Buscar

A Teoria das Necessidades nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx

Prévia do material em texto

4º colóquio marx e engels 
 
 1
A TEORIA DAS NECESSIDADES 
NOS MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS DE MARX 
 
Paulo Denisar Fraga1 
1. Introdução 
Este texto visa expor, de forma sumária e esquemática, um projeto de estudo sobre a 
questão das necessidades2 no pensamento de Karl Marx - particularmente no que concerne 
aos Manuscritos econômico-filosóficos. Para tanto, optou-se por uma incursão que intenta 
mostrar a relação decisiva que o tema das necessidades mantém com outros, universalmente 
reconhecidos como fundamentais nesta obra de Marx. No caso, a primeira crítica da economia 
política, a teoria da alienação, a crítica à propriedade privada e ao comunismo primitivo. 
 
2. Necessidades e primeira crítica da economia política 
 As necessidades, tema caro aos economistas, figuram em certos trechos dos extratos 
que Marx transcreve nos “Cadernos”. Em particular, os de Wilhelm Schulz, Eugène Buret, 
Constantin Pecqueur e Adam Smith. Mas logo nas primeiras páginas sobre o “Salário”, 
enquanto cita Schulz - que inclusive observa que o homem não pode permanecer escravo das 
 
1 Mestrando em Filosofia no IFCH/Unicamp. Professor do Departamento de Filosofia e Psicologia da Unijuí, 
RS. 
2 É indispensável sublinhar que neste texto a expressão necessidades designa carecimento, carência, no sentido 
da falta de algo; e não necessitarismo, no sentido de determinismo. Assim, fala-se de necessidades em Marx na 
acepção do termo alemão Bedürfnis e não no de Notwendigkeit. A propósito, Lima Vaz, que verte 
preferencialmente Bedürfnis por necessidades, observa: “O termo ‘necessidade’ é uma tradução insatisfatória 
para Bedürfnis, needs, besoins, bisogni. Alguns autores propõem ‘carências’ ou ‘carecimentos’.” (LIMA VAZ, 
H. C. de. Antropologia filosófica I, São Paulo: Loyola, 1985, p. 150, nota 86). É o caso de Giannotti, cuja nota a 
respeito é esclarecedora do contraste entre os dois termos alemães: “Evitamos ao máximo traduzir Bedürfnis por 
necessidade, para não confundir com Notwendigkeit, a necessidade resultante da obediência a uma lei. 
Preferimos em geral carecimento em lugar de carência, a fim de indicar o aspecto ativo do impulso.” 
(GIANNOTTI, J. A. Origens da dialética do trabalho: estudo sobre a lógica do jovem Marx. Porto Alegre: 
L&PM, 1985, p. 53, nota 52). Por igual motivo, Carlos Nelson Coutinho traduz o correlato italiano bisogno 
também por carecimento, mas o considera um “feio neologismo”, pois reconhece que o termo necessidade “seria 
mais corrente” (COUTINHO, C. N. Apresentação. In: HELLER, Á. Para mudar a vida. São Paulo: Brasiliense, 
1982, p. 7, nota 1). Para evitar imprecisões, aqui usar-se-á em texto próprio sempre a expressão necessidade(s) - 
no sentido distintivo que acima foi-lhe atribuído. As expressões carecimentos ou carências somente serão 
usadas em fidelidade a determinadas traduções. 
4º colóquio marx e engels 
 
 2
necessidades corpóreas, pois precisa de tempo para criar e fruir espiritualmente3 -, Marx 
interpõe de forma clara e direta: “Mas, a economia nacional conhece o operário apenas como 
animal de trabalho, como uma rês reduzida às mais estritas necessidades corporais.”4 A 
propósito, Marx já havia dito que a economia política vê o trabalho só como uma atividade 
ganha-pão5, que visa meramente satisfazer necessidades de sobrevivência dos operários. “A 
taxa mais baixa e a unicamente necessária para o salário é a subsistência do operário durante 
o trabalho, e mais o bastante para que ele possa alimentar uma família e para que a raça dos 
operários não se extinga. O salário habitual é, segundo Smith, o mais baixo que é compatível 
com a simple humanité, a saber com uma existência de animal.”6 A mesma idéia aparece no 
segundo manuscrito - agora mais explícita: “...para ela as necessidades do operário são apenas 
a necessidade de o manter durante o trabalho e na perspectiva de que a raça dos operários não 
se extinga.”7 
 Para Marx, a economia política constata, mas não dá conta. Pois de que o trabalho 
seja nocivo, funesto, passa-se sem que ela saiba dos seus desdobramentos. Numa censura 
dura, ele dispara: 
Compreende-se que a economia nacional considere apenas como operário o 
proletário, i. é, aquele que, sem capital nem renda fundiária, vive puramente do 
trabalho e de um trabalho abstrato, unilateral. Ela pode, por isso, estabelecer o 
princípio de que ele, tal como qualquer cavalo, tem de ganhar o bastante para poder 
trabalhar. Ela não o considera como homem no seu tempo livre de trabalho, antes 
deixa essa consideração para a justiça criminal, os médicos, a religião, as tabelas 
estatísticas, a política e o curador dos mendigos.8 
 
 
3 SCHULZ, W. apud MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Trad. Maria Antônia Pacheco. 
Lisboa: Avante!, 1993, p. 22. 
4 MARX, K. Ibidem. A versão portuguesa traduziu literalmente Nationalökonomie por economia nacional, 
termo corrente à época entre autores alemães, equivalente de political economy entre os ingleses e économie 
politique entre os franceses. Como é sabido, posteriormente Marx usará também economia política - politischen 
Ökonomie. (Cf. Idem. Ibidem, p. 10, nota *). 
5 Idem. Ibidem, p. 21. 
6 Idem. Ibidem, p. 13-14. 
7 Idem. Ibidem, p. 76. 
8 Idem. Ibidem, p. 20. 
4º colóquio marx e engels 
 
 3
 Essas passagens - dentre outras - presentes desde os começos da primeira parte dos 
“Cadernos”, mostram que Marx enceta sua crítica da economia política9 a partir de um 
problema “detectado” com as necessidades (que as afeta), qual seja, a sua desumanização 
pelas condições modernas do trabalho. Afinal, a comparação do homem com o animal é, em 
última instância, uma comparação no nível das necessidades de ambos - como se verá mais 
adiante - pois é justamente na sua multiplicidade (tanto subjetiva quanto de produção 
objetiva) que as necessidades humanas diferem o homem do animal. E, de modo análogo dá-
se quando Marx compara o empobrecimento do operário ao nível da máquina ao dizer que 
“Enquanto a divisão do trabalho eleva a força produtiva do trabalho, a riqueza e o 
refinamento da sociedade, ela empobrece o operário até [à condição] da máquina.”10 
 Aos olhos de Marx, portanto, trata-se em primeiro lugar de que a economia política é 
uma ciência da renúncia, do passar fome, do poupar. Uma ciência cujo ideal é o ávaro 
ascético, mas usurário e o escravo ascético, mas produtor. É o que resume, numa frase 
límpida: “A auto-renúncia, a renúncia à vida, a todas as necessidades humanas, é a sua tese 
principal.” 11 Pois para ele, a verdadeira e única necessidade produzida pela economia política 
é a necessidade de dinheiro,12 o qual não passa de perversor de todas as qualidades e 
necessidades humanas e naturais. Numa palavra: “Ele é o poder [Vermögen] desapossado da 
humanidade”13. E na medida em que a quantidade deste torna-se a qualidade exclusiva, reduz 
todo o ser à sua abstração (ao valor do dinheiro), isto é, a um ser quantitativo e sem valor. 
Assim, “ele |o economista nacional| faz do operário um ser insensível e sem necessidades.”14 
 Para além do disposto, vale anotar que Marx fundamenta sua crítica na teoria que a 
economia política tem sobre a população. “A falta de necessidades como princípio da 
 
9 Convém anotar que por crítica da economia política (ou melhor, nacional), Marx, a depender do contexto, pode 
referir-se tanto “à realidade do sistema econômico” quanto “às suas teorizações”. (Cf. Idem. Ibidem, p. 10, nota 
*). 
10 Idem. Ibidem, p. 19. 
11 Idem. Ibidem, p. 131. 
12 Cf. Idem. Ibidem, p. 129. 
13 Idem. Ibidem, p. 150. 
4º colóquio marx e engels 
 
 4
economia nacional mostra-se da maneira mais brilhante na sua teoria da população. Há gente 
a mais. |...| A produção do homem aparece como miséria pública.”15 
 De tais entendimentos desdobra-seem Marx a preocupação com o desenvolvimento 
do trabalho alienado, entendido insuficientemente pela economia política, que “apenas 
exprimiu as leis do trabalho alienado”16, permanecendo nos marcos da propriedade privada, 
dando a ela tudo e ao trabalho nada17. É o que lhe permitirá, no início do primeiro manuscrito, 
acusar as limitações da economia política na tese emblemática de que ela parte do fato da 
propriedade privada, mas não o explica. 
 Já que a economia política não explica a propriedade privada, Marx interessa-se em 
fazê-lo. E o faz desenvolvendo uma teoria do trabalho alienado. 
 
3. Necessidades e crítica do trabalho alienado 
 Em linhas gerais, o processo de alienação a que está submetido historicamente o 
trabalho humano é descrito nas seguintes formas: alienação do objeto produzido, alienação no 
ato da produção (ou da atividade humana), alienação do ser genérico do homem (como 
membro da espécie humana) e alienação da relação dos homens entre si. 
 A preocupação com as necessidades acompanha de muito perto a denúncia da 
alienação do trabalho feita por Marx. 
 Na primeira forma, Marx considera que “o objeto que o trabalho produz, o seu 
produto, enfrenta-o como um ser estranho[ein frendes Wesen], como um poder independente 
do produtor.” O que significa que o trabalhador não se apropria nem faz usufruto do objeto 
produzido. E, na medida em que o operário não é possuidor de sua produção, precisa vender-
se a si mesmo para sobreviver. Por isso Marx diz que o trabalho não produz só objetos como 
 
14 Idem. Ibidem. p. 131. 
15 Idem. Ibidem, p. 134. 
16 Idem. Ibidem, p. 72. 
17 Idem. Ibidem, p. 71. 
4º colóquio marx e engels 
 
 5
mercadorias, mas produz também o homem como uma mercadoria. Em tal relação estão 
implicadas as necessidades humanas, quando Marx escreve que “A objetivação aparece a tal 
ponto como perda do objeto que o operário é privado dos objetos mais necessários não só da 
vida como também dos objetos de trabalho.”18 Assim igualmente quando, após dizer que a 
natureza fornece os meios de vida tanto do trabalho como do homem, denuncia que o trabalho 
- mediador da relação do homem com a natureza -, na sua forma alienada, “cada vez mais 
deixa de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a subsistência física do operário.”19 
O que torna o operário um servo do trabalho para obter seus “meios de subsistência”, ou seja, 
para existir como operário e como sujeito físico. Mas o extremo desta escravidão vai além. 
Segundo Marx, chega ao ponto em que para subsistir como sujeito físico, precisa ser operário, 
e, sendo operário, não irá além da condição de sujeito físico. Isto é, o homem não desenvolve 
suas faculdades espirituais. É um ser, como Marx dirá adiante, insensível e sem 
necessidades.20 
 A segunda forma da alienação aparece na observação de Marx de que ela não se dá 
apenas no resultado da produção, mas também “no interior da própria atividade produtiva”, 
pois se o produto do trabalho é alienado do operário, significa que “a própria produção tem de 
ser o desapossamento ativo, o desapossamento da atividade, a atividade do 
desapossamento.”21 Em tal situação Marx afirma que o trabalho é exterior ao homem; não faz 
parte do seu ser, pois não trabalha para si e sim para outro. Nesta parte, o tema das 
necessidades é direto: o seu trabalho não é voluntário, é trabalho forçado; é de auto-sacrifício 
e mortificação. “Ele não é portanto a satisfação de uma necessidade, mas é apenas um meio 
para satisfazer necessidades exteriores à ele.” Afinal, como Marx refere, “a atividade do 
 
18 Idem. Ibidem, p. 62 - para as duas citações. 
19 Idem. Ibidem, p. 63. 
20 A propósito, sobre a mesma situação aludida, Marx diz no terceiro manuscrito: “Na medida em que ele |o 
capitalista| reduz a necessidade do operário ao mais necessário e lastimável sustento da vida física e a sua 
atividade ao movimento mecânico mais abstrato, |...| o homem não tem nenhuma outra necessidade, nem de 
atividade, nem de fruição; |...| ele faz do operário um ser insensível e sem necessidades...” (Idem. Ibidem, p. 
131). 
4º colóquio marx e engels 
 
 6
operário não é a sua auto-atividade”, pois ela pertence a outro e representa de tal modo a 
própria perda do operário. O estranhamento do operário frente a esta forma de atividade 
alienada, faz com que ele se sinta mal no trabalho, a ponto de, na ausência de coação, fugir 
dele como de uma peste. O operário passa então a sentir-se bem somente nas horas de folga e 
nas suas funções animais (comer, beber, procriar, habitar); e não em sua função genuinamente 
humana que é o trabalho. Tais funções também são do homem, segundo Marx. “Mas na 
abstração que as separa da restante esfera da atividade humana e delas faz objetivos finais 
exclusivos, elas são animais.” É o que Marx resume na famosa passagem de que “O animal se 
torna o humano e o humano o animal.”22 Ou seja, o homem não desenvolve nenhuma 
necessidade humana. 
 A terceira forma da alienação é deduzida por Marx das duas primeiras. O ser genérico 
é o ser que se objetiva no trabalho, um ser que é, nos termos de Marx, “universal e livre”. 
Primeiro, esta “universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de 
toda a natureza o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida 
imediato, como na medida em que ela é [2)] o objeto\matéria e o instrumento da sua atividade 
vital.”23 Segundo, “No modo de atividade vital reside todo o caráter de uma species, o seu 
caráter genérico e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem.”24 Para Marx, 
“O gerar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica, é a prova do 
homem como um ser genérico consciente, i. é, um ser que se comporta para com o gênero 
como sua própria essência ou para consigo como ser genérico.”25 Isso implica numa longa 
passagem em que a produção do homem como ser genérico é diferenciada da dos animais no 
nível das necessidades. Vale a pena transcrevê-la: 
 
 
21 Idem. Ibidem, p. 64. 
22 Idem. Ibidem, p. 65 - para as quatro citações. 
23 Idem. Ibidem, p. 66-67. 
24 Idem. Ibidem, p. 67. 
4º colóquio marx e engels 
 
 7
Decerto, o animal também produz. Constrói para si um ninho, habitações, como as 
abelhas, castores, formigas, etc. Contudo, produz apenas o que necessita 
imediatamente para si ou para a sua cria; produz apenas sob a dominação da 
necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade 
física e só produz verdadeiramente na liberdade da mesma; produz-se apenas a si 
próprio enquanto o homem reproduz a natureza toda; o seu produto pertence 
imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem enfrenta livremente o seu 
produto. O animal dá forma apenas segundo a medida e a necessidade da species a que 
pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de cada species e sabe 
aplicar em toda a parte a medida inerente ao objeto; por isso, o homem dá forma 
também segundo as leis da beleza.26 
 
 Porém, pela alienação do objeto, a relação do homem com a natureza tornou-se estéril, 
sem frutos, donde o homem acha-se dela apartado e, assim, extraviado da universalidade de 
seu ser. E, segundo, estando alienado de sua própria atividade não age livre nem a dirige 
conscientemente. Isto posto, “o trabalho alienado torna: 3) o ser genérico do homem tanto a 
natureza como a sua faculdade espiritual genérica num ser estranho a ele, num meio da sua 
existência individual. Ele aliena do homem o seu corpo próprio, bem como a naturezafora 
dele, bem como a sua essência espiritual, a sua essência humana.”27 Em outras palavras: a 
alienação não se reflete somente nas necessidades objetivas, mas também subjetivamente, no 
empobrecimento do espírito do homem. 
 A quarta forma da alienação é apontada por Marx como diretamente decorrente das 
três primeiras, já que, se o objeto produzido não pertence ao operário, e se este está alienado 
de sua atividade e de seu ser genérico, resta portanto que pertencem a outro ser. No caso, 
outro homem, o capitalista.28 O que implica em haver uma alienação na própria relação, isto 
é, na forma mesma da relação dos homens entre si. “Se a sua atividade |do operário| é para ele 
tormento, então deve ser fruição para um outro e alegria de viver de um outro.”29 Trata-se de 
uma relação desumanizada que, ao cabo de outra passagem de semelhante contorno, Marx diz 
 
25 Idem. Ibidem, p. 67-68. 
26 Idem. Ibidem, p. 68. 
27 Idem. Ibidem, p. 68-69. 
28 “A relação do operário com o trabalho gera a relação do capitalista - ou como se queira chamar ao senhor do 
trabalho - com este.” (Idem. Ibidem, p. 71). Mas trata-se da relação de um ser estranho ao trabalho - que não 
trabalha - e que, no entanto, o domina. 
29 Idem. Ibidem, p. 70. 
4º colóquio marx e engels 
 
 8
produzir espírito para o capitalista, mas idiotice e cretinismo para o operário.30 Ainda em 
outra parte do livro, descrevendo situação novamente similar, Marx observa: “Em parte, esta 
alienação mostra-se na medida em que produz, por um lado, o refinamento das necessidades e 
dos seus meios, por outro lado, o asselvajamento bestial, a completa simplicidade abstrata 
rude da necessidade; ou melhor, apenas se volta a engendrar no seu significado contrário.”31 
No interior desta relação, em si alienada, entre o capitalista e o operário, o homem é sempre 
meio e não fim. O homem não é uma necessidade positiva para o homem, mas apenas um 
meio para se explorar necessidades.32 Portanto, nesta quarta forma da alienação é também 
possível apontar a presença das necessidades em pano de fundo. Até porque, como Marx 
mesmo diz, esta forma é apenas “conseqüência imediata” das três demais.33 
 
 4. Necessidades e crítica da propriedade privada 
 Como consolidadora e universalizadora da alienação, a propriedade privada constitui-
se em alvo privilegiado do pensamento crítico de Marx. Tanto que do ponto de vista político, 
afirma com Engels no Manifesto que “os comunistas podem resumir sua teoria nessa única 
expressão: abolição (Aufhebung) da propriedade privada”34 e, do ponto de vista filosófico, 
recusa-a nos “Cadernos” numa assertiva de cunho ontológico: “a propriedade privada 
repousa sim sobre o ser dividido.”35 
 
30 Cf. Idem. Ibidem, p. 64. 
31 Idem. Ibidem, p. 131. 
32 Isto, com efeito, não vale somente para a relação entre o capitalista e o operário, mas para o vínculo geral dos 
homens entre si na sociedade alienada. 
33 Cf. Idem. Ibidem, p. 69. 
34 MARX, K., ENGELS, F. Manifesto do partido comunista, 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 80. 
35 MARX, K. Manuscritos..., p. 58. 
4º colóquio marx e engels 
 
 9
Nos Manuscritos, a questão da propriedade privada aparece em vários dos títulos 
dados pelos editores da MEGA às seções da obra36 - e está presente em toda a sua descrição 
crítica da alienação das necessidades na sociedade moderna, incluso, em certo grau, na feudal. 
Marx observa, já nos “Cadernos”, que a propriedade privada surge em geral com a 
propriedade fundiária feudal, a qual já é “a terra alienada do homem e enfrentando-o por isso 
na figura de alguns poucos grandes senhores.”37 No decurso histórico, porém, a indústria opõe 
e derroca as formas da propriedade medieval.38 É o que Marx sintetiza nas expressões que 
designam o movimento de “nenhuma terra sem senhor” para “o dinheiro não tem dono”.39 
De parte da propriedade móvel, do “milagre da indústria”, esta filha legítima e 
unigênita dos tempos modernos, a propriedade fundiária é vista como “um Dom Quixote que, 
sob a aparência da elevação e da honestidade, do interesse universal, da estabilidade, esconde 
a incapacidade de movimento, a procura gananciosa de fruição, o egoísmo, o interesse 
particular, a má intenção...” E declara-se como a única capaz de dar “ao povo, em vez de suas 
rudes necessidades as necessidades civilizadas e os meios para a sua satisfação, enquanto o 
proprietário fundiário |...| encareceria para o povo os primeiros meios de vida...”40 
As necessidades, então, aparecem na motivação da propriedade privada móvel. No 
entanto, a crítica de Marx evidencia que as intenções da propriedade privada moderna não 
passaram da retórica. Naquela transição, ao oposto, “a propriedade privada perdeu a sua 
qualidade natural e social (portanto perdeu todas as ilusões políticas e gregárias [geselligen] e 
não se mistura com quaisquer relações aparentemente humanas)”.41 
 
36 Na edição portuguesa, pelo menos, aparecem em número de cinco: “Trabalho alienado e propriedade 
privada”; “A relação da propriedade privada”; “Propriedade privada e trabalho”; “Propriedade privada e 
comunismo” e “Propriedade privada e necessidades”. (Cf. Idem. Ibidem). 
37 Idem. Ibidem, p. 55. Obs: a passagem citada, na edição portuguesa, é a primeira onde aparece o termo 
alienação nos Manuscritos... 
38 Este conflito é também nomeado como “propriedade privada móvel” versus “propriedade privada imóvel”. 
(Cf. Idem. Ibidem, p. 78). 
39 Cf. Idem. Ibidem, p. 57. 
40 Idem. Ibidem, p. 81 - para as duas citações. 
41 Idem. Ibidem, p. 77. Os aspectos românticos da propriedade fundiária são apresentados e discutidos por Marx 
na seção “Renda fundiária”, dos “Cadernos” (Cf. Idem. Ibidem, p. 55-57). 
4º colóquio marx e engels 
 
 10
Na verdade, o conjunto das relações determinadas pela “lei universal” da propriedade 
privada capitalista desabona-a completamente, pois, para Marx, malgrado aquela inclinação 
para com as necessidades, esta “escrava liberta da propriedade fundiária”42 também “não sabe 
tornar a necessidade rude numa necessidade humana”.43 Afinal, como asserta Marx, “a 
indústria assim como especula com o refinamento das necessidades, igualmente especula com 
a sua rudeza, mas sobre a sua rudeza artificialmente produzida, cuja verdadeira fruição é, por 
isso, o auto-atordoamento, essa satisfação aparente da necessidade, essa civilização no 
interior da barbárie rude da necessidade.” Ou seja, a propriedade privada moderna não só não 
sabe tornar humanas as rudes necessidades, como ainda a sua exigência feita sobre a 
propriedade feudal - a de necessidades civilizadas - evidencia-se presentemente, sob a sua 
regência, na forma de uma “civilização no interior da barbárie rude da necessidade.”44 
Mais do que isso. Se a rudeza das necessidades é “artificialmente produzida”, como 
diz Marx, significa que é gerada uma banalização da própria sensibilidade humana: “A 
propriedade privada fez-nos tão estúpidos e unilaterais que um objeto só é nosso se o 
tivermos, portanto se existir para nós como capital, ou se for imediatamente possuído, 
comido, bebido, trazido no corpo, habitado por nós, etc., em resumo, usado.” Ou, melhor 
dizendo, “Para o lugar de todos os sentidos físicos e espirituais entrou portanto a simples 
alienação de todos esses sentidos, o sentido do ter.”45 
Nestas anotações sobressai que a ira de Marx contra a propriedade privada alimenta-se 
do fato já apontado de que ela é a consolidadora e universalizadora do trabalho alienado, 
como também que este “poder histórico-mundial” - expressão de Marx - gera e repousa sobre 
o aniquilamento das necessidades humanas. A rigor, duas faces da mesma moeda.42 Cf. Idem. Ibidem, p. 89. Na verdade, Marx fala, no mesmo sentido, em “escravo liberto...” 
43 Idem. Ibidem, p. 129. 
44 Idem. Ibidem, p. 134. 
45 Idem. Ibidem, p. 96 - para as duas citações. 
4º colóquio marx e engels 
 
 11
5. Necessidades e crítica do comunismo primitivo 
Seguindo o rastro da propriedade privada (e de sua negação das necessidades), Marx 
chega à propositura do comunismo como o seu afrontamento indispensável e definitivo. Tanto 
que tece sua censura a outras teorias do comunismo basicamente a partir de duas idéias: não 
alcançam a superação da propriedade privada e, segundo, desconhecem o tratamento 
adequado do problema das necessidades. 
Grosso modo, ao comunismo rude46 - primeira tentativa de supressão da propriedade - 
a crítica de Marx encontra sua síntese no juízo de que “Quão pouco esta supressão da 
propriedade privada é uma apropriação real demonstra-o precisamente a negação abstrata de 
todo o mundo da cultura e da civilização; o regresso à simplicidade |IV| antinatural do 
homem pobre e desprovido de necessidades, que não ultrapassou a propriedade privada, nem 
sequer a ela chegou.”47 O que ratifica não só o vínculo entre propriedade privada e alienação 
das necessidades, como mostra que a crítica da não superação daquela se dá na perspectiva de 
uma preocupação com estas. 
No interior da crítica ao comunismo rude, uma das objeções de Marx dirige-se à 
pretensão daquele em substituir o casamento pela “comunidade de mulheres”, haja visto que a 
situação destas, que passariam à condição de uma “propriedade comunitária e comum”, não 
significa nada mais que uma “expressão conseqüente da propriedade privada”.48 Porém, da 
discussão encetada por Marx sobre as relações entre o homem e a mulher, não devém apenas 
a inferência da perduração da propriedade privada no horizonte teórico do comunismo rude. 
Devém também uma crítica na esfera das necessidades. Isto porque logo a seguir a relação 
homem-mulher aparece no texto de Marx como um critério para se ajuizar o grau de 
humanização das necessidades. Assim é que, numa passagem longa, aqui recortada pela sua 
 
46 Provavelmente a posição teórica dos discípulos de Babeuf, liderados por Buonarrotti, dos quais diz-se n’A 
sagrada família “os babouvistas eram materialistas toscos”. (Cf. VÁSQUEZ, A. S. apud FREDERICO, C. O 
jovem Marx: 1843-44: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995, p. 140, nota 28). 
47 MARX, K. Manuscritos..., p. 91. 
4º colóquio marx e engels 
 
 12
última frase, Marx diz: “Nesta relação mostra-se também até que ponto a necessidade do 
homem se tornou necessidade humana, portanto até que ponto para ele o outro homem como 
homem se tornou necessidade, até que ponto ele na sua existência mais individual é 
simultaneamente comunidade [Gemeinwesen].”49 
Ao comunismo “de natureza política, democrático ou despótico”50, Marx atribui a 
mesma crítica, a ponto de afirmar que “Em ambas as formas, o comunismo sabe-se como 
reintegração ou regresso do homem a si, como supressão da auto-alienação humana, mas, 
enquanto ele ainda não apreendeu a essência positiva da propriedade privada nem tampouco 
entendeu a natureza humana da necessidade, está também ainda preso e infectado pela 
mesma.”51 
Decorrência dessas críticas, resta que o comunismo exigido por Marx é aquele que 
tem como centro a derrocada da propriedade privada e, como conseqüência, a reafirmação das 
necessidades antes deformadas pela alienação. Nas palavras de Marx: “A supressão da 
propriedade privada é por isso a completa emancipação de todos os sentidos e qualidades 
humanas; mas ela é esta emancipação precisamente pelo fato destes sentidos e qualidades se 
terem tornado humanos, tanto subjetiva como objetivamente. O olho tornou-se olho humano, 
tal como o seu objeto se tornou um objeto social, humano, proveniente do homem para o 
homem.” Em Marx isso significa reverter a conversão, pela propriedade privada, de todos os 
sentidos e necessidades humanas degradados na forma do ter: “A necessidade ou a fruição 
perderam assim a sua natureza egoísta e a Natureza perdeu a sua mera utilidade na medida em 
que a utilização se tornou uma utilização humana.”52 
 
48 Cf. Idem. Ibidem, p. 90-91. 
49 Idem. Ibidem, p. 92. 
50 No comunismo democrático talvez Marx arrolasse o socialismo utópico de Cabet; no despótico, quiçá 
Blanqui. (Cf. VÁSQUEZ, A. S. apud FREDERICO, C. Op. cit., p. 141, nota 29). 
51 MARX, K. Manuscritos..., p. 92. 
52 Idem. Ibidem, p. 97 - para as duas citações. 
4º colóquio marx e engels 
 
 13
Se a propriedade privada engendra o aviltamento de todas as relações humanas, no 
qual as necessidades nada mais são do que fontes de poder onde “Cada um procura criar uma 
força essencial estranha sobre o outro, para aí encontrar a satisfação da sua própria 
necessidade interesseira”53, o comunismo nasce orientado por um imperativo inverso: o do 
enriquecimento das necessidades. O comunismo é a “sociedade devinda” que produz, como 
sua realidade permanente, o homem na “total riqueza da sua essência, o homem rico, 
profundo e dotado de todos os sentidos”.54 
No lugar do especulador mesquinho das necessidades de outrem, o homem rico é o 
homem da “necessidade humana rica”, “o homem necessitado de uma totalidade da 
exteriorização de vida humana. O homem, no qual a sua realização própria existe como 
necessidade interior, como carência.” Com efeito, “Ela [a carência] é o vínculo passivo, que 
faz sentir ao homem a maior riqueza, o outro homem, como necessidade.”55 Portanto, na 
contramão da avareza e dos interesses egoístas que norteiam a conduta do homem alienado, 
Marx propõe que a maior riqueza é o outro homem. 
Nos Manuscritos, toda a crítica de Marx ao conjunto das relações econômicas e 
sociais capitalistas, leva em consideração o problema das necessidades. A condenação, 
reprisada sob vários aspectos, do embrutecimento da sensibilidade e das necessidades 
humanas, deixa mais ou menos claro que o ideal do homem rico é a baliza da crítica de Marx 
à sociedade alienada.56 
[...] 
 
53 Idem. Ibidem, p. 129. 
54 Idem. Ibidem, p. 99. 
55 Idem. Ibidem, p. 101 - para as três citações. 
56 Esse aspecto é ressaltado por Ágnes Heller: “todo juízo |de Marx| com respeito às necessidades é medido 
sobre a base do valor positivo das ‘necessidades humanas ricas’.” (HELLER, Ágnes. Teoría de las necesidades 
en Marx. Barcelona: Península, 1978, p. 41). Também por István Mészáros: “Quando Marx fala da ‘riqueza 
interior’ do homem, em oposição à alienação, refere-se ao ‘rico ser humano’ e à ‘rica necessidade humana’. |...| 
Esse é o critério que deve ser aplicado à avaliação moral de toda relação humana e não há outro critério além 
dele.” (Cf. MÉSZÁROS, I. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 165). 
4º colóquio marx e engels 
 
 14
Em resumo, este é o mapeamento parcial, em largos e fragmentários traços, do tema 
de uma pesquisa em andamento.

Continue navegando