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Áureo Busetto Paulo Henrique Martinez Thiago Henrique Sampaio (Organizadores) ANAIS XXXIV Semana de História “Direitos e Democracia” 15 a 18 de outubro de 2018 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO Faculdade de Ciências e Letras de Assis Departamento de História Assis Unesp Campus de Assis 2019 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Júlio de Mesquita Filho (UNESP) REITOR: Sandro Roberto Valentini VICE-REITORA: Sergio Roberto Nobre FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS DIRETORA: Andréa Lúcia D. Oliveira Carvalho Rossi VICE-DIRETORA: Catia Inês Negrão Berlini de Andrade DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CHEFIA: Paulo Henrique Martinez VICE-CHEFIA: Áureo Busetto CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COORDENAÇÃO: André Figueiredo Rodrigues VICE-COORDENAÇÃO: Paulo Cesar Gonçalves PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COORDENAÇÃO: José Luiz Bendicho Beired VICE-COORDENAÇÃO: Carlos Alberto Sampaio Barbosa SECRETARIA DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ASSESSORA ADMINISTRATIVA: Clarice Gonçalves COORDENAÇÃO DA XXXIV SEMANA DE HISTÓRIA “DIREITOS E DEMOCRACIA” Prof. Dr. Áureo Busetto Prof. Dr. Paulo Henrique Martinez 3 COMISSÃO ORGANIZADORA Docentes Dr. André Figueiredo Rodrigues Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa Dr. Eduardo José Afonso Prof. Dr. José Luiz Bendicho Beired Dra. Lúcia Helena Oliveira Silva Dr. Paulo Cesar Gonçalves Discentes Ms. Thiago Henrique Sampaio COMISSÃO CIENTÍFICA Dr. André Figueiredo Rodrigues Dra. Andréa Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi Dr. Áureo Busetto Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa Dr. Carlos Eduardo Jordão Machado Dr. Eduardo José Afonso Prof. Dr. Hélio Rabello Cardoso Júnior Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha Prof. Prof. Dr. José Carlos Barreiro Prof. Dr. José Luís Bendicho Beired Dra. Lúcia Helena Oliveira Silva Dr. Paulo Cesar Gonçalves Prof. Dr. Paulo Henrique Martinez Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho Profa. Dra. Tania Regina de Luca Prof. Dr. Wilton Carlos Lima da Silva APOIO FAPESP FUNDUNESP Programa de Pós-Graduação de História – UNESP/Assis 4 Conselho Editorial Karin Adriane H. Pobbe Ramos (Presidente) Carlos Camargo Alberts (Vice-presidente) Álvaro Santos Simões Junior André Figueiredo Rodrigues Carlos Eduardo Mendes Moraes Danilo Saretta Veríssimo Gustavo Henrique Dionísio Lúcia Helena Oliveira Silva Maria Luiza Carpi Semeghini Paulo César Gonçalves Ronaldo Cardoso Alves Vânia Aparecida Marques Favato Secretário Paulo César de Moraes Conselho Consultivo Adilson Odair Citelli (USP) Antonio Castelo Filho (USP) Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP) Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN) João Ernesto de Carvalho (UNICAMP) José Luiz Fiorin (USP) Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP) Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN) Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ) Sandra Margarida Nitrini (USP) Temístocles Cézar (UFRGS) FICHA CATALOGRÁFICA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp Vania Aparecida Marques Favato S471d Semana de História (34.:2018:Assis, SP). Direitos e democracia [recurso eletrônico]: Assis, SP, 15 a 18 de outubro de 2018 / Áureo Busetto, Paulo Henrique Martinez e Thiago Henrique Sampaio (organizadores). Assis: UNESP - Campus de Assis, 2019. 583 p. : il. ISSN : 978-85-66060-16-4 Vários autores ISBN: 978-85-66060-32-4 1. História. 2. Democracia. I. Busetto, Áureo. II. Martinez, Paulo Henrique. III. Sampaio, Thiago Henrique. IV. Título. CDD 907.2 5 Sumário Apresentação 8 História e ficção na escrita de “A descoberta do Grande, Belo e Rico Império da Guiana”, de Walter Ralegh (1552-1618) Adriano Rodrigues de Oliveira 15 Entre texto e imagem: uma proposta de análise do livro Tableau de l’inconstance des mauvais anges et démons (1613) de Pierre de Lancre Alisson Guilherme Gonçalves Bella Angelita Marques Visalli 25 Nietzsche: A concepção de História na Segunda Consideração Intempestiva e sua relação com a Teoria da História Ana Carolina Oliveira 35 Racismo na escola: a construção da consciência histórica, ensino de história e representações sociais Andressa da Silva Oliveira 45 A Sociedade Central de Immigração e o incentivo ao pensamento científico Arthur Daltin Carrega 61 Discurso colonialista face ao movimento abolicionista na Revolução Haitiana de 1791 Berno Logis 71 Objeto técnico e ensino: encontro entre universidade, museu e rádio Carolina Manzano 85 O governo do Conde de Atouguia e a capitania da Bahia de 1750 a 1754 Charles Nascimento de Sá André Figueiredo Rodrigues 94 Universidade pública e o desenvolvimento de capacidades Cintia Verza Amarante 105 Jornalismo e memória: discussão sobre o Caso Proconsult Conrado Ferreira Arcoleze 114 “Debemos, por tanto, seguir la regla y el régimen que dios há querido estabelecer com respecto a las criaturas”: A expressividade religiosa como mecanismo de poder em El libre de les béstias (1288-1289) Crislayne Fátima dos Anjos 126 Diálogos Pan-Africanistas: Abdias Nascimento e a reinvenção das estratégias políticas em prol da igualdade racial no Brasil e no exterior (1968-1988) Daniel Alves Azevedo 141 A tese da política de erradicação e o Exército no processo de Independência (1822- 1824) Dirceu Casa Grande Junior 150 “Literatura e Humanismo”: a renovação do marxismo e o preludio da leitura crítica às obras kafkianas por Carlos Nelson Coutinho Edson Roberto de Oliveira da Silva 160 De Monarchia, o modelo de governo de Dante Eduardo Melin 167 O discurso dos exploradores e sua relação com o Imperialismo Elaine Calça 178 Literatura, cosmopolitismo e identidade nacional na Primeira República Felipe Yera Barchi 191 6 Políticas públicas educacionais na última década do século XX: influências neoliberais na educação brasileira Frans Robert Lima Melo Adão Aparecido Molina 200 Dissonância e negatividade na poesia satírica de Bernardo Guimarães e Juó Bananére Gabriel da Silva Conessa 212 Entre editor e autor: notas sobre o processo de autoconstrução de Plácido e Silva (1930-1940) Gilvana de Fátima Figueiredo Gomes 222 Luiz Gama e Leandro Gomes de Barros na Tribuna e nas “Abas do Parnaso” Francisco Cláudio Alves Marques Gustavo Henrique Alves de Lima 231 Imprensa Revolucionária e Luta armada em Cuba: uma análise da trajetória clandestina de Revolución Hélio Augusto de Souza Alves 241 Considerações teórico-metodológica do projeto pesquisa Entre fé, autores e leitores: Frei Benevenuto de Santa Cruz e a Libraria e Editora Duas Cidades (São Paulo, 1954-2006) Hugo Quinta 251 Reflexões sobre as recepções de Factorum et disctorum Memorabilium de Valério Maximo Isadora Buono de Oliveira 262 Seleção e restrição: os imigrantes desejáveis e indesejáveis na Revista de Imigração e Colonização Jesiane Debastiani 270 A revista Die Wehrmacht enquanto órgão oficla do exército nazista (1936-1944) João Arthur Ciciliato Franzolin 281 Considerações sobre a construção do mito de Lampião na Imprensa Carioca: o jornal A noite João Paulo Aparecido Leme 290 “Um Brasil para os brasileiros”: memórias de infância de Carolina Maria de Jesus (1918-1928) Jonatan Gomes dos Santos e Silva 297 Cointa, a vinda dos franceses e o processo de colonização do Rio de Janeiro Seiscentista Jorge Luiz de Oliveira Costa 306 Notas de rodapé: representações da guerra contra o terrorismo nas páginas de “Notas sobre Gaza” (2002-2009) José Rodolfo Vieira 325 A multifaceta Almodovaria no pós francquismo e suas identidade libertáriasem Matador (Pedro Almodóvar, 1986) Kennya Severiano de Sousa 338 Os rumos da utopia: imaginário e pensamento político na imprensa operária brasileira (1922-1924) Leandro Ribeiro Gomes 347 A têmpera bolchevique: ser comunista nos tempos da III Internacional (1919-1935) Lucas Andreto 358 7 As experiências do modernismo mineiro com os periódicos A Revista (Belo Horizonte, 1925-1926) e Verde (Cataguases, 1927-1928; 1929) Luciana Francisco 369 Revistas de engenharia: uma discussão científica sobre transportes no Brasil (1867- 1910) Luis Gustavo Martins Botaro 379 Os saltimbancos e as práticas de Ensino de História Andrew T de Oliveira Campos Manoel Ruiz Corrêa Martins 392 Da tradição à romantização: os anos 1950 a partir do samba-canção de Ruy Castro Manoel Messias Alves de Oliveira 403 Rio Paranapanema: os usos da água na cidade de Piraju Marcela dos Santos Alves 413 As memórias de Octavio Brandão e o Grupo Dirigente do PCB Marcelo de Gois Barbosa 422 Populismo e democracia em Francisco Weffort Marlon A Ferreira 435 Atual contexto político-social brasileiro: um solo fértil para manifestações Matheus Moreto Guisso Rodrigues 448 “E se as crianças desaprendessem a brincar?” Uma resposta ao professor Carlos Eduardo Jordão Machado a partir dos Game Studies – o caso “Inside” Max Alexandre de Paula Gonçalves Guilherme Akira Demenech Mori 460 Patrimônio e arte: o Museu do Tropeiro e a concessão da Sesmaria do Iapó Milena Santos Mayer 472 Brasil Ilustrado (RJ, 1887/1888) na imprensa oitocentista Nathália Agnes Custódio Monteiro Bove 481 Uma introdução ao estudo das folias de reis nas cidades de Ourinhos e Salto Grande (SP) Rafaela Sales Goulart 493 História e psicanálise: possibilidade na escrita da História a partir das obras de Peter Gay Raphael Cesar Lino 503 A opção “terceirista” na Argentina no pós-Guerra: o peronismo como a “Doutrina que salvará o povo” nas páginas da Revista Mundo Peronista (1951-1955) Raquel Fernandes Lanzoni 512 A Revista Les Temps Modernes e o terceiro mundo (1945-2016) Rodrigo Davi Almeida 525 Militância, resistência e tortura durante a ditadura civil-militar (1964-1985): as memórias de Fernando Gabeira e Flávio Tavares em perspectiva Thiago de Oliveira Gomes 537 A memória religiosa em Londrina: álbuns e fotografias da Congregação das Missionárias de Santo Antônio Maria Claret (1976-1979) Thiago Machado Garcia 550 Michel Foucault entre a função-autor e o personagem conceitual: considerações teórico-metodológicas Tiago Viotto da Silva 562 Rock, feminismo e imprensa underground na Inglaterra dos anos 1960 Vanessa Pironato Milani 573 8 APRESENTAÇÃO ¡Hay que abrirse del todo frente a la noche negra, para que nos llenemos de rocío inmortal! (Los álamos de plata, Frederico Garcia Lorca). Em 2018 foram comemorados mundialmente os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, e no Brasil os 30 anos da promulgação da chamada Constituição Cidadã, ocorrida em 5 de outubro de 1988. Como o ensejo de tais comemorações o Departamento de História e o Programa de Pós- Graduação em História Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis decidiram enfocar na sua tradicional Semana de História, em sua trigésima quarta versão, ocorrida entre 15 a 18 de outubro de 2018. o tema “Direitos e Democracia – trajetórias e perspectivas da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Cidadã”. A primeira efeméride fornece lustro à história da luta mundial pelo estabelecimento e aplicação dos direitos humanos na contemporaneidade. Embate que vem desde o imediato após Segunda Guerra - em reação à carnificina gerada pela tecnologia bélica empregada naquele conflito mundial e à revelação das atrocidades do Holocausto - chegando até os nossos dias, quando os direitos humanos e sua defesa tem sofrido sérios ataques. Direitos humanos da ordem social, política, econômica e cultural, além do direito ao desenvolvimento, têm sido postos à prova mais visível e firmemente a partir da crise econômica mundial de 2008 e da recente onda migratória gerada por perseguições de governos ditatoriais e/ou guerras civis. Afronta em grande medida potencializada em duas frentes. De um lado, a adoção de políticas governamentais favoráveis à flexibilização e precarização do trabalho, submetidas à financeirização da economia, em conformidade com o ideário neoliberal. De outro, a ascensão oportunista de partidos e governos de cunho xenófobo e chauvinista, atravessados por fundamentalismos religiosos e conservadorismo comportamental. Visões que deitam raízes em discursos e práticas da extrema-direita que, infelizmente, se impuseram em várias partes do mundo no período do entre-duas-guerras e foram fiadores do segundo conflito bélico mundial, bem como ultimamente empenham em suprimir os horrores do Holocausto na memória coletiva. 9 A comemoração das três décadas de vigência da Constituição de 1988 joga luzes tanto na elaboração de garantias à vida política democrática, com vistas ao expurgo do autoritarismo do anterior Regime Militar, quanto à abertura da sociedade brasileira à vida cidadã, penetrada pelos valores preconizados na Declaração dos Direitos Humanos. Objetivos cuja luta para a sua realização registrava, até poucos anos atrás, feitos e números positivos em termos de política democrática e de certo avanço da cidadania, ainda que distante da plena consecução deles. De qualquer forma, esse quadro político- social se distinguiu do perpetrado na Ditadura Militar, quando direitos humanos basilares foram desprezados e mesmo suprimidos - nesse caso, sobretudo nos chamados Anos de Chumbo, iniciados no final de 1968, com o AI-5. Embora fora justamente a defesa dos direitos humanos por parte de vários e diversos setores da sociedade civil o elemento que fortaleceu a luta contra a Ditadura Militar, inclusive, dotando tal embate de visibilidade e apoio internacionais às forças em prol da democratização do Brasil. Contudo, nos últimos anos, o avanço e, mesmo, a permanência da democracia e avanços no campo da cidadania no Brasil se veem ameaçados por forças sócio-políticas contrárias à democracia com a participação popular ampliada, ao reforço da justiça social por conta do Estado e ao vicejar dos direitos humanos em todos os campos e setores sociais da vida nacional, sobremodo em regiões e classes mais vulneráveis econômica e socialmente. Sem desconsiderar as tentativas de obstar medidas reparadoras contra as vítimas da repressão e tortura da Ditadura Militar quando do funcionamento da Comissão Nacional da Verdade por parte de grupos políticos de extrema-direita e alguns setores reacionários das Forças Armadas. Do ponto de vista histórico, a elaboração e vigência da Carta Magna brasileira de 1988 se imbricaram com a trajetória da luta internacional em defesa e pela efetivação dos direitos humanos. Intersecção que, ao mesmo tempo, serviu de dínamo e esteira à retomada e avanços da democracia política no Brasil, gerando terreno fértil às proposituras e ações favoráveis da vida cidadã oriundas dos movimentos sociais – tanto os operados desde os tempos da Ditadura Militar quanto os mais recentemente organizados. Assim, a denúncia social e a da violação dos direitos humanos cresceram e apareceram mais fortemente no cenário político nas três décadas anteriores. Frutificou em reparações e medidas coibidoras ou atenuadoras de algumas mazelas sociais geradas pela histórica desigualdade social e reiterada tentativas de sonegação de direitos humanos às classes mais populares, assim como a populações discriminadas por raça e gênero, além 10 das que vivem no interior mais recôndito do Brasil, onde a proteção e serviços essenciais do Estado são muito parcialmente existentes.Nesta direção, a ação de movimentos sociais, bem como outros agentes sociais, de natureza pública ou privada, ocupados com igual luta pela vida cidadã, nunca deixaram de colher, a partir da promulgação da Constituição de 1988, a oposição de setores socioeconômicos dominantes - associados aos interesses do capital transnacional, nutridos pela sanha privatista e rentista do Estado. Com a instalação da crise política e econômica de 2015, os movimentos sociais se viram às voltas com o acirramento da oposição sistemática e crescente emprego da violência física promovidos e/ou apoiados por setores sociais dominantes, os quais tem se valido de uma sorte de oportunismo e casuísmo para detratar políticas governamentais consonantes a programas de distribuição de renda e proteção dos direitos humanos. Contudo, oposição travestida na panaceia do combate à corrupção. Escudada em discursos e expedientes de agentes políticos que, individuais ou coletivos, institucionalizados ou não, seguem cooptados pelos setores socioeconômicos dominantes; reiterando, dessa forma, antiga e nociva relação entre a política e o dinheiro privado. E que foram incensadas e, mesmo, aberta e cotidianamente apoiadas pela grande mídia, cuja totalidade de suas empresas, operada comercialmente, procura se resguardar de qualquer tentativa de democratização do setor. Ademais, ações que têm encontrado em parte do Poder Judiciário um forte esteio, posto membros desse atuarem – com base em retóricas e jurisprudências supostamente apenas contra a corrupção sistêmica do Estado brasileiro – com militância jurídica aderida a padrões norte-americanos do direito penal. E, de resto, envidando esforços contra a corrupção de maneira bastante seletiva em relação a grupos políticos e lideranças do cenário nacional. Quadrante que tem alavancado, de um lado, um rastro de incompreensão e, mesmo, de ódio em alguns setores da classe média contra todos os agentes sociais que atuam em prol da democracia participativa e da cidadania ampliada, e, de outro, em vocalizações preconceituosas e, mesmo, ações violentas dirigidas às populações mais socialmente vulneráveis e às minorias. Posicionamentos quase sempre tributários da ideologia de extrema-direita e fundamentalismo cristão. Reações e agentes que encontram congêneres no âmbito internacional, projetando sinistra perspectiva à valia e aplicação dos direitos humanos, potencializadoras de retrocesso tanto político e social quanto cultural e espiritual ao mundo. 11 Assim, a trajetória das sete décadas de luta pelo vicejar mundial da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a dos trinta anos pela consecução de preceitos da Constituição Cidadã exigem que, de maneira premente, pesquisadores sobre a democracia e os direitos humanos - e igualmente os ocupados com estudos de âmbitos sociais e culturais que enfrentam ameaças de retrocesso histórico e da mercantilização desenfreada - reflitam, debatam e se posicionem a favor da manutenção das conquistas obtidas à luz dos dois documentos, bem como sobre o avanço da aplicação de seus valores e preceitos. Trata-se, então, do pensar e refletir ativamente as conquistas obtidas e os obstáculos interpostos ao expandir-se da democracia e dos direitos humanos no Brasil e no mundo, numa confluência entre o saber e o agir, como não deixaram de fazer agentes sociais que, individuais ou coletivos, deram o seu suor e sangue para que aqueles dois documentos viessem à lume e/ou lutassem para que os valores neles expressos pudessem ser aplicados. Frente que, sem dúvida, a universidade pública brasileira não pode se furtar a engrossar cada vez mais, posto a essência e existência dessa instituição se verem tão ameaçadas, por vezes, mesmo desprezada, tanto por parte dos setores socioeconômicos dominantes quanto por grupos contrários aos direitos humanos e à cidadania ampliada. Sob o signo da comemoração reflexiva acerca das trajetórias e perspectivas sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Cidadã a programação geral da XXXIV Semana de História da Unesp/Assis contemplou a participação de pesquisadores/especialistas para enfocarem, analisarem e discutirem as confluências e divergências no pensar, sentir e agir mundial e nacional em relação às conquistas e aos avanços da democracia calcada nos direitos humanos em tempos de crescente ameaça à dignidade humana e à paz entre os povos. Assim, integraram as atividades do evento: Conferências: Abertura – Projetos de renda mínima: democracia e direitos humanos, proferida por Eduardo Matarrazo Suplicy (FGV/SP, ex-senador). Encerramento – A memória histórica como valor para a defesa dos Direitos Humanos e o Estado democrático: a importância dos arquivos e outros mecanismos de preservação do passado; explanada por Jorge Rodríguez Rodríguez (Universidad Complutense de Madrid, Espanha). Mesas redondas: Direito à informação e comunicação social – definições e trajetórias, integrada por Maximiliano Martin Vicente (UNESP/Bauru), Edvaldo Correa Sotana (UFMT) e Áureo Busetto (UNESP/Assis); Patrimônio cultural como via à cidadania – caminhos e projeções, Silvia Helena Zanirato (USP) e Paulo Henrique Martinez (UNESP/Assis); Direito à educação e diversidade – ações e 12 prospecções, Andrea Paula dos S. O. Kamensky (UFABC), Paulo José Brando Santilli (UNESP/Araraquara) e Lúcia Helena Oliveira Silva (UNESP/Assis); Pela vida cidadã – entre o saber acadêmico e a prática na sociedade; Silvia Beatriz Adoue (UNESP/Araraquara ) e Luís Antônio Francisco de Souza (UNESP/Marília); Memória social e interpretação histórica da repressão - vias para a cidadania, Rosana Núbia Sorbille (IFECT-SP/ Cubatão) e Clifford Andrew Welch (UNIFESP). Além de diversos minicursos, a XXXIV Semana de História foi integrada pelos seguintes Seminários Temáticos, reunindo expositores de comunicação de pesquisa, tanto interno quanto externo à UNESP/Assis, com foco no debate de temas específicos, todos coordenados por pesquisadores especialistas: Imaginário, cultura, política e religião na Idade Média, coordenadores Ruy de Oliveira Andrade Filho(Docente UNESP/Assis) e Germano Miguel Favaro Esteves (Pós-Doutor UNESP/Assis); Antiguidade: perspectivas, desafios e contribuições dos estudos de História Antiga no Brasil, Ivan Esperança Rocha e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (Ambos docentes UNESP/Assis); História ambiental e paisagem cultural, Paulo Henrique Martinez (Docente UNESP/Assis) e Cássia Natalie Peguim (Doutoranda UNESP/Assis), História e historiografia nas Américas, Carlos Alberto Sampaio Barbosa e José Luís Bendicho Beired (Ambos docentes UNESP/Assis); História da África, afro-brasileira e interlocuções, Lúcia Helena Oliveira Silva (Docente UNESP/Assis). Mirian Cristina M. Garrido (Pós-Doutoranda UNIFESP) e Mariana Alice P.S. Ribeiro (Doutoranda UNESP/Assis); Intersecções entre mídias impressas, sonoras e audiovisuais na pesquisa e no ensino de História, Áureo Busetto (Docente UNESP/Assis) e Paulo Gustavo da Encarnação (Pós-Doutorando PUC-SP, bolsista PNPD/Capes); Movimentos migratórios, terra, trabalho e economia no mundo contemporâneo, Lélio Luís de Oliveira (Docente USP/Ribeirão Preto) e Paulo César Gonçalves (Docente UNESP/Assis); História e memória; Eduardo José Afonso (Docente UNESP/Assis); Estado e nação no Brasil: experiência e singularidade, José Carlos Barreiro (Docente UNESP); O uso das linguagens no ensino de História como meio de aprendizagem histórica: um desafio ao professor -pesquisador, Ronaldo Cardoso Alves (Docente UNESP/Assis); Identidades, memória e representações no Brasil Republicano, Zélia Lopes da Silva (Docente UNESP/Assis) e Carla Lisboa (Pós-Doutora UNESP/Assis); Mundos coloniais, 1492- 1822, André Figueiredo Rodrigues (UNESP/Assis); Livros, editores e impressos periódicos: desafios metodológicos, Tania Regina de Luca(Docente UNESP/Assis); 13 Resistir será sempre preciso: História e memória na representação de guerras e ditaduras na literatura e no audiovisual, Gabriela Kvacek Betella (Doutoranda UNESP/Assis); História social da cultura e suas diferentes linguagens: literatura, caricatura, imagens, sons e festas, Fabiana Lopes da Cunha (Docente UNESP/Ourinhos) e Felipe Yera Barchi (Doutorando UNESP/Assis); Ditadura militar, redemocratização, democracia e historiografia brasileira, Hélio Rebello Cardoso Jr. (Docente UNESP/Assis) e Thiago Granja Belieiro (Doutorando UNESP/Assis); História e Educação; Claudinei Magno Magre Mendes (Docente UNESP/Assis) e Adão Aparecido Molina (Docente UNESPAR e Pós-doutorando UNESP/Assis); Experiência intelectual brasileira: História, imagens e notas musicais, Carlos Eduardo Jordão Machado (in memoriam- Docente UNESP/Assis), Rafael Morato Zanatto (Doutorando UNESP/Assis) Manoel Dourado Bastos (Docente UEL). Os textos reunidos nos Anais XXXIV Semana de História são resultantes das comunicações de pesquisas apresentadas por seus respectivos autores em sessões dos Seminários Temáticos supracitados. Em seu conjunto, os textos se constituem em prova expressiva da diversidade temática e da acuidade teórico-metodológica das pesquisas da área de História desenvolvidas tanto na UNESP/Assis quanto em demais congêneres, sobremodo unidades universitárias públicas paulistas, do Paraná, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, considerando as filiações dos autores dos textos publicados neste volume. Em tempo: o cartaz da XXXIV Semana de História, o qual segue como capa do Anais do evento, contempla a reprodução fotográfica do Monumento a Frederico Garcia Lorca, da autoria de Flávio de Carvalho, no qual se encontra transcrito trecho de poema do poeta espanhol que figura como epígrafe nesta Apresentação. Elementos da história do monumento expressam tanto princípios e ações conformes à defesa dos direitos humanos e da democracia quanto os que devem ser denunciados e rechaçados. A saber: Quem passa pela Praça das Guianas, nos Jardins, pode observar uma escultura que se destaca na paisagem por suas cores e formas: o monumento a Federico Garcia Lorca. Tudo começou em 1968, quando exilados espanhóis residentes em São Paulo, membros do Centro Cultural Garcia Lorca, resolveram homenagear o poeta e dramaturgo morto por forças franquistas em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, sob acusação de ser comunista. Federico Garcia Lorca, nascido em 1898 no município de Fuente Vaqueros, província de Granada, na Espanha, não era vinculado a ideologias ou partidos políticos. Dizia-se um homem livre, sem preconceitos, que lutava contra a opressão e pelos direitos das minorias. O 14 escritor Paulo Duarte foi convidado a participar da homenagem e colocou o Centro em contato com o arquiteto e artista plástico Flávio de Carvalho. Uma vez concluído, o projeto da escultura foi enviado à Serralheria Diana, de propriedade de espanhóis no bairro do Tatuapé, onde Flávio de Carvalho acompanhou sua execução passo a passo. Depois de pronta, a obra, composta de tubos e chapas de ferro pintados, foi implantada na Praça das Guianas. Marcada para o dia 1º de outubro de 1968, a cerimônia de inauguração foi prestigiada pelo poeta chileno Pablo Neruda, que fez um caloroso discurso elogiando tanto o amigo Garcia Lorca como o autor da escultura. Uma exposição na Biblioteca Mário de Andrade e um espetáculo no Theatro Municipal de São Paulo com a participação de Chico Buarque, Geraldo Vandré, Sérgio Cardoso e outros artistas completaram a homenagem, com repercussão internacional. [...] Na madrugada de 20 de julho de 1969, uma explosão danificou a escultura. Nunca se apurou o responsável pelo ato, que, no entanto, foi atribuído ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Folhetos deixados junto à obra, no dia da Revolução Cubana, informavam sobre a destruição do monumento ao poeta "comunista e homossexual". Os destroços da escultura foram levados a um depósito da Prefeitura. Em 1971, Flávio de Carvalho restaurou-a para levá-la à Bienal de Arte de São Paulo. Com muito custo e sem o apoio das autoridades responsáveis, conseguiu colocá-la do lado de fora do prédio da Bienal, no Parque Ibirapuera, onde ficou apenas dois dias. O embaixador da Espanha reclamou da presença da "escultura do comunista" e ela voltou ao depósito. Dispostos a devolver a obra ao espaço público, alunos da ECA (Escola de Comunicações e Artes) e da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da Universidade de São Paulo falsificaram documentos e a roubaram em 1979. Durante três meses, trabalharam na sua recuperação e a depositaram no vão livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo), estrategicamente, no dia em que o prefeito Olavo Setúbal visitava o museu. Pietro Maria Bardi, diretor do Masp, e o prefeito não aprovaram o ato. Dias depois, finalmente, a obra foi reimplantada em seu local de origem. (SÃO PAULO. Cidade. Em Cartaz: guia da Secretaria Municipal de Cultura, n. 39, set. 2010, p. 72-73.) Áureo Busetto Paulo Henrique Martinez Coordenadores da XXXIV Semana de História da UNESP/Assis- 15 HISTÓRIA E FICÇÃO NA ESCRITA DE “A DESCOBERTA DO GRANDE, BELO E RICO IMPÉRIO DA GUIANA”, DE WALTER RALEGH (1552-1618)1 RESUMO: Esta comunicação tem como objetivo analisar a relação entre história e ficção presente na narrativa do inglês Walter Ralegh – poeta, soldado, político, pirata, conquistador, cujo relato de viagem, descreve as maravilhas da Guiana. Sua obra, “A descoberta do grande, rico e belo Império da Guiana”, publicada em Londres no ano de 1596, elucida a personagem e os percalços que o levaram ao Novo Mundo, bem como apresenta as problemáticas concernentes ao binômio real x fantástico. Compreender como ocorre os entrelaçamentos entre os aspectos fictícios e históricos na referida narrativa, constitui-se na tarefa central do presente estudo. PALAVRAS-CHAVES: história; ficção; narrativa. INTRODUÇÃO “A Descoberta do Grande, Belo e Rico Império da Guiana”, é uma obra escrita em 1595, do gênero denominado narrativa de viagem, publicada num calhamaço de 101 folhas, em 1596, pelo editor Robert Robinson, de Londres. O autor dessa narrativa, o inglês Walter Ralegh2 (1552-1618), foi poeta, soldado, político, pirata e cortesão, personagem notória e controversa do círculo de protegidos da rainha Elizabeth I (1558- 1603). Em seu relato, Ralegh descreve os percalços para tomar posse das terras da Guiana3 em prol da coroa inglesa, bem como uma série de descrições sobre lugares fantásticos e seres monstruosos, incluindo descrições sobre Manoa – a cidade de ouro dos incas, denominada pelos espanhóis de Eldorado, as províncias de Eremia, Aromaia e Amapaia, além da menção a outras terras e rios adjacentes. Dito isso, este trabalho enfatiza, sobretudo, o entrecruzamento da história e da ficção, a partir da abordagem de Paul Ricoeur (1997), quando esse autor afirma existir uma historicização da ficção e uma ficcionalização da história, no que tange aos elementos da construção narrativa4. No caso do presente estudo, nos interessa perceber esse entrelaçamento entre o “real” e o “fictício” na narrativa ralegiana, onde o contexto histórico do século XVI, das 1 Adriano Rodrigues de Oliveira é Doutorando em História pela UNESP/ASSIS na Linha de Pesquisa 1 – Política: ações e representações. Comunicação apresentada na XXXIV Semana de História – DEMOCRACIA e DIREITOS – trajetórias e perspectivas da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Cidadã na UNESP/ASSIS. 2 Quanto à grafia do codinome, Raleigh ou Ralegh estão igualmente corretas. Aqui optamos por padronizar a grafia Ralegh, em função da tradução da obra estudada que a apresenta de modo semelhante.3 Trata-se da região ao norte do rio Amazonas, região à época conhecida genericamente como Guiana. 4 RICOEUR, Paul. O entrecruzamento da história e da ficção. IN: Tempo e narrativa. Tomo III. São Paulo: Papirus, 1997. 16 disputas da Inglaterra com a Espanha pela posse de novas terras, dos embates entre luteranos e católicos, se cruzam com o fabuloso ou fictício – a crença no Eldorado, no Reino das Amazonas, na existência de seres monstruosos e criaturas fantásticas. WALTER RALEGH E SUA NARRATIVA A trajetória conturbada de Walter Ralegh, elucida muitos dos elementos de sua narrativa em “Descobrimento da Guiana”, não bastasse o fato de a própria obra ser um tanto quanto emblemática. Walter Ralegh (1552-1618)5, foi personagem notória do reinado de Elizabeth I (1558-1603). Ele transitou por diversas regiões e ofícios, sendo antes de tudo um viajante que experimentou o sabor das glórias e as infâmias que uma trajetória tumultuada podia lhe conceder. Como soldado lutou em prol da causa luterana, saindo-se vitorioso e aclamado. Em 1509, ao lado dos huguenotes e sob a liderança do conde Mongomerie, combateu cruzados católicos. Ainda em favor da causa protestante, comandou uma chacina no ano de 1580, que levaria a morte de seiscentos soldados espanhóis e italianos enviados pelo Vaticano à Irlanda para proteger os católicos irlandeses6. Ralegh era ainda um explorador, cujas pretensões expansionistas foram bem exploradas pela coroa britânica, que pretendia estabelecer suas bases de colonização e exploração no Novo Mundo. Assim é que em 1578, o aventureiro se lançou em uma primeira viagem de descoberta acompanhado de seu meio irmão Humphrey Gilbert, excursão que culminou com o ataque a barcos espanhóis no caribe, sem resultar deste modo, em maiores conquistas. Uma segunda viagem desastrosa, que pretendia descobrir uma passagem norte para o pacífico, resultou na morte de Humphrey Gilbert e teve o retorno forçado pela própria rainha Elizabeth I7. Outras três viagens realizadas por Ralegh teriam resultados mais concretos. Em 1585, foi responsável pela expedição de descoberta da Virgínia, primeira colônia inglesa na costa atlântica da América do norte. Em 1595, realizou a sua primeira viagem à 5 São incertas as informações sobre a data de nascimento de Walter Ralegh. Estima-se tenha nascido entre 1552 e 1554, numa propriedade denominada Hayes Barton, na aldeia de East Budleigh, perto de Budleigh Salterton, em Devon, Inglaterra. Ele era meio irmão de Sir Humphrey Gilbert, e era irmão de Carew Raleigh. 6 MARTIN, E. San. Walter Ralegh, A Descoberta da Guiana e o Mito de Eldorado. Prefácio. In: Diário de Walter Raleigh – O caminho de Eldorado. A descoberta da Guiana por Walter Raleigh em 1595. Adaptação e notas de E. San Martin. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002, p. 14. 7 Ibid., p. 14. https://pt.wikipedia.org/wiki/Devon https://pt.wikipedia.org/wiki/Inglaterra 17 Guiana, quando escreveu seu famoso relato, retornando novamente à região no ano de 16168. Antes de sua primeira expedição à Guiana, Ralegh desfrutava de notório prestígio no círculo de protegidos da rainha, possuindo os títulos de lorde e o prestigiado posto de Guarda pessoal da monarca. Contudo, sua sorte na corte começava a mudar quando se casou com uma dama de companhia da rainha, sem a sua autorização, sendo em função disso, retirado de suas funções cortês e trancafiado na torre de Londres9. Após sua liberdade, decidiu se retirar da vida pública, dedicando-se a agricultura, à química e a astronomia. No entanto, nessa mesma época foi acusado de ateísmo, embora tenha logo provado sua inocência. Após o desfecho desse período de altos e baixos, de herói da corte a vilão, Ralegh anseia retomar o seu prestígio e aventurar-se em sua primeira expedição à Guiana10. O escritor e jornalista brasileiro Eduardo San Martin, na adaptação e tradução da obra de Walter Ralegh, intitulada “O caminho do Eldorado”, da qual nos valemos como fonte principal nesse texto, afirma que a busca do Eldorado e a posse das terras da Guiana tornaram-se uma espécie de ambição pessoa do conquistador. Uma campanha de sucesso poderia significar o retorno às suas funções palacianas e a retomada de seu antigo prestígio junto a rainha, conforme destaca: Embarcou convencido de que encontraria o caminho de Eldorado. Caso contrário, assaltaria navios espanhóis na volta para a Inglaterra, até reunir ouro suficiente para recompor suas finanças e, com uma generosa doação à coroa, reconquistar as graças da rainha11. De fato, fica evidente na narrativa ralegiana uma verdadeira obsessão por encontrar o Eldorado, uma terra de aventura, ouro e fartura, que devia ser descoberta em nome da rainha da Inglaterra antes que os espanhóis o fizessem. Eldorado era sua missão na terra, mais uma luta travada a sangue e ferro entre luteranos e católicos, tal como as que empreendera ainda na época que desfrutava dos tempos de outrora12. Em seu relato encontramos as descrições de como seria esse lugar fantástico: Seja lá quem esteja no trono, a Guiana tem um príncipe sentado sobre mais ouro e rodeado por país mais belo do que todas as terras da Espanha ou da Grande Turquia. Sei de quem ainda duvide da existência deste império, com suas cidades engalanadas, seus templos 8 Ibid., p. 14. 9 Ibid., p. 16. 10 Ibid., p. 16. 11 Ibid., p. 16. 12 Diário de Walter Ralegh – O caminho de Eldorado. A descoberta da Guiana por Walter Ralegh em 1595. Adaptação e notas de E. San Martin. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002. 18 monumentais e tesouros inimagináveis13. […] quem já viu Manoa, a cidade imperial da Guiana, não para mais de falar sobre a grandiosidade da sua beleza e abundância das suas riquezas. Sua localização é altamente favorecida, suas casas e ruas são maiores e melhores do que qualquer outra cidade do Novo Mundo14. Para justificar a existência de tão fantástica cidade, o conquistador vale-se de todo apelo retórico possível em sua narrativa, indagando de forma antecipada quem quer que possa duvidar de seus relatos sobre lugar tão fabuloso. Recorre ainda a outras autoridades, como o eclesiástico e historiador espanhol Francisco Lopes de Gomarra, em sua “História General de las Índias”, “um erudito de maior credibilidade”, enfatiza Ralegh.15 São ainda provas irrefutáveis da existência de fabuloso tesouro as grandes somas de riquezas que chegam do Novo Mundo à Espanha, os milhões de lingotes de ouro e prata trazidos do Peru para os portos de Sevilha. Ralegh recorre à lembrança da fortuna amealhada pelo “conquistador do Peru”, o espanhol Francisco Pizarro dentro do palácio de Atahualpa, todas essas riquezas em posse dos rivais espanhóis e que poderiam pertencer também à rainha da Inglaterra, àquela mesma de quem ele tanto buscava o seu agrado16. Conforme podemos perceber essa estratégia discursiva de Ralegh se mostra a princípio inteligente. Como contestar, em função do desconhecimento geográfico dessa imensidão territorial, e das descobertas dos espanhóis no Peru, que Eldorado não passava do devaneio de um pobre e combalido conquistador, em busca de remissão? Esses elementos tidos como irreais se imbricam a outros reais, tornando confusa a relação entre história e ficção no que diz respeito à construção da narrativa ralegiana. O que é real ou fictício pode ser muito bem interpretado de acordo com o ponto de vista do leitor, havendo assim, uma margem considerável de interpretação. As riquezas em outro e prata estão ali, chegam aos montes no Velho Mundo. Eldorado pode ser um lugar em específico, como pode ser a representação das riquezas americanas. Além do Eldorado, o fictício toma forma na narrativa ralegiana com a descrição de seres fantásticos, como a crença na existênciado Reino das amazonas. O autor da narrativa descreve nunca ter visto pessoalmente essas mulheres belicosas no seio da floresta amazônica mas, como aparece de forma corriqueira em seu texto, retoma para si 13 Ibid., p. 41. 14 Ibid., p. 42. 15 Ibid., p. 43. 16 Ibid., p. 44-45. 19 a autoridade de um velho cacique, que afirmava segundo o aventureiro inglês ser profundo conhecedor da existência de tais mulheres17. Assim encontramos no texto: O curioso ou interessado no tema ainda dispõe de diversos relatos, registrando os feitos e aparições das Amazonas diante de aventureiros europeus. As mulheres guerreiras das tribos próximas à Guiana só conviveriam com homens uma vez por ano. Então, bebiam, fumavam, dançavam, lutavam e fornicavam sem parar durante um mês inteiro, que acredito ser abril. Em abril, não só as amazonas, mas todos os chefes, príncipes e sábios das tribos da região se reúnem num tipo de festival. Os guerreiros escolhem seus novos chefes, os caciques escolhem novos generais e conselheiros. Depois das cerimônias para promoções e premiações dos melhores da tribo, as amazonas visitavam outras nações amigas. Eram recebidas com honras militares, inspecionavam os batalhões e escolhiam seus machos preferidos, de quem não se separavam até surgir a lua nova. Naquela madrugada, pegavam suas armas e desapareciam na mata como que por encanto18. Para Ralegh, há uma semelhança evidente destas mulheres com àquelas descritas pelos autores gregos antigos, e isso basta para dar estatuto de veracidade à sua narrativa. São as mesmas guerreiras que na antiguidade habitaram a África e na Ásia e eram conhecidas como amazonas, adoradoras de Medusa, e semelhantes às que viviam às margens do Tanais e do Termadon, ou ainda do exército de mulheres descritas por Heródoto na Cítia19. Autênticas amazonas em plena América, tal qual àquelas que descreveram as autoridades do mundo antigo. Mulheres que quando ficavam grávidas, se nasciam crianças do sexo masculino devolviam a seus pais, criando consigo apenas às meninas, para aumentar o poderio feminino. Guerreiras impiedosas, tratavam com desumanidade seus prisoneiros, torturando e abusando deles até a morte. Eram implacáveis contra os homens que forçavam entrar em seu território, prendendo suas esposas e forçando-as a entrar para a tribo20. A existência das amazonas no Novo Mundo não basta para dificultar o caminho para se chegar ao Eldorado, que se torna cada vez mais árduo, e justifica todo o tempo e dinheiro gasto por Ralegh e seus homens durante sua estadia na Guiana. O herói, como se apresenta em sua narrativa, tem ainda outras dificuldades maiores pelo caminho, a suposta existência de criaturas monstruosas, seres anômalos, não menos cruéis que as 17 Ibid., p. 62. 18 Ibid., p. 62 e 65. 19 Ibid., p. 62. 20 Ibid., p. 65. 20 guerreiras descritas anteriormente, e com um grau muito maior de assombro. Em seu texto encontramos o seguinte relato sobre essas criaturas e sua aparência: Nas margens do Caora, vive uma nação de selvagens fantasmagóricos. Embora muitos os considerem personagens de fábulas inventadas pelos nativos em suas bebedeiras, eu acredito que tais seres existam assim como foram descritos. Meu raciocínio é simples: toda criança das províncias de Aromaia e Canuri me afirmou já ter visto um destes aborígenes de tão curiosa natureza. São seres monstruosos chamados de euaipanomas pelos índios. Com corpo de homem, não tinham cabeça. Os olhos nasciam nas costas, a boca seria centrada no peito e um longo chumaço de cabelos saía dos seus ombros21. As estratégias narrativas continuam, quando Ralegh indaga novamente de forma antecipada àqueles que possam duvidar de seus relatos. Ele recorre então às crianças das províncias de Aromaia e Canuri, conforme se lê na citação acima. Se estas viram essas criaturas é porque sua descrição é verdadeira, a inocência e a verdade saem das bocas dessas criancinhas. A descrição precisa, minuciosa, sobre a aparência desses monstros, estabelece ainda um tom mais digno de veracidade na relação com o leitor. Não bastasse, Ralegh prossegue: O filho de Topiauari, que veio conosco para a Inglaterra, disse que esta tribo era muito temida na sua região. Usavam arcos mais possantes, flechas mais grossas e porretes três vezes maiores do que os outros índios. Os iuarauaqueris teriam aprisionado um euaipanoma cerca de um ano antes de nossa passagem por ali. Pouparam a sua vida, libertando-o na fronteira de Aromaia, que era a província de seus pais22 Ralegh demonstra-se assustado diante de tais relatos, não acreditando inicialmente existir pessoas de anatomia tão estranha, diante de outras que ele aceita como dentro dos padrões de normalidade. Lamenta ter ouvido sobre essas criaturas somente quando se afastara de seu território. Se soubesse antes da existência desses monstrengos, dessa espécie tão rara, poderia ter conversado mais a respeito com os índios, e quem sabe e, somente quem sabe, poder prender e levar para a Inglaterra um desses euaipanomas, para comprovar suas afirmações23. Na tentativa de convencer seu leitor, Ralegh recorre quase que de forma desesperada a uma série de personagens consideradas como propagadoras da verdade. Se exime da responsabilidade ao afirmar nunca ter visto um desses monstros com seus próprios olhos, sequer ter imaginado. Mas como duvidar de tantas pessoas diferentes que teriam visto tais criaturas? A lista é extensa e não deixa dúvidas: “padres, soldados, capitães, índios, 21 Ibid., p. 155. 22 Ibid., p. 155. 23 Ibid., p. 156. 21 mulheres e crianças – a inventar a mesma coisa, descrevendo o mesmo monstro ou aberração humana”24. Encontramos por fim, mais um relato sobre esse assunto: Mais tarde, já em Cumana, nas Índias Ocidentais, encontrei um espanhol muito educado, que não morava longe dali. O homem me procurou ao ficar sabendo que entrei na Guiana, subindo até a foz do Caroni. Sua primeira pergunta foi se eu tinha visto algum euaipanoma ou índio sem cabeça. Tratava-se de um comerciante de reconhecida honra e honestidade em tudo mais que dizia e fazia. Esse legítimo homem de palavra confessou com toda convicção ter visto muitos euaipanomas em suas andanças por aqueles rios. Não posso revelar seu nome, para a sua própria segurança. O rei da Espanha não costuma ser muito gentil com aqueles que tratam os súditos da rainha da Inglaterra com cordialidade […] Mesmo que eu não os tenha visto, portanto, os encontros com euaipanomas são dados como verdadeiros por pessoas da mais alta autoridade e credibilidade. Seria injusto da minha parte colocar em dúvida a fidelidade destes relatos25. Como já era de se esperar Ralegh não encontrou o Eldorado, e sua obra não convenceu a rainha, que manteve-se indiferente à sua epopeia. Elizabeth I, tratou as descrições do aventureiro como uma ato individual de promoção, que financeiramente foi um desastre, uma vez que o ouro encontrado não foi suficiente para cobrir sequer as despesas da expedição26. Por outro lado, Ralegh estabeleceu um plano geopolítico para a região, ficando por aquelas partes a bandeira de sua majestade da Inglaterra. Soube também explorar os perigos de sua estadia na Guiana, dando um tom heroico para suas realizações. O público comprou sua ideia e a obra foi um verdadeiro sucesso em sua época27. Conforme destaca E. San Martin: O público admirou a coragem e a ousadia de Walter Ralegh, metendo- se na selva amazônica durante um mês, apenas com barcas e botes a remo. O inglês comum também se solidarizou com os princípios patrióticos do autor, colocando os interesses nacionais acima dos pessoais, ainda que Ralegh estivesse, disfarçadamente,apenas justificando o fracasso financeiro da viagem. A maioria dos leitores, por sua vez, tratou partes do relato – as guerreiras amazonas, os índios sem cabeça […] como produtos da imaginação do poeta, exageros descabidos, como a abundância de ouro vista por Ralegh a olho nu nas montanhas da Guia28. 24 Ibid., p. 156. 25 Ibid., p. 175. 26 MARTIN, E. San. Walter Ralegh, A Descoberta da Guiana e o Mito de Eldorado. Prefácio. In: Diário de Walter Raleigh – O caminho de Eldorado. A descoberta da Guiana por Walter Raleigh em 1595. Adaptação e notas de E. San Martin. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002, p. 10-11. 27 Ibid., p. 11. 28 Ibid., p. 11. 22 ANEXOS29 Fig. 1. Manoa ou Eldorado. Por Levinus Hulsius, para o livro de Walter Raleigh. Quarta edição, 1612. Fonte: Biblioteca da Universidade de Virgínia. Fig. 2. O banquete festivo das amazonas. Por Levinus Hulsius, para o livro de Walter Raleigh. Quarta edição, 1612. Fonte: Biblioteca da Universidade de Virgínia. 29 Gravuras apresentadas na comunicação. Elas são de autoria do belga Levinus Hulsius (1546-1606), um comerciante de instrumentos científicos, impressor e lexicógrafo oriundo de Flandres, que viveu e trabalhou na Holanda e Alemanha. Hulsius fez uma série de publicações da obra original de Walter Ralegh, datadas da passagem do século XVI para o XVII, onde tratou de inserir novas gravuras no texto, entre as quais ilustrações sobre as amazonas da Guiana. 23 Fig. 3. Os euaipanomas. Por Levinus Hulsius, para o livro de Walter Raleigh. Quarta edição, 1612. Fonte: Biblioteca da Universidade de Virgínia. 24 25 ENTRE TEXTO E IMAGEM: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DO LIVRO TABLEAU DE L’INCONSTANCE DES MAUVAIS ANGES ET DÉMONS (1613) DE PIERRE DE LANCRE1 Pierre de Lancre foi um jurista francês e conselheiro real da casa Bourbon. Ao longo de sua trajetória a serviço do rei Henri IV, o jurista foi convocado pela Coroa a compor uma comitiva a fim de julgar e punir pessoas identificadas como bruxas na região de Labourd, no ano 1609. Após os eventos ocorridos em Labourd, o juiz voltou a Paris e publicou um livro intitulado Tableau de l’inconstance des mauvais anges et démons. Neste livro também encontramos uma gravura sobre a descrição do sabá que foi impressa na segunda edição, em 1613. Neste sentido, propomos discutir um problema metodológico: como estudar o texto impresso e a gravura ao mesmo tempo? A esta questão, a ideia de indício de Carlo Ginzburg e Michael de Certeau será apresentada neste texto enquanto um recurso metodológico para uma pesquisa sobre o tema da inquisição a partir do livro de Pierre de Lancre. Introdução Em 1862, Jules Michelet publicou a primeira edição do livro La sorcière2. Tema bastante original para o período em que se estudava a bruxaria sob ponto de vista institucional católico ou, no limite, sob ponto de vista protestante em que se heroicizava personagens históricos perseguidos na inquisição. Michelet foi além ao pensar as feiticeiras para além da moralidade cristã e conseguiu demonstrar como estas mulheres foram vítimas das distorções feitas por parte dos inquisidores. O autor ainda demonstrou que, em certos períodos, a inquisição se tornou mais incisiva nos mecanismos de criminalização das bruxas. Um destes períodos em que Michelet falou, foi o fim do século XVI e início do XVII. Para o autor houve um período de tolerância, em que por cerca de 100 anos a inquisição foi atenuada na França. Após este período, o autor demonstra que uma série 1 Alisson Guilherme Gonçalves Bella – PPGHS / UEL Angelita Marques Visalli – UELEste texto discute alguns apontamentos metodológicos, isto é, recursos da História Cultural que dão suporte a uma pesquisa dissertativa em andamento sobre estudos inquisitoriais na França do século XVII. 2 MICHELET, Jules. A Feiticeira. São Paulo: Círculo do livro, 1974. 26 de tratados jurídicos e demonológicos aparecem e compõem um cenário de caça às bruxas que partiu da Igreja Católica, mas também do Estado. É neste contexto histórico explicitado por Michelet que Pierre de Lancre apresentou discursos que versam sobre demonologia, inquisição e bruxaria publicados no livro Tableau de l'inconstance des mauvais anges et démons3. Pierre de Lancre escreveu a partir da perspectiva jurídica, fazendo jus a seu percurso intelectual. O magistrado estudou direito e teologia em diversas cidades italianas, onde recebeu o título de doutor em direito aos 26 anos. Após seus estudos, o autor fez parte do conselho real do rei Henri IV. Em 1609 o rei recebeu denúncias de que homens e mulheres estariam fazem culto a satã na região de Labourd. De acordo com Véronique Duché-Gavet4 o rei Henri IV enviou dois de seus conselheiros (o diplomata Jean d’Espagnet e Pierre de Lancre) para região para interrogar e punir aqueles que praticavam a bruxaria. Os conselheiros reais visitaram entre 24 e 27 paróquias de Labourd. Estima-se que houveram cerca de 60 a 80 execuções e 400 testemunhos. Após os eventos ocorridos em 1609, Pierre de Lancre retornou a Paris e publicou seus discursos no livro Tableau de l’inconstance des mauvais anges et démons. Este livro nos parece interessante no que se refere a sua forma de escrita. Percebemos diferentes tipos de linguagens. Se por um lado, o autor se dedica a demonologia e exprime toda a sua formação teológico-jurídica, por outro lado, as descrições dos réus a respeito do sabá, bem como os acontecimentos nos tribunais inquisitoriais em Labourd se dão a partir de uma linguagem que se aproxima a uma vivacidade teatral. Há também a gravura, isto é, uma linguagem imagética que compõe a segunda edição do livro. A partir das próximas páginas, apresentaremos recursos metodológicos para se pensar estas linguagens e para perceber as várias aproximações e divergências do texto e da imagem, que compõem o livro de Pierre de Lancre. Para tanto, indicaremos especialmente os caminhos apontados por Carlo Ginzburg e Michael de Certeau sobre os indícios históricos em documentos oficiais da Idade Moderna. Entre o texto e a imagem 3 LANCRE, Pierre de. Tableau de l'inconstance des mauvais anges et demons, ou il est amplement traicté des sorciers, et de la sorcellerie. 1613. Acesso em: 13/11/2018. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=lwVAAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt- BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false> 4 DUCHÉ-GAVET, Véronique. Les sorcières de Pierre de Lancre. Revista Internacional de los Estudios Vascos. v 9, 2012. pp. 140-156. https://books.google.com.br/books?id=lwVAAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false https://books.google.com.br/books?id=lwVAAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false 27 Em 1612 Pierre de Lancre publicou a primeira edição do Tableau de l'inconstance des mauvais anges et démons. No ano seguinte, pequenas mudanças foram feitas e uma nova edição é impressa com a presença de uma imagem que representa o sabá das bruxas. Jan Ziarnko, o gravurista da imagem, nasceu em Lviv (cidade ucraniana que atualmente faz divisa com a Polônia) na década de 1570. O artista tem grande parte de suas produções voltadas para o tema religioso. Um aspecto importante dos trabalhos de Ziarnko é que o mestre fez parte de seus estudos na sua cidade natal, mas também em cidades italianas. Após seus estudos, o artista se mudou para Paris e tornou-se um “homem do rei” onde fez diversos trabalhos para a coroa francesa, incluindo a gravura Descrição do Sabá(Figura 01) feita para o livro de Pierre de Lancre. Figura 1 - ZIARNKO, Jan. Descrição do sabá na obra de Pierre de Lancre. 1613. Gravura, aprox. 23X18 cm. Acesso em: 13/11/2018. Disponível em: <http://www.sscommons.org/openlibrary/ExternalIV.jsp?objectId=4jEkdDAtKjQ%2FRkY6fjZ6RHVDO HIufV1%2BfA%3D%3D&fs=true> 28 A gravura de Ziarnko foi composta por várias cenas que foram apresentadas no decorrer do livro de Pierre de Lancre. Ao centro, um caldeirão produz uma fumaça que se expande para cima na vertical, tomando conta de pelo menos ¼ da imagem. Bruxas e diabos voam por esta fumaça. No canto superior a esquerda, músicos tocam instrumentos de corda e sopro logo abaixo a cena da dança. Aqui, somente mulheres se apresentam. Logo abaixo da dança, uma multidão de nobres aparece. Na base da imagem, crianças brincam no rio. Na parte direita, encontramos uma Trindade onde um bode senta-se ao centro. Uma criança está sendo apresentada para a Trindade por uma mulher e um diabo. Logo abaixo, outra cena de dança. Desta vez, com a presença de diabos. Na base da imagem, mulheres e diabos sentam-se a mesa com um bebê decapitado em uma bandeja. A imagem representa o que se pensava ser o sabá a partir da narrativa inquisitorial. Num dos discursos escritos por Pierre de Lancre, encontramos diversos testemunhos sobre o que seria este sabá. Há, portanto, uma correspondência entre o texto e a imagem. No entanto, esta gravura foi feita apenas na segunda edição do livro. O que podemos notar é que houve a necessidade de se apresentar as ideias contidas no livro através de um outro tipo de linguagem, qual seja, a imagética. Michelet percebeu que os inquisidores utilizaram instrumentos coercitivos para obter confissões. Melhor dizendo, o que eles procuravam era uma resposta já premeditada para suas perguntas. Numa historiografia mais recente, Carlo Ginzburg5 identificou que, em certos processos inquisitoriais, o inquisidor não compreendia as práticas culturais dos réus. Logo, o que se fazia era uma inversão, isto é, forçar a introdução diabólica nas narrativas dos indiciados. Neste sentido, notamos que a inserção da imagem na segunda edição da publicação serviu de reforço para aquilo que se quis afirmar a respeito da bruxa. A profusão de elementos na imagem são indícios daquilo que se necessitou comunicar de outro modo, daquilo que se necessitou mostrar visualmente e para além do texto escrito. Para se estudar a gravura de Jan Ziarnko estamos partindo do pressuposto teórico de que as imagens são fontes históricas e se justapõe ao texto de Pierre de Lancre. Tanto a linguagem textual quanto a imagética nos permite investigar o os pensamentos difundidos no século XVII a respeito das mulheres indiciadas como bruxas na região de 5 Ginzburg, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In: Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa F. d’Aguiar e Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 2006. Pp. 280- 293. 29 Labourd. Assim sendo, se faz necessário um olhar crítico às imagens, assim como o texto já que as duas se complementam diante da mensagem que Pierre de Lancre decidiu passar. As imagens foram produzidas em determinado momento histórico e por pessoas que possuem suas próprias escolhas. Peter Burke6 explica que esta criticidade é usual no estudo de textos, mas no caso das imagens a crítica às evidências visuais permanece pouco desenvolvida. Não é raro encontrar trabalhos que se propõe usar imagens meramente como ilustração ou como confirmação de alguma concepção pré-estabelecida. Nosso intuito é usar a imagem e o texto como fontes históricas. Mais do que isto, ambos tem espaço e importância na análise. Os indícios Entender o texto e a imagem como uma justaposição de linguagens diferentes para comunicar e confirmar a mensagem do autor nos traz possibilidades para o estudo do livro de Pierre de Lancre, mas também o comportamento dos acusados de bruxaria. A partir daqui explicaremos as ideias de Carlo Ginzburg e Michael de Certeau a respeito dos indícios. Estes autores partiram dos indícios, e chegaram a conclusões aprofundadas a respeito da cultura popular. Estes indícios são referências sutis às práticas culturais dos inquiridos em processos inquisitoriais ou exorcistas que acabam escapando à lógica do documento oficial. Neste sentido, apresentamos estas ideias a fim de apontar um recurso metodológico para investigar fontes históricas institucionais que, através dos indícios e do não-dito, apresentam nas entrelinhas algumas possibilidades de interpretação para uma pesquisa dissertativa em andamento. No que se refere aos estudos das imagens, alguns teóricos da História da Arte como Aby Warburg e Ernst H. J. Gombrich reaproximaram a História da História da Arte. Por conseguinte, os métodos destes estudiosos para análise de imagem contribuíram para as pesquisas na área de História. Carlo Ginzburg se utilizou destes autores para lidar com a documentação imagética em seus trabalhos. Segundo Ginzburg cada interpretação (de um excerto literário, de um quadro, e assim por diante) pressupõe um ir e vir circular entre o particular e o conjunto (...) Disto provém a oportunidade de introduzir na decifração iconográfica 6 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e imagem. Bauru: Edusc, 2004. 30 elementos de controle de caráter externo, como a clientela – alargando a noção de contexto ao contexto social (...)7 As fontes dos estudos deste historiador provém de elementos iconográficos que estão relacionados a estruturas culturais dos períodos em que foram produzidos. Assim sendo, devemos ressaltar a importância dos procedimentos metodológicos utilizados por Ginzburg. Assim como o autor, partimos da imagem, bem como da documentação escrita em que a gravura está inserida, a fim de produzir um estudo histórico. Em seus trabalhos de análise de imagem Ginzburg8 compara o trabalho do historiador a três homens do século XIX que, cada um a seu modo, colocaram em prática um modo de observação: o indício. Giovanni Morelli demonstrou atenção aos detalhes de pinturas para supor autorias; Sigmund Freud observava os sintomas de seus pacientes; já Sherlock Holmes, um detetive fictício criado por Arthur Conan Doyle, baseou-se em indícios imperceptíveis à maioria para descobrir a autoria de crimes. Estes três homens se baseiam em indícios e, por conseguinte, oferecem às Ciências Humanas um paradigma indiciário, ou em outras palavras, um modelo epistemológico. A partir deste modelo epistemológico pretendemos produzir um estudo sobre a gravura de Jan Ziarnko. Em Os andarilhos do bem9 Ginzburg parte de um costume do século XVI e XVII: sair à noite durante o sono e guerrilhar com bruxas do mal a fim de assegurar a colheita anual. Explicando melhor, trata-se de um culto agrário da região de Friuli onde os benandanti - feiticeiros bons - combatem os feiticeiros maus em batalhas imaginárias. O autor percebeu que nestes processos inquisitoriais haviam especificidades que fugiam aos padrões inquisitoriais. Não haviam, a princípio, relatos maléficos, mas a apresentação de cultos populares em que se queria preservar a colheita anual. A partir destes indícios o autor construiu um estudo a respeito da cultura popular e dos costumes dos fruilanos. Neste sentido, o indício se torna importante ferramenta para se pensar a cultura dos réus nos escritos inquisitoriais. Portanto, estamos diante do desafio de se pensar, também, as práticas culturais das bruxas de Labourd em um documento que não foi produzido por elas, mas por um magistrado que tinha sua própria ideologia. Pierre de Lancre escreveu o livro sob o ponto de vista institucional. Jan Ziarnko também produziu a gravura sob este ponto de vista.7 GINZURG, Carlo. Indagações sobre Piero. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Pp. 45. 8 GINZURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 9 GINZURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 31 Ambos faziam parte da corte real francesa. Neste caso, o que temos disponível são representações do que se quis ver e ouvir destas feiticeiras. Michael de Certeau10 também produziu um estudo histórico através dos indícios. O autor estudou um tema próximo ao nosso: a possessão num convento de Loudun, na França. No livro A escrita da história, de Certeau apresentou um suporte teórico bastante importante para seu objeto de estudo. Trata-se do capítulo A palavra da possessa. A ideia do autor é justamente fugir daquilo que o demonólogo escreveu sobre as possessas, já que esta perspectiva foi fundamentada naquilo que a demonologia pensava sobre as possessas. A identidade destas possessas não aparecia nestes documentos. O caminho apontado pelo autor é o indício: o exorcismo opera a partir do silêncio das possessas. Cabe ao exorcista fazer o próprio demônio que a possuiu dizer seu próprio nome e, assim, poder ser exorcizado. Nos documentos, quem fala não é a mulher possessa, mas esta assume o eu do próprio demônio que a possuiu. Em outras palavras, quando perguntado a possessa “quem está aí?” A mesma pode guardar silêncio, enganar ou dizer “Eu sou Leviatã”. Mas esta tarefa não é simples. Nos escritos demonólogos existem listas de nomes de demônios e suas respectivas características comportamentais. Há um código não- verbal. A partir de uma série de comportamentos da possessa o exorcista chega à conclusão de qual demônio a possuiu. Assim, fixado este código não-verbal, como, por exemplo, um rosto sorridente e zombeteiro, o demonólogo substitui o código pelo nome, que neste caso é Leviatã. A partir de então, há um jogo onde o nome é espaço. Neste espaço um “teatro barroco” acontece até que a possuída se aproprie do nome e o diabo confesse quem é. De Certeau encontrou, neste “teatro barroco”, a identidade da possessa. A partir do momento em que estes códigos não-verbais aparecem, o comportamento da possessa aparece. A possuída reemprega, a seu modo, o que lhe é imposto pelo exorcista a partir dos tratados demonólogos. Além disso, por vezes, a possessa se diz estar com mais de um demônio. Nestes casos, há uma transição, pois ela vai passando por várias identidades e, por conseguinte, vários códigos não-verbais vão aparecendo na cena do exorcismo. As transições demoníacas das possuídas despontam em indícios comportamentais das mesmas. Nas palavras do autor 10 CERTEAU, Michel de. A linguagem alterada. A palavra da possuída. In: CERTEAU, M. A escrita da História. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense Univrsitária, 2006. P. 243-265. 32 A pluralidade das identificações provenientes de uma mesma tabela onomástica denega, finalmente, a possibilidade de uma localização, sem recusar o código social (demonológico) já que, em princípio, não existe outro previsto para este caso. O código permanece, mas a possuída o transgride. Ela escorrega de lugar para lugar, recusando, pela sua trajetória, qualquer nome definido estável (...) Num tabuleiro de nomes próprios elas não cessam de deslizar de lugar em lugar, mas não criam uma casa a mais que seria a delas: com relação às denominações recebidas, não foi inventado nenhum acréscimo que lhes fornecesse um próprio.11 O autor aproximou as possessas das feiticeiras. Para o autor, os procedimentos são os mesmos. No entanto, a feiticeira é um fenômeno marginal e rural, enquanto a possessa é urbano: ela se encontra nos conventos. Usaremos a mesma lógica de Michael de Certeau para pensar as bruxas de Labourd. O discurso do livro escrito por Pierre de Lancre é o discurso do inquisidor. Há, no entanto, silêncios e reempregos das bruxas. É neste jogo de apropriações e escolhas sutis e silenciosas que aparecem os indícios. O objetivo será, portanto, pensar estes indícios para falar sobre a cultura popular. Considerações Finais Ao longo deste texto apresentamos ideias que nos oferecem um possível suporte metodológico e, ao mesmo tempo, nos dão justificativas para a escolha dos objetivos da pesquisa dissertativa de mestrado em andamento sobre a obra Tableau de l’inconstance des mauvais anges et démons ou il amplement traité dês sorciers et de la sorcellerie. Os dois autores mais citados no decorrer deste texto, isto é, Ginzburg e de Certeau, adotaram um método investigativo através do indício para compreender suas respectivas documentações. Enquanto Ginzburg propôs um ir e vir entre a documentação imagética e documentos textuais paralelos a imagem, de Certeau operou através do não-dito e através de códigos não verbais para investigar práticas culturais. Assim sendo, propomos colocar o texto e a imagem num mesmo nível de importância para a análise. Estes tipos de documentação histórica podem se completar, mas podem divergir. Um estudo baseado nesta justaposição nos traz os indícios e, ao 11 Ibid., p. 254. 33 nosso ver, nos levam a novas perspectivas historiográficas que até o momento não foram demonstradas por aqueles que estudaram a obra de Pierre de Lancre. 34 Nietzsche: A concepção de História na Segunda Consideração Intempestiva e sua relação com a Teoria da História12 Resumo: O presente artigo tem como proposta expor a pesquisa inicial relacionada a concepção de história e as críticas que Nietzsche faz contra a história e a historiografia de seu tempo, como o historicismo de Ranke e a Filosofia da História de Hegel, e qual é a concepção de história que o filósofo preconiza, usando como referência a história evidenciada por Burckhardt que influenciou o pensamento nietzschiano.O principal escrito a ser utilizado será a Segunda Consideração Intempestiva. A partir da concepção de história nietzschiana traremos um debate teórico com a tentativa de demonstrar as possíveis definições de Teoria da História apontadas por historiadores, como José D` Assunção de Barros, José Carlos Reis e Jörn Rüsen. Posteriormente, serão apontadas as diferenças entre Teoria da História e Filosofia da História. Por fim, após o debate teórico, tentaremos mostrar como essas características expostas na Segunda Consideração Intempestiva podem ter contribuído para a história e historiadores. Palavra Chave: Nietzsche – Concepção de História – Teoria da História – Filosofia da História – Século XIX O presente artigo propõe analisar a concepção de história nietzschiana, na Segunda Consideração Intempestiva: Vantagens e Desvantagens da História para a Vida, que remete ao período de produção intelectual denominado “jovem Nietzsche”13, entre os anos 1870-1876. Segundo Marton14 neste primeiro período de produção o filósofo já se empenha em propor um estudo acerca dos estudos históricos, em sua Segunda Consideração Intempestiva, sendo preconizados os três tipos de historiografia, a história monumental, antiquaria ou tradicionalista e a crítica, explanando suas vantagens e desvantagens. Portanto, Nietzsche rejeita a idéia de que a história possa ser enquadrada em certo domínio do saber, por isso é contra a propensão de sua época, de “transformar” a história em ciência. Seguindo a concepção de história nietzschiana serão expostas as críticas contra a filosofia da história de Hegel, vista como uma história negativa, em contra ponto será indicada uma história positiva, tendo como exemplo a valorização da escrita da história de Burckhardt, para propormos um debate teórico. Por conta de tais indagações, entre a utilidade e desvantagem dahistória para a vida, será trabalhado o que Nietzsche contribuiu ou tem a contribuir para a discussão acerca da história, especificamente, sobre a Teoria e Filosofia da história, com sua concepção de história. 12 Ana Carolina Oliveira é Mestranda em História - Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP – Universidade Estadual Paulista. E-mail: anacarolinaoliveira1234@gmail.com 13 Tal definição temporal foi elaborada pela Scarlett Marton, onde encontramos as obras referentes aos períodos em seu livro: MARTON, Scarlett. capítulo Parte II: Antologia In: Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo. Editora Moderna, 1993. p. 77-113 14 MARTON, Scarlett. O Procedimento Genealógico: vida e valor In: Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo. Editora Brasiliense, 1990. p. 76-77 35 Contudo, primeiramente é importante salientar que o conceito de história15 sofreu inúmeras modificações no decorrer do tempo, dentro deste campo encontramos os debates historiográficos, em suas formas de escrever história, e as teorias16 da história, que são visões de mundo. Principalmente no que concerne a historiografia do século XIX surge a Teoria da História com a constituição da história como ciência, nesta esfera teórica estão inseridos os paradigmas historiográficos, correntes teóricas, como o positivismo, o historicismo e o materialismo histórico entre outros17. Na obra intitulada Razão Histórica, do historiador alemão Jörn Rüsen, Teoria da História é definida como uma metateoria da ciência histórica por promover o pensar sobre o pensamento histórico e promover uma reflexão, em que o eixo é a racionalidade. Portanto, a Teoria da História para Rüsen consiste na análise de aspiração sobre a racionalidade da ciência histórica, pois fundamentar e criticar são atividades racionais, é a busca de suas determinações racionais que são manifestadas, nos próprios fundamentos da ciência histórica18. Se inicialmente uma teoria significa uma “visão de mundo”, independente do campo que está inserida, a Teoria da História ou o paradigma historiográfico é uma “visão histórica do mundo” podendo ser definida também como “uma determinada visão sobre o que vem a ser a própria história”, ou seja, é uma forma de propor “determinada concepção sobre o que é história e sobre o que deve ser a historiografia” 19. É a partir da teoria e do método que a historiografia terá seus alicerces para a construção de uma 15 Um estudo muito rico no que concerne as definições do conceito de história de forma mais detalhada é o livro O Conceito de História organizado pelo Reinhart Koselleck. O livro expõe um conhecimento enriquecedor de como a história se desenvolveu, em relação a concepção e conceito, com o debate sobre objetividade e subjetividade, a metodologia, a discussão em torno da história ciência, e a definição de Historie como narração e a Geschichte como acontecimento. Não será exposto em detalhes o tema Conceito de História, enfatizando no presente projeto apenas a definição de Teoria da História. 16 Segundo José Assunção Barros (1) Teoria é definida como “uma visão de mundo” pela qual os estudiosos e cientistas utilizam para chegar a uma “realidade” e analisar seu objeto de estudo. Portanto, desde o período da antiguidade até os dias atuais pode ter seu significado ligada a ideia de “ver” ou de “conceber” (BARROS, José Assunção. Teoria da História. Vol I: Princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 41-42. (2) “Teoria” remete ainda aos conceitos e categorias que serão empregados para encaminhar uma determinada leitura da realidade, à rede de elaborações mentais já fixadas por outros autores” BARROS, José D`Assunção. A Teoria e a Formação do Historiador In: Teoria da História: Princípios e Conceitos Fundamentais.Vol I. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014. p.66 17 BARROS, José D`Assunção. A Teoria e a Formação do Historiador In: Teoria da História: Princípios e Conceitos Fundamentais. Vol I. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014. p. 70 18 RÜSEN, Jörn. Tarefa e função de uma Teoria da História In: Razão Histórica: Fundamentos da Teoria da História: Fundamentos da ciência histórica. Tradução Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 25-30. 19 BARROS, José D`Assunção. Teoria e História da Filosofia da História In: Teoria da História: Princípios e Conceitos Fundamentais.Vol I. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014. p. 88) 36 história problematizada, afastando-se de uma história de cunho simplista composta apenas por descrição e narração. Em contraposição com a Teoria da História encontramos a Filosofia da História, cujo um dos autores mais conhecidos é Hegel20, que permeia o século XIX com influência de sua filosofia sobre a história. Neste sentido, Hegel estava preocupado com a história como processo, em definir de uma forma específica o sentido da história, o propósito e o fio condutor da história. No entanto, a história constituída como ciência, no século XIX, conduziu grande debate sobre a relação entre história científica e Filosofia da História. Segundo a análise de José Carlos Reis “os historiadores, mesmo procurando se diferenciar de Hegel e dos iluministas estavam impregnados de filosofia da história. O historiador é incapaz de abordar o material histórico sem pressuposições, está impregnado, sem confessá-lo, de idéias filosóficas21” Seguindo o contexto histórico da Alemanha no século XIX, com a influência da concepção de história proposta por Hegel, com outros paradigmas historiográficos, coexistindo com o fato histórico da recém unificação do país e com a preocupação da construção da nacionalidade, Nietzsche escreve a sua Segunda Consideração Intempestiva. Esta é composta por críticas22à concepção de história e a Filosofia da História do período, para Nietzsche a história não estaria servindo a vida e sim sendo subordinada ao Estado como uma ferramenta para a construção da nacionalidade, servindo a uma cultura que se tornou decadente e ocultando essa subordinação sob a autoridade da ciência23. Para Nietzsche, tudo entrou em decadência e desequilíbrio, pois a história estava em excesso causando males como a “doença histórica” com a sua “febre 20 Hegel era um filósofo do final do século XVIII e início do século XIX. Na sua filosofia da história, de forma sucinta, é composta pela concepção de uma história universal na qual a história tem um sentido, um fio condutor, que é a Razão, pois nada está ao acaso. A manifestação da razão é o espírito no tempo e o conteúdo da história é a liberdade, sendo a dialética o pensamento que acompanha o movimento no tempo, mostrando-se como o movimento da realidade se processa. Para mais ver HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. O curso da história universal In: Filosofia da História. Tradução Maria Rodrigues e Hans Harden. 2 edição. Brasília: Editora UNB, 1999. p. 53-72 21 REIS, José Carlos. Introdução In: A história entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Editora Ática. 1999. p. 8-9. 22 Segundo Carlos Reis “Nietzsche teve uma relação superficial com a historiografia, fez uma avaliação negativa dos historiadores alemães objetivos e é visto como um dos primeiros críticos dos métodos históricos do século XIX. REIS, José Carlos. A consciência histórica ocidental pós-1871: Nietzsche e a legitimação da conquista europeia do planeta – o projeto alemão IN: História da Consciência Histórica Ocidental Contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011. p. 165 23 A ciência neste caso tem como referência a definição da história ser tratada como ciência da natureza, ou seja, tentava se aproximar a história
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