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PREFÁCIO Estas primeiras palavras são, talvez, parte de um primeiro con- tato entre você e a Casa do Saber. Ou são um passo a mais em uma aproximação que finalmente aconteceu. De uma forma ou de outra, saiba que estamos felizes e agradecemos por ter você por perto. Saiba que será um prazer acompanhar você ao longo de suas jornadas de conhecimento e conte conosco para celebrar as vitórias e ajudar em qualquer desafio. Para falar mais objetivamente sobre este e-book, ele é um compilado dos ma- teriais complementares de cursos realizados com a professora Maytê Carvalho (“A Arte de Comunicar: Persuasão, Negociação e Oratória”, 2021), Pedro de Santi (“Vida Conectada: O Que Está Em Jogo e Como Somos Afetados”, 2020) e o professor Clóvis de Barros Filho (“Por Uma Vida Bem Vivida”, 2020; e “Manual Filosófico Para Viver Melhor”, 2021). Você fará uma imersão, portanto, em um panorama amplo de filosofia, psicanálise e co- municação. Apesar de eles não substituírem o acompanhamen- to das aulas, você encontrará alguns recursos e provocações que certamente vão evidenciar a pista básica de que você está no caminho certo: o surgimento de ainda mais perguntas e a sensação de que ainda há muito mais para conhecer. A dúvida é um primeiro motor poderoso para o conhecimento e, por mais que nem sempre seja capaz de nos levar na direção que queremos, ainda é o método mais eficaz para essa finali- dade. Certezas raramente nos movimentam e com frequência podem nos fazer reféns de maneiras limitantes de existir. Ao ler esta linha você pode se perguntar (ou já ter se perguntado) “tudo bem, mas como estas diferentes ideias podem me aju- dar com uma dor de agora?” Esta é uma pergunta totalmente legítima e que, creio eu, todos que se propuseram a enfrentar a área de “humanidades” já se fizeram. O pensador anglo-ganês Kwame Anthony Appiah usa uma metáfora que ilustra bem uma resposta. Imagine-se perdido em uma grande cidade, cada vez mais fundo no labirinto de ruas, e você quer saber onde está. Para isso, sobe em um observatório e olha a cidade de cima. De repente, o mapa começa a fazer sentido: ali onde você deveria ter virado à direita e virou à esquerda, lá a loja com o gato na janela, apenas poucas quadras do jardim que você só encon- trou depois. Ao voltar para o labirinto, você anda com muito mais confiança. Por mais que você não tenha sido visitado por questões mais “existenciais”, não pense que este tipo de saber não é para você: muitos dos desafios que nos confrontam no dia a dia são superados mais facilmente se antes visitamos as ideias mais fundamentais. Estes aprendizados ampliam nossa capacidade de pensar sobre a vida que levamos e o que impor- ta nela. Desejamos boas leituras, bons estudos e deixamos um con- selho: persista. A proposta da Casa do Saber é, desde sua fundação, reunir aprendizado e prazer. Faz parte de uma reflex- ão madura, no entanto, entender que o conhecimento exige de nós uma série de investimentos – tempo, atenção, ener- gia, entrega e desprendimento. É possível até mesmo que o processo cause desconfortos, mas a recompensa por isso é insubstituível. Este compromisso deve ser reafirmado constan- temente, mas é um preço baixo a se pagar por um contato com ideias, conceitos e propostas que são capazes de levar você para mais perto de si e do mundo. Esperamos que este conta- to seja repleto de novas descobertas e estimule você a seguir adiante em um caminho que leva a diferentes perspectivas e que permitirá você a construir a sua própria, de forma muito mais fundamentada e autêntica. GUILHERME PERES Head de curadoria VIDA CONECTADA: COMO VIVER MELHOR NO MUNDO ON–LINE com Pedro De Santi 2Ca sa d o Sa be r Aula 1 Quais os impactos da hiperconectividade e das relações interligadas na transformação da complexidade humana? O que a psicanálise tem a dizer a respeito? Compreender tais ambivalências, numa tentativa de perceber as dimensões conflitivas dessas transformações é o fio condutor desse diálogo. Este evento que estamos vivenciando, propiciado pela internet, só pode ser comparado, em sua medida, com a invenção da escrita ou do livro, com uma diferença muito grande entre si: a velocidade que estas invenções tecno informacionais chegam à sociedade. Estamos vivenciando tal processo em seu desenvolvimento pleno. Levando em consideração que a tecnologia nasce e se estabelece para nos poupar de certas funções laborais, é importante destacar que ela levanta inúmeras dúvidas, uma vez que sua essência é tornar-se obsoleta. Aqui encontramos seu elemento nevrálgico: a contradição e a ambivalência. Em “Fedro”, Platão nos conta a história de um Faraó que ao se deparar com a invenção da escrita demonstra certa resistência, pois crê que tal tecnologia seria a causa do “esquecimento das mentes que a utilizarão”. Esse exemplo demonstra como muitas vezes a transformação do real é recebida criticamente, representando um temor diante do novo e da transformação da natureza. O ser humano só existe graças à mutação da natureza, do avanço tecnológico, do fogo, do arado, dos meios de r esistência. Uma reflexão importante que podemos constatar é que se estivéssemos enfrentando a pandemia de COVID-19 neste ano, sem o nível de integração tecnológica e o impacto das redes na vida cotidiana, o distanciamento físico que vivenciamos hoje seria também um isolamento social, na medida em que os meios de relacionamento e interação foram transformados. No entanto, a internet, ao mesmo tempo que fornece acesso à informação e ao conhecimento de forma ampla, também evidencia os processos desiguais de privação. A realidade virtual não é real, não é efetiva e tangível, mas sim uma forma de apego ao fictício. Porém, a mente também é uma categoria, um espaço virtual sem localização específica no corpo, que sabemos que existe através 3Ca sa d o Sa be r de um processo amplo e integrado. A internet de certa forma nos leva a um lugar, à uma experiência que em sua forma é parecida com a nossa mente. Nossa mente é um espaço virtual que faz a intermediação com o mundo. Freud trabalha com o conceito de uma realidade psíquica, ao tratar dos pacientes tidos como histéricos e que sofriam de reminiscência de memórias dolorosas, memórias traumáticas e reprimidas que acabavam refletindo em sintomas físicos. Utilizando da técnica da associação livre de forma a construir e reconstruir o que fora perdido e poder conviver com esta memória, concluiu que o sintoma seria uma forma de expressão daquelas representações que se encontravam no inconsciente. Uma lembrança é produzida no momento do lembrar, o contexto presente evoca uma representação formada cada vez que se lembra, tornando a sua realidade de forma a sustentar o desejo, uma autoconfiança, independente da sua correspondência. “A realidade tal qual percebia e lida por mim não é nem um delírio, muito menos o mundo objetivo. A realidade interna não passa de uma ponte entre o mundo interno (subjetivo e complexo) e o mundo externo (igualmente complexo). Donald Woods Winnicott, importante psicanalista inglês, trabalha com o conceito de um “espaço da ilusão”, um espaço do mundo virtual e fantástico que serve não para nos alienar da realidade, mas para nos levar ao encontro desta nova realidade. Johan Huizinga, em sua obra “Homo Ludens”, analisa a característica do ser humano em buscar o prazer, o jogo e criar os “espaços de fantasia”, com a capacidade de criar uma realidade para si e também para o outro. Criamos um espaço de jogo porque nele há regras, distante do caos da realidade. Estar na Internet não é entrar num mundo que nos aliena do mundo real, mas sim entrar em um campo com potencial simbólico, com sinais, com agrupamentos sociais, com mobilizações, com atividades, com conteúdos diversos. As comparações proporcionadas pela TV e pela Internet, nos levam a questionar a alienação, de modo que a Escola de Frankfurt analisaa cultura de massa como alienante, entendendo uma relação imbricada com as mídias (TV, rádio, jornal). O ambiente da Internet, em contraposição, é um ambiente ativo, onde se cria, se destrói, onde se está integrado ativamente com diversas pessoas. 4Ca sa d o Sa be r A internet, pode então ser compreendida como um espaço lúdico de acesso à informação, ao resto do mundo e aos outros, um espaço de transicionalidade e fantasia. Nunca tanta gente teve acesso a tanta informação ao mesmo tempo, porém é importante salientar a diferença de informação, de conhecimento e, por fim, de sabedoria. Excesso de acesso pode revelar sintomas curiosos. Ter acesso é valioso, mas seu excesso pode ser prejudicial e atingir níveis patológicos de dependência. Neste mundo contemporâneo podemos observar uma espécie de cultura do narcisismo, uma espécie de inflexão no mundo, que se apresenta como alta modernidade. Christopher Lasch, em “Cultura do Narcisismo”, propõe uma análise da cultura estadunidense e da sociedade do consumo. Nessa sociedade, de certa forma marcada por um sentimento de potência do mundo pós-Segunda Guerra, surge um sentimento coletivo de impotência frente ao mundo da década de 70. Por entendê-lo cada vez menos, os sentimentos que visavam mudá-lo aos poucos foram sendo interiorizados dando espaço para uma mudança do eu, individualizada. Isto configura a cultura do narcisismo, uma cultura de defesa diante de um mundo traumático e excessivo, formada para cuidar daquilo que achamos possível alcançar, fruto de um desamparo. Os condomínios são um excelente exemplo da desistência de um mudo que não se pode compreender. O afastamento do espaço urbano, em busca de um um ambiente controlado, afastado da cidade e construído dentro de uma bolha, ilustra tal narcisismo. No limite, cada construção urbana visa ser um condomínio por conta da violência, do perigo, mas também por conta do sentimento de afastamento e de incompreensão do mundo. Nossa energia oscila para fora (objeto da ação) e para dentro (da memória e da introspecção), de forma a recolher e gastar energia. Somos chamados para fora o tempo inteiro, o que nos rouba o tempo de repouso, caracterizando um conflito contemporâneo: não há mais um momento para recolher energia e produzir memórias, consolidar os conhecimentos, por isso muitas vezes temos dificuldade em diferenciar uma notícia real de uma notícia falsa, pois além de estarmos lotados de informações e conteúdos, não temos tempo de assimilar todas as informações e concretizá-las em uma memórias consolidadas. O tempo do mundo moderno é o futuro, o projeto, a retenção, a renúncia em processo. Já no mundo contemporâneo vivemos o fim das utopias, em um tempo em que o futuro parece ter acabado. Hoje sonhamos com distopias, o tempo de hoje se chama “cada instante”, e deve ser repleto de gozo. 5Ca sa d o Sa be r Aula 2 O objetivo deste encontro é avançar mais no conceito das relações sobre a cultura do narcisismo, seus efeitos, ante uma hiperconectividade. Quais os potenciais riscos que podemos enfrentar neste caminho que vem se firmando? Até chegarmos nos novos sofrimentos humanos, nas novas doenças da alma, que são características deste ambiente contemporâneo. A nossa rotina em comum, muitas vezes é agitada e carece de tempo, a experiência de estar na rede também é dispendiosa, muitas vezes alterando a própria experiência com o tempo. A intensidade constante é característica do mundo contemporâneo e esta excessividade transforma um processo mental adaptativo num processo patológico. O melhor processo adaptativo que podemos utilizar para situações de intensidade excessiva chama-se sobressalto ou susto. Ao enfrentarmos uma situação intensa o corpo e a mente preparam uma resposta, em um estado adaptativo, que após este estímulo volta a desacelerar. Porém, no ambiente contemporâneo acrescentamos a esta situação uma categoria nova, as “crises crônicas”. O que deveria ser feito para se desligar desta rotina cada vez mais estressante e massante seria uma desaceleração gradativa, de forma a acalmar este estado de cansaço, mas o stress nos impede, pois o sobressalto deixa o corpo em estado de prontidão. O estresse deixa este corpo exausto e em consequência destas ações podemos observar a insônia, estado que não permite o adormecer e o descanso. Uma outra característica muito comum, fruto do medo da vida contemporânea, é a dependência. De modo geral, o vício de substâncias lícitas ou ilícitas, que ativam um mecanismo rápido de recompensa, (cada vez mais banalizado) requer sempre uma maior exposição e consumo para se alcançar a satisfação. A cultura é um fator fundamental a ser analisado, uma vez que cada local possui uma dinâmica específica que requer a adoção de certas medidas de reação para cada tipo de anseio. Os conflitos internos, os questionamentos pessoais, a sensação de não se reconhecer em sua própria vida, porque sentimos 6Ca sa d o Sa be r de certa forma, são reações ao ambiente. Por onde passamos há excesso de demandas, criadoras de experiências mais reativas do que ativas. Quando paramos de correr, ganhamos pela primeira (vez em muito tempo) a condição de reflexão. Ganhar um tempo de vazio, um espaço para o recolhimento, equivale a abrir um espaço para que a reflexão aconteça. Ao se querer mais dessa desconexão, no entanto, o afastamento para a mbientes controlados e isolados podem gerar estigma, depressão ou outros sintomas onde o sofrimento e a felicidade estão ligados às dinâmicas culturais. As dinâmicas de dependência ou adição, podem ser interpretadas no sentido romano, onde quando uma pessoa contraia uma dívida frente outra pessoa e não conseguia quitá-la, ela era adicta ao outro, somado a outra pessoa como escrava. Joyce McDougall, analisa uma “neo-necessidade”, onde aquilo que se tem dependência passa a ser básico para a sua natureza de forma que é uma necessidade primária. Quando realizamos um ato que necessitamos, dependemos da sensação de prazer (geradora de alívio), porque a privação causa dor e sofrimento pela abstinência. Um desejo frustrado é sim ruim, mas a dependência evidencia um lugar de dor. E esta dependência não pode ser deslocada, só se realizando com o objeto de dependência. No filme Trainspotting (1996), podemos observar como a dependência tem o poder de condicionar um ser a ser apenas a resposta da sua dependência, denotando alguém que não consegue, acima de tudo, uma auto sustentação. O processo de desenvolvimento vai em direção automática à uma autonomia, porém, uma pessoa dependente não atinge sua autonomia, permanecendo numa posição infantilizada, transferindo apenas esta dependência para outras coisas, ou pessoas, ou substâncias. Como saber se temos relações afetivas por desejo ou por dependência? Para Winnicott, a saúde mental é ter capacidade de estar só, senão somos capazes de ficarmos sós, acabamos dependendo de nos conectar com alguém com uma enorme presença o tempo todo. Adela Stoppel, teórica da psicanálise com crianças, analisa a relação de dependência das crianças com a internet, numa crítica à letargia do uso de celulares e tablets para acalmar os filhos. Tal uso, que exclui as conexões necessárias entre as crianças da brincadeira, entorpece suas interações através da tela, impossibilitando o aprendizado oriundo da espera e do vazio. Como resultado, não se aprende a ter paciência, mantendo um fluxo incessante de conectividade. 7Ca sa d o Sa be r O Narcisismo e o Complexo de Édipo, principais conceitos trabalhados por Freud, e posteriormente por Lacan, nos mostram que ao nos constituirmos passamos por processos formadores básicos. Esses processos, de fusão e separação, nos ajudam a entender o desenvolvimento infantil. Esta fase tem início no corte do cordão umbilical, onde a criança, em desamparo e dependência, necessita de alguém queocupe a função de “maternidade”, que acolhe, recebe e garante a sobrevivência neste período de completa dependência. Esse primeiro momento se intitula narcisismo, uma vez que há uma fusão completa mãe-criança. A criança é totalmente voltada para o “outro” e acredita que o outro está totalmente voltado para si, formando um todo que nada falta, uma cela narcísica que passa para a criança a sensação de onipotência, podendo ser observado em um desespero carente por reconhecimento. 8Ca sa d o Sa be r Aula 3 O Narcisismo, termo apropriado à maneira de Freud, trabalhado mais especificamente na obra “Introdução ao Narcisismo”, muitas vezes relacionado ao termo autoestima, é um investir em si mesmo, mas é também um limite entre seres, onde acaba um indivíduo e começa outro. Quanto mais intolerante somos com o que é diferente de nós, mais narcísicos somos, quanto mais tolerantes menos narcísicos somos. Porém, todos precisamos ter, em certa medida, uma dose de narcisismo para conseguirmos vislumbrar nosso próprio “eu”. A criança, por volta do primeiro ano de idade, começa a criar uma representação de si. Segundo Freud, é o momento em que ela se separa do outro, e ao surgir um “eu”, automaticamente se apresenta um “não-eu”. O narcisismo secundário seria o retorno da libido desde o objeto, um olhar do outro sobre aquela criança, que é a função materna, seja da pessoa ou das pessoas que ocupam esta função. Jacques Lacan, autor francês importante de uma segunda geração da psicanálise, na tentativa de estudar a paranoia, utiliza-se deste conceito dando visibilidade a alguns pontos interessantes da teoria em seu modo de ver. Esta fase de desenvolvimento, para Lacan, é intitulada de estágio do espelho. Uma criança colocada em frente ao espelho aos seis meses de idade ainda não seria capaz de se reconhecer, pois não saberia interpretar a própria imagem. No entanto, por volta dos 18 meses de vida, ela seria capaz de se reconhecer e de reconhecer o outro. Desse modo, a interação com o mundo exterior nos ajuda, portanto, a reconhecer nossa própria imagem. O susto em frente ao espelho, das câmeras, é dado por atualizar uma definição que temos de nós mesmos, tendo em vista que o homem cria uma representação si. Tal representação muitas vezes não se encaixa no instante e por isso causa certa estranheza. A partir da primeira representação gera-se portanto uma auto imagem. As duas principais decorrências que podemos observar é a do “eu” que vem de fora. Já a segunda surge a partir das representações que temos de nós. Na primeira ocorrência o acesso ao real se dá por meio 9Ca sa d o Sa be r de uma intermediação, por meio do espelhamento dos outros. Aqui nos constituímos através do olhar do outro. O “eu” está no ponto cego de si mesmo. A frustração tem origem justamente no contraste entre o “eu ideal” e o “eu real”, por não conseguirmos realizar o que desejaríamos fazer. O primeiro pensamento de quem vai ter um filho é o de conseguir preencher este hiato, projetando expectativas pessoais, sonhos e uma esperança de que esta criança corresponda a essa expectativa, a esta significação. A grande questão que este movimento e as eventuais reflexões que esta criança pode chegar, direcionam uma indagação que as perseguirá até o final da vida: “O que preciso ser para o outro gostar de mim?”. O narcisismo é um desespero em tentar corresponder o desejo do outro. “Eu desejo ser desejado”, é uma grande oferta de comportamentos e ações; o que explica as posturas vistas nas redes sociais. A ilusão de uma unidade, de uma cela narcísica, cessa justamente em outro momento importante, que é o complexo de Édipo, onde este núcleo é quebrado e a criança passa a encarar o mundo. Édipo fundamentalmente quer dizer que uma criança em desamparo, ao nascer, precisa ser amparada por um outro humano. O cuidado pode ser tido como uma função materna e o papel da exposição (ao mundo, à lei, ao outro) uma função paterna. A composição destes papéis implica em uma quebra progressiva da cela narcísica, quando se percebe que a figura materna não vive em função dela. Neste segundo momento, a criança percebe uma separação de que este outro que ela depende tanto também deseja outras coisas que não ela e esta outra figura, objeto do desejo e do tempo materno, gera uma triangulação, que aparece idealizada na figura paterna. A criança percebe esta outra função do desejo materno, seja o trabalho, seja o companheiro, apresentando a frustração e compreensão de uma nova cela narcísica, entre a função materna e a função paterna. Na última fase temos um corte simbólico, a ruptura total da célula narcísica, intitulada de “castração”, ao perceber que não há para onde voltar. Portanto, estamos livres no mundo para construir um universos novo de desejos. Quem passa pelas três fases de Édipo é chamado neurótico, um sujeito que sabe se sentir incompleto, sabe que é imperfeito, mas sonha com o futuro, criando desejos para substituir aquele objeto que falta. Nasce então a vida como ela é, para uma abertura para a vida da negociação, da espera, dos símbolos. 10Ca sa d o Sa be r Ao tratarmos de uma sociedade narcísica, podemos observar um sintoma da falha da função paterna, algo sobre a autoridade. Com a internet é importante saber filtrar quais os tipos de conteúdo que a criança tem acesso, sem privar do acesso propriamente dito. Estes desejos e a cultura narcísica geram uma busca por uma dependência, o anseio de algo que o contemple, uma vez que não se conseguiu uma liberdade e autonomia próprias, ou um lugar de ação no mundo. 11Ca sa d o Sa be r Aula 4 O objetivo desta aula é o reconhecimento e a possibilidade de mudança que podemos enfrentar a partir das relações hiperconectadas. Entender algumas dinâmicas do indivíduo na sociedade na perspectiva da ambivalência nos permite perceber o que se ganha e o que se perde, bem como o papel de uma experiência coletiva de conectividade. Um ponto marcante nesta relação com as mídias é a falta de privacidade, na medida que transformamos o que nos é mais íntimo em algo exposto e aberto em uma mídia social. O lugar ocupado anteriormente pela confissão é substituído por cada publicação realizada, e embora haja uma característica puramente transitória e efêmera, há um elemento que as tornam eternas. Cada publicação, cada informação que produzimos na Internet vira dado quantificado e transformado para uso de marketing, alimentando bancos de dados. A internet nunca foi livre, sempre esteve vinculada aos interesses e arti culações comerciais e a captura de informações que alimentam ferramentas de controle social. Quem possui condições financeiras para comprar estes dados têm absoluta vantagem sobre quem não têm acesso. A conectividade passa aumentar as desigualdades (sociais e financeiras) e a iminência da defasagem de certas funções laborais. A pandemia nos explica que muitos recursos pensados para atender situações emergenciais podem funcionar bem, como por exemplo o trabalho remoto. Algumas conformações pré-estabelecidas foram completamente modificadas, por exemplo, é possível que tenhamos um sistema híbrido de ensino, ou o trabalho em alguns setores específicos jamais será o mesmo. Toda esta tensão gerada pelas transformações tecnológicas acompanha o paradoxo entre o desenvolvimento e o medo de tornar-se obsoleto. A paranoia, um dos três grandes grupos de psicose na psicopatologia psicanalítica, é a ideia de um excesso de presença. Com a cultura do desamparo e do excesso, a ruptura com a terceira fase de Édipo não ocorre, gerando sinais de uma “paranoia social”. Melanie Klein entende que para uma criança pequena não há vazio, nem 12Ca sa d o Sa be r silêncio. Sua experiência é sempre com o outro, ela não se sente plenamente vazia, ora pode ser a presença de uma “mãe boa”, ou de uma “mãe ruim”, uma posição entendidacomo esquizo-paranóide, uma fragmentação persecutória. A paranoia é uma grande teoria da conspiração que a verdade é contingente. Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”, onde relaciona o poder à paranoia, entende que aquele que ocupa o poder sente que sua posição é cobiçada e decide aniquilar os inimigos. Piera Aulagnier em “A violência da interpretação”, propõe que a dinâmica da função paterna se transforma em “um perseguidor”. Esta função aparece com a finalidade de frustrar, de impedir. Quando a criança entende que esta função, causadora de frustração, é fruto das regras (seja por causa de uma lei ou pela crença no certo), a criança permite essa função paterna operar. Nesta reflexão, a criança perceberia um gozo sádico de frustrá-la, a bel-prazer, despojando-a da função paterna e se transformando no ser que quer perseguir. A melhor política do século XXI que podemos observar é a organização social pelas redes, o poder de mobilização e união de grupos, totalmente diferente de um ambiente político cada vez mais polarizado, como visto no Brasil com o estreitamento das potências políticas. Manuel Castells em “Redes de Indignação e Esperança” narra como no século XXI podemos observar um ambiente de manifestação social que não nasce em um líder, mas sim na horizontalidade que ultrapassa hierarquias. São diversas vozes a bradar sem bandeiras. Gustavo Lebon, em “A multidão” propõe entender como se forma uma multidão, os comportamentos de massa: a massa violenta e a massa revolucionária. Freud entende a psicologia das massas como unidades, operando pelas lógicas de pertencimento. Para Antonio Negri, sobretudo em “Multidão” não podemos tratar esta massa como uma massa infantilizada, ingênua, desprovida de atuação e informação. Pelo contrário, tal modo de mobilização atualmente revela inúmeros indivíduos ao lado um do outro, protestando por direitos e melhores condições de vida. Todos estes movimentos apontam para um mundo líquido e hiper individualizado, curiosamente, em contraposição ao fato de que nas redes podemos compartilhar ideias, nos mobilizar, transformá-la em um instrumento de poder civil. Ao passo em que nos tornamos mais individualistas, nunca pudemos tanto interagir de forma a criar novas conformações, novas redes de ligação, novos conflitos e novas possibilidades de sociabilidade. Constituir um psiquismo que anteriormente não se tinha liberdade de ter, 13Ca sa d o Sa be r criar um self e uma autonomia para voltarmos a sonhar e a desejar, são caminhos possíveis para não implodirmos com esta hiperconectividade, para que ela faça cada vez mais parte de nossa vida, na iminência da inovação e não da destruição. A ARTE DE COMUNICAR: PERSUASÃO,NEGOCIAÇÃO E ORATÓRIA com Maytê Carvalho 2 Ca sa d o Sa be r Este material é exclusivo para os inscritos no curso “A Arte de Comunicar: Persuasão, Negociação e Oratória”, com Maytê Carvalho, realizado pela Casa do Saber em março e abril de 2021. É proibida a reprodução ou divulgação deste material, parcial ou em sua totalidade, sem autorização. Os direitos autorais são exclusivos da Casa do Saber. suporte@casadosaber.com.br AVISO CONTEÚDO ISADORA JARDIM SALAZAR Curadora APROVAÇÃO MAYTÊ CARVALHO Professora DESIGN DEBORAH KUTNIKAS Designer QUEM PRODUZIU O MATERIAL FALE COM A GENTE mailto:suporte%40casadosaber.com.br?subject= 3 Ca sa d o Sa be r Entender a arte de comunicar talvez seja uma das grandes questões no desenvolvimento das sociedades. A persuasão, em suas diferentes formas, tornou-se fundamental no desdobramento das relações, sejam elas oriundas da esfera pública ou privada. Neste material complementar, a Casa do Saber reuniu os principais conceitos e teorias dos cursos “Persuasão e Influência: O Poder da Fala” e “A Arte de Comunicar: Persuasão, Negociação e Oratória”. Para além dos principais conceitos, tabelas, referências bibliográficas e complementares para seu aprendizado, este material foi pensado, também, a partir das questões mais relevantes trazidas por alunas e alunos durante as aulas. Agradeço pela participação de todas e todos nesta jornada e desejo que a busca pelo conhecimento de vocês seja infinita. Isadora Jardim Salazar @jardimsalazar APRESENTAÇÃO 4 Ca sa d o Sa be r UM POUCO DE FILOSOFIA Aristóteles e as raízes da comunicação Ocidental 01 FICHA TÉCNICA Origem, nascimento e morte: Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C.. Área do conhecimento: Filosofia Clássica, Epistemologia – ramo da filosofia dedicado a pensar as origens, processos e limites dos diferentes saberes Principais Obras: Metafísica, Ética a Nicômaco, Política, Retórica Discípulo da Academia de Platão durante 19 anos, Aristóteles foi um dos maiores filósofos clássicos ocidentais. O desenvolvimento da tradição filosófica clássica tem em Platão e em Aristóteles suas duas vertentes principais, seus dois grandes eixos e, sobretudo na Idade Média, o platonismo e o aristotelismo inspiraram inúmeras elaborações de teorias filosóficas e teológicas. Em 343 a.C., Aristóteles passa a ser tutor do mais importante conquistador da antiguidade: Alexandre, O Grande. O pensador foi conselheiro do líder de um dos principais reinos da antiguidade, o Reino da Macedônia. Em 335 a.C., Aristóteles deixa Alexandre e volta para Atenas, onde funda o Liceu. Segundo a filósofa brasileira Marilena Chauí, se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético - ou teórico - e o saber prático. O saber teorético é o conhecimento dos seres e fatos por si só existentes, independentes da intervenção humana e oriundo da natureza. O saber prático é o conhecimento do 5 Ca sa d o Sa be r que apenas existe como consequência das ações humanas e, portanto, depende de nós. Para além das inúmeras elaborações sobre as diferentes áreas do saber, Aristóteles dedicou boa parte de seus estudos à compreensão da comunicação, suas vertentes e regras. Autor da grande e clássica obra “Retórica”, um dos principais filósofos da história do Ocidente desenvolveu teorias sobre a arte do bem falar. A retórica de Aristóteles é, então, desenvolvida a partir de três pilares: Ethos, Pathos e Logos: ETHOS Diz respeito ao caráter de quem fala. É a credibilidade e um dos principais aspectos que fazem com que uma pessoa acredite em quem enuncia o discurso - uma união de histórico pessoal e reputação. PATHOS Diz respeito às emoções, ou melhor, às paixões. Um discurso que baseia-se no pathos apela para a empatia e as vulnerabilidades daqueles que recebem o discurso - faz com que as pessoas se emocionem. LOGOS Diz respeito à razão, ou seja, às provas lógicas e racionais que o enunciador emprega ao seu discurso. Se pathos apela para emoções, logos apela para pesquisas, dados, gráficos e números que comprovem sua tese. Sócrates 6 Ca sa d o Sa be r A tabela a seguir foi retirada da obra “Persuasão: Como usar a retórica e a comunicação na sua vida pessoal e profissional’’. Acompanhe algumas estratégias de oratória a partir do uso do Ethos, do Pathos e do Logos: ETHOS PATHOS LOGOS Antídoto Pessoal Histórias Argumentos Por que eu? Emoções Benefícios Depoimento Apelo emocional (Raiva, Amor, Frustração) Fatos Testemunha Storytelling Imagens Histórico Empatia Dados História de sucesso Vulnerabilidade Estatísticas Credibilidade Pesquisas Científicas Valores Atributos do Produto Ideologia Estudo de Caso TODA HISTÓRIA SOBRE A BRIGA ENTRE PLATÃO E ARISTÓTELES Paulo Niccoli Ramirez ASSISTIR APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER: https://www.youtube.com/watch?v=L_O-yzXA-sw 7 Ca sa d o Sa be r ABORDAGENS PERSUASIVAS DE CONHECIMENTO Provocação, Intimidação, Sedução e Tentação 02 Existem quatro tipos de narrativas que são essenciais para observarmos como falamos com os outros e como falam conosco. Não é somente no mundodo trabalho que exercemos a retórica: estamos utilizando-a constantemente em nossa esfera pessoal. Esses quatro estilos de narrativa, a Provocação, a Intimidação, a Sedução e a Tentação servem como “estímulos” para que o outro realize a atividade que você gostaria que fosse realizada. Entenda um pouco mais com exemplos: PROVOCAÇÃO Faz-se uma imagem negativa da competência do outro. Exemplo: Eu duvido que você consiga realizar essa atividade INTIMIDAÇÃO A fala contém um valor negativo que representa uma ameaça ao outro: Se você não realizar essa atividade, não ganhará sua recompensa. SEDUÇÃO É criada uma imagem positiva do outro com uma fala sedutora. Exemplo: Você é tão capaz, com certeza conseguirá realizar essa atividade. TENTAÇÃO É oferecido ao outro um valor positivo para a ação. Exemplo: Se você realizar sua atividade, receberá sua recompensa. 8 Ca sa d o Sa be r MAIS ALGUMAS TÉCNICAS DO DISCURSO Espelhamento, Triangulação e Escassez e Urgência 03 É preciso entender as nuances por trás dos discursos que recebemos e que enunciamos. O Isopraxismo, a Triangulação e a Escassez e Urgência são técnicas para que a comunicação seja ainda mais elaborada e conduzida a partir dos objetivos do emissor da fala. ISOPRAXISMO / ESPELHAMENTO Essa técnica consiste no ato de copiar o outro para criar uma situação mais confortável, gerar confiança por meio da mimesis – que em grego significa algo como “copiar o outro” - ao criar semelhança com a maneira com que o receptor do seu discurso fala ou se comporta. TRIANGULAÇÃO Um triângulo possui três pontas, certo? Esta técnica usa o triângulo como a figura que liga você, a pessoa com quem você fala e um terceiro sujeito, que não está na conversa. Com essa técnica você despertará o desejo do outro ao demonstrar que você – ou o seu produto – é desejado por outras pessoas. ESCASSEZ E URGÊNCIA Tática que preocupa-se em causar ao receptor uma noção de urgência, um gatilho de escassez que faz com que a pessoa afetada pelo discurso sinta a necessidade de adquirir o que você oferece. Um exemplo clássico é a propaganda de televisão que diz “É SÓ AMANHÃ!” 9 Ca sa d o Sa be r FALÁCIAS Identifique as falácias mais comuns nos discursos cotidianosa 04 AD HOMINEM ABUSIVA É uma falácia que consiste no ataque pessoal ao receptor da fala. Esta comunicação tenta acessar diretamente o caráter da primeira pessoa que iniciou um a crítica, por exemplo: A: “Faça mais exercícios, vai melhorar sua qualidade de vida” B: “Mas você faz exercícios todos os dias e fuma”. Neste diálogo, B, ao invés de rebater a primeira afirmação com alguma fala lógica, dados ou informação que enriqueça o debate iniciado, preferiu atacar um hábito particular de A. AD HOMINEM CIRCUNSTANCIAL Esta falácia questiona a imparcialidade da pessoa que propõe o questionamento. Por exemplo: A: “Faça mais exercícios, vai melhorar sua qualidade de vida” B: “Você só diz isso pois é dono de uma academia!” AD HOMINEM TU QUOQUE Esta falácia também é conhecida como a “falácia da hipocrisia”.Observe que B, ao questionar A, aponta que o discurso inicial parte de uma atitude hipócrita. A: “Faça mais exercícios, vai melhorar sua qualidade de vida”. B: “Mas você também ficou anos sem se preocupar com sua qualidade de vida” 10 Ca sa d o Sa be r AD BACULUM Também chamada de “argumento do porrete”, essa falácia acontece numa fala intimidadora que age através do medo para manipular o ouvinte. Essa falácia é muito utilizada por pessoas influentes, ou seja, que possuem um ETHOS notório. AD POPULUM Esta falácia consiste em afirmar que determinada proposição é verdadeira e válida pelo simples argumento de que uma maioria numérica de pessoas concorda com ela. Por exemplo “9 a cada 10 maquiadoras recomendam este batom, adquira já”. AD VERECUNDIAM O apelo à autoridade é o método desta falácia. De maneira lógica, o emissor da fala valida sua afirmação ao buscar a palavra ou reputação de alguma autoridade no assunto específico. AD MISERICORDIAM Esta falácia evoca o PATHOS do receptor da fala. O emissor afirma que será muito mais feliz ou realizado caso 11 Ca sa d o Sa be r A HABILIDADE ESSENCIAL O profissional do futuro é um bom comunicador 05 Hard skills e soft skills são palavras em inglês que fazem parte do vocabulário dos negócios há algum tempo. Entretanto, essas habilidades não são somente importantes para o mercado norte –americano – são notáveis capacidades que devem ser reconhecidas e aprimoradas. HARD SKILLS Em tradução literal, habilidades/competências “duras” – são habilidades que podem ser aprendidas e facilmente quantificadas, são tangíveis. Você aprende hard skills na sala de aula, com livros e apostilas, ou até mesmo no trabalho. São consideradas hard skills: Graduações e especializações, como cursos técnicos e cursos em universidades. SOFT SKILLS Em tradução literal, habilidades/competências “suaves” – são competências subjetivas. Também são conhecidas como people skills – habilidades com pessoas - ou interpersonal skills – habilidades interpessoais. As soft skills são características da personalidade que possuem influência sobre os relacionamentos no ambiente de trabalho e, por consequência, sobre a produtividade da equipe. São consideradas soft skills: critical thinking (pensamento crítico), decision making (tomada de decisão), empathy (empatia), ethics (ética), flexibility (flexibilidade, alternativa: resilience - resiliência), leadership (liderança) 12 Ca sa d o Sa be r A IMPORTÂNCIA DO STORYTELLING Crie narrativas bem estruturadas 06 Saber como contar histórias é uma ferramenta de poder, uma forma de entrar na cabeça de outra pessoa e plantar sementes, de convencer inconscientemente. Assim, a utilização de metáforas e de analogias é importante e podem dar a uma verdade pessoal a aparência de uma verdade universal. Na vida contemporânea, em meio ao caos das muitas informações que recebemos o tempo todo, a história é formadora de sentido: não é à toa que há tantas parábolas e pequenas histórias em textos bíblicos. Neste sentido, o poder de sedução de uma história é menos temporário que o de outras técnicas, pois permite que as pessoas olhem para determinadas situações através de outros pontos de vista. As nossas más decisões não são ruins em função dos fatos, mas pela ausência de uma história que dê sentido a eles: as pessoas não são racionais e ninguém sabe exatamente o que quer. Assim, usar o ímpeto de desejos universais é uma boa estratégia, porque em um mundo artificial todos são um pouco carentes de atenção. Contar uma história é com certeza uma das formas de suprir a carência dos sujeitos. Há, basicamente, seis tipos de histórias que podem ser contadas: aquela que explica quem o falante é (que deve ser contada dependendo da imagem que se quer passar de si. Histórias de autorreveleção, com exposição de falhas, por exemplo, costumam abrir caminho para a empatia), a que explica por que ele está naquele lugar, história de visão (que não se trata apenas de um mero relato, 13 Ca sa d o Sa be r mas que leva os ouvintes a sentirem emoções diversas), histórias de ensinamentos, histórias de valores (que se usa de muitos exemplos e que, se contada da maneira correta, pode gerar engajamentos) e a história que visa a mostrar que o falante pensa de forma semelhante a seus ouvintes (que serve para construir aliados, criar conexões). Ao contar uma história, no entanto, deve-se tomar cuidado com a vaidade (usar mais “nós” e menos “eu”, conectando os ouvintes), com excessiva autoridade, com a insinceridade e com a ostentação. Na sociedade em que vivemos, constantemente permeada por transformações, vemos um “myth gap”, que pode ser preenchido pela religião, pela ciência ou pelo entretenimento: esta inadequação é muito utilizada por publicitários. Osmitos são, hoje, relacionados a mentiras, mas, na verdade, codificam valores, pois apresentam uma explicação a fatos que a racionalidade não alcança. Há algo de ritualístico no mito, que precisa possuir uma referência universal (usando-se do mais básico e fundamental conceito, um mito consegue alcançar mais gente). Dessa forma, não seria por acaso que grandes líderes e grandes empresas de sucesso possuem não somente narrativas de storytelling bem estruturadas, mas também amplamente conhecidas. Storytelling significa, em tradução literal para o português: “narração de uma história”; na tradução prática, podemos dizer que é o que incentiva a criação de uma narrativa bem pensada nos discursos, sobretudo os persuasivos. Marcas devem estar atentas não só ao conteúdo que criam, mas à narrativa por trás dele e, também ao ETHOS que constroem no decorrer do tempo. Ele pode estar presente desde a elaboração inicial de uma campanha de marketing até o atendimento dos clientes – um storytelling é uma ferramenta que também está presente em e-mails, textos informativos e na fala dos CEOs das empresas. APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER: STORYTELLING: A IMPORTÂNCIA DE UMA HISTÓRIA BEM CONTADA Augusto Uchôa ASSISTIR https://www.youtube.com/watch?v=FVUi7KnT2v4&ab_channel=CasadoSaber 14 Ca sa d o Sa be r COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA Opte pela assertividade inteligente, não pela agressividade 07 A comunicação não-violenta (CNV) foi desenvolvida pelo psicólogo estadunidense Marshall Rosenberg (1934-2015) e é uma prática de entendimento mútuo que melhora a qualidade das nossas relações, seja no trabalho ou nas esferas da vida pessoal. Essa técnica é baseada na comunicação pessoal empática e parte de quatro etapas para ser realizada: Observação, sentimentos, necessidades, e pedidos. Ou seja, a CNV parte da troca do julgamento pela observação, da capacidade de empatia e autoempatia, da diferenciação de sentimentos e não-sentimentos e da arte de fazer pedidos para propiciar às pessoas melhores condições de conexão e diálogo. APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER: Neurociência e comunicação não-violenta Diálogo com Flavia Feitosa e Claudia Feitosa-Santana ASSISTIR https://www.youtube.com/watch?v=CmE1vUS-Tk4&ab_channel=CasadoSaber 15 Ca sa d o Sa be r SEMIÓTICA Entenda o estudo dos signos 08 A semiótica ou semiologia (do grego semeîon, “signo”, “sinal”) tem como objetivo explicar a criação e o funcionamento dos vários sistemas de signos, sinais e símbolos utilizados por todo e qualquer grupo de indivíduos para a expressão e a comunicação de ideias, sentimentos, emoções, desejos e necessidades. Mas a semiótica vai além desse primeiro objetivo: com efeito, o exercício semiótico nos possibilita levantar o véu das aparências que nos envolvem, demonstrando como nada é “inocente”. Tudo é resultado de uma construção de signos e a semiótica, por sua vez, os habilita assim a questionar as várias formas de poder e manipulação das ações dos sujeitos - seja através da fala, da arte, da escrita -, contribuindo para desenvolver nossa liberdade de consciência e uma análise minuciosa das comunicações que nos cercam e nos atingem. 16 Ca sa d o Sa be r Na área da semiótica, Algirdas Greimas foi um dos mais notáveis pensadores. Entre suas descobertas mais relevantes está o chamado “Quadrado de Greimas”, um diagrama usado na análise estrutural de relações entre signos. Algirdas Julien Greimas nasceu em Tula na até então Rússia, em 9 de março de 1917 e faleceu em Paris, em 27 de fevereiro de 1992. Sua abordagens fazem parte do leque de teorias notórias dentro da semiótica e seus trabalhos realizados no século XX demonstram a atualidade de sua análise - além de ter sido o autor utilizado em nosso curso. APRENDA MAIS SOBRE SÍMBOLOS E LINGUAGEM COM A CASA DO SABER A REALIDADE TRANSFORMADA EM SÍMBOLOS Luís Mauro Sá ASSISTIR https://www.youtube.com/watch?v=uqzhpI4p7Kg&ab_channel=CasadoSaber 17 Ca sa d o Sa be r ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO Como a cultura de um povo pode influenciar na sua negociação. 09 Max Weber (1864 - 1920) ao publicar em 1905 a obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” recorreu à sociologia da religião para explicar o sistema capitalista moderno ocidental. Weber atribui ao Protestantismo - religião cristã que surge para questionar princípios da Igreja Católica - uma grande influência na formação do capitalismo moderno. Segundo o autor, as religiões de origem protestante negam o ócio valorizado pelo então influente catolicismo e estipulam um novo estilo de vida voltado inteiramente ao trabalho e à racionalidade. Segundo o catolicismo, o ser humano é falho e está certamente apto a pecar. Para obter a salvação, necessita arrepender-se de seus filhos pecados por meio da confissão perante o meu padre. A predestinação católica para uma vida santa está voltada para o isolamento do mundo, em que monges e padre se distanciam da sociedade para não serem tentados por ela. Weber sinaliza que, segundo a ética protestante, a vida de santidade deve ser buscada constantemente e em meio à sociedade e ao cotidiano. Através de seu trabalho, o indivíduo se dedica inteiramente a Deus e abdica os prazeres mundanos. Desta forma a conduta racional e de planejamento constante do cotidiano do sujeito protestante passa a ser um estilo de vida que sustenta e solidifica a ética do trabalho e do lucro tão benéfica ao capitalismo. O dever profissional do protestante é dedicar seu trabalho a Deus. A riqueza e o acúmulo recebem uma visão positiva dentro da esfera 18 Ca sa d o Sa be r religiosa. O Homem, através de seu mérito pessoal, busca o “reino dos céus” à medida que nega as tentações e se dedica somente ao trabalho. Surge então a ascese intramundana a partir da ideologia protestante ocidental. moderna Essa introdução teórica se faz necessária pois o comportamento, ou melhor, a ética de vida e de trabalho dos países em que a religião protestante é predominante torna-se particular em relação não só a outros países do mundo, mas sobretudo aos de ética católica – Estados Unidos, Noruega, Islândia são, por exemplo, países de ética protestante. Mesmo os que se consideram não religiosos dentro de determinado país acabam por serem incluídos nas dinâmicas culturais oriundas de diversos universos, sobretudo do universo religioso. Atente-se aos costumes, religiosidades e hábitos de outras culturas antes de iniciar uma negociação internacional. Repare minuciosamente como aquele país lida com o trabalho, com a intimidade das relações e quais podem ser os possíveis códigos para uma boa negociação. Pesquisa sobre o governo, sistemas econômicos e funcionamento das instituições. Por aqui, uma breve explicação conceitual sobre os países protestantes, mas existem inúmeras a serem feitas. APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER: MAX WEBER E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO Paulo Niccoli Ramirez ASSISTIR https://www.youtube.com/watch?v=cCqwh-oxEMk&t=34s&ab_channel=CasadoSaber 19 Ca sa d o Sa be r COMO ESCREVER E-MAILS PERSUASIVOS A comunicação escrita também deve ser eficiente 10 Em um mundo hiperconectado, sobretudo em tempos de pandemia, as relações de trabalho passaram a depender - ainda mais - dos relacionamentos estabelecidos e cultivados on-line. Para além das “tabelas em anexo”, atualmente nossos e-mails são peça chave para tomada de decisões em grupo, elaboração de produtos e dinâmicas de trabalho. Ainda na internet, a implementação de plataformas digitais que compõem o uso dos correios eletrônicos, demandam expertise e tato no manejo cotidiano. É preciso importar-se com a comunicação em todas as esferas da nossa vida pessoal e profissional. Assim como preparamos nossa voz, nossa respiração e identidade visual para apresentações e negociações pessoalmente, escrever bem- e de maneira persuasiva – também é uma demanda do profissional do presente e, sobretudo, do profissional do futuro. Na tabela a seguir você poderá acompanhar e aplicar a sua rotina de trabalho algumas técnicas para a boa escrita de um e-mail persuasivo. Mais do que isso, os exemplos a seguir podem sofrer alterações estratégicas e, também, podem servir como técnica para abordagens realizadas em outras plataformas digitais. 20 Ca sa d o Sa be r SEU NOME NOME RECEPTOR TÍTULO Desperte a curiosidade ou coloque o nome da pessoa (endosso) que conhece o contato que você quer abordar (triangulação). Uso de Ad Verecundiam + Ethos são infalíveis. INTRODUÇÃO Vá direto ao ponto. Valorize o tempo do seu interlocutor que recebe muitos e-mails todos os dias. Filtre ao máximo tudo o que pode fazer, não enfeite demais e seja sucinto. “RECHEIO” Agregue valor. Faça uma venda consultiva: seu prospect precisa perceber que o seu contato é importante e que o principal objetivo dessa conexão é oferecer um benefício concreto para um possível problema - dê uma dica “grátis” para gerar reciprocidade. Por exemplo, se você vende soluções para blogueiros, compartilhe uma dica que vai ajudá-lo a gerar mais engajamento - logo você estabelece autoridade e mostra que tem muito a agregar. FINALIZAÇÃO Ofereça um benefício claro. Lembre-se: é um e-mail de apresentação comercial, ou seja, a venda será fechada depois. Para que a conversa possa seguir em outro contexto ou meio de comunicação, é importante que a pessoa percebe o que pode ganhar com você. Portanto, mostre como você pode ajudar na solução “Tenho outras dicas interessantes que podem aumentar ainda mais xxx do seu blog” por ex. FIM Call to action eficiente. Se você não disser o que quer, como o seu interlocutor poderá responder? Vamos fazer uma call para eu te apresentar nosso projeto amanhã 14h ou quinta às 18h, qual dia e horário funcionam melhor para você? 21 Ca sa d o Sa be r INDICAÇÃO DE LEITURA DA CASA DO SABER: COMO ESCREVER E-MAILS CLAROS, CONCISOS E ADEQUADOS Vivian Rio Stella 2019 ANTES DE IR, UMA ÚLTIMA PALAVRINHA... Foi uma honra compartilhar o conteúdo teórico conceitual sobre Comunicação e também minhas experiências empíricas com vocês durante essa jornada! Espero que todo esse saber seja aplicado com consciência, ética e responsabilidade, seja no ambiente corporativo ou nas relações interpessoais de vocês Maytê Carvalho 22 Ca sa d o Sa be r LIVROS LIVROS, FILMES E DOCUMENTÁRIOS: Persuasão — Como Usar a Retórica e a Comunicação Persuasiva na Sua Vida Pessoal e Profissional, Maytê Carvalho Retórica, Aristóteles A Sociedade da Sedução: Democracia e Narcisismo na Hipermodernidade Liberal, Gilles Lipovetsky A arte da sedução, Robert Greene As Armas da Persuasão: Como Influenciar e Não se Deixar Influenciar, Robert Cialdini O Que é Poder, Byung Chul Han Never Split The Difference, Chris Voss A Inteligência do Carisma, Heni Ozi Cukier O Mal- Estar na Civilização Sigmund Freud Como Vencer Um Debate Sem Precisar Ter Razão, Arthur Schopenhauer O Corpo em Terapia: a abordagem bioenergética, Alexander Lowen Psicologia de Massas e o Fascismo, Wilhelm Reich The Future of Power: Its Changing Nature and Use in the Twenty-first Century, Joseph Nye Speech Craft, Joshua Gunn Semiótica: Objetos e práticas, Nilton Hernandes Ivã Carlos Lopes Comunicação não-violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais, Marshall Rosenberg 23 Ca sa d o Sa be r Harvard Law School, Deal Negotiation and Dealmaking: What to Do On Your Own — LER TED Talks: Life Hacks — Documentário (Netflix) FILMES OUTROS APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS TAMBÉM PELO CANAL DA CASA DO SABER NO YOUTUBE Silicon Cowboys Steve Jobs: The Billion Dollar Hippie O Discurso do Rei Sociedade dos Poetas Mortos Prenda-me se for capaz VIPs Parasita The Inventor: Out For Blood In Silicon Valley Como se comunicar bem? Diogo Arrais ASSISTIR Se comunicar com naturalidade é sair da caixa Augusto Uchoa ASSISTIR https://www.pon.harvard.edu/daily/dealmaking-daily/deal-negotiation-and-dealmaking-what-to-do-on-your-own/ https://www.youtube.com/watch?v=6fUWsKdxNos&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=QLg1cWeg4MY&ab_channel=CasadoSaber 24 Ca sa d o Sa be r Você é (ou seria) um bom líder? Diogo Arrais ASSISTIR Toda história sobre a briga entre Platão e Aristóteles Paulo Niccoli Ramirez ASSISTIR Max weber e o espírito do capitalismo Paulo Niccoli Ramirez ASSISTIR O poder da fala Maytê Carvalho ASSISTIR Discursos na cultura do cancelamento Maytê Carvalho ASSISTIR Por que às vezes fugimos dos debates? Maytê Carvalho ASSISTIR https://www.youtube.com/watch?v=tylHirx_dq0&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=L_O-yzXA-sw&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=cCqwh-oxEMk&t=34s&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=ZwADZi_tT8k&t=168s&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=cAXQaF4vIIs&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=4KdL8VTEbJ4&ab_channel=CasadoSaber 25 Ca sa d o Sa be r Como a gente organiza os nossos pensamentos através das palavras Vivian Rio Stella ASSISTIR Qual imagem você passa? Comunicação verbal e não-verbal Vivian Rio Stella ASSISTIR Linguagem, poder e sociedade Vivian Rio Stella ASSISTIR Neurociência e comunicação não-violenta Diálogo com Flavia Feitosa e Claudia Feitosa-Santana ASSISTIR Comunicação e Discursos em Tempos de Pandemia com Maytê de Carvalho e Mario Vitor Santos ASSISTIR https://www.youtube.com/watch?v=4R8aB7pLZHw&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=u9Ml9OCp6NQ&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=-1f5TWH_GZQ&t=84s&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=CmE1vUS-Tk4&ab_channel=CasadoSaber https://www.youtube.com/watch?v=EE1QkuF6434&t=18s&ab_channel=CasadoSaber 26 Ca sa d o Sa be r REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 5ª.ed. São Paulo: Ática, 2011. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1991. CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. Trad. Angela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006). FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. 8. ed. São Paulo: Ática, 2007. ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas, SP: Pontes, 2005. REGO, Francisco Gaudêncio Torquato do. Comunicação empresarial / comunicação institucional: conceitos, estratégias, sistemas, estrutura, planejamento e técnicas / Francisco Gaudêncio Torquato do Rego. – São Paulo: Summus, 1986. ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta. Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 3. ed. São Paulo: Ágora, 2006 SILVA, Maria Júlia Paes da. Comunicação tem remédio: a comunicação nas relações interpessoais em saúde / Maria Júlia Paes da Silva. – São Paulo: Edições Loyola, 2006. SCHUCH, Patrice. Tecnologias da não-violência e modernização da justiça no Brasil. O caso da justiça restaurativa. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 8, n. 3, 2008. FILE:///C:/USERS/ANA%20LUIZA/DOWNLOADS/IMG_0837(1).JPG GUIA FILOSÓFICO DAS (NOVAS) QUESTÕES DA HUMANIDADE com Clóvis de Barros Filho 20 21 Um conteúdo original da Casa do Saber Este material foi elaborado pela curadoria da Casa do Saber exclusiva- mente para o curso Guia Filosófico das (Novas) Questões da Humani- dade, com o professor Clóvis de Barros Filho, em setembro e outubro de 2021. A leitura deste material não substitui as aulas e sua reprodução e/ou compartilhamento de forma parcial ou total não é permitida sem a autorização expressa de seus criadores. QUEM PRODUZIU O MATERIAL CONTEÚDO Guilherme Peres Curador da Casa do Saber Amanda Péchy Curadora Assistente da Casa do Saber DESIGN Ana Luizados Santos Designer FALE COM A GENTE suporte@casadosaber.com.br São Paulo, 2021 AVISO Ca sa d o Sa be r 3 ÍNDICE: APRESENTAÇÃO AULA 1 - PARA O FUTURO E AS INCERTEZAS, A CORAGEM E A RESPONSABILIDADE AULA 2 - PARA O TRABALHO E A REALIZAÇÃO PESSOAL, A SIMPLICIDADE E A HUMILDADE AULA 3 - PARA A SOLIDÃO E O INDIVIDUALISMO, A GENEROSIDADE E A GRATIDÃO AULA 4 - PARA A DESIGUALDADE E A DISCRIMINAÇÃO, O RESPEITO AULA 5 - PARA O ÓDIO E A INTOLERÂNCIA, A TOLERÂNCIA E A COMPAIXÃO AULA 6 - PARA OPINIÕES E A BUSCA DA VERDADE, A PRUDÊNCIA E A BOA FÉ AULA 7 - PARA A VIDA COM OS OUTROS, GENTILEZA E COMPAIXÃO AULA 8 - LIDAR (MELHOR) COM A MORTE E O LUTO - A CONSCIÊNCIA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 4 6 21 34 44 54 65 78 89 99 Ca sa d o Sa be r 4 APRESENTAÇÃO Este curso ao qual você tem acesso é uma criação inédita da Casa do Saber, que desde 2004 tem o privilégio da companhia do professor Clóvis de Bar- ros Filho. Ao longo dos anos, nós e todo o público fomos presenteados com algumas das reflexões mais provocadoras e acessíveis a respeito de nossa condição, nosso lugar no mundo e, sobretudo, nossas responsabilidades para conosco e com os outros. Explicadores como ele são capazes de mov- imentar nossos corações e razão. De nos colocar diante de um espelho em que nos vemos tal como somos, mas com energia o suficiente para nos aju- dar a descobrir quem podemos (e queremos) ser. Um de seus cursos mais famosos – As Grandes Questões da Humanidade, que virou um livro publicado em 2013 –, trazia de forma clara nossa relação com as ideias de liberdade, beleza, bem e mal, Deus, justiça, entre outras. Na esteira deste momento inédito vivido por todos no último ano, outras questões emergiram e se tornaram urgentes. Não que as demais tenham perdido relevância, pelo contrário, mas é urgente que tenhamos em mente alguns desafios que já se anunciaram e o que podemos fazer para lidar mel- hor com cada um deles. Ao mesmo tempo, muitas questões podem não parecer novas, mas trazem novidades em como se apresentam e nos afetam neste contexto para o qual as respostas tradicionais parecem, às vezes, insu- ficientes. Nas páginas a seguir você encontrará algumas leituras complementares às aulas do curso Guia Filosófico das Novas Questões da Humanidade. A cada encontro o professor Clóvis de Barros Filho apresenta uma questão e quais virtudes podem ser desenvolvidas para enfrentá-las. Para além desse de- senvolvimento individual, uma pretensão desse conjunto de encontros é também estimular a reflexão e o desenvolvimento dessas virtudes com uma orientação para o coletivo. As duas dimensões estão presentes e são, como sempre, dependentes uma da outra. Desejamos a todos e todas uma boa jornada de aprendizado. É um prazer ter vocês com a Casa do Saber em mais um capítulo da nossa missão de trans- mitir conhecimento de forma prazerosa. Para isso, ninguém melhor do que Clóvis de Barros Filho. Aproveite! Equipe da Casa do Saber Ca sa d o Sa be r 5 AULA 1 PARA O FUTURO E AS INCERTEZAS, A CORAGEM E A RESPONSABILIDADE Ca sa d o Sa be r 6 Desde que as ideias sobre nossa relação com o cosmos foram organizadas em um sistema chamado “filosofia”, boa parte do pensamento humano foi dedicada a entender o sentido da existência. Não apenas nossas possíveis origens, mas nosso lugar no desenrolar da vida e, sobretudo, nossos des- tinos – a curto e a longo prazo. A questão do futuro foi sempre crucial. Na Grécia Antiga, berço da filosofia ocidental tal qual a entendemos, conhecer os desígnios do destino traçado pelas Moiras poderia ser uma maldição – tal qual na vida de Cassandra, que previu a destruição de Tróia e até hoje segue como referência àquelas pessoas cujas previsões são desacreditadas –, ou uma missão – como em Sócrates, que considerou sua missão colocar à prova a declaração do oráculo do Templo de Apolo em Delfos, de que ele seria o homem mais sábio da Grécia. Templo de Apolo em Delfos - Grécia Ca sa d o Sa be r 7 Ainda assim, pensar o futuro se tornou uma preocupação que foi além da religião ou das representações dos mitos. No teatro, Sófocles (497/496 a.C. - 406/405 a.C.) usou o enredo de um homem que quis fugir de seu destino e correu de encontro a ele para construir uma das tragédias mais famosas da humanidade. Em Édipo Rei (427 a.C.), Laio, rei de Tebas, ouve a profecia de que morreria pelas mãos do próprio filho recém-nascido. Ele ordena que Jocasta, sua esposa, mate a criança, mas ela a entrega a um servo que a abandona. A criança é resgatada, nomeada Édipo e levada a Corinto, onde é adotada pelo rei. Ao consultar o oráculo sobre sua origem, ouve que ele es- tava destinado a desposar sua mãe e assassinar seu pai. Sem saber que não é filho dos reis de Corinto, foge da cidade em direção a Tebas. No caminho, discute com um velho e o mata, sem saber que aquele era Laio, seu ver- dadeiro pai. Ao chegar em Tebas, se depara com a esfinge, que aterroriza a cidade devorando seus habitantes e viajantes enquanto não solucionar- em seu enigma – que Édipo rapidamente resolve. A esfinge se joga de um penhasco e Édipo é recompensado com o trono da cidade e a mão da rainha viúva – Jocasta, sua mãe. É Tirésias, outro profeta, quem revela a Édipo o que ele cometeu e, ao final (spoilers), Édipo fura os próprios olhos e parte para o exílio, atormentado, em uma das histórias mais famosas da história. Cerâmica grega de cerca de 470 a.C. retratando Édipo e a esfinge (Museu do Vaticano) Ca sa d o Sa be r 8 Alguns dos chamados pré-socráticos, como Demócrito, Heráclito e Par- mênides, por exemplo, propuseram ideias que, de uma forma ou de outra, pautaram algumas das principais visões a respeito do que seria o devir hu- mano. Seria tudo um aglomerado de átomos desordenados colidindo caoti- camente, como propôs Demócrito? Um fluxo de transformações constantes e intermináveis, de acordo com Heráclito? Ou o que existe é apenas o ser e o não-ser, portanto não havemos de nos preocupar com o que (ainda) não é? Fiquemos apenas com Heráclito e Parmênides, cujas fontes e relatos são mais confiáveis. Veja abaixo, de forma mais direta, exemplos mais claros de suas ideias. Heráclito mesmo, não obstante sua crença na mudança, admitiu que algo não tinha fim. A concepção de eternidade (em oposição à duração infinita) que encontramos em Parmênides não existe em Heráclito, mas em sua filosofia o fogo central jamais se extingue: o mundo “sempre foi, é e sempre será um Fogo sempiterno”. Fogo, no entanto, é algo que está em constante mutação, e sua permanência é antes a permanência de um processo, e não de uma substância (RUSSELL, 2015, p. 74). Não podes saber o que não é – é impossível – nem proferi-lo, pois é um só o que pode ser pensado e o que pode existir. Como, no entanto, pode aquilo que é vir a ser? Ou como poderia ganhar ex- istência? Se passou a ser, não é; tampouco é se vier a ser no futuro. O devir, assim, se extingue, e não se deve falar em desaparecer. Aquilo que pode ser pensado e aquilo porque o pensamento existe são o mesmo; pois não é possível encontrar pensamento sem algo que exista e a respeito do qual ele se exprime. (Parmênides, Sobre a Natureza, fragmento 8, apud LEÃO, 1991, p. 48) Foi Platão (428/427 a.C. - 348/347 a.C.) quem, em A República (cerca de 375 a.C.), idealizou a primeira das utopias da filosofia – a cidade ideal, Kallipolis, governada por uma aristocracia de sábios, reis filósofos, imaginada na busca de um conceito maior sobre a justiça, que passa também sobre o destino da alma. Entre os campos da ética e da metafísica, o futuro foi sendo pensado, basicamente, a partir destas matrizes. Estoicos como Epiteto, Marco Aurélio e Sêneca aconselhavam que não dedicássemos energia ao que não estava sob nosso controle (ainda que recomendassem o exercício de lembrar da finitude). Com o domínio religioso sobre o pensamento, aangústia ou as pre- ocupações com o futuro seriam fruto da falta de fé em um plano que descon- hecemos e que não nos pertence. Ca sa d o Sa be r 9 HERÁCLITO PLATÃO PARMÊNIDES Ca sa d o Sa be r 10 Avancemos até o começo do século 19 na Dinamarca. Educado como pastor protestante, Søren Kierkegaard (1813-1855) é considerado o primeiro dos existencialistas. O sentido da existência esteve no centro de sua vasta produção, apesar de seu curto tempo de vida. Profundamente influenciado por Hegel (1770-1831), foi também um dos responsáveis por refutar algumas de suas ideias que vinham se tornando dominantes no pensamento europeu. Uma de suas proposições mais famosas é de que “o real é racional”. De for- ma muito sucinta, Kierkegaard interpretou que a mais subjetiva das categorias – o “eu” – não pode ser circunscrito e definido de forma tão objetiva. A real- idade vivida e formadora dessa subjetividade é vivida a partir de valores que servem de lentes às próprias realidades objetivas – os fatos. Em suma, va- lores aos quais somos fiéis influenciam nossa visão da realidade, fazendo da minha realidade algo subjetivo a partir de fatos objetivos. O mundo e nossa percepção se influenciam e se transformam e fazem de cada pessoa aquilo que elas são. Essa experiência radical da liberdade é o que causa em nós uma sensa- ção de angústia. Pense por um instante na consequência dessa conclusão para alguém profundamente cristão como Kierkegaard. Origina-se aqui um paradoxo: a liberdade, condição fundamental da existência, quando perce- bida dentro das infinitas possibilidades que nos proporciona, provoca uma angústia que nos faz rejeitá-la. Em suas próprias palavras, a angústia difere do medo por não ter um objeto específico, mas por ser a “realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade” (Kierkegaard, 2017, p. 49). Assim ele descreve esta condição a partir da história de Adão ao consumir o fruto proibido em O Conceito de Angústia: PARA SABER MAIS: clique para assistir A REPÚBLICA DE PLATÃO Maurício Marsola https://youtu.be/8YBne9Ln_38 Ca sa d o Sa be r 11 Quando, pois, se admite que a proibição desperta o desejo, ob- tém-se ao invés da ignorância um saber, pois neste caso Adão deve ter tido um saber acerca da liberdade, uma vez que o prazer consis- tia em usá-la. Esta explicação é, portanto, a posteriori. A proibição o angustia porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que tinha passado desapercebido pela inocência como o nada da an- gústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é um nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de. Ela não tem nenhuma ideia do que é que ela seria capaz de fazer, pois de outro modo se pressupõe, certamente – como em geral sucede – o que só vem depois, a distinção entre bem e mal. Existe apenas a possibilidade de ser-capaz-de, enquanto uma forma superior da ignorância e enquan- to uma expressão superior da angústia, porque esta capacidade, num sentido superior, é e não é, porque num sentido superior ela a ama e foge dela. (KIERKEGAARD, S. 2017, p. 52) Søren Aabye Kierkegaard foi um filósofo, teólogo, poeta e crítico social di- namarquês, amplamente considerado o primeiro filósofo existencialista.) Ca sa d o Sa be r 12 A angústia abre as portas para o vir-a-ser, já que não há um ser fixo, de- terminado ao qual nos agarrarmos (apesar de a angústia nos fazer desejar agarrar algo fixo e que nos dê referências). Devemos, para Kierkegaard, nos lançar neste absurdo, o que ele chamou de “salto de fé”: somos uma sínte- se entre o finito e o infinito, ou seja, estamos inseridos no tempo, em carne e osso, mas destinados à indeterminação. Aqui é importante entendermos o conceito de repetição. Diferente da rememoração, que teria o sentido do passado, a repetição tem o sentido do futuro – em dinamarquês, o termo é Gjentagelse, com o sentido de “retomar”, “reapropriar”. É na repetição, por- tanto, que reside a própria ideia de esperança. A cada momento de retomada desse devir de nós mesmos, temos a possibilidade de nos tornarmos quem somos. Voltei a ser eu mesmo; eis que tenho a repetição; entendo tudo e a existência surge-me agora mais bela do que alguma vez (...) Sou de novo eu mesmo. Este ‘eu mesmo’, que na estrada ninguém apanharia do chão, é outra vez meu. A cisão que havia rio meu ser está anula- da; eis-me novamente unificado. (KIERKEGAARD, S. 2009, p. 131) Essa existência imediata no mundo que detém o privilégio de questionar é o que Martin Heidegger (1889-1976) veio a chamar de Dasein, traduzido em português como ser-aí. O ser-aí é também um ser-no-mundo à medida que habita e existe no mundo, sem estar apenas lançado sobre ele no tempo e no espaço. Nós, seres pensantes, não apenas existimos no mundo, mas “te- mos” o mundo, classificando-o como uma extensão de nós mesmos a par- tir de nossas interações com nossas realidades imediatas. A compreensão desta condição nos lança em infinitas possibilidades, nas quais podemos (ou não) assumir nossa existência de forma plena. No entanto, desviamos desse compromisso, acabamos por encobri-lo, e é essa fuga de nós mesmos que acaba determinando o ser-no-mundo de cada ser-aí. Para Heidegger, o traço totalizante e universal do humano é a angústia. Mais do que um fenômeno psicológico, ela representa a totalidade da exis- tência como ser-no-mundo. Ela é diferente do medo, por exemplo, uma vez que o medo é decorrente de um objeto (temos medo de algo). A angústia, por sua vez, é esse incômodo sem objeto definido que nos empurra em di- reção a outras fontes de significado como sustentação de nossa existência, como anuncia no texto Que é a Metafísica?, publicado em 1929: Ca sa d o Sa be r 13 Na angústia - dizemos nós - ‘a gente se sente estranho’. O que sus- cita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante de que a gente se sente estranho. A gente se sente total- mente assim. Todas as coisas e nós mesmo afundamo-nos numa indiferença. Isto, entretanto, não no sentido de um simples desapa- recer, mas em se afastando elas se voltam para nós. Este afastar-se do ente1 em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém - na fuga do ente – este ‘nenhum’. A angústia manifesta o nada. ‘Estamos suspen- sos’ na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios - os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos en- tes. É por isso que, em última análise, não sou ‘eu’ ou não és ‘tu’ que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se. (HEIDEGGER, 1999, p. 56-57) PARA SABER MAIS: A angústia tem o nada como causa e efeito, daí sua frase conhecida de que “o nada nadifica”. No entanto, essa é a condição que coloca a existên- cia humana diante dela mesma. A angústia nos alerta para a nossa existência finita, colocando a inautenticidade e também a autenticidade como possibili- dades de nosso ser e nos convoca a sair da inautenticidade em que vivemos para assumirmos, então, nossa autenticidade. Esse é o momento de virada da existência e quando se mostra o ser-para-a-morte. Não se trata de pensar nela constantemente ou algo mais vulgar, mas de entendê-la como um pro- clique para assistir KIERKEGAARD: ANGÚSTIA E ESPERANÇA Oswaldo Giacoia Júnior https://youtu.be/VjGGl4EREAo Ca sa d o Sa be r 14 cesso da própria existência como um todo e, de forma muito particular, algo único de cada pessoa. É nela que cada um encontra sua verdade no tempo e por meio da consciência dela que temos a oportunidade de assumir a vida. Martin Heidegger foi um filósofo, escritor e professor alemão. Foi um pensador seminal na tradição continental e hermenêutica filosófica, e é amplamente reconhecido como um dos filósofos mais originais e importantes doséculo XX Futuro e incerteza se mostram para nós para além da questão da morte, mas da própria indeterminação. Não sabemos o que irá acontecer amanhã e, quanto mais complexo e caótico se torna o contexto em que vivemos, mais essa insegurança aumenta. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos em 2018, feita em 24 países com mais de 17 mil pessoas, mostrou que parte significativa da população brasileira (e mundial) é pessimista em relação ao futuro. https://www.ipsos.com/en/beyond-populism-two-years-after Ca sa d o Sa be r 15 Neste ponto, vale lembrar da figura de Hans Jonas (1903-1993), aluno de Heidegger no final dos anos 1920. Jonas foi um dos maiores pensadores a tratar de forma sistemática a questão do desenvolvimento de uma ética que levasse em consideração o avanço tecnológico desenfreado vivido pelo mundo após a Segunda Guerra Mundial. Judeu, fugiu da Alemanha nazista para a Palestina, para depois se juntar ao exército britânico, vendo de perto os efeitos da guerra. Algumas de suas propostas em obras como O Princípio Vida (1966) e O Princípio Responsabilidade (1979) dizem respeito à condução do humano para o desenvolvimento de uma ética que fosse além do princípio moral - não apenas fazer o certo porque “é certo”, mas porque fazer o bem é próprio de uma verdadeira natureza humana. Não se trata, portanto, de um “valor”, mas de um “dever”. Desta forma, nossas ações não seriam orientadas por uma lei moral, mas pelo bem do mundo que se sobrepõe à nossa vontade. Para Jonas, razão e emoção devem ser complementares no que co- nhecemos por ética. A dimensão objetiva, racional, deve ter uma motivação subjetiva que sustente a noção de dever. Aquilo que nossa razão nos mostra como relevante de existir e que necessita de nosso cuidado é o que deve orientar nossas ações, envolvendo aí o aspecto emocional e psicológico. O resultado dessa síntese é a noção de responsabilidade. Este trecho a seguir, nas palavras do próprio Jonas, explica essa ideia: PARA SABER MAIS: clique para assistir A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE Oswaldo Giacoia Júnior https://youtu.be/nJm2nofC0Us Ca sa d o Sa be r 16 O mistério e o paradoxo da moral é que o eu deve esquecer de si mesmo em proveito da causa, de modo a permitir que um eu supe- rior apareça (na verdade, um bem-em-si). Deve-lhe ser permitido dizer: “Eu quero poder encarar-me de frente” (ou submeter-me ao julgamento de Deus), mas isso só me será possível caso o que im- porte aí seja a “causa” e não eu mesmo: nunca posso ser a causa, e o objeto do ato será apenas a oportunidade para tal. O homem bom não é aquele que se tornou um homem bom, mas aquele que fez o bem em virtude do bem. O bem é a “causa” no mundo, na verdade, a causa do mundo. A moralidade jamais pode se considerar como um fim (...) Não é o próprio dever que é o objeto; não é a lei moral que motiva a ação moral, mas o apelo do bem em si no mundo, que confronta minha vontade e exige obediência - de acordo com a lei moral. Ouvir aquele apelo é exatamente o que a lei moral ordena: isso é tão-somente a obediência genérica ao apelo de todos os bens dependentes da ação e o seu direito respectivo à minha ação. Ele torna meu dever aquilo que a intelecção me mostrou que é digno de existir por si mesmo e necessita da minha intervenção. Para que algo me atinja e me afete de maneira a influenciar minha vontade é preciso que eu seja capaz de ser influenciado por esse algo. Nosso lado emocional tem de entrar em jogo. E é da própria essência da nossa natureza moral que a nossa intelecção nos transmita um apelo que encontre uma resposta em nosso sentimento. É o sentimento de responsabilidade. (JONAS, 2006, p. 156-157) Apenas o respeito não é suficiente, uma vez que é orientado apenas pela razão. O que importa são as coisas em si mesmas e não nossa vonta- de. O que nos liga às coisas é o sentimento de responsabilidade. Para além dessa relação primeira, a responsabilidade também diz respeito ao dever do poder. Aqueles que têm mais poder sobre aquilo que necessita de cuidados se ligam entre si a partir dessa noção de responsabilidade - é esse relaciona- mento que orienta esta nova ética proposta por Jonas. O exercício do poder, portanto, sem a observância do dever, ou mesmo a negligência e a omissão, têm o nome de irresponsabilidade. Essa relação se estende, sobretudo, para as criações humanas (que nos humanizam, como a arte, por exemplo) e as gerações futuras. Temos uma obrigação fundamental e uma ligação de responsabilidade com aqueles que ainda não nasceram. O que ele sustenta é que neste exer- cício cada um garante a manutenção da humanidade em todos os seus senti- dos, numa necessidade paradoxal de desprendimento do eu, mas que ainda Ca sa d o Sa be r 17 assim o sustenta. Desprendimento este que envolve não esperar das gera- ções vindouras uma recompensa por nossas ações morais – nosso dever é garantir que tenham o direito e a possibilidade de existir, ainda que para negar aquilo feito em nome delas. Ainda nas palavras de Jonas: Ou seja, exatamente aqueles efeitos pelos quais o responsável já não poderá responder: a causalidade autônoma da existência protegida é o derradeiro objeto do seu cuidado. Em relação a esse horizonte transcendente, a responsabilidade, mesmo em sua totalidade, não pode ambicionar um papel determinante; pode ambicionar possibil- itá-lo (ou seja, prepará-lo e manter aberta a oportunidade). O caráter vindouro daquilo que deve ser objeto de cuidado constitui o aspecto de futuro mais próprio da responsabilidade. Sua realização suprema, que ela deve ousar, é a sua renúncia diante do direito daquele que ainda não existe e cujo futuro ele trata de garantir. À luz dessa am- plidão transcendente, torna-se evidente que a responsabilidade não é nada mais do que o complemento moral para a constituição on- tológica do nosso Ser temporal. (JONAS, 2006, p. 186-187) Hans Jonas foi um filósofo alemão de origem judia. É conhecido principalmente devido à sua influente obra O Princípio Responsabilidade. Ca sa d o Sa be r 18 A preocupação com o futuro e a incerteza provocam em nós uma angús- tia que pode nos paralisar, ou nos convidar assumirmos nossa autenticidade, nosso si-mesmo. A angústia nos prepara para esse momento de síntese entre corpo e alma, sujeito e natureza, finito e eternidade. Esse tornar-se sujeito nos lança ao futuro numa chave de esperança e de dever em relação a algo que transcende o indivíduo. É a angústia a responsável, paradoxalmente, por nos afligir e nos dar a chave para superá-la. Antes é preciso, porém, dar o “salto no abismo”. Abrir mão de si para ser capaz de (re)encontrar a si mes- mo e, nessa retomada, recomeçar. Esse tipo de pensamento reverbera ainda em diferentes vertentes e origens do pensamento, dentro ou fora do que se convencionou chamar de “tradição”, e se tornou uma das principais preocu- pações de parte significativa da intelectualidade. Talvez não do restante do mundo. O brasileiro Ailton Krenak anuncia em Ideias para Adiar o Fim do Mun- do sua versão de uma reflexão a respeito de nossa ligação com o mundo e o que ainda há de vir: Quando, por vezes, me falam em imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de no- vos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros humanos que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro espaço. O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós. Na verdade, a gente vive recl- amando, mas essa coisa foi encomendada, chegou embrulhada e com o aviso: “Depois de abrir, não tem troca”. Há duzentos, trezen-
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