações finais
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