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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL MÁRCIO LUÍS DE SOUZA Vida urbana e suburbana nas terras do café: racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto (1874-1914) Franca - SP 2009 MÁRCIO LUÍS DE SOUZA Vida urbana e suburbana nas terras do café: racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto (1874-1914) Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História e Cultura Social. Orientador: Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi Franca - SP 2009 Souza, Márcio Luís de Vida urbana e suburbana nas terras do café : racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto (1874-1914) / Márcio Luís de Souza. –Franca : UNESP, 2009 Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP 1. Café – História econômica – Brasil. 2. Ribeirão Preto (SP) – História urbana, séc. 19-20. 3. Cafeicultura. CDD – 981.552RP MÁRCIO LUÍS DE SOUZA Vida urbana e suburbana nas terras do café: racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto (1874-1914) Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História e Cultura Social. BANCA EXAMINADORA Presidente:______________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi (Unesp/FHDSS) 1º Examinador:___________________________________________________ Prof. Dr. Lélio Luiz de Oliveira (Unesp/FHDSS) 2º Examinador:___________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Theodoro Grilo (Fundação de Ensino Superior de Passos) 1º Suplente:_____________________________________________________ Profª. Drª. Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal (Unesp/FHDSS) 2º Suplente:_____________________________________________________ Rogerio Naques Faleiros (UFES) Franca, ____ de _____________________ de 2009. Dedico esta obra a Pedro Geraldo Tosi: Pelas lições de História, pelas lições de vida, em resumo, pelas lições de humanidade. Agradecimentos Esta obra é resultado de uma vontade extrema de contribuir com a sociedade por meio da divulgação dos conhecimentos obtidos graças à realização da pesquisa acerca da história da cidade de Ribeirão Preto, captada por meio da análise das escrituras públicas arquivadas no 1º Tabelião de Notas de Ribeirão Preto. Para que eu pudesse realizar esta vontade, muitas instituições e pessoas, representando aquelas ou mesmo agindo em nome dos seus próprios sentimentos, fizeram-se presentes de forma fundamental. Transcorridos muitos meses, percebo agora o quão difícil é explicar a todos como cada um despertou para sempre a minha gratidão. Por esta razão, por ser difícil, às vezes irrealizável discriminar em palavras o que agora eu sinto, quero apenas deixar registrado aqui alguns nomes. Agradeço, Ao Prof. Pedro Geraldo Tosi, a quem eu dedico tudo o que de bom possa ter esta obra, bem como a Lâmia Jorge Saadi, ambos maravilhosos para todas as horas e conversas, sobretudo as intelectuais e as de vida. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e, por extensão, a todos os professores e funcionários envolvidos nas comissões e tramitações burocráticas que consideram minha pesquisa merecedora do auxílio financeiro desfrutado durante a vigência da pesquisa. Aos funcionários da seção de pós-graduação e da biblioteca da Unesp-Franca, especialmente as pacientes e atenciosas sras. Maísa, Lourdinha e Laura. Aos funcionários do 1º Tabelião de Notas de Ribeirão Preto, especialmente a Dra. Sílvia M. C. Papassidero e ao Dr. Rubens. Aos professores da Unesp-Franca, especialmente ao Prof. Lélio Luiz de Oliveira e à Prof. Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal, pelas valiosas críticas quando do exame geral de qualificação. Aos amigos e parceiros de ofício, Márcio R. F. dos Anjos, Marcus G. Bianco, Rafael E. Faria, Fernando H. Gelfuso, Fernando A. Gelfuso, Larissa R. Gomes e Luiz Gustavo Godoy. A todos os meus familiares de sangue e de consideração, sobretudo aos meus tios Gilberto, Rosângela e Nair; à minha sogra Margarete, ao Luizão (“meu sogro”), à Vó Laura e à tia Anete; ao meu irmão Marcos Tadeu, à minha cunhada Karina e ao meu adorável sobrinho Gabriel; à querida Família Lima (Maria Helena, Maria Elisa, Fernanda, Arthur e Bira); e, especialmente, à minha mãe Sonia Regina Sartoratto, à minha avó Julia da Silva Sartoratto, à minha irmã Elaine Cristina de Souza e à minha noiva (futura esposa e eternamente Amor) Priscilla Aristea Marchetti, essas que foram as mais próximas de mim em todos os momentos, não por acaso fazendo os bons sempre mais recorrentes do que os ruins, por transformar as ocasiões de dificuldade em oportunidades de reflexão e de engrandecimento pessoal e espiritual. “Todos os animais se defrontam com o desafio da subsistência material, mas apenas os humanos carregam a responsabilidade da questão exasperante do sentido disso” David Snow & Leon Anderson. SOUZA, Márcio Luís de. Vida urbana e suburbana nas terras do café: racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto (1874-1914). 2009. 165 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009. RESUMO O objetivo desta pesquisa é estudar o processo de racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto entre os anos de 1874 e 1914, com destaque para as atividades complementares à economia cafeeira havidas nesta cidade. Para esta finalidade, privilegiamos a análise das escrituras públicas arquivadas no 1º Tabelião de Notas de Ribeirão Preto, e não deixamos de levar em conta a vasta produção bibliográfica acerca do fenômeno urbano e do “mundo do café”, bem como da história regional na qual o município desempenhou progressivamente o papel de pólo dinâmico e de captação de capitais e de pessoas. A consideração de trabalhos que se voltaram à pesquisa das muitas faces da história desta cidade se dá pelo julgamento de que as somatórias dos conhecimentos obtidos, especialmente aqueles resultantes da utilização de outros tipos de fontes, agregarão ao trabalho uma possibilidade maior de compreensão da conjuntura escolhida, concomitantemente apresentando uma contribuição que pretende valorizar ainda mais os debates acerca da história local, sobretudo do que se pensa a respeito dos seus agentes sociais. Palavras-chave: vida urbana e suburbana. racionalização dos negócios. vivência coletiva. negociações e contratos. plantação de café. atividades complementares. Ribeirão Preto. SOUZA, Márcio Luís de. Urbane and suburban life in the lands of the coffee: rationalization of the business and of the collective existence in Ribeirão Preto (1874- 1914). 2009. 165 f. Dissertation (Master inHistory) – Faculty of History, Law and Social Work, São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009. ABSTRACT The purpose of this research is to study the process of rationalization of the business and of the collective way of living in Ribeirão Preto between the years of 1874 and 1914, with focusing for the complemental activities in the coffee economy had in this city. For this end, we privilege the analysis of the deeds registered in the 1st Notary Public on Ribeirão Preto (SP), and do not stop taking into account the large bibliographical production about the urbane phenomenon and the “world of the coffee”, as well as of the regional history in which the local authority fulfilled progressively the paper of dynamic pole and of captivation of capitals and of persons. The consideration of works that were turned to the inquiry of many faces of the history of this city if it gives for the judgement of which the joinings of the obtained knowledges, specially to that resultant forces of the use of other types of sources, will collect to the work a possibility bigger of understanding of the chosen state of affairs, concomitantly presenting a contribution that claim to value still more the discussions about the local history, especially of what one thinks as to his social agents. Key-words: urbane and suburban life. rationalization of the business. collective way of living. negotiations and contracts. coffee planting. complemental activities. Ribeirão Preto. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 TRATOS E CONTRATOS NA MODERNIZAÇÃO URBANA ............. 16 1.1 Os indivíduos e a sociedade moderna: uma análise compreensiva das contribuições recíprocas ..................................................................................... 17 1.2 Os indivíduos e as classes profissionais ........................................................ 21 1.3 Origens históricas de Ribeirão Preto: fatos e debates .................................... 32 1.3.1 A incursão da história ribeirãopretana no processo histórico regional paulista ...................................................................................................... 34 1.4 As interações humanas e as modificações do espaço natural ..................... 40 CAPÍTULO 2 A RACIONALIZAÇÃO DOS NEGÓCIOS ........................................... 45 2.1 As transformações ocasionadas pela economia cafeeira ............................. 46 2.2 Os negócios proporcionados pela racionalização dos espaços públicos e privados ................................................................................................. 53 2.3 O urbano e o suburbano em Ribeirão Preto: referenciais em mobilidade ao longo da história da cidade ................................................................................... 59 2.4 A peculiaridade dos habitantes do Núcleo Colonial Antonio Prado: suas atividades complementares e suas conexões ao fluxo de riqueza da atividade cafeeira ...................................................................................................... 66 2.5 As múltiplas dimensões do colonato em Ribeirão Preto ............................... 74 CAPÍTULO 3 A RACIONALIZAÇÃO DA VIVÊNCIA COLETIVA ............................. 86 3.1 A sociabilidade herdada da escravidão e do preconceito ............................. 87 3.2 Os percalços da modernização das relações de trabalho: a transição da mão-de-obra escravista para a assalariada e livre em Ribeirão Preto ...................... 94 3.3 As escrituras de locação de serviços ........................................................... 101 3.4 O caipira ou o que se pensa do homem moderno ribeirãopretano ............ 104 3.4.1 Nos rastros da história ................................................................................ 108 CAPÍTULO 4 AS HIERARQUIAS DA MUDANÇA ................................................. 116 4.1 Ribeirão Preto e Franca: similaridades e distinções dos aspectos da sua formação ........................................................................................................... 117 4.2 O papel da educação em vista da racionalização das posturas de vida .... 124 4.3 O crescimento horizontal da cidade e a verticalização dos grupos sociais ...... 129 4.4 A racionalização como guia das mudanças ................................................. 133 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 142 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 145 FONTES MANUSCRITAS E IMPRESSAS ............................................................. 165 11 Introdução Esta dissertação foi elaborada visando apresentar um balanço geral das contribuições críticas e históricas acerca do tema da pesquisa de mestrado que me propus a pesquisar, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi, e que titulei de “Vida urbana e suburbana nas terras do café: racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto (1874-1914)”. Sob a forma de capítulos e subcapítulos, está aqui realizada uma breve consideração sobre o cotidiano socioeconômico de Ribeirão Preto, com destaque para as atividades complementares à economia cafeeira havida entre os anos 1874 e 1914, fundamentada a partir da análise das escrituras públicas arquivadas no 1º Tabelião de Notas desta cidade. Ainda, durante a análise destas fontes, não deixei de valorizar a extensa relação bibliográfica pertinente ao tema, que por vezes veio ao encontro do que inferi a partir das fontes; em outras, de encontro ao que julguei; não antes de uma criteriosa reflexão e averiguação fonte versus conhecimento teórico e histórico. As aproximadamente sete mil escrituras estudadas no período de julho de 2006 a fevereiro de 2009 corroboram sobejamente um movimento mais amplo do processo de racionalização, e este redundou na modernização dos negócios e da vida cotidiana na cidade. Esse percurso analítico, lastreado nas fontes tratadas, teve forte entrelaçamento com as opções teóricas e metodológicas que acabaram sendo empregadas no processo de síntese. As estratégias expositivas escolhidas procuram evidenciar esse percurso de investigação e elas deram corpo ao presente trabalho. A intenção que motivou a execução desta pesquisa foi dar a nossa contribuição à vasta reflexão feita em relação ao tema do “mundo do café”, do qual a história de Ribeirão Preto é herdeira, a partir do norte da racionalização dos negócios e da vivência coletiva da população. Nesse sentido, os dados coletados foram fundamentais para darmos cores às histórias da população que teve acesso à efetivação dos seus interesses por meio das escrituras públicas e, ao dizer isto, estamos conscientes de que muitas transações de diversas ordens não chegaram a ser firmadas no tabelião estudado ou mesmo em outro. Ainda assim, a amplitude de tipos de escritura e de agentes sociais envolvidos nos documentos firmados nos inspira a acreditar que a realidade acessada por meio 12 do que foi oficializado dá fortes indícios de que o processo de racionalização dos negócios inspirou a modernização da cidade, perspectiva que julgamos humanizar a conjuntura proposta, muitas vezes exposta de maneira sistêmica e despersonalizada. A feição da cidade varia conforme se dá a relação dos grupos sociais entre si, e nisto há mais contradições do que proximidades, salvo se olharmos de maneira distanciada para as peculiaridades a ponto de criar a impressão que os pontilhados aparentem serem riscos. Optamos não firmar um único foco para, com isso, termos liberdade de particularizar ou de generalizar os conhecimentos obtidospela confrontação das fontes primárias com as fontes secundárias, sobretudo compostas por dados bibliográficos. Para aproveitarmos ao máximo as informações coletadas das escrituras públicas, buscamos valorizar sua natureza diversificada e dinâmica, permitindo análises tanto de ordem qualitativa quanto quantitativa, as quais se somarão às linhas de todo o conjunto, fazendo com que a explanação feita abaixo não seja, de forma alguma, de caráter conclusivo, mas de compartilhamento ao que já é de domínio público. Visando ao melhor amadurecimento teórico e histórico, trabalhamos na expectativa de conciliar as críticas já existentes e pertinentes ao tema às reflexões realizadas e debatidas com o meu orientador, na finalidade de redigir uma dissertação que, concomitantemente, dê a sua contribuição ao esforço dos pesquisadores que antes de nós já se dedicaram e se dedicam ao ofício, explorando com os seus esforços as múltiplas facetas do passado e que, por isso, promovem e valorizam a continuidade do debate acadêmico. Ainda, desejamos agregar ao conhecimento histórico de toda a população o saber histórico promovido pela concretização desta dissertação, ainda que ciente de que se trata de uma pequena parte do passado, mas certamente uma parte que se soma ao todo, este que eternamente será buscado por aqueles que refletem a História. Foi tateando o percurso histórico do capitalismo industrial e financeiro que pudemos perceber que homens e mulheres viram-se cada vez mais longe do modo de viver que marcaram os seus antepassados. Na conjuntura destes novos tipos de capitalismo, a estafa física e mental durante a realização de empreendimentos desgastantes, muitas vezes em benefício maior de outrem, fez com que estas pessoas trabalhadoras necessitassem de um elixir que lhes dessem um fôlego a mais para suportar mais algumas horas de trabalho. Foi graças ao hábito de tomar 13 café, principalmente das pessoas afetadas por este novo ritmo de vida, instalado nos Estados Unidos e na Europa, que o Brasil entrou no cenário internacional. (HOLLOWAY, 1984, p. 17) Isto possibilitou o encontro de culturas e gerou a transformação da vivência coletiva que, ao longo das décadas após a segunda metade do século XIX, veio a se constituir o “mundo do café” no estado de São Paulo, especialmente na região de Ribeirão Preto. Para melhor viver nele, foi preciso racionalizar as condutas pessoais visando a uma finalidade. Para uns, acumular patrimônio, para outros, viverem como lhes conviesse desde que estivesse garantida a subsistência, ao menos. O resultado desta racionalização compulsória da vida foi a assimilação pela maior parte das pessoas que passou a materializar suas ações de maneira inédita, a qual foi chamada, grosso modo, de modernização. As escrituras públicas conservam relações econômicas, culturais, sociais e políticas. Algumas delas, concomitantemente, conservam mais de um aspecto da vida humana. Por outro ângulo, as escrituras remetem a um acordo entre partes, em sua maioria referente a um público muito pequeno e, na maior parte dos casos, envolvendo interesses comuns a dois indivíduos. Contudo, se as escrituras durante o período proposto (1874-1914) forem olhadas globalmente, não veremos com nitidez os indivíduos, veremos, sim, parte da sociedade que perpetuou a sua existência e os seus interesses particulares num instrumento público e legal. Possuidoras de uma essência particular, porém fruto da vida em sociedade, as escrituras públicas conservam em suas linhas a relação indivíduo e sociedade, privado e público, sagrado e secular, e, em certa medida, fatos e representações. Se a sociedade contemporânea é regida por interesses interindividuais visando a fins, conforme entendemos, então postular a sociedade atual como sociedade de indivíduos como fez Norbert Elias (1994) não é uma redundância, mas realçadora das forças sociais que dinamizaram e dinamizam a vida em sociedade na nossa época, marcada pelo capitalismo cada vez mais atomizado e também pela ocorrência de ações voltadas ao público, inclusas aquelas movidas por um ideal, que necessariamente vai em direção e benefício do outro, mas que não deixa de ser voltada para o sujeito propiciador por meio da satisfação que nele é gerada pela sua realização. Ensina-nos o autor acima que não são entidades ontologicamente diferentes o “ser humano singular, rotulado de individuo, e a pluralidade das pessoas, concebida 14 como sociedade” (ELIAS, 1994, p. 7). É necessária a compreensão de ambos sem pô-los como simples opostos. Cada indivíduo tem uma função na sociedade, que por vezes limita a ação dos seus integrantes, sem, no entanto, acorrentá-lo. É justamente a possibilidade de ação e de mudança que permite a mobilidade social do indivíduo dentro da hierarquia já constituída. Em outras palavras, a sociedade limita o indivíduo, mas não o encarcera. Cada um dos passantes, em algum lugar, em algum momento, tem uma função, uma propriedade ou trabalho específico, algum tipo de tarefa para os outros, ou uma função perdida, bens perdidos e um emprego perdido. [...] Como resultado de sua função, cada uma dessas pessoas tem ou teve uma renda, alta ou baixa, de que vive ou viveu; e, ao passar pela rua, essa função e essa renda, mais evidentes ou mais ocultas, passam com ela. Não lhe é possível, simplesmente, passar para outra função, mesmo que o deseje. O atacadista de papel não pode, subitamente, transformar-se num mecânico, ou o desempregado num diretor de fábrica. Menos ainda pode, qualquer deles, mesmo que o queira tornar-se cortesão, cavaleiro ou brâmane, salvo na realização de um baile a fantasia. cada qual é obrigado a usar certo tipo de traje, está preso a certo ritual no trato com os outros e a formas especificas de comportamento, muito diferentes dos moradores de uma aldeia chinesa ou de uma comunidade de artesãos urbanos do começo da Idade Média. A ordem invisível dessa forma de vida em comum, que não pode ser diretamente percebida, oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções e modos de comportamento possíveis. Por nascimento, ele está inserido num complexo funcional de estrutura bem definida; deve-se conformar-se a ele, moldar-se de acordo com ele e, talvez, desenvolver-se mais, com base nele. Até sua liberdade de escolha entre as funções preexistentes é bastante limitada. Depende largamente do ponto em que ele nasce e cresce nessa teia humana, das funções e da situação de seus pais e, em consonância com isso, da escolarização que recebe. (ELIAS, 1994, p. 21) É por isso que as atitudes individuais só são compreensíveis se relacionadas aos outros integrantes da sociedade. Devemos olhar o todo para vermos a estrutura social, ao passo que devemos restringir o nosso olhar para vermos onde cada parte se encaixa nesta estrutura, que não é sempre visível, mas é perceptível. Em virtude dessa inerradicável interdependência das funções individuais, os atos de muitos indivíduos distintos, especialmente numa sociedade tão complexa quanto a nossa, precisam vincular-se ininterruptamente, formando longas cadeias de atos, para que as ações de cada indivíduo cumpram suas finalidades. Assim, cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que a prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e, decerto, não menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que chamamos “sociedade”. (ELIAS, 1994, p. 23). 15 Feita esta breve introdução, a seguir seguem os resultados da pesquisa, diluídas através das linhas que se seguemsob a forma de capítulos e subcapítulos, na finalidade de darmos a esta opção uma cadência lógica que aponte as contradições e os conflitos de interesse na história da cidade de Ribeirão Preto, sob a ótica das escrituras públicas, e com o apoio do esforço de outros pesquisadores que serão citados, além dos demais que fazem parte da bibliografia desta pesquisa. 16 CAPÍTULO 1 TRATOS E CONTRATOS NA MODERNIZAÇÃO URBANA 17 1.1 Os indivíduos e a sociedade moderna: uma análise compreensiva das contribuições recíprocas. Ensina-nos Max Weber através da sua obra “Economia e Sociedade” que o tipo de consumo, a honra e o prestígio social são reforçadores da posição de classe social dos indivíduos. Destarte, a compreensão da vivência humana e de cada indivíduo através dos tempos por meio da sua “situação de classe” se dá, para o autor, pela oportunidade da pessoa de acessar a rede de abastecimento de bens, mediante uma posição de vida externa a si, além da sua inserção “dentro de determinada ordem econômica, da extensão e natureza do poder de disposição (ou da falta deste) sobre bens ou qualificação de serviço e da natureza de sua aplicabilidade para a obtenção de rendas ou outras receitas.” (WEBER, 2004, v.1, p. 199). Como pode ser percebido, o indivíduo, desde o nascimento, é confrontado pela realidade social que o rodeia e é apto a intervir na realidade que ele ajuda a construir dia-a-dia, de tal forma válida para todos os demais viventes, que é possível afirmar que “classe” representa, de maneira aproximada, [...] todo grupo de pessoas que se encontra em igual situação de classe [sendo que as] transições de uma classe para outra podem ser ou não fáceis e fluentes, em grau muito diverso; por isso, difere também, no mesmo grau, a unidade das classes sociais. (WEBER, 2004, v.1, p. 199). Na sociedade capitalista, o desenvolvimento de uma profissão pode se tornar numa oportunidade de se projetar em círculos sociais privilegiados ou em agravo para a pessoa caso o conhecimento prático, técnico e teórico, se dêem em circunstâncias de superação do Know-how possuído, permitindo a maleabilidade de indivíduos entre as classes, tanto para cima quanto para baixo, dentro da hierarquia social estabelecida. O estabelecimento, a manutenção e a consolidação de uma hierarquia somente se tornam possíveis caso haja um domínio de poder e de mecanismos que permitam o extravasamento do seu uso sobre os demais grupos sociais. De acordo ainda com Weber, em “Ciência e Política: duas vocações”, existem primordialmente três fundamentos da legitimidade que justificam a dominação: o “poder tradicional”, o 18 “poder carismático” e o poder baseado na autoridade que se impõe pela “legalidade”, [...] pela crença na validade de um estatuto legal e de uma “competência” positiva, estruturada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outras palavras, a autoridade fincada na obediência, que reconhece obrigações concernentes ao estatuto estabelecido. Assim é o poder, tal qual o exerce o “servidor do Estado” atualmente e como o exercem todos os detentores do poder que dele se aproximam sob esse aspecto. (WEBER, 2003, p. 61). É notória a preocupação deste pensador quanto à definição de conceitos que amparem os cientistas sociais de ferramentas epistemológicas que os auxiliem na compreensão do homem e das suas ações em sociedade. No tocante às ações, Weber desenvolve o conceito de ação social significativa, tendo como ponto de partida o indivíduo; mesmo as formações como Estado, empresa ou sociedade anônima aparecem a ele como produto de entidades individuais, ou melhor, são palcos onde se define a ação social de uns quantos indivíduos. (TRAGTENBERG, 2006, p. 141, grifos do autor). O conceito de ação social, segundo Weber, “orienta-se pelo comportamento dos outros”, os quais “podem ser indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade indeterminada de pessoas completamente desconhecidas”. Dos quatro tipos de ação social formulados pelo autor, privilegiamos aqui a ação social determinada [...] de modo racional referente a fins, por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como “condições” ou “meios” para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente [...]. (WEBER, 2004, p. 15). Esta opção deve-se à essência da fonte escolhida, ou seja, as escrituras públicas que, conforme já explanamos, concretiza vontades referentes às transações comerciais e trabalhistas, principalmente, as quais são ações marcadamente filhas da racionalização dos negócios e do processo de modernização dos aparelhos burocráticos, dos quais o tabelião e seus representantes são exemplos diretos de vinculação à estrutura burocrática que se aperfeiçoou com a instalação do regime republicano, assumindo as rédeas e executando reformas no Estado Nacional brasileiro, a começar pela criação de uma nova Constituição. Weber não deixou de observar que a burocracia 19 [...] é um tipo de poder. Burocracia é igual à organização. É um sistema racional em que a divisão de trabalho se dá racionalmente com vista a fins. A ação racional burocrática é a coerência da relação entre meios e fins visados. (TRAGTENBERG, 2006, p. 171). Contudo, a atenção dada aos comportamentos racionais, no sentido de serem meios eficazes de obter fins práticos definíveis e compreensíveis, em meio a uma conjuntura marcada pela vivência progressivamente secularizada que ocorreu em Ribeirão Preto, não desconsidera a legitimação de outros tipos de ações que foram perpetuadas por meio das escrituras públicas. Os outros tipos de ações não relacionadas às supramencionadas também foram firmadas em escritura, embora em menor número. Fazendo uso da terminologia weberiana, podemos defini-las em ações determinadas 2) de modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo, especialmente emocional por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo tradicional: por costume arraigado. (WEBER, 2004, p. 15, grifos do autor). Justamente por não se referirem ao nosso objeto principal, que é mostrar a racionalização dos negócios e da vivência coletiva em Ribeirão Preto e, por este viés, apontar a secularização das condutas e como estes valores foram internalizados pelas pessoas durante o período estudado, especialmente quando vinculadas às atividades complementares à economia cafeeira. As ações racionais referentes a valores, às emoções e à tradição, apesar de efetivadas em menor quantidade, nos levou atentarmos a elas sempre que foi pertinente durante a explanação das ações racionais referentes a fins, quando as atitudes dos homens estudados por meio da fonte escolhida não apontaram uma “praticidade” exigida pela vida moderna. Nesse sentido, abordar a idéia de cidade para então estudarmos a história de Ribeirão Preto ajuda a entender as transformações havidas, uma vez que o enquadramento teórico em face da realidade percebida por meio das escrituras públicas referentes a este município coloca-se próxima da definição de Max Weber para o conceito de cidade, ainda mais que suas origens relacionam-se à vinculação dos primeiros habitantes com o mercado de abastecimento de bens primários, ao 20 passo que seu desenvolvimento transformou a terra em mercadoria cada vez mais disputada, ocupada e usufruída para e pelo mercado: Pode-se tentar definir “cidade” de formas muito diversas. Apenas uma coisa têm em comum todas as definições:que se trata, em todo caso, de um assentamento fechado (pelo menos relativamente), um “povoado”, e não de uma ou várias moradias isoladas. Ao contrário, nas cidades (mas não apenas nestas) costumam as casas encontrar-se muito perto uma da outra, hoje em dia, em regra, germinadas. A idéia corrente associa também com a palavra “cidade” características puramente quantitativas: é um povoado grande. A característica em si não é imprecisa. Do ponto de vista sociológico, significaria o seguinte: um povoado, isto é, um assentamento com casas contíguas, as quais representam um conjunto tão extenso que falta o conhecimento pessoal mútuo dos habitantes, específico da associação de vizinhos. Segundo isto, somente povoados relativamente grandes seriam cidades, e depende das condições culturais gerais a partir de seu tamanho, mais ou menos, se aplica esta característica. (WEBER, 1999, v.2, p. 408, grifos do autor). Em complemento, pouco depois diz o pensador alemão: Toda cidade no sentido aqui adotado da palavra é “localidade de mercado”, isto é, tem um mercado local como centro econômico do povoado, mercado no qual, em virtude da existente especialização da produção econômica, também a população não-urbana satisfaz suas necessidades de produtos industriais ou artigos mercantis ou de ambos, e, como é natural, também os próprios moradores da cidade trocam entre si os produtos especiais e satisfazem as necessidades de consumo de suas economias. (WEBER, 1999, v.2, p. 409). Ao tratarmos do cotidiano havido no 1º Tabelião de Notas de Ribeirão Preto, é necessário falar dos homens para se chegar à sociedade. Embora algumas escrituras apontem a vinculação de laços pessoais para a concretização de alguns interesses, é necessário não perder de vista que o alastramento dos valores capitalistas a todos que ocuparam o espaço geográfico ribeirãopretano através dos tempos esteve intimamente ligado à reprodução de valores e condutas que extrapolam o limite individual. É necessário ter em vista que o mercado e os processos econômicos não são pessoas e, por isso, surgem delas e acabam por abarcar a tudo e a todos, não respeitando neste processo as vontades individuais, tampouco conservando o poder da palavra empenhada na execução de negócios ou mesmo biografias pautadas e orgulhosas numa determinada honra. O contrato substituiu a honra pessoal e passou a validar a palavra somente quando esta foi escrita num documento legal. Segundo Weber, o “mercado e os processos econômicos que nele se realizam não conhecem, [...] nenhuma “consideração 21 pessoal”: são dominados por interesses “objetivos”. Nada sabem de “honra”. (WEBER, 2004, v.2, p. 184). Contudo, o poder que o dinheiro faz deter a quem o possui pode criar uma “honra” admitida por alguns grupos sociais, mas cuja duração vincula-se proporcionalmente à capacidade do indivíduo de fazê-lo retornar, ainda em maior quantidade, às suas mãos. Mas nem todos que querem o poder (especialmente o econômico) fazem questão da honra, sobretudo quando a posse de um anula o reconhecimento social da detenção do outro. Alguns proprietários de terras da região de Ribeirão Preto negociavam escravos em pleno processo de gradual emancipação da escravidão e faziam isto em meio a um ambiente que julgavam desfavorável à manutenção do comércio de pessoas. Passada a conjuntura em que a escravidão era consentida, as mesmas pessoas deixaram de ter possíveis discriminações ao abandonar a sua prática e a figurar como incentivadoras do trabalho livre e assalariado. Há nisto mais complementaridade do que contradição na relação dos grupos sociais e dos indivíduos entre si na cidade, face ao fato da sobreposição do poder econômico, e por extensão o político, sobre as ações que compuseram a vida de algumas pessoas influentes na burocracia municipal, regional, e até mesmo na nacional. Foi possível observar este fenômeno, pois esta pesquisa está fundamentada em séries que foram dispostas através do tempo sob a forma de escrituras públicas. O enfoque qualitativo, não deixando de explorar por vezes o quantitativo, obedece ao sentido de compreender como a instalação de uma rede de prestação serviços e de atividades complementares à economia cafeeira auxiliaram as pessoas a suportar as crises motivadas pelos privilégios diversos dados pelo Estado brasileiro à agroexportação do café, incentivados inclusive por instituições financeiras internacionais que aqui se fizeram presentes, como por exemplo a Theodor Wille & Cia, por meio de prepostos. 1.2 Os indivíduos e as classes profissionais A expansão ferroviária em meio ao sertão paulista modernizou a visão histórica e mítica do bandeirante que antes marcava, e de certa forma ainda marca, o 22 processo de adentramento do território que tinha por certeza somente o inesperado. Se esta é marcada pelo heroísmo, entendimento de caráter bastante duvidoso, aquela, liderada pela locomotiva, é marcada pelo progresso técnico e pelo atrelamento das ações humanas rumo ao moderno, ao avançado. A apologia da ação dos imigrantes encabeçou o texto do “Almanach Ilustrado de Ribeirão Preto”, que nas páginas dedicadas aos aspectos históricos e geográficos da localidade, escreveu: A admirável ousadia dos Bandeirantes, de proporções legendárias, tantas e tão variadas vezes enaltecida pelos nossos historiographos, parece que veiu trazer com os rasgos dum mirifico descortino, a sua terra de Martim Afonso. Pelo menos é o que se deduz da maravilhosa vitalidade que nos varios departamentos do progredir está se manifestante nesta exuberante região. A Mão Providencial tão prodiga nos seus gestos divinaes, quis que Ribeirão Preto, como perola fulgente, fosse encadeia no collar preciosissimo constituído por estes núcleos de civilização d’Oeste Paulista. (ALMANACH, 1913, p. 12). O perigo desta visão heróica é a valoração de um sentido que julgamos não ser capaz de envolver todos os participantes da história. Mesmo a idéia de sentido é questionável, pois não raro sugere a idéia de líderes e condicionamentos que mais confundem os contemporâneos do que os capacitam a entender o conjunto do passado. O debate sobre a validade da idéia de sentido na história é antigo e foi tema do livro abaixo, do qual retiramos o fragmento que vem ao encontro do que propomos historiograficamente compor ao término desta obra, com a ressalva de que trabalhamos com a interação de grupos sociais e de seus indivíduos entre si, ao invés de um panorama mais amplo, como o de povos entre si: O sentido da história [para Herder] não é portanto dado a quem comanda, por quem tem condição de reconduzir as diferenças à unidade, mas pela polifonia, pela pluralidade de significados que provém da soma das contribuições anônimas que cada povo é capaz de trazer para as vicissitudes do mundo. (BODEI, 2001, p. 45). Acerca da história regional, contudo, as coexistências destas duas visões como antepassadas das ações que orquestraram a história do estado de São Paulo sugerem a predisposição do imaginário coletivo atual ao compor o encontro do que era novo com o que já se fazia presente, não raro privilegiando o primeiro e julgando o segundo como resultante do viver arcaico. 23 A atual diversidade historiográfica cada vez mais marca a disciplina pela pluralidade de objetos e de interpretações. Ao abarcar fatos e saberes que no início do século XX não eram concebidos, apesar de existentes por meio das fontes, uma vez que são elementos históricos, hoje concebem a validade de se entender as práticas cotidianas, os grupos sociais marginalizados e a relação das diversas esferas da vida de uma sociedade específica ou de várias entre si, cientes de que todos os agentes sociais estavam promovendo constantemente mudanças de ordens diversas, tanto no âmbito particular como no geral. As dualidades particular e geral, elitee povo, ricos e pobres, produzem particularidades que atravessam o tempo e aproximam o historiador do que de fato se passou, sobretudo se as fontes escolhidas possibilitam a descrição da interação de homens e de mulheres entre si, o que cremos dar vida e sentido a estas dualidades que tantas vezes fazem parte das análises de pesquisas sociais que todavia ficam um pouco desbotadas perante as cores que de fato ilustravam o cotidiano do passado. [...] difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança. Visto de seu interior, o cotidiano parece eterno. O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história, relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos, como a Reforma ou a Revolução Francesa, ou a tendências de longo prazo como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo. O famoso sociólogo Max Weber criou um termo famoso que pode ser útil aqui: “rotinização” (Veraltäglichung, literalmente “cotidianização”). Um foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por outro. Até que ponto, por que meios e durante que período a Revolução Francesa ou a Revolução Russa (por exemplo) penetraram na vida cotidiana dos diferentes grupos sociais, até que ponto e com que sucesso eles resistiram? (BURKE, 1992, p. 24-25). No que se propõe este trabalho, as estruturas do cotidiano e as mudanças se dão no sentido de averiguarmos como as relações de trabalho, comerciais e de outras naturezas, acompanharam o processo de racionalização dos negócios e da vivência coletiva, proporcionando, por sua vez, a modernização da cidade, na qual a arquitetura e os sistemas de transporte (para citarmos somente estes exemplos) deixam mais evidente durante o período estudado (1874-1914). A compreensão dos fatores que levam a essas mudanças deve ser enquadrada como resultante da consolidação do capitalismo enquanto sistema, bem como do “capitalismo moderno e o processo de racionalização da conduta de vida da qual ele é expressão” (COHN, 24 2006, p. 12), à luz de que estes não interagem sem deixar de se imporem na vivência diária da coletividade, assimilando os ritmos próprios de cada grupo pessoal e de cada indivíduo. Conectadas com outras cidades, as pessoas que moraram em Ribeirão Preto puderam criar mecanismos de defesa contra as forças externas de ordem material, como as crises, que independentemente do tempo e do lugar interagiram com estas pessoas sem demandar qualquer vínculo emocional, já que foram motivadas por interesses objetivos, cujos efeitos psicológicos, apesar de reais, foram pouco expressivos cotidianamente no poder de precarizar a vida da maioria da população, já que esta já vivia modestamente ou mesmo no limite da existência, fora do campo de ação direta destas forças. Pela exposição acima, ou pelo olhar mais atento da vivência contemporânea, é possível notar que as cidades são os espaços facilitadores para o ocasionamento do intercâmbio de mercadorias e valores sociais. Todavia, a racionalização de comportamentos e de idéias têm origem incerta, na medida em que as vontades individuais e coletivas possuem muitos nexos em comum, resultando que, para compreendê-la, é necessário fazer uma opção, razão que nos levou a concordar com Weber, que julga que “o agente individual é a única entidade capaz de conferir sentido às ações”. (COHN, 2006, p. 28). O apelo às formulações teóricas de Max Weber deve-se à necessidade de utilizarmos ferramentas metodológicas que dêem conta de sistematizar os dados levantados sem perder de vista a esfera mais delicada, que é a do indivíduo, já que pensamos a valorização extremada de oposições categóricas existentes no pensamento das ciências sociais mais afastariam do que aproximariam o âmbito dos interesses particulares dos coletivos. Por outro lado, por mais apurada que seja uma teoria, ela sempre causará sob algum ponto de vista algumas insatisfações, razão pela qual devemos nos ater às suas contribuições e à melhoria da capacidade crítica, cientes de que as não concordâncias são alertas inspiradores de cautela, para que o historiador não perca a autonomia perante os esquemas. Em torno das limitações e possibilidades do uso da teoria, criticou Gianfranco La Grassa: A teoria não pode de maneira nenhuma visar à reconstrução da mais completa concretude da realidade “cotidiana”; pode apenas construir esquemas abstratos de referência para compreender o sentido e a orientação (a direção de marcha) dos acontecimentos por períodos históricos (por “épocas sociais”) de várias extensões, mas, de qualquer 25 maneira, não mais relativos ao “dia-a-dia”. Para fazer uma analogia, ainda que imperfeita, quando se constrói o mapa de um território, de uma cidade, por exemplo, obtemos uma visão “idealizante” (esquemática), não se pode recriar a qualidade arquitetônica, urbanística, o tipo de organização social da cidade etc. A teoria não faz senão empobrecer, sob um certo ponto de vista, a realidade, mas sem ela não nos orientamos, podemos nos perder em um labirinto de vielas secundárias, contemplar os monumentos encontrados desordenadamente, sem nos remetermos a nenhum lugar, sem nos propormos a qualquer objetivo particular. (LA GRASSA, 1995, p. 104, grifo nosso). Mediante o tipo de pesquisa e de fonte privilegiada para a execução desta obra, esse embate modelo historiográfico/interpretativo versus realidade retratada pelos documentos mostrou-se problemático, pelas razões que nos deteremos abaixo com mais vagar. As análises das escrituras que permitiram acompanhar a trajetória comercial e de trabalho de alguns indivíduos indicam que não há em Ribeirão Preto um compromisso da pessoa com uma determinada classe social relativa a alguma profissão. O indivíduo vai aonde lhe é oferecida uma maior oportunidade de ganho, como por exemplo, deixar de lavrar a terra e passar a ser agenciador de mão de obra, situação em que ele mesmo era quem deveria utilizar a enxada. A tentativa de ascensão social via exploração de outrem foi um fato presente no cotidiano das pessoas residentes na cidade supramencionada. Em 24 de novembro de 1894, José Ignacio Nogueira contratou José Henrique de Lima para a “formatura” de cafezal de oito mil e cem pés de café, na condição deste lhe entregar os pés plantados e formados após quatro anos de idade. Para facilitar o seu trabalho, concedeu o proprietário pastos para os animais, carro de boi pelo tempo contratado, ficando o lavrador por providenciar o boi. Recebeu para tanto um conto de réis adiantado pelo contrato firmado no valor de 6:480$000 réis e multa de 200$000 em caso de arrependimento. No mesmo dia, José Henrique contratou Eduardo Soares, José Estevão e Geraldo Passo para a realização do trabalho que ele deveria prestar ao proprietário, e firmou com os três lavradores que lhes pagaria 1:200$000 réis pelo plantio de seis mil pés pelo prazo de dois anos. No tocante aos pagamentos, ficou acertado que no ato da escritura daria 300$000 réis aos três, 600$000 após trinta dias, 500$000 réis após sessenta dias (sob a forma de adiantamento, ficando os 400$000 restantes a receber no final do segundo ano. Ficou estabelecida ainda a cláusula de pagamento de 100$000 réis de multa em caso de arrependimento de ambas as partes. O primeiro contrato firmado entre o 26 proprietário e José Henrique não é citado, havendo, não obstante, somente a menção que o trabalho se daria na propriedade de José Ignacio Nogueira A permissividade, a brecha legal de se firmar escrituras subestabelecendo obrigações de trabalho, é uma forma de reforçar a estrutura social pela via da legitimação da exploração de uns sobre as carências de outros, mesmo que entre pessoas de condições materiais parecidas.Neste caso em especial, nota-se o uso de uma situação privilegiada, em que se detinha a confiança do concessor de trabalho e certa proximidade com a necessidade de trabalho e de renda de outras. Esta intermediação buscando a finalidade de enriquecimento valendo-se da sublocação de trabalho visava ao objetivo generalizado de ascender materialmente e, por conseguinte, socialmente, por meio da detenção de riquezas patrimoniais, no menor tempo possível e necessário para estes objetivos. E, de fato, a fluidez dos capitais nas mãos dos diferentes grupos sociais possibilitou o acesso às mercadorias e aos espaços reservados inicialmente à elite, mediante a obtenção de gostos e estilos de vida e de execuções de outras atividades profissionais não antes desempenhadas na localidade. Em 14 de abril de 1891, Joaquim Firmino D’Andrade Junqueira contratou Paschoal Dessio para que este executasse a [...] edificação de uma casa de morada na Rua do Comércio no alinhamento do lado superior, na esquina da Rua Tibyriça, tendo nesta rua sessenta palmos de frente e naquela cinquenta palmos também de frente, tendo nesta frente cinco janelas e naquela uma porta e quatro janelas, com duas salas na frente desta rua de vinte e sete palmos sobre dezenove palmos e seis repartimentos, uma sala de jantar e um puchado de trinta e dois palmos de comprido sobre vinte de largura, com as peças nela mencionadas a saber: treze portas e quatro janelas, edificação de tijolo, cal e areia, tendo as paredes a grossura de um tijolo, com pilares de pedras de cinqüenta centímetros de largura sobre oitenta de fundo, sendo forrados os seis cômodos de frente, a saber: duas salas e quatro quartos no corredor e as duas salas da frente, toda assoalhada, a exceção do puchado, rebocado caiado e cimalhas nas frentes, paratibanda e chapelinhos sobre os portais da frente com o telhado emboçado, tendo de altura dezoito palmos de pés direitos. Obriga-se mais o locador a dar a casa acabada com três demãos de tinta nas portas e janelas, com as fechaduras a sua custa. O locatário [Joaquim]obriga-se somente a dar dez dúzias de tábuas de cedro e um cano de cobre necessário para os telhados e paratibandas, mais o material a custa do locador [Paschoal] que dará a casa acabada e com solidez, entregando somente as chaves ao locatário que lhe pagará a quantia de nove contos de réis no começo da obra, três contos de réis no meio da obra e o restantes três contos de réis na entrega dessa casa coberta de telhas nesta cidade a Rua Amador Bueno, divisando por um lado com José Bergamo, italiano, por outro com José de tal, carroceiro, português. (ESCRITURA pública de 14 de abril de 1891, 1º Tabelião de Notas de Ribeirão Preto). 27 A escritura acima expõe a existência de diferentes tipos de atividades profissionais no cotidiano do “quadrilátero central”, expressão recorrente nos trabalhos acadêmicos que se voltam à história da cidade e que titula o espaço urbano compreendido entre as atuais avenidas Nove de Julho, Independência, Francisco Junqueira e Jerônimo Gonçalves, e que, na formação da malha urbana de Ribeirão Preto, é o herdeiro espacial do antigo “Patrimônio de São Sebastião”. Para ficar somente nos exemplos citados, podemos observar um pedreiro ou empreiteiro, um carroceiro e um membro de uma das famílias mais elitizadas da história da cidade durante a conjuntura proposta. Reparemos na menção dada ao “José de tal”, carroceiro, que habitava o quadrilátero central. O tipo de trabalho deste sujeito pode ter sido um agravante para que este reivindicasse um status social igualitário aos seus circunvizinhos. Se isto de fato ocorreu para ele, isto pode ter ocasionado uma crise de identidade social, pois a duplicidade do seu cotidiano de trabalho em face do conjunto de valores propagados na época, tal como refino, consumo de artigos importados e a detenção de mandonismo político-econômico, não fossem compatíveis, em outras palavras, atribuíveis a ele, o que faz parecer não tão estranho que nem o Joaquim Junqueira e nem o tabelião (que era morador desta rua) o conhecessem quando foi necessário citá-lo Esta artificialização das relações sociais por parte destes homens que tinham originalmente “os pés de barro ou as mãos calejadas” com aqueles já nascidos em berço privilegiado é originária num superficial refinamento do indivíduo e da sociedade que, não raro, apenas fez o indivíduo reproduzir o que socialmente lhe era apresentado como sinal de requinte, sem saber ou mesmo gostar daquilo, mas que ainda assim era por ele reproduzido por necessidades culturais de manter-se dentro de um “círculo social”, metáfora, aliás, que sugere igualdade entre pares num mundo desigual. O próprio estudo das escrituras públicas apontou que não eram somente os homens de negócio que recorriam aos instrumentos legais de concretização de atos tornados públicos. Houve a presença, no 1º Tabelião de Notas, de negros, de mulheres, de analfabetos, de imigrantes e de pobres que deram o caráter diversificador da realidade socioeconômica de Ribeirão Preto no momento da sua afirmação como líder regional paulista. Por outro aspecto, a análise dos contratos permite a percepção de que os mais diversos grupos sociais estavam imersos num processo de modernização, cujo 28 exemplo mais claro é a presença de julgamentos morais perpetrados pelo tabelião, figura chave deste tipo de fonte, durante o período proposto, em face do seu anverso atual, desprovido de comentários e julgamentos morais ou éticos de qualquer tipo. A passagem, a mudança gradual da forma de concretizar a escritura é um indício desta racionalização que haveria de se completar somente após a segunda metade do século XX, quando toda a cidade já estava assimilada aos fluxos nacionais e internacionais, seja do ponto de vista da sociabilidade, seja pela superação do ritmo do campo pelos seus moradores, situação na qual a resistência implicou na assimilação forçada ou então na marginalização implacável da nova sociabilidade voltada à vida marcadamente urbana e capitalista. Convém destacar que Ribeirão Preto firmou-se na última década do período proposto como pólo regional graças à postura de exportar produtos agrícolas e importar produtos que aqui não eram produzidos ou, se eram, não tidos como merecedores do capital da elite local. Sob outro ângulo, assistimos por meio das descrições das escrituras um aprofundamento da exploração do trabalho de cunho marcadamente agrícola enquanto outra área paulista, como a capital, tratava de firmar-se como pólo industrial. Não se firmar como área industrial obrigou os trabalhadores ribeirãopretanos a um arrocho disciplinar ainda maior no seu cotidiano de trabalho, dado o descompasso das relações de trocas dos produtos produzidos em vista dos que eram necessários adquirir, bem como a distância do valor do trabalho em face da renda percebida ao final do período contratado, quando finalmente era possível o acesso direto à renda monetária, isto quando esta ocorria. Tal efeito fica ainda mais evidente com a constatação de que os mais pobres não tinham acesso freqüente ao consumo destes tipos de produtos mais requintados (mediante a realidade local), conclusão baseada nas dissertações e teses aqui abordadas, o que nos reforça ainda mais o distanciamento social e cultural da maior parte dos homens que trabalhavam diretamente com atividades complementares daqueles integrantes da elite local, mantenedora da economia cafeeira, desfrutadora da rede comercial e de prestação de serviços. Ao enfatizar o aspecto da dependência – a conhecida relação centro- periferia, os teóricos do “modo de produção subdesenvolvido” quase deixaram de tratar os aspectos internos das estruturas de dominação que conformam as estruturas de acumulação próprias de países como o Brasil: toda a questão do desenvolvimento foi vista pelo ângulo das relações29 externas, e o problema transformou-se assim em uma oposição entre nações, passando despercebido o fato de que antes de oposição entre nações, o desenvolvimento ou crescimento é um problema que diz respeito à oposição entre classes sociais internas. (OLIVEIRA, F., 2006, p. 33). As atividades complementares se tornaram fundamentais para a absorção das crises nacionais e internacionais, e isto garantiu a vanguarda econômica da região para a cidade de Ribeirão Preto, conforme capítulo próprio destinado a este fato. Sem pretendermos adiantar a exposição, podemos afirmar que um dos mecanismos de captação e fixação de capitais que explicam como este tipo de atividade complementar à cafeeira auxiliou na manutenção da economia local é explicada abaixo: A razão básica pela qual pode ser negada a negatividade do crescimento dos serviços – sempre do ponto de vista da acumulação global – é que a aparência de “inchação” esconde um mecanismo fundamental da acumulação: os serviços realizados à base de pura força de trabalho, que é remunerada a níveis baixíssimos, transferem, permanentemente, para as atividades econômicas de corte capitalista, uma fração do seu valor, “mais- valia” em síntese. (OLIVEIRA, F., 2006, p. 57). Na história brasileira é sabido que os negros foram postos na marginalidade quando houve a obrigatoriedade do uso de mão-de-obra livre, por isso, a vinda em massa de imigrantes serviu aqui não só para abastecer o mercado de trabalho, como também para gerar este excedente visando o efeito que ocorrera na Europa um século e meio antes. Além de suprir a carência de braços para a lavoura, houve o efeito benéfico de assimilar uma população que já praticava o cultivo de artigos alimentícios visando antes de tudo a sua própria sobrevivência, fato alertado por Eric J. Hobsbawm quando este se pôs a explicar as funções da agricultura praticada na Europa na conjuntura marcada pela expansão da revolução industrial: “A alimentação da Europa era essencialmente regional”. (HOBSBAWM, 2003, p. 37). No Brasil, as circunstâncias históricas levaram ao embrionamento de uma economia agrícola focada em atender ao mercado internacional e, secundariamente, ao mercado local. A ingerência dos capitais externos e do mercado internacional na agroexportação cafeeira produziu um entrelaçamento das práticas trabalhistas voltadas inicialmente ao cultivo exclusivo do café e aquelas marcadas pelas relações híbridas de produção de café associadas à possibilidade de produzir e de ter acesso 30 à produção de excedentes de alimentos, denominadas, grosso modo, como colonato. Durante a readequação da sociedade aos valores capitalistas modernos, a formalidade da igualdade era necessária para mascarar a desigualdade que era vivenciada na prática. O aumento das pressões contratuais sobre os colonos deve ter causado um declínio da capacidade de consumo e de poupança aos colonos, refletida no menor número de escrituras de compra e venda de imóveis da região periférica em relação às que abordam imóveis do centro durante o período que vai do início da década de 1900 a 1910. Jorge Henrique Caldeira de Oliveira (2006, p. 85), que estudou o mercado imobiliário ribeirãopretano, diz que no início da década de 1890, houve um expressivo investimento no ramo imobiliário da ordem de 400% maior do que o havido na década anterior. Atribui este resultado à política monetária do Encilhamento, a propaganda havida no âmbito estadual e nacional em favor das terras da região e às cotações favoráveis da saca do café no mercado internacional, possibilitando o afluxo destes capitais para o ramo imobiliário. Todavia, os capitais investidos neste setor econômico não permaneceram estáveis ao longo da década de 1890. A depreciação do câmbio na finalidade de gerar lucros maiores aos exportadores do café fez o Estado brasileiro acumular empréstimos cada vez maiores para arrolar as dívidas interna e externa. Como resultado, a economia cafeeira foi aleatoriamente influenciada por crises relacionadas às oscilações do preço e da quantidade de café disponível ao mercado. Um dos momentos favoráveis para o investimento voltado à expansão das lavouras, entre os anos de 1895 e 1897, ocasionou um problema nos cinco primeiros anos da década de 1900, fundamentado na oferta excessiva de grãos, já que o café demora por volta de cinco anos para dar uma boa colheita. (OLIVEIRA, 2006, p. 87). Segundo Jorge H. C. de Oliveira (2006, p. 91), o mercado imobiliário local recuperou-se ao longo da década de 1910, sendo somente menor em capitais movimentados se comparado com a década de 1890, enfrentando pontos de estagnação com o ocasionamento da Primeira Guerra Mundial em 1914. O binômio liberdade/trabalho não necessariamente se transformou em trabalho/propriedade, razão pela qual há mais locações de serviços voltadas às práticas agrícolas do que de compra de propriedades na área suburbana. Por ser 31 difícil, porém não impossível, de se conquistar um patrimônio, é que a distância entre o cotidiano idealizado e o alcançável provocou o descontentamento de um grupo significativo de trabalhadores rurais em relação às elites da época. Não só as crises econômico-conjunturais dos primeiros anos da República no século XX marcaram diretamente a vida local. No campo social, Ribeirão Preto figurou na mídia escrita nacional em 1913 quando os trabalhadores rurais decidiram deflagrar uma greve nas fazendas de Francisco Schmidt, Quinzinho da Cunha, Companhia Agrícola Dumont e Fazenda Macaúbas, mobilizando cerca de dez a quinze mil trabalhadores. (GARCIA, 1997, p. 129). Diz Maria Angélica Momenso Garcia que As greves nas fazendas de café não foram raras, contudo, pela própria condição de isolamento vivida pelos trabalhadores em seu interior, imposta pelos regulamentos da fazenda, restringiram-se a trabalhadores de apenas uma fazenda [...]. Embora acontecessem nestas circunstâncias, podiam tornar-se importantes pelo fato de muitas fazendas na região de Ribeirão Preto congregarem um número considerável de trabalhadores, mais até do que muitas cidades da época [...]. (GARCIA, 1997, p. 126). Chama a atenção a trajetória de Francisco Schmidt, que durante esta crise somou seus interesses aos de outros coronéis, tal como os citados acima, tenha vindo de uma família de agricultores alemães que inicialmente trabalhou em fazendas de São Carlos e posteriormente em Descalvado, quando, após juntar dinheiro, montou, em 1878, sua primeira venda de secos e molhados na cidade. Depois, em 1888, vendeu a antiga venda e comprou uma propriedade rural, localizada em Santa Rita do Passa Quatro, de João Franco de Moraes Octavio, seu antigo patrão. Após algum tempo, vendeu a propriedade num valor maior ao comprado, prática que depois foi recorrente pelo alemão, até que este comprou também, de Moraes Octavio, a Fazenda Monte Alegre em parceria com outro alemão, Arthur Diederichsen, em 1890, pagando a parte deste pouco tempo depois, momento em que marca a fixação dos negócios do futuro coronel em Ribeirão Preto. (AMORIM, 2006, p. 66-69). 32 1.3 Origens históricas de Ribeirão Preto: fatos e debates A formação de uma cidade não se dá de maneira fortuita. Velada em cada atitude dos seres humanos está a motivação, que por vezes ganha ímpeto quando um grupo de pessoas faz com que outras se unam em busca de um objetivo em comum, ou que, embora distintos, se complementam durante a sua execução aos dos outros envolvidos na sua concretização. Embora nem sempre por causas idênticas, cada um faz com que um lugar se torne um cenário de morada, de trabalho, de confrontos e de conflitos; e isto, com a necessária distância do tempo, por sua vez, se transforma em objeto de estudos. Assim, quando o historiador é obrigado a fazer escolhas metodológicas, a fim de obter a melhor aproximaçãopossível dos fatos históricos, sobretudo na área de Historia e Cultura Social, antes de tudo deve fazer uma reflexão sobre as próprias possibilidades de fazê-lo, tendo em vista os dilemas inerentes ao próprio ato de historicizar. No seu texto “História e Representação”, Pierre Villar nos conta uma experiência de vida que bem expõe o pensamento que nos guiará durante as linhas que comporão esta dissertação de mestrado: [...] em 1937, menos de um ano do início da Guerra Civil na Espanha, a Legião Condor, a legião dos alemães nazistas posta à disposição do general Franco, bombardeou a pequena cidade basca de Guernica, destruindo-a completamente. [...] Quando do cinqüentenário deste fato, em 1987, fui ver em Guernica como se celebrava esta lembrança e como as pessoas representam este episódio. Estava lá juntamente com um historiador americano, Soutworth, que estudou admiravelmente o fenômeno, e pudemos ver o quanto a lembrança estava presente nessa vila destruída, depois reconstruída, e como as pessoas que haviam vivido aquilo no passado viviam-no ainda no presente.[...].Quando voltei a Paris, acatei a sugestão de um de meus colegas de falar sobre esse assunto a alguns alunos que convidaríamos. Durante a minha exposição perguntei: “Para vocês, o que é Guernica?” Eles me responderam, rápida e brevemente: “Guernica é um quadro!” Efetivamente, a representação de Guernica – no espírito de muita gente não tem mais o cuidado de saber exatamente de onde isto surgiu – é um quadro de Picasso. [...] Guernica tornou-se a representação de um fato preciso. O fato preciso está esquecido, a representação continua. Admito totalmente que isto tenha uma certa importância, mas devemos estar atentos, pois esses jovens, que sabiam que Guernica é um quadro de Picasso, não conheciam o fato político que o gerou. [...] É evidente que há representação, mas não se pode esquecer o fato. (VILLAR, 1998, p. 29-30). 33 Em vista da fala acima, esperamos explorar ao máximo os fatos e as representações inerentes às ações dos indivíduos que resultaram na história da cidade de Ribeirão Preto, ciente de que a escolha das fontes e as limitações das respostas possíveis por elas esbarram em escolhas do que é perguntado e a forma em que os inferimentos são elaborados. A somatória dos esforços das pessoas que se debruçaram sobre “as muitas faces da história” ribeirãopretana são por demais essenciais para a execução desta obra. Por enquanto, acreditamos ser pouco conhecido entre a comunidade acadêmica, e principalmente entre os munícipes de Ribeirão Preto, o trabalho de Ricardo Barros (2005), o qual nos alerta que do ponto de vista documental já havia nesta localidade um arraial antes do seu “nascimento” oficial (19/06/1856). Dentre os documentos utilizados, apóia-se num inquérito policial do Juízo da Delegacia de Franca, que tinha como indiciado Antônio Ferreira de Brito, cidadão da localidade em questão e que fora acusado de enriquecimento ilícito. Citamos aqui os trechos que compõem este documento e que foi utilizado por Barros, sendo o primeiro do supramencionado acusado e o segundo da testemunha deste, Silvério Claudino da Silva, que ratificou os dizeres do acusado. Seguem os trechos: [...] E depois seguiu para o ribeirão preto, usando sempre da Medicina, e já recebeu mais Animais, e dinheiros, e lá Comprou uma Escrava de nome Maria, aqual foi de Luiz Borges de Aquino, por quinhentos mil reis, Cujos Títulos forão possados lá por Silvério Caludino da Silva, que lá se achava; e lá mesmo recebeu uma besta preta por Cem mil, aqual lhe derão em pagamento de suas Curas e remédios...[sic]. (BARROS, 2005, p. 120). [...] Respondeu que indo desta Villa ao Arrayal do Ribeirão Preto a tratar [...] a Laurentino de tal que se achava preso na dadêa desta Villa, e estando um dia de falha em dito Arrayal em Casa de Soares de tal e lá lhe apareceu um fulano comjunto com o Interrogado aquelle que Cujo nome senão lembra, pediu a elle respondente para passar um título [...] de uma Escrava ao Interrogado Brito Cuja Escrava se achava presente e fora no título declarado ser vendida por quinhentos mil reis, uma das testemunhas foi o mencionado Soares: Tão´bem viu o mesmo Interrogado receber uma Besta em preço de Cem mil reis a qual elle respondente viu o interrogado nélla nesta Villa, porém dia e mêz não recorda... [sic]. (BARROS, 2005, p. 120-121). Julgamos pertinentes as informações citadas acima na medida em que indicam que Ribeirão Preto já era um local onde era possível a acumulação de capitais, além de ser um local onde havia a presença de mão-de-obra escrava, fato muitas vezes desconsiderado pelo senso comum e que dificulta a superação deste ponto delicado da nossa história, já que em nossos dias perdura um superficial orgulho de termos 34 como sustentáculo da nossa história social a origem imigrante, sobretudo italiana, ponto que não há como negar, mas que invariavelmente é tratado sem a devida problematização histórica, como se além deste fato não tivéssemos tido aqui o trabalho escravo, a exploração da mão-de-obra livre e assalariada de maneira às vezes ultrajante, inclusive no contexto de recepção de grande número de trabalhadores para o cultivo do café (GARCIA, 1997). 1.3.1 A incursão da história ribeirãopretana no processo histórico regional paulista. A história de Ribeirão Preto remete aos primeiros povoadores advindos de Minas Gerais, período anterior à chegada do café e marcado, sobretudo, pela ocupação e pela legalização das terras, momento concomitante à formação do patrimônio de São Sebastião, fator decisivo para a fundação oficial da cidade em 19 de junho de 1856. (LAGES, 1997). Em relação a este ponto, conforme resumidamente abordamos acima, devemos repensar em vista das novas informações trazidas por Ricardo Barros (2005) o porquê este fato mereceu tamanho destaque na sua história. Segundo este autor, os cinco nomes que mais se destacam na tentativa de lançar luz aos primeiros anos da história da fundação de Ribeirão Preto foram Padre Núncio Greco (pároco da cidade entre os anos de 1877 e 1890), Francisco Augusto Nunes, João Rodrigues Guião (ambos moradores desta cidade), mas, sobretudo, Plínio Travassos dos Santos e Osmani Emboaba. 1 (BARROS, 2005, p. 17-66). Após apresentar os autores, Barros percorre a polêmica que existiu entre os dois últimos sobre quem de fato estava correto quanto à data certa da fundação desta cidade. O primeiro destes a se manifestar foi Plínio T. dos Santos, por meio do trabalho intitulado “Ribeirão Preto Histórico e para a História”, publicado por meio do jornal “Diário da Manhã” entre os meses de abril de 1942 e os primeiros de 1943, no formato de folhetins, pelo qual defende que: 1 Para melhor exposição dos percalços desta polêmica, nos valeremos do trabalho de Barros (2005), salvo indicação contrária. 35 [...] como nenhuma prova existia de já estar iniciada a povoação antes da escolha definitiva do local para a CAPELA, é de se presumir ainda que, tendo disso este escolhido definitivamente em 1863, desde logo fossem iniciadas as primeiras construções de casas, ainda que somente para garantia da escolha, temerosos os que preferiam o RETIRO de que ainda viesse a ser escolhido outro local... Assim, somente em 28 DE MARÇO DE 1963 RIBEIRÂO PRETO deverá festejar o primeiro centenário de sua fundação. (SANTOS citado por BARROS, 2005, p. 31). No trecho completo, Plínio Travassos dos Santos menciona ter conhecimento da possibilidade de ter havido desde 1852 um início de povoação, mas como podemos observar pela citação acima, desabona esta hipótese em favor da tradição patrimonialista que tanto marca nossa sociabilidade, pela qual ou o Estado ou a Igreja, enquanto instituições consolidadas e de poder, é que denotariam um ensejo de povoação,e nesse sentido, de história oficial (entenda-se, confiável). Porém, em 17/04/1952, por meio de um artigo publicado no jornal “O Diário da Manhã”, alegando ter descoberto novos documentos que outrora não tivera contato, propõe a alteração da fundação da cidade para 1853, sem, no entanto, mencionar o dia e o mês. É neste ínterim que surge Osmani Emboaba, então um anônimo (se comparado a Plínio Travassos dos Santos) dentro do cenário público ribeirãopretano, cuja entrada se deu por meio da contestação da data oferecida por este, alegando que somente em 1856 é que o representante de São Sebastião tomou posse do referido patrimônio doado ao santo. Importante notar que o embate não se dava tanto pela preocupação com um desenvolvimento da consciência histórica local, mas sim, pela motivação de possuir o crédito da fixação da data na qual a cidade de Ribeirão Preto foi fundada. (BARROS, 2005, p. 36). Ao longo das farpas trocadas pelos meios de comunicação existentes na época, sobretudo por meio dos jornais que circulavam na cidade, a polêmica enfim teve seu desfecho em 09 de outubro de 1954. Após vários encontros da “Comissão especial sobre a data da fundação da cidade” (criada para a finalidade que lhe dá título e que tinha entre seus membros os dois debatedores) encaminhou à Câmara Municipal seu parecer final sobre a data correta, o qual se transformou em projeto de Lei nº 63/54 para ser incluso e votado neste dia por esta instituição. Em 01 de dezembro de 1954 a Comissão de Justiça e Redação considerou legal o projeto e o encaminhou para votação, sendo aprovado em votação tanto no dia 09/12/1954 quanto no dia 14/12/1954, tornando-se Lei nº 386 de 24/12/1954, pela qual ficou estabelecida a fundação da cidade de Ribeirão Preto no dia 19 de junho de 1856 36 (BARROS, 2005, p. 64), tal como propôs Osmani Emboaba, em trabalho surgido durante a contenda titulada “História da Fundação de Ribeirão Preto”, inúmeras vezes citado em obras acadêmicas, inclusive no nosso trabalho de conclusão de curso apresentada a esta faculdade (SOUZA, 2003). Figura 1 – Documento que fixou a data de fundação de Ribeirão Preto Fonte: BARROS, 2005, p. 66. Feito este breve percurso intelectual sobre a “História da história da fundação de Ribeirão Preto” (título da obra de Ricardo Barros), tornam-se evidentes as origens da tradição ribeirãopretana em desprezar as ações da população anônima, para que com isso sejam favorecidas as ações e as decisões das grandes personalidades, 37 das instituições legalmente estabelecidas. É notório o poder que isto tem até mesmo entre a comunidade acadêmica, especialmente para nós, os historiadores, o que faz mister a busca de novas perspectivas, tendo em vista a descoberta de novos documentos e da urgência da valorização de novas perspectivas analíticas, inclusive de fontes até então postas em segundo plano. Não sem razão o chamado “quadrilátero central” (espaço urbano compreendido entre as atuais avenidas Nove de Julho, Independência, Francisco Junqueira e Jerônimo Gonçalves), herdeiro espacial do antigo “Patrimônio de São Sebastião”, ocupa nos trabalhos acadêmicos uma posição privilegiada e especial, tamanho o fascínio exercido nos pesquisadores que se propuseram a contar a chegada da “modernidade” em Ribeirão Preto, nos causando a impressão de que a população, agente social que ocupa e que interage neste espaço, desempenha papel secundário ou reativo durante este contexto marcado por fortes mudanças sociais, econômicas e culturais, ressalvas feitas aos trabalhos que têm por objetivo abarcar a arquitetura e as infra-estruturas citadinas e não a vida material da população, que por sinal era extremamente diversificada, natural para uma cidade que possuía diferentes grupos sociais e modos de viver peculiares por motivos os mais variados. Justamente por haver poucos trabalhos que se debruçam para a vivência coletiva ribeirãopretana visando ao máximo não apagar seus traços particulares é que dissertamos sobre as atividades complementares à economia cafeeira havida nesta entre os anos de 1874 e 1914, e como ocorreu a racionalização destes negócios que posteriormente tornaram-se uma engrenagem de destaque no cotidiano dos seus habitantes, em grande parte envolvidos diretamente. A obra de Maria Angélica Momenso Garcia, Trabalhadores Rurais em Ribeirão Preto, representa nesse sentido uma base para a análise pretendida, bem como de comparação, àqueles que se voltam, assim como nós, a tentar entender como fora o cotidiano de trabalho destas pessoas desafortunadas e que diariamente se deparavam com uma realidade marcada pela opressão, ainda que amparadas contratualmente na sua relação com os proprietários de terras. Tal desfavorecimento é elucidado por meio da análise dos inquéritos policiais e processos criminais ocorridos entre 1892 e 1920 na Comarca de Ribeirão Preto. Diz a autora no epílogo da sua obra: 38 As situações de confronto entre trabalhadores e patrões surgiram, por conseguinte, como forma de resistência às injustiças e condições opressivas de vida e trabalho. Em muitas delas, o controle em excesso do tempo útil, as multas, a vigilância e a disciplina constante acabavam por provocar manifestações momentâneas, apresentando-se apenas como uma atitude de defesa às situações apresentadas, demonstrando que não foram somente de movimentos organizados que se efetivou a luta dos trabalhadores no final do século XIX e início do XX. (GARCIA, 1997, p. 142- 143). Mesmo fora do cotidiano de trabalho, havia uma sociabilidade marcada pela violência na região de Ribeirão Preto. As oportunidades de trabalho passavam também pelo campo da ilegalidade, fator que atraiu para esta região o famigerado Diogo da Rocha Figueira, conhecido por Dioguinho, diminutivo que não escondia seu notório gosto pela violência e pela capacidade de provocar terror, característica reconhecida pelas diversas classes sociais, mas que por vezes lhe proporcionava rendimentos pelos “serviços prestados” aos poderosos da região, e que por conveniência, lhe dava proteção e/ou refúgio. (JORGE, 2008) Concordamos com a historiografia que sustenta que esta realidade hostil ao trabalhador fez com que nestes o intuito de se desvencilhar o quanto antes de contratos de trabalho desfavoráveis se tornasse constante no seu cotidiano, fazendo com que adotassem uma postura empreendedora que, ainda que estes não concretizassem suas ambições pessoais, certamente agiu como fator decisivo para fazer de Ribeirão Preto uma cidade propensa ao dinamismo socioeconômico, dada a existência de uma pujança econômica que beneficiava os grandes cafeicultores e instigava os trabalhadores diversos ao desejo de terem uma vida melhor. Mas por vezes as expectativas de ganhos não se cumpriam e, nestes casos, a saída era penhorar os bens conquistados e/ou hipotecar suas casas, inclusive em que moravam, ocasionando ações de despejo ou repactuação entre os interessados. Exemplo desta situação foi descrita na escritura de 13 de fevereiro de 1895, no qual conta que Joaquim Ferreira moveu uma ação de despejo contra João Ângelo Ferreira porque este lhe devia 18:000$000 por uma empreitada não realizada, firmada em outra escritura de 15 de maio de 1890, mas que, por decisão do lesado, ficou acertado que o devedor pagaria as custas motivadas pela desistência da apelação interposta da sentença do Juiz de Direito da Comarca sem, no entanto, ter na descrição maiores comentários. Num ambiente assim, era natural o crescimento da ação de advogados oferecendo os seus serviços, como mostram as escrituras de 31/01/1889, 23/03/1889, 05/04/1889, 03/07/1891, entre outras. 39 É pertinente dizer que as escrituras públicas firmadas no 1º Tabelião de Notas de Ribeirão Preto não somente tratam de negociações relativas a esta cidade, mas também negociações de propriedades
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