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Autora: Profa. Angélica Carlini Colaboradoras: Profa. Elizabeth Nantes Cavalcante Profa. Maria Cecilia Labate Maiolini Rebello Pinho Teoria Geral do Estado Professora conteudista: Angélica Carlini Natural de Araraquara, estado de São Paulo, é graduada em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e advogada atuante nas áreas de Direito do Seguro, Responsabilidade Civil e Relações de Consumo. É doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2012; doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2006; mestre em Direito Civil pela Universidade Paulista (UNIP), em 2002; e mestre em História Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1995. Possui pós-doutorado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 2015, sob orientação do Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet. Professora do curso de Direito da UNIP desde 1998 e membro da Comissão de Qualificação e Avaliação (CQA) desde 2009. Ministra as disciplinas de Direito Empresarial, Direito do Consumidor, Filosofia do Direito, História do Direito, Direitos Humanos e Ciência Política. Escreve material didático para os cursos de Educação a Distância da UNIP e ministra aulas no curso de Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C282t Carlini, Angélica. Teoria Geral do Estado / Angélica Carlini. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 88 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Formação do estado moderno. 2. Elementos do estado. 3. Finalidade do estado. I.Título. CDU 340 U510.24 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Carla Moro Ricardo Duarte Sumário Teoria Geral do Estado APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 FORMAÇÃO HISTÓRICA E POLÍTICA DO ESTADO MODERNO ......................................................... 11 1.1 Aspectos preliminares ......................................................................................................................... 11 2 ORIGEM DO ESTADO MODERNO ............................................................................................................... 12 2.1 Conceito de Estado .............................................................................................................................. 12 3 ORIGEM HISTÓRICA DO ESTADO MODERNO ....................................................................................... 20 4 CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU PARA A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO ............................................................................................................ 33 Unidade II 5 ELEMENTOS DO ESTADO ............................................................................................................................... 58 5.1 Elementos do Estado – a soberania .............................................................................................. 59 6 TERRITÓRIO ........................................................................................................................................................ 63 7 POVO .................................................................................................................................................................... 65 8 FINALIDADE DO ESTADO – O BEM COMUM ......................................................................................... 74 8.1 Poder do Estado – político e jurídico ........................................................................................... 75 7 APRESENTAÇÃO A disciplina Teoria Geral do Estado tem por objetivo qualificar o aluno para a compreensão da formação e da organização do Estado contemporâneo, local privilegiado para a prática do conhecimento do Direito. A compreensão do papel do Estado, de sua organização e de suas práticas permitirá ao aluno do curso de Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro atuar com segurança e eficiência, porque conhecerá satisfatoriamente o ente do qual emanam todas as determinações essenciais para sua prática profissional: o Estado. O estudo vai permitir o conhecimento da trajetória histórica que leva as diferentes sociedades a se organizarem na forma de Estado, que restringe a liberdade de todos para garantir que todos tenham direitos e possam exercê-los. O aluno compreenderá também como o Estado se organiza para garantir a segurança da sociedade, no que concerne tanto à vida de cada um como aos bens que venham a possuir. A atuação do Estado se faz com o uso dos institutos de Direito, em especial as leis, que garantem direitos e exigem deveres de cada cidadão. Neste livro-texto, o aluno poderá compreender como o Direito se tornou essencial para a organização do Estado e por que é preciso conhecer o Direito para poder atuar na intermediação entre o público e o privado, como acontecerá no exercício da profissão de Gestor de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro. Seja trabalhando em escritórios de advocacia, em departamentos jurídicos de empresas públicas ou privadas, em cartórios de registro ou em tabelionatos de notas e registros, o profissional dessa área deverá possuir capacidade para compreender o papel do Estado, sua formação e atuação, com o objetivo de marcar sua ação profissional pela qualidade e eficiência. INTRODUÇÃO O Direito está presente em nossa vida cotidiana de forma muito constante e diversificada. É preciso ter um olhar atento para percebê-lo em nossas vidas, mas, se nos concentrarmos nisso, vamos identificar muitas formas por meio das quais o Direito dita as nossas regras de conduta todos os dias. Por exemplo, se resolvermos fazer uma festa de família ou com os amigos, teremos que obedecer à regra de não fazer barulho após o horário das 22 horas, para não perturbar os vizinhos. Isso vale para quem mora em casas ou apartamentos; as pessoas molestadas pelo barulho poderão chamar a polícia, que terá poder para intervir, inclusive obrigando a encerrar a festa. Se resolvermos que nosso filho de 6 anos não será matriculado em uma escola porque entendemos que é melhor que seja alfabetizado em casa, pelos próprios pais e também pelos avós, em especial porque assim poderá receber conhecimentos que não entrem em choque com nossas crenças religiosas, por exemplo, poderemos ser processados pelo Estado e, em situações muito graves, poderemos até 8 perder o direito de guarda de nossos filhos, que serão entregues para outro familiar ou para abrigos, onde serão criados pelo Estado.Se ficarmos irritados com nosso cachorro que late muito ou que está sempre rosnando para as crianças da casa, e essa irritação nos levar a dar uma surra no animal, causando ferimentos, poderemos ser desapossados do cachorro e punidos pelo Estado, caso essa atitude seja levada ao conhecimento da polícia, por exemplo, ou de uma entidade protetora dos animais. Duas latinhas de cerveja ingeridas na festa de final de ano da empresa poderão resultar em graves consequências jurídicas se um guarda de trânsito nos surpreender dirigindo após tomarmos a bebida alcóolica. Poderemos ter a carteira nacional de habilitação suspensa e, se por acaso formos profissionais que precisam dirigir diariamente como motorista de ônibus, motorista particular de empresa ou representante comercial, poderemos perder o emprego, porque não temos mais condições de dirigir veículos regularmente. E não será preciso que tenhamos causado um acidente com vítimas, com danos materiais ou corporais; bastará que o policial nos aborde e peça que realizemos um exame de dosagem alcoólica. Se estivermos acima do limite de dosagem alcoólica permitido, seremos punidos com a apreensão do veículo e a cassação da autorização para dirigir e, ainda, seremos multados. Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados para demonstrar o quanto o Direito está presente em nossas vidas; as diferentes formas pelas quais ele dita o nosso modo de proceder impedem que façamos muitas coisas que temos vontade e, principalmente, restringem nossas opções e escolhas. O Direito pode agir de forma restritiva em nossas vidas? E mais, devemos concordar com essa constante intervenção do Direito em nossas vidas? Não temos escolha. O Direito existe para regular a vida em sociedade e como vivemos nessa sociedade; logo, só temos duas escolhas: nos submeter às regras do Direito ou sofrer as consequências que resultam do descumprimento dessas normas. Na realidade, o Direito e a organização que ele imprime à sociedade são uma exigência de todos nós para conseguirmos viver em segurança. Na verdade, o Direito organiza a vida em sociedade e impõe sanções pelo descumprimento das normas porque os seres humanos vivenciaram experiências tão difíceis quando não havia lei, ou quando havia apenas a lei do mais forte, que a presença constante do Direito em nossas vidas foi um pedido dos próprios seres humanos. De fato, antes de possuirmos uma sociedade organizada na forma de Estado, com múltiplos deveres a serem obedecidos diariamente e nas mais diversas situações, vivíamos à mercê do humor dos que eram mais fortes e que podiam praticar atos de força para conseguir o que quisessem. Foi por meio da organização dos grupos sociais, e, consequentemente, com o estabelecimento de direitos, deveres e sanções para o descumprimento dos deveres, que os seres sociais conseguiram se organizar, compreender a necessidade de manter essa organização e progredir para alcançar maior bem-estar para todos. Superada a etapa histórica de organização do Estado, foi preciso aprimorar as diversas instituições que contribuem para que essa organização seja bem-sucedida, como é o caso do poder 9 Legislativo, do Judiciário e do Executivo. Os três poderes são fundamentais para a organização social, já que de um deles emanam as leis, que são propostas e votadas por representantes da sociedade, ou seja, do povo; do Executivo é a responsabilidade por aplicar essas leis em benefício de todos, indiscriminadamente; e, por fim, ao Poder Judiciário compete decidir os conflitos entre particulares ou entre o Estado e os particulares. O correto funcionamento dos poderes e de todas as instituições criadas para garantir que eles atuem de forma eficiente é fundamental para o equilíbrio da vida em sociedade. Equilíbrio significa vida sem insegurança e com garantia da possibilidade de vivermos nossos projetos e sonhos, dentro da liberdade que temos e que o Direito protege. Não foi muito simples chegarmos a esse modelo de Estado e de poderes constituídos que temos na atualidade. Tanto é verdade que, até hoje, ainda discutimos a organização do Estado e partilhamos opiniões sobre a necessidade da existência de algumas instituições e a desnecessidade de outras. Muitas vezes discutimos sobre o papel do Parlamento (será que precisamos de duas casas parlamentares federais, Senado e Câmara?), do Judiciário (será que a indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal não deveria ser feita de outra forma que não pelo presidente da república?) ou, ainda, sobre o Poder Executivo (será que a possibilidade de reeleição do presidente da república é prática positiva ou melhor seria que não fosse possível a reeleição presidencial, como acontece, por exemplo, no Chile e em outros países do mundo?). Todas essas questões são legítimas para discutirmos como sociedade, porque objetivam a melhor organização do Estado e do governo. Ao mesmo tempo, é por meio do debate democrático que poderemos aprimorar as instituições e garantir que funcionem de forma a propiciar o maior bem possível para toda a sociedade. Conhecer com profundidade a formação histórica e política do Estado e de suas instituições é uma ótima maneira de participarmos do debate político democrático de forma mais consciente, madura e propositiva. Assim, este livro-texto pretende contribuir para o aprimoramento de seu papel como cidadão. Por outro lado, na sua formação profissional como Gestor de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro é fundamental que você conheça o funcionamento do Estado, para compreender como isso repercute no seu trabalho e para poder melhorar a relação desse mesmo Estado com aqueles para os quais você vai prestar seus serviços profissionais. Conhecer os mecanismos de organização do Estado, os poderes da república, as formas de governo, os sistemas eleitorais, tudo isso é essencial para que na sua atividade você atue de forma mais técnica, competente e segura. Vamos nos dedicar ao estudo histórico dos elementos que propiciaram a formação do Estado como o conhecemos hoje; e, também, vamos analisar quais são os elementos do Estado, como ele desempenha seu poder político e jurídico e o que podemos entender por cidadania e Estado Democrático de Direito. Vamos retomar nosso conhecimento sobre os poderes do Estado brasileiro e de que forma eles atuam e interferem em nossas esferas de cidadania e profissional. Em seguida, analisaremos os elementos que, em conformidade com os estudiosos, caracterizam a formação do Estado contemporâneo. O objetivo é responder à pergunta: afinal, o que torna um grupo social organizado um Estado no sentido jurídico, político e sociológico do termo? 10 Os elementos que caracterizam o Estado contemporâneo são a soberania, a fixação em um determinado território, a ideia de povo e o cumprimento de uma finalidade, o bem comum, porque toda organização deve pretender atingir um objetivo, alcançar um fim que seja relevante para todos os membros daquela comunidade. No caso do Estado contemporâneo, a finalidade é garantir o bem comum, ou seja, garantir elementos que viabilizem a todos uma vida digna, em que possam desenvolver suas potencialidades e atingir seus objetivos pessoais. Cidadania, Estado, Governo e Sociedade são termos que utilizamos em nossa vida cotidiana, porém, nem sempre com o conhecimento e a reflexão necessários. Para construirmos o conhecimento profissional essencial para atuar com Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro, vamos avançar no conhecimento desses importantes elementos jurídicos, políticos e sociais que exercem influência na organização da sociedade e no estabelecimento dos deveres e direitos que cada cidadão possui. Bons estudos! Sua dedicação e seu comprometimento com a construção do conhecimento serão essenciais para sua formação profissional. 11 TEORIA GERAL DO ESTADO Unidade I 1 FORMAÇÃO HISTÓRICA E POLÍTICA DO ESTADO MODERNO 1.1 Aspectos preliminares A história do ser humano na Terra está quase sempre associadaà existência de grupos sociais, essenciais para que cada um pudesse garantir sua segurança e subsistência. Os riscos da natureza sempre demonstraram para os homens que, sozinhos, eles não teriam grande êxito em seu projeto de sobrevivência, porém, em grupos, essa possibilidade aumentaria significativamente. A vida em grupos, de fato, facilitou a garantia de maior segurança em relação aos riscos da natureza, como eventos climáticos (tempestades, terremotos, nevascas, tufões, entre outros) e ataques de animais de grande porte, assim como garantiu a subsistência e, por meio dela, a continuidade da espécie humana. Caçar, pescar, preparar alimentos e, mais tarde, desenvolver técnicas de agricultura e rudimentos de indústria se tornaram atividades mais viáveis quando feitas em grupos sociais organizados para estas finalidades: proteção, segurança e sobrevivência da espécie. Ocorre que a vivência em grupos sociais com organização simples ou mais complexa como conhecemos hoje também foi uma decisão que ocasionou riscos para a humanidade. Viver em grupos solucionava ou minimizava vários problemas, mas criava outros e, muitas vezes, bem mais complexos. Viver em grupo provoca situações que são estudadas até os nossos dias por diferentes áreas do conhecimento. São muitas as situações complexas que têm origem na vida em grupo, seja no campo do afeto, da propriedade, da produção para subsistência do grupo, da quantidade de trabalho que cada membro do grupo deve cumprir, entre outros tantos aspectos. Mas, com certeza, a humanidade não teria sobrevivido e avançado na melhoria dos aspectos políticos, sociais, econômicos e afetivos se não tivesse vivido em diferentes sistemas grupais e sociais ao longo de sua trajetória histórica. Para este estudo, especificamente, o que nos interessa é a dimensão política e jurídica da organização social e, muito em especial, aquela organização social que denominamos de Estado moderno. 12 Unidade I Saiba mais Assista a A Guerra do Fogo, do diretor Jean-Jacques Annaud. O filme retrata uma tribo que acredita que o fogo é sobrenatural. A GUERRA do fogo. Dir. Jean-Jacques Annaud. França; Canadá: International Cinema Corporation, 1981. 100 minutos. 2 ORIGEM DO ESTADO MODERNO 2.1 Conceito de Estado Analisar conceitos de Estado construídos por diferentes estudiosos tem por objetivo encontrar aspectos essenciais que caracterizam essa forma de organização social, política e jurídica e, com isso, facilitar a nossa própria compreensão sobre o tema. Vamos nos deter na definição adotada por De Cicco e Gonzaga, que são estudiosos da área do conhecimento denominada Teoria Geral do Estado, a qual tem por objeto, exatamente, o estudo da formação e dos elementos constitutivos do Estado. Para De Cicco e Gonzaga (2008, p. 53): O termo Estado advém do substantivo latino status, relaciona-se com o verbo stare, que significa estar firme. Uma denotação possível, portanto, é que Estado está etimologicamente relacionado à ideia de estabilidade. Daí que o conceito de Estado chegou a ser utilizado para designar sociedade política estabilizada por um senhor soberano que controla e orienta os demais senhores. Historicamente, o termo Estado foi empregado pela primeira vez por Nicolau Maquiavel, no início de sua obra O Príncipe, escrita em 1513 e publicada em 1532. Uma definição abrangente que apresentamos de Estado seria uma instituição organizada política, social e juridicamente, que ocupa um território definido e, na maioria das vezes, sua lei maior é uma Constituição escrita. É dirigido por um governo soberano reconhecido interna e externamente, sendo responsável pela organização e pelo controle social, pois detém o monopólio legítimo do uso da força e da coerção. Muitos elementos se destacam nessa definição, por exemplo, o fato de o Estado estar associado à ideia de estabilidade, de sociedade organizada social e juridicamente, ou seja, que obedece a um poder previamente definido que tem limites na lei. Esse aspecto é muito importante: Estado é uma forma de organização a partir da aprovação de leis que regem essa organização e que não podem ser descumpridas, sob pena de serem aplicadas sanções àqueles que praticarem o descumprimento das leis. 13 TEORIA GERAL DO ESTADO Estado é, portanto, uma organização do poder e das sanções decorrentes do não cumprimento das regras, porém, isso resulta de participação da sociedade, que pode eleger aqueles que vão escrever as leis, as quais serão de cumprimento obrigatório para todos. Evidentemente essa organização não é fácil de ser constituída, porque em grupos sociais numerosos nem sempre as pessoas pensam da mesma forma, nem sempre têm os mesmos objetivos e, por essa razão, nem sempre estão de acordo. Mas o que caracteriza fundamentalmente a organização do Estado é a consonância de propósito das pessoas a respeito das ideias principais, como o território em que essas regras terão validade ou os princípios essenciais que as leis devem preservar, por exemplo, a vida, a liberdade, a propriedade, a dignidade humana, a família, entre outros aspectos considerados mais importantes para que uma sociedade viva em harmonia e progrida. A ideia de Estado, ou seja, de organização estável que obedece a leis claramente colocadas para todos e de cumprimento obrigatório por todos, é antiga e nem sempre atendeu a esses pressupostos. De Cicco e Gonzaga (2008) afirmam que o primeiro a utilizar a expressão Estado teria sido Nicolau Maquiavel no início de sua obra O Príncipe, publicada em 1513 e considerada um livro muito importante para os estudos sobre o exercício do poder político. Quem foi Maquiavel? Podemos até não conhecer esse estudioso de política, mas com certeza em algum momento de nossas vidas já ouvimos alguém se referir a uma pessoa como maquiavélica, em um sentido pejorativo ou que, no mínimo, aponta uma crítica. Maquiavélico se tornou sinônimo de alguém que age com segundas intenções, com interesses pouco claros, com falsidade de propósitos. Por que teria Nicolau Maquiavel se tornado sinônimo de alguém ardiloso, astuto e que age com má-fé? Lembrete O termo maquiavélico não deve ser interpretado no seu sentido pejorativo, mas em conformidade com o pensamento de Nicolau Maquiavel a respeito de poder e política. É dessa forma que a expressão atende a seu sentido histórico e político. Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, hoje Itália, em 1469, e faleceu em 1527. Florença se formou como uma colônia romana em 59 a.C. e, na Idade Média, tornou-se uma cidade-Estado independente. No século XIII foi um dos polos comerciais mais importantes do mundo e centro cultural e intelectual de grande importância na Europa. Entre os artistas e escritores florentinos são conhecidos Dante Alighieri, Francesco Petrarca, Alessandro (ou Sandro) Botticelli, Michelangelo Buonarroti Simoni, ou simplesmente Michelangelo, e Donato Bardi, que se tornou conhecido apenas como Donatello. Maquiavel nasceu e se desenvolveu em um ambiente favorecido pelo incentivo à cultura, às artes e também à política. Era um ambiente de efervescência cultural e política; esse contexto, sem dúvida, marcou a vida e as ideias desse pensador. 14 Unidade I Maquiavel foi funcionário público do governo de Florença, embora também tenha sido escritor, historiador e músico. Contudo, ele ganhou notoriedade como pensador político, e suas ideias exerceram grande influência, do seu tempo até os dias de hoje. Quem estuda política e organizações políticas obrigatoriamente visita o pensamento de Maquiavel. Ele recebeu uma educação definida como clássica, com o objetivo de que seguisse carreira pública, servindo aos mandatários do poder político. O contrário dessa formação clássica seria a formação para o exercício da atividade comercial, que também era muito importante em Florença. Acontece que a vida política era muito conturbada e, em consequência, a trajetória de Maquiavel na vida pública foi igualmente turbulenta. Ele trabalhoupara o governo que expulsou os Médici de Florença e, mais tarde, serviu aos próprios Médici quando estes retornaram ao poder. Os Médici eram uma poderosa família de Florença que exerceu domínio político entre os séculos XV e XVII. Tiveram grande participação nas atividades do comércio de produtos têxteis e, com isso, ficaram muito ricos, expandindo, em consequência, seu poder político. Entre os Médici existiram banqueiros, políticos, nobres, clérigos e até um papa, Giovanni de Médici (1475-1521), que adotou o nome papal de Leão X. A obra mais famosa de Maquiavel, denominada O Príncipe, foi escrita em homenagem a um dos Médici, Lorenzo, filho de Piero de Médici. Os historiadores indicam que a obra foi escrita com o intuito de agradar aos Médici, que eram os governantes da época, e, certamente, para que Maquiavel pudesse obter vantagens com isso, por exemplo, se beneficiar de um cargo público de maior importância. O período político em Florença era tão turbulento que a iniciativa de Maquiavel não alcançou bons resultados. Ele chegou a ocupar postos relevantes a serviço dos detentores do poder político, mas morreu em 1527 destituído de suas funções, abandonado e amargurado com as frustrações políticas que havia vivido, inclusive com o fato de os Médici haverem perdido o poder político. A seguir, temos fotos da Catedral de Florença e do Palácio dos Médici, da forma como se encontram hoje. Figura 1 – Catedral de Florença, Itália 15 TEORIA GERAL DO ESTADO Figura 2 – Parte do Castelo dos Médici, Florença, Itália Para conhecermos brevemente o pensamento político de Maquiavel, vamos lembrar que ele separou a virtude política da virtude moral, propondo a ruptura com as ideias vigentes naquela época, que associavam a ação política com o sentido divino, por serem os reis, supostamente, os representantes de Deus na Terra e os detentores do poder político. Maquiavel coloca a política no campo exclusivo da ação humana e, com isso, evidentemente, provoca enorme desagrado da Igreja Católica, que exercia forte influência entre os reis por ser a instituição a quem se atribuía o poder de interpretar o pensamento e a vontade de Deus. Essa informação é essencial para que você possa compreender o sentido do termo maquiavélico. Ele nasce da má fama que Maquiavel adquiriu aos olhos dos representantes da Igreja, que sempre pretenderam denegrir seu pensamento junto aos reis para com isso trazer de volta a esfera do político para o domínio dos religiosos. Até hoje o termo maquiavélico se refere a alguém capaz de desenvolver pensamentos ardilosos, astutos, mas que nem sempre age de boa-fé ou de forma moralmente aceita. No entanto, Maquiavel não escreveu sua obra com o objetivo de propor ardis a serem praticados por lideranças políticas. Ele possuía ideias muito diferentes daquelas discutidas em sua época, foi um inovador no campo do pensamento político, mas não é correto associar suas ideias a propostas de práticas políticas imorais, ilegais ou ardilosamente concebidas para prejudicar o interesse público e favorecer interesses pessoais. Esse pode até ser o sentido que atribuímos hoje ao termo maquiavélico, mas isso não expressa a essência do pensamento político de Maquiavel. Para Nicolau Maquiavel, o governante deveria desenvolver um conjunto de qualidades – habilidade de cálculo, sentido de realidade, compreensão das circunstâncias, capacidade de adotar medidas extraordinárias, coragem de desprender-se da moralidade vigente se fosse necessário e aptidão para se adaptar às diferentes situações – que lhe propiciaria se tornar um grande governante e, com isso, aprimorar sua capacidade de se impor e realizar seus objetivos. Observemos que Maquiavel utiliza a ideia de virtude em sentido muito diferente daquele que normalmente encontramos no âmbito moral ou religioso. Nessas dimensões, a virtude é atitude de quem é bom, fraterno e justo, mas Maquiavel atribui à virtude outra compreensão, para qualificar o bom 16 Unidade I governante. E, com certeza, a virtude no sentido utilizado por Maquiavel nem sempre será sinônimo de decisão com bondade e justiça. As ideias de Maquiavel devem ser analisadas e compreendidas tendo como pano de fundo o período histórico em que ele viveu, bem diferente daquele em que vivemos. Maquiavel não propunha que governantes devessem agir de maneira injusta, despótica, ou maltratar o povo de forma sistemática. Ao contrário, ele propunha que o governante tivesse autonomia para agir com firmeza e até com violência quando fosse necessário, mas que respeitasse o consentimento do povo a suas práticas para que não surgissem conflitos. Maquiavel acreditava que as bases do Estado deveriam ser boas leis e boas armas. Acreditava que o exercício da arte da guerra era um dever dos governantes e que, mesmo em tempos de paz, era preciso praticar exercícios e reflexões de guerra para não correr o risco de perder a prática quando fosse necessário agir com o uso da força. Para ele, o príncipe (ou seja, o governante) tem que cumprir seu objetivo fundamental, que é manter o poder político, seja pela inteligência, seja pela força, seja pelo uso de ambas. Em sua obra, Maquiavel defende a ideia de que o governante precisa parecer honesto, ainda que não o seja. Com isso, terá maior confiança de seus governados, mesmo que depois se constate que seu comportamento não era tão honesto quanto supunham as pessoas. Esse tipo de comportamento, infelizmente, tem sido praticado por políticos em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Muitos políticos propagam na imprensa e nas redes sociais que são honestos, que não praticam atos errados, que não aceitam propina de ninguém, enfim, que seu comportamento é correto e respeitável. Contudo, o noticiário dos últimos tempos não tem comprovado essas alegações, e as acusações e condenações por corrupção já se tornaram parte do cotidiano. Não se pode, no entanto, atribuir essas práticas negativas aos ensinamentos de Maquiavel. Ao contrário, ele escreveu suas reflexões em outro momento histórico, em outra realidade política e social, e não se pode culpá-lo por práticas de políticos da atualidade. Ele defendia o uso da força por meio de boas armas, ou seja, a manutenção do poder mesmo com o uso da força. Mas não há indícios de que defendesse a prática política corrupta, com enriquecimento pessoal, até porque em sua época o sistema absolutista já permitia aos reis cuidar de seus interesses pessoais juntamente com os interesses do reino; a separação entre público e privado não possuía as características que tem na atualidade. A Maquiavel se atribui a criação de uma frase muito utilizada em nossos dias por políticos cuja prática confunde os interesses públicos com seus interesses privados. Ele teria sido o autor da frase “os fins justificam os meios”. Se é certo que Maquiavel defendia a ideia de que todos os meios são válidos para manter o governante no poder, mesmo que esses meios fossem violentos e, por vezes, trouxessem consequências ruins para os próprios governados, para o povo, não há nenhum indício histórico de que ele defendesse meios como a corrupção ou o uso da força pela força, apenas para uma manifestação arbitrária do poder dos monarcas. 17 TEORIA GERAL DO ESTADO Ao comentar essa frase e seu contexto histórico, De Cicco e Gonzaga afirmam: Quanto à célebre frase atribuída ao pensador em comento: “O fim justifica os meios”, é possível explicá-la como o fim colimado justificaria então qualquer meio e o bem do Estado ou razão de Estado estaria acima de qualquer instância moral. Afastando a ideia de bem comum, faz o bem do Estado se confundir com o bem do governante. Embora se deva esperar que o príncipe utilize boas armas a fim de atingir a paz social. A partir desses ensinamentos, denota-se que O Príncipe foi a cartilha de todos os reis absolutos da época do autor, e provavelmente o livro de cabeceira dos ditadores contemporâneos (DE CICCO; GONZAGA, 2008, p. 173). De fato, o absolutismodos reis era a marca registrada do período em que Maquiavel existiu, e reis, como sabemos, não tinham muita preocupação com a preservação dos interesses públicos, na medida em que consideravam que tudo que era público pertencia a eles. Isso não quer dizer que não tivessem preocupação com o bem-estar de seus súditos, porque em momentos de fome e de insegurança os súditos poderiam se rebelar e destituir o rei, o que era uma fonte constante de preocupação. Assim, Maquiavel recomendava que o rei buscasse concretizar a paz social como mecanismo de tranquilidade para seu reinado, sem que fosse necessário empregar a força para isso. A obra de Maquiavel é estudada e debatida até hoje; por vezes, como é natural, os estudiosos divergem sobre a interpretação a ser aplicada ao pensamento do florentino. Assim, para Rogério Gesta Leal, o pensamento de Maquiavel não serviu de inspiração apenas para os absolutistas, mas também para os liberais: Machiavelli (forma como o autor se refere a Maquiavel) cria o modelo de governante bem-sucedido, ou o homo politicus: um modelo teórico calcado na realidade por ele vivida, e baseado no comportamento efetivo dos homens, e não na norma ou no ideal. O Estado ou o principado desse Príncipe deve ter boas leis e boas armas. É óbvio que o autor está falando da sociedade europeia do século XVI, portanto, acompanhando as lutas intestinais por conquistas territoriais e de mercados, o que revela o tipo de cultura e pensamento burguês existente. O governo, se quer ser forte e duradouro, deve cuidar para que determinadas instituições e prerrogativas sejam preservadas, como a propriedade privada, o cumprimento dos contratos, através da mediação do ordenamento jurídico. [...] o Príncipe utiliza racionalmente a violência e o temor dela para articular seu projeto de poder, intimidando ora de forma direta, ora de forma velada qualquer tipo de reação ou contrariedade ao governo; sua tarefa é manter a qualquer preço ou meio a hegemonia do instituído. O instrumento mais 18 Unidade I adequado para legitimar o poder antes natural do Príncipe agora é a lei e, na república, essa instituição produz dois efeitos úteis: os cidadãos, por medo de serem acusados, nada tentam contra o Estado, e, se o fazem, são rapidamente punidos; criam-se canais para a mediação dos conflitos que surgem na cidade. Bem ou mal, a obra de Machiavelli é amplamente debatida na história política do Ocidente, recebendo críticas e louvores tanto de regimes e experiências autoritárias, sob a ótica da política desprovida de moral e baseada em astúcia e má-fé, como de modelos liberais e sociais, principalmente a partir do Iluminismo, na medida em que o autor florentino elogia as repúblicas onde o povo, associado ao governo, não é súdito de ninguém (LEAL, 2001, p. 60-62). Como podemos perceber, cada estudioso interpreta o pensamento de Maquiavel (ou Machiavelli) a partir de uma ótica ou de um traço mais relevante. Isso significa para todos nós que ideias complexas como as de Maquiavel merecem estudo e reflexão e que a cada releitura ou reanálise poderemos encontrar novos aspectos para serem incorporados àqueles já estudados. São obras cujo estudo sistematizado e crítico não se conclui; ao contrário, sobre elas sempre será possível identificar novos aspectos relevantes. Para Leal (2001), por exemplo, mais importante que as ideias sobre o uso da força (das armas), ou de que os fins justificam os meios, Maquiavel deve ser reconhecido como o pensador que, no capítulo V de Discursos da Primeira Década de Tito Lívio, aponta que a melhor forma de organização de uma república é estar alicerçada em uma Constituição criada por legisladores. Em outras palavras, um governo mais de leis do que de armas. O pensamento político não é linear e as contradições são comuns porque representam análises contextualizadas em determinado tempo ou em determinada circunstância. Assim, a contribuição de Maquiavel é inegável para construirmos nossos primeiros traços a respeito de um conceito de Estado. Figura 3 – Túmulo de Nicolau Maquiavel na Igreja de Santa Croce, Florença, Itália 19 TEORIA GERAL DO ESTADO Um conceito para Estado não é tarefa simples, porque existem muitas definições e cada uma delas prioriza um aspecto diversificado para encontrar as melhores características. Dalmo de Abreu Dallari menciona: Encontrar um conceito de Estado que satisfaça a todas as correntes doutrinárias é absolutamente impossível, pois sendo o Estado um ente complexo, que pode ser abordado sob diversos pontos de vista e, além disso, sendo extremamente variável quanto à forma por sua própria natureza, haverá tantos pontos de partida quantos forem os ângulos de preferência dos observadores. E em função do elemento ou do aspecto considerado primordial pelo estudioso é que este desenvolverá seu conceito. Assim, por mais que os autores se esforcem para chegar a um conceito objetivo, haverá sempre um quantum de subjetividade, vale dizer, haverá a possibilidade de uma grande variedade de conceitos (DALLARI, 2010, p. 117). O próprio Dallari, após analisar a importância da conjugação dos diferentes elementos que podem compor um conceito de Estado, constrói aquele que para ele atinge o objetivo: [...] ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em um determinado território. Nesse conceito se acham presentes todos os elementos que compõem o Estado, e só esses elementos. A noção de poder está implícita na soberania, que, no entanto, é referida como característica da própria ordem jurídica. A politicidade do Estado é afirmada na referência expressa ao bem comum, com a vinculação deste a um certo povo e, finalmente, a territorialidade, limitadora da ação jurídica e política do Estado, está presente na menção a determinado território (DALLARI, 2010, p. 119). Elcir Castelo Branco, em seus estudos, ressalta que o Estado é mais facilmente descrito do que conceituado. Afirma o autor: O Estado é mais habitualmente descrito do que conceituado. Facilmente se alinham seus componentes – povo, território, ordenamento, soberania e bem comum. A dificuldade maior é extrair o dado essencial e o gênero próximo, sem mutilar a definição (BRANCO, 1988, p. 61). De fato, se alguém nos pergunta qual o conceito que temos sobre Estado, ou ainda mais especificamente, sobre o Estado brasileiro, dificilmente seremos capazes de formular uma definição. Podemos elencar as características do Estado, por exemplo, a primazia da lei sobre o poder individual de cada cidadão, a soberania em relação a outros Estados, entre vários aspectos facilmente perceptíveis, ou seja, temos noção de Estado, embora nem sempre possamos defini-lo. 20 Unidade I É por isso que vamos procurar entender a origem histórica do Estado moderno: para compreender a partir de quais necessidades ele se forma e a fim de atingir que objetivos, e, em especial, para compreender por quais razões os seres humanos concordaram em abrir mão de sua liberdade e assumir deveres, mas com a garantia de que teriam seus direitos respeitados. Por quais razões o homem decidiu abrir mão da lei da força para adotar as leis gerais, que valem para todos e que têm por objetivo garantir que todos vivam em paz e sejam respeitados? Essa é a essência da ideia de Estado, que provém de uma longa trajetória histórica, social e econômica, como vamos analisar a seguir. 3 ORIGEM HISTÓRICA DO ESTADO MODERNO O Estado deve ser estudado a partir de uma perspectiva histórica, das primeiras ideias de organização social e política até nossos dias, para podermos compreender a que objetivos ele atende. A trajetória histórica mais relevante para a compreensão do surgimento do Estado moderno reporta ao fim do Império Romano. Com o esfacelamento do poder central que os romanos detinham, surgiram os feudos, e o poder passou a ser fracionado e exercido pelo senhor feudal. Estavam traçadas as primeiras linhas do que historicamente chamamos de absolutismo. Aquitemos uma análise bem objetiva porque esses temas já foram tratados mais detalhadamente no Ensino Médio. A formação do Estado moderno também tem suas raízes no surgimento da burguesia, grupo de pessoas existente na sociedade da Idade Média que desejava exercer atividades econômicas e acumular riquezas. Esse poder era reservado apenas e tão somente aos reis, e o desejo da burguesia contrastava com a situação vigente na época. Assim, política (poder) e economia são fundamentais para compreendermos a formação do Estado, sem esquecer que nele vivem seres humanos, que devem conviver em grupos (sociedade) de forma harmônica e produtiva. Com isso, começamos a compreender que uma única área do conhecimento nunca será suficiente para explicar o Estado, em razão de sua complexidade e de seus aspectos multifacetados. Ingo W. Sarlet, ao refletir sobre o papel da burguesia na formação do Estado moderno, afirma: Discute-se muito a respeito do grau de importância que se deve atribuir à burguesia nos processos de centralização do poder nas mãos dos reis e na formação do Estado moderno. Sabe-se, contudo, que, sem dúvida, o apoio dado pela burguesia aos soberanos nacionais constituiu um elemento decisivo no processo. A burguesia, classe tipicamente urbana, formada basicamente por artesãos e comerciantes, constituía o núcleo essencial da população das cidades. Estas surgiram e se desenvolveram especialmente na Baixa Idade Média, 21 TEORIA GERAL DO ESTADO principalmente (mas não exclusivamente) em razão do renascimento comercial provocado, originalmente, pela dinamização das relações entre o oriente e o ocidente, em consequência das Cruzadas. Por sua vez, a formação de novas cidades provocou a intensificação do comércio, fortalecendo e enriquecendo cada vez mais as classes burguesas. Todavia, a falta de centralização política e administrativa constituía-se num entrave ao desenvolvimento, dificultando as relações comerciais. A burguesia desejava a unificação do Estado Nacional. Para ela, a unificação do território sob um governo centralizado significava a existência de leis, pedágios, impostos, moeda, pesos e medidas unificados, o que, para o fortalecimento do mercado interno, era indispensável. Isso explica, se bem que de forma simplificada, por que, em sua grande maioria, as classes burguesas passaram a apoiar os reis na luta pela centralização do poder, contribuindo, assim, decisivamente, na formação dos Estados modernos. A importância da burguesia não se limita, contudo, tão somente a esse aspecto. “O burguês, como tipo, dá à existência histórica, no âmbito ocidental, um tônus peculiar. Ele trouxe traços próprios de mentalidade. São próprios do burguês, por exemplo, a prudência calculadora e o racionalismo” (SALDANHA, 1980). Foi essa mentalidade burguesa a base da mentalidade moderna. De fato, a formação do Estado moderno deu-se tendo como pano de fundo toda uma conjuntura, todo um contexto em que os valores do mundo medieval, gradativamente, foram sendo substituídos por novas concepções de vida, baseadas na razão e na liberdade do homem (SARLET, 2017, p. 58). A concepção burguesa de racionalidade e prudência é própria do exercício da atividade econômica, ou seja, da busca de resultados de lucro na intermediação de mercadorias. Observação Em nossos dias, a atividade econômica é muito mais evoluída e tecnológica, mas não perdeu o sentido de racionalidade. Opções racionais de gestores de todas as áreas econômicas – serviços, comércio e indústria – tornam os empreendimentos viáveis e sustentáveis, gerando não apenas lucro, mas também empregos e pagamento de tributos. 22 Unidade I Posteriormente, a área do conhecimento que hoje denominamos de Economia se notabilizaria pelos estudos de racionalidade da utilização dos recursos e pela constatação de que os recursos colocados à disposição dos homens são sempre escassos, razão pela qual precisam ser usados com prudência e parcimônia, sob pena de não estarem disponíveis ou acessíveis economicamente para todos aqueles que necessitam. Em outras palavras, a burguesia se afastava das ideias de que a proteção divina seria suficiente para o homem conseguir tudo aquilo que desejasse ou precisasse e se aproximava do ideal de produção de bens para todos que pudessem adquiri-los, de forma organizada, planejada, administrada e, sobretudo, racional! Esse traço tão característico das atividades comerciais impregnou o pensamento burguês e delineou os contornos econômicos, culturais e políticos do Estado moderno. A produção deixava de ser pensada apenas enquanto meio de subsistência, como havia ocorrido em grande parte do período feudal. Ocupados com as guerras por domínio de território e com as Cruzadas para estender a área de ação da Igreja Católica, não sobravam muitos braços para a produção, que, então, era destinada apenas a alimentar os que viviam nos feudos. Superado esse momento histórico, os homens começam a produzir mais e, consequentemente, conhecem os benefícios da sobra, de produção maior do que a capacidade de utilização para se alimentar. Era chegado o momento de produzir para trocar, para obter novos produtos e, mais tarde, para lucrar. A economia é motor de propulsão de muitas organizações políticas e sociais que conhecemos hoje, e com a formação do Estado moderno isso não é diferente. Do projeto de sociedade da burguesia surgem as ideias que formam o conceito que denominamos de liberalismo e que ao longo da história foi responsável pelo fim do absolutismo e pela implantação do Estado em que os agentes do poder estão subordinados à ordem jurídica estabelecida. Os liberais desejavam produzir e negociar o resultado de sua produção, mas sabiam que isso não seria possível em um clima de desordem interna ou externa e, principalmente, sem regras claras de cobrança de impostos, de circulação das mercadorias e de lugares preparados para realizar a venda para os interessados. Regras claras sempre foram essenciais para a produção econômica. Quando nos referimos, atualmente, ao “custo Brasil”, por exemplo, estamos fazendo alusão a sistemas de organização do Estado que, por estarem mal estruturados, custam caro e atrapalham a produção econômica. É o que acontece, por exemplo, nos portos brasileiros. Em razão de leis ineficientes, incompatíveis com as necessidades do mundo contemporâneo, mas que, infelizmente, ainda são adotadas no Brasil, temos um sistema portuário que cobra taxas excessivamente altas para os navios que aportam por aqui, uma demora excessiva para a atracação dos navios e a liberação das mercadorias, além de uma infraestrutura acanhada para a recepção dos caminhões que trazem as mercadorias para serem embarcadas. Tudo isso aumenta o tempo dos navios no porto e o custo do transporte, situando os portos brasileiros entre os menos eficientes no mundo. Empresas que desejam exportar para o Brasil levarão isso em conta na hora de decidir colocar suas mercadorias aqui. Empresas que desejam se instalar no Brasil, mas que precisam utilizar a importação de peças e componentes para sua produção, pensarão duas vezes antes de optar por um país que tem ineficiência em portos e em infraestrutura de logística. 23 TEORIA GERAL DO ESTADO A racionalidade na ordenação dos meios de produção depende de leis claras e de organização e eficiência do Estado, o que sempre foi reivindicação constante dos representantes da produção, a burguesia liberal. A mesma crítica feita ao sistema aeroportuário pode ser repetida para o sistema tributário brasileiro, que produz uma avalanche de leis ano a ano, tanto em caráter federal como estadual e municipal. Cria-se um emaranhado de normas de difícil compreensão, que nem sempre se consegue saber como devem ser aplicadas nas atividades econômicas e, por fim, geram carga excessiva e muitas multas aplicadas contra empreendedores, que, por vezes, apenas não entenderam o contexto de aplicação e deixaram de recolher o tributo porque não sabiam queele era devido. As leis que viabilizam a atividade econômica eficiente e competitiva precisam ser claras, de fácil compreensão e aplicação e, principalmente, precisam gerar a chamada segurança jurídica, caracterizada pelo fato de todos saberem razoavelmente o resultado de suas práticas e as consequências jurídicas de seus atos. A reivindicação por leis justas e eficientes para garantir que a sociedade possa se organizar de forma adequada, inclusive nas atividades econômicas, sempre esteve presente no discurso liberal. O liberalismo está na base de três importantes momentos históricos, nos quais identificamos a ação da sociedade pelo reconhecimento de seus direitos e pela busca da organização a partir de leis de cumprimento obrigatório para todos, inclusive para os soberanos, e que resultassem em estabilidade, para que todos pudessem viver e produzir em segurança. Você certamente se lembra das chamadas revoluções burguesas, que ocorreram na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França. A primeira foi a revolução ocorrida na Inglaterra a partir de 1640, que resultou na construção de uma sociedade em que o poder foi organizado como monarquia constitucional. O rei, após a revolução, passou a ter poderes limitados por uma lei maior, a Constituição, que estabeleceu direitos e deveres que deveriam ser cumpridos por todos. Além disso, ficou determinado que três poderes passariam a interagir na organização social – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário –, e que nenhum deles seria absoluto ou teria maior valor em relação aos outros. A Declaração de Direitos de 1689, conhecida em inglês como Bill of Rights, foi o marco principal da Revolução Inglesa. Trata-se de uma declaração de direitos com o objetivo de limitar o poder do monarca e aumentar a influência do Poder Legislativo, ou Parlamento, como é chamado até hoje na Inglaterra. A Declaração de Direitos de 1689 submeteu o poder do monarca ao poder do Parlamento, em especial para garantir: a) que a estrutura do sistema de poder fosse organizada pela existência de três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, em que o primeiro-ministro escolhido pelo Parlamento governa e o rei apenas representa o Estado; 24 Unidade I b) que os cidadãos dispusessem de direitos individuais, em especial o de ter propriedade privada; c) que houvesse liberdade de imprensa; d) que as leis só pudessem ser sancionadas com a aprovação do Poder Legislativo; e) que o Poder Judiciário tivesse independência para julgar, não sendo admitida nenhuma interferência do rei no sistema jurídico; f) que o rei não pudesse obter recursos públicos para uso pessoal sem prévia aprovação do Poder Legislativo. Entretanto, o ponto principal da Declaração de Direitos de 1689 foi determinar que se tornava ilegal a faculdade que se atribuía à autoridade real de suspender as leis ou seu cumprimento. Em resumo, o Bill Of Rights colocou o rei no mesmo patamar de importância e de direitos do cidadão comum, representado no Parlamento e protegido pelas leis. Isso foi um marco na luta por igualdade de direitos e por organização justa das sociedades. A revolução burguesa da Inglaterra foi um exemplo para outros países, incentivando a luta dos grupos sociais pela construção de sociedades mais justas em direitos e deveres. A segunda revolução burguesa ocorreu nos Estados Unidos da América e culminou com a Declaração de Independência, em 4 de julho de 1776, quando os norte-americanos se declararam livres do poder da Inglaterra, de quem até então eram uma colônia. O conflito teve origem por razões de ordem econômica. A Inglaterra estava com suas finanças corroídas por grandes gastos ao longo da Guerra dos Sete Anos, entre 1756 e 1763, com a França. Ao final do conflito, a Inglaterra, endividada, resolveu criar leis que restringiam a liberdade comercial norte-americana e fez isso com a criação de mais impostos que deveriam ser pagos por sua colônia. Contudo, os norte-americanos não estavam dispostos a pagar um maior volume de impostos, nem a diminuir seus lucros econômicos para saldar as dívidas da Coroa Inglesa. Preferiram declarar sua independência e sustentaram, no texto da Declaração, que o rei da Grã-Bretanha havia violado os direitos mais básicos da liberdade, o que tornava insustentável a continuidade da relação colonial. Saiba mais A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América é um documento histórico que merece ser lido na íntegra: HANCOCK, J. Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América. EUA, 1776. Disponível em: <http://www.historianet.com.br/conteudo/ default.aspx?codigo=214>. Acesso em: 27 abr. 2018. 25 TEORIA GERAL DO ESTADO A Declaração é uma narrativa histórica dos fatos que levaram os norte-americanos a proclamarem sua independência, porém com caráter de justificativa, à semelhança de um relatório de uma sentença judicial, que menciona os fatos um a um para concluir, ao final, que outro caminho não poderia ser adotado a não ser aquela decisão. Em outras palavras, é um documento em que o povo norte-americano justifica a decisão que está sendo tomada e explica à Inglaterra as razões pelas quais optou pela declaração de independência. No mínimo, foi uma forma elegante de separação política, porque permitiu à Coroa Inglesa conhecer claramente os motivos que deram causa à independência dos norte-americanos. Alguns trechos da Declaração de Independência dos Estados Unidos merecem ser destacados: Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno para com as opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito bem como o dever de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do atual rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidas injúrias e usurpações, tendo todas por objetivo direto o estabelecimento da tirania absoluta sobre estes Estados (HANCOCK, 1776). Curiosamente, os norte-americanos justificaram seu ato pela recusa da Inglaterra em mudar de atitude em relação a eles. Analise o trecho a seguir: 26 Unidade I Em cada fase dessas opressões solicitamos reparação nos termos mais humildes; responderam a nossas petições apenas com repetido agravo. Um príncipe cujo caráter se assinala deste modo por todos os atos capazes de definir um tirano não está em condições de governar um povo livre. Tampouco deixamos de chamar a atenção de nossos irmãos britânicos. De tempos em tempos, os advertimos sobre as tentativas do Legislativodeles de estender sobre nós uma jurisdição insustentável. Lembramos-lhes das circunstâncias de nossa migração e estabelecimento aqui. Apelamos para a justiça natural e para a magnanimidade, e conjuramo-los, pelos laços de nosso parentesco comum, a repudiarem essas usurpações que interromperiam, inevitavelmente, nossas ligações e nossa correspondência. Permaneceram também surdos à voz da justiça e da consanguinidade. Temos, portanto, de aceitar a necessidade de denunciar nossa separação e considerá-los, como consideramos o restante dos homens, inimigos na guerra e amigos na paz (HANCOCK, 1776). Os norte-americanos, depois de explicarem detalhadamente as razões da separação, finalizam o texto nos seguintes termos: Nós, por conseguinte, representantes dos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, reunidos em CONGRESSO GERAL, apelando para o Juiz Supremo do mundo pela retidão das nossas intenções, em nome e por autoridade do bom povo destas colônias, publicamos e declaramos solenemente: que estas colônias unidas são e de direito têm de ser ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES; que estão desobrigados de qualquer vassalagem para com a Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve ficar totalmente dissolvido; e que, como ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES, têm inteiro poder para declarar a guerra, concluir a paz, contrair alianças, estabelecer comércio e praticar todos os atos e ações a que têm direito os Estados independentes. E em apoio desta declaração, plenos de firme confiança na proteção da Divina Providência, empenhamos mutuamente nossas vidas, nossas fortunas e nossa sagrada honra (HANCOCK, 1776). Em conclusão, os norte-americanos decidiram que seriam um Estado independente, no qual viveriam homens que haviam sido criados iguais e dotados pelo Criador dos mesmos direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à procura da felicidade. O governo passaria a ser instituído com o objetivo de preservar esses direitos inalienáveis e, nos casos em que o governo se tornasse destrutivo desses fins, poderia o povo estabelecer um novo governo, sempre baseado nesses princípios imutáveis e importantes para todo o povo. A felicidade era a meta coletiva, um verdadeiro projeto de sociedade para os norte-americanos; assim, buscá-la se tornou um direito garantido para cada cidadão, que poderia concretizar tal direito com total liberdade, limitada apenas pela obrigação de respeitar a liberdade alheia. 27 TEORIA GERAL DO ESTADO Precisamos estudar, ainda, a Revolução Francesa, terceira revolução burguesa e que teve início com o episódio que ficou conhecido como Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789. A Bastilha era uma prisão e seu prédio não existe mais em Paris porque foi demolido. A seguir, uma maquete da Bastilha que está no Museu Carnavalet, localizado na capital da França. Figura 4 – Maquete da Bastilha no Museu Carnavalet, Paris Simbolicamente, na atualidade, no lugar em que se encontrava a Bastilha existe um prédio estatal; na praça em frente ao prédio, há uma torre, que tem na ponta uma estátua que representa a liberdade. Figura 5 – Estátua que representa a liberdade, Praça da Bastilha, Paris Os estudos históricos nos mostram que em nenhum lugar o absolutismo foi tão exacerbado como na França. Há incontáveis exemplos de irresponsabilidade dos reis da França, como os praticados pelos “Luíses” (Luís XIV, XV, XVI), que levaram o povo francês a uma situação de enorme miséria e revolta. O regime da monarquia era odiado pelo povo em razão da violência que adotava e dos prejuízos que causava à atividade dos comerciantes. Em consequência, a violência na revolta de 1789 foi grande, simbólica e retrato do desprezo do povo por seus monarcas. 28 Unidade I No período que antecedeu a Revolução Francesa, o rei era o único detentor do poder. Os reis da França achavam que o Estado se resumia à vontade deles e, por essa razão, se atribuíam o direito de fazer tudo que sua vontade ditasse, sem limite, sem lei, sem pensar nas consequências de seus atos para a população, que vivia em permanente penúria. Por outro lado, a burguesia na França era muito forte, porque tinha o controle sobre o comércio, a indústria e as finanças, mas não tinha nenhum poder político. Isso motivou a burguesia a tornar-se uma classe revolucionária para angariar poder político. Logo, o caminho mais curto para concretizar esse projeto foi a derrubada da monarquia. Evidentemente, ao conseguir maior poder político, a burguesia conseguiu também maior liberdade econômica, o que sempre foi um dos objetivos perseguidos. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada pelos parlamentares franceses em 26 de agosto de 1789, teve notória inspiração na Declaração norte-americana e, em sua introdução, esclareceu os anseios do povo francês naquele momento histórico: Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, constantemente presente junto a todos os membros do corpo social, lembre-lhes permanentemente seus direitos e deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser, a todo instante, comparados ao objetivo de qualquer instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, estejam sempre voltadas para a preservação da Constituição e para a felicidade geral (DECLARAÇÃO..., 1789). Pretendeu ser uma declaração universal de direitos civis dos homens, independentemente do país, povo ou etnia a que pertencessem. Para isso, afirmou que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos e que esses direitos são naturais e imprescritíveis. Definiu a liberdade como o direito de fazer tudo que não prejudique os outros, e como direitos fundamentais a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão colocou a lei acima dos direitos de cidadania e estabeleceu limites para o cidadão: pode se manifestar, mas não pode ofender ou desobedecer ao que é normatizado pela lei. E por qual razão? Porque a lei é a expressão da vontade geral. O Estado, por sua vez, é o instrumento por meio do qual os cidadãos podem usufruir de seus direitos. Como podemos perceber, o surgimento do Estado moderno foi decorrente de inúmeras modificações na ordem social e econômica e no poder político. O modo como os diferentes grupos sociais se organizaram, produziram economicamente para sua subsistência, e mais tarde para a troca, e estabeleceram as regras de exercício de poder foi um fator fundamental para criar as bases do Estado em que vivemos na atualidade. 29 TEORIA GERAL DO ESTADO Essa dinâmica não cessa; ao contrário, continua viva em toda a trajetória histórica da humanidade. Até hoje os grupos sociais discutem a melhor forma de exercício do poder e de garantia dos direitos de cada um, as exigências para o cumprimento dos deveres e os mecanismos econômicos que devem nortear a vida na sociedade. Muitas vezes, as discussões sobre os diversos interesses econômicos e políticos dos diferentes grupos organizados na sociedade resultam em conflitos de grandes proporções, com a utilização de armas que causam mortes e perdas materiais significativas, como acontece nos conflitos que vemos em noticiários, com bombardeios de escolas, estradas, hospitais e casas de civis. Embora as guerras não sejam uma forma razoável de disputar o poder ou de fazer as ideias de um determinado grupo político preponderarem sobre as de outro, é possível constatar que ao longo da trajetória histórica da humanidade isso tem ocorrido com indesejável frequência. Uma consulta aos jornais diários ou à rede mundialde computadores e perceberemos que na atualidade existem conflitos deflagrados em muitos lugares do mundo; frequentemente, a motivação para esses conflitos são a conquista do poder (ou a manutenção dele) por um determinado grupo e os interesses econômicos. Mais recentemente, um outro mecanismo de discussão política e de organização do Estado começou a ser praticado e merece um estudo aprofundado por parte dos pesquisadores de Ciência Política, Sociologia, Filosofia Política, Direito, Economia, entre outras áreas do conhecimento: o uso das redes sociais para disseminar ideias e coordenar manifestações. Com a expansão da utilização dos computadores pessoais (personal computers) e a extensão do uso para os aparelhos de telefonia celular móvel, que se converteram em computadores pessoais utilizados o dia todo, inclusive nos horários em que as pessoas não exerciam nenhuma outra atividade – por exemplo, quando estão no transporte coletivo para o deslocamento de um ponto a outro da cidade ou aguardando na sala de espera de uma consulta médica –, as pessoas podem acionar a rede mundial de computadores e participar de debates nas redes sociais a qualquer momento. Essa forma diuturna de manifestação está sendo estudada como um novo modo de fazer política, de ser ativista político das mais diversas causas, como proteção dos direitos dos animais, proteção do meio ambiente, proteção da mulher vítima de violência doméstica, defesa dos gays, lésbicas e transgêneros, entre outras. Pesquisadores do tema têm avaliado que, em um mundo digital e informatizado como é o mundo em que vivemos, é natural que as pessoas manifestem suas opiniões políticas e sociais pela rede mundial de computadores e, com isso, façam do compartilhamento por rede uma nova forma de militância ou exercício político, uma forma direta, que dispensa de organização em agremiações como partidos, sindicatos ou associações. Além disso, as associações de defensores de diferentes direitos podem se organizar pelas redes sociais, sem necessidade de configuração física. Isso não é possível para os partidos, que, embora possam ter páginas nas redes sociais, não podem se limitar a isso em razão da exigência 30 Unidade I legal de que tenham sede física e documentos específicos para que sejam reconhecidos como entidades em condições de participar do processo eleitoral. As associações de defesas de direitos podem se organizar apenas virtualmente porque não estão habilitadas a participar do processo eleitoral com candidatos próprios. Para isso, no Brasil, precisariam se organizar como partidos políticos. Porém, essas entidades podem se organizar para apoiar um partido político ou um candidato e escolhem fazer isso por meio das redes sociais, inclusive agendando eventos e manifestações públicas, como passeatas, comícios e vigílias, entre outras formas de ocupação e atuação no espaço público. Tudo isso é novo e ainda está sendo conhecido e estudado. O fato é que nos últimos oito anos a força da participação política pelas redes sociais se tornou um fenômeno recorrente, com grande influência em alguns momentos. Isso permite que as pessoas se organizem sem serem reprimidas pelo Estado, que, por vezes, está organizado de forma ditatorial, ou seja, com um único grupo no poder e que não deseja ser alijado de sua posição de domínio. Estados em que o poder está na mão de grupos dominantes há muito tempo, como acontece em Cuba, na China ou na Coreia do Norte, restringem ou proíbem a livre utilização das redes sociais, exatamente porque já se aperceberam do grande poder de disseminação de ideias que esse espaço virtual permite. Figura 6 A moça da foto acima é a blogueira cubana Yoani Sánchez, um exemplo da repressão aplicada àqueles que querem se insurgir contra sistemas ditatoriais. Ela tem muitas restrições de acesso à rede mundial de computadores em seu país, é vigiada constantemente pelas autoridades do governo cubano, mas, mesmo assim, tornou-se muito conhecida por insistir em fazer denúncias sobre a falta de liberdade de expressão em Cuba e por arregimentar outras pessoas para se incorporarem a seus protestos. É assim que ela consegue adeptos e apoiadores, que estão espalhados por vários lugares do planeta, todos unidos por acompanharem as denúncias pela rede mundial de computadores e por divulgarem o que ela publica em seu blog. Podemos dizer que a forma como ela faz política é diferente daquela utilizada por ativistas e políticos que sobem nos palanques ou usam megafones em praças públicas? Sim, é diferente, mas isso não quer dizer que não seja eficiente! Tanto é eficiente que estamos comentando as práticas políticas de Yoani Sánchez neste exato momento! E nos sentimos próximos a ela simplesmente pelo fato de que podemos acessar um site de buscas na internet e obter milhares de informações sobre ela. 31 TEORIA GERAL DO ESTADO O fenômeno que ficou conhecido como Primavera Árabe, ocorrido em 2011, é outro exemplo do uso intensivo da rede mundial de computadores com a finalidade de participação política de cidadãos comuns como nós. O nome Primavera Árabe é dado à onda de protestos da população de países como Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Iêmen e Barein, que reivindicava uma nova situação política em seu país, principalmente a possibilidade de votar e escolher seus governantes, com garantia de alternância no poder entre diversos grupos políticos; em outras palavras, reivindicava o fim de ditaduras que mantiveram governantes no poder por décadas. Os resultados da Primavera Árabe foram bons para alguns países, que conseguiram depor seus ditadores e estabelecer novos mecanismos de poder, supostamente melhores que os anteriores, embora não tenhamos dados objetivos para avaliar. Tunísia e Egito realizaram eleições em 2011 e escolheram candidatos definidos como moderados, sem propensão a exercer o poder de forma ditatorial. A Síria, em compensação, vive até hoje uma guerra civil sangrenta, com milhares de vítimas, especialmente crianças. Figura 7 Em todos esses episódios, a participação da população pelas redes sociais teve enorme importância. Reuniões públicas eram convocadas pela internet e milhares de pessoas compareciam para protestar ou enfrentar adeptos de grupos opostos. Figura 8 32 Unidade I A figura anterior se refere ao movimento ocorrido na Espanha em 2011 e 2012, coordenado por jovens que utilizaram as redes sociais para divulgar sua insatisfação e organizar pessoas que queriam participar. A insatisfação desses jovens era com a situação política e econômica do país, em especial com os partidos políticos, que, segundo eles, não representam os interesses dos cidadãos, mas apenas os seus próprios. Esse movimento se alastrou por várias partes do mundo, sempre pelas redes sociais e com intensa difusão. O maior problema a ser enfrentado sobre essa prática de participação política pelas redes sociais é que as manifestações de algumas pessoas, por vezes, abrigam inverdades, ou as chamadas fake news, notícias falsas que são disseminadas sem maior cuidado e que levam muitas pessoas a acreditar em fatos que jamais ocorreram. No Brasil, esse fenômeno tem sido bastante comum em época de campanhas políticas para cargos majoritários (presidente, governador, prefeito) ou em casos de comoção nacional, como aqueles relacionados à operação Lava Jato. É comum encontrarmos nas redes sociais notícias e fotos que viralizam (se repetem milhões de vezes entre os usuários da rede social) e que, na verdade, são montagens, mentiras, fatos e fotos falsas e sem nenhum fundo de veracidade. Elas são espalhadas nas redes certamente com o objetivo de confundir, disseminar intolerância, ódio e preconceito, e muitas pessoas, de forma leviana e irresponsável, as compartilham em suas redes sem ao menos procurar checar se são informações verdadeiras ou falsas. Isso é um problema verdadeiramente complexo e que tem sido debatido de forma contínua entre estudiosos, pesquisadores, comunicadores eoutros grupos interessados em utilizar as redes sociais para fazer política de forma direta – com a participação das pessoas que se interessam em compartilhar ideias e opiniões sobre assuntos políticos e sociais relevantes –, que temem que as notícias falsas possam estimular confusão e até violência nas redes. Esse problema não invalida, no entanto, o grande poder das redes sociais e da rede mundial de computadores como novo viés de participação política e de difusão de ideias, propostas, candidaturas e, em especial, para a organização social e política dos diversos grupos existentes na sociedade brasileira e mundial contemporânea. As experiências vivenciadas até este momento comprovam que as redes sociais são muito importantes para reunir pessoas em torno de ideias e ideais. Muitas manifestações vigorosas já ocorreram em várias partes do mundo, com milhões de pessoas comparecendo para participar depois de serem convocadas exclusivamente a partir das redes sociais e do compartilhamento feito por pessoas comuns, que desejam influenciar o momento em que vivem ou contribuir para o aprimoramento das organizações sociais e políticas. É um novo jeito de fazer política, influenciar decisões dos governantes, exigir direitos, mudar regimes políticos, proteger vulneráveis, manifestar opiniões, enfim, atuar como seres políticos e sociais que somos. Superadas as dificuldades com as falsas notícias veiculadas de forma irresponsável ou ingênua, as redes sociais ajudarão a construir a participação política do século XXI e, com certeza, serão muito estudadas por todos aqueles que se preocupam com direito, democracia e política no mundo em que vivemos. 33 TEORIA GERAL DO ESTADO 4 CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU PARA A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO Três grandes pensadores dos estudos sobre o Estado merecem ser analisados por todos nós, para que possamos compreender as origens filosóficas e políticas do surgimento do Estado moderno. Os pensadores Hobbes, Locke e Rousseau são estudados com muito cuidado quando se trata de compreender a formação do Estado moderno, porque suas ideias são relevantes até hoje e ainda podem ser encontradas em muitas das características dos Estados contemporâneos. Existem, sem dúvida alguma, outros estudiosos da questão do Estado, mas esses três se destacam pela grande influência que seu pensamento exerceu ao longo da história e exerce até os dias de hoje. Suas reflexões nos auxiliam a compreender o Estado e entender as razões de sua existência; contribuem para que possamos pensar em estratégias de melhoria das relações sociais. O primeiro objeto de nossos estudos serão as ideias e o pensamento de Thomas Hobbes, nascido na Inglaterra em 1588 e falecido em 1679. Observe que ele acompanhou o período da Revolução de 1640: a substituição da monarquia absolutista na Inglaterra pela monarquia constitucional. Hobbes foi filósofo e cientista político; seu pensamento foi fortemente influenciado pela chamada Revolução Científica, momento da história do pensamento mundial em que o método científico passou a ter preponderância na construção do conhecimento. Até aquele momento prevaleciam as explicações religiosas para todos os fenômenos da natureza. Com a introdução do pensamento científico como método, os fenômenos passaram a ser estudados a partir de seu próprio mecanismo, e os estudiosos começaram a buscar explicações lógicas que tinham por objetivo compreender como o fenômeno acontece, quais as razões que levam a sua ocorrência, quando e por que ele poderia se repetir. Essa alteração na forma de explicação dos fenômenos naturais foi marcante e influenciou o pensamento de muitos estudiosos, que começaram a separar rigorosamente as explicações científicas das crenças religiosas, dando especial importância para a aplicação de um método que pudesse comprovar as teorias adotadas para explicar os fenômenos da natureza. A utilização de método de estudo, ou método científico, foi fundamental para o avanço do pensamento da humanidade, que passou a compreender que não se podia explicar tudo pela vontade de Deus, mas que era preciso observar, analisar e refletir sobre os fenômenos naturais para buscar leis de funcionamento que fossem capazes de explicá-los. Foi, sem dúvida, um importante momento para o pensamento científico. Hobbes recebeu essa influência de forma muito marcante e escreveu um livro sobre teoria do conhecimento, de forma a enfatizar que a construção do conhecimento verdadeiro e científico requer a utilização de um método rigoroso, que possa ser provado e comprovado. 34 Unidade I Além de ter sido filósofo e cientista político, Hobbes atuou como tutor (uma espécie de professor particular) de filhos de nobres de sua época, além de ter sido secretário e conselheiro político e econômico de nobres. Em seus estudos que resultaram na publicação de vários livros, Hobbes adota um conceito que para ele é fundamental, o conceito de estado de natureza. Ele explica o estado de natureza como aquele em que o homem tem direito a tudo, pode exercer esse direito com total liberdade, da maneira que quiser, e agir somente em conformidade com seu próprio julgamento e razão, utilizando os meios que considerar mais adequados para atingir os fins que pretende. Essa explicação está contida no capítulo XIV de sua obra Leviatã, um dos mais importantes trabalhos escritos por Hobbes. Para Hobbes, o homem só concordaria em perder toda sua liberdade de escolha e de ação em razão do medo generalizado em que vivia no estado de natureza. Nada garantia ao homem no estado de natureza que ele não seria morto por outro homem que desejasse, por exemplo, utilizar as terras que ele utilizava para viver. Se todos tivessem ampla e total liberdade, poderiam se matar para atingir seus objetivos, o que significaria o medo permanente da vida em estado de natureza. É por isso que, para Hobbes, o homem é lobo do homem (homo homini lupus), porque a qualquer momento poderiam se destruir, caso isso fosse necessário para atingir um objetivo. Ao adotar essa ideia, Hobbes contrariou a essência do pensamento de Aristóteles, o qual afirmava que a vida na polis (cidade ou sociedade) não era fruto de uma decisão ou de uma escolha, mas de uma tendência natural do homem. Aristóteles, filósofo grego de grande importância na construção do pensamento da Filosofia Política e que viveu entre 384 e 322 a.C., acreditava que o homem é um animal político, uma vez que ele tem natural tendência para o bem e isso só pode ser alcançado na vida em sociedade. Ele entendia que a vida em sociedade, em comunidade política, não é fruto de uma escolha ou de uma decisão dos homens, mas de um impulso natural do homem. Hobbes contrariou fortemente essa ideia do pensamento aristotélico e afirmou que a vida em sociedade não é uma tendência natural; é adquirida por necessidade, e não por escolha. Se pudesse escolher, o homem viveria livre e sem se obrigar a cumprir regras sociais, mas, como tem medo de ser destruído pelo exercício da liberdade de outro homem, ele escolhe se adaptar à vida em sociedade como forma de autopreservação. A vida em sociedade, para Hobbes, estava distante da tendência natural em que acreditava Aristóteles. Mas ambos pensavam que a vida em sociedade era mais promissora para o homem, para seu desenvolvimento e sobrevivência. 35 TEORIA GERAL DO ESTADO No pensamento de Hobbes, a sociedade civil é a resposta ao medo que os homens enfrentavam quando estavam no estado de natureza. Para Hobbes, nessa situação de exposição à violência de outros homens, valia a pena abrir mão da liberdade existente no estado de natureza para poder viver com maior segurança na sociedade civil, de forma organizada, com direitos e deveres, com menor espaço para o exercício da liberdade, mas com maior segurança de sobrevivência e maiores possibilidades de evolução. Para viver em sociedade, os homens precisariam se obrigar a obedecer às leis e aos pactos que
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