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1UNIDADE 1A origem da Filosofia Objetivos de aprendizagem � Identificar os principais fatores históricos que permitiram o surgimento da filosofia. � Comparar as narrativas de Homero e Hesíodo com o nascente discurso filosófico‑racional. � Compreender as principais diferenças entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico. � Compreender as noções de physis, causalidade, arqué, cosmo, lógos e crítica. Seções de estudo Seção 1 O mito como forma de conhecimento Seção 2 Apogeu e declínio da mitologia grega Seção 3 A origem histórica da filosofia Seção 4 Noções fundamentais da mentalidade filosófica 18 Universidade do Sul de Santa Catarina Para início de estudo Pensar é uma atividade que faz parte do ser humano. Tentar compreender nós mesmos e a realidade que nos cerca faz parte da nossa natureza. A necessidade de saber quem somos, de onde viemos, para onde vamos, buscar uma explicação para os acontecimentos e compreender o sentido da vida – tudo isso está presente em todas as civilizações, de forma às vezes mais, às vezes menos elaborada. Mas os gregos antigos inventaram uma forma original de lidar com essas questões. Nesta unidade de estudo, você vai poder identificar quais foram as peculiaridades desse jeito grego de pensar: o jeito filosófico‑científico‑racional. A partir de agora, você é o nosso convidado nessa jornada às origens da filosofia. Seção 1 – O mito como forma de conhecimento Historicamente, cada civilização construiu suas próprias formas de compreender e explicar a realidade. Nos primórdios do processo civilizatório, a carência de informações sistematizadas, de métodos de investigação e de instrumentos de pesquisa faz com que a explicação dos fenômenos naturais seja simplista (às vezes, simplória), parcial e com uma forte tendência ao subjetivismo. A vida em sociedade exige que se estabeleça um conjunto de verdades aceitas coletivamente. Sem essa base compartilhada de crenças, a convivência em grupo não seria viável. Mas como fazer com que todos os indivíduos de uma sociedade aceitem as mesmas explicações como sendo as verdadeiras? Uma saída simples e eficaz para esse problema é o mito. 19 História da Filosofia I Unidade 1 O mito consiste numa narrativa passada de geração a geração, contendo, geralmente, elementos que podem ser utilizados na explicação de fenômenos naturais ou na prescrição de condutas morais. O mito não é apresentado como verdade absoluta, e sim como um conhecimento elaborado por antigos ancestrais ou indivíduos extraordinários que, por sua grande sabedoria ou até mesmo por poderes sobrenaturais, teriam compreendido a realidade de uma forma mais profunda. Em cada cultura, os mitos mais fundamentais são os chamados “mitos de origem”, aqueles que narram a forma como o mundo foi criado e, mais especificamente, como o ser humano e o próprio grupo social foram criados. Esse tipo de mito tem sido encontrado nas raízes de todas as culturas que conhecemos atualmente. Um bom exemplo de um mito de origem é a narrativa que encontramos no Gênesis, o primeiro livro da Bíblia Sagrada. Nessa narrativa, temos uma descrição da origem do mundo a partir da vontade de Deus. Segundo o Gênesis, o Deus único produz o universo a partir do nada e gera também um ser especial, o ser humano, para reinar sobre os outros seres. Essa narrativa descreve também a origem do bem (a vontade de Deus) e do mal (desobediência humana) e estabelece as bases da ação moral. Além disso, ela descreve o surgimento de diferentes povos e culturas e estabelece a ideia de “povo escolhido”. O mito de origem serve para dar uma resposta àqueles questionamentos mais fundamentais que nos afligem quando buscamos encontrar um sentido para a nossa própria existência: a origem do mundo e do ser humano, a vida e a morte, o bem e o mal, a saúde e a doença, a guerra e a paz, etc. É uma explicação que serve de fundamento para todas as outras explicações. Além dos mitos de origem, há também mitos mais específicos, que servem para explicar fenômenos particulares, como os ventos, por exemplo, ou mesmo um acontecimento particular 20 Universidade do Sul de Santa Catarina como, por exemplo, a guerra de Troia. Em todas as suas variedades, o conhecimento mítico é uma resposta para tudo aquilo que é inexplicável, quando se utilizam apenas as experiências já acumuladas. O conhecimento mítico possui algumas características e limitações que o diferenciam de outros tipos de conhecimento mais elaborados, disponíveis atualmente. Vejamos essas características: � O mito é uma representação alegórica da realidade, uma fantasia. Enquanto conhecimento da realidade, o mito não possui a intenção de ser uma explicação exata. Ao contrário, ele possui apenas uma significação simbólica. Dessa forma, o mito é uma ficção que serve de analogia para que se possa compreender a realidade. � O mito utiliza elementos sobrenaturais para explicar os fenômenos naturais. Ele se torna útil justamente quando não conseguimos dar uma explicação racional para os fatos do cotidiano. Quando temos necessidade de superar um problema cognitivo, o mito surge como uma estratégia eficaz, que consiste em empurrar o problema para fora do alcance das nossas angústias mais ordinárias. Querer saber por que está ventando é uma pretensão cognitiva legítima. Mas, se não houver nenhuma resposta convincente para essa questão, uma boa saída é afirmar simplesmente que o deus do vento está fazendo ventar. Por outro lado, querer saber por que o deus do vento está fazendo ventar já extrapola os limites das nossas pretensões cognitivas legítimas. O recurso ao sobrenatural é a saída mais fácil e eficaz sempre que se esgotam as possibilidades da explicação racional. � O mito é maleável. Embora tenha uma estrutura que se mantém mais ou menos inalterada, certos detalhes podem ser deixados de lado ou suprimidos, ou, ao contrário, podem ser supervalorizados, dependendo de cada situação ou da intenção de quem faz a narrativa. Além disso, como vai passando de geração a geração, o mito vai‑se modificando ao longo do tempo e adaptando‑se a novas situações. 21 História da Filosofia I Unidade 1 � O mito envolve uma carga muito grande de subjetividade. Já na sua origem, o mito é uma representação subjetiva e arbitrária, dado que ele precisa ser criado por alguém. Todo mito tem um autor, alguém que contou a estória pela primeira vez. É claro que, ao ser contada novamente por outra pessoa, essa estória vai ganhar novas nuanças. Cada novo narrador torna‑se co‑autor do mito. Cada um dá a sua contribuição subjetiva à narração. � Embora envolva uma grande dose de subjetividade, o mito é sempre um fenômeno cultural. Trata‑se de uma narrativa de domínio público e funciona como uma representação da verdade que é aceita, de forma implícita, por cada um dos membros da coletividade. O próprio fato da aceitação de um mito por um determinado indivíduo pode ser tomado como critério para a sua inclusão, ou não, em um determinado grupo social. A aceitação geral do mito, sem questionamentos, serve como um elemento que reforça a unidade de um povo. Para que o mito possa alcançar plenamente a sua finalidade, é comum o encontrarmos, no processo civilizatório, associado a mecanismos de imposição social. Cada indivíduo, como membro de um grupo marcado por uma identidade cultural, deve aceitar como adequadas as explicações dadas pela tradição, sem questioná‑las. Além disso, o mito possui vários mecanismos de convencimento. O principal é a educação. Para garantir que os mitos não se percam com o passar do tempo, eles são incorporados na formação das novas gerações. Assim, as crianças precisam conviver, desde pequenas, com as narrativas míticas. O conhecimento dos mitos e a capacidade de narrá‑los de forma completa e detalhada passam a constituir um dos sinais de refinamento cultural. Mas só a educação não é suficiente para garantir a aceitação universaldo mito. Por isso um segundo mecanismo de sua imposição social é a religião. É comum encontrarmos, nas sociedades mais antigas, a função de explicação dos fenômenos da realidade associada à função religiosa. Isso faz sentido na medida em que ambas fazem referência a elementos 22 Universidade do Sul de Santa Catarina sobrenaturais. Assim, traçar os limites entre mitologia e religião pode ser uma tarefa difícil ou mesmo impossível. Um terceiro mecanismo de imposição do mito é o poder político. Na maioria das civilizações, o poder político surge e se desenvolve intimamente associado ao poder religioso. Dessa forma, a aceitação geral e incondicional de certos mitos interessa ao Estado. Nesse sentido, o poder político se encarrega de estabelecer normas que obriguem a aceitação de certas versões de um mito em detrimento de outras versões e de outros mitos. Atenção! Como você pode ver, o mito tem um papel fundamental no florescimento de uma cultura. Mas o conhecimento mítico tem muitas limitações também. Entre as limitações do conhecimento mítico, podemos destacar duas fundamentais: sua reduzida capacidade explicativa e sua restrita abrangência populacional. A primeira grande limitação do mito é a falta de uma base concreta que sustente suas explicações. Como vimos, o conhecimento mítico é elaborado para suprir as carências do conhecimento empírico; trata‑se de uma explicação alegórica para aquilo que é inexplicável a partir dos dados da experiência. O mito é uma explicação forjada, sem compromisso com a verdade. A outra grande limitação tem uma feição política. Todo mito é sempre fruto de uma cultura. E toda cultura tem seus mitos. Isso faz com que toda vez que ocorra um contato entre duas ou mais culturas, surja um conflito entre mitos. Quando o mito determina a compreensão da própria existência de um grupo social e da realidade que o cerca, um confronto entre mitos implica um conflito existencial para toda uma população. O choque entre mitos concorrentes coloca em risco a própria identidade cultural de um povo. Isso faz com que o diálogo intercultural torne‑se algo indesejável nas sociedades que se fundamentam sobre mitos, levando‑as ao fundamentalismo e à intolerância. 23 História da Filosofia I Unidade 1 Atenção! Como você pode ver, o mito possui qualidades e vantagens que seduzem o ser humano. Mas também apresenta desvantagens e riscos que não podem deixar de ser levados em consideração. Na Antiguidade mais remota, todas as grandes civilizações cresceram sustentadas pelos mitos. Entretanto, por volta do séc. VI a.C., uma civilização emergente, que até então se desenvolvera alicerçada nos mitos, vislumbrou um caminho diferente. Era a civilização grega que, devido a uma confluência de fatores históricos, geográficos e culturais, tornou‑se o berço da democracia, da filosofia e da ciência. Eles não sabiam, mas esse novo caminho mudaria a história da humanidade. É essa nova proposta civilizatória que nós veremos a partir da próxima seção. Seção 2 – Apogeu e declínio da mitologia grega A mitologia grega formou‑se a partir da tradição oral popular. Para facilitar a memorização, as narrativas mitológicas eram transformadas em poemas, que se decoravam e eram costumeiramente recitados como entretenimento. Com o passar do tempo, surge na Grécia uma classe artística composta de aedos (poetas que recitavam suas próprias composições) e rapsodos (artistas que recitavam poemas de outros autores ou mesmo poemas de domínio público). As comemorações religiosas e cívicas costumavam ser abrilhantadas pela participação de aedos e rapsodos, alguns dos quais se tornaram personalidades ilustres da história grega. 24 Universidade do Sul de Santa Catarina Homero O mais famoso poeta grego foi Homero (séc. IX a.C.). Costuma‑se atribuir a ele a autoria de dois poemas épicos: a Ilíada e a Odisséia. Homero era cego e, talvez por isso, tenha desenvolvido a habilidade de memorização de forma tão extraordinária: a Ilíada é formada por 15.693 versos e a Odisséia, por 12.110. As apresentações de Homero consistiam em espetáculos que duravam vários dias e atraíam multidões. Homero tornou‑se um grande ídolo. Muitos poetas tentavam imitá‑lo. O público se esforçava em decorar pelo menos algumas dezenas de versos, para conferir se o poeta era capaz de repetir exatamente os mesmos versos em uma outra apresentação. Figura 1.1 - O poeta Homero Fonte: Portal dos professores, (2006). O sucesso de Homero ajudou a difundir o dialeto que ele usava nos poemas, e isso foi decisivo para conferir certa unidade linguística à cultura grega. As histórias de deuses e heróis passaram a fazer parte do imaginário coletivo. A memorização dos versos mais famosos e a incorporação dos ideais neles contidos tornaram‑se a base da educação grega. Mas qual era a concepção de mundo dos poemas de Homero? 25 História da Filosofia I Unidade 1 Os poemas de Homero relatam os feitos dos grandes heróis, seres extraordinários, de sangue nobre, notáveis por suas virtudes (areté) e que deveriam ser vistos como modelo para a ação humana. As virtudes desses heróis são a coragem, a força física, a habilidade no uso de armas, o poder de persuasão através do discurso e, principalmente, a lealdade. Para o herói das epopeias homéricas, a honra vale mais que a própria vida. E, em busca dessa honra, o herói deve esforçar‑se para se sobressair e para que seu nome seja lembrado por incontáveis gerações. O herói homérico é aquele que luta continuamente para superar em qualidades todos que o cercam e também para superar a si mesmo. A ação do herói, no entanto, é limitada pelo destino e sofre constantemente a interferência dos deuses. O destino, uma vez traçado, não pode mais ser alterado. Além disso, o herói precisa compreender que, sem a ajuda dos deuses, ele se torna incapaz de alcançar seus objetivos. A pior desgraça na vida humana, mesmo para um herói, é o ódio dos deuses. Portanto o complemento necessário das virtudes do herói é a piedade (a devoção e o respeito aos deuses). Hesíodo Outro poeta fundamental para o desenvolvimento da mitologia grega foi Hesíodo (séc. VIII a.C.). Como aedo, Hesíodo tornou‑se famoso e reverenciado por toda a cultura grega. Em sua obra Teogonia (do grego theos: deus, e gonia: origem), Hesíodo faz uma compilação bastante completa da origem e genealogia dos deuses. Hesíodo sistematizou os antigos mitos da criação e organizou as relações entre deuses e heróis numa sequência lógica. A genealogia é composta por três gerações: a de Urano (céu), a de Cronos (tempo) e a de Zeus. Numa outra obra, Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo situa a origem da humanidade em uma etapa da sucessão de raças em decadência: à raça de ouro seguem‑se as raças de prata, de bronze, a dos heróis e, Figura 1.2 - O poeta Hesíodo Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais, [20??]. 26 Universidade do Sul de Santa Catarina por fim, a raça de ferro, à qual nós próprios pertencemos. Assim, Hesíodo desqualifica a origem nobre como elemento fundamental da virtude. Se todos nós somos descendentes decaídos de raças mais elevadas, não é a origem familiar que nos torna melhores, ou piores. Dessa forma, Hesíodo nivela todos os seres humanos. Para ele, o que realmente nos diferencia é o esforço individual na busca da excelência. Em Hesíodo, a interferência dos deuses sobre a ação humana é minimizada. Embora os deuses tenham interferido nas ações das outras raças, inclusive nas ações dos heróis, nossa raça tornou‑se insignificante para eles e ficou entregue a si mesma. A busca da excelência (areté) através do esforço pessoal é a única forma de que o ser humano agora dispõe para fugir dos infortúnios da vida. Os deuses, embora existam e tenham poder para interferir na vida humana, distanciam‑se e passam a se preocupar consigo mesmos. Essas duas inovações de Hesíodo, o nivelamento da espécie humana e o distanciamento dos deuses,formaram as bases ideológicas para o aparecimento da democracia e para a laicização da cultura grega. Seção 3 – A origem histórica da filosofia A temática sobre as origens da filosofia é tão antiga como sua consolidação em forma de pensamento (tipo de conhecimento). Já, na Antiguidade, há o debate entre a tese orientalista e a ocidentalista. A primeira defende que os gregos nada fizeram além de aperfeiçoar elementos do pensamento oriental. A segunda defende a tese do milagre grego, tomando a filosofia como uma criação puramente grega. Laicização: processo de tornar laico ou de desvincular de conotações religiosas. 27 História da Filosofia I Unidade 1 Esse debate perdurou até o final do século XIX, mudando com as novas descobertas arqueológicas do final do século XIX e início do século XX, com a confluência de novas pesquisas da linguística e da antropologia, particularmente quanto ao estudo da mentalidade primitiva ou arcaica. Passa‑se, então, a procurar entender de que modo, num dado ambiente e em certas condições históricas, a mentalidade mítica foi dando lugar à mentalidade filosófico‑científica. Não se trata mais de pensar a filosofia como um milagre, no sentido religioso; tampouco pensá‑la como mero legado do Oriente. Certamente os gregos antigos desenvolveram o legado oriental e são devedores deste: a matemática e a astronomia constituem bons exemplos disso. Contudo muitos historiadores contemporâneos defendem que a filosofia, enquanto uma forma de pensamento, uma teorização, é uma invenção grega. Jean‑Paul Vernant, um helenista, defende ter sido uma série de condições sociopolíticas que levaram a essa mudança de mentalidade. Marilena Chaui (2000a, p. 31‑32), em parte, fundamentando‑se neste helenista, resume essas condições: Helenista: estudioso que se dedica a investigar a história e a cultura da Grécia antiga. � As viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer. � A invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível. � A invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização. 28 Universidade do Sul de Santa Catarina � O surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir. � A invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas ‑‑ como por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses ‑‑ , supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a ideia dela, o que dela se pensa e se transcreve. � A invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia: 1. A ideia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade – da pólis – servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional. 2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Nesse, um poeta‑vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses a que eles deveriam obedecer. Agora, com a pólis, isto é, a cidade política [cidade‑estado], surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti‑la com os outros, persuadi‑los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica. 29 História da Filosofia I Unidade 1 3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia. Fonte: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, (2008). Essa passagem de uma narrativa mítica (caracterizada por um discurso sacralizante, que busca dar conta das origens, não como produto de um ser humano transformador, mas de uma divindade [ou divindades], que traça [ou traçam] o destino dos seres humanos) para uma narrativa centrada na racionalidade – o lógos – não se deu repentinamente, e muitos elementos que encontramos nos primeiros filósofos – os pré‑socráticos – ainda carregam aspectos míticos. Seção 4 – Noções fundamentais da mentalidade filosófica De acordo com Danilo Marcondes (2001, p. 22‑27), algumas noções são fundamentais para entendermos a diferenciação entre o pensamento mítico e o filosófico‑científico. São elas: a physis, a causalidade, a arqué (ou arkhé), o cosmo, o lógos e o caráter crítico. Veja‑as em detalhes, na sequência. 1 – A physis Esta palavra grega pode ser traduzida por natureza, entendendo esta em, pelo menos, três sentidos, conforme Chaui (2000b, p. 257): 30 Universidade do Sul de Santa Catarina 1) processo de nascimento, surgimento, crescimento (sentido derivado do verbo phýomai); 2) disposição espontânea e natureza própria de um ser; características naturais e essenciais de um ser; aquilo que constitui a natureza de um ser; 3) força originária criadora de todos os seres, responsável pelo surgimento, transformação e perecimento deles. Physis é o fundo inesgotável de onde vem o Kósmos; e é fundo perene para onde regressam todas as coisas, a realidade primeira e última de todas as coisas. Assim, a physis é o mundo natural, a totalidade dos entes, a totalidade daquilo que é. 2 – A causalidade Esta totalidade, reforça Marcondes (2001, p. 24‑25), é engendrada (produzida) por uma relação de causa e efeito. A característica central da explicação da natureza pelos primeiros filósofos é, portanto, o apelo à noção de causalidade,interpretada em termos puramente naturais. O estabelecimento de uma conexão causal entre determinados fenômenos naturais constitui assim a forma básica da explicação científica e é, em grande parte, por esse motivo que consideramos as primeiras tentativas de elaboração de teorias sobre o real como o início do pensamento científico. Explicar é relacionar um efeito a uma causa que o antecede e determina. Explicar é, portanto, reconstruir o nexo causal existente entre os fenômenos da natureza, é tomar um fenômeno como efeito de uma causa. É a existência desse nexo que torna a realidade inteligível e nos permite considerá‑la como tal. É importante, entretanto, que o nexo causal se dê entre fenômenos naturais. Isto porque podemos considerar que o pensamento mítico também estabelece explicações causais. Assim, na narrativa da guerra de Tróia na Ilíada de Homero, vemos os deuses tomar o partido dos gregos e dos troianos e influenciar os acontecimentos em favor destes ou daqueles, portanto, fenômenos humanos e naturais têm nesse caso causas sobrenaturais. Trata‑se de uma explicação causal, porém dada através da referência 31 História da Filosofia I Unidade 1 a causas sobrenaturais. É por isso que o que distingue a explicação filosófico‑cientí fica da mítica é a referência apenas a causas naturais. A explicação causal possui, entretanto, um caráter regressivo. Ou seja, explicamos sempre uma coisa por outra e há assim a possibilidade de se ir buscando uma causa anterior, mais básica, até o infinito. Cada fenômeno poderia ser tomado como efeito de uma nova causa, que por sua vez seria efeito de uma causa anterior, e assim sucessivamente, em um processo sem fim. Isso, contudo, invalidaria o próprio sentido da explicação, pois, mais uma vez a explicação levaria ao inexplicável, a um misté‑ rio, portanto, tal como no pensamento mítico. Para evitar que isso aconteça, surge a necessidade de se estabelecer uma causa primeira, um primeiro princípio, ou conjunto de princípios, que sirva de ponto de partida para todo o processo racional. É aí que encontramos a noção de arqué. 3 – Arqué (ou arkhé) A arqué é o princípio originário. Tem também o sentido de comando e, como aponta Marcondes (2001, p. 25‑26), serve para resolver o problema da causalidade ao infinito. A importância da noção de arqué está exatamente na tentativa por parte desses filósofos de apresentar uma explicação da realidade em um sentido mais profundo, estabelecendo um princípio básico que permeie toda a realidade, que de certa forma a unifique, e que ao mesmo tempo seja um elemento natural. Tal princípio daria precisamente o caráter geral a esse tipo de explicação, permitindo considerá‑la como inaugurando a ciência. Mais à frente você verá como a arkhé foi tratada por cada um dos filósofos originários – os pré‑socráticos. 32 Universidade do Sul de Santa Catarina 4 – O cosmo Em grego, cosmo significa ordenado, ornado. Tendo presente essas acepções, podemos entender o cosmo como belo – logo, um princípio, também, estético –, pois o que é bem ordenado, harmônico, é belo e justo. Nesse sentido, diz Marcondes (2001, p. 26) que O cosmo é assim o mundo natural, bem como o espaço celeste, enquanto realidade ordenada de acordo com certos princípios racionais. A idéia básica de cosmo é, portanto, a de uma ordenação racional, uma ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos, e que se constitui de forma determinada, tendo a causalidade como lei principal. O cosmo, entendido assim como ordem, opõe‑se ao caos ( , que seria precisamente a falta de ordem, o estado da matéria anterior à sua organização. É importante notar que a ordem do cosmo é uma ordem racional, “razão” significando aí exatamente a existência de princípios e leis que regem, organizam essa realidade. É a racionalidade deste mundo que o torna compreensível, por sua vez, ao entendimento humano. É porque há na concepção grega o pressuposto de uma correspondência entre a razão humana e a racionalidade do real – o cosmo – que este real pode ser compreendido, pode‑se fazer ciência, isto é, pode‑se tentar explicá‑lo teoricamente. Daí se origina o termo “cosmologia”, como explicação dos processos e fenômenos naturais e como teoria geral sobre a natureza e fundamento do universo. 5 – O lógos Lógos, a principal noção filosófica, pode ser traduzida por palavra, discurso, “razão”. É a narrativa explicativa, a qual supõe encadeamento de juízos de forma coerente e o estabelecimento das relações de causa e efeito racionalmente. Nesse sentido, difere‑se de mythos – o discurso mítico, dos poetas, pois, neste, certos princípios lógicos não são necessários. Para reforçar tudo isso, tomemos Marcondes (2001, p. 26‑27) novamente: No geral, para os gregos antigos, certos conceitos têm concomitantemente um sentido estético, ético, utilitário e ontológico. Mesmo assim, cabe salientar que, nos pensadores originários – os pré-socráticos -, a relação entre ética e estética ainda não está totalmente consolidada. É a partir de Sócrates, particularmente como a noção de kalokagathia – ser belo e bom – que isso se consolidará. Contudo esse aspecto em particular será tema de outra disciplina: a Estética. 33 História da Filosofia I Unidade 1 O lógos é fundamentalmente uma explicação, em que razões são dadas. É nesse sentido que o discurso dos primeiros filósofos, que explica o real por meio de causas naturais, é um lógos. Essas razões são fruto não de uma inspiração ou de uma revelação, mas simplesmente do pensamento humano aplicado ao entendimento da natureza. O lógos. É, portanto, o discurso racional, argumentativo, em que as explicações são justificadas e estão sujeitas à crítica e à discussão (ver tópico seguinte). Daí deriva, por exemplo, o nosso termo “lógica”. Porém, o próprio Heráclito caracteriza a realidade como tendo um lógos, ou seja, uma racionalidade (ver o conceito de cosmo acima) que seria captada pela razão humana. Portanto um dos pressupostos básicos da visão dos primeiros filósofos é a correspondência entre a razão humana e a racionalidade do real, o que tornaria possível um discurso racional sobre o real. 6 – O caráter crítico Essa é a verdadeira essência da atitude filosófica. Diferente das noções anteriores, que são teóricas, essa é uma noção prática, relacionada à atitude necessária para que se possa pensar filosoficamente. Baseado em Popper, Marcondes (2001, p. 27) descreve assim essa noção: Um dos aspectos mais fundamentais do saber que se constitui nessas primeiras escolas de pensamento, sobretudo na escola jônica, é seu caráter crítico. Isto é, as teorias aí formuladas não o eram de forma dogmática, não eram apresentadas como verdades absolutas e definitivas, mas como passíveis de serem discutidas, de susci tarem divergências e discordâncias, de permitirem formulações e propostas alterna tivas. Como se trata de construções do pensamento humano, de idéias de um filósofo – e não de verdades reveladas, de caráter divino ou sobrenatural –, estão sempre abertas à discussão, à reformulação, a correções. O que pode ser ilustrado pelo fato de que, na escola de Mileto, os dois principais seguidores de Tales, Anaxímenes e Anaximandro, não aceitaram a idéia do mestre de que a água seria o elemento pri mordial, postulando outros elementos, respectivamente o ar e o apeiron, como tendo esta função. Isso pode ser tomado como sinal de que nessa escola 34 Universidade do Sul de Santa Catarina filosófica o debate, a divergência e a formulação de novas hipóteses eram estimulados. A única exigência era que as propostas divergentes pudessem ser justificadas, explicadas e fundamen tadas por seus autores, e que pudessem, por sua vez, ser submetidas à crítica. Síntese Entre os séculos X e VI a.C., os gregos antigos inventaram uma forma original de explicar a realidade. Essa nova forma de pensar se caracteriza por uma valorização do ser humanoenquanto parâmetro para compreender o universo, e se opõe às explicações baseadas em decisões divinas e em forças sobrenaturais. Uma série de condições sociopolíticas contribuíram para o desenvolvimento dessa nova mentalidade. Entre elas, podemos destacar as viagens marítimas, o surgimento da vida urbana e a invenção do calendário, da moeda, da escrita alfabética e da política. Essa passagem de uma mentalidade mítica para uma mentalidade centrada na racionalidade ocorreu de forma lenta e gradual. Mas, a partir do séc. VI a.C., já é possível identificar algumas noções fundamentais da mentalidade filosófica: a physis, a causalidade, a arqué, o cosmo, o lógos e o caráter crítico. 35 História da Filosofia I Unidade 1 Atividades de autoavaliação Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O gabarito está disponível no final do livro didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem. 1) Em relação às condições sociopolíticas que levaram ao declínio da mentalidade mítica e ao surgimento da mentalidade filosófica, numere a 2ª coluna de acordo com a 1ª (alguns números se repetem): 1. Viagens marítimas 2. Invenção do calendário 3. Invenção da moeda 4. Surgimento da vida urbana 5. Invenção da escrita alfabética 6. Invenção da política a) ( ) Produz uma capacidade de abstração nova, tornando a percepção do tempo como algo natural, e não como um poder divino. b) ( ) Estimula uma nova formulação das explicações, que seja acessível à compreensão de todos, e não mais apenas de uma minoria de iniciados. c) ( ) Produz o desencantamento e a desmistificação do mundo. d) ( ) Faz aparecer um novo tipo de discurso, fundado no diálogo, na discussão e na persuasão, diferente daquele que era proferido pelo mito e que pretendia ter sua origem em uma revelação sobrenatural. e) ( ) Produz mudanças econômicas e sociais como a valorização do comércio e do artesanato e a diminuição do prestígio da aristocracia proprietária de terras, para quem os mitos foram criados. f) ( ) Revela uma nova capacidade de abstração e de generalização, que permite comparar coisas totalmente diferentes. g) ( ) Introduz a ideia de lei como expressão da vontade humana. h) ( ) Revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que permite representar ideias abstratas. 36 Universidade do Sul de Santa Catarina 2) A invenção da filosofia na Grécia antiga representou o surgimento de uma nova forma de pensar. Isso não significa que as outras formas desapareceram totalmente. Ao contrário, até hoje encontramos formas de compreender e explicar a realidade que são amplamente difundidas e que não se enquadram nas exigências que caracterizam a filosofia. Um bom exemplo disso é a religião. O Livro Gênesis (1º livro da Bíblia), por exemplo, narra a origem do mundo e da humanidade, e o faz de uma forma totalmente diferente da forma filosófica. Propomos, então, que você identifique essa diferença, seguindo este roteiro: a) identifique as noções fundamentais da mentalidade filosófica; b) leia a parte inicial do Gênesis (Basta ler o capítulo 1. Caso você não tenha uma Bíblia, consulte o e‑book respectivo, disponível na Internet, e acessível por seu buscador e navegador preferido); c) verifique, uma a uma, se as noções fundamentais da mentalidade filosófica estão contempladas no texto bíblico. Que resultado você encontrou? 37 História da Filosofia I Unidade 1 3) Vamos aprender grego? Escreva a palavra grega que corresponde a cada um dos vocábulos abaixo: a) origem; elemento primordial: _______________ b) natureza: _______________ c) razão: _______________ d) cidade‑Estado: _______________ e) virtude/excelência: _______________ f) ordenado [aquilo que está em ordem]: _______________ g) desordenado: _______________ Saiba mais Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade, consultando as seguintes referências: MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré‑socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000a. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000b.