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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO Minha Casa, Minha Vida: Aspectos Sociais e Econômicos Paulo César Vlasman de Camargo DRE: 114148667 ORIENTADOR: Prof. Dr. João Felippe Cury Marinho Mathias ABRIL, 2020 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO Minha Casa, Minha Vida: Aspectos Sociais e Econômicos ____________________________________________ Paulo César Vlasman de Camargo DRE: 114148667 ORIENTADOR: Prof. Dr. João Felippe Cury Marinho Mathias ABRIL, 2020 As opiniões expressas neste trabalho são de exclusiva responsabilidade do autor. RESUMO O objetivo desta monografia é verificar se o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) obteve êxito em resolver os problemas a que foi proposto, a partir da compreensão das principais motivações por trás da política pública, no contexto no qual foi instaurada, identificando padrões históricos que tendem a se repetir nas políticas deste setor e se houve uma repetição deste ciclo. Para isso, o trabalho busca examinar seus resultados tanto sociais, de diminuir o déficit habitacional existente no Brasil desde a aceleração da urbanização do país na década de 1930, quanto econômicos, de aceleração do crescimento num momento de crise financeira global. Por fim, a partir da análise desenvolvida, será possível concluir a validade da hipótese de que a principal meta do MCMV era realizar uma política econômica anticíclica, e não de reduzir o déficit habitacional no Brasil, o que perpetua o histórico de políticas nacionais de habitação (PNH) não resolverem a situação a qual são propostas. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a minha base familiar, meus pais, Márcia e Luís, meus irmãos, Tainá, Aila e João Gabriel, e meu avô, Petrus, por todo suporte na caminhada até este momento, me apoiando em tudo que precisei. Aos amigos que foram muito importantes durante a graduação tanto dentro quanto fora das salas de aula e que levo da faculdade para a vida: André Machado, Brunno Fontanetti, Gabriel Leite, Igor Mello e Matheus Soares. Agradeço à Associação Atlética Acadêmica do Instituto de Economia por todo aprendizado que me permitiu ter nesta caminhada pela graduação e os amigos que me presenteou e que compartilharam comigo o sonho realizado de unirmos o corpo discente em torno do esporte e espírito de equipe: Alan Campos, Danilo Crespo, Diego Menescal, Matheus Pissurno, Rachel Abreu, Rafael Marinho, Taynara Borges, Victor Pacheco e todos que participaram destes momentos. Aos professores e servidores do Instituto de Economia da UFRJ que lutam diariamente para que a universidade pública continue sendo um espaço de excelência acadêmica e liberdade para debates de ideias. Este vigor me fez gostar ainda mais desta área que optei por estudar e todos ensinamentos aprendidos e trocados me fizeram ter certeza da minha escolha. Um agradecimento especial ao professor João Felippe Cury Marinho Mathias, por toda dedicação na orientação deste trabalho, sempre muito solícito e que examinou com cuidado e carinho cada linha deste trabalho. A todos na Ativore Global Investments por toda troca de experiências, por me despertarem a paixão pelo mercado imobiliário e sempre incentivarem a busca por cada vez mais conhecimento nesta área, especialmente a Fabio Granato, Mariana Cosenza, Luiz Gomes e Lívea Coda. Por fim agradeço a nova geração da família, que me inspira a seguir melhorando para que eles vivam em uma sociedade melhor, até agora compostos pela minha sobrinha Alice e meu afilhado Walter. SÍMBOLOS, ABREVIATURAS E CONVENÇÕES ABRAINC – Associação Brasileira De Incorporadoras Imobiliárias BACEN – Banco Central BJC – Benjamim José Cardoso CEF – Caixa Econômica Federal CSF – César Santana Filho FAR – Fundo de Arrendamento Residencial FGV – Fundação Getúlio Vargas FHC – Fernando Henrique Cardoso FJP – Fundação Joao Pinheiro MCMV – Minha Casa, Minha Vida OGU – Orçamento Geral da União PAC – Programa de Aceleração do Crescimento PAR – Programa de Arrendamento Residencial PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNH – Política Nacional de Habitação SBPE – Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo UH – Unidade Habitacional SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8 CAPÍTULO I – HISTÓRICO DAS POLÍTICAS NACIONAIS DE HABITAÇÃO BRASILEIRAS DE 1964 A 2008 ........................................................................................... 10 1.1 Governo Militar .................................................................................................................. 11 1.2 Nova República .................................................................................................................. 15 CAPÍTULO II – CONTEXTO SOCIOECONÔMICO PRÉVIO AO MCMV ................ 20 2.1 Contexto social do MCMV, o problema histórico do déficit habitacional ......................... 20 2.2 Contexto econômico do MCMV, o gerador de empregos pós crise de 2008 ..................... 25 2.3 Estrutura do Programa Minha Casa, Minha Vida............................................................... 27 CAPÍTULO III – RESULTADOS SOCIOECONÔMICOS DO MCMV ......................... 32 3.1 Desempenho Social ............................................................................................................ 33 3.2 Desempenho Econômico .................................................................................................... 40 3.3 Composição do Financiamento .......................................................................................... 42 3.4 Priorização do econômico vis-à-vis o social no Minha Casa, Minha Vida? ...................... 45 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 49 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 51 ÍNDICE DE FIGURAS, GRÁFICOS E TABELAS Tabela 1 – Componentes do déficit habitacional...................................................................... 21 Tabela 2 – PAC: Fontes de Recursos, Programas e Ações ...................................................... 30 Tabela 3 - Comparação das condições de acesso, infraestrutura e moradia em relação ao bairro de origem dos moradores, segundo a percepção dos entrevistados (Viçosa, MG, 2014) .................................................................................................................................................. 39 Tabela 4 - Tipologia e quantidade de municípios do PlanHab ................................................. 47 Tabela 5– Correlação entre produção do MCMV e déficit habitacional por município, segundo tipologia do PlanHab .................................................................................................. 47 Gráfico 1 – Composição da população brasileira por situação domiciliar, entre 1960 e 2010 22 Gráfico 2 – Déficit Habitacional por camada de renda em 2006 ............................................. 23 Gráfico 3 – Componentes do déficit habitacional em 2005 ..................................................... 24 Gráfico 4 - Taxa de Crescimento do PIB Total e da Construção Civil, entre 2004 e 2008 ..... 26 Gráfico 5 – Déficit Habitacional por Componente de 2009 a 2017 ......................................... 33 Gráfico 6 – Crescimento anual médio da proporção da população urbana em domicílios com ônus excessivo de aluguel – Brasil e estados,entre 2011 e 2015 ............................................. 34 Gráfico 7 – Distribuição relativa do Déficit Habitacional por faixa de renda familiar em 2017 .................................................................................................................................................. 35 Gráfico 8 – Evolução do Déficit Habitacional bruto, entre 2007 e 2017 ................................. 37 Gráfico 9 – Índice de emprego previsto na construção de 2015 a 2018 (indicador dessazonalizado) ....................................................................................................................... 41 Gráfico 10 - Crédito Imobiliário como Proporção do PIB (%) ................................................ 44 Gráfico 11 - Composição do Financiamento Imobiliário segundo Fontes de Recursos .......... 44 Figura 1 - Procedimentos adotados para a produção de unidades habitacionais urbanas por empresas incorporadoras e construtoras ................................................................................... 29 Figura 2 - Procedimentos adotados para a produção de unidades habitacionais urbanas e rurais por entidades sem fins lucrativos ............................................................................................. 30 8 INTRODUÇÃO A motivação deste trabalho é uma constante percepção das condições precárias de habitação no Brasil e o interesse em entender quais ações estão sendo tomadas pelo Estado em termos de políticas públicas para a resolução deste problema. O país sofre historicamente com um déficit habitacional muito elevado, iniciado com a aceleração desordenada da urbanização começada nos anos 1950, e que só começou a ser olhada com mais atenção a partir do governo militar em 1964, com as primeiras políticas habitacionais mais estruturadas, as quais, no entanto, não cumpriram seus objetivos. As políticas habitacionais, durante a Nova República, sofreram com um hiato de praticamente duas décadas, elevando o déficit, atingindo, de acordo com os dados da Fundação João Pinheiro (FJP), de 2005, 8,4% dos domicílios brasileiros, o qual se concentra nas camadas mais baixas e perpetua a situação de desigualdade social vista nas áreas urbanas. Para combater esta questão já foram aplicadas diversas políticas nacionais de habitação (PNHs), mas nenhuma com a dimensão e alcance pretendidos pelo Minha Casa, Minha Vida (MCMV) em 2009, num contexto de crise econômica global e desaceleração do crescimento do país. O objeto de estudo desta monografia será o MCMV, pois, no contexto ao ser implementado, de elevado déficit habitacional brasileiro e crise das subprimes, torna-se importante a discussão em relação à maneira com que tal política pública foi estruturada e executada e se contribuiu para amenizar satisfatoriamente o déficit que afligia a população ou se foi focado em ser um instrumento econômico anticíclico. Tem-se por objetivo avaliar a real eficácia do programa, fazendo uma comparação dos resultados deste, entendendo empiricamente se o foco maior estava no impacto econômico ou no social do país. A metodologia utilizada é composta de dados da FJP, a qual fornece os dados oficiais ao Ministério das Cidades para implementação e análise das políticas nacionais de habitação, com estudos baseados nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNADs) anuais e informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outra fonte importante será a tese de Doutorado de Edgar Candido do Carmo, escrita em 2006, a qual revisita as políticas habitacionais no período entre 1964 e 2002 e as estruturas de financiamento das políticas públicas nesta época. Além destas, há um valioso estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em conjunto com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias 9 (ABRAINC), a qual, além de entender a oferta de habitação por meio de financiamentos e a demanda devido ao déficit habitacional; avalia, com estudos econométricos, alguns pontos do desempenho do MCMV, com data de corte dos dados em 2017. Esta monografia se restringe a analisar o impacto do programa até o referido ano, para não incorrer em imprecisões informacionais e falta de dados advindos de fontes confiáveis. No primeiro capítulo, será analisado concisamente o histórico das PNHs introduzidas no Brasil desde 1964, buscando padrões de acertos e erros em tais políticas e como isto possivelmente afetou os moldes do programa MCMV. O foco da observação se dará na intervenção governamental para o financiamento de longo prazo deste setor e como isso afetou o país socioeconomicamente nestes anos. A seguir, irá entender-se o contexto socioeconômico brasileiro durante a Crise de 2008, o qual levou à adoção da PNH analisada, que possuía um dos maiores pesos dentre diversas medidas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A partir disso, será avaliada a situação do déficit habitacional antes da implementação desta política pública e a importância de reduzir tal problema; em seguida, entender como um aumento de gastos do governo no setor imobiliário seria importante para destravar os investimentos dos empresários do país num momento de recessão. Então, será feito um balanço do alcance do programa nos dois aspectos focais, o social e o econômico; considerando o peso concedido para cada aspecto tanto no desenho do MCMV e como isso impactou o resultado visto até 2017. Concluindo, serão avaliadas as soluções para o déficit de habitação com base no que foi analisado ao longo do trabalho. 10 CAPÍTULO I – HISTÓRICO DAS POLÍTICAS NACIONAIS DE HABITAÇÃO BRASILEIRAS DE 1964 A 2008 Inicialmente, é preciso entender quais são as motivações para se ter uma política nacional de habitação incentivada pelo Estado, de acordo com Santos: (1) A habitação é um bem que costuma custar até quatro vezes a renda anual do proprietário, então sua comercialização está altamente atrelada a esquemas de financiamento de longo prazo aos demandantes finais. (2) A habitação é uma necessidade básica do ser humano, de modo que toda família é uma demandante em potencial de um teto para viver. (3) A habitação responde por parcela significativa da atividade do setor de construção civil, que, por sua vez, responde por parcela significativa da geração de empregos e do PIB da economia. As características (1) e (3) fazem que os governos classicamente atuem na direção de disponibilizar recursos para o financiamento do setor, seja de modo direto (isto é, por meio da utilização de fundos públicos) e/ou indiretamente (por meio da legislação incidente sobre o mercado financeiro). Note-se que, nesse caso, trata-se de corrigir uma falha do mercado, levando-o a funcionar melhor ao gerar mais investimentos e, consequentemente, mais empregos na economia. Já as características (1) e (2) fazem que os governos classicamente também atuem na provisão de moradias destinadas às camadas menos favorecidas da população. Ao contrário da primeira forma de intervenção citada, nesse caso o governo não auxilia o mercado, mas o substitui, uma vez que atua em um segmento que não é atendido, mesmo que o mercado funcione com padrões satisfatórios de eficiência. Note-se, ainda, que essas formas de intervenção (seja para disponibilizar recursos de longo prazo, seja para atuar na área social) levam o governo federal classicamente a atuar de forma mais ativa do que os governos locais sobre a questão. (Santos, 1999, p. 8) 11 O foco das políticas públicas habitacionais no Brasil, pelos motivos acima explicitados, sempre foi em moradias para as camadas mais baixas, mas, conforme veremos neste capítulo, os métodos utilizados não as beneficiavam, de fato, no longo prazo. 1.1 Governo Militar A primeira grande política habitacional estruturada a ser implementada no Brasil foi a criação do Sistema Financeiro de Habitação (SFH),pelos militares logo após o golpe de 1964, juntamente com o Banco Nacional de Habitação (BNH), para financiar os projetos que viriam do SFH (Bonduki, 2008). Devido ao crescimento populacional muito acelerado em áreas urbanas, em um contexto econômico marcado por incertezas, devido às instabilidades políticas e aceleração inflacionária, os empresários não possuíam incentivos para investir em construção, por mais que houvesse uma forte demanda (Santos, 1999). Para resolver esta questão cada vez mais visível nas metrópoles, bem como garantir apoio popular necessário, o governo recém- empossado decidiu criar o SFH. (Carmo, 2006) O BNH funcionava financiando o SFH, por meio de captações voluntárias do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE), composto por cadernetas de poupança e letras imobiliárias; e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), uma poupança compulsória paga tanto pelo empregador quanto pelo empregado, a este último sendo opcional a contribuição. O banco era o garantidor da linha de crédito do SFH, em caso de um eventual descasamento entre as captações e inadimplência dos mutuários. Com estes recursos, o BNH se tornou na época o maior banco de financiamento imobiliário mundial (Oliveira, 2017). Havia dois tipos de financiamento concedido pelo BNH, por meio do SFH, dependendo de como os fundos eram captados. No caso do SBPE, eram financiadas construções a longo prazo para os empreendedores, os quais repassariam esta dívida ao consumidor final e teriam como lastro o imóvel financiado. Como era preciso ter uma alta previsibilidade do pagamento das dívidas, estes imóveis acabavam sendo vendidos principalmente para classes média e alta (Cardoso, 2003). 12 A principal consequência negativa do BNH foi exatamente aumentar a disparidade entre os extratos de renda. Quem recebia até 3 salários mínimos dificilmente conseguia um empréstimo, e quando conseguia, não era em condições adequadas para o pagamento, principalmente num cenário de arrocho salarial e correções constantes da dívida, devido à falta de inserção formal na economia (Oliveira, 2017). Era muito mais atrativo financiar as camadas mais altas, as quais podiam gerar um efeito multiplicador mais elevado, além de maiores condições de quitação dos empréstimos (Loureiro, Macário e Guerra, 2013). O segundo destino dos recursos do SFH era a construção de casas populares e cooperativas, utilizando os fundos do FGTS. Este financiamento se dava por meio das Companhias Estaduais de Habitação (COHABs), as quais contratavam empreiteiras e repassavam as casas preço de custo para os consumidores finais pagarem o financiamento; com grande foco nos extratos sociais mais baixos (Carmo, 2006). Os grandes limitantes deste sistema eram a dificuldade de arrecadação (FGTS depende do nível de emprego, enquanto a poupança, dos juros reais a serem pagos) e o grau de inadimplência dos mutuários. Para o sucesso da medida, era fundamental verificar a quem se estava concedendo estes empréstimos e qual porcentagem de sua renda seria comprometida por este pagamento mensal (o serviço de cobertura da dívida). Entretanto, do ponto de vista do empreendedor, por não possuir responsabilidade sobre a dívida uma vez vendido o imóvel, sua avaliação quanto a qualidade do comprador não era tão diligente: o governo pagava de forma adiantada o valor da construção e, a partir da venda, o ônus do empréstimo se tornaria inteiramente do estado, que, portanto, não é capaz de controlar quem eram seus devedores nem verificar ex ante sua nota de crédito (Carmo, 2006). O BNH ainda tinha como objetivo o desenvolvimento da indústria de construção civil no país (responsável por boa parte do nível de atividade e emprego no Brasil), além da política urbana nacional; portanto o governo havia grande parcela de influência no sistema. A responsabilidade do Estado na política habitacional era garantir que os mutuários pagassem em dia, e para isso, era necessário que os reajustes inflacionários dos financiamentos estivessem em linha com os reajustes de salário real efetivos na economia. Caso o reajuste salarial fosse menor que o inflacionário (correção monetária), haveria um aumento na inadimplência dos pagamentos, onerando e possivelmente quebrando os credores, neste caso o Estado (Santos, 1999). Esta meta de desenvolvimento industrial acabou por impactar 13 negativamente o resultado da política habitacional, pois, em detrimento de programas alternativos de reformas e iniciativas comunitárias de construção civil, todos recursos eram utilizados com construtoras, as quais não resolviam situações como as de moradores em áreas de risco (Oliveira, 2017). Mesmo quando não era o emprestador, ainda assim, seria de interesse do governo federal que se tivesse cuidado com o déficit nos reajustes, para que não diminuísse a confiança dos empresários na capacidade das famílias em honrar os pagamentos e assim diminuir a quantidade de empréstimos, aumentando o juros, consequentemente diminuindo o nível de atividade da construção civil, nível de empregos e diminuição de salários; o que levaria a um maior déficit no salário real, dificultando ainda mais a quitação de empréstimos, juntamente com o aumento do reajuste real dos empréstimos, novamente colocando em grande risco a solvência dos financiadores (Santos, 1999). Tudo isto contribuiu com o aumento da discrepância entre o acesso a casa própria para as classes medias e altas vis-à-vis a baixa e, de acordo com Carmo (2006), o período entre 1970 e 1974 foi marcado pelo financiamento de cinco vezes mais habitações para as duas primeiras classes supracitadas em relação a última. Durante a década de 1980, com a crescente aceleração da inflação brasileira, começou a haver um descasamento entre o reajuste das parcelas de financiamento e o reajuste de salário real, o que gerou um aumento elevado da porcentagem de inadimplentes no SFH (Santos, 1999). Considerando que ambos eram corrigidos abaixo da inflação, havia uma corrosão dos rendimentos dos investidores, diminuindo assim o incentivo a financiar construções. Nesta época havia diversas pressões populares contra o governo, também influenciadas pelo problema do déficit habitacional (Bonduki, 2008), que fizeram com que, em 1985, o Brasil tivesse um presidente civil depois de 21 anos, dando fim à ditadura e à diversas políticas públicas implementadas no período militar; dando início a chamada Nova República. Um dos pontos marcantes do começo da Nova República foi a extinção do Banco Nacional de Habitação em 1986, que foi incorporado à Caixa Econômica Federal (CEF), a 14 qual não possuía como base de existência resolver a questão habitacional brasileira; ficando esta em segundo plano (Cardoso, 2003). O BNH, juntamente com o SFH, perderam forças durante o movimento pelas Diretas, pois seu caráter financista estava muito atrelado à ditadura, e havia muitos apelos da sociedade civil para que o programa fosse remodelado, vindos tanto do Movimento dos Sem-Terra, os qual não obtinha acesso aos financiamentos, quanto do Movimento Nacional dos Mutuários, que não conseguia pagar suas parcelas do financiamento (Bonduki, 2008). Assim, é possível listar alguns pontos de aprendizado dos 22 anos de existência do BNH, o primeiro programa de fato estruturado em termos de política habitacional brasileira. O primeiro ponto diz respeito à centralização da política habitacional na União, o que permitiu esforços conjuntos com políticas econômicas de incentivo à indústria de modo geral, impactando no nível de emprego e renda da população; o que viria a ser repetido no MCMV futuramente. Esta centralização, no entanto, levou a uma financeirização da política pública, pois o foco dos recursos era movimentar a economia por meio de estímulos ao setor privado e, como não havia fiscalização (além de em muitos casos,haver corrupção e conluio entre governo e iniciativa privada (Carmo, 2006)), o BNH acabou por produzir casas principalmente para classes média e alta, devido a maior certeza de pagamento (pois não havia subsídios). Assim, não resolveu o problema social que o programa se propunha a resolver: eliminar o déficit habitacional no país. Como o objetivo principal da política era obter um gasto público elevado para gerar efeitos multiplicadores na economia, e não acabar com o problema habitacional per se, as alocações financeiras foram direcionadas ao favorecimento do primeiro aspecto em detrimento do segundo. De acordo com Carmo (2006), apenas 18% dos recursos do FGTS (fundo que deveria ser destinado aos mais carentes) foram destinados a famílias com até cinco salários mínimos durante a existência do BNH. Por outro lado, 50% destes recursos foram destinados ao mercado médio, de faixa de renda mais elevada; o que é uma quantia que pode ser considerada alta tendo em vista o objetivo do programa, ainda mais quando considerado que o valor gasto por unidade na faixa de renda mais baixa é consideravelmente menor. Para sustentar isso, Carmo (2006) afirma que: “65% dos beneficiários do sistema tinham renda de 15 até cinco salários mínimos, mas estes receberam apenas 20% do total dos recursos financeiros investidos”. Além desta questão, Bonduki (2008) levanta uma consequência importante do foco desenvolvimentista do programa: a falta de relevância que foi dada à infraestrutura das regiões onde se construiu os conjuntos habitacionais. Com a falta de malhas viárias e um número insuficiente de postos de saúde e escolas nas periferias escolhidas para as novas moradias, a situação de desigualdade social sofrida por quem havia sido atendido pelo BNH não houve grande melhoria, pois tais pessoas seguiram morando em condições precárias e mais afastadas dos centros urbanos com maior concentração de empregos, pela falta de desenvolvimento das comunidades locais. Mesmo com estes problemas observados, o resultado do BNH está longe de ser desprezível quantitativamente, sendo responsável por criar 4,5 milhões de unidades habitacionais, sendo 33% do total utilizados ao extrato mais baixo da sociedade (Cardoso, 2003). 1.2 Nova República Com a Nova República, muitas instituições federais e políticas públicas estavam desorganizadas, o que, somado aos efeitos cada vez mais latentes da hiperinflação que atingia o país no final da década de 1980, levou a um término das políticas habitacionais vigentes, as quais já sofriam com problemas de financiamento e críticas ao seu caráter regressivo (Bonduki, 2008). Foram concedidos muitos subsídios aos mutuários desde a volta da democracia, para atender a demandas populares. O descasamento entre ativo e passivo foi se tornando cada vez mais discrepante, formando um déficit de aproximadamente 30 bilhões de dólares entre os poupadores e os mutuários. Com os baixos valores das prestações pagas pelos tomadores não era possível nem pagar os poupadores e nem conceder novos empréstimos (Santos, 1999). Bonduki resume sucintamente, com uma visão institucional, a falta de importância dada às políticas habitacionais durante a redemocratização: 16 Entre a extinção do BNH, em 1986, e a criação do Ministério das Cidades, em 2003, o setor do governo federal responsável pela gestão da política habitacional esteve subordinado a sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, caracterizando descontinuidade e ausência de estratégia para enfrentar o problema. (Bonduki, 2008, pp. 74- 75) Após o fim do BNH, Carmo (2006) aponta que houve uma consequência flagrante: a fragmentação das responsabilidades das políticas habitacionais entre a CEF, herdeira da máquina burocrática do BNH; o Banco Central (Bacen), que regulava a oferta de crédito imobiliário; e o Conselho Curador do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, responsável pela cessão de financiamentos a pessoas físicas para adquirir uma moradia. Importante notar que a responsabilidade das políticas habitacionais recaiu sobre a CEF, a qual não tinha como objetivo principal atender às demandas sociais por habitação e nem possuía expertise nesta área, diferentemente do BNH, que construiu um arcabouço técnico e teórico ao longo de seus 20 anos de existência (Santos, 1999). Além disso, com a regulação do crédito imobiliário nas mãos do Bacen, mais especificamente do Conselho Monetário Nacional, o crédito se tornou, fundamentalmente, um instrumento de política monetária em detrimento de cumprir seu papel social para resolver o déficit habitacional existente no país. Na virada para a década de 1990, durante os governos Sarney e Collor, houve uma descentralização do poder decisório das políticas públicas voltadas à habitação. Com isso, é preciso citar que tais políticas passaram a ser muito baseadas no clientelismo e tráfico de influência para a tomada de decisão da construção das moradias, com a diminuição do poder dos órgãos técnicos, capazes de entender as necessidades e peculiaridades de cada lugar, nas escolhas (Carmo, 2006). A entrada de Itamar Franco promoveu maior transparência e controle social dos agentes tanto estaduais quanto municipais, com contrapartidas financeiras; importante para reduzir o poder clientelista do poder público. Mas, como aponta Cardoso (2003), devido à contenção de gastos requerida pela implementação do Plano Real, dois projetos criados por Itamar, o Habitar-Brasil e o Morar-Município, não receberam os aportes necessários para obter o efeito que se esperava, já que eram financiados pelo Orçamento Geral da União 17 (OGU), restando apenas o Pró-Moradia, o qual utilizava financiamento do FGTS, que no entanto também se encontrava com recursos limitados. Devido a esta situação, Fernando Henrique Cardoso (FHC), ao assumir, altera de vez o foco do programa para as camadas de mais baixa renda, incentivando a participação dos estados e municípios juntamente com a iniciativa privada. O governo FHC reformou o sistema habitacional garantindo um respaldo técnico e mais fundamentado que anteriormente, buscando resolver os principais problemas detectados pelo governo como o esgotamento das fontes de recursos, a regressividade da política, e a insuficiência de abrangência, como aponta Santos (1999). O Habitar-Brasil e o Pró-Moradia despenderam 2 bilhões de dólares em financiamentos a outros entes federativos para que fosse feita uma melhora qualitativa nas moradias já existentes para a classe com uma renda de até 3 salários mínimos; o que era urgente (Santos, 1999). O primeiro era financiado pela União, enquanto o segundo pelo FGTS. Isto impactaria no resultado de ambos programas, pois o OGU financiava os projetos a fundo perdido, ou seja, sem esperanças de que esse capital um dia retornasse aos cofres públicos, enquanto o financiamento via FGTS precisava ser ressarcido para que não houvesse um déficit no fundo dos trabalhadores. Por este motivo, a aprovação de projetos do Pró- Moradia era bem mais rígida, o que em muitos lugares de baixíssima renda (onde mais se necessitava do programa) não era possível cumprir as exigências financeiras para que se realizassem os investimentos (Cardoso, 2003). Em contraponto, a falta de exigências do Habitar-Brasil também foi responsável pela má distribuição regional do programa, já que os recursos eram passiveis de práticas clientelistas do congresso nacional, responsável por aprovar o OGU, como explica Santos (1999). De acordo com Carmo (2006), um programa que foi muito mais efetivo neste período foi o Carta de Crédito – FGTS, que deixava com o cidadão o poder de escolha de como utilizar os fundos emprestados pelo governo diretamente. Por meio de empréstimo na CEF, para aquisição de imóveis tanto novos quanto usados e material de construção para reformas, tirou-se o poder das empresas de construçãode realizar os projetos, deixando que o demandante escolhesse a forma como o investimento seria feito, ao mesmo tempo que se direcionava a oferta de mercado a seguir estas escolhas, reduzindo a interferência direta do governo neste planejamento. Este projeto foi direcionado para famílias com até 12 salários 18 mínimos e era flexível quanto a famílias que tivessem rendas informais; dessa forma, pode-se considerá-lo inclusivo em termos da situação da população brasileira que não estivesse inserido no mercado formal. Além disso, o programa demonstrava preocupação com a saúde financeira dos mutuários ao permitir que apenas 30% da renda fosse destinada ao pagamento do empréstimo. De cunho semelhante ao Carta de Crédito, o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) foi focado no financiamento para classes mais baixas, de 3 a 6 salários mínimos, com um grau de subsídio maior que o Carta de Crédito, advindo tanto do FGTS quanto da União, permitindo parcelas menores, mais adequadas a situação das famílias de renda inferior (Cardoso, 2003). A principal diferença residia no fato que este programa, como alguns anteriores, focava no empréstimo às construtoras para que realizassem os projetos imobiliários. No início do governo Lula, existia um consenso quanto a situação das PNHs: havia muito a ser feito para resolver o problema habitacional mais grave, o déficit na camada entre 0 e 3 salários mínimos. Este ocorreu principalmente pela preocupação da CEF em não causar déficits no FGTS, priorizando empréstimos à classe média (Bonduki, 2008). Uma tentativa de solução se deu por meio da adoção de subsídios indiretos, mas esta medida não foi muito efetiva. Uma questão importante era a quantidade da oferta, devendo esta ser levada em consideração, pois caso fosse limitada, a tendência era que os mais pobres acabassem perdendo estas casas para camadas mais altas e voltassem a situações de moradias insalubres e irregulares. O problema recorrente que permeia a discussão em questão diz respeito à origem dos recursos para os subsídios. Por muito tempo foi feito uso do FGTS, mas este já apresentava um descasamento muito grande entre saques e contribuições, o que levava a uma maior cautela para a aprovação de novos investimentos de forma a garantir um retorno maior; consequentemente, restringiu-se seus efeitos sobre as classes mais baixas, que não eram capazes de oferecer rentabilidades elevadas comparáveis às demais classes. Para este caso, o que se mostrou mais promissor foi o investimento a fundo perdido vindo do OGU, com esperanças de gerar um efeito multiplicador no resto da economia e, portanto, uma maior receita tributária no médio e longo prazo. 19 Há de se ressaltar também o caráter positivo da liberdade garantida aos governos locais na definição da alocação de recursos para habitação, o que contribuiu com uma melhor gestão, menor clientelismo e maior conhecimento das especificidades da região. Entretanto, um aspecto negativo desta granularidade é que regiões mais pobres não possuem orçamento suficiente para financiar tais projetos, e, dessa forma, acaba por aumentar a disparidade vis-à- vis as mais ricas; nestes casos a União precisa intervir com alguma política de redistribuição de renda inter-regional para atender a toda população. Com o histórico de políticas habitacionais apresentado neste capítulo é possível traçar um padrão tanto dos desenhos dos programas, os quais tendem a privilegiar a iniciativa privada; quanto dos resultados, que tendem à regressividade. Destaca-se também o cenário de mais de 20 anos sem uma única política habitacional bem estruturada visando reduzir o déficit, o que viria a influenciar, juntamente com a manutenção dos desenhos utilizados desde 1964, o programa Minha Casa, Minha Vida, a ser apresentado no próximo capítulo, buscando entender o contexto tanto social quanto econômico que o originou. 20 CAPÍTULO II – CONTEXTO SOCIOECONÔMICO PRÉVIO AO MCMV 2.1 Contexto social do MCMV, o problema histórico do déficit habitacional As experiências históricas analisadas, de 1964 a 2008, comprovaram que a melhor configuração de solução deveria estar pautada na descentralização das políticas em benefício dos estados e municípios, com recursos federais (Buonfiglio, 2018); o que culminou no surgimento do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), com cada vez mais autonomia aos entes federativos. O sistema usava recursos de um fundo específico para este propósito, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), sustentado pelo OGU, para não incorrer em problemas de falta de recursos, já que estes são concedidos a fundo perdido. No entanto, com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento e, mais especificamente, do MCMV, a parcela orçamentaria destinada ao FNHIS foi sendo realocada para o PAC. Conforme Buonfiglio, (2018); o estudo do déficit habitacional no Brasil convergiu para uma metodologia única, realizada pela Fundação Joao Pinheiro e utilizada pelo Ministério das Cidades, a qual demonstra que o déficit qualitativo é o principal tipo de déficit no país, ou seja, imóveis com inadequações que impossibilitam condições básicas de moradia, como fundação irregular e ausência de saneamento adequado são um problema maior que a falta de habitações em si, o que causa uma superlotação de propriedades, às vezes por mais de uma família; e também um aluguel excessivo, devido à falta de oferta (FJP, 2006). Além disso, há uma preocupação com as regiões onde estes imóveis costumam estar localizados: normalmente em favelas, conjuntos habitacionais e outros tipos de assentamentos tidos como precários, sem serviços públicos decentes e com moradores de baixa renda, os quais não dispõem de outras opções a não ser morar nestas situações de risco; esta concentração facilita uma ação coordenada da política pública em lugares específicos, de acordo com estudos da FJP (2006). Esses fatores inferem diretamente na qualidade de vida da população mais baixa, contribuindo para agravar cada vez mais a desigualdade social brasileira; tanto pelas questões sociais de estigmas e preconceitos sofridos por moradores de áreas carentes, tanto quanto pelo lado financeiro, já que um imóvel costuma ser uma das posses mais caras a que se tem acesso, independentemente do nível de renda (Buonfiglio, 2018). 21 Na Tabela 1 é possível ver detalhadamente os critérios mais recentes utilizados pela PNAD e pela FJP para definição de um imóvel não próprio para se habitar, os quais compõem o déficit habitacional brasileiro. Com esta quantificação mais aprofundada das variáveis se torna mais palpável para o governo saber o que deve ser feito para resolver o problema em questão em termos de políticas públicas específicas a serem usadas em cada estado e município. Os componentes, segundo a metodologia da FJP, são agrupados em quatro grandes categorias, a de Habitações Precárias, composta de domicílios rústicos e os improvisados; a de Coabitação Familiar, com as famílias que vivem em apenas um cômodo (exceto se cedido pelo empregador) e das famílias que moram com outras na mesma residência; o Ônus Excessivo de Aluguel, que consiste nas famílias que despendem mais de 30% de sua renda mensal com o aluguel; e o Adensamento de Excessivo de Moradores em Domicílios Alugados, no qual mais de três pessoas moram num mesmo dormitório por imóvel. Tabela 1 – Componentes do déficit habitacional Fonte: FJP, 2016, p. 25 22 O déficit habitacional começou a se tornar um problema latente durante a industrialização do país na década de 1950 com a migração dos trabalhadores rurais para a cidade (Ramos e Noia, 2016). Dada a falta de capacidade das áreas urbanas e seu alto custo, criaram-se habitações improvisadas, surgindo uma profusão de favelas e cortiços, com condições muito insalubres e danosas a saúde.Além disso, as instalações se davam em regiões não adequadas que, somadas à construção irregular, contribuíam para a intensificação de riscos estruturais, tais como o deslizamento. Este processo de urbanização se deu de maneira muito acelerada, saltando de 31,24% em 1940 para 44,67% em 1960, 67,59% em 1980, só reduzindo a velocidade do crescimento ao atingir a casa de 80% nos anos 2000, uma quantia praticamente dobrada em 50 anos. (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, 2020). A urbanização acelerada, apresentada no Gráfico 1, é, portanto, um dos principais causadores do déficit, o qual o Estado não consegue administrar em sua totalidade até hoje, pois a demanda cresceu significativamente mais que a oferta, principalmente nas zonas urbanas, onde se concentrava 81% do déficit em 2005 (FJP, 2006). Gráfico 1 – Composição da população brasileira por situação domiciliar, entre 1960 e 2010 Fonte: Séries Históricas do IBGE (2020). Elaboração própria 23 Juntamente com uma falta de assistência governamental para quem era forçado a deixar o campo em busca de emprego e melhora de vida na cidade, o rápido processo de urbanização foi, portanto, a base do déficit habitacional brasileiro, o qual cresceu de 3,6 milhões de moradias em 1950, desconsiderando cortiços e favelas, que já eram frequentes naquela época; para 6,5 milhões na década de 1980. Esta relação desigual sempre foi mais presente nos grandes centros urbanos, principalmente Sudeste e Nordeste, concentrado na camada de renda de 1 a 3 salários mínimos (Castro, 2006). O déficit chegou a aproximadamente 8 milhões no início do século 21 (FJP, 2006), o que, levando em conta o crescimento demográfico, pode ser considerado um número estável por força das políticas públicas praticadas no período, ainda que estas não tenham obtido o sucesso pleiteado. O crescimento populacional no país é apontado como uma das causas que impediram a eficácia dos programas anteriores e, dessa forma, para sanar o problema do déficit habitacional, é preciso tratar, além da falta de moradia já existente, das moradias novas; caso contrário, não se diminuirá sua quantidade real, ainda mais quando considerado que a formação de novas famílias normalmente se dá na faixa mais prejudicada pelo déficit, de até 3 salários (Buonfiglio, 2018). Conforme mencionado anteriormente, uma casa é um bem de valor elevado, então, a não ser que haja uma intervenção estatal, estas novas famílias possuem grandes chances de seguir em condições precárias. O financiamento governamental visando novas construções não obteve elevado sucesso em reduzir o déficit onde é mais grave, no estrato mais baixo de renda, como visto anteriormente. É interessante notar que 90,3% do déficit estava na camada de até 3 salários mínimos em 2005, um pouco antes da implementação do MCMV, de acordo com a FJP (2006), no Gráfico 2. Gráfico 2 – Déficit Habitacional por camada de renda em 2006 24 Fonte: Fundação João Pinheiro, 2006. Elaboração própria Para se formular uma política pública, é necessário compreender além de onde (zonas urbanas) e quem (população de até 3 salários mínimos), qual o principal problema a ser resolvido, e, no caso do déficit habitacional, pode-se observar a partir do Gráfico 3 que a maior parte diz respeito a coabitações familiares (quando mais de uma família habita a mesma casa) por não conseguirem bancar uma moradia própria, conforme definição mais recente da FJP (2015). Gráfico 3 – Componentes do déficit habitacional em 2005 Fonte: FJP, 2006, p. 42 25 Com isso, percebe-se a necessidade de construção de novas casas, que veio a ser o foco do programa em questão. O que não seria, obrigatoriamente, o caso para os outros dois componentes: caso a maior incidência fosse de habitações precárias, uma possível solução seria a realização de reformas nestas e, caso fosse um ônus com aluguel excessivo, subsídios à moradia. 2.2 Contexto econômico do MCMV, o gerador de empregos pós crise de 2008 Nos anos que precederam a implementação do MCMV, o Brasil experienciou um grande aumento de IPO das empresas na bolsa de valores, sendo as construtoras e incorporadoras responsáveis por um quinto deste número (BMF&BOVESPA, 2020). Com esta financeirização habitacional e consequente aumento de capital, houve um crescimento na concentração de propriedades junto à estas imobiliárias e, após a crise internacional das subprimes, um aumento da capacidade ociosa, a qual não tinha mais demanda (Loureiro, Macário e Guerra, 2013). Para auxiliar tanto a oferta, que estava com um capital investido imobilizado, quanto a demanda da população que não possuía recursos para comprar tais imóveis e estava receosa em comprometer seu capital devido às incertezas do futuro, o governo identificou a necessidade de realizar investimentos públicos para gerar maior confiança dos agentes do mercado e incentivar a economia; daí a ideia de se lançar um programa de habitação que gerasse demanda para a oferta acumulada, durante os anos anteriores (Buonfiglio, 2018). Este incremento na demanda se deu principalmente por dois meios: subsídios e financiamentos diretos aos compradores e através da geração de empregos na construção civil, responsável por impactar de maneira significativa o PIB brasileiro. Há movimentos diretos e indiretos em todo o setor industrial relevante, com o aumento da produção de matérias-primas para a construção e com um aumento do emprego da mão-de-obra em toda cadeia; aumentando assim o consumo das famílias, as quais estavam lutando contra o desemprego causado pela crise internacional (Ramos e Noia, 2016). Em 2007, o macrossetor de construção civil (quando se leva em consideração também os fornecedores de matérias-primas e equipamentos) teve participação de 11,3% no PIB, e de 5,2% quando se restringe a edificações e construções. Isso significou, em 2008, 8,2 milhões de postos de trabalho diretos, sendo que para cada emprego criado na construção civil, 3 26 empregos são criados na economia como um todo. Além disso, seu impacto é o mais significativo na formação bruta de capital fixo, em torno de 64% do total em 2004 (Shimizu, 2010). A força deste macrossetor está demonstrada no Gráfico 4, com um crescimento superior ao do PIB Total em três dos anos de boom brasileiro nos anos 2000. Gráfico 4 - Taxa de Crescimento do PIB Total e da Construção Civil, entre 2004 e 2008 Fonte: Shimizu, 2010, p. 7 O setor de construção civil apresenta peculiaridades: exige-se um baixo nível técnico para emprego e existe uma alta correlação entre o estímulo do governo e a resposta do setor, seja por meio de licitações, concessões ou subsídios diretos (Rolnik et al., 2015). Isso faz a indústria seja uma ótima solução para movimentar a economia num momento de incerteza dos agentes privados, os quais preferiam investir nos títulos públicos brasileiros que apresentavam taxas muito acima do mercado ao investir na economia real, tirando assim boa parte dos empregos da população de baixa renda, que é exatamente a que será mais afetada por estímulos à construção civil a partir da criação de novas moradias (Carvalho, 2019). Consequentemente, esta população, que tem uma maior propensão marginal ao consumo, estimula outros setores da economia a se desenvolverem, destravando investimentos também nestes. 27 Historicamente países em desenvolvimento são atrasados em termos de infraestrutura e têm dificuldade para que o setor imobiliário acompanhe o crescimento populacional sem causar grandes disparidades (Buonfiglio, 2018). Os investimentos em construção civil são fortes geradores de emprego, por não necessitarem de mão-de-obra muito qualificada, empregando assim as camadas de mais baixa renda. Num contexto de crise econômica internacional, no qual se precisava de um estímulo governamental para liderar os investimentosprivados na economia, era de suma importância que o governo fizesse políticas públicas de geração de emprego, garantindo assim um nível de consumo das famílias e um posterior investimento privado baseado nisso. Por isso, na criação do PAC, política anticíclica montada para frear os efeitos da crise mundial de 2008, se tornou de grande relevância o papel desempenhado pelo MCMV. Sem investimentos públicos, apenas com desonerações, poder-se-ia entrar num cenário de armadilha da liquidez, experimentado a partir do 2o governo Dilma, segundo Barbosa: A combinação de depreciação cambial, restrição de liquidez e queda da demanda por produtos de exportação brasileiros no momento de crise derrubou índices de confiança de empresários e consumidores, levando o país à forte desaceleração em 2009. Em resposta à crise, o governo brasileiro tomou medidas anticíclicas tais como: aumento da rede de proteção social, deu continuidade à política de a valorização do salário mínimo e de servidores, expandiu o investimento público, criou o programa Minha Casa Minha Vida. (Barbosa, 2015, p.31) 2.3 Estrutura do Programa Minha Casa, Minha Vida Este legado de políticas públicas habitacionais e o contexto socioeconômico em 2009 deu origem ao maior e mais estruturado programa de habitação brasileiro até hoje, criado com a meta de produzir um milhão de moradias entre o lançamento, em 2009, e 2011; com mais dois milhões de 2011 a 2014 (Rolnik et al., 2015). Para se compreender os efeitos do MCMV no país é necessário, primeiramente, entender como este foi desenhado. Como existe distinção estatística entre o déficit em áreas rurais e urbanas subdividiu- se o MCMV em dois programas menores, um voltado para a cidade, o Programa Nacional de 28 Habitação Urbana (PNHU) e um voltado para o campo, o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). O financiamento estatal se deu por meio do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), com aportes da OGU, para estímulos aos empresários; o MCMV Entidades, com dinheiro do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), voltado para organizações sem fins lucrativos; e a Oferta Pública de Recursos (OPR), destinada a operacionalizar projetos em municípios de até 50 mil pessoas, por meio de licitações (Buonfiglio, 2018). Estes financiamentos e/ou subsídios são definidos de acordo com a faixa de renda familiar, de acordo com o site da Caixa Econômica Federal (CEF, 2020): • Famílias com renda de até R$ 1.800,00: Faixa 1 - Financiamento de até 120 meses, com prestações mensais que variam de R$ 80,00 a R$ 270,00, conforme a renda bruta familiar. A garantia para o financiamento é o imóvel adquirido. Todos recursos são oriundos do FAR. • Famílias com renda de até R$ 2.600,00: Faixa 1,5: Pode-se adquirir um imóvel cujo empreendimento é financiado pela Caixa com taxas de juros de 5% ao ano e até 30 anos para pagar, com subsídios de no máximo 47,5 mil reais. A partir desta faixa os recursos federais são 90% financiados através do FGTS e o restante pelo FAR. • Famílias com renda de até R$ 4.000,00: Faixa 2: Subsídios de até R$ 29.000,00, com juros entre 6% e 7%. • Famílias com renda de até R$ 7.000,00: Faixa 3: Para famílias com renda bruta de até R$ 9.000,00, são oferecidas taxas de juros subsidiadas em relação ao mercado, com recursos advindos do FGTS. De acordo com Rolnik et al. (2015), a estrutura do programa foi pensada de maneira que fosse possível absorver todo estoque do setor imobiliário, alavancado nos anos anteriores à crise de 2008, em caráter anticíclico. Isto pode ser percebido com os incentivos às faixas 2 e 3, que conseguiam obter melhores linhas de crédito. O foco era uma inclusão pelo consumo, fazendo um casamento entre subsídios do governo às camadas mais pobres, as quais não seriam demandantes deste bem a priori, e incentivos ao setor privado para continuar produzindo. 29 Tal desenho colocou as construtoras como principais responsáveis pela escolha e proposição dos empreendimentos, e estes, consequentemente, eram construídos de maneira a maximizar a taxa de retorno dos investimentos. Portanto, esta priorização desde o início em estimular a indústria de construção em detrimento da redução do déficit habitacional, outra meta do programa, contribui para o entendimento quanto aos resultados que o MCMV viria a apresentar após sua implementação. Para exemplificar o caminho a ser percorrido pelos beneficiários e pelas empresas para obter o financiamento, é necessário inicialmente separar o processo entre produção por incorporadoras e construtoras, na Figura 1, do processo para entidades sem fins lucrativos, Figura 2. Figura 1 - Procedimentos adotados para a produção de unidades habitacionais urbanas por empresas incorporadoras e construtoras Fonte: Oliveira, 2017, p.25 Na Figura 2 é possível visualizar os procedimentos necessários a serem seguidos por entidades sem fins lucrativos para obter o financiamento da CEF. Também é explicado o caminho a ser percorrido pelo beneficiário que se enquadra no programa para adquirir uma casa própria. 30 Figura 2 - Procedimentos adotados para a produção de unidades habitacionais urbanas e rurais por entidades sem fins lucrativos Fonte: Oliveira, 2017, p.26 Adicionalmente, a Tabela 2 elucida a estrutura de financiamento utilizada no PAC para completar o entendimento quanto ao MCMV. Tabela 2 – PAC: Fontes de Recursos, Programas e Ações 31 Fonte: Buonfiglio (2015, p.85) Neste capítulo foi possível brevemente entender a importância do contexto socioeconômico a partir do qual o MCMV foi estruturado, com um foco na construção de novas casas para as camadas mais pobres em zonas urbanas, de acordo com os dados de déficit habitacional da época. Foi vista também a importância de uma ação governamental para liderar os investimentos na economia, com uma política de geração de empregos, estimulando um aumento do consumo das famílias e do investimento privado. Com estes fatores, entende-se mais claramente o desenho do programa, o qual está diretamente ligado aos resultados obtidos com a política, que serão analisados no capítulo a seguir. 32 CAPÍTULO III – RESULTADOS SOCIOECONÔMICOS DO MCMV O Minha Casa, Minha Vida, incorporando o aprendizado dos programas implementados anteriormente, tem como uma de suas principais metas sanar o déficit habitacional. É importante mencionarmos que durante o MCMV, em 2015 especificamente, o Brasil entrou na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual diz respeito ao direto à moradia como algo acessível a toda população, cumprindo alguns requerimentos mínimos como abastecimento de água, saneamento básico, coleta de lixo, ônus excessivo de aluguel, entre outros (Pereira et al, 2019). O atingimento da Agenda 2030 da ONU afeta diretamente tanto a qualidade de vida dos mais pobres quanto a imagem do país no exterior. Ao se comprometer com tal meta, outros atores globais esperam que sejam respeitadas; caso contrário, pode haver uma mídia negativa do Brasil que afete investimentos externos diretos, além de afastar alguns investidores institucionais devido à polêmicas e distanciamento das chamadas “boas práticas ambientais, sociais e de governança” nos investimentos, conhecidas por sua sigla em inglês ESG (Valor Investe, 2019). Este distanciamento impede que muitos fundos possam investir em determinado local, devido a regras que precisam cumprir na tomada de decisão da alocação de seu capital. Este é mais um motivo que reforça que se meça adequadamente qual o impacto do MCMV no Brasil e se estamos no caminho certo para atingir os objetivos assumidos junto à ONU. Além disso, a outra grande meta do programa era reaquecer a economia em um momento de recessão, a qual, inclusive, foi a mais relevante para a tomada de decisão de se iniciar o MCMV. Como descrito anteriormente,havia uma grande capacidade ociosa de empresas do setor de construção e um alto nível de desemprego, os quais precisavam ser devidamente estimulados pelo poder público para que o país não sofresse com os efeitos negativos da crise que afetava o resto do mundo; daí tal medida, além de seu caráter de política social, pode ser considerada uma política anticíclica. Neste capítulo, para se entender os efeitos reais do MCMV, este será avaliado empiricamente, em seus dois principais objetivos: primeiramente o de redução de déficit habitacional e, posteriormente, o de impactar positivamente direta e indiretamente a economia brasileira. 33 3.1 Desempenho Social A metodologia de aferição dos resultados sociais do MCMV utilizada será das PNADs realizadas previamente à implementação do programa comparada com as realizadas posteriormente. Esta base de dados fornecida pela PNAD é utilizada pela FJP e adotada oficialmente pelo Ministério das Cidades para compreensão da questão do déficit habitacional e para formulação de soluções voltadas a este tema. Vale ressaltar que, por conta do Censo Brasil, em 2010, não foi realizada a PNAD, portanto, todas as representações gráficas apresentadas na sequência deste trabalho desconsideram este ano. Inicialmente, é importante destacar a evolução, explicitada no Gráfico 5, de cada componente do déficit habitacional, constituído das variáveis da Tabela 1, e como cada um reagiu durante os anos de 2009 a 2017, compreendendo o ano de implementação da PNH analisada e os anos de sua estabilização, permitindo assim verificar o efeito desta política por componente. Gráfico 5 – Déficit Habitacional por Componente de 2009 a 2017 Fonte: Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC), Fundação Getúlio Vargas (FGV), (2018, p.52) Para a melhor compreensão do Gráfico 5, torna-se necessário reforçar a definição de coabitação familiar e ônus excessivo com aluguel, que possuíam a maior representatividade em 2017. Conforme Nota Técnica do IPEA (Lima Neto, Furtado e Krause, 2013), uma 34 coabitação familiar é definida por famílias que vivem em um só cômodo (não contando os cedidos pelo empregador) e das famílias que vivem em conjunto com outras e possuem clara intenção de se mudar para um domicilio, o qual não precise ser compartilhado. Já o ônus excessivo com aluguel, de acordo com a mesma Nota Técnica, é caracterizado quando um aluguel representar 30% ou mais do orçamento domiciliar, só sendo incluídas neste indicador as famílias com até três salários mínimos. Com isso, o movimento de fechamento desta curva gráfica representa a transição no estilo de moradia das famílias: muitas que não tinham condições de morar sozinhas o fizeram, devido à maior oferta de casas. No entanto, os preços praticados de aluguel se mostraram insustentáveis, principalmente a partir de 2013, com o fechamento da curva de ônus de aluguel, explicitando a falta de foco do programa nas classes mais baixa (ABRAINC e FGV, 2018). Há de se considerar que o crescimento populacional se manteve constante seguindo o padrão de formação de novas famílias nas camadas sociais mais baixas, de até 3 salários mínimos (ABRAINC e FGV, 2018), o que por si só dificulta o catching up da política habitacional, pois é necessário, além de solucionar o déficit já existente, aumentar a produção imobiliária para atender os novos demandantes. Aprofundando neste que se tornou o componente de maior peso no déficit habitacional brasileiro (FJP, 2015), a parcela mais significativa do ônus excessivo com aluguel ocorre principalmente nos grandes centros urbanos, mostrando que há uma especulação imobiliária e uma possível gentrificação. Deve-se manter em mente, para fins desta análise, que este indicador exclui famílias de mais de três salários mínimos, o que explica uma maior proporção alocada em regiões mais pobres, como pode ser percebido no Gráfico 6. Gráfico 6 – Crescimento anual médio da proporção da população urbana em domicílios com ônus excessivo de aluguel – Brasil e estados, entre 2011 e 2015 35 Fonte: PNAD séries históricas de 2011 a 2015 (apud ABRAINC e FGV, 2018) Como solução deste ônus, o governo poderia tanto buscar subsidiar os custos de aluguel das famílias de menores rendas, como acontece em países com uma tradição e histórico de Estado de Bem-Estar social estabelecido, que é o caso de Holanda e Inglaterra, ou poderia dar incentivos ao setor privado para que recuperem imóveis abandonados com intenção de reservar pelo menos parte das moradias para camadas mais baixas, em uma ação de maior estimulo ao mercado, como é feito nos Estados Unidos. Uma outra possibilidade, que com o tempo se torna inevitável, ao findar a oferta dentro dos centros urbanos, é priorizar uma melhora na infraestrutura de transportes, para que os novos moradores dos locais mais distantes dos postos de trabalho não sofram tanto prejuízo e passe a compensar ir morar nos arredores das cidades maiores. Para se checar se de fato há um caráter regressivo em na PNH associada ao MCMV, como houve em outras ao longo da história, é possível verificar no Gráfico 7 em quais faixas de renda incidem os maiores déficits. Gráfico 7 – Distribuição relativa do Déficit Habitacional por faixa de renda familiar em 2017 36 Fonte: ABRAINC e FGV (2018) Como esperava-se, somando as faixas de até 3 salários mínimos se tem 91,7% do déficit habitacional brasileiro em 2017, dado disponível mais atualizado após a implementação do MCMV; comprovando assim que este não foi muito benéfico para os mais carentes, já que a discrepância se manteve alta quando comparada a qualquer outra faixa de renda. A falta de melhora fica evidente ao comparar o Gráfico 7 com o Gráfico 2, que mostra a faixa mais baixa de renda com 90,33% do déficit habitacional do país em 2006, alguns anos antes do programa ter início, tendo inclusive um pequeno aumento na incidência de déficit nesta faixa. Há, porém, que se considerar dois pontos: o primeiro é metodológico, pois, como explicado, o ônus com aluguel só é medido para famílias com até três salários, o que pode acabar inflando esta faixa; e o outro é que as famílias, conforme aumentam suas receitas, tendem a procurar uma casa mais apropriada e, assim, torna-se necessário avaliar se houve melhora econômica no país, a qual permitisse um maior poder de compra das famílias que estivessem melhorando de vida, demonstrado pelos dados da FJP (2015) que mostram que quanto maior a faixa de renda, maior o percentual de adequação do domicilio – sendo 77,8% para famílias de até três salários e 89,2% quando a renda é acima de dez salários. Assim, é necessário analisar a evolução bruta do déficit e, para isso, apresenta-se o Gráfico 8 com início dois anos antes do MCMV e se estendendo até dez anos após seu lançamento, permitindo um bom espaço de tempo para implementação, validação e execução da política habitacional. 37 Gráfico 8 – Evolução do Déficit Habitacional bruto, entre 2007 e 2017 Fonte: ABRAINC e FGV (2018, p.11) Observa-se então que, no início do programa houve uma diminuição significativa do déficit, porém a partir de 2013, houve uma recuperação atingindo o mesmo patamar anterior com um crescimento praticamente ininterrupto desde então, alcançando 7% em apenas dez anos. Conectando os Gráficos 8 e 5, por consideraram dados contemporâneos, ambos apontam para a relevância que o ônus excessivo com aluguel possui na composição do déficit após o MCMV. Boa parte deste aumento se deve à crise fiscal começada em 2014, a qual paralisou o repasse de verbas do OGU para a Faixa 1 do MCMV, das famílias que possuem até três salários mínimos, que é subsidiada em até 90%. Devido a esta falta de verbas muitas obras ficaram inacabadas ou nem saíram do papel, afetando assim o andamento do programa como planejado anteriormente (Gazetado Povo, 2019). É também parte fundamental da política pública habitacional englobar as famílias que moram distantes dos grandes centros urbanos, não sendo estas incluídas no indicador de ônus com aluguel, mas sofrendo de forma indireta com este ônus uma vez que gastam um tempo excessivo para se locomover diariamente até o local de trabalho (ABRAINC e FGV, 2018). Para corrigir essa deficiência, seria necessária uma melhora na infraestrutura de transportes das principais cidades e um incentivo maior a criação de postos de trabalho em locais periféricos, estimulando a formação de centros secundários que possam se desenvolver ao redor de uma região satélite. Neste caso, seria importante uma atenção especial à uma valorização repentina dos preços da terra, para não afastar novamente a camada mais pobre para periferias destas periferias. 38 A questão do desenvolvimento nas áreas escolhidas para realização dos projetos é de suma importância, pois não é suficiente facilitar a aquisição de um imóvel próprio caso não seja em uma região que possua o mínimo de infraestrutura para receber um influxo populacional. Carvalho e Stephan (2016), realizaram um estudo focalizado na cidade de Viçosa, em Minas Gerais, na qual foram construídos, de 2011 a 2014, três conjuntos habitacionais do MCMV, para sanar o déficit habitacional que, em 2010, estava em 9% do total de domicílios, com 66% do déficit na faixa de até três salários mínimos e compostos em 46% de ônus excessivo de aluguel e 43% de situações de coabitação. Estes três conjuntos são exemplos de um dos modelos que havia sido debatido anteriormente: foram produzidos integralmente por empreiteiras, as quais ficaram encarregadas desde a escolha do terreno até a construção e venda das unidades habitacionais. Os conjuntos Benjamim José Cardoso (BJC) e César Santana Filho (CSF) estão bem próximos ao centro da cidade, porém em locais de difícil acesso, principalmente devido à falta de pavimentação adequada, impedindo ônibus de transitarem no bairro em períodos de chuva, e com falta de calçadas pavimentadas e iluminação pública, segregando espacialmente os moradores. Os serviços urbanos também são precários, não há escolas nem postos de saúde nas proximidades, e o único comércio local, na época do estudo, era um bar. Não há telefone público nem instalações de telefone fixo; além disso o serviço de telefone celular é fraco e irregular, isolando ainda mais os moradores. O transporte público é insuficiente para a demanda, a drenagem pluvial não escoa corretamente a água, causando mau cheiro em um dos conjuntos; e finalmente, o serviço de coleta de lixo nas novas habitações é de menor frequência que nas localidades anteriores. O problema da pavimentação se repete no terceiro conjunto habitacional, Floresta, com a diferença de ter melhores condições de acesso e infraestrutura na região, mesmo sendo mais distante do centro urbano (Carvalho e Stephan, 2016). Todas estas questões são demonstradas na Tabela 3, feita a partir de entrevistas dos autores com a população dos três conjuntos habitacionais construídos na cidade. 39 Tabela 3 - Comparação das condições de acesso, infraestrutura e moradia em relação ao bairro de origem dos moradores, segundo a percepção dos entrevistados (Viçosa, MG, 2014) Fonte: Carvalho e Stephan (2016, p. 302) Vê-se então que, por mais que seja extremamente necessária a construção de novas moradias, a qual melhorou em quase todos os casos a situação da moradia em si (na categoria Condições da moradia atual), estas não se bastam caso não haja uma política urbana de desenvolvimento regional que acompanhasse esta mudança (como visto nos outros três campos da pesquisa). Reitera-se que este caso não pode ser considerado como a situação 40 única e geral de todas cidades com MCMV, mas explicita as situações que ocorrem em um dos casos, e que são exemplos de diversas outras regiões (Carvalho e Stephan, 2016). Por fim, é importante destacar que, de acordo com a pesquisa da ABRAINC e FGV (2018), para zerar o déficit habitacional nacional seria preciso construir 1,2 milhão de moradias por ano; o que mostra a demanda reprimida que este setor possui, cabendo tanto ao mercado quanto ao governo que, conjuntamente, tomem ações para resolver esta questão. 3.2 Desempenho Econômico O principal motivador da política pública habitacional aqui examinada foi a crise de 2008 e uma possível recessão que poderia atingir o Brasil. Com isso, foi necessário prover um estimulo anticíclico à economia; e o setor da construção civil foi visto como o mais propício para este objetivo, já que, como mencionado anteriormente, há um impacto multiplicador elevado no setor, pois no lado da oferta passa a aquecer outros setores, como de aço e de cimento, e pela demanda a mão-de-obra, com baixa qualificação que durante crises fica desempregada, voltará a consumir mais bens e serviços de maneira geral (Barbosa, 2015). Torna-se necessário, portanto, verificar se os objetivos econômicos da medida foram devidamente alcançados. Para isso, serão avaliados os impactos tanto diretos quanto indiretos no nível de emprego, arrecadação fiscal, propensão a investir dos empresários, e finalmente do PIB. De acordo com estudo da ABRAINC em conjunto com a FGV (2018), até 2017 o MCMV havia pago por 5,3 milhões de unidades habitacionais a serem construídas, com investimentos de quase R$ 500 bilhões e aproximadamente R$ 150 bilhões em subsídios, dos quais foram geradores de cerca de R$ 200 bilhões em valor, correspondendo a 72% do produto interno bruto (PIB) do setor em 2017. Estes gastos foram diretamente responsáveis por 390 mil postos de trabalho ao ano, o que equivale a 13% do total neste setor entre 2009 e 2017. Ao incluir os postos de trabalho indiretamente impactados, sobem para 581 mil ao ano, e R$ 333 bilhões em valor adicionado. Esta quantia é maior que todo PIB da construção civil em 2017. No que diz respeito à arrecadação, no período analisado (2009-2017) a União recolheu R$ 106 bilhões somente com o setor; valor que aumenta significativamente ao considerar os 41 impactos diretos, para um montante de R$ 163 bilhões, sendo este valor superior aos R$ 150 bilhões em subsídios, demonstrando que houve um retorno social desta quantia. Adicionalmente, levando em conta o efeito renda destes investimentos, o nível de empregos aumentou para 2,4 milhões no total, ou cerca de 266 mil postos de trabalho criados ao ano; e a arrecadação para R$ 291 bilhões, o que equivale a 192% do total de subsídios concedidos no período. Cabe destacar o impacto que estes valores tiveram no estímulo aos investidores privados a tomar risco na economia real, o que não era comum no início de 2009, devido, principalmente, ao cenário de incertezas que permeava o mercado global, bem como as altas taxas de juros brasileiras que garantiam retornos suficientemente altos a um risco reduzido. (Carvalho, 2019). Com o governo liderando os investimentos e concedendo inúmeras desonerações fiscais e subsídios, os empresários recuperaram a confiança e retornaram ao nível de atividade de antes da crise, como observado no índice de emprego previsto mais alto para o MCMV vis-à-vis o mercado não estimulado pelo Estado, no Gráfico 9, que leva em consideração as perspectivas do mercado para o setor. Gráfico 9 – Índice de emprego previsto na construção de 2015 a 2018 (indicador dessazonalizado) Fonte: ABRAINC e FGV (2018, p.50) 42 Como se pode ver, os empresários que fazem parte de projetos com apoio governamental têm uma maior confiança em seus negócios em praticamente todos os períodos, e tal confiança aumenta o nível de empregos, consequentemente de salários da população como um todo. Além dos impactos diretos na criação de postos de trabalho, há também os indiretos, em outros setores que a construção gera ao aumentarseu nível de atividade, o qual necessita de uma previsibilidade para os empresários e investidores no ambiente de negócios do país para crescer. Idealmente o nível de produção caminha autonomamente após certo tempo de estímulo anticíclico do governo, com crescimento e estabilidade autorregulados, sem novos dispêndios fiscais. Quando se analisa o PIB brasileiro é claro o impacto positivo da PNH examinada neste trabalho. Em 2009, o PIB foi de 0,1% negativo; porém, o MCMV, juntamente com os investimentos de mercado imobiliário para classes média e alta e outros investimentos do PAC impulsionaram o setor de construção civil para uma alta de 7% no ano, adicionando 0,3 pontos no PIB de 2009, reduzindo consideravelmente o impacto da crise mundial no Brasil (ABRAINC e FGV 2018). De 2010 a 2013 o país cresceu com boas taxas de emprego e renda, levando a uma breve redução da importância e dos esforços destonados ao MCMV, mas, a partir de 2014, com a crise interna o programa foi novamente importante para a geração tanto de emprego quanto de renda nacionais (ABRAINC e FGV 2018). 3.3 Composição do Financiamento Para entender por completo os resultados do MCMV, é necessário avaliar um problema recorrente quando abordadas as diferentes experiências de políticas habitacionais implementadas: as fontes de recursos para financiamento dos projetos. Os subsídios, como explicitado na Tabela 2, são compostos por recursos advindos tanto do OGU quanto do FGTS, os quais são diretamente afetados pela arrecadação do governo e o nível de emprego formal da economia, respectivamente. Logo, sempre que há alguma oscilação negativa em qualquer um destes indicadores, há um impacto na capacidade de alocação de recursos da PNH. 43 Além dos subsídios na faixa 1 e estímulos fiscais nas outras faixas concedidos pelo governo, o sucesso do MCMV se deu também pela presença de crédito privado nos projetos de habitações populares (ABRAINC e FGV 2018), positivamente influenciados pela segurança de investir em conjunto com o governo, tornando o MCMV, como produto de investimento, seguro e rentável (Urbe.me, 2019). Um dos principais motivos desta modalidade ser tida como segura, de acordo com a plataforma de investimentos Urbe.me (2019), é que há uma demanda mínima requerida pelo governo para as unidades do projeto financiado, protegendo assim todos financiadores envolvidos, tanto o banco (e, consequentemente, o governo) que tem uma maior garantia que receberá de volta o valor emprestado, quanto a incorporadora e investidores que tem uma maior certeza quanto a velocidade da venda para o público final, melhorando a liquidez da oportunidade; isso se deve aos preços mais baixos oferecidos por unidade habitacional e facilidades dadas pelo governo para os compradores. Com isto, a rentabilidade dos investimentos em MCMV é bem previsível, com alta liquidez e garantias estatais que serão bem sucedidos. Além disso, a incorporadora precisa ter boa avaliação de crédito para receber o financiamento da CEF, o que tranquiliza os investidores. De acordo com a MMC Investimentos (2020), companhia do ramo de avaliação de crédito, um dos principais riscos é uma avaliação errônea sobre a demanda no lugar para a construção das unidades habitacionais em face ao custo para ser feito o projeto (pois é preciso ter a aprovação da CEF) com uma execução de qualidade da obra. Como não há muita diferenciação entre os projetos de empreiteira para empreiteira, por especificações exigidas pelo governo, a competição se torna mais voltada para localidade e qualidade da equipe participante do projeto. É possível observar o crescimento da tendência de investimentos imobiliários através dos dados de um estudo da ABRAINC com a FGV (2018), no Gráfico 10: 44 Gráfico 10 - Crédito Imobiliário como Proporção do PIB (%) Fonte: Bacen (apud. ABRAINC e FGV, 2018, p. 38) Este aumento pode ser explicado tanto pelo aquecimento do setor imobiliário quanto pela busca dos investidores por alternativas às taxas de juros em queda, fazendo com que tomem mais risco que nos títulos públicos, mas ainda assim buscando produtos de renda fixa e atrelados à lastros fortes, como imóveis. Tendo em vista o poder decrescente do financiamento público para a economia, por diversos cortes de gastos exigidos para o cumprimento do novo teto orçamentário (mais rígido), torna-se cada vez mais importante que a maior parte do funding imobiliário seja proveniente de fontes privadas, o que ainda é proporcionalmente baixo, como pode ser verificado a partir do Gráfico 11: Gráfico 11 - Composição do Financiamento Imobiliário segundo Fontes de Recursos 45 Fonte: Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (apud. ABRAINC e FGV, 2018, p. 36) Atualmente 80% dos recursos são provenientes do orçamento público, entre FGTS e o SBPE, atrelado às cadernetas de poupança para concessão de cartas de crédito imobiliário à população. Dessa forma, existe um espaço passível de ser englobado por fontes de financiamento privado, atreladas à benefícios fiscais e subsídios que o governo pode conceder para que sejam mais eficientes e rentáveis que investimentos na poupança e que sustentar o descasamento entre uma diminuição de tamanho do FGTS, devido à uma diminuição no emprego formal, e um aumento de demanda por financiamento, por um crescimento demográfico natural. 3.4 Priorização do econômico vis-à-vis o social no Minha Casa, Minha Vida? Após analisar-se o porquê e como o MCMV foi planejado e seus resultados, torna-se importante entender a magnitude de seu impacto considerando os dados examinados ao longo do texto. O resultado estatístico apresentado aponta para uma melhora significativa da economia brasileira advinda do programa estudado, enquanto o déficit habitacional, teoricamente o objeto-fim da PNH, não obteve significativas alterações. Por isso, é necessário rever qual era de fato a finalidade do programa e se houve uma sobreposição da melhora econômica em detrimento da diminuição do déficit. Como aponta pesquisa do IPEA (Krause, Balbim e Neto, 2013), o déficit foi tratado de maneira homogênea em todas regiões do país, sem contar com as peculiaridades regionais de cada parte de um país de dimensões continentais. O modus operandi do programa foi voltado exclusivamente para a construção de novas UHs, e somente liderado por empreiteiras, sem ação de organizações sociais e do poder público. Isto ao mesmo tempo que permitia um maior desenvolvimento econômico, impedia um olhar mais específico para a situação de cada região e a reforma de UHs já existentes, uma vez que estas não eram priorizadas dada sua baixa rentabilidade. O fato de a produção estar totalmente nas mãos das empreiteiras causou problemas quanto ao fato de que estas buscam minimizar os custos do projeto, aproveitando-se do 46 espaço que a CEF permite para que, por exemplo, sejam construídas propriedades em locais mais afastados das capitais, mas ainda assim dentro das Regiões Metropolitanas, o que já atendia as condições do programa, mas não necessariamente sendo positivo para a população, a qual só tem estas opções caso queira uma casa própria financiada pelo Estado (Krause, Balbim e Neto, 2013) e não necessariamente acompanhados de políticas urbanas nas regiões das novas moradias, como visto no caso de Viçosa (Carvalho e Stephan, 2016). Tivesse o governo uma preocupação maior com o déficit, teria uma regulamentação mais precisa quanto à concessão de financiamento nos termos que mais beneficiassem a comunidade local. Este problema é consequência de uma tentativa de tratar uma questão muito complexa e com muitas particularidades com uma solução simplista e generalista; não se atentando para a situação própria de cada região do Brasil ao não envolver a fundo os poderes locais, de acordo com Loureiro, Macário e Guerra
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