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III SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO “Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania” 05 a 08 de outubro de 2015 Campus de Franca 2020 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Reitor Prof. Dr. Sandro Roberto Valentini Vice-Reitor Prof. Dr. Sergio Roberto Nobre Pró-Reitor de Pesquisa Prof. Dr. Carlos Frederico de Oliveira Graeff Pró-Reitora de Extensão Universitária Profa. Dra. Cleopatra da Silva Planeta FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Diretor Prof. Dr. Murilo Gaspardo Vice-Diretora Profa. Dra. Nanci Soares Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca Presidente Prof. Dr. Murilo Gaspardo Membros Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes Profa. Dra. Analúcia Bueno Reis Giometti Profa. Dra. Cirlene Aparecida. Hilário da Silva Oliveira Profa. Dra. Elisabete Maniglia Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz. Engler Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França Prof. Dr. José Duarte Neto Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille Profa. Dra. Paula Regina de Jesus Pinsetta Pavarina Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira Profa. Dra. Rita de Cássia Aparecida. Biason Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino José Carlos de Oliveira José Duarte Neto Murilo Gaspardo (Organizadores) III SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO “Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania” Anais do Evento Câmpus de Franca 2020 © 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Franca - Contato Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14409-160, Jd. Petráglia / Franca – SP publica.franca@unesp.br Diagramação e Revisão Laura Odette Dorta Jardim (DTBD) Sandra Aparecida Cintra Ferreira (STAEPE) Carlos Alberto Bernardes (STAEPE) Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira Márcio Augusto Garcia - ASS. ADM Lucas Laprano Dana Rocha Silveira Comissão Organizadora Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira Artur Marchioni Cauê Ramos Andrade Marina Ribeiro da Silva Otávio Augusto Mantovani Silva Frederico Henrique Ramos Cardozo Bonfim Ana Luiza Cruz Ana Luiza de Abreu Paiva Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira - CRB8/8773 Organização dos Anais Prof. Dr. Murilo Gaspardo Adolfo Rafael Silva Mariano de Oliveira Coordenação Científica Prof. Dr. Murilo Gaspardo Prof. Dr. José Duarte Neto Prof. Dr. José Carlos de Oliveira Ingrid Juliane dos Santos Ferreira Letícia Rezenda Maria Luisa Rocha Paulo Henrique Reis de Oliveira Rafael Leal Eduardo Salomão Renan Urban Thiago Carvalho Anais do III Seminário de Direito do Estado “Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania” / José Carlos de Oliveira, José Duarte Neto e Murilo Gaspardo (organizadores). – Franca : UNESP – FCHS, 2020. 293 p. ISSN: 2526-0391 1. Direito constitucional. 2. Democracia. 3. Politicas públicas. I. Título. II. Oliveira, José Carlos de. III. Neto, José Duarte. III. Gaspardo, Murilo. CDD – 340 mailto:publica.franca@unesp.br Índices para catálogo sistemático: 1. Estado democrático de direito ............................ 341.201 2. Direito internacional público .............................. 341.1 3. Globalização ....................................................... 338.9 4. Democracia ......................................................... 341.234 PROGRAMAÇÃO DO EVENTO (05 A 08 DE OUTUBRO DE 2015): 05/10 (terça-feira) Local: Anfi teatro I. 19h30 – Abertura 20h –Conferência: “Políticas Públicas Regulatórias Setoriais e os Acordos de Leniência no Processo Administrativo Brasileiro”. Conferencista: Professor Doutor Thiago Marrara - Professor de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP-FDRP). Livre-docente (USP). Doutor (Universidade de Munique - LMU). Mediador: Professor Doutor José Carlos de Oliveira (FCHS/UNESP) 06/10 (terça-feira) 9h – Recepção Local: Anfi teatro I. 9h30 –1ª Sessão de Debates com Professores do Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP: “Teorias da Constituição e a Cidadania na Dimensão Internacional”. Debatedores: Professor Doutor Murilo Gaspardo (FCHS/UNESP), Professora Regina Laisner (FCHS/UNESP). 11h – Intervalo. 11h30 – 2ª Sessão de Debates com Professores do Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP: “Teorias da Constituição e a Cidadania Participativa nas Políticas Públicas” Debatedores: Professora Doutora Elisabete Maniglia (FCHS/UNESP), Professor Doutor José Carlos de Oliveira (FCHS/UNESP), Professor Doutor José Duarte Neto (FCHS/UNESP). 13h – Intervalo 15h/18h – Reuniões de Grupos de Pesquisa Liderados por Professores do Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP. 19h – Recepção. Local: Anfi teatro I. 19h30 – Mesa Redonda: “O Ensino de Direito Público na UNESP/Campus de Franca”. Debatedores: Professor Doutor José Carlos de Oliveira (FCHS/UNESP – Coordenador do Conselho de Curso de Graduação em Direito), Professor Doutor José Duarte Neto (FCHS/UNESP – Chefe do Departamento de Direito Público), Professor Doutor Antônio Alberto Machado (FCHS/ UNESP), Discente Eduardo Ferreira Lopes (Representante Discente Titular junto ao Conselho de Curso de Direito), Discente Juliana Simões Casagrande (Membro do CADir e do NEDA – Núcleo de Estudo de Direito Alternativo); Discente Leonardo Morais (Representante Discente Suplente junto ao Departamento de Direito Público). 07/10 (quarta-feira) 8h30 – Recepção Local: Anfi teatro I. 9h/11h –3ª Sessão de Debates com Professores do Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP: “Teorias da Constituição e a Tutela e Efetividade dos Direitos da Cidadania”. Debatedores: Professora Doutora Ana Gabriela Mendes Braga (FCHS/ UNESP) e Doutor Fernando Fernandes (FCHS/UNESP). 19h – Recepção. Local: Anfi teatro I. 19h30 – Conferência: “Cidadania e Ensino Religioso na Dimensão Internacional e na Brasileira: as Questões Levantadas pela ADIn 4439/2010 frente ao princípio constitucional da laicidade do Estado”. Conferencista: Professora Doutora Nina Beatriz Stocco Ranieri (Professora de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutora e Livre-docente em Direito do Estado (FD/USP). Mediador: Professor Doutor Murilo Gaspardo (FCHS/UNESP). 08/10 (quinta-feira) 13h/17h: Sessões de Apresentação de Trabalhos de Pós-graduação e Iniciação Científi ca. Local: Anfi teatro I, Anfi teatro da Biblioteca, Sala do 1º Ano do Curso de História, Salas de Reuniões dos Departamentos. 19h30 – Recepção. Local: Anfi teatro I. 20h – Conferência: “Teoria Constitucional e Cidadania”. Conferencista: Professor Doutor Roger Stiefelmann Leal (Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito (FD/USP). Procurador da Fazenda Nacional. Mediador: Professor Doutor José Duarte Neto (FCHS/UNESP) APRESENTAÇÃO Em 2013, o Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP organizou seu "I Seminário de Direito do Estado", o qual consistiu em duas mesas de debates com professores convidados de outras instituições e do próprio departamento sobre “Reforma Política nos 25 anos da Constituição Federal de 1988”. Em 2014, nosso segundo Seminário abordou o tema “Novas Perspectivas para a Democracia Brasileira” e, além das conferências e debates, passou a compreender sessões de apresentações de trabalhos de pós-graduação e graduação. Nesta terceira edição do Seminário, o tema escolhido foi “Teorias da Constituição e Novas Concepções de Cidadania”, o qual articula a área de concentração e as linhas de pesquisa do Programa de Pós-graduaçãoem Direito da FCHS/UNESP com questões contemporâneas de grande relevância nos campos do Direito Constitucional, do Direito Administrativo, da Teoria do Estado e da Ciência Política. Assim como na edição anterior, o Seminário abordou a temática de maneira interdisciplinar, reunindo docentes, pesquisadores e estudantes. Em termos metodológicos, procurou-se promover, simultaneamente, o debate sobre a produção científi ca dos professores da própria FCHS/ UNESP, especialmente do Departamento de Direito Público (DDPB) – mas também em interação com outros Departamentos, e o intercâmbio de conhecimentos com outras instituições de ensino e pesquisa, por meio de conferências com professores convidados e apresentação de trabalhos de pesquisa de discentes. Uma inovação desta edição foi a inclusão de um debate sobre o ensino de Direito Público, com a participação de representantes do corpo discente. Ocorreram três conferências com professores convidados: a primeira, proferida pelo Professor Doutor Thiago Marrara (USP-FDRP), abordou o tema "Políticas Públicas Regulatórias Setoriais e os Acordos de Leniência no Processo Administrativo Brasileiro”; a segunda, ministrada pela Professora Doutora Nina Beatriz Stocco Ranieri (FD/USP), trouxe uma abordagem sobre "Cidadania e Ensino Religioso na Dimensão Internacional e na Brasileira: as Questões Levantadas pela ADIn 4439/2010 frente ao princípio constitucional da laicidade do Estado"; e a terceira, proferida pelo Professor Doutor Roger Stiefelmann Leal(FD/USP) teve como tema “Teoria Constitucional e Cidadania”. Todas elas foram seguidas de debates com o público presente, mediados por professores da FCHS/UNESP. As três sessões de debates com professores da FCHS/UNESP abordaram os seguintes temas: “Teorias da Constituição e a Cidadania na Dimensão Internacional” (Professores Doutores Murilo Gaspardo e Professora Regina Laisner); “Teorias da Constituição e a Cidadania Participativa nas Políticas Públicas” (Professores Doutores Elisabete Maniglia, José Carlos de Oliveira e José Duarte Neto); e “Teorias da Constituição e a Tutela e Efetividade dos Direitos da Cidadania” (Professores Doutores Ana Gabriela Mendes Braga e Fernando Fernandes). O seminário também compreendeu sessões de comunicações orais nas quais foram apresentados onze trabalhos de pós-graduação e sete trabalhos de iniciação científi ca, os quais compõem estes Anais, divididos em três eixos temáticos: Teorias da Constituição e a Cidadania na Dimensão Internacional; Teorias da Constituição e a Cidadania Participativa nas Políticas Públicas; e Teorias da Constituição e a Tutela e Efetividade dos Direitos da Cidadania – também articuladas com as linhas de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Direito da FCHS/UNESP. Registramos, por fi m, nossos agradecimentos a todos os que colaboraram com a organização do Seminário, especialmente a: Direção da FCHS/UNESP e membros do Conselho de Departamento, que viabilizaram os recursos necessários para custear a vinda dos conferencistas externos à FCHS; todos os servidores técnico-administrativos da FCHS/UNESP, especialmente o assessor do DDPB, Márcio Augusto Garcia; e aos discentes membros da Comissão Organizadora, sobretudo àqueles que se dedicaram à publicação destes anais. Esperamos que a leitura desses Anais seja útil para o aprofundamento do debate acadêmico sobre “Teorias da Constituição e Novas Concepções de Cidadania”. Professor Doutor Murilo Gaspardo Departamento de Direito Público FCHS/UNESP – Campus de Franca – SP SUMÁRIO TRABALHOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EIXO 1: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA NA DIMENSÃO INTERNACIONAL APARATOS NORMATIVO E INSTITUCIONAL DA UNASUL E A (IN)VIABILIDADE DE UMA INTEGRAÇÃO DEMOCRÁTICA Alfredo Minuci Lugato ............................................................................19 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: ACESSO À SUA FUNÇÃO JURISDICIONAL E IMPLEMENTAÇÃO DA CIDADANIA EM ÂMBITO INTERNACIONAL Guilherme Pinho Ribeiro Marina Ribeiro da Silva ...........................................................................29 PRESIDÊNCIA DEMOCRÁTICA – GOVERNANÇA; DESENVOLVIMENTO HUMANO NA AMÉRICA LATINA Suelen Otrenti ..........................................................................................43 EIXO 2: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA PARTICIPATIVA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO COMBATE À CORRUPÇÃO Augusto Martinez Perez Filho .................................................................55 A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SANEAMENTO BÁSICO Christopher Abreu Ravagnani José Carlos de Oliveira ............................................................................65 DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS SOCIAIS: A CONTRIBUIÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA A PROMOÇÃO DE UMA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Renan Lucas Dutra Urban ........................................................................77 EIXO 3: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A TUTELA E EFETIVIDADE DOS DIREITOS DA CIDADANIA DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E ESTADO CAPITALISTA: AS CONTRADIÇÕES E LIMITES DA LINGUAGEM DOS DIREITOS SOCIAIS COMO ESTRATÉGIA DE LUTA PARA A EMANCIPAÇÃO HUMANA Cauê Ramos de Andrade Stéfanie dos Santos Spezamiglio .............................................................97 CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AUTONOMIA DO DIREITO: A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO DIREITO EM CONTEXTOS DE INSTABILIDADE POLÍTICO-ECONÔMICA Guilherme Bollini Polycarpo Felipe Rodrigues Xavier Lucas Jonas Fernandes ...........................................................................113 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E CIDADANIA: O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E A ACCOUNTABILITY HORIZONTAL Marina Ribeiro da Silva Guilherme Pinho Ribeiro .......................................................................129 O PAPEL DO DIREITO NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: SOBRE COMO A TEORIA CONSTITUCIONAL SUBSTANCIALISTA AUXILIA NA REALIZAÇÃO DOS DIREITOS DE CIDADANIA NA PERSPECTIVA DOS EXCLUÍDOS DO PROCESSO POLÍTICO TRADICIONAL Henrique Duz Hass ................................................................................141 O MUNICÍPIO COMPETENTE PARA A COBRANÇA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS (ISS) NO CASO DO ARRENDAMENTO MERCANTIL EA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DIANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Luciana Campanelli Romeu ...................................................................157 TRABALHOS DE GRADUAÇÃO EIXO 1: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA NA DIMENSÃO INTERNACIONAL A CIDADANIA PARTICIPATIVA NA DIMENSÃO INTERNACIONAL: O PAPEL DA AMÉRICA LATINA ENQUANTO AGENTE POLÍTICO NA GOVERNANÇA GLOBAL Jackeline Ferreira da Costa ....................................................................175 A EXIGÊNCIA DO EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO E A DETERIORAÇÃO DESSE EXERCÍCIO PELOS CIDADÃOS DA UNIÃO EUROPEIA FRENTE À CRISE ECONÔMICA Laura Rizzo Renan Fernandes Duarte ........................................................................185 O CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA E A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA: DIÁLOGO ENTRE O PENSAMENTO DE BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS E LUIGI FERRAJOLI PARA O ALCANCE DE UMA CIDADANIA INTERNACIONAL 195 Raquel Gutierrez de Azevedo Victor Siqueira Serra ..............................................................................199 EIXO 2: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA PARTICIPATIVA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: CONTRIBUTOS DO MODELO DE SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES DA CONSTITUIÇÃO Ana Cristina Alves de Paula Edilberto Marassi Basílio Silveira Júnior ..............................................213 EIXO 3: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A TUTELA E EFETIVIDADE DOS DIREITOS DA CIDADANIA A CRISE DO ESTADO DEMOCRÁTICO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DO CIDADÃO Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira Dana Rocha Silveira ..............................................................................235LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E DISCURSO DO ÓDIO HOMOFÓBICO Jéssica Costa ..........................................................................................253 DESDOBRAMENTOS DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E PROTEÇÃO DEFICIENTE DO ESTADO Renata Canevaroli de Souza ..................................................................267 AS “CLÁUSULAS PÉTREAS” APLICADAS AOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS: UMA DEFESA DA CIDADANIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Tiago Fernando Guedes de Carvalho .....................................................283 TRABALHOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EIXO 1: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA NA DIMENSÃO INTERNACIONAL Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 19 APARATOS NORMATIVO E INSTITUCIONAL DA UNASUL E A (IN)VIABILIDADE DE UMA INTEGRAÇÃO DEMOCRÁTICA Alfredo Minuci Lugato*1 INTRODUÇÃO O presente trabalho justifi ca-se pela importância de uma iniciativa que emerge da vontade de todos os países de um subcontinente, que poderá construir, sob o prisma da cooperação e da integração, novos mecanismos para seu desenvolvimento, e pela análise crítica da institucionalidade e dos procedimentos que providenciarão ou impedirão a consecução de tão auspiciosos objetivos. O objetivo principal é a investigação dos motivos que (in) viabilizam uma integração democrática a partir dos aparatos normativo e institucional da UNASUL. Para tanto, busca analisar como a democracia se desenvolve diante das diferentes esferas decisórias que transcendem a soberania do Estado. Estuda, também, os objetivos da UNASUL na busca de uma integração que corrobore em desenvolvimento socioeconômico e na construção de uma cidadania sul-americana. Fundada por seu Tratado Constitutivo em 2008, a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) é mais uma iniciativa de integração regional no seio da América do Sul. Sua gama de objetivos que transcendem fi ns comerciais e sua composição por todos os países do subcontinente, entretanto, distinguem-na dos outros blocos. Todavia, sua confi guração institucional precária gera desconfi ança sobre seu sucesso em concretizar suas aspirações. (BARALDI, VENTURA, 2008, p. 14). Diante disso, questiona-se: os aparatos normativo e institucional da UNASUL viabilizam uma integração democrática? Para desenvolver a problemática, inicialmente serão abordadas as limitações da soberania dos Estados no mundo contemporâneo, assim como a convivência destes com atores transnacionais, para então discutir o ideário democrático frente as novas esferas decisórias e como a UNASUL pretende gerar desenvolvimento nos países-membros através da integração. Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 20 A abordagem será multidisciplinar, pois a Teoria do Estado e a Ciência Política fornecerão conceitos e premissas basilares para o desenvolvimento do presente trabalho. Será adotado o método dialético para compreender a institucionalidade e os procedimentos da UNASUL perante as ideias bases de democracia, forjadas para o Estado-Nação. Por fi m, buscar-se-á nas experiências da União Europeia, do MERCOSUL e da CAN, elementos empíricos para comparações com as instituições e procedimentos da UNASUL. 1 O MUNDO GLOBALIZADO CONTEMPORÂNEO, AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E A DEMOCRACIA A primeira noção de soberania estatal pertence ao francês Jean Bodin que, em 1576 (GUIMARÃES, 2013), em um contexto de consolidação dos Estados Nacionais na Europa sob a forma de absolutismo monárquico, atribui a ideia de “poder absoluto e perpétuo”. Para o autor francês, a soberania consiste no direito de: 1. Dar leis a todos e a cada um em particular; 2. Declarar a guerra e negociar a paz; 3. Nomear os principais magistrados e funcionários; 4. Decidir em última instância e de conceder a graça aos condenados; 5. Cunhar moedas e de estabelecer pesos e medidas; e 6. Gravar os súditos com impostos e contribuições. (LEWANDOWSKI, 1997, p. 235). Após o Tratado de Paz de Vestefália, datado de 1648, que encerra a Guerra dos 30 anos, redefi ne as fronteiras e visa estabelecer a paz entre os Estados europeus, passa-se a compreender a soberania como um poder de duas vertentes: a soberania interna, no sentido de supremacia, e a soberania externa, sinônimo de independência (LEWANDOWSKI, 1997, p. 235). Tal concepção, que prevalece nos séculos seguintes e demonstra uma comunidade internacional incipiente, perpassa pela Santa Aliança e pelo Concerto Europeu, “culmina na Sociedade das Nações e esgota-se na Segunda Guerra Mundial”. (GUIMARÃES, 2013, p. 103). Pois, no cenário pós-guerra, constata-se uma Europa horrorizada e abarrotada por prejuízos humanos e materiais de proporções até então desconhecidas (JEDLICK, 2011, p. 42), e o mundo perplexo com o potencial destrutivo das armas nucleares empregadas. Tal panorama cristaliza a necessidade de dar efetividade ao direito internacional público, por meio de instituições capazes de prover em escala mundial a paz e Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 21 os direitos humanos. (GUIMARÃES, 2013, p. 105). Nessa perspectiva, surge, em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU). Da mesma forma, países europeus ocidentais, atentos ao que ocorria do outro lado da “Cortina de ferro”, buscaram na integração o alicerce para a reconstrução. Em 1948, foi criada a Organização Europeia de Cooperação Econômica. No ano seguinte, foram fundados o Conselho da Europa e o Tratado do Atlântico Norte (com participação estadunidense). Em 1951, foi criada, pelo Tratado de Paris, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), “a primeira instituição europeia com um objetivo de integração”1, que foi concebida com traços de supranacionalidade: isto é, uma Alta Autoridade independente dos governos nacionais e uma Corte de Justiça que, nos anos posteriores, consagrava o princípio da primazia do direito europeu sobre os ordenamentos nacionais (JEDLICK, 2011, p. 42-43). Após o maior confl ito bélico da história, os Estados Unidos da América emergem como a maior potência econômica e política do globo. Sob sua liderança e com o apoio do Reino Unido, passou-se a discutir a reestruturação “do sistema internacional de controle das relações monetárias e comerciais internacionais”. (PINHEIRO, 2009, p. 34). Nessa toada, os EUA convocaram 44 países para uma conferência internacional na cidade de Bretton Woods, que culminou em negociações que resultaram na constituição do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. (PINHEIRO, 2009, p. 35-36). Tais instituições, cuja governança foi estruturada para garantir uma liberalização do mercado, atendendo aos anseios dos EUA, em detrimento de uma dinâmica democrática, foram fundamentais na coordenação da globalização fi nanceira neoliberal das décadas de 70 e 80, caracterizada pela “integração sistêmica da economia em nível supranacional” e pela “ampliação das redes empresariais, comerciais e fi nanceiras em escala mundial”, que ao transcenderem as fronteiras, impossibilitaram controle político efetivo pelos Estados. (FARIA, 2002, p. 52). Dessa maneira, os Estados nacionais passam a não ter mais pleno controle sobre questões da esfera econômica, como sua política monetária e fi scal. Além de ter que buscar junto à comunidade internacional soluções para enfrentar problemas como epidemias globais, tráfi co de armamentos, crises migratórias e o aquecimento global. Nesse sentido, o Estado moderno está cada vez mais inserido em redes de interligações regionais e globais, permeadas por forças intergovernamentais e transnacionais quase 1 No original: “la primera institución europea con un objetivo de integracion”.(Tradução livre). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 22 supranacionais, e impossibilitado de decidir seu próprio destino. (HELD, MCGREW, 2005, p. 35-36). Portanto, o “Estado não detém a exclusividade da tomada e concretização das decisões que afetam a coletividade”. (GASPARDO, 2015, p. 102). Assim, Clève (2006, p. 321), argumenta que o Estado se vê diante de um “paradoxo”, “já que a defesa da soberania não se faz apenas desde dentro; faz-se, agora, também, a partir de medidas tomadas no contexto da comunidade internacional”. Evidencia-se, então, uma limitação da ideia de Estado soberano. Com o fenômeno da globalização, as estruturas institucionais, organizacionais, políticas e jurídicas forjadas desde os séculos XVII e XVIII tendem a perder tanto sua centralidade quanto sua exclusividade. (...) Com isso, as intervenções regulatórias, os mecanismos de controle e direção socioeconômicos e as concepções de ‘segurança nacional’ que instrumentalizaram as estratégias de planejamento entre o pós-guerra e os anos 70 perdem vigor e efetividade. (FARIA, 2002, p. 32). Por outro lado, salienta-se que o Estado sempre conviveu com questões que transcendiam suas competências, como as ecológicas e nucleares. Porém, nota-se o crescimento dessas questões com o aumento da circulação de capitais, bens e pessoas em nível global, propiciados pelas revoluções tecnológicas. Nesse panorama, as organizações internacionais são instrumentos que possibilitam que os Estados canalizem suas demandas para uma esfera decisória que tenha efi cácia, seja em nível de governança interestatal, regional ou global. Sendo que, “em muitos casos o nível regional pode emergir como o mais apropriado nível de governança”.2 (ARCHIBUGI, 2004, p. 449). Nesse ponto, exsurge uma questão fundamental: como podem essas organizações internacionais conduzir assuntos que afetam diretamente o Estado e seus cidadãos de modo legítimo? O problema é corolário da ideia de democracia, que foi concebida como regime a ser exercido pelo Estado-Nação. (GASPARDO, 2015, p. 107). Reconhecidamente cético em relação a sistemas democráticos nas organizações internacionais, Dahl (1999, p. 20) assevera que qualquer tipo de governo dessas fi cará aquém do sistema de controle popular sobre as políticas e decisões governamentais próprio da democracia estatal. Em outro extremo, Moravcsick (2005, p. 225) defende a legitimidade das instituições e mecanismos da União Europeia. 2 No original: “In many cases the regional level might emerge as the most appropriate level of governance”. (Tradução livre). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 23 Keohane e Nye Jr (2001, p. 236) argumentam que a base da legitimidade das democracias estatais está na boa articulação dos inputs políticos, e que estes são muito enfraquecidos no cenário internacional. As ideias de inputs, accountability e controle popular, assim como a de segurança jurídica, serão fundamentais na análise da legitimidade da estrutura institucional e dos procedimentos da UNASUL. 2 UNIÃO DE NAÇÕES SUL-AMERICANAS (UNASUL): UMA NOVA CONCEPÇÃO DE INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA DO SUL A UNASUL não é o primeiro bloco regional do subcontinente. O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a Comunidade Andina de Nações (CAN) são organizações que visam a integração de fi ns econômicos entre seus países e que passam por difi culdades, muitas delas frutos de suas institucionalidades. O primeiro, que visava a constituição de um Mercado Comum, consiste numa união imperfeita; a segunda, que buscava a consolidação de uma união aduaneira, se estabeleceu como uma zona de livre comércio. (SARAIVA, 2011, p. 9). “Apoiadas na história compartilhada e solidária” de suas nações (UNASUL, 2008), a UNASUL sonha com “a consolidação de uma identidade e a criação de uma cidadania sul-americana”. (BARALDI, VENTURA, 2008, p. 15). De fato, a integração do subcontinente, dominado pelo imperialismo econômico e cultural estadunidense, deve almejar voos altos. Para tanto, destaca-se, aqui, a exclusão de outros países latinos da América, infl uenciados ainda mais pelos Estados Unidos, como o México, embora estes possam ser integrados posteriormente ao bloco. (UNASUL, 2008). Nesse sentido, a UNASUL destaca-se por suas aspirações em concretizar direitos humanos diversos e viabilizar uma infraestrutura que propicie desenvolvimento socioeconômico. Objetiva erradicar a pobreza e o analfabetismo e garantir a seguridade social universal, assim como uma “integração energética” e “cooperação em matéria de migração”, entre outros muitos anseios, além de uma “integração fi nanceira”. (UNASUL, 2008). A pauta diversifi cada “que rompe a tradição comercial dos acordos subcontinentais” (BARALDI, VENTURA, 2008, p. 14) é audaciosa para países semiperiféricos, e fruto de governos identifi cados com a esquerda. Além do mais, são nítidas questões que necessitam de cooperação regional: Bacia do Prata, Aquífero Guarani, Floresta Amazônica, políticas de defesa Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 24 e segurança, controle de doenças como a aftosa e gargalos na infraestrutura que atrapalham as exportações são alguns exemplos que podem ser citados. A variedade de metas poderá permitir que algumas delas sejam mais fáceis de serem negociadas: por exemplo, garantir direitos básicos de saúde e acesso universal à educação a seus habitantes é desejo de todos. Em contrapartida, temas como “integração fi nanceira, industrial e produtiva” (UNASUL, 2008) exigirão um esforço maior e instituições aptas para sua implementação, através de procedimentos normativos legítimos e efi cazes. 3 ESTRUTURAS NORMATIVAS E INSTITUCIONAL DA UNASUL: UM INTEGRACIONISMO DEMOCRÁTICO? A UNASUL adotou um modelo intergovernamental de integração; isto é, seu órgão máximo, que decidirá os rumos do bloco, é o Conselho de Chefas e Chefes de Estado e de Governo. (UNASUL, 2008). Tal opção pode ser compreendida se contextualizada pela forte tradição presidencialista presente no subcontinente e pelo temor em delegar competências a órgãos supranacionais, que seriam compostos por países de assimetrias econômicas enormes. Entretanto, a ausência de instituições supranacionais implica que a efi cácia das decisões dependerá de cada um dos Estados-membros. Assim, a necessidade de cada país incorporar ao seu ordenamento jurídico as deliberações do bloco cria grande insegurança jurídica e pode engessar a integração. Além do mais, a primazia dos governos nacionais na condução do bloco, em detrimento de instituições autônomas, leva a outra questão, que é apontada por Archibugi (2004, p. 441): “Estados democráticos não necessariamente aplicam em sua política externa os mesmos princípios e valores em que seus sistemas internos são construídos”.3 Outro problema de se ter como instância máxima o conjunto de chefes dos executivos é que esse órgão não terá representação das diversas forças políticas de cada país, contrariando o ideal democrático “do confl ito de interesses e da disputa equilibrada entre as partes, em termos de poder, e na possibilidade de controle e contestações de decisões tomadas.” (MARIANO, 2013, p. 95). Também contraria a segurança jurídica da integração a possibilidade de os Estados se eximirem “de aplicar total ou parcialmente uma política adotada” pelo bloco. (UNASUL, 2008). 3 No original: “democratic states do not necessarily aplly to their foreign policy those same principles and values upon which their internal system is built”. (Tradução livre). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 25 Salienta-se, ainda, que o caráter não permanente de trabalho dos principais órgãos é incompatível com o rol de aspirações.Ao analisar a dinâmica institucional da UNASUL, Baraldi e Ventura (2008, p. 15) alertam que “os governos sul-americanos seguem desprezando a variedade da tecnologia jurídica forjada pelas organizações internacionais quando realmente desejam funcionar”. Visualiza-se também problemas na adoção da regra do consenso para “toda a normativa da UNASUL”. (UNASUL, 2008). Obviamente, e como já mencionado, uma integração fundada no modelo intergovernamental depende que cada país internalize as deliberações do bloco, sendo, portanto, a efi cácia das medidas em todos os membros intrínseca a ideia de consenso. Porém, numa possível curva em direção à supranacionalidade, por exemplo, com a institucionalização do previsto Parlamento Sul-Americano (UNASUL, 2008), a regra do consenso constituirá, por si só, um empecilho ao aprofundamento da integração. A adoção da “regra da maioria”, basilar nos regimes democráticos estatais e no processo legislativo da União Europeia, entretanto, demandará uma complexa engenharia para conciliar maioria de países, habitantes e representantes. O défi cit de representatividade pode ser amenizado pela constituição do Parlamento. Porém, Mariano (2013, p. 94) cita o exemplo do MERCOSUL para alertar que “a mera existência de uma instituição representativa não é sufi ciente para garantir a democratização do processo”. Da mesma forma, o Parlamento Europeu, embora tenha conquistado maiores poderes desde sua gênese, não eliminou o poder dos tecnocratas na gestão da União Europeia. Além do mais, nota-se uma crise geral de representatividade dentro dos Estados. Ainda, a ausência de um sistema de soluções de controvérsias efi caz põe em cheque a capacidade de interpretação imparcial das normas e, consequentemente, o princípio da legalidade. Divergindo os países sobre o sentido das normas, eles terão a “negociação direta” como mecanismo de solução. Caso infrutífera, caberá aos órgãos da UNASUL a tentativa de solução (UNASUL, 2008), sem, no entanto, terem meios para vinculá-los. Por fi m, a UNASUL aspira na participação popular uma fonte de legitimidade que deve “permear todo o funcionamento das instâncias do bloco”, pois ela é colocada “como objetivo específi co do bloco”. (BARALDI, VENTURA, 2008, p. 15). Sem dúvida, a participação da sociedade, tanto na eleição de representantes como no controle sobre as decisões políticas, que devem ser públicas, é fundamental. Entretanto, Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 26 a normativa da UNASUL não especifi ca como será a participação dos cidadãos na construção da integração. CONSIDERAÇÕES FINAIS A UNASUL foi concebida em um contexto em que os países da América do Sul, após a redemocratização e a predominância da infl uência neoliberal do Norte no fi nal do século XX, viram ascender ao poder governos identifi cados com a esquerda. Objetivando uma integração para além do comércio, os governos não cederam em coordenar o bloco, contando, para isso, com apoio de órgãos burocráticos. O conteúdo progressista e o apreço pela democracia materializado no Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da UNASUL (UNASUL, 2010) consubstanciam um promissor pano de fundo em um subcontinente negligente com os direitos sociais e em constante fl erte com autoritarismos. Entre o ideário e a concretização de seus objetivos, entretanto, há um longo caminho. Nesse sentido, os aparatos normativo e institucional da UNASUL devem prever mecanismos aptos e legítimos ao desenvolvimento da integração. Porém, a predominância dos Executivos nacionais na direção do bloco e a não instauração do previsto Parlamento demonstram falta de representatividade e de pluralidade no bloco. A UNASUL prevê a consolidação de uma “cidadania sul-americana”, mas elitiza seus procedimentos ao ignorar até agora a participação popular como fonte de legitimidade. Para uma integração democrática é necessária a atuação de um Parlamento plural e com efetivos poderes, de um sistema de soluções de controvérsias imparcial e efi caz e de meios dos cidadãos exercerem controle social sobre as políticas adotadas, que devem ser transparentes. REFERÊNCIAS ARCHIBUGI, Daniele. Cosmopolitan Democracy and its Critics: a Review. European Journal of International Relations, v. 10, n. 3, p. 437-473, set. 2004. Disponível em: http://www. danielearchibugi.org/downloads/papers/CD_and_critics_A_review.pdf. Acesso em: 03 ago. 2015. BARALDI, Camila, VENTURA, Deisy. A UNASUL e a Nova Gramática da Integração Sul-Americana. Boletim Pontes ICTSD-FGV, v. 4, p. 14- 16, 01 jul. 2008, São Paulo. Disponível em: http://www.ictsd.org/sites/ default/fi les/review/pontes/pontes4-3.pdf. Acesso em: 04 ago. 2015. http://www. http://www.ictsd.org/sites/ Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 27 CLÈVE, Clèmerson Merlin. 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Ou seja, com o avento deste processo de globalização dos direitos humanos, há, além das esferas jurídicas internas do Estado, uma esfera internacional de proteção aos Direitos Humanos. (OLIVEIRA; MAEOKA, 2009, p. 230). Veja, o principal objetivo deste aparato multinível de proteção ao indivíduo é, justamente, benefi ciar o indivíduo alvo de violações aos direitos Humanos. Desta maneira, o que defi nirá o aparato de proteção aos direitos humanos a ser utilizado (ou o sistema global ou o regional) será aquele escolhido pelo indivíduo. Obviamente, aquele que oferecer a maior amplitude de proteção. (PIOVENSA, 2010, p. 256). O principal instrumento normativo do Sistema Interamericano é a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (também conhecido como Pacto San José da Costa Rica) de 1969, estabelecendo dois órgãos de fi scalização à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. (PIOVESAN, 2010, p. 253). Apesar de assinado em 1969, somente em 1978 passou a vigorar, podendo fazer parte apenas Estados membros da Organização dos Estados Americanos. Advogado. Mestrando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS/UNESP). Endereço do CV: http://lattes.cnpq.br/9740238115213457. Advogada. Mestranda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho” (FCHS/UNESP). Endereço do CV: http://lattes.cnpq.br/6423217930649189. http://lattes.cnpq.br/9740238115213457. http://lattes.cnpq.br/ Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 30 Além deste documento instituidor dos órgãos de fi scalização, em 1988 foi instituído o Protocolo Adicional, denominado Tratado de São Salvador, com objetivo de normatizar a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, passando a vigorar em 1988. (OLIVEIRA; MAEOKA, 2009, p. 232). Até a assinatura deste protocolo adicional, não havia previsão, no Sistema Interamericano, destes direitos econômicos e sociais, apenas a determinação de que os Estados buscariam progressivamente a realização destes direitos com metas legislativas, conforme se verifi ca no art. 26 do Pacto Santo José da Costa Rica, a seguir descrito: Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fi m de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. Desta maneira é possível apreender uma dupla posição assumida entre o Estado-parte e a Convenção: uma obrigação de cunho negativo, no sentido de não violar direitos individuais, como, por exemplo, o dever de não torturar um indivíduo. Além deste, o Estado assume uma postura positiva, possibilitando a adoção de medidas afi rmativas necessárias e razoáveis para o exercício de determinados direitos (PIOVESAN, 2010, p. 257-58). Logo, verifi ca-se que a preocupação da Convenção não é apenas no sentido de garantir aqueles direitos tidos liberais, de primeira geração, mas também os direitos sociais de segunda geração, em que se espera uma posição ativa do Estado, não de abstenção, de não fazer. O aparato de monitoramento e implementação dos direitos enunciados pela Convenção são: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Conforme ensinamento de GALINDO (2014, p. 149): Os órgãos que compõem o Sistema Interamericano são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH ou Comissão), que por sua vez está a cargo dos diferentes Relatórios do sistema, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH ou Corte). O primeiro foi criado com o objetivo de promover a observância e defesa dos direitos Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 31 humanos na região e ser o órgão consultivo da Organização dos Estados Americanos (OEA), em matéria de direitos humanos, enquanto a Corte IDH é o órgão judicial do sistema responsável pela interpretação e aplicação da CADH, de acordo com os casos que sejam apresentados sob a sua jurisdição. Ambos os órgãos têm trabalho complementar dentro do sistema de petições individuais, em que perante a CIDH é esgotada a primeira fase do procedimento e na Corte IDH a fase fi nal do mesmo, se for o caso. 1 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1959, pela Organização dos Estados Americanos, para a promoção dos direitos humanos na região, além de servir como órgão consultivo à OEA, realizando suas funções através de relatórios que advertiam e relacionavam as violações de direitos humanos perpetradas nos países membros da OEA. (GALINDO, 2014, p. 150). Após este primeiro momento houve uma ampliação em seus trabalhos, passando a formular recomendações aos Estados, atender consultas realizadas por Estados-membros e a realização de processamento de petições individuais no sistema, procedimento que será explicado mais adiante (GALINDO, 2014, p. 150). É constituída por 7 membros eleitos pela Assembleia Geral da OEA, de alta integridade moral e reconhecido saber em matéria de direitos humanos. Tem Washington como sede. Sempre que há uma vaga, é apresentada lista contendo até três nomes, apresentada pelos Estados-membros. O mandato é quatrienal e admite-se mais uma reeleição. (JAYME, 2008, p. 87). O objetivo primordial da Comissão Interamericana de Direito Humanos é a de proteção e observância dos direitos humanos na América. (PIOVESAN, 2010, p. 259). Ainda segundo a autora, a atuação desta Comissão se dá através de recomendações aos governos dos Estados-partes, no sentido de tomarem medidas adequadas à proteção desses direitos. De maneira continuada, a função primordial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é de observância e proteção dos direitos humanos na América. Uma das maneiras de seu exercício são as consultas que podem ser realizadas por qualquer Estado membro da OEA à Comissão. Estas consultas consistem em dar aconselhamento no sentido de melhorar o nível de cumprimento dos direitos humanos contidos na Convenção Americana de Direitos Humanos. Como salienta George Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 32 RodrigoBandeira Galindo (2014, p. 152), estas recomendações (através das consultas) tem um caráter preventivo, que tem como objetivo evitar futuros danos aos direitos humanos. Ainda, além desta função consultiva, – apesar do reconhecimento de não possuir poderes jurisdicionais – a Comissão é órgão essencial à ordem jurídica internacional. Isto porque, qualquer processo a ser proposto perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos passa, obrigatoriamente, por um procedimento prévio perante a Comissão. Segundo Fernando Gonzaga Jayme (2008, p. 88), este procedimento é dirigido observando-se o contraditório e, segundo a própria Convenção Americana de Direitos Humanos, é condição de procedibilidade para que a Corte possa conhecer e julgar de um processo, de maneira que se mostra irrenunciável e irrecusável. Compete à Comissão o exame das comunicações enviadas por indivíduo, ou grupo de indivíduos e, ainda entidades não governamentais que denunciem violação a direitos humanos consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos. (PIOVESAN, 2010, p. 261). Tal constatação pode ser feita através da leitura dos arts. 41, alínea “f” e 44, a seguir transcritos: Artigo 41 - A Comissão tem a função principal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e, no exercício de seu mandato, tem as seguintes funções e atribuições: a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; b) formular recomendações aos governos dos Estados- membros, quando considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos; c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; d) solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos; e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados-membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar- lhes o assessoramento que lhes solicitarem; Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 33 f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 desta Convenção; e g) apresentar um relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Artigo 44 - Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-parte. Veja, assim como no Sistema Global, a petição deve obedecer determinados requisitos de admissibilidade, sendo um deles o prévio esgotamento dos recursos judiciais internos, excetuando-se aquelas situações em que houver demorar injustifi cado ou mesmo quando o ordenamento interno do país não possibilitar o devido processo legal. (PIOVESAN, 2010, p. 261). Ainda segundo a autora (p. 262), há a necessidade de não existir litispendência ou coisa julgada internacional. Ou seja, não pode o indivíduo ou grupo ou entidade, e. g, ter ingressado com a mesma petição em outro sistema internacional de proteção aos direitos humanos. A primeira função da Comissão, ao receber uma comunicação (em forma de petição) é, justamente, esta análise de admissibilidade para, então, encaminhar o pedido de solicitação de informações ao Estado denunciado. Vide redação do art. 46 da Convenção Americana de Direitos Humanos: Artigo 46 - Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será necessário: a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notifi cado da decisão defi nitiva; c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e d) que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profi ssão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. 2. As disposições das alíneas "a" e "b" do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando: Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 34 a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c) houver demora injustifi cada na decisão sobre os mencionados recursos. Superada a fase da admissibilidade (que será tratada de forma mais detalhada na seção específi ca deste trabalho), a Comissão buscará uma solução amistosa entre as partes, uma espécie de conciliação entre o Estado denunciado e o denunciante. (PIOVESAN, 2010, p. 264). Não havendo esta solução amistosa, a Comissão redigirá relatório constando os fatos e conclusões referentes ao caso e, se for cabível, recomendações ao Estado-parte. (PIOVENSA, 2010, p. 264). Prossegue referida autora, no sentido de que este relatório será encaminhado ao Estado- parte para que, no prazo de três meses, dê cumprimento às recomendações feitas. Dentro deste prazo o caso poderá ser encaminhado à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em duas hipóteses: ou a pedido da Comissão ou a pedido do próprio Estado-parte. É o que se extrai da redação do art. 61 da Convenção Americana de Direitos Humanos. 2 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A Corte Interamericana de Direitos Humanos é órgãos jurisdicional do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Sua criação se deu em 1969 e seus trabalhos se iniciaram, de fato, em 1978. Sua sede é em San José, na Costa Rica. A Corte é composta por sete juízes eleitos por um período de 6 anos – com possibilidade de recondução pelo mesmo período – em votação secreta e pelo voto da maioria absoluta dos Estados- partes da Convenção. (GUERRA, 2012, p. 343). Eleição esta que ocorre na Assembleia Geral da Organização. Para o regular exercício de suas funções, segundo Fernando Gonzaga Jayme (2008, p. 89), aos juízes da Corte são garantidos o gozo de prerrogativas e imunidades diplomáticas, estabelecendo, ainda, uma remuneração compatível com o exercício das funções aos seus membros. Há, ainda, a possibilidade da atuação de juízes “ad hoc” em se tratando de determinadas matérias – prática relativamente comum no Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 35 âmbito da Corte – como determina o art. 55 da Convenção Americana de Direitos Humanos transcrito a seguir: Artigo 55 - 1. O juiz, que for nacional de algum dos Estados- partes em caso submetido à Corte, conservará o seu direito de conhecer do mesmo. 2. Se um dos juízes chamados a conhecer do caso for de nacionalidade de um dos Estados-partes, outro Estado-parte no caso poderá designar uma pessoa de sua escolha para integrar a Corte, na qualidade de juiz ad hoc. 3. Se, dentre os juízes chamados a conhecer do caso, nenhum for da nacionalidade dos Estados-partes, cada um destes poderá designar um juiz ad hoc. 4. O juiz ad hoc deve reunir os requisitos indicados no artigo 52. 5. Se vários Estados-partes na Convenção tiverem o mesmo interesse no caso, serão considerados como uma só parte,para os fi ns das disposições anteriores. Em caso de dúvida, a Corte decidirá. Sua regulamentação em sede de direito internacional se dá através dos arts. 33, alínea “b” e 52 a 73 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos Galindo (2014, p. 153) verifi ca que as funções da Corte Interamericana de Direitos Humanos se divide em duas funções principais: a) conhecer e apreciar casos individuais ou interestaduais em que se alegue violação de direitos contidos na Convenção Americana de Direitos Humanos e; b) emitir opiniões consultivas a pedido dos Estados-membros. Ou seja, cumula as funções contenciosa e consultiva. Esta posição consultiva se consubstancia na possibilidade que possuem os Estados membros da Organização dos Estados Americanos – e outros órgãos descritos no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, dentre eles a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos – em solicitar a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Além da interpretação da própria Convenção Americana de Direitos Humanos, cabe à Corte a interpretação de outros tratados concernentes à proteção dos Direitos Humanos aplicáveis aos Estados Americanos e o exame de compatibilidade das normas internas dos países em relação a esses tratados. (SERRANO, 2011, p. 237). Já a sua outra função, a contenciosa, se refere à jurisdição que possui no sentido de examinar casos que envolvam denúncias de que um Estado-parte violou direito protegido pela Convenção. (PIOVESAN, 2010, p. 210). Há, no entanto uma ressalva. Somente estará submetido à Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 36 jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos aqueles Estados que expressamente reconheçam sua Jurisdição, conforme expresso no art. 62 da Convenção Americana de Direitos Humanos: Artigo 62 - 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratifi cação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção. 2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específi cos. Deverá ser apresentada ao Secretário Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma a outros Estados-membros da Organização e ao Secretário da Corte. 3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção, que lhe seja submetido, desde que os Estados- partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como preveem os incisos anteriores, seja por convenção especial. Veja, não se pode confundir as duas funções exercidas pela Corte Interamericana. Conforme ressalta Cançado Trindade (2003, p. 1), há clara distinção entre a função consultiva a função jurisdicional contenciosa. O trecho a seguir, de Cançado Trindade (2003, p. 1) faz claramente esta constatação, reforçando, inclusive, o exposto acima: May it preliminarily be recalled that the conventional basis for the exercise of the Court's advisory jurisdiction is distinct from that for the exercise of its contentious jurisdiction. The basis for the exercise of the former is particularly wide, given that, under Article 64 of the American Convention, all OAS member States (whether Parties to the American Convention or not) and all of the main organs mentioned in Chapter X of the OAS Charter can request advisory opinions from the Court on matters regarding 'the interpretation of this Convention or of other treaties concerning the protection of human rights in the American states' or, in the case of member states, 'the compatibility of any of its domestic laws with the aforesaid international instruments’. O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos desde 1992, ingressando no ordenamento jurídico pátrio através do Decreto no 678, de 06 de novembro de 1992. Já o reconhecimento da Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 37 competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorreu com a edição do Decreto Legislativo no 89, de 03 de dezembro de 1998 e o Decreto no 4.463, de 08 de novembro de 2002, instrumentos jurídicos que introduziram no ordenamento jurídico brasileiro a Declaração de Competência Obrigatória da Corte Interamericana sobre Direitos Humanos. (GUERRA, 2012, p. 352). Ou seja, esta competência contenciosa se refere ao controle concreto que a Corte faz em relação a um caso particular de violação aos Direitos Humanos, submetido a ela via petição individual – submetendo-se ao procedimento preliminar necessário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – ou via representação direta de um Estado, que tem legitimidade de peticionar diretamente à Corte. (SERRANO, 2011, p. 237). Caso a Corte entenda que, de fato, ocorreu violação aos Direitos Humanos, determinará que o Estado condenado tome as medidas necessárias para a reparação do Direito violado. Pode a Corte condenar o Estado ao pagamento de uma indenização à vítima, com força de título executivo. (PIOVESAN, 2010, p. 271-72). 3 CONDIÇÕES PRELIMINARES DE ADMISSIBILIDADE Como já tratado de forma introdutória, para que um caso seja analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos há a necessidade de se verifi car o preenchimento de determinados requisitos. O Estado, ao se defender em uma demanda judicial em âmbito internacional que responde perante à Corte Interamericana pode alegar exceções preliminares, que prejudicam o julgamento do processo. Para Serrano (2011, p. 235), as defesas preliminares apresentadas pelo Estado podem se circunscrever em aspectos da competência: tempo, lugar e admissibilidade. Ou seja, é o meio de defesa apresentado pelo Estado para impedir que haja, de fato, a análise da suposta violação aos direitos humanos, impossibilitando que o caso prossiga em seu trâmite regular, como base aspectos meramente formais. (SERRANO, 2011, p. 236). Segundo consta no art. 48 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Comissão processará as petições que atendam aos requisitos. Para tanto, há necessidade de transmitir a denúncia ao Estado que, no prazo de 2 meses, prorrogáveis por mais um irá apresentar resposta, podendo alegar questões referentes à elegibilidade da petição. Pode a Comissão, ainda, convidar as Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 38 partes a tecerem comentários adicionais, seja por escrito ou por meio de uma audiência. (GALINDO, 2014, p. 157). Conforme se verifi ca a seguir: Artigo 48 - 1. A Comissão, ao receber uma petição ou comunicação na qual se alegue a violação de qualquer dos direitos consagrados nesta Convenção, procederá da seguinte maneira: a) se reconhecer a admissibilidade da petição ou comunicação, solicitará informações ao Governo do Estado ao qual pertença a autoridade apontada como responsável pela violação alegada e transcreverá as partes pertinentes da petição ou comunicação. As referidas informações devem ser enviadas dentro de um prazo razoável, fi xado pela Comissão ao considerar as circunstâncias de cada caso; b) recebidas as informações, ou transcorrido o prazo fi xado sem que sejam elas recebidas, verifi cará se existem ou subsistem os motivos da petição ou comunicação. No caso de não existirem ou não subsistirem, mandará arquivar o expediente; c) poderá também declarar a inadmissibilidade ou a improcedência da petição ou comunicação, com base em informação ou prova supervenientes; d) se o expediente não houver sido arquivado, e com o fi m de comprovar os fatos, a Comissão procederá, com conhecimentodas partes, a um exame do assunto exposto na petição ou comunicação. Se for necessário e conveniente, a Comissão procederá a uma investigação para cuja efi caz realização solicitará, e os Estados interessados lhe proporcionarão, todas as facilidades necessárias; e) poderá pedir aos Estados interessados qualquer informação pertinente e receberá, se isso for solicitado, as exposições verbais ou escritas que apresentarem os interessados; e f) pôr-se-á à disposição das partes interessadas, a fi m de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos reconhecidos nesta Convenção. 2. Entretanto, em casos graves e urgentes, pode ser realizada uma investigação, mediante prévio consentimento do Estado em cujo território se alegue houver sido cometida a violação, tão somente com a apresentação de uma petição ou comunicação que reúna todos os requisitos formais de admissibilidade. É exatamente neste momento que podem surgir as questões referentes às exceções preliminares: seja referente à jurisdição da Comissão, seja referente à elegibilidade do caso ou mesmo regras processuais Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 39 da Convenção Americana de Direitos Humanos ou do Regulamento da própria Comissão. Importante destacar que o silêncio do Estado dentro do prazo disposto (dois meses, possível uma prorrogação de mais um mês) acarreta uma presunção de veracidade dos fatos alegados na petição, conforme art. 38 do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: Art. 38: Presumir-se-ão verdadeiros os fatos relatados na petição, cujas partes pertinentes hajam sido transmitidas ao Estado de que se trate, se este, no prazo máximo fi xado pela Comissão de conformidade com o artigo 37 do presente Regulamento, não proporcionar a informação respectiva, desde que, de outros elementos de convicção, não resulte CONSIDERAÇÕES FINAIS diversa. O primeiro requisito a ser avaliado diz respeito ao esgotamento prévio dos recursos judiciais internos do país para que o indivíduo possa ter seu caso analisado pela Corte Interamericana (obviamente após análise previa da Comissão Interamericana). É o chamado “princípio da complementariedade”. (GALINDO, 2014, p. 156). Há, ainda, a análise de ausência de coisa julgada internacional ou litispendência internacional. Isto porque, para que a Corte Interamericana esteja autorizada a julgar um caso contra um Estado-membro, não pode a matéria ter sido objeto de análise – ou ainda estar em análise – em outro órgão jurisdicional internacional. Para que esteja a Corte impedida de julgar é necessário que haja coincidência nas partes, nos fatos e da questão de direito discutida. Caso estes três elementos não estejam presentes, não é possível se falar em identidade de processos, ou seja, a litispendência ou coisa julgada internacional. (SERRANO, 2011, p. 243). No que tange ao sujeito ativo do processo, ou seja, aqueles que podem provocar a jurisdição da Corte Interamericana, somente a Comissão Interamericana ou os Estados-membros estão autorizados. Logo, o indivíduo não está autorizado a ingressar diretamente com a ação no âmbito da Corte, havendo necessidade de passar pela análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. (GUERRA, 2012, p. 344). Quando se fala no sujeito passivo do processo, os únicos legitimados são aqueles Estados que aceitaram expressamente a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. (SERRANO, 2011, p. 238-39). Quando se fala na competência da Corte Interamericana em relação ao tempo, é necessária que a concessão da competência à Corte Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 40 tenha ocorrido anteriormente aos atos de violação aos direitos humanos praticados. Como leciona Serrano (2011, p. 241), um caso paradigmático fi cou conhecido como Caso Heliodoro Portugal, em que não se sabia o paradeiro da vítima desde 14 de maio de 1970. O Estado do Panamá foi responsabilizado pelo “desaparecimento forçado” de Heliodoro Portugal (ocorrido em 1970), sendo os restos mortais da vítima encontrados apenas em 1999. Veja, o Panamá aceitou a jurisdição da Corte Interamericana mais de 10 anos após o desaparecimento da vítima, mas mesmo assim foi condenada perante a Corte. Isto porque, considerou a Corte que estas violações aos direitos humanos envolvendo desaparecimento forcado são crimes continuados, permanentes e pluriofensivos. Desta maneira, a suscitação de incompetência em razão do tempo não foi acolhida. Presentes estes requisitos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos está apta a julgar o mérito da questão, ou seja, se o Estado é internacionalmente responsável ou não pelas violações de direitos humanos por ele perpetrado observando, obviamente, o contraditório e a ampla defesa, que também permeiam os procedimentos em sede internacional. Consequentemente, a Corte ordena que o Estado repare o dano causado – caso seja condenado –, ou rejeita as reivindicações dos peticionários, caso seja absolvido. (GALINDO, 2014, p. 164). CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, conclui-se que o procedimento de ingresso de ações perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos pressupõe a superação de diversas fases para, enfi m, analisar-se o mérito. Ou seja, além da difi culdade que encontra o indivíduo vítima de violação a Direitos Humanos têm em atingir, de fato, a Corte, ainda há procedimentos complexos para que o mérito possa ser analisado. Uma crítica feita pela doutrina, como principais expositores Cançado Trindade e Flávia Piovesan, diz respeito justamente às petições individuais e a impossibilidade de se peticionar diretamente à Corte. Os legitimados ativos para ingressar com demandas na Corte são apenas os Estados-membros e a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É diferente do que ocorre no Sistema Europeu de proteção aos Direitos Humanos, em que há possibilidade de ingresso por parte do indivíduo. O trabalho visou demonstrar os procedimentos de ingresso na Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 41 Corte Interamericana e as questões que podem cominar na extinção do processo sem a análise do mérito. São as chamadas questões prejudiciais. REFERÊNCIAS BREWER, Stephanie Erin; CAVALLARO, James L. Reevaluating Regional Human Rights Litigation in the Twenty-First Century: The Case of the Inter-American Court. The American Journal of International Law, Washington, v. 102, n. 4, p. 768-827, out. 2008. BURGORGUE-LARSEN, Laurence. El Contexto, las Técnicas y las Consecuencias de la Interpretación de la Convención Americana de los Derechos Humanos. Estudios Constitucionales, Talca (Chile), a.12, n. 1, p. 105-161, 2014. CÓRDOVA, Luis Castillo. 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Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 43 PRESIDÊNCIA DEMOCRÁTICA – GOVERNAÇA; DESENVOLVIMENTO HUMANO NA AMERICA LATINA Suelen Otrenti1* INTRODUÇÃO Existe contradições quando o tema é democracia contemporânea, a noção de ser o único regime jurídico legitimo aumenta a incredibilidade da população, observando-se na grande recusa durante as eleições e também nas manifestações, em contra partida, se há um entendimento fi rmado de o Estado Nacional ser incapaz, onde a democracia representativa respondera de forma satisfatória conforme demanda da população através dos direitos de cidadania em uma história de capitalismo e decisões em um só sistema, o que infl uencia decisivamente para a crise de legitimidade, por outo lado a ONU, o FMI e a União Européia, apontam uma defi ciência na democratização e de efetividade ao cumprir suas missões institucionais, o que fi cou mais evidente a partir da crise econômica iniciada em 2008. Para compreender corretamente esse contexto deve-se considerar dois pressupostos, do qual nem todos os problemas enfrentados pela democracia contemporânea são devidos à globalização; e estudando profundamente a crise de legitimidade dessas instituições representativas, do défi cit democrático e dos impactos causados pelos fundamentos da cidadania não pode ser o mesmo em âmbitos tão diferentes (como exemplo, o da União Europeia e o da América Latina). Evidentemente, que alguns fatores como o poder das corporações transnacionais, o pluralismo jurídico, o processo de homogeneização do direito, dentre outros, dão uma certa limitação a competência do Estado agir autonomamente como implantar políticas sociais. Muitas decisões que tem relação direta com o cidadão são tomadas onde as instituições representativas não têm qualquer poder de infl uenciar, comprometendo a legitimidade da democracia. O grande poder do défi cit democrático é a falta de capacidade cada vez maior do sistema político, ancorado no Estado- Nação, ao representar os cidadãos na prática efetiva da governança global. Por vez, existem vícios que acompanham a democracia anteriores a globalização, iniciado século XX, como a deformação da opinião pública Graduanda em Direito. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 44 pela mídia, infl uência do poder econômico, entre outros. A realidade latino-americana tem características da própria história e cultura que causa uma signifi cativa defi ciência na democracia em nossas instituições representativas, dentre as quais destacamos os bloqueios ao exercício da soberania de origem externa (condição de dependência) e interna, a apropriação do Estado por interesses privados, o populismo, a histórica ausência do Estado perante graves problemas sociais, a desigualdade e a exclusão social, e a baixa integração social. A princípio o objetivo era de manter a paz depois também com o propósito de minorar a defi ciência regulatória da economia global, os Países constituíram organizações internacionais e blocos regionais, sendo fundamentais neste contexto, mas, por outro lado, não apresentam uma boa efi ciência ao cumprir os propósitos apresentando também um signifi cativo défi cit democrático. Esta inefi ciência entende-se, pela limitação no orçamento impedindo desenvolvimento de grandes projetos. Não possuem receitas próprias, inclusive o limitado orçamento depende de transferência de recursos dos Estados nacionais. Não conseguindo fazer frente nem ao mercado global nem aos interesses das grandes potências, se dispondo, a serviço delas. Por conta do não cumprimento de seus objetivos, as organizações não tem capacidade de enfrentar uma crise de impotência da política e de ajudar como deveria compensando o defi cit democrático das instituições representativas nacionais. Observa-se um grande défi cit democrático das organizações internacionais, apresentando uma estrutura desequilibrada de poder, porque são dominadas pelas grandes potências militares e econômicas. E os mecanismos de representatividade, a clareza e a responsabilização são frágeis nas organizações internacionais. Não assegurando a existência de participação dos interessados em situações que lhe afetam, existindo disputa não só pela defi nição da política a ser aderida, mas também pela participação. Os procedimentos decisórios são distantes dos cidadãos, não tem controle direto das pessoas eleitas, e são conduzidos por diplomatas e especialistas de forma não visível e nem se submetendo à crítica prévia da opinião pública, de representantes políticos e de grupos de interesse. A União Européia, AFTA, ASEAN, APEC e MERCOSUL, não estão livres dessa inefi ciência de cumprimento nos seus objetivos e ao défi cit democrático. No início a União Europeia não apresenta “uma soberania única”, sendo difícil de ser controlada e legitimada pelos Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 45 processos políticos e mecanismos democráticos. Depois, ainda, existe um “dualismo expresso por uma instituição representativa, mas sem autonomia decisória (Parlamento Europeu), e por agências burocráticas dotadas dessa autonomia, porém sem representatividade”. Sendo somente o órgão eleito para representar a comunidade e não de decidir. (FARIA, 2002, p. 303–306). Archibugi (2005, p. 75) argumenta da avaliação sobre a União Européia que será bastante diferente se feita por um estudioso da democracia global ou estatal, porque de frente aos Estadosdemocráticos maduros, fi cava claro que a UE não é democrática; mas, se considerar as outras organizações internacionais, como a ONU, o FMI e a OMC, verifi ca-se a transparência bem maior da UE, com mecanismos de prestação de contas e responsabilização superiores. O autor ainda (2005, p. 78) destaca que, se comparássemos países europeus que pertencem e não pertencem à UE, os que não pertencem tem as mesmas limitações que os pertencentes em relação à autonomia para enfrentar problemas de impacto transnacional, como a poluição, epidemias e a concorrência no comércio internacional, mas existe uma diferença que importante destacar, os membros da UE, não obstante as limitações inseridas à força econômica e ao peso político de cada um, têm a vantagem de participar de um processo deliberativo comum e podem usar instituições europeias para defender seus interesses e valores contra poluição bem como o comercio desleal. Tem-se então, que o fortalecimento das organizações internacionais e dos blocos regionais é apenas resposta política inevitável diante da globalização. Nota-se ainda que, em geral, a estrutura e o funcionamento dessas instituições tem em escala maior, o défi cit democrático do Estado. Do mesmo modo, se a relação entre representantes e representados é frágil no âmbito nacional, é mais ainda na esfera continental. Este problema afeta duas vezes os fundamentos da cidadania, compreendendo a cidadania como participação político-democrática, vê-se que ela é frágil em relação às instituições de governança global e regional; por sua vez, a falta de controles democráticos efi cazes sobre estas instituições obriga a realização da cidadania enquanto garantia e concretização de direitos fundamentais. Olhando para a América Latina, verifi ca-se que há experiências em andamento para integrar econômica e politicamente, bem como de instituições de governança regional. A mais consolidada é a do MERCOSUL, tendo complexos mecanismos institucionais e ótimos Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 46 resultados na prática, seja em comércio regional ou de cooperação no campo de políticas sociais, como exemplo. Existem dois projetos recentes bem ambiciosos, mas, ainda em curso: a UNASUL (União de Nações Sul-Americanas) e a CELAC (Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos). A UNASUL, inspira-se no processo de integração da União Europeia e fundada a partir dos ideais de integração sul-americana. Seu Tratado Constitutivo determina que os seguintes órgãos compõem sua estrutura institucional: a) Conselho de Chefes de Estado e de Governo; b) Conselho de Ministros das Relações Exteriores; c) Conselho de Delegados; e d) Secretaria Geral. A CELAC foi criada na “Cúpula da Unidade da América Latina e do Caribe”, constituindo- se um novo e mais abrangente organismo regional. Registra-se, ainda, a existência de outros dois organismos regionais: a CAN (Comunidade Andina de Nações) e a ALADI (Associação Latino-americana de Integração). O défi cit democrático como na ONU e o FMI, têm um grande impacto na efetividade da cidadania na América Latina, ainda mais considerando a realidade periférica ou semiperiférica de seus Estados, onde ainda tem a dependência econômica e cultural e os direitos de cidadania estão longe da plena consolidação. As instituições regionais latino-americanas não estão imunes ao problema do défi cit democrático de seus próprios processos decisórios. Os fundamentos para compreender os problemas da cidadania na América Latina, nas duas as acepções apresentadas, exige, que seja feito uma análise a propósito do défi cit democrático das instituições de governança global, e, em especial, das instituições de governança regional cima citadas. Revelando, a importância teórica e prática do objeto deste projeto de pesquisa: Défi cit Democrático da Governança Global e os Fundamentos da Cidadania na América Latina. 1 OBJETIVOS Tem como objetivo investigar a democracia e seus problemas, e as impressões causadas na cidadania na América Latina, com foco nas relações entre cidadania política (nacional e cosmopolita) e cidadania econômica (controle do cidadão sobre a economia). Fazer um estudo para comparar instituições de governança latino- americanas, que, não obstante as signifi cativas diferenças históricas e políticas, são bastante inspiradas pela experiência europeia. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 47 Delimitando ao período iniciado com a crise econômica mundial de 2008, eventuais incursões históricas serão desenvolvidas nos estritos limites necessários para a compreensão da realidade de fenômenos ocorridos a partir de tal período. As atenções estarão voltadas para questões como as estruturas e práticas político-decisórias. 2 METODOLOGIA Estudos de natureza teórica e empírica. Realizando uma análise comparativa entre as produções científi cas latino-americana e europeia sobre o défi cit democrático de governança global. Do ponto de vista empírico, será estudado primeiramente, o suporte jurídico das instituições de governança supranacional latino-americanas e europeias e, depois, a prática dos processos decisórios de instituições da América Latina e de instituições União Europeia para alguma forma de comparação. Será utilizado dados produzidos por instituições de referência, como a CEPAL e o PNUD, que ajudem a compreender a interface entre poder econômico e democracia na governança global, bem como os impactos do défi cit democrático de governança global na América Latina. Para evitar o equívoco de tentar enquadrar a realidade em teorias preconcebidas, bem como conhecer as relações das mudanças em curso com o direito. Incorporaremos elementos explicativos das condições (sobretudo econômicas) de operação de tais instituições, para que no fi nal, possivelmente serem apresentadas propostas alternativas de desenho jurídico-institucional (dimensão normativa desta pesquisa). 3 CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO 1ª fase (06 meses): espólio bibliográfi co, leitura a análise das obras principais sobre o tema, já com a elaboração das fi chas contendo as paráfrases, críticas e eventuais dúvidas. 2ª fase (07 meses): aprofundamento do espólio bibliográfi co, com leitura de bibliografi a complementar e elaboração de esboço dos capítulos. 3ª fase (07 meses): aprofundamento e aperfeiçoamento do esboço, com ampliação da pesquisa bibliográfi ca e da sua leitura, visando já a redação do relatório fi nal. 4ª fase (04 meses): redação do relatório fi nal, com últimas correções, acréscimos, preparação de índices, impressão etc. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 48 REFERÊNCIAS BADIE, Bertrand. 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Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 51 www.aeryc.org AERYC (América-Europa de Regiones y Ciudades), é um movimento internacional que tem como fi nalidade o desenvolvimento da governança territorial. A página eletrônica contém, entre outros temas de interesse, os livros com as principais conferências e apresentações de suas conferências anuais, assim como boas práticas em governança. São de especial interesse, por sua singularidade, os temas de gestão regional através dos s sistemas de cidades e as conclusões de suas conferências anuais. GASPARDO, Murilo. Projeto de pesquisa a ser desenvolvido durante Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa – RDIDP, junto ao Departamento de Direito Público da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Franca. http://www.aeryc.org EIXO 2: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A CIDADANIA PARTICIPATIVA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 55 A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO COMBATE À CORRUPÇÃO Augusto Martinez Perez Filho* INTRODUÇÃO É fato público e notório que o vivencia, ao longo do primeiro semestre de 2015, uma “crise” política e econômica intimamente ligada à corrupção, que em tese, teria sido praticada por indivíduos lotados em cargos e funções de grande relevância política ou corporativa. Trata-se, na visão de alguns analistas políticos, de um importante momento de transição que representa o encerramento do “primeiro ciclo de redemocratização brasileira”1. Neste diapasão, ganha realce o papel do Direito e a participação popular na defi nição (ou redefi nição) de seu conteúdo e prioridades, dentre elas, o combate à corrupção. Embora não previsto expressamente no bojo do artigo 37 da Constituição Federal, a doutrina entende que o princípio da participação popular é aplicável à Administração Pública, representando verdadeira fonte de legitimidade (MENEZES, 2005, p. 3), consubstanciado na “coordenação recíproca de interesses e ações” (MEDAUAR, 2003, p. 229). Em outros termos, a participação popular tem o condão de exigir posturas mais efi cientes do ente público, ao mesmo tempo em que o auxilia na efetivação do princípio da publicidade, além de indicar - empiricamente – as aspirações do cidadão. Inobstante este relevante ofício, “a discussão em torno do princípio da participação administrativa é embrionária”. (OLIVEIRA, 2006, p. 174). Não se olvida a existência de instrumentos legais contendo comandos indutores da democracia participativa, tais como a Lei n. 101/20002 - que trata da responsabilidade fi scal de administradores - e a Lei n. 10.257/20013 - conhecida como “Estatuto da Cidade” – ambos dispondo acerca de audiências públicas. Todavia, especialmente no que se refere ao combate e prevenção da corrupção diretamente pelo cidadão, o ordenamento pátrio possui * Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Master of Laws - LLM pela Brigham Young University (EUA). Professor de Direito na Universidade Paulista – UNIP, campus Ribeirão Preto-SP. 1 Entrevista FECOMÉRCIO com analista político Christian Lohbauer. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=IvYtAMo8daQ.Acesso em: 25 set. 2015. 2 Artigo 9º, §4º. 3 Artigo 40, §4º. https://www. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 56 parcos instrumentos já conhecidos, tal como a ação popular4 e o direito de petição junto a órgãos internos de controle da Administração Pública ou instituições de defesa da ordem jurídica, como o Ministério Público. Ainda assim, nada há de convidativo para o cidadão, além do intrínseco sentimento de patriotismo5, participar ativamente do combate deste fenômeno que tanto deprava o Estado. Ao contrário do que ocorre em outros países, a participação de cidadãos pode ensejar sérias consequências negativas6, representando, por vezes, até mesmo uma piora de sua situação sócioeconômica originária, além de, obviamente, a possibilidade – remota ou não, a depender das condições concretas – de alguma represália. Despiciendo ressaltar que a Lei n. 12.846/2013, denominada de “Lei Anticorrupção”, não contempla qualquer instrumento de participação popular. De outro giro, a participação popular pode contribuir decisivamente no combate à corrupção, seja por razões de própria sobrevivência num país que tem na corrupção um caráter “[...] sistêmico, em contínua expansão[...]” (SANTOS; BIDINO; MELO, 2011, p. 556), seja porque “são os cidadãos comuns que carregam o peso da corrupção, são eles que possuem uma experiência direta e sofrem com isto[...]”. (NEUMANN, 2010). O desafi o que se apresenta justifi ca que academia refl ita e aponte caminhos aptos ao combate deste mal, almejando a sua completa extirpação do meio público ou, na eventual impossibilidade deste afã, ao menos mitigá-lo, de modo a trazê-lo aos patamares vivenciados nos países 4 Artigo 5º, LXXIII da Constituição Federal. 5 Que já seria o sufi ciente, na visão de alguns. Ademais, nos dizeres de John F. Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país.” Disponível em: http://pensador.uol.com.br/autor/john_f_kennedy/. Acesso em: 23 set. 2015. 6 “[...] a permanência no programa de proteção a testemunhas está longe de ser um mar de rosas. A testemunha é obrigada a deixar sua casa e muitas vezes ser sustentada pelo governo, que paga uma média três salários mínimos por mês - independente da condição fi nanceira do delator. Até o fi m do programa, seu paradeiro não pode ser revelado para amigos ou parentes. A grande particularidade do sistema brasileiro é que a proteção nem sequer é feita pelo estado, mas sim por ONGs acionadas pelos governos estaduais e federal. [...]. Para uma testemunha que corre riscos de vida, trocar de identidade parece uma solução simples - mas não é. Segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, das mais de 1.400 pessoas atendidas pelo programa do governo federal, apenas três tiveram o pedido de mudança de nome autorizado pelo Poder Judiciário. Os motivos esbarram na burocracia brasileira e na precariedade de articulação com órgãos e programas de governo. Ao trocar a identidade, o protegido tem problemas para reconhecer a paternidade do fi lho ou resgatar sua aposentadoria. [...]”. NASCIMENTO, Fernanda. Programa de Proteção a Testemunhas Desencoraja Denúncia. Disponível em: http://veja.abril. com.br/noticia/brasil/programa-de-protecao-a-testemunhas-desencoraja-denuncias/. Acesso em: 23 set. 2015. http://pensador.uol.com.br/autor/john_f_kennedy/. http://veja.abril. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 57 desenvolvidos. Para tanto, almeja-se por meio deste trabalho, mencionara experiência norte-americana da participação popular no combate à corrupção, no intuito de apontar caminhos que poderiam servir de inspiração ao legislador pátrio, ou, ao menos, proporcionar refl exões acerca de outras técnicas e experiências de combate a tal desafi o, historicamente observado no Brasil.7 1 DESENVOLVIMENTO A corrupção e suas lamentáveis consequências não são recentes. Trata-se de um acontecimento que há muito se verifi ca nesta pátria, conforme aponta Sérgio Turra Sobrane: A preocupação com o aviltamento do patrimônio público remonta ao embrionário surgimento da sociedade brasileira, que sempre apresentou uma crônica propensão de apropriação do público pelo particular, em benefício próprio em detrimento dos contribuintes. (SOBRANE, 2010, p.7) No ranking de “percepção” da corrupção elaborado em 2014 pela organização não governamental “Transparência Internacional”8, numa escala em que 0 (zero) signifi ca “muito corrupto” e 100 (cem) “extremamente limpo”, o Brasil obteve a nota 43 (quarenta e três), resultado este que o colocou na 69ª posição dentre os 175 (cento e setenta e cinco) países objeto da pesquisa. Em seu desempenho, o Brasil obteve a mesma nota que Senegal, e se colocou à frente de países como a Argentina e o Paraguai, que receberam respectivamente, as notas 34 (trinta e quatro) e 24 (vinte e quatro), mas muito distante do Uruguai, que pontuou 73 (setenta e três) e Botswana, que obteve 63 (sessenta e três) pontos.9 No combate e prevenção à corrupção, verifi ca-se a centralização destas atividades nas esferas governamentais, com ênfase para as 7 Segundo Rita Biason: “Os primeiros registros de práticas de ilegalidade no Brasil, que temos registro, datam do século XVI no período da colonização portuguesa. O caso mais freqüente era de funcionários públicos, encarregados de fi scalizar o contrabando e outras transgressões contra a coroa portuguesa e ao invés de cumprirem suas funções, acabavam praticando o comércio ilegal de produtos brasileiros como pau-brasil, especiarias, tabaco, ouro e diamante.” Disponível em: http://www.contracorrupcao.org/2013/10/breve- historia-da-corrupcao-no-brasil.html. Acesso em: 23 set. 2015. 8 Disponível em: https://www.transparency.org/cpi2014/results. Acesso em: 24 set. 2015. 9 Apesar disto, ocorreu no Brasil ao longo dos últimos anos, importantes avanços no combate à corrupção, tais como o Portal da Transparência, mantido pela Controladoria Geral da União - CGU desde 2004 e o Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS), também mantido pela CGU, desde 2007. http://www.contracorrupcao.org/2013/10/breve- https://www.transparency.org/cpi2014/results. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 58 providências reativas – mormente perante o Judiciário10 – em detrimento ou, quiçá, representado por uma atuação mais discreta, no âmbito das medidas preventivas. Afora o conhecido “disque denúncia”, colocado à disposição da população e cujos resultados práticos são questionáveis11, não se verifi ca a existência de instrumentos mais sofi sticados e que representem um efetivo ganho para o cidadão que decida efetivamente corroborar na construção de práticas mais “republicanas”. Para que a participação popular no combate à corrupção seja concretizada, há de se conferir a seus integrantes, identidade e voz, valores indispensáveis ao desenvolvimento de uma nova cultura no que se refere ao trato da coisa pública, de modo a sobrepujar “[...] a tradição de clientelismo, personalismo e autoritarismo presente na história política de vários países [...]” (SANTIN, 2004, p.129) ao passo em que possibilita o atendimento de ditames ideológicos existentes sob diversas vertentes. Conforme aponta Carlos Vasconcelos Rocha, ao se viabilizar a participação cidadã, obtém-se, à lógica socialista: [...] o fortalecimento das instituições políticas locais, por viabilizarem a participação dos cidadãos nas decisões públicas. E fortalecer institucional e politicamente esses espaços de participação implicaria criar condições para a superação de problemas advindos do Estado centralizado, a saber: balcanização do poder público por elites econômicas e políticas; exercício de um poder ilegítimo da burocracia pública no processode tomada de decisões; e o clientelismo como lógica de ação do Estado. (ROCHA, 2011, p. 172). De fato, muito dos efeitos lesivos à sociedade e que podem ser denominados genericamente de “corrupção” deriva do uso indevido e ilegítimo da burocracia pública e os poderes dela inerentes, seja para promover escolhas – que ao fi nal, acabam por serem nulas, diante da tredestinação – ou pelo simples motivo do público ser confundido pelo 10 As ações penais popularmente conhecidas como o “Mensalão” e a “Lava Jato”, inobstante todo o alarde midiático, representaram importante passo na direção do fortalecimento das instituições democráticas, além de tornar possível a devolução de grandes montantes desviados ilicitamente pelos esquemas. Apesar disto, não há como se evitar a tônica de que grande parte das condutas poderia ter se resolvido, houvesse maior trabalho preventivo. 11 Não se verifi ca no meio acadêmico a existência de levantamentos acerca dos resultados produzidos através deste instrumento e, tampouco, se o próprio aparato policial dele se apropriou a fi m de justifi car abordagens de indivíduos e locais, em nome de uma suposta “averiguação” da denúncia recebida. A escassez de pesquisas de campo envolvendo este tópico torna mais árduo o papel do pesquisador, além de – eventualmente – dar azo a especulações. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 59 gestor administrativo, com o privado. Disto é consequência natural, a apropriação do bem público, a fi m de se promover ou satisfazer o desejo individual. Por outro lado, também a lógica liberal aponta apara a participação popular na gestão pública, uma vez que disto poderá resultar em: [...] maior efi ciência e efi cácia da ação pública. Instituir espaços de participação da sociedade civil no processo de tomada de decisões potencializaria a efi ciência das ações públicas, neutralizando os interesses corporativos da burocracia e as barganhas clientelistas, possibilitando a adequação das decisões às reais demandas da sociedade e a articulação de maneiras mais efetivas de fi scalização das ações governamentais. A proximidade entre a administração pública e a sociedade civil implicaria maior accountability e responsiveness. (ROCHA, 2011, p. 173 – grifos no original). Portanto, pode-se afi rmar que o envolvimento do cidadão na gestão pública tem obtido respaldo, ao menos no campo teórico. Há de se verifi car o impacto que a participação cidadã poderia ocasionar, ao se combater mazelas tão intimamente relacionadas com a cultura e história brasileiras. Uma das maneiras mais efi cazes, neste diapasão, são as trocas de experiências entre os países. Mormente no que se refere ao combate à corrupção, o primeiro Estado a adotar uma legislação objetivando regular as práticas negociais de empresas transnacionais, foram os Estados Unidos da América, através do “Foreign Corrupt Practices Act – FCPA”, de 197712. Desde então, a aplicação do FCPA passou a abarcar também empresas que tinham suas ações negociadas em bolsa de valores. Tal desiderato se faz numa ação conjunta entre o Ministério da Justiça dos Estados Unidos e a autoridade responsável pela regulação das bolsas de valores norte-americanas, o “Securities Exchange Commission - SEC”, conforme explicam Raymond L. Moss e Fernando A. Corrêa da Costa Neto: O FCPA é uma lei que se aplica a empresas americanas ou estrangeiras listadas em Bolsa [...] nos EUA, ou que sejam obrigadas a preencher relatórios periódicos junto à SEC, órgão correspondente à CVM (Comissão de Valores 12 O Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) é uma lei federal norte-americana, promulgada em 1977, que visa combater a corrupção transnacional por determinadas pessoas ou entidades relacionadas aos EUA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Foreign_ Corrupt_Practices. Acesso em: 24 set. 2015. https://pt.wikipedia.org/wiki/Foreign_ Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 60 Mobiliários) no Brasil. [...] O Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) e a SEC são responsáveis pela execução do FCPA. (MOSS; COSTA NETO, 2015, p. A3). Uma das possibilidades contidas neste texto legal é a realização de investigações a partir de comunicações realizadas por indivíduos, denominadas de “whistleblowers” - que numa tradução literal seria “aquele que apita”, algo próximo do conceito de “delatores” - instituída a partir da reforma fi nanceira e de proteção ao consumidor instituída em 2010, a “Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act”, onde fi cou estabelecida a possibilidade de pagamento de 10% (dez por cento) a 30% (trinta por cento) do valor das sanções pagas pelo infrator. Evidentemente há condições para que tal pagamento ocorra, tais como a identifi cação do indivíduo autor da comunicação às autoridades responsáveis pela investigação – aqui há de se ressaltar que, num primeiro momento é possível a apresentação de denúncia anônima, mas para que o valor da recompensa seja levantado, o denunciante deverá revelar sua identidade, que deverá constar nos registros ofi ciais13 - bem como, ao fi nal da ação das autoridades americanas, ter sido possível a recuperação de, ao menos, US$ 1,000.000.00 (um milhão de dólares norte-americanos). Críticos desta medida apontam que as pessoas, sobretudo funcionários das empresas de capital aberto expostas a este tipo de legislação, poderão deixar de utilizar os canais internos de “compliance” - existentes para se identifi car, conferir o tratamento adequado e mitigar a reincidência de qualquer desrespeito à legislação vigente - para de maneira prematura e com o alto custo à imagem da empresa, levar tais informações diretamente às esferas governamentais, almejando assim uma possível recompensa milionária. Seria como mercantilizar o interesse público. Apartando-se de tais conceitos, fato é que a medida implementada pelo governo norte-americano tem obtido resultados positivos no combate à corrupção. Nos últimos 03 (três) anos, o programa premiou 17 (dezessete) denunciantes em valores acima de US$ 50 milhões. (MOSS; COSTA NETO, 2015, p. A3), o que demonstra o alcance e, sobretudo, efi cácia desta ação. Como o programa não faz acepção de nacionalidades, considerando mais importante o combate à corrupção do que ideologias pseudonacionalistas, encontra-se aberto à participação de indivíduos de 13 Aqui cabe a ressalva que, em princípio, não há previsão acerca da segurança dos indivíduos responsáveis pela comunicação denunciando a prática de ilícitos. No entanto, isto é possível mediante outros procedimentos junto à polícia. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 61 quaisquer nacionalidades e, somente no ano de 2014, recebeu informações de mais de 60 (sessenta) países. (MOSS; COSTA NETO, 2015, p. A3). O processo de comunicação de alguma hipótese de corrupção revela-se simples, pode ser feito online, sem perder de vista sua amplitude. (CASSIN, 2010). Neste sentido, a comunicação deve ser realizada do modo mais detalhado possível. A autoridade americana informa, sem “rodeios” e no melhor estilo capitalista, que as chances de uma eventual recompensa ampliarão com base na robustez dos fatos narrados e evidências apresentadas14. Neste sentido, as autoridades americanas verifi carão se as informações apresentadas já não foram por meio de outra fonte obtidas ou se já eram objeto de investigação. Ademais, a comunicação pode ser individual ou realizada por meio de um grupo de indivíduos que se uniram para obter evidências e colaborar com o combate à corrupção. Neste sentido é possível notar, por meio desta experiência, que os institutos de controle social e Democracia participativa representam, talvez, uma das maneiras mais efi cazes de empoderamento, ao mesmo tempo em que poderepresentar um efetivo ganho na transparência das ações perpetradas pela Administração Pública – direta e indireta – além de auxiliar na concretização dos princípios da publicidade e efi ciência. CONSIDERAÇÕES FINAIS A corrupção no Brasil é responsável pela apropriação indevida de grandes montas de recursos públicos, que ao fi nal, são desviados para compor o patrimônio particular de indivíduos e organizações, representando – assim – uma da várias maneiras e, quiçá, a maior causa da ausência de materialização, “nas ruas”, dos direitos sociais previstos no texto constitucional. Trata-se de um fenômeno alheio às discussões acadêmicas e pouco analisado sob a ótica de métodos capazes de extrair mais acuradamente as suas causas “raízes” e conexão com o aspecto cultural brasileiro. Portanto, o discurso proferido em seu combate acaba por ser vago, desprovido de embasamento empírico e, sobretudo, hipotético, pois a realidade concreta, possível de ser observada somente por meio da pesquisa de campo, que raramente ocorre. Nos dizeres de Salo de Carvalho: 14 O comunicante poderá realizar o “upload” no programa governamental, como forma de juntar documentos, cópias de e-mail, recibos, fotosetc. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 62 Cada vez mais tenho a impressão de que os juristas teóricos e os atores processuais têm aversão à vida. Vida representada no seu trabalho pelas pessoas que demandam Justiça. A hipótese ganha relevância em momentos como os atuais, em que é possível perceber que a valorização da harmonia (coerência e completude) do sistema supera qualquer preocupação com a realidade das pessoas que buscam o amparo do direito e das suas instituições. (CARVALHO, 2013, p. 49). Ainda assim, a grande mídia revela, quase que cotidianamente, a inefi cácia dos instrumentos de participação de controle popular existentes no ordenamento jurídico pátrio, além da inexistência de instrumentos – atuais e efi cazes, ressalta-se - de participação popular especifi camente projetados para o combate à corrupção. Acrescenta-se a tais desafi os, a cultura brasileira, representada pelo “homem cordial” (HOLANDA, 1995, p. 139) e o “saneamento” Estatal promovido ao longo da história pátria (SAES, 2001, p. 410). Não há como negar que o conceito de interesse público, tão rico à moralidade e avesso à corrupção, é muito pouco conhecido da população geral, para quem tal valor seria adstrito aos “funcionários públicos”. Rigoroso com o próximo, o brasileiro médio parece auto eximir-se de qualquer dever moral: [...] o modo como o brasileiro compreende a questão do interesse público, afi rmando que ele é de responsabilidade do Estado, implica o fato de ele compreender a corrupção como praticada por funcionários públicos. Como o interesse público representa, na dimensão do imaginário coletivo brasileiro, uma ideia de interesse do Estado, é esperado que a corrupção seja compreendida na esfera estatal e não na dimensão da sociedade em seu conjunto. Nesse caso, a cultura política vincula, de alguma maneira, o tema da corrupção ao tema do Estado, sem perceber a corrupção que é praticada na dimensão da sociedade[...]. (FILGUEIRAS, 2009, p. 410). Apesar disto, ainda é possível combater-se a corrupção e punir os responsáveis, dentro de uma esfera democrática de responsabilização, isto é, atrelada à obediência dos ditames contidos no devido processo legal, no âmbito das instituições constitucionalmente estabelecidas. Em caso de uma eventual implementação de processos participativos mais contundentes, há de se lembrar da necessária regulação de tais medidas. Isto porque, do contrário, os processos participativos – se pouco sofi sticados – poderão ser objeto de uma verdadeira captura Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 63 ou até mesmo a corrupção (ainda que originalmente, os instrumentos participativos tenham sido estabelecidos como forma de combatê-la), por movimentos sociais ligados a agremiações políticas ou grupos ligados aos diversos segmentos econômicos. Neste caso hipotético, o diálogo existente entre os participantes oriundos da sociedade e os representantes do Poder público, poderão alcançar tamanho grau de politização capaz de comprometer a isenção necessária não só para a que a fi scalização dos atos administrativos se realize com a devida isenção, mas – também – uma diminuição dos padrões técnicos e de qualidade necessários, haja vista a “camaradagem” estabelecida entre aqueles que deveriam fi scalizar e os que deveriam ser fi scalizados. Neste sentido, é válida a precaução de Marcos Augusto Perez: Outro fator de risco apresentado pelo incremento da participação, ao nosso ver, é o aumento da corrupção. A aproximação das autoridades administrativas, ou mesmo de legisladores dos interesses dos diferentes grupos sociais pode levar ao sacrifício das políticas públicas em favor do interesse pessoal de alguns e da venalidade. [...] Parece-nos que essa não é uma consequência inevitável da participação. Defende-nos desse tipo de consequência, a transparência e a devida regulamentação dos processos participativos [...]. (PEREZ, 2009, pp. 227- 228). Finalmente, como medidas hábeis a mitigar o processo de corrupção enraizado na Administração Pública, sugere-se a adoção de medidas de recompensa mais atrativas, tal como aquelas existentes em outros países, por exemplo, os Estados Unidos, onde o “Foreign Corrupt Practices Act – FCPA”, estabeleceu percentuais elevadíssimos, caminho este que o Brasil merece trilhar. REFERÊNCIAS BIASON, Rita. Breve História da Corrupção no Brasil. Disponível em: http://www. contracorrupcao.org/2013/10/breve-historia-da- corrupcao-no-brasil.html. Acesso em: 23 set. 2015. CARVALHO, Salo de. Como não se faz um Trabalho de Considerações Finais: provocações úteis para orientadores e estudantes de Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. http://www. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 64 CASSIN, Richard L. Squeal and Grow Rich.Disponível em: http:// www. fcpablog.com/blog/2010/8/31/squeal-and-grow-rich.html. Acesso em: 25 set. 2015. FILGUEIRAS, Fernando. A Tolerância à Corrupção no Brasil: uma antionomia entre normas morais e prática social. Revista Opinião Pública. v.15, n. 2, Campinas: Unicamp, 2009. MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. MENEZES, Joyceane Bezerra de. A Participação Popular como Fonte de Legitimidade Democrática da Administração Pública. X Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública. Santiago, 2005. Disponível em: http://ipea.gov. br/participacao/images/Menezes.pdf. Acesso em: 22 set. 2015. MOSS, Raymond L.; COSTA NETO, Fernando A. Corrêa da. O bom combate contra a corrupção. Seção “Tendências/Debates”. Folha de São Paulo. 24.08.2015. 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A Política Nacional de Saneamento Básico relaciona-se com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei Federal n. 12.305 de 2 de agosto de 2010, que por sua vez integra a Política Nacional do Meio Ambiente e articula-se com a Política Nacional de Educação Ambiental, regulada pela Lei n. 9.795, de 27 de abril de 1999. Com efeito, tratando do tema água, importante ressaltar a Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei Federal n. 9.433/97, conhecida como Lei das Águas, a qual criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamentando o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, caracterizador da nova mudança de paradigmas no gerenciamento hídrico no Brasil, embora não integre os serviços públicos de saneamento básico, conforme art. 4º da Lei n. 11.445. Verifi ca-se que as políticas públicas de saneamento básico possuem como princípio fundamental a universalização do acesso, bem como o controle social, compreendido o conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação, planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico. Mestrando em Direito na UNESP. Pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito pela UNESP. Professor dos cursos de graduação e mestrado UNESP. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 66 Neste contexto, os serviços urbanos de abastecimento de água e esgotamento sanitário envolvem, simultaneamente, os desafi os da escassez de recursos naturais e o acesso à população a água em padrões adequados de qualidade, denotando o quão complexo é o fenômeno da regulação, mostrando ser matéria de interesse público de toda a sociedade, superando os limites entre regulador e regulado. Desta feita, justifi ca-se a escolha do tema, em razão da importância dessas questões serem analisadas na busca de uma melhor resposta às exigências por uma efi ciente Administração Pública, especialmente pela água ser um recurso natural esgotável e que não pode ser substituível. Portanto, o presente estudo tem por objetivo fazer uma análise do controle social dos serviços de saneamento básico, a fi m de identifi car quais os mecanismos de participação popular foram contemplados na Lei n. 11.445. Para tanto, o presente trabalho utilizará o método dedutivo bibliográfi co. Neste sentido, a pesquisa bibliográfi ca buscará traçar o contexto existente no surgimento e fortalecimento da participação popular nas políticas públicas de saneamento básico. 1 DIRETRIZES NACIONAIS PARA O SANEAMENTO BÁSICO A Lei Federal n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007, estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico e para a política federal de saneamento. Conforme o art. 3º, inciso I, da Lei n. 11.445, considera- se saneamento básico: a) abastecimento de água potável, constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição; b) esgotamento sanitário, constituído pelas atividades, infra- estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição fi nal adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento fi nal no meio ambiente; c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos o conjunto de atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destino fi nal do lixo doméstico e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas; Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 67 d) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas o conjunto de atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de drenagem urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição fi nal das águas pluviais drenadas nas áreas urbanas; Nos termos do art. 2º, da Lei n. 11.445, constituem princípios fundamentais dos serviços públicos de saneamento básico: I - universalização do acesso; II - integralidade, compreendida como o conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a efi cácia das ações e resultados; III - abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente; IV - disponibilidade, em todas as áreas urbanas, de serviços de drenagem e de manejo das águas pluviais adequados à saúde pública e à segurança da vida e do patrimônio público e privado; V - adoção de métodos, técnicas e processos que considerem as peculiaridades locais e regionais; VI - articulação com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de proteção ambiental, de promoção da saúde e outras de relevante interesse social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o saneamento básico seja fator determinante; VII - efi ciência e sustentabilidade econômica; VIII - utilização de tecnologias apropriadas, considerando a capacidade de pagamento dos usuários e a adoção de soluções graduais e progressivas; IX - transparência das ações, baseada em sistemas de informações e processos decisórios institucionalizados; X - controle social; XI - segurança, qualidade e regularidade; XII - integração das infra-estruturas e serviços com a gestão efi ciente dos recursos hídricos; XIII - adoção de medidas de fomento à moderação do consumo de água. Ressalta-se que a Lei Federal n. 12.862 de 17 de setembro de 2013, com o objetivo de incentivar a economia no consumo de água, alterou a Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 68 Lei Federal n. 11.445, de modo que a Política Nacional de Saneamento básico vise: adoção de medidas de fomento à moderação do consumo de água (art. 2º, XIII); estímulo ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de equipamentos e métodos economizadores de água (art. 48, XII); incentivar a adoção de equipamentos sanitários que contribuam para a redução do consumo de água (art. 49, XI); promover educação ambiental voltada para a economia de água pelos usuários (art. 49, XII). No que se refere à titularidade dos serviços de saneamento básico, a Lei n. 11.445 não aborda diretamente quem são os titulares do serviço, mas prescreve que o titular deve prestar o serviço diretamente ou autorizar a delegação dos serviços e defi nir o ente responsável pela sua regulação e fi scalização, bem como os procedimentos de sua atuação.A prestação de serviços públicos de saneamento observará o referido plano de saneamento básico, cuja responsabilidade por sua edição será do titular do serviço, devendo conter os objetivos e metas de curto, médio e longo prazo para a universalização do acesso. (art. 19, Lei n. 11.445). Ademais, os serviços públicos de saneamento básico terão a sustentabilidade econômico-fi nanceira assegurada, sempre que possível, mediante remuneração pela cobrança dos serviços (art. 29, Lei n. 11.445), devendo atender a requisitos mínimos de qualidade, incluindo a regularidade e continuidade dos serviços. (art. 43, Lei n. 11.445). Incumbe à entidade reguladora e fi scalizadora dos serviços de saneamento básico a verifi cação do cumprimento dos planos de saneamento por parte dos prestadores de serviços, na forma das disposições legais, regulamentares e contratuais. (art. 20, parágrafo único, Lei n. 11.445). No tocante a regulação do setor, a Lei n. 11.445 trouxe modernos princípios regulatórios, como a independência decisória, autonomia administrativa, orçamentária e fi nanceira da entidade reguladora, bem como transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade das decisões. (art. 21). Com efeito, são objetivos da regulação estabelecer padrões e normas para a adequada prestação dos serviços e para a satisfação dos usuários; garantir o cumprimento das condições e metas estabelecidas; prevenir e reprimir o abuso do poder econômico, ressalvada a competência dos órgãos integrantes do sistema nacional de defesa da concorrência; defi nir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e fi nanceiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante mecanismos que induzam a efi ciência e efi cácia dos serviços e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade. (art. 22, Lei n. 11.445). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 69 Por fi m, vale ressaltar a criação do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico - SINISA, que tem por objetivo: coletar e sistematizar dados relativos às condições da prestação dos serviços públicos de saneamento básico;disponibilizar estatísticas, indicadores e outras informações relevantes para a caracterização da demanda e da oferta de serviços públicos de saneamento básico; permitir e facilitar o monitoramento e avaliação da efi ciência e da efi cácia da prestação dos serviços de saneamento básico. 2 CONTROLE SOCIAL DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO BÁSICO O controle social, um dos princípios fundamentais da Lei n. 11.445, consiste nos termos do art. 3º, inciso IV, o conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico. Desse modo, a Lei n. 11.445 ao prever expressamente a participação popular nos processos de formulação e fi scalização das políticas públicas de saneamento básico, homenageou expressamente a cidadania (art. 1º, II, Constituição Federal de 1988), fundamento do Estado Democrático de Direito, como paradigma para as políticas públicas de saneamento básico. Neste diapasão, os planos municipais de saneamento básico deverão estabelecer mecanismos de controle social, bem como fi xar os direitos e deveres dos usuários. (art. 9º, Lei n. 11.445), sendo assegurada ampla divulgação das propostas dos planos de saneamento básico e dos estudos que as fundamentem, inclusive com a realização de audiências ou consultas públicas. (art. 19, § 5º, Lei n. 11.445). Dessa forma, a participação social possui papel especialmente relevante nos serviços de saneamento básico, em virtude de, nos citados serviços, os usuários não terem a oportunidade de recorrerem a outro prestador. (JOURALEV, 2007, p. 22). Neste sentido: Controle social e participação em saneamento constituem certamente temas da mais importante atualidade no Brasil. Defi nitivamente não seria exagero proclamar que o país acumula signifi cativo défi cit de democracia nas políticas públicas e na gestão dos serviços de saneamento, não tendo Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 70 ainda superado o modelo centralizador e pouco aberto à participação, característico de seus primórdios e de sua evolução ao longo de largos períodos históricos, muito dos quais em que a democracia não era a marca dominante. (HELLER L.; REZENDE; HELLER P, 2007, p. 37). Desse modo, a participação popular na gestão e no processo regulatório é extremamente importante, mormente no que se refere aos serviços de abastecimento de água, os quais são indissociavelmente ligados ao direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana. O controle social e a participação abrangem tanto os usuários diretos do serviço de saneamento básico, isto é, os consumidores, bem como os não-usuários do serviço. Ao se estabelecer que o processo participativo envolve usuários e não-usuários do serviço, abre-se duas vertentes. A participação dos usuários situa-se no âmbito dos direitos do consumidor, do cidadão. Por sua vez, a participação dos não-usuários refere-se à dimensão do direito à cidadania, que deve ser assegurado a todos os indivíduos de uma sociedade. (Ibidem, 2007, p. 39). E concluem os autores: Deve-se saudar o potencial de ampliação do exercício de cidadania no setor de saneamento com a promulgação da Lei nº 11.445. Tal documento legal explicita de forma clara a participação e o controle social como um dos princípios da política de saneamento do país, embora seja tímido em estabelecer os elementos concretos para tal, o que dependerá da futura dinâmica do setor e da sociedade. Ademais, a exigência de elaboração de planos plurianuais de saneamento, nos níveis nacional, estaduais e municipais, pode constituir importante meio de envolvimento da população na problemática do setor e na tomada de decisão sobre seus rumos. Tal futuro requererá, no entanto, além da ação das formas políticas relacionadas ao tema, uma adequada formulação teórica, conceitual e metodológica. (Ibidem, 2007, p. 64). Os temas de interesse da população no processo regulatório não se limitam apenas ao acesso aos serviços de utilidade pública, mas também a qualidade do serviço, como a qualidade da água, a pressão da água, a continuidade do serviço, bem como a sustentabilidade das fontes de abastecimento. (JOURALEV, 2007, p. 21). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 71 Solanes (1999) aborda com maestria os aspectos de especial interesse dos consumidores no processo regulatório: A equidade. Nos serviços de distribuição de água potável e saneamento básico, o consumidor residencial não tem escolha e, portanto, é fundamental ter consciência de que forma estão sendo considerados seus interesses diante das empresas reguladas, os acionistas e os grandes clientes comerciais. Os princípios de prestação e regulação dos serviços devem estar de acordo com as melhores experiências em âmbito internacional, sobretudo; o critério fundamental para a lucratividade das empresas reguladas é o princípio da taxa de retorno razoável relativa a serviços efi cientes; as vantagens estratégicas e de custos dos prestadores devem ser transferidas aos consumidores mediante um redução de tarifas ou uma melhoria na qualidade do serviço. Direito à informação adequada e oportuna. Em especial, os consumidores têm especial interesse em: - Serem notifi cados sobre o início e o conteúdo do processo de tomada de decisões que irão afetá-los, e sobre os critérios segundo os quais tais decisões serão tomadas, e que lhes seja proporcionada a mais completa informação a esse respeito. - Publicação de informação comparativa pelo regulador sobre tarifas, níveis de efi ciência, qualidade doserviço e outros indicadores relevantes de desempenho das empresas reguladas. - Análises críticas das alternativas públicas e privadas de expansão, assim como as diferentes opções tecnológicas, e que estas sejam estruturadas de tal modo que não se tornem uma carga muito pesada para a economia e o cidadãos, ou que não se tornem, eventualmente, um fator regressivo que conspire contra o crescimento, e que seja assegurado um escalonamento rigoroso no tempo dos objetivos econômicos, sociais e ambientais. - Publicação de uma análise detalhada das opções sob consideração e que seja apreciada a opinião dos consumidores; que haja a possibilidade de participação bem informada e oportuna no debate; e que possa ser conhecida a justifi cativa das decisões. (Apud, JOURALEV, 2007, p. 21,22). Desse modo, nos serviços de abastecimento de água potável, a população não tem escolha, não podendo recorrer a outro prestador do serviço, razão a qual faz-se mister que os consumidores tenham ciência de que modo seus interesses estão sendo considerados diante dos grupos Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 72 com interesses setoriais, bem como dos entes reguladores, sendo sua participação de fundamental importância. Neste sentido, são condições de validade nos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico a realização prévia de audiência e consulta públicas sobre o edital de licitação, no caso de concessão, e sobre a minuta do contrato (art. 11, IV, Lei n. 11.445), bem como a previsão de mecanismos de controle social nas atividades de planejamento, regulação e fi scalização dos serviços. (art. 11, § 2º, V, Lei n. 11.445). No Estado de São Paulo a agência reguladora responsável por regular e fi scalizar o setor de saneamento básico de titularidade estadual, assim como de titularidade municipal dos municípios paulistas que assim manifestarem interesse, a exemplo a cidade Franca, é a ARSESP - Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo, autarquia de regime especial, vinculada à secretaria Estadual de Governo, criada pela Lei Complementar 1.025/2007 e regulamentada pelo Decreto 52.455/2007. A noção de atividade regulatória numa perspectiva de mediação ativa de interesses envolve uma dupla atividade estatal, pois de um lado, o regulador tem de arbitrar interesses de atores sociais e econômicos fortes, como ocorre no equacionamento de confl itos envolvendo compartilhamento de infraestruturas ou interconexão de redes de suporte a serviços essenciais. Doutro bordo, cumpre ao regulador induzir ou coordenar as atividades em cada segmento específi co com vistas a proteger e implementar interesses de atores hipossufi cientes. (MARQUES NETO, 2003, p.21). Com efeito, o objetivo do órgão regulador é proteger o interesse público, quer dizer, proteger toda a sociedade, o que também inclui o interesse dos consumidores. As empresas reguladas, por sua vez, têm interesse próprio, ou seja, maximizar seus lucros. Assim, a participação popular no processo regulatório é extremamente importante, a fi m de confrontar os interesses e pressões das empresas reguladas (JOURALEV, 2007, p. 23). Por conseguinte, a participação dos consumidores é essencial para salvaguardar a neutralidade e a independência do processo regulatório, e reduzir o risco de apropriação do marco regulatório e a captura do ente regulador. O fenômeno da captura dos entes reguladores (agências reguladoras) ocorre quando há distorção do interesse público em favor do interesse privado, motivada pela enorme pressão do poder Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 73 econômico das empresas reguladas e de grupos de interesses. (JUSTEN FILHO, 2002, p. 369). A doutrina também tem reconhecido o risco de captura por parte do poder político, isto é, quando as decisões regulatórias são tomadas com vistas a atender os interesses dos ocupantes de cargos políticos. (MARQUES NETO, 2002, p. 90). Na verdade, são muito sutis os desvios da regulação em favor de um ou outro interesse, de maneira que se torna um tanto nebulosa a percepção da quebra da imparcialidade ou da independência do ente administrativo. (MARQUES NETO, 2005, p. 16). Umas das formas de minimizar a possibilidade de captura é justamente o fomento à participação dos cidadãos nos processos regulatórios, com vistas a ampliar a transparência dos atos das agências. Outrossim, a participação dos consumidores, além de contribuir para reduzir o risco de captura do regulador pelas empresas reguladas, pode ajudar a dar mais legitimidade as decisões regulatórias, bem como contribuir para uma maior estabilidade política e social, o que é essencial para a prestação sustentável dos serviços de utilidade pública. (JOURALEV, 2007, p. 25). Neste diapasão, é imprescindível que as agências intensifi quem a divulgação de seu papel institucional, bem como os mecanismos de participação social, de modo que o processo deliberativo seja o mais transparente possível, com vistas a atender ao interesse público. Ademais, deverá ser assegurado publicidade aos relatórios, estudos, decisões e instrumentos equivalentes que se refi ram à regulação ou à fi scalização dos serviços, bem como aos direitos e deveres dos usuários e prestadores, a eles podendo ter acesso qualquer do povo, independentemente da existência de interesse direto. (art. 26, Lei n. 11.445). É assegurado, outrossim, aos usuários de serviços públicos de saneamento básico, amplo acesso a informações sobre os serviços prestados; prévio conhecimento dos seus direitos e deveres e das penalidades a que podem estar sujeitos; acesso a manual de prestação do serviço e de atendimento ao usuário, elaborado pelo prestador e aprovado pela respectiva entidade de regulação; acesso a relatório periódico sobre a qualidade da prestação dos serviços. (art. 27, Lei n. 11.445). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei Federal n. 11.445/07 – marco regulatório do saneamento básico no Brasil - estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico, um serviço público essencial que ainda não dispunha de uma regulação específi ca. Dentre seus princípios fundamentais, a Lei n. 11.445 consagra o controle social, compreendido o conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico, denotando um grande avanço democrático. Desse modo, há a previsão de participação popular na elaboração e revisão do Plano Municipal de Saneamento Básico, de forma a garantir a ampla participação das comunidades, dos movimentos e das entidades da sociedade civil, por meio de procedimento que, no mínimo, deverá prever fases de divulgação em conjunto com os estudos que os fundamentarem, bem como o recebimento de sugestões e críticas por meio de consulta ou audiência pública. Dentre as condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico, vale destacar: (l) a realização prévia de audiência e de consulta públicas sobre o edital de licitação, no caso de concessão, e sobre a minuta do contrato; (ll) mecanismos de controle social nas atividades de planejamento, regulação e fi scalização dos serviços; (lll) a transparência é um dos princípios da Lei n. 11.445/2007 e a disponibilização dos planos na internet devem ser obrigatórias para que a sociedade possa acompanhar o atendimento das metas de universalização. Incumbe à entidade reguladora e fi scalizadora dos serviços a verifi cação do cumprimento dos planos de saneamento por parte dos prestadores de serviços, naforma das disposições legais, regulamentares e contratuais. Neste sentido, a participação popular nos processos regulatórios, apresenta-se como elemento essencial, mormente quando a decisão da agência afetar direitos fundamentais, bem como com vistas a diminuir a possibilidade de captura do ente regulador pela empresa regulada. Portanto, verifi ca-se que referido diploma legal trouxe um grande avanço ao prever o controle social dos serviços de saneamento básico, embora com um pouco de timidez ao estabelecer os mecanismos Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 75 concretos para sua realização. Outrossim, faz-se mister à importância da informação, bem como a capacitação técnica dos participantes para uma participação efetiva. Ademais, após 31 de dezembro de 2015, a existência de plano de saneamento básico elaborado pelo titular dos serviços será condição para o acesso a recursos orçamentários da União ou a recursos de fi nanciamentos geridos ou administrados por órgão ou entidade da administração pública federal, quando destinados a serviços de saneamento básico. Enfi m, a relevância do tema é tão grande, que o período de 2005 a 2015 foi proclamado como a “Década Internacional da Água Fonte de Vida”, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de promover ações integradas em relação ao uso e conservação da água, a fi m de ampliar o acesso à água potável e aos serviços de saneamento básico a milhões de pessoas do planeta que vivem na extrema pobreza. REFERÊNCIAS BASÍLIO SOBRINHO, Geraldo Basílio. Regulação dos serviços de água e esgoto. In: Regulação: Indicadores para a prestação de serviços de água e esgoto. Fortaleza: ABAR, ARCE, 2006. GALVÃO JUNIOR, Alceu de Castro (Org.). Regulação: Procedimentos de Fiscalização de Sistema de Abastecimento de Água. Fortaleza: Expressão Gráfi ca e Editora Ltda, ABAR, 2006. HELLER, Léo; REZENDE, Sonaly Cristina; HELLER, Pedro Gasparini Barbosa. Participação e controle social em saneamento básico: aspectos teóricos-conceituais. In Regulação: Controle social da prestação de serviços de água e esgoto. Fortaleza: ABAR, ARCE, 2007. JOURAVLEV, Andrei. Participação dos consumidores no processo Regulatório. In: Regulação: Controle social da prestação de serviços de água e esgoto. Fortaleza: ABAR, ARCE, 2007. JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética: 2002. MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Agências Reguladoras: Instrumentos do Fortalecimento do Estado. In: III Congresso Brasileiro de Regulação de Serviços Públicos Concedidos, 2003, Gramado: ABAR, 2003. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 76 MORENO. José; DUARTE, Ruth de Gouvêa. Gestão do Saneamento Básico. Coord. Arlindo Philippi Júnior. Barueri-São Paulo: Manole, 2012. XIMENES, Marfi sia Maria de Aguiar Ferreira. A ABAR e a construção de instrumentos para a regulação. In: Regulação: Indicadores para a prestação de serviços de água e esgoto. Fortaleza: ABAR, ARCE, 2006. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 77 DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS SOCIAIS: A CONTRIBUIÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA A PROMOÇÃO DE UMA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Renan Lucas Dutra Urban1* INTRODUÇÃO Os direitos sociais são direitos positivos, na medida em que dependem de uma postura ativa do Poder Público para que sejam efetivados. Ordinariamente, as prestações materiais exigidas para a realização desses direitos são providas por políticas públicas universalistas, que defi nem o que atender (as necessidades públicas), quem atender (os destinatários) e em que extensão atender (as contingências sociais), em detrimento de outras demandas de interesse geral. Como a realização dos direitos sociais é custosa, e os recursos fi nanceiros públicos são escassos, os atos que decidem pela implementação de determinada política pública trazem sempre consigo um trade-off, isto é, uma escolha disjuntiva que não escapa de ser trágica (tragic choices). (AMARAL, 2001, p. 150). O pensamento liberal tradicional classifi cou como próprias dos órgãos de representação popular as tarefas de planejar, elaborar e executar políticas públicas (“doutrina da questão política”). O constitucionalismo tradicional, na esteira dessa doutrina liberal, fez competir aos Poderes Políticos a implementação de tais políticas, submetendo exclusivamente ao juízo discricionário deles a escolha dos meios de ação política e a defi nição das necessidades sociais a serem satisfeitas (LOPES, 2010, p. 163). Presentemente, porém, num contexto de constitucionalização do direito infraconstitucional e de judicialização das matérias políticas, é impossível exagerar o peso da participação do Judiciário no ciclo de efetivação das políticas públicas. Mais do que simplesmente fi scalizar sua regular constituição e execução, autoridades judicantes têm exercido um papel decisivo no próprio processo de formulação dos programas Mestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, Campus de Franca. Graduado em Direito pela UNESP. Membro do Núcleo de Pesquisas Avançadas em Direito Processo Civil Brasileiro e Comparado – NUPAD/UNESP. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 78 governamentais, infl uenciando as decisões tomadas no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo. (TAYLOR, 2007, p. 230). Se, por um lado, a existência de um grande número de decisões judiciais condenando o Poder Público a entregar prestações fáticas sinaliza a conquista de normatividade das disposições constitucionais defi nidoras dos direitos sociais, por outro, as diversas críticas lançadas contra essas decisões colocam um ponto de interrogação sobre a legitimidade e os limites da atuação do Judiciário nessa matéria. Nesse particular, podem ser apontadas duas difi culdades, basicamente. A primeira se liga à própria compreensão da natureza dos direitos sociais e da função por eles desempenhada no espaço democrático, em virtude das diferentes abordagens fi losófi cas, políticas, econômicas etc. que podem ser realizadas a respeito deles. Liberalismo, utilitarismo e consequencialismo são exemplos de formulações que têm algo a dizer sobre esses direitos. A segunda difi culdade, que pode ser apontada como um refl exo da primeira é a concernente à justiciabilidade desses direitos e, bem assim, do papel das instituições e da sociedade civil na elaboração, execução e controle das respectivas políticas públicas. Este texto explora precisamente o tema da justiciabilidade dos direitos sociais. O objetivo principal discutir de que modo o Poder Judiciário pode contribuir para a realização de uma justiça distributiva, a partir de sua atividade de controle das omissões de estatais e de sindicatos das políticas públicas. Com ênfase nas dimensões analítica e normativa da abordagem dogmáica,1 defende-se a ideia, aqui, de que um maior diálogo entre as instituições acerca de políticas públicas pode maximizar o potencial das decisões judiciais para promover alguma forma de transformação social, especialmente em favor dos grupos socialmente excluídos. 1 DIREITOS DE DEFESA E DIREITOS A PRESTAÇÕES. A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS Os direitos fundamentais são, basicamente, direitos de defesa ou direitos a prestações.2 Os direitos de defesa, também chamados direitos de resistência ou negativos, tem como objeto uma ação negativa do 1 Cf., acerca da distinção entre método de trabalho e abordagem metodológica, bem como sobre as dimensões da pesquisa dogmática, SILVA, 2008a, p. 25-26. 2 Cf., sobre a divisão dos direitos fundamentais em direitos de defesa (ou direitosa ações negativas) e direitos prestacionais (ou direitos a ações positivas), ALEXY,2008, p. 180-218. Na literatura brasileira, ver, por exemplo, a classifi cação proposta por SARLET, 2009, p. 162-207. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 79 destinatário – notadamente o Estado. Qualquer que seja a espécie a que pertencem – direitos ao não embaraço de ações, direitos à não afetação de características e situações e direitos à não eliminação de posições jurídicas (ALEXY, 2008, p. 196-201), a consequência jurídica desses direitos consiste sempre num não fazer, numa omissão. (BOROWSKI, 2003, p. 111). Associados ao contexto histórico e fi losófi co de fundação do Estado Liberal, os direitos de defesa se aproximam, em ampla medida, da categoria dos direitos fundamentais de 1ª geração/dimensão, composta pelas liberdades civis e políticas. Na classifi cação de Jellinek, são os direitos de status negativo ou libertatis.3 Os direitos a prestações, por sua vez, cumprem a função de assegurar aos indivíduos a proteção de determinada situação jurídica ou o desfrute de uma utilidade concreta. Seu objeto consiste na entrega de prestações normativas ou fáticas, correspondentes aos direitos prestacionais em sentido amplo ou em sentido estrito, respectivamente (SARLET, 2009, p. 184-189). Eles defi nem, dessa maneira, uma obrigação positiva para o Estado, relacionada ao dever de implementação de políticas públicas sociais e econômicas. Assim, enquanto os direitos de defesa visam, basicamente, a proteger o indivíduo contra as ingerências do Estado em seu âmbito de liberdade pessoal, reclamando deste a adoção de comportamentos negativos, os direitos prestacionais voltam-se para a realização da igualdade material, e impõem ao Estado a adoção de uma postura ativa, isto é, interventiva nas esferas econômica e social. (MIRANDA, 1998, p. 40). A singularidade dos direitos a prestações reside, portanto, na obrigação dirigida ao Poder Público de criar os pressupostos normativos e materiais para a fruição das situações jurídicas por eles protegidas. (KRELL, 2002, p. 19). Na qualidade de elementos fundamentais do processo de construção e desenvolvimento do Estado Social, tais direitos se associam ao status positivo ou civitatis, e se confundem, de certa forma, com a categoria dos direitos fundamentais de 2ª geração (direitos sociais, econômicos e culturais).4 3 Para uma análise da teoria dos status de Georg Jellinek, cf. ALEXY, 2008, p. 254-275. 4 A identifi cação dos direitos de defesa com os direitos de 1ª geração e dos direitos prestacionais com os direitos de 2ª geração não é rigorosamente exata. De fato, nem todos os direitos civis e políticos são negativos: muitos deles são preponderantemente prestacionais, isto é, veiculam uma obrigação de fazer ao Poder Público – como, por exemplo, o direito dos partidos políticos a recursos do fundo partidário e acesso à propaganda política gratuita nos meios de comunicação. Por outro lado, nem todos os direitos sociais, econômicos e culturais são prestacionais. O direito de greve e a liberdade de sindicalização são exemplos de direitos de 2ª geração que impõem deveres negativos ao Estado. Cf., no ponto, SARLET, 2009, p. 159-162. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 80 O debate sobre a efi cácia e a efetividade dos direitos fundamentais e, particularmente, dos direitos prestacionais, é bastante intenso. Embora já tenha se tornado corrente a afi rmação de que não há norma inscrita na Constituição que esteja privada de imperatividade e, portanto, de efi cácia (SILVA, 2009, p. 81), questiona-se se o Poder Público pode ser obrigado pelo Poder Judiciário a adotar as medidas necessárias para a realização desses direitos. No que toca aos direitos a prestações materiais ou fáticas, em particular – e aos direitos sociais, em especial –, é possível identifi car duas recorrentes objeções à possibilidade de que, com base nas disposições constitucionais em que assentados, o Estado seja judicialmente forçado a prestar os correspondentes serviços públicos. O primeiro argumento frequentemente suscitado em desfavor da justiciabilidade dos direitos prestacionais sociais diz respeito à efi cácia das normas constitucionais que os preveem. A tese subjacente a este argumento é a de que os direitos prestacionais estão defi nidos em enunciados dotados de baixa densidade normativa e de elevado índice de indeterminação semântica, razão pela qual dependem de uma ação estatal para que possam ser exigidos judicialmente. Afi rma-se, nesse sentido, que os direitos sociais – à diferença dos direitos de defesa, geralmente defi nidos em normas constitucionais com aplicabilidade imediata (efi cácia plena ou imediata) – estão consagrados em normas programáticas, dotadas de uma aplicabilidade apenas mediata (efi cácia limitada). (SILVA, 2009, p. 140). Nesses termos, não seria possível postular, originariamente das normas constitucionais defi nidoras dos direitos prestacionais, o fornecimento de um bem ou a prestação de um serviço; para que os Poderes Políticos possam ser compelidos a adimplir as respectivas prestações materiais, seria antes necessária uma defi nição legislativa acerca do que é juridicamente devido em relação a tais direitos. (SARLET, 2009, p. 289-291). O segundo argumento geralmente colocado como óbice à exigibilidade dos direitos prestacionais possui natureza pragmático- fi nanceira, e se volta para os custos fi nanceiros que decorrem da efetivação desses direitos. Fundado no truísmo de que políticas públicas demandam recursos fi nanceiros para que sejam implementadas, e de que recursos fi nanceiros públicos são escassos, tal argumento geralmente é invocado para o fi m de enfatizar a dimensão econômica de destaque dos direitos prestacionais, no sentido de que dependem da existência de disponibilidades fi nanceiras de grande monta para que possam se efetivar. (CANOTILHO, Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 81 2008, p. 106). A questão do custo dos direitos conduz à problemática da chamada “reserva do possível”, examinada na sequência. 2 CUSTO DOS DIREITOS E A DIMENSÃO ECONÔMICA DE DESTAQUE DOS DIREITOS SOCIAIS A onerosidade do processo de efetivação dos direitos fundamentais não é característica exclusiva dos direitos a prestações materiais. Também os direitos de defesa – e os direitos a prestações jurídico-normativas – implicam gastos públicos, decorrentes sobretudo da necessidade de criação e de manutenção dos pressupostos materiais garantidores do exercício desses direitos. Não há dúvida, por exemplo, de que é necessário um conjunto de dispêndios para a organização e manutenção da Polícia e dos Bombeiros, para se proteger determinados bens, como a vida e a propriedade; o mesmo pode ser dito relativamente ao cadastramento eleitoral e à realização das eleições, eventos que, não obstante onerosos, se afi guram necessários para o exercício dos direitos políticos. De modo análogo, é evidente que parte de toda a atuação do Poder Judiciário – cujo regular funcionamento imprescinde, como se sabe, de vultosos aportes fi nanceiros – volta-se para a proteção dos direitos de defesa, como a propriedade, a segurança, a imagem, a honra etc. (BARCELLOS, 2008, p. 264-265). Os exemplos são inúmeros, e não convém alongá-los. A ideia enunciada é razoavelmente tranquila e chega mesmo a ser intuitiva: todos os direitos, e não só os prestacionais, possuem uma dimensão econômica. Por que o argumento do custo dos direitos, então, é geralmente suscitado apenas em desfavor dos direitos prestacionais (sociais)? Há, basicamente, duas respostas para essa questão. Em primeiro lugar, os direitos a prestações materiais – precisamente porque a efetivação desses direitos pressupõe o oferecimentode serviços e/ou a distribuição de bens – demandam a mobilização de maiores valores em relação ao necessário para a satisfação dos direitos de defesa. A realização dos direitos prestacionais custa dinheiro – custa muito dinheiro.5 Daí falar-se, pois, que a diferença entre os direitos sociais e as liberdades individuais, no aspecto econômico-fi nanceiro, não é natureza, mas de grau: ambas as espécies de direitos fundamentais reclamam dispêndios para que sejam efetivados, mas aqueles, de uma forma geral, 5 “[...] hoje, como ontem, os direitos sociais, econômicos e culturais despejam um problema inquestionável: custam dinheiro, custam muito dinheiro.” (CANOTILHO, 2008, p. 106). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 82 demandam recursos fi nanceiros em volume maior que o necessário para a satisfação destas. (BARCELLOS, 2008, p. 265). Em segundo lugar, os direitos de defesa e direitos a prestações signifi cam distintos custos, dado o modo diferente de realização de cada um deles. Veja-se, nesse sentido, que os direitos prestacionais sociais, pelo fato de que cumprem uma função eminentemente (re)distributiva, têm custos que variam de acordo com a necessidade de cada indivíduo. Com afi rma José Reinaldo de Lima Lopes, “[...] ao garantir um direito à saúde ou um direito à educação, o que se garante é realmente uma prestação positiva que será diferente conforme a condição social e pessoal de cada indivíduo ou grupo” (LOPES, 2010, p. 157-158). Por outro lado, os custos representados pelos direitos de defesa, como os decorrentes do funcionamento do aparelho judiciário ou policial, por exemplo, não têm relação direta com os interesses que se quer defender: os valores decorrentes de um processo judicial não possuem comunicação necessária com o real benefício que se venha a obter ao fi nal desse processo; da mesma forma, os recursos demandados para a prestação dos serviços de segurança pública não variam consideravelmente em função dos interesses ou bens que, por meio desses serviços, são protegidos. Além disso, o objeto da prestação, relativamente aos custos que importam aos cofres públicos, é diferente nos direitos prestacionais típicos em comparação aos direitos de defesa: nestes, a prestação é para a proteção de determinado bem que pode ter sido adquirido no mercado; naqueles, a prestação é o próprio serviço (que pode ser prestado dentro ou fora do mercado), que o Estado oferece à sociedade, universal e igualitariamente, por intermédio das respectivas políticas púbicas. (LOPES, 2010, p. 158-159). Há razões sufi cientemente fortes, portanto, para se concluir que é no âmbito dos direitos prestacionais que o “fator custo” assume sua feição mais destacada, enquanto obstáculo à efetivação dos direitos fundamentais. Como consequência, é dentro da esfera dos direitos prestacionais que se coloca e se discute, com muito mais ênfase, a questão da relevância econômica desses direitos como obstáculo para sua efetivação. Reverbera a doutrina, dessa maneira, a ideia de “neutralidade” econômico-fi nanceira dos direitos de defesa, no sentido de que – apesar do impacto para os cofres públicos que também decorre da realização desses direitos – a tutela jurisdicional das liberdades públicas não costuma estar condicionada a uma conjuntura econômica favorável ou à existência de disponibilidades fi nanceiras estatais. (SARLET, 2009, p. 285). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 83 Ou seja: não é corriqueiro que se levante, contra a efetivação dos direitos de defesa, a objeção da inexistência ou insufi ciência de recursos fi nanceiros públicos. Com efeito, é geralmente em desfavor da justiciabilidade dos direitos a prestações materiais (e, especialmente, dos direitos sociais) que o problema da “reserva do possível”, em suas vertentes fática e jurídica,6 é geralmente discutido e suscitado. Os argumentos contrários à justiciabilidade dos direitos sociais prestacionais – a efi cácia limitada das normas constitucionais que os preveem e a reserva do possível –, embora relevantes, não necessariamente afastam, em toda e qualquer situação, uma atuação Poder Judiciário no campo da justiça distributiva. De fato, como afi rma Virgílio Afonso da Silva, é possível propugnar que os órgãos julgadores têm legitimidade para controlar políticas públicas e fazer escolhas alocativas e, mesmo assim, sustentar que essa atuação está limitada por uma série de fatores, relacionados às próprias características estruturais do Poder Judiciário. 6 A reserva do possível fática diz respeito à situação de ausência de recursos para a efetivação dos direitos prestacionais. Pressupõe, conforme se afi rma, um estado de exaustão fi nanceira, de absoluta impossibilidade econômica (fática) do Estado (BARCELLOS, 2008, p. 262). Ad impossibilia nemo tenetur: ninguém está obrigado ao impossível – e o Estado, evidentemente, não foge à regra (LOPES, 2010, p. 159). Em situação de indisponibilidade absoluta de recursos fi nanceiros, o Estado estaria desobrigado de prover os bens e serviços necessários à efetivação dos direitos sociais. A reserva do possível jurídica, por sua vez, aponta para a ilegitimidade democrática das decisões judiciais que determinam gastos públicos em matéria de direitos sociais. Como se sabe, o Poder Judiciário tem características diversas das dos outros Poderes, uma vez que os agentes políticos que o compõem – os juízes – não são eleitos pelo povo, isto é, não são investidos em suas funções por processos político-majoritários. Ora, as escolhas alocativas possuem um caráter nitidamente político, discricionário, uma vez que “não há um critério único que possa ser empregado para todas as decisões a serem tomadas”. (AMARAL, 2001, p. 114). Além disso, elas possuem um caráter multilateral, na medida em que promovem a apropriação, em favor de algumas pessoas, de bens ou serviços fi nanciados por toda a sociedade (WANG, 2009, p. 16). Diante disso, a reserva do possível jurídica veicula uma objeção contra as decisões judiciais que, sindicando omissões estatais ou políticas públicas, implicam a alocação de recursos fi nanceiros, necessariamente escassos. É invocada, nesse sentido, para afi rmar a necessidade de que tais escolhas alocativas sejam determinadas no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, eleitos democraticamente e sujeitos à prestação de contas e à responsabilização política (WANG, 2009, p. 16). Relacionado ao argumento da ilegitimidade democrática dos órgãos julgadores para fazer escolhas alocativas está o da falta de aptidão desses agentes para controlar os programas governamentais destinados a concretizar direitos sociais. Nos termos dessa objeção, a formulação e a execução das políticas públicas constituem um processo complexo, cuja compreensão demanda senso político e alguns conhecimentos técnico-científi cos específi cos. Assim, por mais bem preparados que sejam os juízes, eles não disporiam das informações e dos conhecimentos necessários para entender a complexidade técnica subjacente às políticas públicas e, mais do que isso, para avaliar o impacto de suas decisões para o orçamento público e para o plano de justiça distributiva encampado pelo governo. Para uma descrição desse último argumento, na perspectiva das críticas à judicialização do direito à saúde, em especial, cf. WANG, 2009, p. 11-15. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 84 (SILVA, 2008b, p. 596). A perspectiva do diálogo institucional ajuda a esclarecer o ponto. Confi ra-se. 3 PODER JUDICIÁRIO E DELIBERAÇÃO SOBRE DIREITOS FUNDAMENTAIS. A TEORIA DO DIÁLOGO INSTITUCIONAL Na doutrina constitucional, não é difícil encontrar menções à existência de uma incompatibilidade ou, quando menos, tensão entre os conceitos de democracia econstitucionalismo. O ponto de sustentação dessa dicotomia é a associação, de um lado, da ideia de soberania popular e vontade da maioria ao conceito de democracia, e, de outro, da ideia de limitação do poder e Estado de Direito ao conceito de constitucionalismo.7 O debate acerca da legitimidade da atividade judicial consistente em declarar inválidas as normas e condutas estatais incompatíveis com a Constituição pressupõe exatamente a relação problemática entre esses dois ideais políticos. A atribuição ao Poder Judiciário da competência para verifi car a compatibilidade de leis e atos normativos com a Constituição não é autoevidente, explicável em si. Ordens constitucionais há que nem sequer preveem mecanismos formais de controle de constitucionalidade. E, mesmo nos Estados onde eles existem, geralmente não são poucos os desacordos sobre os limites e as possibilidades das decisões proferidas em sede de jurisdição constitucional. (HABERMAS, 1997, p. 298). Não há relação necessária entre a afi rmação da supremacia da Constituição e a existência de um controle judicial de constitucionalidade. A escolha por determinado tipo de controle é uma questão de conveniência política, não um imperativo lógico. (TROPER, 2003, p. 104). As razões (políticas) que se colocam a propósito da necessidade de haver (ou não) um guardião da Constituição – isto é, uma instituição incumbida de dar a última palavra acerca da interpretação constitucional – quase sempre são conduzidas para dentro de uma discussão mais ampla, concernente ao desenho institucional que se deseja consagrar à vista do princípio da separação dos poderes. Essa discussão pode ser estudada desde variadas perspectivas teóricas. No ponto, parece ser sufi ciente apresentar um dos debates que mais têm chamado a atenção da doutrina contemporânea: a contraposição das ideias de Ronald Dworkin e Jeremy Waldron, correspondentes às noções de fórum 7 Nesse sentido, Michelman, Como exemplo de posição teórica contrária à dicotomia democracia-constitucionalismo e, em particular, à concepção de Michelman, cf. HABERMAS, 2001, p. 768-781. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 85 dos princípios e maximização da participação popular, respectivamente. Dworkin defende uma concepção de Estado de Direito centrada na ideia de direitos como um ideal político. Por essa razão, não vê os conceitos de democracia e constitucionalismo como opostos ou confl itantes, mas, bem ao contrário, como ideais que podem estar reciprocamente implicados: o Estado de Direito enriquece a democracia na medida em que garante a existência de um fórum independente, um fórum de princípio, no qual questões de direito – e não de política – são discutidas e decididas. (DWORKIN, 2001, p. 39). Aos parlamentos eleitos pelos processos político-majoritários compete tomar decisões sobre como melhor promover o bem-estar da coletividade (policies). Porém, em uma democracia constitucional, há alguns requisitos morais substantivos que não podem fi car à mercê do procedimento majoritário. (MENDES, 2008, p. 7). Para Dworkin, assim, não procede a objeção segundo a qual falta legitimidade democrática ao Judiciário para invalidar as leis e os atos normativos deliberados pelas instâncias políticas; o controle judicial de constitucionalidade (judicial review) se legitima pelo fato de ser o Judiciário o locus por excelência de garantia dos direitos fundamentais contra as maiorias de ocasião. Se Dworkin sustenta uma teoria democrática de cariz “substantivista”, Waldron fornece uma de cariz “procedimentalista”. Para Waldron, a nota de singularidade de sociedades democráticas é o pluralismo, isto é, a convivência de doutrinas abrangentes as mais diversas. O caráter abrangente dessas concepções doutrinárias produz, inevitavelmente, inúmeros pontos de fricção entre elas. A consequência disso é a incidência de um profundo desacordo moral sobre qualquer matéria, aí incluídas as concernentes a direitos fundamentais e justiça. Waldron contesta, assim, a legitimidade atribuída a juízes e tribunais para dizer a última palavra sobre questões constitucionais. Na verdade, o desacordo moral, precisamente porque inviabiliza a existência de um critério moral de correção baseado na justiça, bem ou verdade (ESTLUND, 2008, p. 192), impede que se atribua a alguma instituição o ônus da decisão correta. Em face da indissolubilidade desse desacordo moral reinante em sociedades pluralistas, é preferível – aduz Waldron – o modelo institucional que atribui às instâncias político-majoritárias a competência para decidir sobre questões envolvendo direitos fundamentais àquele que outorga aos órgãos jurisdicionais a competência para fazê-lo. É que, com reservar a tomada de decisões sobre direitos fundamentais aos representantes eleitos, enseja-se Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 86 a maximização do direito de participação em igualdade de condições dos cidadãos na comunidade – o direito dos direitos –, algo que defi nitivamente não ocorre quando essas decisões são levadas a cabo por intermédio de uma minoria, a “elite judiciária”. (SILVA, 2009, p. 204). O embate das ideias de Dworkin e Waldron é emblemático dos polos opostos da tradição constitucional preocupada em desenvolver uma teoria da autoridade (“quem decide?”). Ilustra, por assim dizer, o dilema subjacente a uma questão geralmente pensada em termos binários: ou Judiciário ou o Legislativo deve desfrutar da primazia de dar a palavra fi nal sobre direitos fundamentais. Assim, não obstante a existência de inúmeras vertentes teóricas no intervalo entre as posições de Dworkin e Waldron, a literatura hegemônica que debate a legitimidade da revisão judicial costuma enfatizar a necessidade de haver uma autoridade defi nitiva sobre litígios constitucionais (“última palavra”), propondo ou bem um modelo mais próximo da “supremacia judicial” ou bem um modelo mais próximo da “supremacia legislativa”. (MENDES, 2008, p. 36). O desafi o que se coloca nessa matéria, então, é o de desenvolver teorias gradualistas ou intermediárias, que contribuam para o delineamento de modelos alternativos ou promovam uma conciliação entre esses tipos puros, evitando os inconvenientes que eles apresentam em suas formas isoladas. Modernamente, as propostas desenvolvidas no âmbito das chamadas “teorias do diálogo” têm, de alguma forma, enfrentado a questão.8 Como se vê, o enfoque deliberativo de democracia associa a ideia de legitimidade de uma decisão à de diálogo e persuasão. Mas, quais as implicações normativas da adoção de um enfoque deliberativo de democracia para o funcionamento de determinado arranjo institucional? Que contribuição este enfoque pode oferecer para a compreensão do papel (a ser) desempenhado por tribunais e parlamentos no interior deste arranjo? As variáveis de legitimidade de uma democracia, responde Conrado Hübner Mendes (2008, p. 201), não se esgotam no procedimento 8 No contexto da ciência política, as teorias do diálogo quase sempre se situam no marco teórico da democracia deliberativa. A construção teórica da democracia deliberativa é feita por uma literatura vasta e diversifi cada, sendo muitas as versões de seu conceito. Roberto Gargarella (2006a, p. 239), por exemplo, propõe um conceito de democracia deliberativa à vista de duas características que lhe seriam fundamentais: a tomada de decisões após um amplo debate coletivo e a possibilidade de participação e intervenção no processo decisório de todos quantos possam ser afetados pela decisão. Já Joshua Cohen (2003, p. 346) vincula a noção de democracia deliberativa a um ideal de justifi cação das deliberações públicas. Para ele, o conceito de democracia deliberativa está enraizado na ideia de fundamentação da decisão coletiva, somente levada a efeito no interior de um processoque privilegia a argumentação pública e o intercâmbio de razões entre cidadãos iguais. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 87 (input), abrangendo também os resultados (output). Vale dizer: o princípio democrático não se resume a uma estrutura formal de poder, fundada em uma divisão de competências infl exível. A caracterização de um regime como democrático depende também dos resultados substantivos alcançados pelas instituições que dentro dele se concertam. Daí a relevância da deliberação, que estimula a criação de uma cultura de maior densidade argumentativa, à luz da razão pública. Quanto maior a qualidade do processo de deliberação pública, maior o grau de legitimidade da decisão. O desempenho deliberativo, guiado pela razão pública, é, assim, o critério contextual e comparativo de aferição da legitimidade das oscilações operadas no âmbito das funções institucionais.9 Um dos principais debates da teoria constitucional contemporânea é o que discute se o modelo de controle judicial de constitucionalidade deve ser maximalista ou minimalista, isto é, se se deve adotar uma forma forte ou forma fraca de revisão judicial. Nesse cenário, é comum encontrar-se menções à necessidade de que, em determinadas circunstâncias, o Poder Judiciário assuma uma postura mais ativista ou, ao revés, uma postura mais autocontida, deferente para com as opções políticas fi rmadas no âmbito dos procedimentos majoritários. A discussão sobe de ponto, sobretudo no que diz respeito ao chamado controle judicial das omissões estatais, geralmente realizado no contexto da sindicação das políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos sociais. 4 DECISÕES JUDICIAIS E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL A implementação de políticas públicas constitui processo bastante complexo, e as difi culdades relacionadas à realização dos direitos sociais afetam também os Poderes Políticos, e não apenas o Poder Judiciário. (WANG, 2009, p. 32). Além disso, os obstáculos que se apresentam ao Poder Judiciário em matéria de políticas públicas, como já apontado, não 9 Em face disso, é natural que, em determinadas circunstâncias, “a substância subordine o procedimento, ou seja, que uma instituição que tenha alcançado a resposta compatível com um critério substantivo de legitimidade prevaleça sobre outra” (MENDES, 2008, p. 201), não obstante a posição formal por elas ocupada no interior do arranjo institucional pré-traçado. A última palavra dada por uma instituição formalmente incumbida de fazê-lo não é uma decisão sufi ciente em si e tampouco imune a críticas substantivas. Aliás, no contexto das teorias dialógicas, que propugnam pela intervenção no debate público de todas as partes potencialmente afetadas pela decisão a ser tomada, parece mesmo impensável cogitar sobre a existência de um guardião da Constituição (GARGARELLA, 2006b, p. 28). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 88 impedem que se reconheça a importância das deliberações judiciais para promover alguma forma de transformação social. De fato, juízes e tribunais podem ocupar – e frequentemente ocupam – uma posição crucial no debate público sobre direitos prestacionais sociais, contribuindo de maneira direta ou indireta para a realização de uma justiça distributiva. A contribuição direta se dá nas situações em que os órgãos judicantes deliberam sobre pedidos de concessão de prestações materiais, determinando a adjudicação de um bem ou a prestação de um serviço. (RESENDE, 2010, p. 70). Em princípio, é possível conceber, aqui, que o Judiciário – individual, coletiva ou abstratamente – corrija políticas públicas defi cientes, suplemente políticas públicas insufi cientes ou controle omissões estatais propriamente ditas (inexistência de política pública), de modo a compelir o Poder Público a cumprir adequadamente seu dever prestacional. Entretanto, mesmo nas ocasiões em que não determinam a entrega de uma prestação material, as decisões judiciais sobre direitos sociais podem infl uir na realidade, transformando-a. Uma atuação efi ciente dos órgãos judicantes nessa matéria, além de tornar mais incerto e custoso o processo de tomada de decisões políticas, propicia naturalmente o fortalecimento da cidadania ativa, ampliando a participação democrática para além dos limites minimalistas da democracia representativa. (ARANTES; KERCHE, 1999, p. 31). Fala- se, assim, em contribuição indireta de juízes e tribunais para a realização da justiça distributiva, assertiva que reforça a ideia de que o Judiciário pode ser um ambiente privilegiado para a discussão e deliberação sobre direitos fundamentais, nos limites da razão pública. Em matéria de direitos sociais, as decisões judiciais podem abrir um importante canal de diálogo entre as instituições, sobretudo quando impõem aos Poderes Políticos o ônus de demonstrar, argumentativamente, a conveniência e razoabilidade das escolhas alocativas por eles realizadas. Ademais, a judicialização dos direitos sociais tem sempre a potencialidade de intensifi car o debate público e criar uma mobilização política em torno das questões demandadas. (GLOPPEN, 2006, p. 42). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 89 Os grupos sociais vulneráveis e menos favorecidos, nesse contexto, podem ter no Judiciário a via institucional mais efetiva, célere e barata para a concretização de suas reivindicações. (WANG, 2009, p. 34).10 Sem embargo, o desempenho deliberativo do Judiciário e as características estruturais dessa instituição podem resultar na não realização da justiça distributiva desejada. Há diversas variáveis que interferem com a qualidade da atuação do Judiciário em demandas relativas à efetivação de direitos sociais prestacionais. A questão da acessibilidade à Justiça, por exemplo, remete ao problema da difi culdade de se levar ao conhecimento do Judiciário muitas demandas que dizem respeito às pessoas pobres e menos instruídas. A difi culdade (física e jurídica) de acesso à Justiça pode ser, nesse sentido, um fator de agravamento da marginalização social. Outro exemplo: a forma pela qual juízes e tribunais deliberam sobre políticas públicas pode infl uenciar os resultados do programa de macrojustiça implementado pelo governo, produzindo frustração do plano de universalização de determinadas prestações materiais e, colateralmente, vulneração dos preceitos constitucionais que pautam a atuação da Administração Pública. Com efeito, uma intervenção exacerbada do Judiciário no âmbito das políticas universalistas, além de levantar a suspeita de ilegitimidade democrática, pode trazer consequências indesejadas, como a distribuição dos bens e serviços apenas entre aqueles poucos que têm acesso às vias judiciais e a desestruturação do plano de ação voltado para a concretização dos direitos a prestações – contrariando os princípios constitucionais da impessoalidade e da efi ciência administrativa, entre outros. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na moldura da teoria dos diálogos institucionais, é um equívoco colocar a contribuição de um dos Poderes acima da participação dos demais. As instituições são parceiras, e não adversárias, na construção 10 Inúmeras outras formas de contribuição indireta do Judiciário para a transformação social são apontadas na literatura. Uma dessas formas seria a criação de uma espécie de “linguagem sobre direitos fundamentais”, produto da impregnação do discurso político pelos argumentos e pelas técnicas utilizados pelo Judiciário na resolução de litígios constitucionais (a regra da proporcionalidade, por exemplo). A construção dessa linguagem teria a virtude de contribuir especialmente para a sedimentação de critérios homogêneos de racionalidade e efi ciência no processo de avaliação das políticas públicas, além de elevara qualidade das deliberações públicas, estimular o diálogo entre os poderes e tornar mais transparentes as interações havidas entre eles. Cf., no ponto, Resende, 2010, p. 71-72. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 90 de soluções para os problemas constitucionais. Em matéria de direitos sociais, isso implica defender uma “postura judicial fl exível e moderada, que deverá variar conforme as razões e contrarrazões apresentados em cada caso levado à sua apreciação”. (RESENDE, 2010, p. 100). A abertura do procedimento judicial para o diálogo com as demais instituições e com os atores sociais, nesse sentido, parece ser fundamental para legitimar e melhor efetivar as escolhas alocativas realizadas pelo Judiciário. As decisões sobre alocação de recursos públicos possuem um caráter discricionário, dada a inexistência de um critério único a partir do qual possam ser tomadas. Além disso, tais decisões possuem uma natureza trágica, dramática, uma vez que envolvem uma escolha acerca do que deve ser ou não atendido num cenário de escassez de recursos e de crescimento das demandas sociais e econômicas. (AMARAL, 2001, p. 150). A democratização do procedimento deliberativo, ao permitir a prévia manifestação de todos os diretamente interessados na decisão a ser proferida, ameniza a chamada “difi culdade contramajoritária”, contribuindo para suprir o défi cit democrático da medida adotada pelo Poder Judiciário. Além disso, ela ainda enseja que as políticas públicas se tornem mais efi cientes precisamente para os mais interessados nelas, por meio da cobrança, da fi scalização e da troca de conhecimentos. (WANG, 2009, p. 24). Concluindo, o Poder Judiciário pode se apresentar como um importante fórum de deliberação sobre questões de justiça distributiva. No entanto, deve decidir sobre tais questões de forma dialogada com os outros poderes e com os atores sociais, tendo sempre ciência das limitações de sua atuação. (WANG, 2009, p. 39). A abertura para o diálogo com as demais instituições e com a sociedade civil, nesse sentido, pode ser uma proveitosa estratégia para reduzir as difi culdades que, em matéria de direitos sociais e políticas públicas, se lhe apresentam, elevando a qualidade de seu desempenho deliberativo e maximizando o potencial de suas decisões para promover alguma forma de transformação social, notadamente em favor dos grupos marginalizados e menos favorecidos. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 91 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 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EIXO 3: TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO E A TUTELA E EFETIVIDADE DOS DIREITOS DA CIDADANIA Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 97 DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E ESTADO CAPITALISTA: AS CONTRADIÇÕES E LIMITES DA LINGUAGEM DOS DIREITOS SOCIAIS COMO ESTRATÉGIA DE LUTA PARA A EMANCIPAÇÃO HUMANA Cauê Ramos de Andrade1* Stéfanie dos Santos Spezamiglio2**INTRODUÇÃO Parte-se da perspectiva da Teoria Crítica dos Direitos Humanos e da Teoria do Estado Marxista para estabelecer uma crítica à linguagem dos Direitos Humanos como horizonte ético para reger as relações e confl itos sociais, especifi camente no que tange aos bens delimitados Classe dos Direitos Sociais. Entende-se que a interpretação hegemônica dos Direitos Humanos opera uma redução dos confl itos sociais à dimensão jurídico- institucional, ao mesmo tempo em que se assume a priori a imunização e desresponsabilização do mercado para o mesmo escopo. Passa, então, a questionar os limites e os riscos deste enquadramento, considerando os limites funcionais do Estado Capitalista em prover um ambiente prestacional e/ou regulatório adequado para a promoção dos bens tutelados por estes direitos. A atualidade e relevância do tema a ser tratado está ancorada na crise paradigmática que enfrenta o modelo de sociabilidade contemporâneo, fundada no esgotamento da promessa sustentada na ruptura da ordem da guerra fria de que o modelo político e econômico liberal, conjugado pela tróika economia de mercado / democracia representativa / horizonte ético dos direitos humanos, seria a solução apta a guiar a as nações até a condição última da emancipação e desenvolvimento humanos. Frente a esta crise, ressurge a necessidade de problematizar e modelar teoricamente o núcleo fundamental da sociabilidade atual, explicitando os seus limites. Como objetivo, procura-se estabelecer os limites e os riscos do enquadramento dos confl itos pelos bens indicados pela categoria de Advogado. Mestrando em Direito do Estado e Graduado pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho – UNESP. Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho – UNESP. Mestranda em Teoria e Filosofi a do Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 98 Direitos Sociais na linguagem dos Direitos Humanos, considerando os limites funcionais do Estado Capitalista em prover um ambiente prestacional e/ou regulatório adequado para a promoção destes bens. Para tanto, adota-se uma postura metodológica de “hermenêutica da suspeita em relação aos Direitos Humanos como são convencionalmente entendidos e defendidos”. (CHAUÍ; SANTOS, 2013, p. 43). A hermenêutica da suspeita pressupõe a existência de uma posição ofi cial ou hegemônica, e assume a posição crítica, de desconstrução, em relação àquela. O principal método de análise utilizado é o materialista dialético, no que implica a evidência da dependência contextual e histórica do fenômeno social, isto é, a sua compreensão a partir da historicidade e da processualidade do ser, assim como o privilégio da contradição enquanto categoria de análise. 1 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS O discurso dos direitos humanos enquanto linguagem universal da dignidade é celebrado enquanto uma conquista rumo à emancipação humana. Entretanto, o panorama contemporâneo atesta que os problemas sociais permanecem, a despeito da incorporação inclusive constitucional desta interpretação universalista. Neste sentido, Chauí e Boaventura (2013) questionam se o discurso hegemônico dos direitos humanos seria uma derrota histórica, e não uma vitória. Para responder tal questionamento parte de uma hermenêutica de suspeita em relação às concepções dos direitos humanos vinculados à sua matriz liberal e ocidental, que concebem tais direitos enquanto individuais de modo a privilegiar os direitos civis e políticos. Os direitos humanos seriam reconhecidamente oriundos do Iluminismo do século XVIII, da revolução Francesa e também da revolução americana, tinham, portanto, uma tradição revolucionária. No entanto, foram introduzidos ao discurso político visando objetivos contraditórios. A partir do século XIX o discurso de tais direitos passou a ser concebido em um nível que seria “antipolítico”. Foram subsumidos no direito do Estado e este assumiu a produção dos direitos e da administração da justiça. O discurso dominante dos direitos humanos tornou a dignidade humana consonante com as políticas liberais, com o capitalismo em suas diferentes metamorfoses e com o colonialismo igualmente metamorfoseado. A revisão crítica da construção histórica dos direitos humanos perpassa então Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 99 pelo questionamento se por trás de uma energia em prol da emancipação houve uma energia contrarrevolucionária. (CHAUÍ, SANTOS, 2013). O projeto moderno se estruturou sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação. No que se refere ao pilar regulatório é possível afi rmar que se estrutura sob os seguintes princípios: o Estado, o mercado e a comunidade. Já o pilar da emancipação foi constituído por três lógicas de autonomia racional: a racionalidade expressiva das artes , a racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e da técnica e a racionalidade prática da ética e do direito. Nas palavras de Chauí e Santos: “O projeto da modernidade julgava possível o desenvolvimento da regulação e da emancipação e a racionalização completa da vida individual e coletiva”. (CHAUÍ, SANTOS, 2013, p.26). Ocorreu, no entanto que o caráter abstrato dos princípios de cada um dos dois pilares modernos, por meio do desenvolvimento do capitalismo, levou a maximização da regulação excluindo totalmente a emancipação. Neste caso, há que se destacar o papel do direito, que como coloca Chauí e Santos (2013, p. 26): “O direito é simultaneamente um mosaico de retórica, violência e burocracia, em que a prevalência de um ou de outro elemento varia conforme a presença ou ausência de democracia na sociedade em que o direito opera”. Assim, o desenvolvimento e a constituição da crise do paradigma da modernidade possui no jurídico um dado fundamental, sendo um componente estratégico no processo fracassado de solução de contradições. (CHAUÍ, SANTOS, 2013). O conceito de lei e de direito adequado ao individualismo burgês da teoria política liberal comunica-se justamente com a noção contemporânea e universal de direitos humanos. É fato que esta visão reduzida traduziu-se muitas vezes em atos de violência e dominação, resultando em uma ilusão do poder emancipatório do discurso em questão. Na realidade a vitória histórica dos direitos humanos traduziu-se muitas vezes em um ato de violenta reconfi guração histórica, ou seja, as mesmas ações que vistas da perspectiva de outras concepções de dignidade humana enquanto ações de dominação e opressão, foram reconfi guradas como ações de libertação e emancipação. (CHAUÍ, SANTOS, 2013). Tal refl exão acaba por expor a ilusão referente ao que seria o “monolitismo” (CHAUÍ, SANTOS, 2013, p. 49), ou seja, a tentativa constante de minimizar as tensões e contradições internas das teorias dos direitos humanos, objetivando garantir a ideia de consenso, sobretudo, no direito internacional. Assim, o fenômeno recorrente dos duplos critérios Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 100 na avaliação da observância dos direitos humanos não comprometeria a sua validade universal. O discurso corrente cria, ainda, uma noção de “antiestatismo”. (CHAUÍ, SANTOS, 2013, p. 50-51). O Estado sempre permanece no centro dos debates sobre direitos humanos, porém, tal centralidade não permite estabelecer o nexo de causalidades entre grupos econômicos não estatais e massivas violações de direitos. Ocorre que há uma reconfi guração do poder do Estado decorrente da constante infl uência de setores econômicos nacionais e internacionais, o que acaba por transformar mandadosdemocráticos em mandados de interesses particulares minoritários. Parece evidente, portanto que o caráter de paradigma da forma em que se estabelece o conhecimento do mundo está alicerçado em uma fonte única de conhecimentos que omite contradições e cria uma noção estática de realidade a-histórica. (CHAUÍ, SANTOS, 2013). 2 O DIREITO E O ESTADO CAPITALISTA O Estado no modo de produção capitalista possui como fundamento de sua legitimidade um caráter de representação social aparentemente dissociado dos antagonismos de classe, refl etindo, de forma ideológica, o lugar público ideal que orienta e limita a ação dos indivíduos para permitir a conciliação entre os interesses coletivos, necessários à continuidade da produção material da vida social, e os interesses particulares de caráter estrutural. Neste sistema se observa relações assimétricas entre os sujeitos coletivos em face dos meios de produção, há, portanto, permanentes contradições advindas das relações entre possuidores e não possuidores dos meios de produção. Tais relações assumem caráter superestrutural (não assumem caráter intersubjetivo) e implicam necessariamente em privilégios para um dos polos da relação, evidenciando um caráter de dominação. (ALVES, 1987). Relações que para serem reproduzidas são fundadas na mediação dos aparatos de violência legitimada, caracterizados pelos instrumentos e instituições especializados na coação legal e na mediação dos aparelhos de domínio de difusão ideológico. Mediadas também a nível jurídico por meio de procedimentos específi cos, representados por aparelhos de criação normativa básica e de suporte dos símbolos e signifi cações jurídicas. O poder social contém em si o consenso que se dará conforme a conjuntura da relação de confl ito e dos meios ideológicos envolvidos. O consenso é a forma de legitimar o poder político, abarcando as crenças e os valores Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 101 comuns, surge, destarte, no contexto do Estado capitalista, para mascarar a distribuição desigual dos resultados da produção social. (ALVES, 1987). (...) a tolerância ou consenso ativo legitimador, dos dominados, no sistema capitalista, aparecem exatamente porque as verdadeiras relações assimétricas, e contrapostas de modo antagônico, estão toldadas por formas ideológicas e jurídico políticas que não se acrescemàquelas relações, por fora, mas fazem parte interna de sua própria natureza. Por exemplo, as relações abstratas da esfera jurídica são efeitos e ao mesmo tempo condicionantes da liberdade e igualdade formais das partes contratantes no jogo das relações entre trabalho e o capital, sem o que as próprias relações de produção nesse sistema seriam impossíveis. Esse processo, em sua versão liberal, leva a considerar que a concepção da harmonia dos interesses particulares e do equilíbrio social (através do mercado, do cálculo econômico de cada agente e de cada unidade econômica) representa a mais completa antítese de toda a lógica de contradição e da luta de classes. As diferenças de função e de classe longe de surgirem aí como antagônicas, antes se harmonizam. São componentes diferenciadas de um sistema equilibrado sobre qual vela o Estado. A diferença não constitui uma contradição porque está situada num sistema de troca (mercado) onde estão ausentes as relações econômicas de exploração. O capital não é uma relação social de sujeição, mas um simples fator de produção. (ALVES, 2013, p.180-181). Alves (1987) coloca, portanto, que em uma sociedade de classes, mesmo com adesão ativa na crença da legitimidade do poder dominante a violência, mesmo de forma simbólica se faz presente através do próprio consentimento. Todavia, se por algum motivo o consenso deixa de exercer sua função e o caráter assimétrico da sociedade surge e dá ensejo a resistências, mais ou menos conscientes, ocorrerá a neutralização destas para manutenção do poder econômico e político das classes dominantes, o que ocorrerá através da violência real legitimada do Estado. Nas palavras do próprio autor: “a violência implícita”, ou melhor, oculta sob a máscara da própria ideologia, deixa de ser ameaça virtual para ser atual e viva no sentido de eliminar, diretamente pelo exercício da coação física ou psíquica, a recusa de obediência dos membros das classes subalternas. (ALVES, 1987, p.185). O confl ito de classes neste contexto é, segundo Wood (2003), “domesticado”, na medida em que tais confl itos tendem a ser enclausurados Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 102 no interior da unidade individual de produção, mas, se porventura sai às ruas, o confronto não se dará entre capital e trabalho, pois, será o Estado “neutro” e autônomo” que pacifi cará a situação. Ocorre que no capitalismo a economia política universaliza as relações de produção abstraindo as determinações sócias específi cas, assim, surge uma harmonia aparente no que tange as relações sociais. Cumpre-se ai o objetivo ideológico de considerar a produção como algo dirigido por leis naturais e independentes da história, e sob tal base, edifi ca-se a sociedade burguesa teórica. (ALVES, 1987). O Estado surge como autônomo e traz em si uma noção de liberdade jurídica e igualdade entre indivíduos livres, que podem relacionar-se através de trocas econômicas regidas por leis naturais de mercado. Na realidade, a hegemonia política no sistema capitalista, enquanto assinala a dialética da violência e do consenso, só pode alcançar legitimidade na medida em que a adesão dos dominados se funda na convicção do autogoverno pela qual todos os cidadãos individuais se sentem participantes da direção social mediante as formas de representação democrática. Isso signifi ca que o processo democrático da sociedade burguesa engendra nas pessoas a crença de que exercem efetivamente a autodeterminação política e que, por consequência, controlam os resultados obtidos nesse âmbito, independentemente de relações injustifi cadas de dominação e violência. Logo, não há reconhecimento de que existem, no plano econômico, dominadores e dominados, exploradores e explorados; nem se trata de reconhecimento de uma classe dominante legítima; o que existe é a crença de que não há classe dominante, ou melhor, de que não existem classes sociais. (ALVES, 1987). Os poderes de apropriação de mais valia e exploração não se baseiam nas relações jurídica ou política, mas sim em uma relação contratual entre produtores livres- juridicamente livres e livres dos meios de produção – e um apropriador que tem a propriedade privada absoluta dos meios de produção. Ocorreu que a democracia foi delimitada à esfera política formalmente separada da economia, ou seja, permitiu-se a extensão da cidadania restringindo seus poderes de modifi cação substancial da sociedade. A separação entre a condição cívica e a posição de classe opera nas duas direções: a posição socioeconômica não determina o direito à cidadania- e é isso o democrático na democracia capitalista - mas, como o poder do capitalista de apropriar se do trabalho excedente dos trabalhadores não depende da condição jurídica ou civil privilegiada, a igualdade civil Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 103 não afeta diretamente nem modifi ca signifi cativamente a desigualdade de classe, e é isso que limita a democracia no capitalismo. (WOOD, 2003). As condições que tornam viáveis a democracia liberal permitem a esfera de dominação e coação criada pelo capitalismo. O fundamento do desenvolvimento social e econômico camufl a a reprodução das relações econômicas dominantes, perpetuando a exploração e apropriação privada da mais valia, como também se oferecem as bases materiais para incrementar a força de legitimidade do poder político,no sentido de ocultar o modo mais perverso de exploração e violência. O direito positivado, neste contexto codifi ca a igualdade formal, legitima a monopolização da violência do Estado, mascara a dominação política e econômica. Através da dogmática, realiza-se uma manipulação teórica dos aparatos conceituais a fi m de transparecer que as soluções estão todas em um sistema de direito fi nalizado e perfeito, trata-se da instrumentalidade universal do direito. (ALVES, 1987). A ideologia da igualdade e da liberdade, fundamental para engendrar o sujeito livre e igual perante o Direito (sujeito de direito), o contrato, a moeda e o cidadão, alimenta a dinâmica reprodutora do capital dentro de uma tensão em que se revela a evidência de profundas desigualdades sociais encimadas por um Estado que funcionam aparentemente como árbitro e tutor imparcial. Mediante o discurso da igualdade, o Estado enfrenta, com avanços e recuos de suas instituições múltiplas e diferenciadas, as relações estruturais assimétricas, que são paradoxalmente a sua própria razão de ser. O direito na sua expressão racional formal traduz as relações instrumentais e funcionais de complementação recíproca entre os papéis dos agentes sociais e de suas eventuais composições, aparentemente à margem dos confl itos estruturais. Portanto, o direito media os antagonismos de classe, transpondo-os para relações de confl itos intersubjetivas. (ALVES, 1987). 3 OS DIREITOS SOCIAIS NO ESTADO CAPITALISTA Partir do ponto de vista desenvolvido até aqui signifi ca estabelecer que a dimensão político ideológica promovida pelo discurso hegemônico dos Direitos Humanos, enfeixado com a divisão do mundo social entre Esfera Política, confi nada nos limites do Estado, e esfera econômica, tolhida de sua dimensão política, concorre para ocultar a reprodução estrutural da desigualdade nas sociedades capitalistas, encapsulando a sujeição concreta vivenciada pelas classes subalternas na forma de confl itos jurídicos e, Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 104 portanto, intersubjetivos, desvinculados de seu caráter classista. Esta posição contraria, logicamente, a CONSIDERAÇÕES FINAIS divulgada pela teoria liberal clássica de que a máxima equalização dos anseios sociais poderia ser alcançada pelo engajamento dos sujeitos formalmente livres e iguais no mercado; e contraria, também, a perspectiva reformista que sucedeu o liberalismo clássico, juridicamente representada pela constitucionalização da sociedade e pela positivação e garantia dos Direitos Sociais, embasada na crença de que a mencionada equalização poderia ser alcançada pela sujeição da sociedade de mercado ao bem coletivo por intermédio da intervenção Estatal. A perspectiva reformista está construída ao redor do fato histórico da necessidade de restruturação do marco ideológico capitalista frente a insustentabilidade das sociedades cujo mecanismo de regulação social é abandonado ao laissez-faire. Como coloca Arrighi (1996), a evolução do capitalismo histórico como sistema mundial obedece um movimento pendular entre o liberdade econômica e regulação econômica. O motor desta tendência está na própria contradição inerente ao modo de produção capitalista. O ideal do mercado autoregulado é construído de forma apartada da realidade, considerando os elementos essenciais necessários à reprodução da produção, quais sejam o trabalho, os recursos naturais e o capital, como unidades inertes, mercadorias desvinculadas de sua condição real e disponíveis para a compra pelo capitalista. (ARRIGHI, 1996). Quando confrontada com o real, esta abstração mostra a sua fragilidade, expondo a necessidade de intervenção externa para evitar a completa desagregação social e a fi m de garantir as mínimas condições de reprodução das relações de produção. (POLANYI, 1957, apud ARRIGHI, 1996, p. 264). Como sumariza Pirenne: A competição irrestrita leva [os capitalistas] a lutarem entre si e logo desperta resistencia (...) no proletariado explorado por eles. E, ao mesmo tempo que essa resistência se ergue para enfrentar o capital, este, por sua vez, sofrendo com o abuso da liberdade que lhe permitira ascender, obriga-se a disciplinar seus negócios. Organizam-se cartéis, trustes e sindicatos de produtores, enquanto os Estados, percebendo que é impossível deixar que patrões e empregados briguem anarquicamente, elaboram uma legislação social. (PIRENNE, 1953, p. 516, apud ARRIGHI, 1996, p.251). Considerando o enfeixamento institucional das sociedades regidas por Estados Capitalistas, é projetado sobre estes o papel de Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 105 interventores externos, responsáveis por mediar as contradições geradas pelo funcionamento do sistema, inclusive aqueles entre capital e trabalho. No processo histórico, na medida em que se consolidava o modo de produção capitalista a partir da incorporação do industrialismo como forma dominante das economias européias ocidentais, acompanharam a positivação e prática dos primeiros sistemas de proteção social, como aquele elaborado pela Alemanha de Bismark, já em 1883. Segundo Arrighi (1996, p. 273): A disseminação do desemprego, da inquietação trabalhista e da agitação socialista, a persistência das depressões na indústria e no comércio, os valores da terra que despencavam e, acima de tudo, a terrível crise tributária que o Reich vivia, tudo isso se conjugou para induzir Bismarck a intervir para proteger a sociedade alemã, a fi m de que a devastação do mercado auto-regulador não destruísse o edifício imperial que ele acabara de construir. A relevância desta relação cresce quão mais severa a contradição entre capital e trabalho, atingindo especial importância frente ao panorama político do século XX. Como coloca Held (1987), o panorama de instabilidade política, caracterizado pelo avanço socialista, adicionado ao período de panacéia econômica, e, no plano econômico, com a idealização de um novo eixo de ação na economia política liberal consistente no paradigma Keynesiano do Estado Interventor, possibilitou aos segmentos excluídos vissem incorporada parte da sua agenda dentre os objetivos do Estado Liberal, com a implantação do Estado de Bem Estar na Europa Ocidental. Tratava-se de demonstrar que as demandas por melhoria da condição dos trabalhadores deveriam direcionar-se adentro do sistema, e não fora dele. O sucesso ideológico, neste sentido, foi tão grande quanto as progressivas difi culdades enfrentadas na experiência do socialismo real, que no geral desvirtuou-se em regimes autoritários, a tal ponto de tornar- se enunciado célebre a predição de Fukuyama (1992) da queda do muro de Berlim como o “Fim da História” - fazendo referência ao binômio capitalismo liberal democracia como o último estágio da evolução organizativa da sociedade. Peculiar foi a forma como este traço incorporou-se no discurso jurídico e político hegemônico, não enquanto ligação estrutural entre forma política e forma econômica, mas como eixo ético-axiológico positivado nos ordenamentos jurídicos nacionais, na forma de Direitos Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 106 Humanos Fundamentais. Assim, na medida em que a teoria política passa a incorporar com ímpeto a matriz teórica do novo constitucionalismo, com a promulgação das primeiras constituições dos Estados Sociais, a Doutrina dos Direitos Humanos concomitantemente se renova, adicionando uma nova categoria de direitos não mais concebidos na lógica negativa dos direitos de liberdade, mas de garantias positivas ante a prestações Estatais: O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal deliberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social. A nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positiva, uma vez que se cuida não mais de evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas, sim, na lapidar formulação de C. Lafer, de propiciar um direito de participar do bem-estar social. (SARLET, 2012, p. 33). O que cabe discutir, no entanto, desde uma sociologia da suspeita, é até que ponto a interpretação dos direitos sociais enquanto “vitória histórica” pode ser aproveitada para luta pela manifestação concreta das necessidades manifestas nestes mesmos direitos. É preciso ter em mente que a dialética da luta emancipatória levada a cabo pelos movimentos socialistas e comunistas do século XX “não invocaram a gramática dos direitos humanos para justifi car as suas causas e as suas lutas”. (CHAUÍ; SANTOS, 2013, p. 46). Não obstante, a quantifi cação do relativo sucesso da ameaça contestatória que lograram explicitar no campo político deu-se com a conformação das suas causas na linguagem das pretensões jurídicas, de matriz liberal e individualista. Com efeito, sumarizado por Santos, os Direitos Humanos que produziram emergem como argumento de que “o Estado deve agir de modo a realizar as prestações que se traduzem em direitos”. (ibid, p. 50-51). O mal-estar deste fetichismo Estatalista está na manutenção de uma perspectiva abstrata e idealista que eclipsa o elemento contingente à autonomia Estatal, intrínseco à sua capacidade para a realização dos fi ns sociais. Argumentamos esta contingência em dois pontos. O primeiro ponto diz respeito à incapacidade paulatinamente demonstrada pela democracia representativa, como mecanismo de distribuição do poder político, em estabelecer uma composição Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 107 administrativa de fato democrática e sensível às pautas das parcelas oprimidas. Este aspecto é bem evidenciado, de um ponto de vista da ação coletiva, na refl exão que fazem Offe e Wiesenthal (1984, p. 62-82) sobre a capacidade de organização política das parcelas proletárias, de um lado, e capitalistas, de outro, evidenciando “um importante desnível estrutural na distribuição de poder na sociedade”. (MARQUES, 1997, p. 9). Na perspectiva dos autores, a assimetria estrutural na relação de dominação que rege o confl ito entre capital e trabalho permeia também a capacidade de organização de cada lado desta relação na medida em que, por consequência do caráter subjetivo da força de trabalho como princípio associativo de cada trabalhador em relação ao caráter objetivo do capital, a ação coletiva dos primeiros “deve ser precedida de solidariedade (única forma de evitar o dilema do prisioneiro), organização e diálogo, e para o capitalista não há necessidade de nenhuma ação, visto que a sua própria existência subordina por defi nição o trabalho morto ao seu comando”. (MARQUES, 1997, p. 9). Segundo Offe e Wiesenthal (1984, p. 66): Como o trabalhador é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto da troca da força de trabalho, está envolvida, neste caso, uma gama bem mais ampla de interesses que no caso dos capitalistas, os quais podem satisfazer grande parte de seus interesses, de certa forma, paralelamente ao seu desempenho enquanto capitalistas. Projetando esta CONSIDERAÇÕES FINAIS à visão da democracia de matriz weberiana, que a interpreta como a competição de grupos (de interesse) organizados para defi nir os inputs sociais a serem priorizados na formulação dos outputs governamentais, que são as Políticas Públicas, estabelece-se a priori uma diferenciação assimétrica entre as classes que gozarão do acesso preferencial ao controle e à defi nição da agenda Estatal, garantindo a sua subordinação mais ou menos direta, no que tange às contradições entre capital e trabalho, aos interesses capitalistas. O segundo ponto diz respeito à própria contingência do Estado Capitalista enquanto tal no que tange à promoção de políticas redistributivas em contrário ao interesse do capital, independentemente da sua direção. Neste sentido, Offe e Ronge (1984) observam que há um conjunto de limitações estruturais inerentes ao Estado Capitalista, que circunscrevem o seu caráter classista e explicam a incongruência da expectativa da plena submissão do processo produtivo à sociedade por meio da intervenção Estatal. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 108 Segundo os autores, sob a forma do Estado Capitalista “o poder público está estruturalmente impedido de organizar a produção material segundo seus próprios critérios políticos”. (OFFE, RONGE, 1984, p. 123). Isto porque a propriedade sobre os meios de produção é, via de regra, privada, e projetada em um contexto onde as interações econômicas são igualmente regidas pelo regime privado. Assim, para manifestar as fi nalidades estatais no plano concreto, é necessário que o poder público atue como agente econômico, movimentando recursos fi nanceiros como condição para acessar os bens de propriedade privada. Ainda, os recursos econômicos disponíveis estão ligados à dependência dos impostos pelo poder público. É dizer, a capacidade econômica do Estado está principalmente vinculada ao Sistema Tributário e, através dele, à acumulação privada. (OFFE, RONGE, 1984, p. 124). Como consequência da conjugação destes dois aspectos, é possível dizer que para que seja possível exteriorar o poder estatal, ele depende do processo de acumulação capitalista, sem ele mesmo ser capaz de organizar este processo. (OFFE, RONGE, 1984, p. 124). Assim, há um interesse implícito e estrutural da máquina pública em ver expandir e prosperar a acumulação privada em seu território, como condição de sua própria ação – por contraste, a constrição da acumulação privada implica na diminuição do próprio poder de ação da máquina pública (ibid). A contradição em que para intervir efetivamente na compensação das desvirtualidades sociais geradas pelo ímpeto acumulador do regime capitalista o Estado depende da intensifi cação do padrão de acumulação nacional é inescapável, e está muito bem representado no discurso que legitimou o desmonte do Estado de Bem-Estar nos países europeus, segundo o qual “a multiplicação de direitos, particularmente os direitos sociais, seria um fator de perda de competitividade dos Estados, na medida em que tais direitos imporiam a criação e manutenção de pesadas e dispendiosas estruturas de serviços públicos”. (BUCCI, 2002, p. 4). Recuperando a refl exão de Offe e Lehardt (1984) sobre a relação entre a emergência de políticas sociais do Estado e as pressões estruturais da engrenagem capitalista, parece-nos possível aferir que a lógica do mercado foi e progride cada vez mais como fator limitador da possibilidade de iniciativas Estatais amplas de efetivação de Direitos Sociais – não em um sentido completamente negativo, mas como uma tensão permanente entre a necessidade estrutural do capitalismo por ações institucionais estabilizadoras do processo de proletarização, de um Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 109 lado, e o repúdio à oneração do capital produtivo, de outro. É por isso que o uso emancipatório e contrahegemônico da linguagem dos Direitos Humanos, e em especial dos Direitos Sociais, passa necessariamente pela desconstrução da interpretação hegemônica destes, associada ao ideal Liberal, para buscar novas formas e engrenagens capazes de constranger inclusive os atores econômicos e privilegiar de fato o homem como referencial objetivamente considerado. 4 A RECONSTRUÇÃOCRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS Para construir novos paradigmas políticos, sociais e econômicos primeiramente é preciso questionar a racionalidade cognitivo instrumental predominante, que perpassa pela noção de que a humanidade estaria destinada ao progresso infi nito, proporcionado pelo conhecimento científi co, limitando, assim a abertura de formas alternativas de ser e saber. A razão moderna mostra-se imponente para suportar o desafi o de interrogar alternativas à ideologia do fi m da história. Trata-se da hegemonia de uma razão indolente, incapaz de repensar o presente e, portanto, incapaz de trazer novas possibilidades para o futuro. Seria necessário uma razão contra hegemônica capaz de reinstituir a tensão entre regulação e emancipação. Para tanto é preciso centralizar a denominada “sociologia das ausências” (CHAUÍ, 2013, p. 28), que busca identifi car as experiências desperdiçadas pela razão indolente e questiona sob quais condições pode se constituir como alternativa ao modelo hegemônico. Em um segundo momento é preciso destacar a denominada “sociologia das emergências” (CHAUÍ, SANTOS, 2013, p. 29), para interrogar o presente e investigar em que medida tais alternativas podem ser inseridas em um horizonte concreto e contemporâneo de possibilidades. (CHAUÍ, SANTOS, 2013). “O que a ecologia dos saberes combate são as hierarquias e poderes universais e abstratos, naturalizados pela história e por epistemologias redicionistas. (CHAUÍ, SANTOS, 2013, p. 36). As contradições que perpassam os direitos humanos devem se tornar evidentes, pois a injustiça social assenta-se justamente na injustiça cognitiva. A técnica sob a ciência moderna se torna tecnologia, intervenção que se coloca como legítima e necessária, mas as crises e catástrofes decorrentes de tais práticas são socialmente aceitas como custo social necessário e inevitável. Como o conhecimento científi co, evidentemente não é distribuído socialmente de forma equitativa, as intervenções advindas Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 110 deste são determinadas por classes e grupos privilegiados que monopolizam o acesso à ciência. É preciso, para tanto priorizar uma “ecologia dos saberes” (CHAUÍ, SANTOS, 2013, p. 33), ou seja buscar a independência complexa entre os diferentes saberes que constituem o sistema aberto de conhecimento em constante processo de criação e renovação. (CAHUÍ, SANTOS, 2013, p.33). Isto posto, coloca-se que os direitos humanos não devem ser compreendidos, portanto a partir de teorias universalistas, que parecem negar a característica cultural e contextualizada dos direitos ao elevá-los a uma noção inerente à pessoa humana, independente do lugar de nascimento e dos bens que possui de fato acesso. Os direitos humanos constituem um produto cultural originado no Ocidente, no contexto da modernidade capitalista, advindo da capacidade de reação diante de relações que determinaram o capital como a única e global forma de produzir e destinar recursos. (FLORES, 2009). Se considerarmos um sentido marcadamente social os direitos humanos são segundo a teoria crítica o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e todos pela luta plural e diferenciadamente por uma vida digna. (FLORES, 2009). A contextualização parece ser essencial, pois a noção de direitos humanos, enquanto mera entidades naturais ou direitos infi nitos, carrega em si as contradições aqui narradas, em suas diversas etapas de origem. Historicamente tratou-se muitas vezes de justifi cações ideológicas para as expansões de dominação por todo o globo, assim, como já foi colocado, os direitos humanos possuem em si um caráter, ambivalente. É preciso então, reforçar o caráter dinâmico e histórico dos processos sociais e jurídicos que permitem abrir e garantir o que resulte das lutas sociais pela dignidade humana, sendo que esta será advinda das tradições críticas e antagônicas que foram marginalizadas ou ocultadas pela ideologia. (FLORES, 2009). A questão central que deve ser destacada é a compreensão dos direitos humanos não como algo conquistado e estabelecido pela positivação jurídica, ao contrário, já que a efetividade de direitos perpassa por relações de poder não explicitadas, mas impostas pelo aparato ideológico dominante. A problemática se refere à questão da construção das condições que facilitem o acesso igualitário aos bens e recursos necessários para uma vida digna. O fato é que os direitos humanos enquanto processos e práticas antagonistas estão em constante confl ito com hegemonismos aptos em furtar procedimentos de acesso aos processos de luta dos marginalizados. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 111 (FLORES, 2009). O direito é um instrumento necessário de garantia e consolidação das lutas sociais pela dignidade humana, já que marca um círculo simbólico e discursivo ao redor dos sujeitos reconhecidos por ele para evitar que as conquistas possam ser desvirtuadas por aqueles que possuem o poder. No entanto, da mesma forma que a linguagem não cria a realidade, o direito pode ser instrumento a interpretações ideológicas da realidade e as formas de acesso aos bens que são funcionais aos seus processos materiais não são neutras, ou seja, estão condicionadas pela organização hegemônica que impera em um momento histórico específi co. (FLORES, 2009). Assim, é necessário dirigir atenção a um sistema político, cultural, social, econômico e jurídico que consolide e garanta os resultados das lutas sociais, neste sentido a virtude do direito poderia estar nos fundamentos sobre os quais se sustenta a garantia dos resultados das lutas sociais por um acesso igualitário aos bens. Em outras palavras, trata-se de questionar se os produtos culturais, que justifi cam as relações sociais e dão base para o edifício jurídico, servem para avançar ou obstaculizar os caminhos da cidadania efetiva. (FLORES, 2009). Para uma ressignifi cação dos direitos humanos torna-se essencial uma quebra de paradigmas em que seja possível avaliar criticamente a realidade identifi cando as experiências desperdiçadas pela razão indolente e questionando sob quais condições é possível aproveitá-las como alternativas ao modelo hegemônico. A luta pela emancipação, que é política e social, deve perpassar pelo acesso a uma concepção plural de dignidade humana, para além de um discurso hegemônico de direitos humanos tantas vezes instrumentalizado para fi ns contraditórios. (CHAUÍ, SANTOS, 2013). REFERÊNCIAS ALVES, Alaor Caffé. Estado e Ideologia: Aparência e Realidade. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. 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Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 113 CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AUTONOMIA DO DIREITO: A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO DIREITO EM CONTEXTOS DE INSTABILIDADE POLÍTICO-ECONÔMICA Guilherme Bollini Polycarpo1* Felipe Rodrigues Xavier2** Lucas Jonas Fernandes3*** INTRODUÇÃO O Estado Democrático (e Social) de Direito instituído a partir da Constituição Federal de 1988, além de ser confi ssão do Estado Brasileiro do fracasso na tarefa de efetivar os direitos e garantias fundamentais de segunda e terceira dimensões, tem por imperativo sua compreensão também como instituinte de um direito autônomo em relação às dimensões políticas, econômicas e morais. Isto para que o direito, ora sob o mandamento dirigente-compromissório da Constituição, e, portanto, concretizador de seus direitos sociais olvidados durante nosso estado de exceção, não seja desviado ou solapado de sua missão constitucional pelo pragmatismo político em seus mais variados aspectos, desde as injunções partidárias- parlamentares momentâneas passando pelos discursos morais corretivos (que ali encontram voz) e outros paradigmas de cunho fi losófi co-jurídico como a análise econômica do direito e o direito jurisprudencial sumular. Assim, ante a promulgação de um documento constitucional de viés compromissório cujo conteúdo apresenta um rico catálogo de liberdades e direitos sociais, econômicos e culturais, surge, com toda sua potencialidade, o confronto com a realidade política, econômica e fi losófi ca presente em nosso país, o que tem, até hoje, engendrado a Advogado; Bacharel em Direito pela UNESP, CV: http://lattes.cnpq. br/4145892056864510. Jurista; Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista UNESP. Bacharel em Direito pela UNESP; Membro do Corpo Editorial da Revista de Estudos Jurídicos (REJ) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP; CV:http://lattes.cnpq.br/4323708314077775. Jurista; Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista UNESP.Bacharel em Direito pela UNESP; CV: http://lattes.cnpq. br/5999705722473339. http://lattes.cnpq. http://lattes.cnpq.br/4323708314077775. http://lattes.cnpq. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 114 grande difi culdade no prevalecimento daquilo que Konrad Hesse chamou de vontade da Constituição. O presente trabalho se justifi ca pela grande difi culdade apresentada pelo Governo, juntamente com os movimentos sociais organizados em maior ou menor grau, de garantir efetivamente as disposições constitucionais, de modo que cada pessoa tenha possibilidade de concretizar uma vida digna dentro dos ditames estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e conquistas posteriores de mesmo cunho. No atual contexto brasileiro, vemos um enfraquecimento do poder Legislativo, visto como degradado e corroído pelos lobbys e jogos políticos, com consequente aumento de poder do Judiciário, chegando ao ponto de os juízes realizarem leis (como é o caso das Súmulas Vinculantes). O Legislativo parece carecer de alguns elementos cruciais na teoria jurídica de Ronald Dworkin já citados: integridade e coerência. O método utilizado será o método dedutivo e a premissa inicial poderia ser defi nida como: “é necessária a concretização de um direito autônomo, isto é, que guarde relação com os conceitos de integridade e coerência (Dworkin), para que se dê ensejo à possibilidade de concretização plena das garantias constitucionais”. 1 CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AUTONOMIA DO DIREITO O Direito adquiriu importante papel frente à política a partir do Século XX, de modo que aquele passou a ser além de ordenador e promovedor, também agente transformador, enquanto esta passou a depender daquele. Assim, a Constituição obteve um caráter democrático e tornou-se um campo de possibilidade da realização do próprio Direito. (STRECK, 2009, p.2). A questão, no entanto, de como dar efi cácia aos preceitos insculpidos na Carta Magna, quase três décadas após sua promulgação, continua aberta sem que haja perspectiva para uma solução concreta. A realização de tais preceitos representaria um avanço em relação ao suposto “Estado de bem-estar social”1 brasileiro, em termos normativos e, para tal, exige um novo viés hermenêutico despido dos antigos preceitos cartesianos e positivistas. 1 Quando examinamos o Estado Social, o antigo Sozial staat alemão, ou o mais recente welfare state, – que tem em seu corifeu a fi gura de Gunnar Myrdal e em seu idealizador o novamente reverenciado John Maynard Keynes – notamos a centralização das decisões nas mãos do Poder Executivo, de modo a possibilitar a realização de políticas públicas e viabilizar a intervenção que tal modelo exige, por parte do Estado, na economia. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 115 A hermenêutica jurídica ou a interpretação das normas, interpretação esta que auxilia na concretização do sentido destas na medida em que são analisadas levando-se em conta a resolução de um caso concreto, constitui, infelizmente, negligenciado ramo do pensamento científi co jurídico, tanto no universo acadêmico quanto nos juizados de nosso país. Em nome de princípios instrumentalistas como a celeridade processual muito se têm abdicado da interpretação da lei no momento da aplicação em um caso concreto, chegando-se ao ponto extremista de imaginarmos magistrados chanceladores, isto é, que reproduzem mecanicamente diversas decisões diariamente como em uma linha de montagem industrial. O “fordismo jurídico” brasileiro, no qual há algumas diretrizes interpretativas estabelecidas pelo empregador (Súmulas Vinculantes) que deverão ser seguidas sem questionamento por todos os empregados de primeira instância, a fi m de que a gigante máquina burocrática continue produzindo milhões de sentenças contraditórias ou destituídas de atividade hermenêutica, é uma demonstração da inaptidão dos poderes públicos, no caso, o Judiciário, em se adequar às exigências da modernidade líquida.2 Grande aliado desta “industrialização” do processo é o pensamento neoconstitucionalista ou pós-positivista, que, refratário ao giro ontológico-linguístico desencadeado pela fi losofi a de Wittgenstein II e Heidegger, mantém-se atrelado ao modelo sujeito-objeto e aos arcaicos sistemas cognitivos elaborados por Aristóteles em forma de suas categorias e desenvolvidos por Kant em sua Crítica da Razão Pura. O giro ontológico-linguístico consiste em uma negação da cisão defendidapor Pitágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles entre a vida prática e a vida contemplativa, metafísica. Trazendo a linguagem para a instância a priori¸ removendo-a da condição de problema na relação entre sujeito e objeto, e, inserindo-a como condição de possibilidade para a experiência humana, o linguistic turn demonstrou aos fi lósofos que interpretar é aplicar. E vice-versa. Isto é, a velha fórmula subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi (conhecer, interpretar, aplicar) - como afi rma Gadamer em Verdade e Método - ignora que estes três atos estão de tal forma atrelados que é impossível interpretar sem aplicar, ou conhecer sem interpretar (STRECK, 2009, p. 2). 2 Modernidade líquida é um conceito utilizado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman para descrever os tempos da conexão instantânea e da cultura dos descartáveis. Na modernidade líquida tudo é, como o nome sugere, líquido, fl uido, em oposição ao capitalismo sólido da primeira modernidade, no qual o modelo fordista atingiu seu apogeu. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 116 Desta forma, incorrem em equívoco aqueles que acreditam ser possível aplicar uma determinada norma a um caso concreto sem que haja um processo interpretativo. Tal atitude constitui um furo, uma ruptura no processo hermenêutico, podendo causar grave ameaça à integridade e à coerência de um sistema jurídico. Assim é que a pretensão dos ministros do Supremo Tribunal Federal de obrigar o uso do antigo brocardo in claris cessat interpretatio ao instituir as Súmulas Vinculantes mostra-se em desacordo com as atuais concepções hermenêuticas. Estas concepções dizem respeito, portanto, à conexão intrínseca entre interpretação e aplicação, de modo que consiste em uma atitude metafísica a compreensão destes como momentos separados do ato de aplicar uma norma. Mas o que esta mudança paradigmática na questão central da fi losofi a (o que é a coisa e como a compreendemos?) pode trazer em termos de benefícios para a concretização das garantias elencadas na Constituição Federal? O Judiciário apresenta, em nosso país, no século XXI, lugar de destaque, como antes nunca visto, na evolução política do país. Asseguradas as garantias fundamentais pela Carta Magna, o Judiciário foi permeado pela função de garantir que os direitos objetivos e subjetivos sejam faticamente respeitados pelo Estado, de modo que, como afi rma Dworkin, as cortes superiores “transformaram-se” em promulgadoras de decisões com caráter político. Dworkin assinala que, durante o processo de interpretação jurídica, opiniões de discrepantes vieses são declaradas (“liberais, radicais ou conservadoras”), tanto sobre o que deveria ser, quanto sobre o que realmente é nas normas. E oferece, em seguida, o exemplo de interpretação referente a cláusula da igualdade de proteção presente na Constituição dos Estados Unidos, arrematando: “Não pode haver nenhuma interpretação útil do que signifi ca essa cláusula que seja independente de alguma teoria sobre o que é a igualdade política e até que ponto a igualdade é exigida pela justiça”. (DWORKIN, 2005, p. 246) Em suma, o Estado Democrático de Direito “transmutou” o judiciário em depositário da decisão nos casos em que os outros poderes estejam agindo em desacordo com Constituição, sendo o judiciário, portanto, carregado, em suas decisões, de caráter político. É o Judiciário, destarte, o garantidor da Constituição. E disto resulta que, inevitavelmente, a concretização dos preceitos constitucionais deverá passar pelas mãos Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 117 do judiciário, sendo este responsável pelo processo interpretativo que dá sentido à norma no momento de sua aplicação a um caso. E disto resulta que, inevitavelmente, a concretização dos preceitos constitucionais deverá passar pelas mãos do judiciário, sendo este responsável pelo processo interpretativo que dá sentido à norma no momento de sua aplicação a um caso concreto. Isto é, é o judiciário importante para a desmistifi cação da norma como ente, como fato apriorístico do qual não é necessária nenhuma interpretação: da norma como coisa em si. É a atitude interpretativa das Cortes Supremas e dos tribunais de primeira instância responsável, portanto, pela criação gradual do sentido das normas quando estas são confrontadas com os fatos concretos. Esta atividade interpretativa é imprescindível para a construção de uma tradição jurídica. Tradição esta que, como o compreende Dworkin, não pode ser olvidada em importantes decisões envolvendo matéria constitucional, fato que observamos com frequência no Brasil e é capaz de ameaçar a integridade do ordenamento jurídico. Por conseguinte, uma Corte Suprema que não se coaduna com os preceitos hermenêuticos mais hodiernos, incapaz de superar a empoeirada dicotomia sujeitoobjeto, incapaz de compreender que interpretação e aplicação são inseparáveis, isto é, incapaz de compreender a inserção na mundanidade, no Dasein heideggeriano, será inapta para a concretização dos direitos e garantias fundamentais, estando, no entanto, à mercê de teorias incompatíveis com nossa tradição jurídica, de produzir sentenças contraditórias ou automatizadas, de, fi nalmente, em nome de princípios abstratos, cometer injustiças concretas. Aqui chegamos, portanto, a questão não menos importante das correntes subjetivistas que, ao aderirem ao sujeito solipsista cartesiano pretendem superar o objetivismo daqueles que acreditam “na ideia de que o intérprete extrai o sentido da norma, como se este estivesse contido no próprio texto da norma, enfi m, como se fosse possível extrair o sentido- em-si-mesmo”. São estes os principais defensores da difusão de princípios abstratos observada nas últimas décadas, assim como da utilização errônea de teorias importadas, como é o caso da ponderação alexyana. As teorias solipsistas, defendidas pelo jovem Wittgenstein, podem ser sintetizadas na metáfora do solitário na torre de marfi m, para o qual: “The world is my world: this is manifest in the fact that the limits of language (of that language which alone I undestand) mean the limits of my world”. (WITTGENSTEIN, 1988, p. 19). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 118 Ou seja, para os solipsistas o mundo é, perante o indivíduo, somente aquilo que o mundo o é para ele. Apenas sua visão de mundo é a verdadeira e é sua interpretação que irá ditar a defi nição de sua existência. A arma de um solipsista é a denominada consciência e, quando o caso é o universo jurídico, há o aval legislativo para o uso desta como mecanismo de solução de contendas através do princípio do livre convencimento ou da persuasão racional. O princípio do livre convencimento motivado, princípio da persuasão racional entre outras denominações - é conceituado por Pontes de Miranda como aquele que permite “ao juiz apreciar as provas livremente, a fi m de se convencer da verdade ou falsidade, ou inexatidão parcial, das afi rmações sobre os fatos da causa”, de forma que não confere “ao juiz liberdade absoluta, mas não lhe impõe critérios rígidos e infl exíveis (valores tarifados) na apreciação da prova”. (MIRANDA, 1979, p. 517). Estes limites, prossegue o mestre alagoano, seriam os seguintes: a) que o juiz fundamente o despacho, ao ordenar diligências que reputa necessárias à instrução do processo, e aquele em que indefere diligências que tem por inúteis ou manifestamente protelatórias (art. 130); b) que dê as razões do seu conhecimento, analisando as provas em que se baseou e porque lhes atribuiu o valor com que foram levadas em conta (arts. 131 e 458, II e III); c) se bem que o art. 131 lhe confi ra atribuir valor probatório a provas que não foram alegadas pela parte, tais provastêm de ser constantes dos autos, de modo que o juiz julgue de acordo com as ‘provas dos autos’, não se afastando, pois, dos princípios. (MIRANDA, 1979, p. 523). O que acontece, no entanto, a despeito do afi rmado por Pontes de Miranda, é o uso do princípio do livre convencimento como escusa para o decisionismo judicial e a arbitrariedade no momento dos magistrados proferirem despachos e decisões. Este abuso da persuasão racional é responsável pela enxurrada de processos contraditórios percebidos em milhares de comarcas nos rincões do Brasil. Assim, ora o magistrado compreende, por meio de sua consciência, que determinado sujeito é culpado de um crime tal, enquanto outrora o exato magistrado decide pela absolvição de um suspeito de crime semelhante, em circunstâncias semelhantes, também guiado por sua consciência. E que não confundamos arbitrariedades como estas com pluralidade de opiniões interpretativas e criação democrática de uma Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 119 tradição jurídica fundada na prática reiterada. A arbitrariedade jurídica do magistrado é uma das várias realidades que integram o caótico sistema jurídico nacional, sendo inclusive bombardeada em sua liberdade por um remédio não efi caz e capaz de trazer novos males ao invés de profi laxia: as Súmulas Vinculantes. Entre Súmulas Vinculantes autoritárias que ditam o procedimento a ser seguido rigidamente em toda linha de produção de processos não permitindo o questionamento, e juízes convencidos de que suas decisões devem ser “sentidas” por sua consciência, a Constituição brasileira caminha, aos tropeços, buscando meios (lembremos que a Constituição, no entanto, não é ente, não existe em si mesma) para tornar tangíveis os inúmeros preceitos fundamentais elencados, com ênfase sobretudo no extenso artigo 5º. O pós-positivismo aliado à difusão de inúmeros princípios instrumentalistas ou excessivamente abstratos e à fi losofi a da consciência são os principais causadores da incapacidade do Judiciário em atingir a integridade e a coerência necessárias ao Direito a fi m de que estes preceitos constitucionais tenham efi cácia factual. Estes fatores representam, ainda, um grave entrave para a autonomia do Direito. Apenas o entendimento, por meio da superação da dicotomia sujeito-objeto, da viragem ontológico- linguístico e do fi m da cisão entre mundo teórico e mundo prático (entre aplicar e interpretar), de que o processo hermenêutico é de suma importância para a construção histórico-tradicional do Direito poderá nos guiar rumo a concretização das garantias constitucionais, sem que caiamos nos perigos ainda vindouros da modernidade líquida. 2 INTEGRIDADE E COERÊNCIA DO DIREITO Antes de adentrarmos ao núcleo desta última parte, ou seja, a teoria da integridade e coerência do direito tal como composta por Ronald Dworkin, faz-se mister algumas pequenas ponderações sobre uma diferenciação argumentativa importante existente na obra do grande jusfi lósofo. Trata-se dos argumentos de política e argumentos de princípio.3 Os argumentos de política justifi cam uma decisão política e, na seara judicial, as decisões que se utilizam de tais argumentos protegem 3 Estes dois tipos de argumentação, segundo Dworkin, os utilizados em todo campo de Direito, de modo que qualquer argumento pode ser a um deles retomado e explicado, são mais detalhadamente expostos no terceiro item da parte primeira da obra Uma questão de princípio (DWORKIN, 2005, p. 105-153), embora o tema perpasse toda a doutrina de Dworkin. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 120 ou fomentam algum objetivo coletivo da comunidade (sociedade) como um todo, ainda que alguns direitos individuais ou direitos coletivos constitucionalmente previstos tenham de ser sacrifi cados para tanto. Argumentos de política são, por exemplo, os defendidos pela Administração Pública ao realocar recursos em momentos de grave necessidade (guerras, calamidades públicas, etc.) ou pelo Judiciário quando este proíbe a divulgação de segredos militares. Neste último caso, o direito à livre expressão garantido pela Constituição é afastado tendo em vista a proteção da sociedade nacional vista como um todo, ou seja o entendimento de que esta está indiscutivelmente mais segura se as outras potências não lhe conhecem os segredos bélicos. “Uma ‘política’ [é] aquele tipo de padrão que expõe um objetivo a ser alcançado, geralmente uma melhoria em alguma característica econômica, política ou social da comunidade”. (Dworkin apud GUEST, 2010, p. 65). Já os argumentos de princípio também justifi cam uma decisão política, mas a jurisprudência que se desenvolve a partir destes argumentos respeita ou garante um direito constitucionalmente previsto de um indivíduo ou de um grupo, independentemente se a sociedade como um todo (ou a maioria) ganha com isto. Um direito político é um objetivo político individualizado. Um indivíduo tem direito a certa oportunidade, recurso ou liberdade, se esta conta a favor de uma decisão política que tem probabilidade de promover ou proteger o estado de coisas em que ele usufrui o direito, mesmo quando nenhum outro objetivo político é servido e algum objetivo político é desservido com isso, e conta contra essa decisão o fato de que ela retardará ou colocará em perigo o estado de cosas, mesmo quando algum outro objetivo político é servido com isso. (Dworkin apud GUEST, 2010, p. 65). Este tipo de argumento calca-se exclusivamente nos direitos constitucionais que os indivíduos ou grupos tenham ou não de acordo unicamente com a Constituição e o Estado Democrático de Direito vigentes. A preponderância não é da sociedade como um todo, do indivíduo isoladamente considerado ou de grupos (por maiores que sejam), mas sim dos direitos e garantias que estes possuam segundo a ordem político- jurídica em que vivem. Em suma, os argumentos de princípios defendem direitos e os argumentos de política defendem metas. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 121 Segundo a doutrina dworkiana, são os argumentos de princípio os ínsitos à Constituição e ao Estado Democrático de Direito, isto pois, como explicado, tendem a proteger o núcleo de tais conquistas democráticas, mormente os direitos fundamentais e a própria funcionalidade (efi cácia) do Direito, além de ser muito menos maleável por injunções político- partidárias momentâneas, crises econômicas ou políticas, o que acaba, por fi m, a fortalecer a própria integridade do direito e do Pacto Constitucional. Ingressando agora verdadeiramente no tema da integridade e coerência do direito, é de se ter em conta que a responsabilidade política que as instituições públicas têm para os cidadãos, responsabilidade esta que advém da democracia, impede qualquer confusão entre equidade e padronização. Será a integridade apenas coerência (decidir casos semelhantes da mesma maneira) sob um nome mais grandioso? Isso depende do que entendemos por coerência ou casos semelhantes. Se uma instituição política só é coerente quando repete suas próprias decisões anteriores o mais fi el ou precisamente possível então a integridade não é coerência; é, ao mesmo tempo, mais e menos. A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca de fi delidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo. (DWORKIN, 2007, p. 253-254). A coerência pode ser defi nida como uma virtude política que as instituições públicas Administração, Judiciário e Legislativopossuem quando repetem suas próprias decisões anteriores o mais fi el ou precisamente possível. (DWORKIN, 2007, p. 253). Por sua vez, a integridade é também virtude política e, em grau superior à coerência, é exigência jurídico-política da democracia e do Estado Democrático de Direito ao impor às instituições públicas que as normas da sociedade a qual representam, sejam “abstratas” no Legislativo ou “concretas” no Judiciário e na Administração Pública, sejam criadas “de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção”. (DWORKIN, 2007, p. 267), ainda que seus cidadãos estejam “divididos quanto à natureza exata dos princípios de justiça e equidade corretos”. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 122 A integridade exige uma sintonia precisa entre o que é exigido pela justiça e o que é exigido pela consistência da tomada de decisões. Às vezes, ela parece um equilíbrio entre a integridade (consistência com a justiça) e o ideal de justiça, e sugere que a integridade é um tipo de passo abaixo da justiça – uma ‘segunda melhor opção’ (em oposição, poderíamos dizer, a um passo dentro dela). [...] Se as práticas da comunidade devem ser vistas com base na suposição de que as pessoas devem ser tratadas ‘como iguais’, vale a pena considerar como isso é diferente de ver o caso ideal na justiça e, então, sintonizar precisamente a prática ‘ajustá-la’, ao caso ideal, tanto quanto possível. (GUEST, 2010, p. 6). A situação do direito brasileiro é bastante complexa4. Os exemplos pululam acerca da completa falta de integridade (e coerência) de nossa legislação, quiçá de nossa Constituição, já modifi cada por mais de noventa emendas. Como exemplos, a desproporção gritante no Direito Penal. A severidade das penas no Direito Tributário, muitas vezes maior do que no crime. As leis benefi ciadoras das classes médias e altas.5 Por fi m, todo o imbróglio das discussões na Câmara dos Deputados quanto ao fi nanciamento privado de campanha6 e quanto à redução da maioridade penal7. Ressalte-se que, quanto ao primeiro tema, o Min. Gilmar Mendes fez uso das vistas por um ano e cinco meses e o fi nanciamento privado de campanhas políticas apenas voltou à pauta do STF após seu “afastamento” pelos deputados. 4 Dworkin como citado por STRECK e ABBOUD: “a força gravitacional do precedente não pode ser apreendida por nenhuma teoria que considere que a plena força do precedente está em sua força de promulgação, enquanto peça de legislação.” (2014, p. 69). Esta passagem refere-se à chamada commonlização do direito nacional através da jurisprudência vinculante (primeiramente as súmulas vinculantes e agora com o Novo Código de Processo Civil, principalmente o IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas) que, em realidade, nada tem a ver com a legítima common law, visto que o sistema jurídico nacional não pode ser imposto via legislação. 5 “O art. 9º da Lei 10.684/03 trouxe evidentes benefícios aos sonegadores de impostos e de contribuições sociais, ao introduzir a possibilidade de o sonegador fi car isento do crime em caso de pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia criminal. Enquanto isso, ao “cidadão-comum-não-sonegador”, em caso de crime contra o patrimônio em que não tenha restado prejuízo à vítima (restituição ou recuperação da res), há somente o benefício do desconto da pena (art. 16 do Código Penal).” (STRECK, 2014, p. 70). 6 COM MANOBRA DE CUNHA, Câmara aprova doação de empresas para partidos nas campanhas. O Globo, Rio de Janeiro, 27.05.15. Disponível em: http://oglobo.globo.com/ brasil/com-manobra-decunha-camara-aprova-doacao-de-empresas-para-partidos-nas- campanhas-16281981. Acesso em: 15.09.15. 7 APÓS MANOBRA, Câmara aprova proposta para reduzir maioridade. G1, São Paulo, Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/07/apos-rejeitar-pec-camara- aprova-novotexto-que-reduz-maioridade.html. Acesso em: 15.09.15. http://oglobo.globo.com/ http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/07/apos-rejeitar-pec-camara- Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 123 A perspectiva do direito como integridade implica que toda interpretação judicial tenha por fi nalidade uma descrição coerente da ordem jurídica em seu conjunto. Isso porque, em uma democracia, a interpretação do direito constitucional deve considerar a própria democracia. Assim, as decisões que interpretam o devido processo legal e a isonomia devem, ao serem concretizadas, necessariamente levar em conta todo o restante da principiologia constitucional. (ABBOUD, 2014, 463). O direito brasileiro não oferece nenhuma estabilidade ou segurança. Está a mercê de temporárias maiorias congressistas. A situação complica-se mais desta vez, pois a maioria atual, religiosamente conservadora, pretende (já conseguindo) a dissolução de conquistas democráticas importantes: a última em questão é o reconhecimento da união homoafetiva pelo STF que está para ser afastada através da aprovação, em comissão especial da Câmara dos Deputados, do Estatuto da Família, que defi ne como tal apenas aquelas formadas entre homem e mulher (o que ironicamente excluiria a própria família de Jesus Cristo). Há uma principiologia constitucional que garante a constitucionalidade da democracia, mesmo que os princípios não tenham visibilidade ôntica. Ora, o direito possui uma dimensão interpretativa. Essa dimensão interpretativa implica o dever de atribuir às práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de uma comunidade política. A integridade e a coerência devem garantir o DNA do direito nesse novo paradigma. (STRECK, 2014, p. 398). “A integridade diz respeito a princípios: o governo deve ter uma só voz ao se manifestar sobre a natureza desses direitos, sem negá-los, portanto, a nenhuma pessoa em momento algum”. (DWORKIN, 2007, p. 259). Ao substituir-se a expressão “governo” da citação acima por Judiciário (na verdade a expressão está como sinônimo para “instituição pública”) tem-se a exata defi nição dworkiana para a integridade do direito na jurisprudência. A integridade compreendida como virtude e responsabilidade políticas devida pelos juízes, como membros do Estado, e pelos políticos, gabaritados pelo sufrágio popular e respeito ao constituinte originário, aos indivíduos. Assim, a estratégia jurídico-política baseada nos direitos e garantias que os cidadãos tenham ou não segundo a Constituição, estratégia esta que contemple um conjunto único e coerente de princípios (ainda que inevitavelmente surjam discordâncias quanto a quais princípios Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 124 e à justeza deles), e não qualquer outra de cunho utilitarista, econômico ou que aposte maciçamente na discricionariedade dos juízes-ministros das Cortes Superiores para a uniformização das causas e processos(como vem acontecendo com nossa legislação processual) passa a ser uma exigência conjunta da democracia, da força normativa da Constituição e do próprio Estado Democrático de Direito que, para efetivar-se na seara judicial, terá de valer-se dos argumentos de princípio acima expostos. Por fi m, Uma democracia se consolida quando todos os Poderes da República apreendem que a Constituição é a explicitação do contrato social e o estatuto jurídico do político. Estranhamente, no entremeio de uma crise, que não é institucional e sim, política, alguns brasileiros – que se julgam mais virtuosos que os demais – querem fazer crer que a culpa da corrupção é a Constituição. É como se democracia fi zesse mal a um país: é como se fosse culpa da Constituição o afl oramento da corrupção em terrae brasilis. Ora, é preciso entender – e qualquer estudante de direito sabe disso – que só se pode convocar uma Constituinte – ou qualquerminiconstituinte – na hipótese de uma ruptura institucional, que deve ser grave, com as instituições inviabilizadas, povo na rua, economia em crise, etc. Para a convocação de uma assembleia constituinte deve haver uma ruptura com a ordem vigente. Enfi m, um golpe, uma revolução. Não se dissolve um regime democrático porque se quer fazer outro (como seria esse ‘outro’?). A Constituição é coisa séria, fruto de uma repactuação (‘we the people...’). E nela colocamos cláusulas pétreas e forma especial de elaborar emendas. A supremacia da Constituição estabelece impedimento para qualquer alteração em desacordo com o que o próprio constituinte originário estabeleceu. (STRECK, 2014, p. 399). Portanto, os conceitos de integridade e coerência do direito passam a ser armas importantes (inclusive previstos no NCPC – art. 926, resta ver se serão, como se deve, seguidos e respeitados) para não somente a manutenção da força normativa da Constituição e seus desideratos, principalmente os direitos fundamentais, como seu atingimento, pois a ela se dá o respeito máximo com vistas à efetivação. Tal importância assume cariz dramático ainda mais em momentos de instabilidade econômica e, principalmente, política, tais como nosso país vive, para que o Estado Democrático (e Social de Direito) e sua Constituição, as próprias conquistas democráticas, enfi m, não soçobrem sob o peso do pasto, da farda e da cruz. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 125 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em síntese do exposto, podemos destacar que a Constituição da República promulgada em 1988 trouxe como paradigma a necessidade de implementação de um Estado Democrático de Direito (ainda incipiente, diga-se de passagem), o que se deu a partir da previsão de tarefas dirigidas aos Poderes bem como a positivação ao longo de seu texto de um rico catálogo de Direitos e Garantias Fundamentais. Na pretensão de dar efi cácia à Constituição, soluções inspiradas na instrumentalidade do processo e celeridade processual passaram a ser prestigiadas no campo teórico e posteriormente prático processual e constitucional em detrimento do binômio interpretação-aplicação da norma, o que resultou em um fenômeno que mais parece um “fordismo jurídico”, no qual há algumas diretrizes interpretativas estabelecidas pelo empregador (Súmulas Vinculantes) devem compulsoriamente ser seguidas sem questionamento por todos os empregados de primeira instância. Esqueceu-se, neste afã esforço por instrumentos capazes de conferir celeridade ao processo, que o ato de interpretar é indissociável do processo de aplicação da norma, como já há tempos demonstrado pelo linguistic turn. Outrossim, na intersecção ente os campos político e jurídico, o cenário brasileiro é rico em exemplos acerca da falta de integridade (e coerência) de nossa legislação, quiçá de nossa Constituição, já modifi cada por mais de noventa emendas. Decorrente desse estado de coisas marcado pela previsão de mecanismos tendentes à tornar as tomadas de decisão judiciárias em processos mecanizados, desprezando-se a realidade dos fatos (muitas vezes complexos e minuciosos) bem como pelo desprestígio da coerência entre as decisões parlamentares e a vontade da Constituição (Konrad Hesse), que varia ao sabor dos discricionários interesses daqueles responsáveis por concretizar a Constituição (Congresso Nacional), é o completo detrimento da estabilidade e segurança no Direito. Em prestígio ao conceito de integridade, tão fundamental à concretização de um sólido Estado Democrático de Direito, em que as decisões são fundamentadas em princípios, é digno de destaque a previsão normativa consubstanciada no art. 926 do Novo Código de Processo Civil. Resta saber em que medida se dará a efi cácia deste novo preceito. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 126 REFERÊNCIAS ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. APÓS MANOBRA, Câmara aprova proposta para reduzir maioridade. G1, São Paulo, 02.07.15. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/ noticia/2015/07/apos-rejeitar-pec-camara-aprovanovo-texto-que-reduz- maioridade.html. Acesso em: 07 jul. 2015. COM MANOBRA DE CUNHA, Câmara aprova doação de empresas para partidos nas campanhas. O Globo, Rio de Janeiro, 27.05.15. 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O CNJ, instituto fruto de uma movimentação que recebeu a alcunha de Reforma Judiciária, vem, em um contexto caracterizado pela ascensão institucional, pela representatividade política e pela necessidade de preservação da independência do Judiciário, promover a comunicação de tal Poder com a sociedade e com as outras instituições políticas. (BARROSO, 2005, p. 123 – 124). A Constituição Federal de 1988, nos ensinamentos de José Afonso da Silva, imprimiu a noção de que a cidadania é a “consciência de pertinência à sociedade estatal como titular dos direitos fundamentais, da dignidade como pessoahumana, da integração participativa no processo do poder com a igual consciência de que essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à dignidade do outro”. (1999, p. 11). No rol dos direitos fundamentais, consta o direito à jurisdição, oferecida, em âmbito estatal, pelo Poder Judiciário. Daí a importância de pesquisas que objetivem captar como atua o CNJ, responsável, dentre outras atribuições, pela implementação de práticas que tornem a atividade jurisdicional satisfatória. São objetivos específi cos deste estudo: i) assimilar como se deu a criação do CNJ a partir dos debates para a Reforma Judiciária; e ii) com base nas competências constitucionais do CNJ, apreender se o instituto funciona, realmente, como mecanismo de accountability horizontal. De Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais UNESP, campus de Franca. Advogada. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP, campus de Franca. Advogado. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 130 forma a atingirmos os objetivos propostos, utilizaremos o método de pesquisa dedutivo bibliográfi co. Assim, revisaremos parte da literatura jurídica que versa sobre o Poder Judiciário, sobre o Conselho Nacional de Justiça, sobre accountability, sobre direitos da cidadania. A análise das fontes secundárias relativas ao tema exposto culminará no delineamento de nosso objetivo geral, qual seja, perceber como a atuação do CNJ contribui para a concretização do direito à prestação jurisdicional apropriada. 1 A REFORMA JUDICIÁRIA E A CRIAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA A inquietação que se convencionou chamar de “Reforma do Judiciário” foi positivada pela Emenda Constitucional n. 45, em vigor desde 3 de janeiro de 2005. Fruto de um projeto que tramitou no Congresso Nacional por mais de uma década, a referida Emenda trouxe inovações substanciais para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional brasileira, intentando modernizar e tornar mais efi cientes as organizações do Poder Judiciário e do Ministério Público, auxiliar o acesso dos cidadãos à atividade jurisdicional, minorar o rol dos recursos submetidos à apreciação dos tribunais, facilitar a tramitação dos processos, efetuar a aplicação dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, com sua rápida inserção no ordenamento jurídico pátrio. (SOARES FILHO, 2005, p. 72). Mesmo que o Poder Judiciário tenha sofrido, ao longo dos séculos, uma série de enxovalhos e críticas, a situação do início do milênio diferia de toda a experiência anterior em, ao menos, dois enfoques: i) “[...] a justiça transformou-se em questão percebida como problemática por amplos setores da população, da classe política e dos operadores do Direito, passando a constar da agenda de reformas” (SADEK, 2004, p. 83); ii) “[...] tem diminuído consideravelmente o grau de tolerância com a baixa efi ciência do sistema judicial e, simultaneamente, aumentado a corrosão no prestígio do Judiciário”. (SADEK, 2004, p. 83). O cenário encontrado quando da aprovação da EC n. 45 era (e continua sendo) marcado por uma operação de preponderância do Poder Judiciário. Sobre esta marcha de excelsitude do Poder, que remonta à promulgação da Constituição Federal, assim se posiciona Barroso: Sob a Constituição de 1988, recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 131 e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Embora seus métodos e argumentos sejam jurídicos, não é possível deixar de reconhecer a repercussão, sobre o interesse publico, de decisões judiciais sobre os temas mais variados, que incluem o valor das tarifas públicas, a defi nição das hipóteses legitimas de interrupção da gestação ou a defi nição dos poderes do Ministério Público na investigação criminal. (2005, p. 123). Para Sadek, a Constituição de 1988, assim como as Constituições resultantes dos processos de redemocratização no século XX, difere muito das anteriores, exemplos típicos do constitucionalismo moderno: enquanto estas ambicionavam limitar o poder dos monarcas, afi rmar a autoridade da Lei e proteger as liberdades individuais, aquelas enfatizam os valores democráticos, visando a realização da justiça social, a promoção de direitos, a incorporação de valores da igualdade social, econômica e cultural. (2004, p. 79). O foco das Constituições cambiou, portanto, passando a prestar atenção a “questões concretas, de natureza social, política e econômica, fortalecendo a inclinação do Direito de tornar-se pragmático, embaçando as fronteiras entre o Direito e a política”. (SADEK, 2004, p. 79). Daí deriva, igualmente, a propensão das Constituições mais novas serem bastante detalhadas, buscando resolver temas considerados expressivos, bem como especifi car metas, regras e políticas de governo. (SADEK, 2004, p. 80). Concomitantemente à percepção de primazia do Judiciário, Mônica Teresa Costa Sousa identifi ca, ao longo das décadas de 1990 e 2000, um verdadeiro projeto de reforma do Estado e modernização de práticas administrativas em território nacional. Vejamos. A jurista determina que a década de 1980, detentora da alcunha de “década perdida”, assinala a crise que arrasou os países da América Latina, nos contextos organizacional e fi scal, “crise esta que se deu em razão do próprio modelo de desenvolvimento experimentado pelos países latinos entre as décadas de 1930 e 1970”. (SOUSA, 2014, p. 357). Nesta atmosfera de recrudescimento da administração pública, alargou-se o Estado e infl acionou-se a burocratização. Tal situação, “[...] em meados da década de 1990 não mais tinha lugar em um ambiente socialmente volátil, haja vista o processo de expansão das liberdades individuais e sociais, proporcionado pela CF/1988”. (SOUSA, 2014, p. 358). De modo que, tendo em vista a implementação da efi ciência e da boa administração, o governo federal, com início no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, desencadeia uma sucessão de reformas com Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 132 o objetivo de reorganizar e de reposicionar o Estado brasileiro em todas as suas esferas. (SOUSA, 2014, p. 358). Para Sousa, embora e EC n. 45 seja posterior ao governo do ex-presidente Fernando Henrique, é indiscutível que tal projeto tenha sido “[...] mantido pelos governos seguintes (Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff), vide a própria criação do CNJ, decorrente direto deste novo modelo de administração”. (2014, p. 358). 2 AS COMPETÊNCIAS E AS ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Duas semanas antes da publicação da EC n. 45, no dia 15 de dezembro de 2004, foi publicada no Diário Ofi cial da União a Exposição de Motivos n. 204. Este documento, denominado “Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”, consubstanciava, dentre inúmeros compromissos fundamentais, a implementação da Reforma Constitucional do Judiciário, com destaque para a instalação do Conselho Nacional de Justiça e a defl agração dos trabalhos da Comissão Especial Mista do Congresso Nacional, designada à aprovação de medidas legislativas que ampliassem o acesso à Justiça e que tornassem mais ágil a prestação jurisdicional (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2004): Poucos problemas nacionais possuem tanto consenso no tocante aos diagnósticos quanto à questão judiciária. A morosidade dos processos judiciais e a baixa efi cácia de suas decisões retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplência, geram impunidade e solapama crença dos cidadãos no regime democrático. Em face do gigantesco esforço expendido sobretudo nos últimos dez anos, produziram-se dezenas de documentos sobre a crise do Judiciário brasileiro, acompanhados de notáveis propostas visando ao seu aprimoramento. Os próprios Tribunais e as associações de magistrados têm estado à frente desse processo, com signifi cativas proposições e com muitas iniciativas inovadoras, a demonstrar que não há óbices corporativistas a que mais avanços reais sejam conquistados. O Poder Legislativo não tem se eximido da tarefa de contribuir para um Judiciário melhor, como demonstram a recém-promulgada reforma constitucional (EC nº 45/2004) e várias modifi cações nas leis processuais. A reforma do sistema judicial tornou-se prioridade também para o Poder Executivo, que criou a Secretaria de Reforma do Judiciário no âmbito do Ministério da Justiça, a qual tem colaborado na Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 133 sistematização de propostas e em mudanças administrativas. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2004). Com sede na Capital Federal, o Conselho Nacional de Justiça é composto, nos termos do art. 103-B, CF, por quinze membros, com mandato de dois anos, admitida uma recondução. O Texto constitucional determina que, dentre tais membros, constarão nove magistrados, dois membros do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Tem-se, ainda que o CNJ, de acordo com o art. 92, I-A, CF, pertence ao próprio Poder Judiciário. Carlos Eduardo de Abreu Boucault oferece tal perspectiva sobre a questão: Na verdade, essa problemática encontra suas raízes no fenômeno da institucionalização do CNJ, como um segmento orgânico do sucedâneo do Conselho Nacional da Magistratura, entidade originária da Emenda Constitucional n. 7, de 13 de abril de 1977, a qual era composta por sete ministros do Supremo Tribunal Federal, escolhidos pelos próprios ministros e cuja atribuição precípua defi nia-se como essencialmente de natureza correcional com relação a atos praticados pelos juízes que, se condenados por ilicitudes de toda ordem, seriam punidos com disponibilidade ou aposentadoria. [...] Predomina neste contexto uma ilustração do corporativismo, fator arraigado à cultura institucional da organização política da História do Brasil, expresso pelas composições políticas na articulação estruturante das instâncias do Judiciário, que mantém seus estamentos imunes a qualquer forma de controle externo que visualize os meandros silentes e mecanismos sigilosos de processo de caráter disciplinar envolvendo membros na carreira da magistratura. (BOUCAULT, 2014, p. 356). Longe de se pretender corporativista, o Conselho mira ser uma solução democrática e transparente para o descrédito generalizado a respeito de inúmeros temas relacionados à prática jurisdicional. Em seu site, o CNJ informa que sua missão consiste em contribuir para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, efi ciência e efetividade em benefício da Sociedade. Para tanto, empenha-se em zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pela efetivação plena do Estatuto da Magistratura; em defi nir o planejamento estratégico, os planos de metas e os programas de avaliação institucional do Poder Judiciário; em receber reclamações, petições eletrônicas e representações contra membros ou órgãos do Judiciário; em julgar processos disciplinares; em implementar Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 134 melhores práticas que privilegiem a celeridade, através da elaboração e publicação semestral de relatório estatístico sobre movimentação processual e outros indicadores pertinentes à atividade jurisdicional em todo o País. (CNJ, 2015). Adequa-se, desta forma, aos ditames constitucionais expressos no art. 103-B, §4º, CF, que confere competência ao CNJ, em linhas gerais, de controlar a atuação administrativa e fi nanceira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Sousa endossa que o órgão, por ter sido concebido a partir de um novo modelo de administrar a coisa pública, propicia que qualquer cidadão engendre sua atuação – bastando apenas que a representação relacione-se à competência institucional do Conselho, e atenda às determinações do art. 42 do Regimento Interno do CNJ. (2014, p. 364). A pesquisadora refl ete, fi nalmente, que a harmonização a este novo modelo de Administração Pública brasileira se refl ete, também, “nas disposições do art. 4º, II, do RICNJ, pois é compromisso deste Conselho zelar pela ‘observância do art. 37 da CF/1988 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário”. (SOUSA, 2014, p. 364). 3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA COMO MECANISMO DE ACCOUNTABILITY JUDICIAL Anna Maria Campos publicou, em 1990, o estudo “Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português?”, em um período marcado pela reestruturação política e democrática do país e de suas instituições. Perplexa com o funcionamento moroso e duvidoso da Administração Pública brasileira, a estudiosa tratou de comparar a vivência da accountability em solo estadunidense à experiência pátria: Daí decorreu que a accountability começou a ser entendida como questão de democracia. Quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accountability. E a accountability governamental tende a acompanhar o avanço de valores democráticos, tais como igualdade, dignidade humana, participação, representatividade. A inevitável necessidade do desenvolvimento de estruturas burocráticas para atendimento das responsabilidades do Estado traz consigo a necessidade da proteção dos direitos do cidadão contra os usos (e abusos) do poder pelo governo como um todo, ou de qualquer indivíduo investido em função pública. Na proporção em que as organizações ofi ciais aumentam Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 135 seu tamanho, complexidade e penetração na vida do cidadão comum, cresce também a necessidade de salvaguardar este último dos riscos da concentração de poder nas mãos dos servidores públicos, quando esses não são representantes ativos dos cidadãos [...] (CAMPOS, 1990, p. 4). Sem poder fornecer um sinônimo para accountability, Campos dissertou que uma sociedade, para tornar-se capacitada para o exercício do controle sobre o Estado, precisa, antes de tudo, atingir um certo nível de organização de seus interesses públicos e privados. (1990, p. 5). Isto porque existe um caráter de obrigação embutido no conceito de accountability – se ela “não é sentida subjetivamente (da pessoa perante si mesma) pelo detentor da função pública, deverá ser exigida ‘de fora para dentro’; deverá ser compelida pela possibilidade da atribuição de prêmios e castigos àquele que se reconhece como responsável”. (CAMPOS, 1990, p. 3). Pinho e Sacramento, retomando, passadas quase três décadas, o diálogo com Campos, afi rmam que, ainda hoje, grande parte dos trabalhos que versam sobre accountability mencionam expressamente a difi culdade de se traduzir o termo, adotando, desta forma, o pressuposto de que não existe, em língua portuguesa, um vocábulo que, sozinho, expresse todo o signifi cado de accountability (2009, p. 1346). Em busca de uma síntese, os autores determinam que “accountability encerra a responsabilidade, a obrigação e a responsabilização de quem ocupa um cargo em prestar contas segundo os parâmetros da lei, estando envolvida a possibilidade de ônus, o que seria a pena para o não cumprimento dessa diretiva”. (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p. 1348). Não deixam, de toda forma, de mencionar as inquietações de Schedler (1999 apud PINHO; SACRAMENTO, 2009, p. 1349), paraquem o signifi cado de accountability, muito embora seja largamente utilizado por instituições fi nanceiras, líderes de partidos, ativistas de bases, jornalistas, juristas e cientistas políticos, permanece evasivo. Guillermo O’Donnell diferencia, em accountability, as dimensões vertical e horizontal. Defi ne esta como a existência de agências ou organismos estatais que, imbuídos do direito e do poder legal, são capacitadas para realizar uma série de ações “[...] que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou emissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualifi cadas como delituosas”. (O’DONNELL, 1998, p. 40). Os mecanismos de accountability horizontal incluem as instituições do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, se estendendo, também, por Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 136 inúmeras agências de supervisão, como os ombudsmen e as instâncias encarregadas de fi scalizar as prestações de contas. (O’DONNELL, 1998, p. 42). A dimensão vertical da accountability, por sua vez, se dá por intermédio de eleições, nas quais os cidadãos votantes podem “[...] punir ou premiar um mandatário votando a seu favor ou contra ele ou os candidatos que apoie na eleição seguinte”. (O’DONNELL, 1998, p. 28): Eleições, reivindicações sociais que possam ser normalmente proferidas, sem que se corra o risco de coerção, e cobertura regular pela mídia ao menos das mais visíveis dessa reivindicações e de atos supostamente ilícitos de autoridades públicas são dimensões do que chamo de "accountability vertical". São ações realizadas, individualmente ou por algum tipo de ação organizada e/ou coletiva, com referência àqueles que ocupam posições em instituições do Estado, eleitos ou não. (O’DONNELL, 1998, p. 28). Pinho e Sacramento sinterizam que, para O’Donnell, “a dimensão vertical pressupõe uma ação entre desiguais – cidadãos versus representantes – a dimensão horizontal pressupõe uma relação entre iguais – checks and balances entre os poderes constituídos” (2009, p. 1351). O CNJ, na visão de Tomio e Robl Filho, é um órgão responsável por exercer accountability sobre outros agentes estatais como tribunais, magistrados, serviços auxiliares, prestadores de serviço notarial e de registro que atuam por delegação. Desse modo, a principal modalidade de accountability praticada pelo CNJ é a accountability horizontal, mas o órgão também desempenha elementos de accountability vertical não eleitoral (2013, p. 41): Essa competência (fi scalizar legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi ciência) possui principalmente função de accountability horizontal, já que o CNJ (agente estatal) fi scaliza a concretização de valores da administração pública. Por sua vez, a concretização desses princípios, como a publicidade, permite a realização de accountability social (vertical não eleitoral) sobre magistrados e serviços auxiliares, sendo aplicadas as sanções de exposição pública ou de denúncias às ouvidorias. [...] Por outro lado, a publicação dessas informações permite ao povo, mandante dos agentes estatais eleitos ou não eleitos, e a grupos da sociedade civil exercerem a accountability social sobre o poder Judiciário. (TOMIO; ROBL FILHO, 2013, p 42). Munidos dos dados e informações fornecidos pelo CNJ, os cidadãos e outros grupos da sociedade civil tornam-se capazes de debater Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 137 a atuação de todo o Poder Judiciário, “questionando se a independência judicial institucional está sendo bem utilizada para prestar uma jurisdição adequada e célere aos cidadãos”. (TOMIO; ROBL FILHO, 2013, p. 42). A concepção de Sousa é ligeiramente diferente. Para a jurista, o CNJ exerce accountability horizontal, uma vez que não age como mero sancionador ou controlador das ações do Judiciário, mas atua como uma agência estatal de monitoramento e aprimoramento (SOUSA, 2014, p. 357). Diante das opiniões aqui apresentadas, cabe ainda questionar: o Conselho Nacional de Justiça, integrante do próprio Poder Judiciário, pratica, real e especifi camente, accountability horizontal? Afi nal, na concepção de O’Donnell (1998), a accountability horizontal é exercida por agentes ou agência estatais de forma a fi scalizar e responsabilizar outros agentes ou agências do Estado. Ainda não podemos fornecer esta resposta. CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho aqui apresentado, desenvolvido especialmente para que fosse apresentado no III Seminário de Direito do Estado – Teorias da Constituição e Novas Concepções de Cidadania, consiste na primeira incursão dos autores na seara ainda incerta da accountability. Assim sendo, não foram capazes (o trabalho e os pesquisadores) de cravarem conclusões estanques e convictas acerca da problemática levantada ao longo do desenvolvimento. O texto, antes de mais nada, representa uma tentativa honesta de compreender melhor como o Conselho Nacional de Justiça, ao exercer sua atribuição de controlar a atuação administrativa e fi nanceira do Poder Judiciário e de observar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, funciona como mecanismo de accountability. Boaventura de Sousa Santos inicia sua obra “Para uma revolução democrática da Justiça“ com a seguinte frase: “Somos herdeiros das promessas da modernidade e, muito embora as promessas tenham sido auspiciosas e grandiloquentes (igualdade, liberdade, fraternidade), temos acumulado um espólio de dívidas”. (2015, p. 6). O Poder Judiciário não escapa a esta funesta herança. Amontoam-se processos nos gabinetes e cartórios, acumulam-se julgados pouco ortodoxos, dentre outras questões. A Reforma do Judiciário, ao instituir o Conselho Nacional de Justiça, procurou implementar os ditames democráticos e permitir Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 138 que o Poder, detentor de tantas garantias, pudesse ser fi scalizado e responsabilizado por suas eventuais faltas. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da criação do Conselho Nacional de Justiça. Revista Dir. Proc. Geral, Rio de Janeiro, v. 59, p. 123–150, 2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm. Acesso em 19 jul. 2015. BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu. Institucionalização e Constitucionalização do Conselho Nacional de Justiça: a expressão de uma instância confl itiva no Poder Judiciário e seu refl exo na garantir ao princípio isonômico como exercício dos direitos individuais. In: BRANDÃ, Cláudio (coord.). 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Accountability e Poder Judiciário: das razões de existir do Conselho Nacional de Justiça. Revista da AJURIS, v. 41, n. 136, p. 347–369, dez. 2014. TOMIO, Fabrício Ricardo de Limas; ROBL FILHO, Ilton Norberto. Accountability e independência judiciais: uma análise da competência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Revista de Sociologia e Política, v. 21, n. 45, p. 29–46, mar. 2013. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 141 O PAPEL DO DIREITO NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: SOBRE COMO A TEORIA CONSTITUCIONAL SUBSTANCIALISTA AUXILIA NA REALIZAÇÃO DOS DIREITOS DE CIDADANIA NA PERSPECTIVA DOS EXCLUÍDOS DO PROCESSO POLÍTICO TRADICIONAL Henrique Duz Hass* INTRODUÇÃO Muito se discute a respeito dos papéis do Estado e do Direito na perspectiva da realização dos ditos direitos de cidadania.1 Mas é preciso fi car atento para que as apropriações teóricas não se distanciem do contexto sócio-político de uma dada conjuntura. Países que apresentam uma inserção na modernidade de forma tardia – quer seja pela passagem por regimes políticos autoritários, distanciados das práticas sociais emancipatórias e garantidoras da liberdade e igualdade ou, ainda, em razão de uma simples política econômica alheia a tais prioridades – merecem um olhar diferenciado acerca de como o Poder Público e a dogmática jurídica deve ser concebida, administrada e praticada. Algumas particularidades, dissolvidas que estão nos respectivos hábitos sócio-políticos, acabam fazendo com que o padrão dogmático mais aceito e praticado no “campo jurídico” não esteja devidamente alinhado aos desideratos do modelo constitucional assumido. Neste sentido, é possível constatar que há uma crise de paradigmas que obstaculiza o acontecer da Constituição.2 Há uma aparente falta de correspondência entre o paradigma de Direito vigente e o paradigma de Estado adotado, que compromete a satisfação deste último em alguns pontos específi cos, que circunscrevem os denominados direitos de cidadania. Se o gozo destes direitos básicos pressupõe uma postura ativa do Estado e se a Constituição condensa normativamente os valores * Bacharel e Mestrando em Direito pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP Campus de Franca, na linha de pesquisa “A Cidadania Participativa nas Políticas Públicas” na área de concentração “Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania”. 1 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 21. 2 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 297. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 142 indispensáveis ao exercício da cidadania, nada mais importante que existam meios a realizá-los. Assim, através do método dedutivo-bibliográfi co, que consiste na apreensão dedutiva das diversas teorias que orbitam o assunto, em prol da construção de um posicionamento sufi cientemente fundamentado acerca dos objetivos delineados, buscaremos analisar em que medida a teoria constitucional substancialista possibilitaria uma maior efetivação destes direitos, especialmente para os setores da população que se encontram à margem do processo político tradicional, tendo em vista a insufi ciência deste para a formação substancial da cidadania e, ainda, o paradigma do Estado Democrático de Direito. 1 OS DIREITOS DE CIDADANIA NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Naturalmente, quando se fala em direitos de cidadania, ou no conceito de cidadania propriamente dito, nos deparamos com uma indeterminação, uma disposição muito ampla, cuja abrangência precisa ser mais especifi camente delimitada. Da concepção aristotélica de cidadania, enquanto direito reservado a indivíduos dotados da qualidade de cidadãos e que gozariam do direito ao voto e à participação no poder público, os direitos de cidadania incorporariam a noção liberal de liberdade e, mais tarde, agregariam ao seu conceito pressupostos de uma perspectiva universalizante e emancipatória a fi m de confi gurar a ideia de cidadão ativo e participativo, cuja atuação vitalizaria a própria democracia. Segundo o entendimento arendtiano, o cidadão, identifi cado pelo signo do “cidadão-herói”, é aquele que dispõe do discernimento individual obtido mediante o aporte das faculdades do pensamento e do juízo, que mobiliza sua ação para o mundo sob uma postura ética e política.3 Isto nos remete a ideia de cidadania como aptidão à participação política no espaço público, local onde se dá o diálogo entre os cidadãos e as instituições públicas no intuito de promover uma discussão plural de opiniões e a tomada de decisões. Defi ne-se, pois, cidadania como a ação política de 3 FLENIK, Marilucia; KOZICKI, Katya. A cidadania e o estado democrático de direito. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Disponível em: http://www. conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/11_717.pdf. Acesso em 21 set. 2015. p.788. http://www. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 143 indivíduos que buscam na esfera do espaço público da pluralidade a realização da liberdade.4 No entanto, como falar de cidadania mediante a politização do cidadão, de discernimento do indivíduo, de organização política, de postura ativa, crítica e construtiva sem a fruição de direitos fundamentais básicos que possibilitem a autodeterminação e o gozo da liberdade fática? Como bem observa Barcellos5, não há como se falar em “controle político- social” se a sociedade que deveria fazê-lo não tem condições mínimas que fomentem sua autonomia e liberdade, pressupostos de uma participação consciente e livre do processo político democrático e do diálogo com os agentes públicos. Falar destes pressupostos nos remete a analisar o conceito de cidadania na perspectiva do Estado Democrático de Direito, o que signifi ca colocar a liberdade e a igualdade como valores essenciais. E, ainda, insta que nos preocupemos com uma dimensão de direitos fundamentais que vislumbra realizar tais pressupostos. Os direitos de cidadania, portanto, visam à construção de elementos base para o exercício de uma democracia participativa plena. Mas esta necessita da realização de alguns pressupostos, dentre os quais destacam- se os direitos de participação política, os direitos de liberdade, e, também, os direitos de igualdade, caracterizados pelos fundamentais de segunda geração, atentos à viabilização de alguns valores como a igualdade material, a liberdade fática, a autodeterminação e as “promessas da modernidade”.6 Os direitos de cidadania evoluíram em um processo não linear que observa certa correspondência histórico-social, ou seja, guardam relação com o momento histórico e com o modelo de Estado vigente. No EstadoLiberal de Direito, o caráter abstencionista estatal deixa livre o espaço às forças econômicas e adota uma postura jurídica que se considera a mais benéfi ca para o desenvolvimento do capitalismo inicial. Entretanto, a preocupação com o poder absoluto do Estado propugna a proteção da liberdade e da propriedade dos indivíduos face à autoridade estatal, garantindo, assim, a exaltação do status do homem como livres 4 RAMOS, César Augusto. Hannah Arendt e os elementos constitutivos de um conceito não liberal de cidadania in Revista Filos, Curitiba: Aurora, v. 22, n. 30, jan./ jun. 2010. p. 268-69. 5 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático In: Revista de Direito do Estado, v. 3, 2006. p. 29. 6 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 26. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 144 e iguais, além da consagração dos direitos fundamentais individuais no constitucionalismo. Entretanto, o avanço da industrialização fi zera repensar o conceito liberal de igualdade. A institucionalização do capitalismo maduro e o predomínio da autonomia da vontade amparada pela ideia de igualdade formal prejudicam em muito as condições de vida da maior parcela da sociedade, ao ponto que tornou-se imprescindível uma mudança de postura estatal ilustrada pelo Estado Social de Direito, abdicando-se do absenteísmo para intervir nas relações econômicas e na distribuição de bens. E, ainda, no que tange ao âmbito jurídico, o Estado transvestiu-se da mentalidade de que a garantia da democracia pressupunha não só uma estrutura jurídica e um regime político, mas um sistema de vida fundado na promoção de direitos econômicos, sociais e culturais, os quais fi zeram emergir a esfera dos direitos fundamentais sociais, atentos à redução da desigualdade e à concretização da igualdade material.7 Ainda que exista a crítica de enunciada por Boaventura que diz que o Estado Social e a consagração dos direitos sociais nas sociedades capitalistas foi algo arquitetado para compatibilizar as promessas da modernidade com o desenvolvimento capitalista8, o interessante é que tais conjecturas acabaram por infl uenciar o constitucionalismo e, por conseguinte, a escolha de modelo estatal. Os direitos de cidadania evoluíram de tal forma que passaram a integrar a primeira e segunda dimensões dos direitos fundamentais, os quais, uma vez consagrados nas constituições, formaram uma moldura jurídica que vincula a atuação do Estado a realização dos valores neles constantes. É neste sentido que os direitos de cidadania se relacionam com o Estado Democrático de Direito, na medida em que é compreendido como um novo paradigma que pretende transformar a produção capitalista e a organização social nela inerente em níveis superiores de igualdade e liberdade, através da concretização dos direitos fundamentais9, especialmente os de segunda geração – que por sua própria natureza necessitam de uma postura ativa do Estado – tendo em vista satisfazer as condições mínimas necessárias para que o indivíduo possa participar do processo político democrático em sua plenitude. 7 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O controle de políticas públicas: um desafi o à jurisdição constitucional In Revista de Direito do Estado, v. 14, 2009. p. 112. 8 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 22. 9 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 37. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 145 O qualifi cativo “democrático” estabelece uma práxis política que modifi que a estrutura econômica e social, e também o sistema de produção de bens, para realizar as promessas da modernidade. Para isso, a Lei e a Constituição passam a uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado. Esta vinculação estatal é importante uma vez que se percebe que um dos âmbitos mais elementares dos direitos de cidadania, os direitos sociais, são eminentemente prestacionais. As políticas (neo)liberais não são atentas a uma forma de atuação que lhes são contrárias ao seu funcionamento e, ainda, defendem a minimização do Estado. Logo, é imprescindível para a realização destes direitos a existência de um Estado forte e interventor, nos moldes do Estado Democrático de Direito. Ademais, a preocupação do Estado para com os desideratos enunciados pelos direitos fundamentais sociais são de extrema relevância em países que não passaram pelo Estado Social, onde a função social do Estado não foi estabelecida e, ainda, fora substituída sumariamente pela agenda neoliberal. Nestes contextos, onde o Brasil está inserido, o enfraquecimento das instituições públicas e a desregulamentação da política e da economia fez prejudicar a implementação destes direitos sociais, tornando como consequência desta modernidade tardia a existência somente de um “simulacro de modernidade”.10 Em nosso país, as promessas da modernidade não se realizaram, ocasionando um défi cit social que só as instituições públicas podem defender, atuando contra o neoliberalismo pós-moderno na garantia de direitos num contexto hostil de globalização e orientação política neoliberal. O dilema é: quando mais precisamos de uma postura estatal positiva, prestacional, para a satisfação dos direitos sociais enquanto pressuposto da cidadania, mais o Estado, único agente capaz de enfrentar as desigualdades sociais, se encolhe. Ocorre que aceitar estes pressupostos implica numa redefi nição da política. Não que se deva descartar a proteção a interesses particulares e o processo contemporâneo que dá vida à nossa sociedade. Mas trata-se de retomar uma estrutura de atuação governamental que favoreça a esfera de construção destes pressupostos de cidadania. E, ainda, cujo exercício não seja enviesado por uma postura política que expresse os interesses pragmáticos de determinados grupos sociais e alheio à politização do cidadão e à tutela dos direitos fundamentais. 10 A expressão é de Vieira, José Ribas. Teoria do Estado. RJ: Lumen Juris, 1995. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 146 Por isso é que se torna imprescindível a existência e a assimilação de uma teoria constitucional alinhada a este caráter intervencionista estatal, para assegurar à lei e às normas constitucionais a força normativa necessária e apta a vincular os governos a realização de tais preceitos. A principal característica do Estado Democrático de Direito é a posição do Estado como garantidor de direitos e garantias fundamentais de todos. Que não apenas os proclame, mas que seja de fato um instrumento do arcabouço jurídico capaz de constituir a vida plural e garantir a efetividade de suas normas. Não basta a lei, é necessária uma postura política atuante e preocupada com o fortalecimento dos direitos de cidadania. Faz-se mister uma dogmática jurídica alinhada a ideia de Estado criado pela opinião e fortalecido pelos cidadãos; não a concepção de Estado criado pelo poder. Interessa, assim, fomentar a existência de um espaço público e de um modelo social apto a se manifestar e a ser ouvido, orientado pela qualidade de vida compartilhada e pela tentativa de edifi car uma estrutura social que avance em favor dos direitos de seus cidadãos e, simultaneamente, previna a si mesma de cometer as mesmas injustiças e exclusões que se verifi cavam nas sociedades passadas. Esta questãoestá inserida na perspectiva do neoconstitucionalismo ou no estado do constitucionalismo contemporâneo, o qual compreende a Constituição como um fenômeno humano e histórico que é e como norma jurídica suprema, dotada de uma força jurídica determinante do direito constitucional.11 A partir da incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, em resposta às opressões e injustiças causadas pelos antigos regimes políticos e, ainda, em virtude da inefetividade da tradicional democracia representativa, que tem se mostrado ilegítima para atuar como instrumento de defesa da liberdade, da igualdade e da justiça, a concretização das expectativas de cidadania se desloca para a implementação de uma dogmática jurídica instrumentalizada segundo as premissas da a) normatividade das normas constitucionais; b) superioridade da Constituição sobre o restante do ordenamento jurídico e; c) centralidade do texto constitucional no sistema jurídico. Tudo isso a fi m de formular uma necessária vinculação estatal embasada por um consenso mínimo de objetivos e posturas as quais estariam fora da discricionariedade política ordinária. Não se trata de substituição do político pelo jurídico, mas de limitação do político pelo jurídico com vista à realização dos direitos fundamentais que necessitam 11 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 11. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 147 de uma postura ativa do estado, os quais consubstanciam-se não somente em fi ns do constitucionalismo contemporâneo ou em núcleo mínimo da dignidade humana, mas também, e mais importante nos termos deste estudo, em condição prévia da cidadania. Assim, sem abdicar das lutas pelas vias do processo político tradicional, há de se concordar que o Direito não pode ser mais visto como mera racionalidade instrumental da política. A dogmática jurídica, num contexto de desigualdades, de inefetividade dos direitos sociais – e, por conseguinte, dos direitos de cidadania – e, ainda, de ilegitimidade política em satisfazer tais demandas, pode se tornar importante ferramenta. O domínio da lei pode impor restrições e defi nir obrigações efetivas ao poder que, simultaneamente, defenda o cidadão das intromissões do mesmo e, também, lhe dá condições de constituir-se em cidadão politizado. Entretanto, temos sérias divergências justeóricas, tanto no que concerne as teorias constitucionais quanto às tangentes às teorias do Direito, que questionam a necessidade desta função intervencionista do Direito e do Estado. 2 AS TEORIAS CONSTITUCIONAIS NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DE CIDADANIA DOS EXCLUÍDOS DO PROCESSO POLÍTICO TRADICIONAL Aceito que os direitos de cidadania, na perspectiva do Estado Democrático de Direito, se confundem com os direitos fundamentais e que se faz necessária uma dogmática jurídica alinhada à consecução destes objetivos, dando uma dimensão coativa a esfera dos direitos formalmente existentes, e tendo em vista um contexto fático de défi cit social e de desinteresse do processo do processo democrático tradicional em realizar uma democracia substancial, partimos para as próximas considerações. O conceito de Estado Democrático de Direito pressupõe a valorização do jurídico e nos leva a uma rediscussão do papel do Direito e do Poder Judiciário, sobretudo em países como o Brasil, cujo modelo constitucional adotado propugna pela realização de direitos fundamentais. Entretanto, diante deste redimensionamento causado pelo advento do Estado Democrático, do neoconstitucionalismo e, por que não, pela consagração dos direitos de cidadania nas Constituições, questiona-se a legitimidade teórica do Direito em intervir na política, dotando os poderes eminentemente políticos de tarefas que não são erigidas diretamente pela formação democrática de vontades. Ou seja, pode o Direito defi nir Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 148 obrigações ao Estado que vincule a sua atuação em favor da realização dos direitos de cidadania? Em face desta problemática, temos duas teorias constitucionais que divergem: a teoria procedimentalista e a teoria substancialista. Para os primeiros, nos quais estão incluídos autores como Habermas, Garapon e Ely, a Constituição deve garantir apenas o acesso aos mecanismos de participação democrática, através de um modelo normativo que não se baseia em valores ou em conteúdos, mas em procedimentos que assegurem a formação democrática da opinião e da vontade. Neste cenário, o Direito teria um papel descritivo, prezando pela neutralidade, uma vez que as conquistas se dariam através do processo político tradicional. Já o modelo substancialista de Constituição, que tem como defensores Dworkin, Cappelletti, Ferrajoli e Bonavides, trabalha com ideia de que a norma constitucional pode conter valores, programas e opções políticas, determinando ao Estado as condições de seu agir.12 Nesta perspectiva o Direito não poderia mais assumir um papel passivo, mas produtivo, construtivo, transformador. O Poder Judiciário, nesta redefi nição de relações, haveria de exercer mais do que a função de “checks and balances”, assumindo o papel de intérprete que tutela a vontade geral implícita no direito positivado, inclusive contra as maiorias eventuais.13 Desta forma, o paradigma substancialista infl uencia na hermenêutica a ser aplicada na dogmática jurídica, afetando de modo signifi cativo o papel do direito, que deixaria de ser neutro, passivo, descritivo e racionalista para agregar-se de um caráter crítico, construtivo, transformador e dialético. Esta nova confi guração do direito, subsidiada pela teoria substancialista, asseguraria um novo olhar à dogmática jurídica, pautada na imperatividade da concretização dos direitos fundamentais a partir da consagração da força normativa das normas constitucionais e da ideia do Direito como mecanismo de ação estatal. Ademais, em consequência a esta forma de interpretação do Direito e de sua relação com o Estado, haveria de ocorrer um sensível deslocamento na relação entre os três poderes públicos, passando o centro de decisões a gravitar no Poder Judiciário. Porém, desde que diante da inércia ou negligência dos outros poderes, passando, assim, a ser instrumento de realização dos direitos não executados. 12 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas In Revista de Direito Administrativo. v. 240, 2005. p. 90. 13 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 43. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 149 Segundo Barroso, “[...] o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer as leis e a Constituição Federal, inclusive em confronto com outros Poderes”.14 Ocorre que a teoria procedimentalista parte do pressuposto de que as instâncias políticas, as quais determinariam objetivamente a atuação estatal, são virtuosas no sentido de estarem devidamente alinhadas com os interesses do povo, com a realização dos direitos de cidadania, com um Estado que valorize a formação da liberdade fática e da igualdade material como pressupostos edifi cantes do processo deliberativo majoritário. Falta a ela uma refl exão crítica sobre este procedimento de formação de vontade democrática, que leve em conta as consequências da modernidade tardia, o simulacro de modernidade. Arendt já dizia que a natureza do sistema representativo partidário faz desvirtuar a fórmula de governo do povo pelo povo para o governo do povopela elite emanada do povo, transvestindo a democracia em oligarquia.15 Tais conjecturas afetam, infelizmente, a capacidade de representação política da parcela atingida pelo défi cit social, que se torna desprovida das condições formadoras de seu discernimento e politização, carente de capacidade de organização e escassa da possibilidade de representação política, deixando-os à marginalidade do fl uxo político. Há de ser feita uma apreensão destas características brasileiras no momento de se defender a estruturação de uma Constituição e de um Estado que deixem reservadas às searas eminentemente políticas o futuro dos direitos de cidadania desta parcela de população. Os moldes pelos quais se opera o processo político atual no Brasil conduzem à concretização dos objetivos e fundamentos da Constituição vigente através e pela sociedade civil. Assim, o trabalho de interpretação e aplicação das normas constitucionais é permeado pelas técnicas de representação democrática, as quais usam mais das infl uências políticas, ideológicas e fi losófi cas no momento de se posicionar sobre qual o papel do texto constitucional. Desta forma, as decisões políticas, derivadas que são de uma concepção ajurídica da Constituição, fi liam-se mais aos critérios políticos de oportunidade e conveniência, corrompidos, ainda, por interesses individuais e corporativos que permeiam o atual contexto 14 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática In Revista de Direito do Estado, v. 13, 2009. p. 74. 15 ARENDT, Hannah. Da revolução. Tradução de Fernando Didimo Vieira e Caio Navarro de Toledo, São Paulo: Ática; Brasília: Ed. da UnB, 1990. p. 215. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 150 do processo político16, em detrimento das interpretações jurídicas e dos compromissos e deveres enunciados pela Constituição Federal de 1988 e pelo paradigmático Estado Democrático de Direito. Tal formatação do processo político demandaria, para que produzisse resultados positivos no âmbito da concretização dos direitos de cidadania, um nível de sociedade cívica avançado, dotado de características como consenso democrático, base social estável, pressupostos institucionais fi rmes, cultura política ampla e desenvolvida, etc.17 Entretanto, tais aspectos são difíceis de serem encontrados em países subdesenvolvidos e de democracia tardia. Estamos distantes da criação democrática de direitos a partir da autonomia dos cidadãos. Somada a este contexto, devemos levantar a questão medular da validade e da legitimidade da democracia representativa clássica em ser capaz de empreender uma atividade efetivamente identifi cada com os interesses da cidadania, do bem-estar, da justiça e da prosperidade social.18 Devemos refl etir criticamente sobre a sua capacidade de fazer da Constituição o instrumento legítimo da vontade popular e nacional. Como bem observa Streck, num contexto em que parece haver uma alquimia eleitoral que prejudica a defesa de direitos e interesses da maioria da população que padece pelos males do défi cit social, devemos privilegiar os recursos que estão disponíveis para a conquista de uma democracia de cidadãos; e, ainda, face ao cenário de organização política incipiente, não podemos recusar novas possibilidades de reconstruir a sociabilidade das instituições públicas.19 Somente delegar a vontade democraticamente formada a um corpo especializado de intérpretes e executores que coloca em marcha um Estado de justiça provençal e assistencialista não é a solução para a formação de homens livres e cidadãos ativos. Entretanto, a análise crítica das conjunturas da realidade fática da sociedade brasileira que caracterizam a crise de paradigmas do Direito e do Estado fazem emergir a inaplicabilidade das teses procedimentalistas, que estão longe de dar 16 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático In Revista de Direito do Estado, v. 3, 2006. p. 27. 17 VIANNA, Luiz Wernek ... [et. al.]. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 39-40. 18 BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1993. p. 9-10. 19 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 48, nota 58. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 151 condições para a construção de uma concepção substancial de democracia, com inclusão social e realização das promessas da modernidade. Neste interim, a reorganização da política se torna imperativa caso queiramos avançar no caminho da liberdade democrática e da proteção dos direitos fundamentais. Para Bonavides20, o constitucionalismo social e a democracia participativa são ingredientes da receita para a crise política brasileira, que restringe a possibilidade de uma cidadania politizada ao não garantir meios para que os excluídos do processo político tradicional tenham seus interesses sociais tutelados por outro caminho senão o da democracia representativa. Ferrajoli sustenta que a democracia constitucional vigente, pautada no Estado Democrático de Direito, é fruto de uma mudança de paradigmas da Teoria do Direito causada pela consagração dos direitos fundamentais sociais no constitucionalismo.21 Desta forma, não somente a vontade do agente político é a fonte da lei que controla a atuação governamental. A ideia de Direito como instrumento da política se altera na medida em que se reconhece a Constituição como norma cimeira, tornando a política um instrumento do Direito. Assim, alteram-se, por exemplo, as condições de validade das leis, que não mais dependem somente do respeito aos seus procedimentos de formação, mas também de correspondência com o conteúdo das normas superiores; altera-se a função jurisdicional e a relação do juiz com a lei, não estando mais sujeito à letra da lei ou à vontade do legislador, mas sim ao conjunto valorativo enunciado pela Constituição; altera-se o papel da ciência jurídica, que não mais pode ser só descritiva, mas crítica e construtiva; altera-se a natureza da democracia, que agrega uma dimensão substancial à tradicional esfera procedimental, obrigando a legislação e a política a respeitar os direitos fundamentais sob pena de invalidade; e altera-se a relação entre Direito e Política, vez que desgarra-se de sua absoluta subordinação para converter a atuação estatal em instrumento de ação do Direito.22 20 BONAVIDES, Paulo. Constitucionalismo social e democracia participativa In Temas polêmicos do constitucionalismo contemporâneo. Jario Schäfer (Org.) São José (SC): Conceito Editorial, 2007. p. 32-33. 21 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 45. 22 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 46. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 152 Conforme observa Vianna23, a judicialização da política é um processo em resposta à inefetividade da democracia representativa que mostrou-se ilegítima para atuar como instrumento de defesa das liberdades e da justiça. Originada não nos aparelhos institucionais, mas na descoberta dos preceitos constitucionais pela sociedade civil, este fenômeno vem se mostrando como via alternativa para a concretização das expectativas de direito e aquisição de cidadania, especialmente para os excluídos e desprotegidos que vêm no Estadouma instituição ilegítima para a tutela do défi cit social. Cappelletti é pontual ao examinar como esta reconfi guração dos papéis do Direito e da posição do Judiciário é salutar para a efetivação dos direitos de cidadania, em especial aos que não fazem parte do tecido político. Defende ele que há legitimidade da atividade jurisdicional, pois: a) está dissipada a ilusão de que os ramos políticos conseguem materializar o consentimento dos governados; b) porque a judicialização se presta a efetivar o sentido de justiça e a equidade na comunidade; c) porque tal atividade é mecanismo de aumento de representatividade ao dar proteção a grupos que não possuem participação política; d) pois a judicialização é mecanismo de aproximação do Estado Democrático ao proceder de uma atividade legislativa e atuação estatal distantes deste desiderato e e) porque se presta a garantir a democracia ao tutelar direito de cidadãos sem proteção efi caz em prol da liberdade fática e da participação política.24 “A política se judicializa para viabilizar o encontro da comunidade com seus propósitos declarados da Constituição Federal,”25 para reconectar a atuação pública e a democracia representativa aos objetivos enunciados no texto constitucional via interpretação e reinterpretação do Direito, ou seja, pelo potencial que o Direito e as instituições jurídicas possuem em modular as instâncias políticas em nome da realização dos direitos fundamentais e da democracia Assim, diante de um contexto em que há uma prática adversa à concretização dos direitos fundamentais por meio dos processos políticos, é importante que haja um meio para que a sociedade defenda seus direitos e interesses em prol da realização dos pressupostos que condicionam o exercício da cidadania. A dogmática, neste sentido, surge como instrumento 23 VIANNA, Luiz Wernek ... [et. al.]. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 43. 24 CAPPELLETTI, Mauro. Necessidad y legitimidade de la justicia constitucional In Tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales, 1984. p. 622-33. 25 VIANNA, Luiz Wernek ... [et. al.]. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 40. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 153 para por em marcha esta vontade constitucional que estabelece o Estado Democrático de Direito e prioriza a realização dos direitos de cidadania, como uma via de resistência às posturas políticas contrapostas a esta programaticidade constitucional26. Não podemos entender o processo de judicialização como uma patologia no sistema republicano. Ao contrário, como defende Barroso, se bem exercida é antes uma garantia para a democracia do que um risco27. Há que ser compreendido como um fenômeno propiciador de cultura cívica e de uma república democrática disponível a todos, mas orientada aos direitos e interesses daqueles marginalizados das medidas que o tradicional processo político resulta. A atuação do Poder Judiciário enquanto intérprete e aplicador dos comandos constitucionais em prol dos procedimentos democráticos e dos valores e direitos fundamentais é fenômeno louvável e possível inclusive diante de eventual ação da maioria em sentido oposto. “A conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção judicial, nesses casos, sanando omissão legislativa ou invalidando lei constitucional, dá-se a favor e não contra a democracia”28. Neste sentido, o advento do Estado Democrático de Direito e a construção de uma dogmática jurídica subsidiada pela teoria substancialista, que revolucionam a relação entre os poderes públicos e o papel do Direito são fundamentos essenciais para fomentar a possibilidade de politização da juridicidade como alternativa que pode vir a contribuir para o aumento da capacidade de incorporação no sistema político, especialmente sob a perspectiva dos marginalizados, sem acesso aos poderes políticos, uma oportunidade de vocalizar suas expectativas e direitos29. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos de cidadania, da maneira como foram encarados, exigem a presença de um Estado forte, ativo e interventor, na medida em que esta fi gura institucional se mostra como a única dotada de força 26 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 53. 27 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: Revista de Direito do Estado, v. 13, 2009. p. 83. 28 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 246. 29 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 43. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 154 e posição para guiar as ações da sociedade nesta direção. E para tanto, imprescindível um instrumental tão forte quanto, capaz de vincular atitudes e coagir aqueles avessos a tais prioridades. É nesta perspectiva que se apresenta como essencial a fi gura do Direito. Mas não um qualquer. É essencial que emerja um Direito alinhado aos desideratos do Estado Democrático de Direito, subsidiado pela teoria constitucional substancialista. Um Direito que seja capaz de concretizar além do plano formal as aspirações deste modelo estatal constitucional. Um Direito que responde às investidas que a seara política do Poder Público empreende, na contramão da programaticidade que a cidadania demanda. Um Direito que verdadeiramente constitua os pressupostos de cidadania daqueles que tem seus interesses dissipados e manipulados no e pelo processo político tradicional. Um Direito ativo, construtivo e preocupado não só em angariar, mas prover os meios para que a sociedade ande com suas próprias pernas, por meio do processo político. Mas que este andar seja afeto às estruturas do seu corpo, para que não comprometa a saúde dos membros que levam em direção ao futuro. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Da revolução. Tradução de Fernando Didimo Vieira e Caio Navarro de Toledo, São Paulo: Ática; Brasília: Ed. da UnB, 1990. BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Revista de Direito do Estado, v. 3, p. 17-54, 2006. BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. In: Revista de Direito Administrativo, v. 240, p. 83-103, 2005. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: Revista de Direito do Estado, v. 13, 2009. BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 155 CAPPELLETTI, Mauro. Necessidad y legitimidade de la justicia constitucional. In: Tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales, 1984. BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1993. FLENIK, Marilucia; KOZICKI, Katya. A cidadania e o estado democrático de direito. Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/ anais/brasilia/11_717.pdf. Acesso em 21 set. 2015. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,1991. NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O controle de políticas públicas: um desafi o à jurisdição constitucional In Revista de Direito do Estado, v. 14, p. 107-137, 2009. RAMOS, César Augusto. Hannah Arendt e os elementos constitutivos de um conceito neo liberal de cidadania. In: Revista Filos, Curitiba: Aurora, v. 22, n. 30, p. 267-296, jan./jun. 2010. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. VIANNA, Luiz Wernek; et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. VIEIRA, José Ribas. Teoria do Estado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995. http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/ Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 157 O MUNICÍPIO COMPETENTE PARA A COBRANÇA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS (ISS) NO CASO DO ARRENDAMENTO MERCANTIL EA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DIANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Luciana Campanelli Romeu1* INTRODUÇÃO Quando do questionamento sobre o Município competente para cobrança do Imposto Sobre Serviços (ISS) no caso do arrendamento mercantil, ou leasing, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que lhe compete a análise dessa questão. Defende que o sujeito ativo desta obrigação tributária é o município onde ocorreu o fato gerador e não aquele no qual se localiza a sede do estabelecimento prestador, como estava expresso no artigo 12, "a", do Decreto-Lei n. 406/68 e posteriormente prevê o artigo 3º, da Lei Complementar n. 116/03, valendo-se de argumentos baseados na Constituição Federal de 1988. Cabe-nos, pois, investigar se Superior Tribunal de Justiça nesses julgados, a pretexto do uso de uma técnica de hermenêutica, afastava aplicação do artigo 12, "a", do Decreto-Lei n. 406/68 por entender que ele não foi recepcionado pela Constituição atual e tem realizado uma declaração de inconstitucionalidade implícita d o artigo 3º, da Lei Complementar n. 116/03, usurpando, nos dois casos, da competência do Supremo Tribunal Federal. O tema será abordado e explorado utilizando-se o método de pesquisa dedutivo. Dessa forma, partir-se-á da análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que trata do Município competente para a cobrança do Imposto Sobre Serviços no caso do arrendamento mercantil, Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito do Estado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Graduada em Direito pelo Faculdade de Direito de Franca (FDF). Bolsista pela CAPES durante o mestrado e doutorado. É Professora de Direito na UNIESP. Foi orientadora da Pós-graduação em Direito do Curso Luiz Flávio Gomes (LFG), Professora de Direito Constitucional na Faculdade de Educação São Luís de Jaboticabal, Professora de Direito Constitucional, Direito Tributário e Direito Administrativo no Centro Universitário Moura Lacerda, e, Professora no curso preparatório para OAB da PROORDEM. Foi Conciliadora do Juizado Especial Cível. Autora de diversos artigos e capítulos de livros publicados. Advogada. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 158 ou leasing. Verifi car-se-á se a discussão envolve matéria constitucional, sendo, dessa forma, de competenciado Supremo Tribunal Federal. Como amparo ao método escolhido, será utilizado o estudo dogmático jurídico. Tal processo metodológico estuda a lei, a doutrina e a jurisprudência, interpretando as normas jurídicas e investigando a sua intertextualidade com outras afi ns, sempre na busca de uma aplicação equitativa, sistemática, descritiva, valorativa e prática das decisões judiciais. 1 INCIDÊNCI A DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS NO CASO DO ARRENDAMENTO MERCANTIL Reza o artigo 156, inciso III, da Constituição Federal, conforme a Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993: “Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...) III - serviços de qualquer natureza, não compreendi dos no art. 155, II, defi nidos em lei complementar”. A Lei Complementar n. 116 de 31 de julho de 2003, que dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competenciados Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências, estabelece no artigo 1º, que o Imposto Sobre Serviços “tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa”, ressaltando no parágrafo 4º, que “a incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado”. Como afi rmou Heleno Taveira Torres “tem-se a evidência de um regime baseado na prevalência de substância sobre a forma”.1 Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o “leasing” fi nanceiro deve ser equiparado a “serviço”, em conformidade com o artigo 156, III, da Constituição Federal, ao julgar o RE 547.245/SC: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING FINANCE IRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing operacional, [ii] o leasing fi nanceiro e [iii] o chamado lease- back. No primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar não defi ne o que é serviço, apenas o declara, para os fi ns do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da Constituição. No arrendamento mercantil (leasing fi nanceiro), contrato 1 Limites à modifi cação da jurisprudência consolidada. Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2013, 8h00. http://www.conjur.com.br/2013-jan-30/consultor-tributario- limites-modifi cacao-jurisprudencia-consolidada. Acesso em: 22/09/2015. http://www.conjur.com.br/2013-jan-30/consultor-tributario- Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 159 autônomo que não é misto, o núcleo é o fi nanciamento, não uma prestação de dar. E fi nanciamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir, resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing fi nanceiro e do lease-back . Recurso extraordinário a que se dá provimento.2 Devo mencionar algumas palavras extraídas do voto do Ministro Joaquim Barbosa, neste julgamento: O cerne do negócio jurídico de arrendamento mercantil consiste na colocação de um bem à disposição do arrendatário, para uso durante certo prazo, com a opção de compra do bem a ser exercida ou rejeitada no futuro. Animam ainda a escolha de tal negócio jurídico as condições legais e contratuais e os respectivos efeitos tributários. O propósito negocial está vinculado às características da atividade econômica desenvolvida, como evitar a obsolescência na linha produtiva e a manutenção de liquidez pela desnecessidade de imobilização total e imediata de recursos. A arrendadora atua como intermediária na criação de uma vantagem produtiva e na aproximação de interesses convergentes, ao adquirir o bem do fornecedor a pedido da arrendatária. O núcleo essência da atividade de arrendamento não se reduz, portanto, a captar, intermediar ou aplicar recursos fi nanceiros próprios ou de terceiros. Não há, pura e simplesmente, a concessão de crédito àqueles interessados no aluguel ou na aquisição de bens. A empresa arrendadora vai ao mercado e adquire o bem para transferir sua posse ao arrendatário. Não há predominância dos aspectos de fi nanciamento ou aluguel, reciprocamente considerados. O negócio jurídico é uno. Vale dizer, as operações de arrendamento mercantil pertencem a categoria própria, que não se confunde com aluguel ou fi nanciamento, isoladamente considerados.3 Indiscutível que a qualifi cação do arrendamento mercantil como hipótese de incidência do Imposto Sobre Serviços constitui matéria constitucional, sendo este o posicionamentoconsolidado, inclusivo no Superior Tribunal de Justiça: AgRg no REsp nº 877.658/RS, rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 03/05 /07; REsp 797.948/SC, rel. p/acórdão Min. Luix Fux, DJ 01/03/07 e REsp 865.483/SC, rel. Min. Castro Meira, DJ 26/10/06, AgREsp 998.310/RS, rel. Min. Francisco Falcão, DJ 0 7.04.08, AgRg no REsp 876.590/SC, rel. Min. Humberto Martins, DJ 31.05.2007; 2 RE 547.245/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 02.12.2009. 3 RE 547.245/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 02.12.2009. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 160 REsp 797.948/SC, rel. p/acórdão Min. Luiz Fux, DJ 01.03.2007; REsp 919.148/RS, rel. Min. Castro Meira, DJ 28.05.2007 e REsp 886.592/SC, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 26.03.2007, AgRg no REsp 960.492/ RS, rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 06.12.2007, Primeira Turma. Passamos, pois, para a análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o Município competente para a cobrança do Imposto S obre Serviços no caso do arrendamento mercantil, sob a luz Constituição Federal. 2 ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE O MUNICÍPIO COMPETENTE PARA A COBRANÇA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS NO CASO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL O artigo 3º, da Lei Complementar n. 116/03 diz expressamente que o sujeito ativo da obrigação tributária do Imposto Sobre Serviços é o Município no qual se localiza a sede do estabelecimento prestador, nos seguintes termos: O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local: I – do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, na hipótese do § 1o do art. 1o desta Lei Complementar; II – da instalação dos andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas, no caso dos serviços descritos no subitem 3.05 da lista anexa; III – da execução da obra, no caso dos serviços descritos no subitem 7.02 e 7.19 da lista anexa; IV – da demolição, no caso dos serviços descritos no subitem 7.04 da lista anexa; V – das edifi cações em geral, estradas, pontes, portos e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.05 da lista anexa; VI – da execução da varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação fi nal de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer, no caso dos serviços descritos no subitem 7.09 da lista anexa; VII – da execução da limpeza, manutenção e conservação de vias e logradouros públicos, imóveis, chaminés, piscinas, Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 161 parques, jardins e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.10 da lista anexa; VIII – da execução da decoração e jardinagem, do corte e poda de árvores, no caso dos serviços descritos no subitem 7.11 da lista anexa; IX – do controle e tratamento do efl uente de qualquer natureza e de agentes físicos, químicos e biológicos, no caso dos serviços descritos no subitem 7.12 da lista anexa; X – (VETADO) XI – (VETADO) XII – do fl orestamento, refl orestamento, semeadura, adubação e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.16 da lista anexa; XIII – da execução dos serviços de escoramento, contenção de encostas e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.17 da lista anexa; XIV – da limpeza e dragagem, no caso dos serviços descritos no subitem 7.18 da lista anexa; XV – onde o bem estiver guardado ou estacionado, no caso dos serviços descritos no subitem 11.01 da lista anexa; XVI – dos bens ou do domicílio das pessoas vigiados, segurados ou monitorados, no caso dos serviços descritos no subitem 11.02 da lista anexa; XVII – do armazenamento, depósito, carga, descarga, arrumação e guarda do bem, no caso dos serviços descritos no subitem 11.04 da lista anexa; XVIII – da execução dos serviços de diversão, lazer, entretenimento e congêneres, no caso dos serviços descritos nos subitens do item 12, exceto o 12.13, da lista anexa; XIX – do Município onde está sendo executado o transporte, no caso dos serviços descritos pelo subitem 16.01 da lista anexa; XX – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.05 da lista anexa; XXI – da feira, exposição, congresso ou congênere a que se referir o planejamento, organização e administração, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.10 da lista anexa; XXII – do porto, aeroporto, ferroporto, terminal rodoviário, ferroviário ou metroviário, no caso dos serviços descritos pelo item 20 da lista anexa. Completa o artigo 4º, da Lei Complementar n. 116/03: Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 162 de modo permanente o u temporário, e que confi gure unidade econômica ou profi ssional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, fi lial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas. Vale observar que a norma prevista no artigo 3º desta Lei não inovou no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que o artigo 12, "a", do Decreto-Lei n. 406/68, possuía conteúdo semelhante, qual seja: "Considera-se local da prestação do serviço: a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador; b) no caso de construção civil, o local onde se efetuar a prestação". Não obstante a previsão objetiva de tais normas, o Superior Tribunal de Justiça desde a vigência do artigo 12, "a", do Decreto-Lei n. 406/68 vem entendendo que o sujeito ativo da obrigação tributária do Imposto Sobre Serviços no caso de arrendamento mercantil é o Município onde ocorreu o fato gerador. Nesse sentido, é possível mencionar vários julgados: REsp 969.109/RS, rel. Ministro Castro Meira, DJ 08.10.2007 AgRg no AG 516.637/MG, rel. Min. Luix Fux, DJ 01.03.2004; REsp 431.564/MG, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 27.09.2004; AgRg no REsp 334.188/RJ, rel. Min. Francisco Falcão, DJ 23.06.20 03; EREsp 130.792/CE, rel. Min. Ari Pargendler, DJ 12.06.2000; REsp 115.279/RJ, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJ 01.07.1999, AgREsp 845.711/RS, rel. Min. Luiz Fux, DJe 29.05.08, AgRg no AgIn 964.198/RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 25.11.2008, Segunda Turma, DJ 17.12.2008. Quando da vigenciado artigo 12, "a", do Decreto-Lei n. 406/68 e já sob a vigência da Constituição de 1988, o Superior Tribunal de Justiça em um dos primeiros precedentes em que se discutiu a matéria, afastou a sua aplicação por motivos constitucionais e decidiu que o Município competente para a cobrança do Imposto Sob re Serviços é aquele onde se realizou o fato gerador, nos seguintes termos: (...) embora a lei considere o local da prestação d e serviço, o do estabelecimento prestado (art. 12 do DL 406/68), ela pretende que o ISS pertença ao Município em cujo território se realizou o fato gerador. É o local da prestação de serviço que indica o Município competente para a imposição do tributo (ISS), para que se não vulnere o princípio constitucional implícito que atribui àquele (município) o poder de tributar as prestações ocorridas em seu território. A lei municipal não Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 163 pode ser dotada de extraterritorialidade, de modo a irradiar efeitos sobre um fato ocorrido no território de município onde não pode ter voga.4 Quanto à norma constantedo artigo 12 do Decreto-Lei n. 406/68, ressaltou que: “(...) não tem sentido absoluto. A sua compreensão, como ensinam os doutrinadores, exige temperamentos. (...) Entender-se de outro modo é um contra-senso, eis que, se permitiria que, um serviço, realizado dentro das fronteiras de um município, a outro se deferisse”.5 No mesmo sentido: Cinge-se a controvérsia à fi xação da competência para cobrança do ISS, se é do Município onde se localiza a sede da empresa prestadora de serviços, conforme determina o artigo 12 do Decreto-lei n. 406/68, ou do Município onde aqueles são prestados. A egrégia Primeira Seção desta colenda Corte Superior de Justiça pacifi cou o entendimento de que o Município competente para realizar a cobrança do ISS é o do local da prestação dos serviços em que se deu a ocorrência do fato gerador do imposto. Essa interpretação harmoniza-se com o disposto no artigo 156, III, da Constituição Federal, que atribui ao Município o poder de tributar as prestações ocorridas em seus limites territoriais.6 AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRI O. ISS. COBRANÇA. LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. 1. ‘O Município competente para cobrar o ISS é o da ocorrência do ato gerador do tributo, ou seja, o local onde os serviços foram prestados’. (REsp 39 9.249/RS). 2. Adentrar à questão do local no qual foi prestado o serviço, ensejaria reexame de matéria fático-probatória, impondo a aplicação da Súmula n. 7 do S TJ: ‘A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial’. 3. Precedentes. 4. Ausência de motivos sufi cientes para a modifi cação do julgado. 5. Agravo regimental desprovido.7 Colaciono, ainda, verbis: ISS - FATO GERADOR - DOMICÍLIO TRIBUTÁRIO – AGRAVO DESPROVIDO. 1. Interpretando-se o art. 12 do 4 Superior Tribunal de Justiça, REsp 41.867/RS, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU de 04.04.94. 5 Superior Tribunal de Justiça, REsp 41.867/RS, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU de 04.04.94. 6 AgRg no Ag 607.881/PE, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 20.06.2005, p. 209. 7 AgRg no AgIn 516.637/MG, rel. Min. Luiz Fux, j. 05.02.2004, Primeira Turma,DJ 01.03.2004. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 164 Decreto-lei n. 406/68, para fi ns de cobrança do ISS, considera- se o domicílio tributário do local onde se realizou o fato gerador (prestação do serviço) e não o do esta belecimento do prestador. 2 .Agravo Regimental desprovido.8 Estes precedentes ainda são usados, em conjunto com outros que se valem do mesmo entendimento, para fundamentar o afastamento da aplicação do artigo 3º, da Lei Complementar n. 116/03, cujo conteúdo, como vimos, é idêntico ao da norma prevista no artigo 12, do Decreto-Lei n. 406/68: EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. SOBRESTAMENTO DO AGRAVO REGIMENTAL. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE PERÍCIA SUBSTRATO PROBATÓRIO SUFICIENTE. SÚMULA N. 7/STJ. FATO GERADOR. MUNICÍPIO COMPETENTE PARA RECOLHIMENTO DA EXAÇÃO. LOCAL ONDE OCORRE A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. (...) III- ‘As Turmas que compõem a Primeira Seção do STJ pacifi caram o entendimento de que o ISS deve ser recolhido no local da efetiva prestação de serviços, pois é nesse local que se verifi ca o fato gerador’ (AgRg no Ag 763.269/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 12.09.2006). Na mesma linha: AgRg no Ag 762.249/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 28.09.2006 e REsp 695.500/MT, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 31.05.2006 (...).9 Conforme excertos do julgado supracitado: Verifi co que a questão foi decidida de acordo com a orientação já pacifi cada no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça, no senti do de que o ISS é tributo somente exigível pelo Município onde se realiza o fato gerador, entendido este o local no qual há a prestação de serviço “. “ Verifi co que a questão foi decidida de acordo com a orientação já pacifi cada no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o ISS é tributo somente exigível pelo Município onde se realiza o fato gerador, entendido este o local no qual há a prestação de serviço.10 No mesmo sentido: 8 AgRgAg n° 196.490/DF, Relatora Ministra Eliana Cal mon, DJ de 29/11/1999, p. 00153. 9 AgRg no REsp 960.492/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 06.12.2007, Primeira Turma. 10AgRg no REsp 960.492/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 06.12.2007, Primeira Turma. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 165 TRIBUTÁRIO. ISSQN. LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. A RT. 12 DO DECRETO-LEI Nº 406/68. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 2 84, 282 E 356/STF E 211/STJ. 1. Não se conhece do recurso especial pela alegada violação ao artigo 535 do CPC nos casos em que a argüição é genérica, por incidir a Súmula 284/STF. 2. A ausência de pré questionamento atrai o óbice das Súmulas 282 e 356/STF. 3.Mesmo na vigência do art. 12 do Decreto-Lei nº 06/68,4 revogado pela Lei Complementar nº 116/03, a Municipalidade competente para realizar a cobrança do ISS é a do local da prestação dos serviços, onde efetivamente ocorre o fato gerador do imposto. 4. Recurso especial conhecido em parte e provido.11 AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO - ISS - COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA - LOCAL DA EFETIVA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - AUSÊNCIA DE EIVA NO JULGADO - ACÓRDÃO EM SINTONIA COM A ORIENTAÇÃO DESTE SODALÍCIO. Do atento exame dos autos, verifi ca-se que a egrégia Corte de origem, embora de modo contrário aos interesses da recorrente, apreciou fundamentadamente a questão trazida pelas partes. Observa-se, outrossim, que inexiste qualquer eiva a ser sanada no v. acórdão recorrido. 'As duas Turmas que compõe m a Primeira Seção desta Corte, mesmo na vigência do art. 12 do Decreto-Lei nº 06/68,4 revogado pela Lei Complementar nº 116/2003, pacifi caram entendimento no sentido de que a Municipalidade competente para realizar a cobrança do ISS é a do local da prestação dos serviços, onde efetivamente ocorre o fato gerador do imposto' (RMS 17.156/SE, Relator Ministro Castro Meira, DJ 20.09.2004). Agravo regimental improvido.12 Como afi rmou o Ministro Castro Meira: (...) a alteração legislativa não trouxe inovação que pudesse repercutir na jurisprudência pacifi cada nesta Corte. Muito pelo contrário, pois em seu artigo 4º, a Lei Complementar 116/03 alarga o conceito de estabelecimento para os fi ns de ISS – o que serve a justifi car a manutenção da orientação já fi rmada (...)13. 11 REsp 678.655/SP, Rel. Min. Castro Meira , DJU de 30.03.06. 12 AgA 636.599/MG, Rel. Min. Franciulli Netto, DJU de 30.05.05 13 TJSC, Embargos de Declaração em Embargos Infringentes n. 2007.001455-0, de Itajaí, rel. Des. Cesar Abreu, j. 14-10-2009. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 166 Este entendimento foi consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: REsp 969.109/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIR A, DJ 08.10.2007 AgRg no AG 516.637/MG, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ 01.03.2004; REsp 431.564/MG, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ 27.09.2004; AgRg no REsp 334.188/RJ, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJ 23.06.2003; EREsp 130.792/CE, Rel. Min. ARI PARGENDLER, DJ 12.06.2000; Resp 115.279/RJ, Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, DJ 01.07.1999. Da análise desses julgados, verifi ca-se que o Superior Tribunal de Justiça vem afastando a aplicação de norma que diz ser o município competente para a cobrança do Imposto Sobre Serviços sobre leasing aquele no qual se localiza a sede do estabelecimento prestador por afronta à Constituição de 1988, julgando que a cobrança do tributo em comento pertença ao Município em cujo território se realizou o fato gerador. Ora, a prestação de serviço advinda do arrendamento mercantil conclui-se apenas com a entrega do bem arrendado, cuja “causa jurídica” depende do destino ou do uso do bem. Assim, nesse tipo de operações,só no município em que ocorrem os atos de transferência dos bens é onde se concretizará o fato gerador do Imposto Sobre Serviços. Parece-me razoável ser este o município competente para a cobrança do Imposto Sobre Serviços sobre arrendamento mercantil, tendo em vista o artigo 156, III da Constituição Federal, a cláusula pétrea da federação e a autonomia dos municípios, prevista “de modo mais signifi cativo”, nas palavras de Carrazza, “no art. 30 da Constituição Federal, que, em suma, garante ao município governo e administração próprios, no que toca ao seu peculiar interesse”.14 Dessa forma, a meu ver, a norma prevista no artigo 12 do Decreto- Lei n. 406/68 não foi recepcionada pela atual Constituição e a norma contida no artigo 3º, da Lei Complementar n. 116/03 é inconstitucional, cabendo razão ao Superior Tribunal de Justiça quanto ao mérito da questão ao entender pelo afastamento da aplicação de tais normas. Ocorre que, por se tratar de questão que envolve matéria constitucional, não cabe ao Superior Tribunal de Justiça sua análise, conforme se verifi ca no artigo 105, da Constituição Federal. Este prevê que compete ao Superior Tribunal de Justiça, dentre outras atribuições, julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do 14 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 186-187. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 167 Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal , ou negar-lhes vigência; julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal ou der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. A discussão de questão que envolve matéria constitucional, nos termos do artigo 102, da Constituição Federal, compete ao Supremo Tribunal Federal, ao qual foi conferida, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe, dentre outras atribuições, julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo desta Constituição; declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição e julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Vale observar que, quando se trata de norma anterior à Constituição, apesar da discussão da sua compatibilidade com a atual Magna Carta fi car no âmbito da efi cácia e não da validade da norma (não recepção desta norma pela Constituição vigente), trata-se de matéria constitucional, cuja competência pertence ao Supremo Tribunal Federal. Eis o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DE LEI LOCAL. INVIABILIDADE DE ANÁLISE. SÚMULA 280/ Supremo Tribunal Federal. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO PELO CONTRIBUINTE. ICMS. VIABILIDADE. PRECEDENTES. INTERESSE DE AGIR. EXISTÊNCIA DE DANO. CONSIDERAÇÕES FINAIS CONTRÁRIA. SÚMULAS 5/Superior Tribunal de Justiça, 7/Superior Tribunal de Justiça e 280/ Supremo Tribunal Federal. PERDA DO OBJETO. SÚMULA 211/ Superior Tribunal de Justiça. SOBRESTAMENTO. RECEPÇÃO DE LEI PELA CARTA MAGNA. ÍNDOLE CONSTITUCIONAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA. INOVAÇÃO RECURSAL. VEDAÇÃO. (...) A pendência de julgamento perante à Suprema Corte não inviabiliza o julgamento de demandas perante o Superior Tribunal de Justiça. (...) A recepção de lei pelo texto constitucional é matéria que escapa à competência do Superior Tribunal de Justiça na via do recurso especial. 7. A questão atinente à ilegitimidade passiva confi gura Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 168 inovação recursal, manobra processual amplamente vedada por esta Corte. Agravo regimental improvido.15 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PONTOS NÃO ATACADOS DA DECISÃO AGRAVADA. SÚMULA N. 182 DO Superior Tribunal de Justiça. JULGAMENTO MONOCRÁTICO. POSSIBILIDADE. ART. 557 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CUMPRE AO RÉU O ÔNUS DE COMPROVAR O ÀLIBI LEVANTADO PELA DEFESA. ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EXAME QUANTO À RECEPÇÃO DE DISPOSITIVOS LEGAIS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA DO Superior Tribunal Federal. CRIME DE MOEDA FALSA. ART. 289 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. (...) 4. A verifi cação acerca da recepção de dispositivos legais pelo texto constitucional é matéria que foge à competência atribuída pela Carta Magna ao Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial. (...) 6. Agravo Regimental a que se nega provimento.16 PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. DEFICIENTE DE FUNDAMENTAÇÃO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA AOS FUNDAMENTOS SUFICIENTES PARA MANTER O ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/ Supremo Tribunal Federal. VERIFICAÇÃO DA RECEPÇÃO DE DECRETO PELA CONSTITUIÇÃO. COMPETÊNCIA DO Supremo Tribunal Federal. (...) 4. A tese da não recepção do Decreto-Lei n. 2.318/86 pela Constituição Federal demandaria a análise dos dispositivos da própria Constituição, não cabendo a este Tribunal Superior a referida análise. Agravo regimental improvido.17 Assim, quando da vigência do artigo 12 do Decreto-Lei n. 406/68, o afastamento da sua aplicação com fundamentação na Constituição de 1988, ou seja, o reconhecimento da não recepção desta norma pela atual Constituição, apesar de não confi gurar declaração de inconstitucionalidade, 15 Superior Tribunal de Justiça - AgRg no AREsp: 3891 74 DF 2013/0293662-4, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 05/11/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/11/2013. 16 AgRg no REsp 1367491⁄PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 23⁄04⁄2013, DJe 02⁄05⁄2013. 17 AgRg no REsp 1213279⁄PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 02⁄12⁄2010, DJe 14⁄12⁄2010. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 169 é de competência do Supremo Tribunal Federal e não do Superior Tribunal de Justiça. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como visto, tanto o artigo 12 Decreto-Lei n. 406/68, como o artigo 3º, da Lei Complementar n. 116/03 dizem expressamente que o Município competente para a cobrança do Imposto Sobre Serviços no caso do arrendamento mercantil é aquele no qual se localiza a sede do estabelecimento prestador, sendo incabível qualquer interpretação no sentido de que o sujeito ativo da obrigação tributária advinda do leasing é o Município onde ocorreu o fato gerador. Só é possível aos representantes do Poder Judiciário afastar a aplicação de norma cabível ao caso por motivos constitucionais diante a não recepção de norma anterior à norma constitucional ou mediante declaração de inconstitucionalidade, sob pena de atuar de forma ativista e invadir a esfera de atuação do Poder Legislativo, ferindo a cláusula pétrea da separação de poderes. Em relação ao artigo 3º, da Lei Complementar n. 116 /03, está evidente que o Superior Tribunal de Justiça, a pretexto de uma absurda interpretação sistemática, baseada no princípio constitucional implícito que atribui ao município o poder de tributar as prestações ocorridas em seu território, realizou uma declaração de inconstitucionalidade não expressa, usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal. Quando da vigência do artigo 12 Decreto-Lei n. 406/68, tendo como parâmetro a Constituição Federal de 1988, a discussão fi caria n o âmbito da efi cácia e não da validade da norma. Trata-se de não recepção desta norma pela atual Constituição, o que confi gura discussão de matéria constitucional, a qual também compete ao Supremo Tribunal Federal e não ao Superior Tribunal de Justiça. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dosDireitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. Malheiros, 2008. AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. 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Segundo Varella, não é possível determinar com precisão um conceito de soberania, tendo seu conceito nascido com o processo de construção do Estado-Nação.1 A soberania, de acordo com o autor, “consolida-se por meio de capacidades e competências. As capacidades estão relacionadas à vida internacional. As competências estão relacionadas à vida interna”.2 No cenário mundial, a soberania dos Estados ganha conotação com a necessidade de formação de institutos globais, como as organizações internacionais. Quanto à Constituição Brasileira, nela é reconhecido o exercício do poder pelo povo por meio de representantes eleitos ou na sua forma direta. As formas de participação direta são previstas constitucionalmente e são realizadas mediante, por exemplo, o voto, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. No entanto, no contexto da Globalização proporcionada pelos avanços tecnológicos, um dos maiores desafi os do Estado brasileiro é efetivar suas deliberações a nível internacional. A atuação política restrita ao âmbito nacional, portanto, se mostra insufi ciente. Como consequência, a maneira de exercer a cidadania fi ca a cargo de ser realizada sob a ótica da governança global. A Comissão da Governança Global da ONU defi niu governança em seu texto “Nossa Comunidade Global” como: […] a totalidade das diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, administram seus problemas comuns. É um processo contínuo pelo qual *Instituição de pesquisa: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – FCHS, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Franca. Curso: Direito. 1 VARELLA, Marcelo. Direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 259. 2 Ibid., p, 264. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 176 é possível acomodar interesses confl itantes ou diferentes e realizar ações cooperativas; Governança diz respeito não só a instituições e regimes formais autorizados a impor obediência, mas também a acordos informais que atendam aos interesses das pessoas e instituições.3 Nesse cenário, organizações internacionais, como a UNASUL, destacam a participação cidadã na dimensão mundial, utilizando, para tal, as concepções de governança global. Para a análise da cidadania participativa na dimensão internacional, porém, é necessário examinar a situação periférica ou semiperiférica dos países da América Latina, identifi cando os obstáculos enfrentados na efetivação do exercício de sua cidadania no âmbito global e na construção de uma identidade sul-americana. Devido à grande importância do exercício da cidadania no âmbito internacional, a presente pesquisa pretende analisar como esse exercício se dá na sua forma participativa, com foco nos países da América Latina. A ênfase do estudo se dá na situação global desses países e na análise das organizações internacionais que esses compõem, como a UNASUL, a fi m de que tragam efetividade a essa participação cidadã. A realização do presente trabalho justifi ca-se frente à grande relevância e atualidade do tema, o qual ainda apresenta poucas obras a respeito. Com ele, portanto, dar-se-á o devido manuseio da questão, a fi m de estudar o instituto da cidadania participativa na esfera internacional, buscando soluções para a efetivação desta. O presente trabalho foi enviado como projeto de pesquisa ao programa de Pós-Graduação em Direito, da FCHS-UNESP, como pré-requisito para o ingresso no Mestrado em Direito. A pesquisa tem por objetivo geral estudar as formas de participação cidadã no âmbito internacional. Dentre seus objetivos específi cos, tem-se: reconhecer as formas de participação cidadã na dimensão internacional, tendo como agente político os países da América Latina no contexto da governança global; analisar a efetivação das organizações internacionais que os países da América Latina fazem parte, como a Uniãodas Nações Sul-Americanas (UNASUL), como garantidora da participação cidadã no âmbito internacional; compreender as diferenças históricas e culturais dos Estados-membros da UNASUL, com vistas ao objetivo da construção de uma identidade e cidadania sul-americanas; e examinar os obstáculos enfrentados pelos países latino-americanos no cenário internacional 3 COMISSÃO SOBRE GOVERNANÇA GLOBAL. Nossa Comunidade Global. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. Cap. 1.p. 1-9. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 177 a respeito da participação cidadã, devido a sua condição periférica ou semiperiférica no âmbito global. A pesquisa jurídica caracteriza-se pelo pluralismo metodológico, visando garantir maior objetividade e complexidade ao estudo. Pretende-se analisar, durante a execução do presente trabalho, a cidadania participativa na dimensão internacional sob a ótica da Teoria Geral do Estado, utilizando, ainda, elementos da Ciência Política, da Filosofi a Política e do Direito Constitucional. Para isso, serão adotados os métodos indutivo e dedutivo, que, nas palavras de Cervo e Bervian: A indução e a dedução são, antes de mais nada, formas de raciocínio ou de argumentação e, como tais, são formas de refl exão e não de simples pensamento. O pensamento alimenta-se da realidade externa e é produto direto da experiência. O ato de pensar caracteriza-se por ser dispersivo, natural e espontâneo. A refl exão, porém, requer esforço e concentração voluntária. É dirigida e planifi cada. A CONSIDERAÇÕES FINAIS de raciocínio constitui o último elo de uma cadeia, o período fi nal de um ciclo de operações que se condicionam necessariamente. (...) A indução e a dedução são processos que se complementam.4 Além disso, também se adotam os métodos histórico-analítico e comparativo, uma vez que se pretende compreender o lugar em que se encaixa a América Latina no contexto global. Quanto à tipologia, a pesquisa será bibliográfi ca e documental, uma vez que a condução desta é proporcionada pela leitura de livros, artigos e teses, além de documentos legais referentes ao tema, como Tratados e Convenções, que compõem o ponto de partida e cerne das discussões, assim como a análise da agenda das organizações internacionais. 1 DESENVOLVIMENTO A atenção voltada à governança global surgiu ao fi nal da década de 1980, junto com o progressivo interesse mundial no processo de democratização. Paralelamente a isso, é possível perceber a crescente importância que as organizações internacionais têm ganhado no cenário mundial, proporcionada pela Globalização e pelas inovações tecnológicas. 4 CERVO, Amado Luiz; BERVIAN, Pedro Alcino. Metodologia científi ca. 4. ed. São Paulo: MAKRON Books, 1996, p. 30. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 178 [...] a discussão de governança global, por seu próprio caráter original, atribui grande importância não somente à maior institucionalização internacional, mas também à ampliação da base ontológica de atores contemplados com participação e relevância na análise política. Desta maneira, ela supera em parte a lógica centrada no Estado ao abranger também outros atores transnacionais, tais como ONGs, Organizações Internacionais, Corporações Transnacionais, etc. Trata-se, assim, de uma proposta de alargamento do âmbito do debate, de modo a fazer com que se “ouçam” todos aqueles que, conscientemente, queiram participar da esfera pública internacional. Nesse sentido, a governança surge como uma forma de combater o défi cit democrático no nível internacional.56 No espírito da governança global, foi assinado em 23 de maio de 2008 o Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) por quase todos os países do subcontinente americano, sendo eles: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. O Tratado Constitutivo da UNASUL foi promulgado no Brasil com o Decreto n. 7.667, de 11 de janeiro de 2012. Nele, propõe-se a integração das conquistas sul-americanas, através, por exemplo, dos avanços obtidos pelo Mercosul (Mercado Comum do Sul) e pela CAN (Comunidade Andina de Nações), além das experiências dos outros países signatários que não compõem esses blocos. No preâmbulo do Tratado, são elencadas as diretrizes em que a organização foi construída, entre elas destaca-se as seguintes partes: AFIRMANDO sua determinação de construir uma identidade e cidadania sul-americanas e desenvolver um espaço regional integrado no âmbito político, econômico, social, cultural, ambiental, energético e de infraestrutura, para contribuir para o fortalecimento da unidade da América Latina e Caribe; (...) RATIFICANDO que tanto a integração quanto a união sul-americanas fundam-se nos princípios basilares de: irrestrito respeito à soberania, integridade e inviolabilidade 5 AMARAL, Arthur Bernardes de. Os conceitos de regimes internacionais e de governança global: semelhanças e diferenciações. Revista Eletrônica Tempo Presente. Disponível em: http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_ content&view=category&id=39&IteIte=127&limitstart=18. Acesso em 18 de agosto de 2015. 6 Cf. Amaral. Autores mais críticos (BRAND, 2005), no entanto, alertam que esta retórica foi e continua a ser instrumentalizada para gerenciar crises que resultam do processo de globalização neoliberal. http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_ Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 179 territorial dos Estados; autodeterminação dos povos; solidariedade; cooperação; paz; democracia, participação cidadão e pluralismo; direitos humanos universais, indivisíveis e interdependentes; redução das assimetrias e harmonia com a natureza para um desenvolvimento sustentável. (grifo do autor). Portanto, um dos principais cernes da UNASUL é a construção de uma identidade e cidadania sul-americanas, a fi m de que, com a integração das nações, se possa alcançar o desenvolvimento sustentável e o bem-estar dos povos. Fundamentando-se, ainda, em princípios basilares, dentre eles, o da participação cidadã. A UNASUL já nasce com personalidade jurídica internacional e, logo na defi nição de seus objetivos gerais e específi cos, o instituto da cidadania participativa é lembrado. No art. 2º, defi ne como objetivos gerais: Artigo 2º. A União de Nações Sul-americanas tem como objetivo construir, de maneira participativa e consensuada, um espaço de integração e união no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos, priorizando o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infraestrutura, o fi nanciamento e o meio ambiente, entre outros, com vistas a eliminar a desigualdade socioeconômica, alcançar a inclusão social e a participação cidadã, fortalecer a democracia e reduzir as assimetrias no marco do fortalecimento da soberania e independência dos Estados. (grifo nosso). Por sua vez, no art. 3º, é traçado como objetivo específi co “a participação cidadã, por meio de mecanismos de interação e diálogo entre a UNASUL e os diversos atores sociais na formulação de políticas de integração sul-americana” (art. 3º, “p”). A participação cidadã tem ainda reservada para si o art. 18: Artigo 18. Será promovida a participação plena da cidadania no processo de integração e união sul-americanas, por meio do diálogo e da interação ampla, democrática, transparente, pluralista, diversa e independente com os diversos atores sociais, estabelecendo canais efetivos de informação, consulta e seguimento nas diferentes instâncias da UNASUL. Os Estados Membros e os órgãos da UNASUL gerarão mecanismos e espaços inovadores que incentivem a discussão dos diferentes temas, garantido que as propostas Anais do III Seminário de Direitodo Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 180 que tenham sido apresentadas pela cidadania recebam adequada consideração e resposta. (grifo nosso). Deisy Ventura e Camila Baraldi destacam as dimensões em que a UNASUL se coloca: [...] Primeiramente, rompe a tradição comercial dos acordos sub-continentais, constituindo um âmbito de integração política que abarca a energia, a infra-estrutura, a segurança e a cidadania. Ao fazê-lo, justapõe-se, porém, aos processos de integração regional pré-existentes, esvaziando a Comunidade Andina de Nações (CAN) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul). Ademais, contradiz o cada vez mais frequente recurso à bilateralidade empregado pelos governos da região. Em segundo lugar, nas cláusulas do tratado, uma nova linguagem chuta para escanteio a pluma morna do Itamaraty, incorporando parte do acervo do discurso esquerdista contemporâneo, a exemplo das alusões à participação social e da demarcação de gênero. (...) No mesmo diapasão, a União inova ao abocanhar em seus objetivos a quase totalidade dos direitos humanos econômicos e sociais já consagrados internacionalmente. Ocorre que a escassa tangibilidade do processo integracionista conduz à natural percepção destas ambições como mera retórica. Por fi m, a oposição interna ao governo brasileiro fulminou a UNASUL com a patética objeção técnica de que o funcionamento provisório da Secretaria Geral seria anti- democrático, por esquivar a devida aprovação prévia do Parlamento. Ora, a crítica pertinente é a oposta: inovadora em seu conteúdo, mas ortodoxa em sua debilidade institucional, a UNASUL corre o risco de tornar-se apenas uma nova linguagem para velhos analfabetos em integração regional.7 A UNASUL, portanto, apesar de ter sido construída sobre nobres princípios, precisa ser cuidadosamente analisada a fi m de suprir as falhas nela existentes. A importância de sua criação da UNASUL é, entretanto, inquestionável, uma vez que os Estados Sul-Americanos apresentam ainda uma realidade periférica ou semiperiférica não só no âmbito econômico, mas principalmente no político, em que o exercício da cidadania não é pleno. Alguns fatores contribuem para a rotulação de país em desenvolvimento. Em relação ao Brasil, por exemplo, podem ser apontados: 7 VENTURA, Deisy. BARALDI, Camila. A UNASUL e a nova gramática da integração sul-americana. Pontes, volume 4 – number 3, 2008. Disponível em: http://fes.org.br/ brasilnomundo/wp-content/uploads/2014/06/ventura-baraldi-unasul-pontes.pdf. Acesso em 14 de agosto de 2015. http://fes.org.br/ Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 181 limitado poder militar e não pertencimento a nenhuma aliança militar estrito senso; predominância de uma economia exportadora de produtos de base; dependência tecnológica; precários indicadores sociais, como os relativos ao padrão educacional e à questão da violência; entre outros. Os elementos que colocam o Brasil na semiperiferia do mundo não podem ser vistos somente do ponto de vista global, sendo necessária também a análise de seus fatores internos que o mantém nessa realidade. Dentre eles, importantes são as características histórico-culturais do Brasil, como a apropriação do Estado por interesses privados, que se perpetua desde sua criação até hoje, usurpando a soberania popular prevista em Constituição. Ponto de destaque, entretanto, é a ascensão ao poder dos grupos partidários de esquerda nos países da América Latina, os quais se propõem a representar os interesses da população, com a valorização da participação popular e a preservação dos direitos humanos. Essa ascensão aparece no contexto do fi m dos regimes autoritários a que esses países foram submetidos entre os anos 1960 e 1980. No dossiê “Desafi os da consolidação democrática na América Latina”, consequências decorrentes dos regimes autoritários que essa região sofreu são destacadas: [...] Em diversos países latino-americanos, são rememoradas as décadas de regimes autoritários que assolaram a região, minando direitos civis, políticos, econômicos e culturais e aprofundando desigualdades, injustiças e opressões. São também rememoradas as décadas seguintes, até o presente, que mobilizaram muitos esforços em prol da redemocratização, da maior qualidade da democracia, de sua consolidação e radicalização, os quais redundaram na ascensão das esquerdas em vários países, mediante acirradas disputas entre diferentes projetos políticos de mudança social e de sociedade. (...) A despeito de certos avanços, consideráveis em alguns casos, as democracias latino-americanas são em grande parte ainda caracterizadas pela falta de correspondência entre as instituições e as práticas sociais, entre a legalidade e a legitimidade e entre a política e a cultura. Ao mesmo tempo, nota-se a falta de correspondência entre Estado e nação, entre território geográfi co político-administrativo e identidades Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 182 histórico-culturais, entre direitos constitucionalmente previstos e direitos realmente vividos.8 Visa ressaltar que os governos de esquerda, embora tendo conquistado o poder, não encontram total apoio da população. Ações governamentais que buscam reduzir as desigualdades sociais vêm encontrando resistência por parte da elite econômica. Tais confl itos serão estudados com cautela no decorrer da pesquisa, em que serão apresentados todos os argumentos contrários e favoráveis possíveis. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Globalização e os avanços tecnológicos proporcionaram o estreitamento geográfi co, tornando os Estados e os indivíduos interdependentes entre si e apresentando características progressivamente mais próximas de uma comunidade global. Para o devido manuseio de questões que infl uenciem o planeta como um todo, houve o advento da governança global. No contexto da governança global, atores estatais e não estatais ganham cada vez mais importância. Nessa conjuntura, a criação de uma organização com a UNASUL é de extrema relevância para a participação da comunidade latino-americana no cenário mundial. Baseada em princípios como o da construção de uma “identidade e cidadania sul-americanas”, a UNASUL expõe em seu preâmbulo diretrizes nobres, visando uma maior integração entre seus Estados Membros e sua maior presença nas relações globais. A cidadania participativa é expressamente prevista no Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas. No entanto, para que ela seja efetivada, é preciso examinar a situação periférica ou semiperiférica em que se encontram os países da América Latina. No caso do Brasil, por exemplo, apesar de ser considerado uma potência mundial, sua realidade é ainda de país em desenvolvimento, com uma condição semiperiférica. A análise dos fatores internos que caracterizam os países da América Latina apresenta derradeira signifi cância para a identifi cação dos obstáculos enfrentados para a efetiva participação cidadã latino-americana na dimensão internacional, uma vez que eles refl etem o modo como serão tratados no âmbito mundial. Portanto, o estudo das formas de cidadania participativa na dimensão mundial, assim como da efetivação das organizações 8 GUIMARÃES, Débora Messenberg. BARROS, Flávia Lessa de. PINTO, Júlio Roberto de Souza. Democracia na América Latina: desafi os e perspectivas. Apresentação. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/se/v29n1/02.pdf. Acesso em 13 de agosto de 2015, p. 16-17. http://www.scielo.br/pdf/se/v29n1/02.pdf. Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 183 internacionais que os países da América Latina fazem parte, será um dos focos da pesquisa. A participação cidadã garantida pela UNASUL será observada sob a ótica das diferenças histórico-culturais decada Estado Membro, com suas devidas particularidades, buscando a almejada cidadania sul-americana. Ademais, fatores internos e externos de cada país fi nalizam a refl exão dos obstáculos enfrentados no alcance da participação cidadã latino-americana no contexto da governança global. O papel político dos países da América Latina será visto de forma crítica, sendo a UNASUL principal agente catalisador para a ascensão destes, buscando a efetividade de sua participação cidadã. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Brasil no contexto da governança global. Cadernos Adenauer. IX (2008) n. 3, Governança Global. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, março 2009, ISBN: 978-85-7504-136-9; p. 199-219. Disponível em: http://www. pralmeida.org/05DocsPRA/1946BrasilGovernGlobalCadAden.pdf. Acesso em: 13 ago. 2015. AMARAL, Arthur Bernardes de. Os conceitos de regimes internacionais e de governança global: semelhanças e diferenciações. Revista Eletrônica Tempo Presente. Disponível em: http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_ content&view=category&id=39&IteIte=127&limitstart=18. 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Forma-se uma relação de interdependência entre eles, especialmente no quesito econômico, e percebe-se que o próprio exercício da cidadania vivencia uma mudança de foco. Nas Constituições dos Estados que compõem a União Europeia há a declaração de serem Estados Democráticos, e para que sejam de fato considerados como tais, faz-se mister que a soberania do povo seja uma realidade. A UE, enquanto bloco econômico, é composta por instituições que visam desenvolver projetos para que os próprios Estados que a integram progridam, e, no atual contexto da globalização, exige-se que os indivíduos exerçam sua cidadania não só pensando no seu respectivo Estado, mas no bloco como um todo. Entretanto, fatores contemporâneos, como uma crise econômica, por desestabilizar a política nacional de diversos países, estimulam a rejeição ao projeto europeu, o que eventualmente deixa o exercício da cidadania em um nível supraestatal renegado à segundo plano. O presente Graduanda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS/UNESP). Graduando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS/UNESP). Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 186 trabalho visa analisar o motivo por trás dessa rejeição ao exercício da cidadania frente à crise econômica na União Europeia. Em um contexto de crise, falta a solidariedade entre os países da União Europeia, não havendo um estímulo ao exercício da cidadania perante a comunidade. É de extrema relevância entender como se dá essa falta de solidariedade e como isso afeta o contexto contemporâneo, uma vez que o cenário da globalização exige a atuação conjunta dos atores internacionais, e sendo os Estados caracterizados enquanto democráticos, a participação dos cidadãos é imprescindível. Para isso, é também pertinente analisar as teorias sociológica, jurídica e política da Constituição, para que se tenha diferentes visões da sua existência perante a sociedade. Dessa forma, o trabalho em questão analisa o conceito de Constituição a partir das teorias sociológica, jurídica e política; expõe o conceito de cidadania presente nas Constituições de Estados Democráticos e a mudança de foco do seu conceito clássico frente às exigências do mundo globalizado, que demandam uma ação conjunta dos atores internacionais, e consequentemente, dos cidadãos; e por fi m, analisa o impacto da crise econômica sobre o exercício da cidadania pelos cidadãos que compõem a UE, propondo uma hipótese que explicaria a renúncia a tal exercício conjunto. A pesquisa é de cunho exploratório, tendo por base a pesquisa bibliográfi ca, que por analisar material já confeccionado, reúne conceitos esparsos e possibilita uma análise mais profunda acerca do problema. (GIL, 2002, p. 44). O método indutivo terá seu papel para a análise, mesmo que superfi cial, do caso particular da crise que se instaurou na Europa e mostrou seus efeitos a partir de 2008, para assim se chegar a uma CONSIDERAÇÕES FINAIS. Por fi m, o método dedutivo terá ênfase notável, já que se partirá de premissas que estabelecem conceitos indispensáveis para a análise do tema tratado. 1 TEORIAS DA CONSTITUIÇÃO A Constituição, enquanto elemento que embasa o Estado Democrático de Direito, levou diversos doutrinadores ao estudo de sua natureza e atuação na sociedade. A compreensão daquela a partir de teorias é fundamental para que seja possível um estudo metódico de sua estrutura. Há diversas Teorias da Constituição, mas, para os fi ns do presente estudo, abordfundamental, tendo como essência a decisão que expressa a vontade Anais do III Seminário de Direito do Estado Teorias da Constituição e as novas concepções de cidadania 187 constituinte e a unidade política, ou seja, tem como fundamento essa decisão, e não o procedimento difi cultoso. (SCHMITT, 2008, online). 2 CONCEITO DE CIDADANIA NAS CONSTITUIÇÕES DE ESTADOS DEMOCRÁTICOS A reaproximação