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Curitiba 2020 Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente Faculdade Educacional da Lapa (Org.) FAEL Direção Acadêmica Fabio Heinzen Fonseca Coordenação Editorial Angela Krainski Dallabona Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Imagem da Capa Shutterstock.com/Thiago Leite Arte-Final Evelyn Caroline Betim Araujo Sumário 1. Memória e Patrimônio Cultural | 5 2. O patrimônio desde sua origem até o século XXI | 27 3. As políticas públicas e o Patrimônio Cultural no Brasil | 43 4. Os Marcos Legais | 55 5. Educação Patrimonial | 75 6. Tensões e limites entre natureza e cultura | 85 7. Os muitos tempos da natureza | 113 8. Natureza e história | 139 9. História do Brasil e meio ambiente I: práticas | 167 10. História do Brasil e meio ambiente II: representações | 191 Gabarito | 219 Referências | 239 1 Memória e Patrimônio Cultural A memória constitui uma seara do conhecimento estudada por diversas ciências. A memória enquanto instrumento que deve ser funcional ao indivíduo e à manutenção deste funcionamento é objeto de estudo constante da neurologia, por exemplo, e de seus interesses pelas falhas nessa ferramenta, como o mal de Alzheimer. A memória enquanto potência de salvaguarda de informa- ções e da recuperação consciente ou não destas informações, guardadas as devidas proporções e divergências sobre a confia- bilidade desta recuperação, tem sido há muitos anos um dos inte- resses da psicologia. Já a memória enquanto foco de reflexões sobre a própria existência de si e as possibilidades de ação a partir dela é, desde a Grécia Clássica, tema dos debates da filosofia. Ainda, enquanto objeto que pode ser moldado subjetiva- mente, enquanto matéria que pode ser eleita como principal em detrimento de outras em mesmo nível e enquanto submissa ao silenciamento, ou esquecimento, como preferem alguns teóricos, a memória tem sido também considerada, principalmente após a década de 1930, com maior proximidade pela história. Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 6 – A memória configura-se, assim, como um campo de interesses e olha- res variados, como objeto de diferentes análises, com variados fins e com resultados também bastante diversos. A memória pode ser entendida como a faculdade cerebral de lem- brar, a capacidade de armazenar informações, as imagens que ressaltam ao consciente de forma incontrolável, entre outras interpretações. A memória se apresenta, então, como algo racionalmente instrumentalizado, mas tam- bém como algo passivamente funcional. O que se considera ao tratar da memória em todos os aspectos é que a interpretação do passado realizada por meio dela é sempre fruto do pre- sente de quem tenta, quer ou consegue lembrar. A memória está ligada ao nosso presente, à nossa posição no mundo e na sociedade, tanto que em variados momentos de nossas vidas lembramos mais facilmente de coisas diferentes. A memória é, com isso, uma representação do passado fundamentada na vivência do presente. Não se trata de tirar de um baú informações há muito guardadas, mas sim tratar do que e como fazer para inseri-las no presente de quem lembra. 1.1 A memória, a humanidade e o tempo: um trajeto da memória no mundo ocidental da Pré-História à modernidade A memória está intimamente relacionada com as percepções de pas- sagem do tempo, de lembrança, do irremediável esquecimento, das forças que se opõem em brigas metafísicas e por vezes até reais para se sobrepo- rem umas às outras, de (re)afirmações, de justificações, relações do indi- víduo consigo e com os demais nos âmbitos sociais, e outras incontáveis atividades humanas nos processos históricos ocorridos que, em muitas das vezes, nem nos damos conta. Começando por considerar o início da atividade humana enquanto “sociedade organizada” ou como grupo em vias de civilização, podemos nos remeter aos grupos que se estabeleciam em cavernas ou em espaços que proporcionassem alguma forma de sedentarização, acabando com o nomadismo e proporcionando a capacidade de registro sobre si e sobre o – 7 – Memória e Patrimônio Cultural grupo. Nas cavernas mais famosas do mundo contemporâneo, destinos de visitas e de estudos intensos, as abordagens se dão de diferentes modos sobre os registros nelas encontrados. No Brasil, temos os complexos da Serra da Capivara e da Lagoa Santa. Na França, o complexo de cavernas de Lascaux, por exemplo, se tornou tão interessante aos olhos dos estudiosos e visitantes que tam- bém recebeu a alcunha de Capela Sistina da Pré-História. Descoberto na década de 1940, o sítio foi analisado pelo pré-historiador Henri Breuil e seus companheiros Jean Bouyssonnie e André Cheynier durante o decênio de sua descoberta. No fim deste período, em 1949, Breuil formou com Séverin Blanc e Maurice Bourgon outro grupo de estudos para o sítio. A intenção era a análise, a interpretação e a catalogação dos desenhos e objetos encontrados. Entre as décadas de 1950 e 1960, Breuil encomen- dou novos estudos que foram realizados por André Glory. Nos anos que se seguiram, Annette Laming-Emperaire, André Leroi-Gourhan e Norbert Aujoulat também estudaram o lugar. No interior das cavernas do complexo encontram-se pinturas e outras formas de registro que indicam bovinos, felinos, cavalos, cervos, cabras e outros animais, datados, os mais antigos, de dezessete mil anos, e os mais recentes, de quinze mil e quinhentos anos de idade, segundo os testes de Carbono 14. As primeiras interpretações feitas sobre Lascaux foram de temáticas arqueológicas, especialmente por se tratar de restos de ativida- des de grupos humanos extintos e com modos de vida há muito substitu- ídos e/ou transformados. Em seguida, a história da arte tratou de analisar os desenhos, as cores, as formas, e passou a produzir possíveis intenções sobre a visualidade daquelas figuras. Também, mais recentemente, e é aí que se aproxima dos estudos sobre a memória, o ato de registrar as formas animais, por exemplo, em Lascaux, passou a chamar atenção de estudio- sos da área dos estudos sobre a memória. As questões feitas remetem-se à intenção de terem sido realizados esses registros dentro das cavernas. Seria uma comunicação dos membros do grupo com outros que talvez não conhecessem a realidade apresentada nos desenhos? Seria uma forma de inscrever no tempo, cristalizando em formas nas paredes, as atividades realizadas? Seria, ainda, uma vontade de transmissão de algum conhecimento para futuras gerações? Sem poder Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 8 – responder especificamente estas perguntas, uma interpretação teórica que podemos fazer é que, irremediavelmente, talvez até sem esse intento, os registros inscrevem nas paredes da caverna, em suas diferentes passagens e salas, um conhecimento adquirido na experiência (da caça, do descobri- mento do ambiente, do contato com o que cercava os indivíduos daquele momento), acondicionado na memória e posteriormente recuperado e arti- culado nos desenhos que temos nos dias atuais. Novamente, talvez mesmo sem perceberem, os desenhos se tornam inevitavelmente uma forma de preservação de um conhecimento e de uma memória, neste caso a memó- ria de quem realizou a atividade de pintura, seja ela adquirida por meio de conversas entre pintores e caçadores, na possibilidade de haver esta divisão de atividades no grupo humano que ali habitou, ou por meio da vivência plena do ser em seu contexto que, posterior à sua realização, a marcou nas paredes de Lascaux. A realização destas pinturas, para além dos pontos de vista estéticos e/ou artísticos, tem o potencial inato de transmissão de um saber que foi recebido e maturado em uma memória. Memória esta trabalhada para que se recuperasse este saber e se registrasse. Vale sempre lembrarmos que essas flexões da memória em receber, aninhar e recuperar informa- ções nem sempre são resultado de um ato consciente, mas, pelo contrário, passa despercebido. Passando para as sociedadesjá “desenvolvidas” da perspectiva que temos hoje de civilização, cultura, sedentarização, formas de governança e interpretações do mundo, podemos analisar as sociedades da antigui- dade. O Egito Antigo (séculos 3.150 a.C. a 31 a.C.), civilização que rece- beu a admiração dos gregos como um berço das civilizações, bem como colocamos atualmente sobre os próprios gregos este princípio, estabele- ceu algumas relações com a memória em diferentes frentes. São famosas as pirâmides egípcias, túmulos dos faraós aonde se guardavam, além do corpo mumificado do líder, objetos especiais para aquela pessoa e bens que denotassem seu poder e riqueza. As pirâmides marcavam suntuosa- mente o local de sepultamento destes líderes e, sendo grandes e facilmente visíveis, mantinham na memória dos vivos a presença deles. Nem todos os líderes egípcios, ou os homens mais poderosos desta civilização foram sepultados em pirâmides como as que mais facilmente lembramos, claro, – 9 – Memória e Patrimônio Cultural outros foram sepultados em criptas de pedra, por vezes subterrâneas, sob as dunas de areia, e também guardavam em si o corpo mumificado e os bens do sepultado. Essas tumbas, pirâmides ou não, denotam alguns valo- res simbólicos agregados ao morto que ali jaz e ainda sublinham que esses valores não devem, ou não deviam em seu contexto, ser esquecidos, por isso um sepultamento com intenção de preservação ao eterno da materia- lidade relativa ao que morreu. A perpetuação destes valores que, unidos, gerariam um senso de respeito, juntamente com a manutenção da memória de seu nome e suas louváveis ações, eram uma intenção e uma consequência desta forma de sepultamento, sendo este rito produtor e produto da memória social sobre alguém. Muitas vezes os nomes destes sepultados foram apagados pela ação dos ventos e do atrito das pedras com a areia, mas, como intenciona- vam os egípcios, paira sobre o deserto oriental do Egito um senso imate- rial de alguma santidade, algum heroísmo, alguma consideração elevada acerca dos que ali estão, justamente pelas vias que possibilitaram este modo de serem encerrados, enlevando suas memórias que chegam a nós hoje de diferentes formas, mais anônimas que individualizadas, mas che- gam. A memória do grupo de pessoas ali encerradas é ainda presente, não nas memórias vivas de nosso tempo, mas justamente na intenção de não serem esquecidas, porque hoje sabemos que essa era a vontade e, sendo novamente produtor e produto dessa atividade, nos lembramos. Outra relação dos antigos egípcios com a memória está, novamente, no ato de se mumificar. A mumificação possibilitava a preservação do corpo, como podemos comprovar com as numerosas múmias egípcias espalhadas pelo mundo. Ao mumificar o morto, eram retirados do corpo todos os órgãos internos, exceto o coração, porque era ele que mantinha a sabedoria, as emoções, a alma, a personalidade e a memória da pessoa. Todo esse conteúdo era necessário ter consigo no além-vida para se passar pelo crivo das sete portas e ter o próprio coração pesado na balança, a qual faria o julgamento no Tribunal de Osíris, do merecimento do morto ser castigado ou de poder acessar novamente os benefícios que possuía na vida terrena, mas em outra existência, na eternidade. Mais uma vez, a memória se apresenta como conteúdo essencial ao ser, dessa vez na morte, porque por meio da memória o morto teria acesso ao que foi instruído pelo Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 10 – Livro dos Mortos. O Livro era um compilado de várias sugestões de res- postas, ações e comportamentos a serem executados durante o julgamento no Tribunal de Osíris, como que um manual para se conseguir acessar a outra existência, a da alma, e lembrar dessas indicações era de extrema importância. Por isso, a memória, contida no coração preservado do corpo mumificado, era essencial. Na Grécia Antiga (1.100 a.C. até 146 a.C.), a memória também teve um local de destaque na vida e nas reflexões dos filósofos. Precisamos sempre lembrar que a Grécia Antiga é o momento em que a humanidade passa a considerar filosoficamente a memória e seu papel na sociedade e que, da perspectiva do processo histórico humano, é um tempo bastante considerável, uma vez que nesta época temos o que consideramos o início da filosofia ocidental. Mnemosine, ser mitológico, era filha de Urano e Gaia, então, uma titânide, divindades anteriores aos deuses mais comu- mente conhecidos como Zeus, seus dois irmãos e seus filhos. Mnemosine era a divindade que guardava todas as lembranças e possibilitava a recupe- ração das informações. Ela está, então, mais intimamente relacionada ao ato de lembrar que à memória propriamente dita. O trabalho de Mnemo- sine seria o de evitar o esquecimento, representado na cultura da Grécia Antiga principalmente pelo rio Lete, que cruza a morada dos mortos e do qual as almas tomavam a água antes de reencarnarem, esquecendo-se assim de existências anteriores. Ironicamente, a guardiã da atividade de lembrar quase nunca é lembrada por essa possibilidade, mas sim por ser mãe das musas que influíam também na vida da sociedade grega. Por possuir a lembrança, Mnemosine também representava a posse da razão, uma vez que, dotado de suas lembranças, é mais fácil ao indivíduo agir de forma consciente, coerente e racional. Sem a memória, a pessoa estaria fadada ao desequilíbrio de si, de suas ações e decisões. A importân- cia da memória, na época da deusa em questão, se dava pela não existência de escrita, portanto, toda forma de conhecimento só podia ser registrada na memória, recuperada pela lembrança e transmitida oralmente. Uma vez que, nesse período da crença nos deuses, não existia ainda o alfabeto, o conhecimento que Mnemosine tratava de não se deixar esquecer eram os saberes basilares para a vida e para a existência: o funcionamento do uni- verso, os ciclos da vida, os modos de agir no mundo e, como não deixou de ser em nenhum tempo da história humana no qual existiram governos, – 11 – Memória e Patrimônio Cultural não deixaria esquecer também a memória dos seres notáveis, como os imperadores e heróis. Ainda na mitologia grega antiga, Zeus liderou os demais deuses na bata- lha contra os Titãs. Vitoriosos, os deuses se estabeleceram como os ocupantes do Olimpo, com poderes plenos. Zeus, sabendo que Mnemosine era uma titâ- nide e sabendo da sua também destruição juntamente com seus companhei- ros, teve medo de ter suas honras, glórias, vitórias e decisões esquecidas, por isso disfarçou-se de pastor e foi encontrar Mnemosine, com quem dormiu por nove noites, dando origem às nove Musas que perpetuariam, sob as ideias do novo líder do Olimpo, as lembranças para a nova etapa na Grécia. Intimamente relacionada a Mnemosine, a mnemotécnica foi desen- volvida da antiguidade grega (por volta de 1700 a.C.). Como o nome explicita, considera a memória como técnica, como arte, de aprendizado consciente. A técnica em questão trata a memória como uma folha em branco na qual é realizada a escrita mental, usando como elementos diver- sos locais e imagens, portanto, a fonte principal da memória deixa de ser a oralidade, como no tempo da titânide, e passa a ser a imagem. Por se tratar de um instrumento de aprendizado, o armazenamento é confiável, e a recuperação, a lembrança das informações, é idêntica à de quando foi registrada na memória. Neste caso, o tempo não é importante, mas sim o espaço. O conteúdo a ser recordado e o motivo desta recordação não inte- ressam à técnica, ela não considera o nexo entre a lembrança e as articu- lações a partir dela, pois, simplesmente possibilita o resgate de uma infor- mação apreendida e registrada. A relação estabelecida entre os conteúdos e a memória por meio da mnemotécnica é puramente a de um depósito de informações e a atividade de recuperá-las quando seja necessário. Também na Grécia Clássica a memória passou a ser refletida como uma potência, como algo natural, como o instrumentonão controlável de atividades humanas individuais e sociais. A consideração nesta área das potencialidades da memória está na capacidade de formação de identidade do ser e do grupo, e aqui o tempo é importantíssimo, pois ele interfere na memória: quanto maior o tempo entre a inscrição da informação na memória e a articulação de recuperá-la, mais difícil se torna a atividade. Há, nestes casos, a diferença entre o que se arquiva e o que se recupera, então, o objeto do armazenamento é diferente do da recordação. Esta diferença se dá porque, no processo de recordação, há deslocamentos, Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 12 – deformações, distorções, revalorações, renovações do conteúdo em voga, então, o conteúdo não fica em um lugar cem por cento seguro do ponto de vista da manutenção do conteúdo em integralidade, ele sofre alterações. Nesta visão mais abstrata e incontrolável da memória, ela é dotada de leis próprias e desconhecidas porque pode, por conta própria, esquecer ou reprimir lembranças, assuntos, temas, em contrapartida à técnica que é dura contra o esquecimento, relegando ao tempo um lugar de inércia, e que é dotada de métodos que propiciam a lembrança. Independentemente da visão escolhida, é notável desde a Antiguidade que a relação entre lem- brar e esquecer é íntima, propiciando, inclusive, uma a outra e medindo forças entre si de uma forma não perceptível a nós, seres humanos. Em todos os casos, desde os filósofos gregos a humanidade tem consciência de que o homem pode armazenar (funcional) e recordar (cultural). Dentre os pensadores da época, Platão é o mais salientado desde então. As controvérsias existentes sobre a autoria de Platão sobre os tex- tos que conhecemos é antiga. Platão teria sido aluno de Sócrates e com ele teria aprendido o valor da fala, da oralidade, da conversa, do diálogo, e por isso preferia estas formas de conhecimento aos registros. Platão apa- rece como o autor dos textos registrados, mas paira ainda a dúvida sobre a autoria do conteúdo deles. Teria sido Sócrates o pensador primeiro das considerações, como aparece nos textos platônicos, ou teria sido o pró- prio Platão que teria feito de Sócrates apenas uma personagem de suas passagens registradas em texto? O que devemos considerar em análises sobre a memória é o conteúdo trazido a nós dos tempos clássicos. Desde Platão, a memória é mais considerada como uma atividade consciente que inconsciente. Essa visão sobre ela permanecerá até o século XIX, no qual será dividido entre o lembrar consciente e a lembrança inconsciente, como veremos mais adiante. No Fedro, o texto mais importante sobre a memória nas obras platô- nicas, Sócrates aparece lembrando o mito do deus egípcio Thoth, respon- sável pela técnica e pelo “conhecimento científico” no Egito Antigo. Em um encontro com o rei Tamuz, Thoth lhe apresentou a arte, a técnica da escrita, considerando sobre a necessidade de distribuí-la entre as pessoas e sobre a potência que seria agregada à memória a partir do uso da escrita. O rei alerta ao deus sobre os possíveis malefícios da técnica criada, uma – 13 – Memória e Patrimônio Cultural vez que o criador tem a tradição de enxergar apenas os benefícios de suas invenções. O debate contido no Fedro não está em torno da existência da escrita, porque ela, sim, auxilia a humanidade com a possibilidade de se registrar informações, mas na interação da escrita com a memória. A intencionalidade de Thoth ao criar a escrita era a de potencializar a memó- ria, dificultando o esquecimento, mas o que o rei Tamuz alerta e Sócrates pontua no diálogo é que, uma vez podendo confiar à escrita as informa- ções, as pessoas deixariam de se importar com a memória chamada na obra de verdadeira. A escrita seria uma falsa memória, uma representação do que a memória de fato é, e nunca conseguiria acessar a essência do con- teúdo ou do conhecimento contido na memória viva das pessoas. A escrita separaria o caráter de vida que o conhecimento tem estando armazenado nas próprias pessoas. A escrita se apresenta no Fedro, dessa forma, como uma ferramenta que pode auxiliar a lembrança, mas não pode ocupar o lugar da memória no registro e na recuperação das coisas que inscrevemos nela. A compara- ção estabelecida da escrita se dá com a pintura. O pensador alega que uma pintura é uma representação de uma cena da vida humana, mas nunca a vida humana em essência. Elas têm a aparência de vida, mas não a vida, tanto que, se perguntarmos algo às pessoas pintadas em alguma cena, elas não nos respondem, apenas as vivas podem nos responder. Neste pensa- mento, a escrita uma vez realizada pode ser distribuída a qualquer parte, para qualquer pessoa, mas não leva a intenção essencial, a vontade pri- meira do discurso quando este foi formulado, desconsiderando inclusive quem é o alvo do discurso. A escrita causa, segundo o filósofo, ao contrário de potência à memó- ria, uma potência ao esquecimento, porque as pessoas, novamente, rele- gariam aos documentos, aos textos e às palavras a função de lembrar, que está naturalmente e desde os tempos imemoriais a cargo do indivíduo, não de instrumentos. O esquecimento considerado nessa filosofia é o esqueci- mento “nas almas”. Há de ser lembrado que a alma platônica era apresen- tada como um bloco de cera no qual se marcam coisas, portanto, no qual se inscrevem conteúdos, e dependendo da forma como essa gravação se dá no bloco de cera é que podemos mais fácil ou mais dificilmente recuperar, recordar. A alma, que é no caso da memória tratada como um bloco de Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 14 – cera, é diferente da alma cristã ocidental. A alma neste tempo é uma reali- dade psíquica individual, parecida com a recuperada por Freud quando o psicanalista fala dos traumas, por exemplo. O bloco de cera, parte responsável pela memória em nossa psique individual, é onde são registradas coisas que se tornam lembranças (carac- teres, imagens, cheiros, modos), e a qualidade da gravação, e consequen- temente da facilidade de lembrar, depende de dois elementos: da qualidade da cera (que pode ser mais dura/firme ou mais mole/informe) e da quali- dade da força com a qual as coisas são gravadas no bloco (mais forte ou mais fraca). Se um bloco de cera está muito duro e a gravação se dá com muita força, como em uma situação traumática ou de acidente, o bloco pode se quebrar no momento da inscrição da informação, criando marcas sensíveis e dolorosas, por exemplo. Também, se a cera é muito firme a gravação muito fraca, como em situações nas quais vivemos, mas não prestamos muita atenção, a marca é muito superficial e não conseguimos lembrar com efetividade. Se o bloco de cera for muito mole, sem nenhuma firmeza, qualquer que seja a gravação pode ser feita de forma incorreta e que possa ser distorcida depois, portanto, lembraríamos de uma forma distorcida das coisas. Pela alegoria platônica, são sempre instáveis a força e a dureza da cera e é justamente dessa relação que se dá a qualidade da gravação e a posterior facilidade de lembrar. Com isso, a escrita então exauriria a função da gravação no bloco de cera, porque a lembrança seria relegada a um instrumento externo ao ser, que é alheio à natureza humana. Sobre essas gravações, também chamadas de imagens mnemônicas, Platão lembra que existe uma capacidade passiva da presença delas em nossas vidas. Isso se dá pela atividade inconsciente da lembrança. Quando menos esperamos, lembramos de alguma informação ou momento e, muitas vezes, é assim que se dão as lembranças necessárias para a manutenção da vida cotidiana. Quando vamos, por exemplo, ao trabalho, depois de muito realizarmos o mesmo caminho, já o fazemos de maneira inconsciente e quase nunca paramos para pensar que sabemos o que sabemos ou que lem- bramos o que lembramos, justamente porque essas imagens mnemônicas se apresentam quando precisamos sem que nos esforcemos para tal. Voltando à alegoria de Platão,a escrita se tornaria estéril quanto a posse da essência do discurso. A verdade da fala, do intento do discurso, – 15 – Memória e Patrimônio Cultural se daria exclusivamente no momento da troca do ser com o outro por meio do diálogo, e o texto não conseguiria carregar consigo esse poder. O texto escrito, publicado e difundido não teria em si, como o discurso tem, a possibilidade de ser contestado, questionado, revisto, readaptado a novas realidades, sendo ele petrificado, monótono, inerte, imutável, lembrando que a troca e a possibilidade de contraponto eram essenciais na Grécia Clássica. Outro tópico que não se deve esquecer é que, neste tempo, a existên- cia humana está vinculada a uma pré-existência da alma (psique) e nessa existência não terrena as pessoas tiveram contato com as verdades essen- ciais do mundo, ainda que disformes, e por mais que tenham se banhado nas águas do Lete, o rio que as fariam esquecer desse conhecimento do mundo, da vida e do todo, a escrita traria um risco de que as pessoas relembrassem de alguma coisa. Na Idade Média, as relações com a memória, assim como nos tempos anteriores, foram variadas, mas vale considerar especialmente as relações com a religião e com o poder. Na Idade Média, a Igreja Católica colocou- -se em um local de importância e de poder, de onde interferia ativamente na vida cotidiana das pessoas. A religião católica, oficializada e difundida na Europa pelo Império Romano, foi aos poucos substituindo o culto aos deuses tidos pela Igreja como pagãos, como Zeus e seus companheiros olimpianos. Os templos da religião oficial da Antiguidade, com os deuses diversos, seus panteões e etc., eram templos que valorizavam o contato do indivíduo com algo divino, maior, superior, e também eram espaços acessados apenas pelos sacerdotes e pelas virgens devotadas ao deus que ocupava cada templo. Os templos eram espaços tão divinos que apenas as divindades, as virgens (que eram puras por não terem sido corrompidas pelo mundo) e os sacerdotes podiam acessar o espaço interior deles, os devotos ficavam no lado externo cultuando. O início da religião católica apostólica romana se deu no culto aos ancestrais, que era realizado no Império Romano em pequenos altares domésticos. O espaço era reservado para a lembrança dos mortos por parte dos vivos, portanto, a manutenção da memória de indivíduos por outros inscritos em seus círculos íntimos. Após a oficialização da religião cató- lica como a religião do Império Romano, por meio do Edito de Milão, em Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 16 – 313 d.C., esta não era mais proibida nem eram caçados os seus praticantes. Para se inscrever no cotidiano das cidades e das pessoas, os antigos tem- plos e outros prédios não necessariamente religiosos foram aos poucos se transformando em espaços católicos. A ideia dessa ação era a de inserir na prática social a atividade católica, substituindo aos poucos e de forma sutil àquela pagã, que havia existido até então, evitando algum trauma ou impacto negativo das pessoas para com a religião católica. Durante as ações da Igreja Católica na Idade Média ocidental, outras foram as relações com a memória. As confissões, por exemplo, trazem à tona a vontade e a capacidade criada pela Igreja de se execrar da memória os sentimentos de culpa mediante a franca fala sobre as faltas cometidas e o pagamento das devidas penitências. Os sacerdotes tinham o poder, dotado por meio da agregação de valores simbólicos, de ouvir, dar a solução e aca- bar com as marcas negativas da vida das pessoas, portanto, de suas pró- prias memórias. Outra função da memória na Idade Média, com o poder extremado da Igreja Católica como o primeiro estamento da sociedade, foi a de substituir os antigos heróis pelos santos. A agregação de valores era a mesma: a exaltação de uma pessoa a um patamar superior aos demais, reles mortais. A criação desses ícones nada mais é que a manutenção da memória de alguém dotada de glórias, vitórias, abnegações e ações essen- ciais ao governo, no caso da Antiguidade, e à Igreja, no caso medieval. Ser considerado santo na Idade Média ou herói na Antiguidade era receber os louvores, especialmente no post mortem, por atividades desempenhadas em vida e reconhecidas por quem pode agregar ou não os valores simbólicos essenciais para a eternização do nome e da vida de alguma pessoa. Como exemplo, temos Santo Agostinho, logo nos primeiros séculos do catolicismo. Nascido no ano de 354 na atual Argélia, só aceitou o cristianismo e seu próprio batismo em 387. Até o batismo, cometia os pecados comuns aos seres humanos: quando jovem, roubava frutas das árvores dos vizinhos, tinha divergências com a mãe por conta da reli- gião, sendo ela muito devota de Cristo; e frequentava espaços em que se encontravam facilmente prostitutas e outros elementos que representa- vam alguma degradação social. Antes de se tornar um sacerdote, Agos- tinho escreveu suas Confissões nas quais, como o nome indica, entrega suas faltas cometidas em sua vida pré-cristã. As confissões publicadas – 17 – Memória e Patrimônio Cultural não se destinavam só à Igreja, para que fosse aceito como um pecador arrependido, mas sim para que a sociedade visse nele o arrependimento e a validação moral de sua entrada na Igreja Católica. Uma vez perdo- ado pela Igreja e também moralmente pela sociedade, Agostinho pôde ingressar em sua vida sacerdotal e se tornou para a Igreja um homem de extrema importância para as articulações das ideias cristãs, além de for- mular pensamentos que foram basilares para o estabelecimento do poder do catolicismo sobre a vida ocidental. Outro caráter da memória medieval, repetido em certa medida na Modernidade, é o de justificação da ocupação do poder. Quando se esta- belecem os governos monárquicos após a dissolução das antigas Cidades- -Estados e também do Império Romano, as cidades foram evacuadas por conta das ocupações territoriais por parte dos chamados “bárbaros”, quem e porquê ocupa o poder é um dos temas em pauta. A própria rotulação de “bárbaros” aos que invadiram os territórios do Império Romano é um modo de inscrever na memória coletiva europeia o caráter negativo destes grupos como invasores, perigosos, não civilizados e outros adjetivos que desmere- cessem suas posições. Foi silenciada nesse momento a memória destes gru- pos que invadem os territórios romanos, grupos esses que foram em grande medida dominados ou expulsos pelo próprio Império Romano quando das expansões territoriais, portanto, chamar a tomada de terras pelos romanos de “expansão” e a mesma ação pelos outros grupos menores de “invasão” já nos mostra um modo de tarjar a identidade e a memória coletiva destes grupos. Uma vez estabelecidos os feudos, retomado o modo rural de vida, imensas extensões de terras, larga produção agrícola e etc., a ocupação dos cargos se dá, muitas vezes, especialmente em momentos de conflitos, pela comprovação ou pela justificativa deste ou daquele outro possível gover- nante. A justificativa se deu, por vezes, por meio de documentos que foram relembrados com a função de comprovar a afirmação de uma ocupação em detrimento de outra, por exemplo, os livros de linhagens. Alguns livros de linhagens traziam crônicas escritas, diziam estes mesmos, contempo- raneamente aos governantes de cada período e para justificar sua subida ao poder, o quase rei buscava nos livros sua sustentação no sentido de mostrar que sua linhagem, sua família, seu sangue era há muito tempo o ocupante do cargo, portanto, se seguiria essa tradição. Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 18 – A diferença nessa ação de ocupar o poder e se justificar, especialmente, justificar a memória do poder ao rei e a memória de saber que ele é o rei ao povo, entre o Medievo e a Modernidade, está na proximidade do poder com a Igreja Católica. Durante a Idade Média, a Igreja também servia como uma validadora dessa memória de poder do reie de sua linhagem, abençoando-o e seguindo em harmonia com as decisões reais. Na Modernidade, mesmo que ainda tenhamos vivido momentos de presença religiosa forte, aos pou- cos os poderes reais vão se afastando da Igreja Católica e o poder real se sus- tenta por ele mesmo e pela memória criada sobre ele para a própria realeza, para a nobreza que a circunda e para os demais estamentos sociais. Um dos testemunhos sobre a manutenção da memória por meio da linhagem real na Modernidade são as pinturas que retratam os reis. Nos castelos, as galerias com pinturas trazendo as figuras da família real, desde os tempos mais antigos possíveis, são abundantes, na tentativa de tornar visualmente didática a transmissão natural do poder de uma geração para a outra. As galerias mostram, por exemplo, um rei que tenha tomado o poder em um ano, depois outro que ocupou o cargo quinze anos depois (filho do primeiro), depois outro ocupante do trono vinte e cinco anos depois (neto do primeiro), ainda mais adiante o retrato de outro rei que ocupou o cargo trinta e oito anos depois (bisneto do primeiro), tão logo se tornava lógico que o tataraneto do primeiro, que é parte natural da linhagem dessa família, ocupará o poder em seguida na ausência de seu pai, guardadas, claro, as especificidades de cada reinado, cada território e cada modelo de transmissão de poder. O que nos interessa aqui é como as galerias de arte das monarquias modernas, principalmente as que se enquadram no Antigo Regime, ajudaram a tornar mais fácil o entendimento da transmissão do poder, tentando diminuir as contestações. 1.2 A memória no mundo contemporâneo: o mundo pós-revoluções burguesas – o caso do século XVIII A partir das revoluções burguesas no fim do século XVIII, especial- mente da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e da Independên- cia Norte-Americana, as relações das sociedades ocidentais se alteraram – 19 – Memória e Patrimônio Cultural de maneira profunda, mas bastante sutil em relação à memória. É nesse momento que temos, por exemplo, o surgimento dos museus e o começo do trabalho com os patrimônios (histórico, artístico, cultural), exatamente para mediar as relações da memória com a sociedade. O primeiro fato a ser observado é que as revoluções burguesas torna- ram mais democráticos os acessos ao saber, à cultura e à própria produção da memória. Essa participação democrática ainda estava longe de ser a con- temporânea, com direito de vez, voz e espaço para todos os indivíduos, pois estava restringida aos burgueses que ocuparam o poder, que era até então posse das monarquias, e não a participação integral da sociedade de um modo totalizante. O camponês pobre, agricultor pequeno, o chão de fábrica (que inclusive surge nesses momentos) continua sendo o que é. Quem ascende ao poder são os burgueses que antes eram do estamento social da população em geral, mas tinham posses e especialmente os meios de produ- ção que articulavam as economias dos territórios antes monárquicos. Com os museus e patrimônios, o trabalho foi muito objetivo e sua ação foi muito amena. O caso francês é o mais didático: após a Revolução Francesa e a deposição da monarquia, os burgueses, agora governantes, precisavam colocar no cotidiano da população que a vida francesa seria outra, que a administração seria outra, que a monarquia tão tradicional não mais estava onde estava de costume, mas que, ao mesmo tempo, estava tudo bem e não havia a necessidade de choques ao contato com isso tudo. A alteração complexa na administração francesa, para ser aceita de maneira mais branda, exigiu um trabalho ainda mais complexo que foi executado com os museus, galerias e patrimônios. Os museus históricos, primeiramente, tinham o papel de selecionar e musealizar objetos e bens da antiga monarquia com o novo caráter de propriedade pública. As obras de arte da monarquia francesa, por exemplo, foram transformadas em uma coleção artística pública, mantida pelo Estado Francês, materializada fortemente no Museu do Louvre. Dessa forma, a monarquia não desapareceria tão drasticamente da vida francesa, pois esta- ria presente nos retratos, nas paisagens encomendadas, nas obras compradas ou conquistadas militarmente em outros territórios. A diferença é que a cole- ção não era mais um capricho real, mas sim uma coleção pública que seguia articulando a memória coletiva, como um instrumento do novo governo. Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 20 – O Estado Francês teve o trabalho de eleger “o que e porque” da antiga França seria transformado em objeto de museu para amenizar as altera- ções no território. Dessa forma, a ausência monárquica teria sua presença materializada e encerrada nos museus. Dentro dos museus, o discurso dos governantes era administrado da maneira mais conveniente possível, colo- cando, por exemplo, um histórico da administração monárquica do país levando a França a colapsos econômicos, sociais e políticos, mostrando, no discurso museológico, que a monarquia havia exaurido o país e a ela mesma e que, portanto, o novo governo era uma nova chance de seguir adiante. Por trás disso tudo estava a noção de que não se poderia implodir toda uma tradição de vida e começar uma nova, como se um país todo desaparecesse de repente e outro surgisse do nada. As transições, lembre- mos, são moderadas do ponto de vista da memória que, neste exemplo, pode ser moldada e difundida da maneira mais conveniente àquele que está no poder, exatamente para justificar esse poder. Os patrimônios, outro exemplo, foram o modo encontrado para tornar em ícone cristalizado no tempo as ações da monarquia. Lugares, coleções, livros etc. foram elei- tos como patrimônios para que fossem mesmo um marco entre a antiga França e o Estado Francês pós-revolução. Os patrimônios eleitos seriam, como são até hoje, preservados, mantendo a presença monárquica amiúde, e o que restasse seria dizimado e alterado aos poucos. Como no caso dos museus e das coleções de arte, isso traria a oportunidade de uma alteração calma e sem choques na memória da população. 1.3 Os séculos XIX e XX e as interpretações da memória Do século XVIII ao século XIX, e depois ao XX, os estudos em memó- ria se diversificaram, principalmente pelo caráter de ciência atribuído aos saberes e pela democracia cada vez maior na produção e estudo do assunto. As ciências citadas no começo do texto passaram a ocupar seus espaços de interesse no campo da memória e cada uma começou a produzir por si, no intuito de entender o fenômeno da memória nas sociedades humanas. No fim do século XIX, Henri Bergson, filósofo e diplomata francês, trata a memória de uma maneira ainda não rotulada como tal, mas que já – 21 – Memória e Patrimônio Cultural está nos debates sobre o tema desde Platão: a memória de hábito. Bergson trata o ato de lembrar de dois modos: o lembrar autêntico, natural, espontâ- neo; e o lembrar consciente, racional, que é bastante vinculado ao aprendi- zado. Se percebermos, isso alude às ideias da mnemotécnica e da recorda- ção presentes da Grécia Clássica, mas que, por meio do caráter científico, passam a ser revalorizados no mundo contemporâneo. Um exemplo prático sobre os dois modos de lembrar de Bergson pode ser o aprendizado de uma nova língua e a atividade de tradução: no começo, quando sabemos ainda pouco sobre a nova língua, precisamos associar conscientemente as pala- vras de nosso idioma nativo ao idioma aprendido e, portanto, fazemos um esforço racional para tal; quando já estamos acostumados com o conheci- mento acerca da outra língua, quando conhecemos bem o conteúdo, con- seguimos fazer a tradução de maneira espontânea, às vezes até automática, ainda que consciente. O aprender com esforço e empenho sobre o assunto, é o momento mais fácil de esquecermos também, porque o conhecimento está sendo pouco a pouco inscrito em nossa memória. Quando estamos acostumados, faz-nos parecer que nunca nem aprendemos esse conteúdo,como se nos fosse natural e automático, e aí considera-se, por Bergson, a memória de hábito. Quando o que foi aprendido fica apreendido em nosso cotidiano, vira hábito e não é mais um lembrar racional. Sigmund Freud, pai da psicanálise, também ponderou sobre a memó- ria nos fins do século XIX e na passagem para o século XX. O psicanalista retoma a ideia platônica do bloco de cera, mas troca a alegoria por uma lousa-mágica, o brinquedo infantil no qual se escreve e se apaga quando se quer. Freud alude ao tema tratando do guardar ou não as informações na memória e das transformações que as informações sofrem quando arma- zenadas nela. Para ele, se buscarmos nas camadas mais antigas das nossas memórias, encontraremos temas e lembranças que achamos esquecidos, mas que em verdade estão apenas escondidos sob outros assuntos. Ainda, Freud trata do trauma: para o autor, todas as pessoas têm uma proteção psíquica para evitar o trauma, que seria uma violência à nossa individu- alidade, e essa proteção é o susto, o espanto. Quando o trauma é gerado, essa proteção psíquica é violada e uma marca profunda e não esperada é deixada em nossa individualidade psicológica. Durante um período, Freud tratou do tema da memória recalcada, que seria a atividade inconsciente e natural do cérebro para esconder de si mesmo as temáticas que nos assus- Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 22 – tam e que nos atrapalham. Depois de atender os soldados retornados da Primeira Guerra Mundial, Freud passou a pensar no trauma como uma marca profunda, que ainda viola a proteção psíquica do indivíduo, e que pode se esconder por vezes e que por mais que não seja externalizado em palavras, pode se apresentar em ações, fatos, comportamentos. Assim, a memória de um trauma, como a situação de uma guerra, pode ficar intrin- secamente marcada na pessoa em sua mais recôndita individualidade. Na década de 1930, Maurice Halbwachs, sociólogo francês da escola durkheimiana passou a trabalhar a ideia de memória coletiva. Até então, os estudos em memória eram muito voltados para o entendimento da memó- ria enquanto formadora do indivíduo e, após Halbwachs, novas interpre- tações foram colocadas em voga, especialmente as que incidem sobre o caráter coletivo da memória. Os estudiosos que seguiram Halbwachs por vezes criticaram o caráter romântico com o qual a memória era tratada por ele, pois, em sua obra a memória coletiva é apresentada como uma cria- ção natural do convívio humano, sem interferências conscientes, apenas com a interação sociocultural do homem com seus pares. Os discordantes dessa teoria passaram a tratar a memória como um tecido volátil, metafí- sico ao extremo e lugar de jogos de poder muito intensos e sempre atuais nos quais quem tem mais poder (econômico, político, informativo etc.) consegue sobrepor a memória que lhe desagrada e ocupa o espaço de ter o discurso com o qual concorda difundido socialmente. Walter Benjamin, pensador e crítico marxista, por mais que pouco ortodoxo, pensa as relações de memória à luz de Freud, mas incluídas na lógica da luta de classes. As reflexões dele se enquadram na análise de como permitir ao público uma memória das classes inferiores, não só as dos dominantes. A intenção de colocar em pauta essas memórias era a de possibilitar novas interpretações da história, fugindo do domí- nio de alguma hegemonia. Para Benjamin, a dificuldade de se executar essa intenção está no fato de que a memória individual, privilegiada até o século XIX, tem um só narrador e, então, criar um acordo sobre ela é fácil, já a memória coletiva tem muito mais narradores, e criar um discurso que seja satisfatório a todos ou pelo menos para a maioria seria muito difí- cil. Benjamin queria, essencialmente, como é comum aos marxistas, dar espaço público aos silenciados. – 23 – Memória e Patrimônio Cultural Na década de 1940, o escritor alemão W. G. Sebald tratou, sem usar o termo em si, da memória envergonhada. Segundo ele, havia uma falha grave na literatura alemã pós-guerra por não tratar do sofrimento alemão durante a Segunda Guerra Mundial. Para ele, os alemães foram estigma- tizados de um modo totalizante pelo sofrimento judeu, como se todos os alemães fossem os responsáveis, e, após o fim do governo nazista e a liber- tação dos judeus sobreviventes do Holocausto, os alemães que também sofreram com destruições massivas em suas cidades por conta dos bom- bardeios ingleses, não trataram suas próprias memórias. Ele aponta para os temas tratados na literatura alemã da geração de 45 em diante e aponta para a ausência dos temas sobre o horror da guerra para os próprios ale- mães, porque estes estariam estigmatizados e envergonhados pelo estigma que receberam como responsáveis pelos horrores do Holocausto. Paul Ricoeur, filósofo e pensador francês, também do pós-guerra, trata das mudanças profundas impostas aos indivíduos que viveram o trauma da guerra em diferença com os que não participaram. Para ele, o homem que passou pelo combate bélico da guerra ou o que sofreu nos campos de concentração têm traumas que não permitem que se lembrem de si mesmos da mesma maneira que as pessoas que não passaram por essas situações. Para Ricouer, quem passou por uma situação que aproxima a pessoa da morte, lembra de si com mais importância à manutenção da própria vida do que aquele que não passou por situações de risco iminente de morte. Com isso, o autor coloca no plano político o que deve ou não ser lembrado do ponto de vista dos horrores ou dos acontecimentos traumá- ticos. É cunhado, então, o termo da justa memória, que é a medida exata com a qual um assunto deve ser tratado ou não do ponto de vista político/ público. Um exemplo é que a França primeiramente negou que, durante o domínio nazista, no governo Vichy, estregou muitas crianças judias aos militares alemães. Hoje, reconhece o feito e tem eventos para lembrar no intuito de se desculpar com a população que se sente afetada com isso, colocando o assunto em âmbito público na medida correta para poder se desculpar pelo feito, mas sem estigmatizar ou desmerecer os afetados. Na mesma temática, Michael Pollak, sociólogo e historiador austrí- aco, na década de 1980, trata do tema da memória da Segunda Guerra Mundial, mas do ponto de vista dos sobreviventes do Holocausto. Para Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 24 – ele, ao retornar para a Alemanha e para a Áustria, por mais que tenham sofrido nestes mesmos territórios, os judeus não receberam a atenção que talvez precisassem para tratar suas memórias traumáticas. Unindo as duas ideias, a de Pollak e a de Sebald, podemos perceber dois grupos distin- tos e fechados em si: os alemães estigmatizados e envergonhados pela alcunha generalista de nazistas, que se ocuparam em reconstruir as cida- des destruídas pelos ataques aéreos; e os judeus sobreviventes que, ao retornar, não receberam a atenção para tratar seus traumas e foram obri- gados a se inserir na dinâmica de reconstrução das cidades para que se incluíssem como parte da sociedade novamente. Pollak também salienta a importância da memória, das experiências compartilhadas e das sensações de pertencimento comuns entre os indivíduos que, através dos conteúdos registrados na memória e evocados para a geração de empatia, formavam grupos sociais. O termo das memórias subterrâneas é criado por ele para considerar os saberes e as trajetórias silenciadas, mas que nunca são apa- gadas e apenas esperam o momento de retornar ao público em momento oportuno, porque, no caso da Segunda Guerra Mundial, os judeus sobrevi- ventes não terem tratado suas memórias corretamente ao voltar à Alema- nha certamente lhes gerou um mal-estar individual, no grupo étnico judeu e na sociedade de uma forma geral, pela tragédia do Holocausto e a não consideração do tema como se deveria. 1.4 Temas contemporâneos em memória Na atualidade, há temas ainda tratados pelos estudiosos da memó- ria, alguns bastanteantigos, outros mais contemporâneos. A formação das identidades ainda está muito em pauta, mas agora considerando o mundo globalizado. Como se criam as identidades individuais e de grupo em um mundo que tem acesso às mesmas coisas, a uma mesma cultura e interage sem fronteiras entre si por meio do advento da internet, por exemplo, é uma das preocupações. Atualmente, é normal que jovens americanos, chi- neses e franceses tenham as mesmas aspirações, especialmente no enfo- que do consumo pelo advento da disseminação do capitalismo, mesmo fazendo parte de culturas extremamente diferentes. As análises se dão, então, em como esses jovens são moldados, neste caso do consumo pelo discurso do mercado, para que queiram possuir o mesmo aparelho celular – 25 – Memória e Patrimônio Cultural ou para que joguem os mesmos jogos online para serem aceitos em seus grupos sociais e reconhecidos como parte deles. O tema dos moldes da memória, trazidos agora sob o olhar do mer- cado, já foram antes, nos séculos XIX e XX especialmente, estudados pela perspectiva da formação das nações e do esforço dos governos para a con- solidação de um povo que se reconhecesse como tal, produto e produtor do próprio espaço totalizante de sociedade na qual está inscrito. Os registros sobre si, as autobiografias, a organização de arquivos sobre os próprios produtores deles também têm sido objetos de estudos contemporâneos. As ideias mais articuladas nesses estudos são de como e porque, com que intenção, os produtores de coleções sobre si executam essa ação. Uma das hipóteses mais trabalhadas é a de que quem produz uma coleção sobre si quer registrar na memória coletiva uma narrativa sobre si mesmo, ignorando ou tentando silenciar outras interpretações, alheias, também sobre si. Portanto, ao eleger documentos de diversos suportes e conteúdo, o produtor de sua própria história quer cristalizar na história social a versão que ele mesmo criou de si, não abrindo margens para outras análises. A memória, desde a Grécia Clássica, passando por todos os momen- tos da história humana até a contemporaneidade, tem sido objeto de inte- resse de diferentes interpretações, cabendo sempre ao contemporâneo analisar o material da memória com suas próprias intenções. Atividades 1. Quais campos do conhecimento estudam a memória e como a tratam em seus estudos? 2. Discorra sobre as interpretações existentes sobre o complexo de cavernas de Lascaux, no sudoeste da França. 3. De forma geral, qual a relação da memória com o tempo presente? 4. Durante as ações da Igreja Católica na Idade Média ocidental, quais as relações desta Igreja com a memória? 2 O patrimônio desde sua origem até o século XXI Nesse capítulo compreenderemos um pouco mais sobre o conceito de patrimônio, como ele foi entendido ao longo da his- tória até os dias atuais. Também serão analisadas as diversas for- mas de patrimônio enquanto cultura, história e arte e sua relação com a sociedade. A terminologia patrimônio é atribuída a uma série de sig- nificados. No dicionário pode ser definida como um bem indivi- dual que tem um grande valor emocional ou capital, mas também pode ser um bem conjunto, aquele que está presente e é notá- vel para a manutenção cultural e histórica da sociedade ao qual está inserido. Nem sempre foi comum à sociedade a ideia de patrimô- nio, ele surge em conjunto com o conceito de propriedade, isso porque o homem sente a necessidade de dividir suas terras das demais, circula suas casas com cercas e define “isso é meu!”. Nasce nesse momento a noção de herança, pois se é meu, tam- bém será dos meus filhos. Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 28 – No início, patrimônio era, portanto, somente algo individual e geral- mente ligado aos valores capitais, como fazendas, casas e comércio. Hoje esse conceito expandiu, patrimônio pode ser algo de grande valor artís- tico, cultural e histórico, importante para compreender aspectos pertinen- tes ao seu bairro, sua cidade e para o mundo todo. Acredita-se que o conceito de patrimônio expande após a Revolu- ção Francesa, em 1790. A guerra trouxe um desejo de preservar a histó- ria social por meio dos bens materiais que restaram, como, por exemplo, armas, livros e prédios, com o objetivo de serem lembrados. A ideia de preservar é uma das bases do patrimônio, afinal de contas, é pela preserva- ção que será garantido o direito de tê-lo pelo maior tempo possível. Isso se aplica a qualquer uma das definições de patrimônio. Pensemos o seguinte: se você for herdeiro de uma bela casa e fizer todas as manutenções nela necessárias, terá o privilégio de usufruir dela por longos anos; contudo, se você abandoná-la, em pouco tempo ela será tomada por cupins, infil- trações e você perderá o imóvel. Esse exemplo é importante para com- preender que o patrimônio enquanto um bem de todos também deve ser preservado e cuidado por nós e pelos órgãos responsáveis. Falaremos mais disso nos próximos capítulos. Figura 2.1 – Vale dos Templos, Agrigento, Sicília Fonte: Shutterstock.com/Alfio Finocchiaro. No Brasil, a ideia de patrimônio como um bem cultural é documen- tada pela primeira vez no século XVIII, com o governador Luiz Pereira – 29 – O patrimônio desde sua origem até o século XXI Freire de Andrade. Sua vontade era a preservação da arquitetura holan- desa deixada no Recife, em Pernambuco. Essa proposta é então revisitada em 1980, data que marca a oficialização da primeira versão da história da preservação do patrimônio cultural no Brasil, que foi denominada como Proteção e revitalização do Patrimônio cultural no Brasil: uma tra- jetória, o órgão responsável por publicar esse material foi a Secretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Fundação Pró-Memória (SPHAN/Pró-memória). Segundo Marcia Chuva, em seu artigo intitu- lado Por uma história da noção de patrimônio cultural, nesta ocasião, o SPHAN/Pró-memória também reuniu documentos que localizavam a história do patrimônio cultural brasileiro em dois períodos, denominados de fase heroica e fase moderna. Além disso, o material publicado relata a importância de Mario de Andrade para a história do patrimônio cultural no Brasil, quando, em 1936, propõe a criação do Serviço de Patrimônio His- tórico Artístico Nacional (SPHAN) a pedido de Gustavo Capanema, então ministro da Educação e Saúde. Mario de Andrade foi escolhido para esta função por estar forte- mente relacionado com questões de folclore e cultura nacional, inclu- sive na situação da pré-formulação do SPHAN, o poeta era o diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, neste cargo fez diversas viagens ao Nordeste do Brasil, o que lhe deu bagagem intelectual suficiente para criar, em 1947, a Comissão Nacional do Folclore. Mario de Andrade ten- tou dar visibilidade a aspectos não só materiais como imateriais da cultura nacional, em suas mais diferentes características e posições sociais. Con- tudo, mesmo que o poeta fosse o responsável pelo projeto de SPHAN, outros intelectuais se envolviam na administração e não era unânime a necessidade de preservar certos aspectos da nossa cultura, principalmente as manifestações de cunho imaterial. Muitos destes intelectuais estavam em busca de consagrar um nacionalismo característico da Era Vargas. O material produzido por Mario de Andrade em 1936 deu início a uma série de movimentações e discussões sobre as questões de preserva- ção de patrimônio cultural. Em 30 de novembro de 1937, enfim é criado o SPHAN. Fica decidido que patrimônio é o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja do interesse público quer por sua vinculação a Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 30 – fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcio- nal valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. (SPHAN,1937). Passa a se considerar também, “[...] monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que importe conservar e proteger pelafeição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana” (SPHAN, 1937). O primeiro diretor deste novo órgão foi Rodrigo Melo Franco de Andrade, que manteve o cargo durante trinta anos e trouxe diversas alte- rações ao projeto original de 1936. Alguns historiadores criticam o papel do SPHAN durante este período, isto porque ele se dedicava a criar na população brasileira um sentimento de unidade nacional, dando ênfase para os grandes personagens (heróis da nação) e momentos também heroi- cos da história do país. Essa era a característica máxima da política desse período, que tinha como objetivo criar o “homem brasileiro”, com sua arte e arquitetura barroca. Por esse motivo grande parte dos nossos bens tom- bados estão em Minas Gerais. Esta é a denominada fase heroica. Assim, o SPHAN foi ressignificado e, na Constituição de 1988, ganhou não só alguns novos aspectos como também um novo nome, Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que entre suas mudanças estabelece que substituindo a nominação Patrimônio Histórico e Artístico, por Patrimônio Cultural Brasileiro. Essa alteração incorporou o conceito de referência cultural e a definição dos bens passíveis de reconhe- cimento, sobretudo os de caráter imaterial. A Constituição estabe- lece ainda a parceria entre o poder público e as comunidades para a promoção e proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro, no entanto mantém a gestão do patrimônio e da documentação relativa aos bens sob responsabilidade da administração pública. (IPHAN, 1988). O Iphan não só amplia a forma de se eleger um patrimônio como também democratiza sua eleição, revisitando o conceito de patrimônio defendido por Mario de Andrade, em 1937. O patrimônio passa a ser representado por intervenções de “natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasi- leira” (IPHAN, 1988). – 31 – O patrimônio desde sua origem até o século XXI O objetivo desta mudança é que o máximo de grupos sejam repre- sentados em seus mais variados aspectos, como, por exemplo, uma dança, uma feira, um parque e assim por diante. É também uma maneira mais democrática de eleger um bem, afinal, qualquer demonstração de arte, história e cultura que seja relevante para alguma camada ou grupo social pode se tornar um patrimônio cultural. O Iphan é o primeiro na América Latina a compreender o patrimônio desta maneira e a definir regras de preservação mais rígidas. É ainda hoje uma referência para países com um passado semelhante ao da colonização do Brasil. Desta forma, é possível manter vínculos e apoio internacional. 2.1 O Patrimônio Cultural após 1988 A criação do Iphan em 1988 reconheceu como Patrimônio Cultural um novo conjunto de bens, sendo eles o patrimônio material, patrimônio imaterial, arqueológico e mundial. Neste momento, a ideia de Mario de Andrade é revisitada e passa-se a considerar o Patrimônio Imaterial como um importante fator para preservação da memória e da identidade social. Cada um desses grupos é composto por características únicas. Contudo, todos eles passam pelo processo de tombamento. Vamos compreender um pouco mais esse termo. Tombo, assim como patrimônio, tem diversas definições, entre elas a mais comum, que é a de fazer algo cair. Contudo, tombo também pode estar relacionado ao ato de inventariar ou registrar algo, e é esta a defini- ção que trabalharemos neste momento. Falamos há pouco sobre a origem do patrimônio e suas diversas definições. Quando o patrimônio passa a ser visto como algo coletivo e se decide conservar grandes monumentos e obras de arte, por exemplo, se faz necessária a catalogação destes. Esta catalogação só se faz possível graças ao tombo. Para se ter o controle do que foi tombado, órgãos como o Iphan se responsabili- zam por criar o chamado Livro Tombo. Nele estão presentes todos os bens tombados pela instituição responsável, assim como informações referentes a suas característi- cas. Por exemplo, se for um edifício, o Livro Tombo trará informações sobre a data de edificação, os responsáveis pela obra, o estilo arquitetônico, entre outros. Existem quatro tipos de Livros Tombo, sendo eles: arqueológico, paisagístico e etnográfico; Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 32 – histórico; belas artes; e das artes aplicadas. É importante salientar que tanto o tomba- mento quanto o Livro Tombo surgem no Brasil na constituição de 1937. Agora que o conceito de tombamento está claro, vamos compreender os tipos de patrimônio existentes no Brasil. O mais usual deles é o Patri- mônio Material, que é definido pelo Iphan como imóveis como as cidades históricas, sítios arqueológicos e paisagís- ticos e bens individuais; ou móveis, como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos. (IPHAN, 1988) Um exemplo de bem material tombado pelo Iphan são os remanes- centes e as ruínas da Igreja de São Miguel, localizada no município de São Miguel das Missões, no Estado do Rio Grande do Sul. Foi tombado em 1938 e é um dos mais importantes exemplares da arquitetura barroca no Brasil. Além de ser um patrimônio material tombado pelo Iphan, as ruínas de São Miguel foram consideradas Patrimônio Mundial, Cultural e Natural pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), também no ano de 1938. Figura 2.2 – Ruínas Igreja São Miguel Fonte: Shutterstock.com/ThiagoSantos. O Patrimônio Imaterial, por definição, é toda forma de expressão que esteja além do âmbito da materialidade. Segundo o Iphan, práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cêni- – 33 – O patrimônio desde sua origem até o século XXI cas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como merca- dos, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). (IPHAN, 1988) O Patrimônio Imaterial é em base o maior responsável pela democra- tização da preservação da cultura, arte e história, afinal, não está necessa- riamente relacionado às questões do capital. São atos, saberes, indivíduos, entre outros, que nasceram e se preservam por atitude e encorajamento popular. Só se preservam vivos na memória por serem de atitudes coleti- vas e de nenhuma forma podem ser impostos, afinal, como já discutido, a cultura vem do povo. Um exemplo de Patrimônio Imaterial é a Roda de Capoeira, que foi inscrita no Livro Tombo das Formas de Expressão em 2008. É considerada um Patrimônio Imaterial graças ao fardo histórico que carrega, trazida pelos povos africanos no Brasil escravizados. Foi uma forma de ressigni- ficar a cultura que em nosso país foi silenciada. A amplitude de seu tom- bamento é nacional e é o Patrimônio Imaterial brasileiro mais conhecido no mundo. Segundo o Iphan, “[...] está presente em mais de 150 países, com variações regionais e locais criadas a partir de suas ‘modalidades’ mais conhecidas: as chamadas ‘capoeira angola’ e ‘capoeira regional’” (IPHAN, 2008). Figura 2.3 – Roda de capoeira, resquício das danças de guerra segundo Johann Moritz Rugendas, 1835 Fonte: Johann Moritz Rugendas (1835). Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 34 – O Patrimônio Arqueológico é assim reconhecido devido a seu cará- ter de salvaguardar a memória, cultura e identidade de uma determinada comunidade ou civilização. Segundo o site do Iphan, (www.iphan.gov.br) o Brasil tem vinte e seis mil sítios arqueológicos, mas é importante lem- brar que esse é o número já cadastrado e que podem existir outros milhares ainda não descobertos. Mas o que exatamente pode ser considerado um sítio arqueológico? O Iphan define que os locais onde se encontram vestígios positivos de ocupação humana, os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais depouso prolongado ou de aldeamento, “estações” e “cerâ- micos”, as grutas, lapas e abrigos sob rocha. Além das inscrições rupestres ou locais com sulcos de polimento, os sambaquis e outros vestígios de atividade humana. (IPHAN, 1988) Também é importante lembrar que é crime federal omitir a desco- berta de um sítio arqueológico, sendo que o responsável pelo local da des- coberta tem o prazo de 60 dias para entrar em contato com o Iphan, afinal de contas, vestígios arqueológicos contam parte da nossa história, já que ela é constituída de fragmentos. “Todos os sítios arqueológicos têm prote- ção legal e quando são reconhecidos devem ser cadastrados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA)” (IPHAN, 1988). Um dos mais importantes exemplos de Patrimônio Arqueológico no Brasil é o Sítio Arqueológico Ita- coatiaras do Rio Ingá, no Estado da Paraíba. Foi tombado no livro de Belas Artes e no Livro Tombo Histórico em esfera nacional pelo Iphan em 1944, sendo a primeira arte rupestre a ser tombada como patrimônio no país. Se localiza na região rural da cidade de Ingá. As representações são gravuras e em sua maioria antropomórficas (representações de figuras huma- nas) e zoomórficas (representa- ções de animais). Fonte: portal.iphan.gov.br. Figura 2.4 – Sítio Arqueológico Itacoatiaras do Rio Ingá (PB) – 35 – O patrimônio desde sua origem até o século XXI Uma curiosidade: o termo Itacoatiara significa escrita ou desenho na pedra, e tem sua origem na língua tupi-guarani. No Brasil, esse termo é usado para definir as gravuras rupestres. Por fim, temos o Patrimônio Mundial, que é definido por um con- junto de bens que tem relevância para a conservação da história, arte, iden- tidade, cultura ou memória de todas as populações. O responsável pela administração deste patrimônio é a Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (UNESCO). Foi adotada em 1972. Para a UNESCO, o Patrimônio Cultural é formado por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham valor uni- versal excepcional do ponto de vista histórico, estético, arqueo- lógico, científico, etnológico ou antropológico. Incluem obras de arquitetura, escultura e pintura monumentais ou de caráter arqueo- lógico, e, ainda, obras isoladas ou conjugadas do homem e da natu- reza. São denominadas Patrimônio Natural as formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, habitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e áreas que tenham valor científico, de con- servação ou estético excepcional e universal. (IPHAN, 1978). O Brasil passa a fazer parte dos países afiliados à UNESCO em 1978. Hoje fazem parte da organização 21 países e, para instigar a participa- ção efetiva destes países na conservação de seus patrimônios, a UNESCO criou a chamada Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, um título internacional que dá imensa visibilidade ao bem tombado. Também se vinculou em 2003 aos tipos de Patrimônio Mundial aque- les que são imateriais, ou seja, o ofícios, saberes, costumes, danças, poe- sias e músicas, também podem compor o time de patrimônios considera- dos importantes para o mundo todo. O Cais do Valongo, localizado na cidade do Rio de Janeiro, é um dos Patrimônios Mundiais mais importantes do Brasil. Isso porque ele está localizado no porto que mais recebeu escravizados vindos da África no mundo todo. Seu reconhecimento como Patrimônio Mundial é a materia- lização do sentimento de culpa pela violência que marca a escravidão no Brasil e é de suma importância para as futuras sociedades a sua conserva- ção. O Cais do Valongo é um símbolo de resistência e força vivida pelas Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 36 – populações africanas escravizadas por séculos no Brasil. Passou a fazer parte do Livro Tombo da UNESCO em 2017, e tem sido um importante meio de debate para as questões raciais, não só no território nacional como no mundo todo. Foi descoberto em 2011, e cobre uma área de cerca de 5 milhões de metros quadrados. Construído em 1811, tinha como objetivo o desembarque e também comércio de escravizados que seriam posterior- mente levados para as fazendas no interior do Rio de Janeiro, e também para outros Estados do país. Figura 2.5 – Cais do Valongo – Rio de Janeiro Fonte: Shutterstock.com/LuizSouza. 2.2 Patrimônio, sociedade e memória O Patrimônio Cultural tem por objetivo a representação do indivíduo enquanto sociedade. Preservar um patrimônio é, portanto, a preservação do meu próprio eu, da memória individual e afetuosa, mas esse “eu” ainda envolto na malha social. Cada patrimônio tombado deve a priori valorizar o sentimento de pertencimento, não necessariamente para toda a socie- dade, mas para os mais diversos grupos que o compõem. A Feira do Largo da Ordem, na cidade de Curitiba/PR, é um patrimônio imaterial tombado a nível municipal e resgata a história de sociabilidade e comércio que ocorre na mesma região ao longo da existência da cidade, contudo, essa mesma feira não representa a identidade de todas as pessoas do município, mas sim de um grupo especifico, os comerciantes e artesãos. Essa é a lógica – 37 – O patrimônio desde sua origem até o século XXI do Patrimônio Cultural, a feira não precisa representar a memória e iden- tidade de toda a cidade de Curitiba, porém, se faz necessário que todos em Curitiba possam ter um Patrimônio Cultural ao qual se identifiquem. Figura 2.6 – Feira do Largo da Ordem – Curitiba/PR Fonte: Ben Tavener/Flickr/CC BY 2.0. O Patrimônio Cultural tem por obrigação o resgate da memória cole- tiva. É por meio dele que as pessoas passam a se conectar de maneira afetiva com o lugar em que estão inseridas, e isso acontece graças ao ato de lembrar, por exemplo, quando passamos na frente da casa que vivemos a nossa infância, nós lembramos não só da casa, mas dos momentos e pes- soas que estiveram envolvidos nesse espaço. Com o Patrimônio Cultural acontece o mesmo, a diferença é que ele pode nos fazer criar laços com momentos e histórias que não vivemos. O patrimônio usa nosso imagi- nário, quando vemos um edifício que foi construído no início do século XX, nos transportamos para esse espaço, imaginamos como viviam essas pessoas, quais eram suas roupas, meios de transporte, suas ideias. É para isso que o Patrimônio Cultural vive. Segundo Marina Soares Leão, como referência para a ação de recriar o espaço, é preciso com- preender como este adquire o valor simbólico que lhe é atribuído. Sua valoração é dada a partir das atividades de representação e res- significação do patrimônio local e do resgate da memória coletiva para com o sujeito que se constitui como produto e produtor deste espaço. (LEÃO, 2009 p. 12) Leão ainda afirma que Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 38 – A continuidade da tradição de um grupo social se dá através da transferência do patrimônio a partir das práticas sociais atribuídas a ele. Esta apropriação coletiva e /ou individual do patrimônio ali- menta os sentimentos de identificação e de atribuição de valor ao bem. Neste sentido, o patrimônio em sua forma física representa um acervo acumulado, reelaborado e intransferível das experiên- cias vivenciadas pelas diversas gerações antepassadas. (LEÃO, 2009 p. 14) Dica de Filme Para compreender um pouco mais essa relação individuo versus patri- mônio, é interessante analisar a animação que leva o nome de A Casa de Pequenos Cubinhos, criada pelo japonês Kunio Katõ, que recebeu o Oscar de melhor animação em 2009. Conta a história de um velho senhor que tem sua casa a cada dia mais submersa nas águas do mar e que, para escapar desse fatídico desastre natural, tenta a cada momento assen- tar tijolo sobre tijolo e construir uma casa sobre outra. Certo dia seu cachimbo cai por entre uma construção e outra, o que lhe obriga a sub- mergir para encontrar este objeto tão valioso, contudo, ao passo que ele desce e vê objetos e até mesmo as diferentes construções feitas ao longode sua vida, suas memórias lhe são trazidas. Esse é o real motivo da existência de Patrimônios Culturais, que nossas memórias nos sejam dadas conforme nos confrontamos com músicas, danças, festas, construções edificadas, entre outros. 2.2.1 A gestão do Patrimônio Cultural no Brasil e o papel do cidadão O Brasil passa a discutir políticas de gestão patrimonial desde 1977, mas é somente em 2009 que o Iphan, em parceria com o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura e a Associação Brasileira de Cidades Históricas (ABCH) realizam um encontro onde o foco de dis- cussão era os novos caminhos a serem tomados pelos gestores culturais. Segundo Til Pestana, esse fórum serviu como matriz para a realização de novos objetivos na área da gestão do patrimônio, entre eles: – 39 – O patrimônio desde sua origem até o século XXI consolidação de um Programa Nacional de Formação dentro do Sistema Nacional de Patrimônio; formação de uma coordenação multidisciplinar para o Programa Nacional de Formação em Patri- mônio; estudo sobre a possibilidade de formação de um Sistema de Indicadores para Avaliação dos Programas de Formação em Patri- mônio em âmbito nacional, adotando como referência o Sistema de Indicadores do Ministério da Cultura em parceria com o IBGE, o da Capes e do Programa de Estatística de Cultura da UNESCO; ampliação dos projetos voltados para a Formação, Gestão e Educa- ção para o campo do Patrimônio Cultural. (PESTANA, [S.d.], p. 3) Mesmo que os objetivos não tenham sido cumpridos dentro dos pra- zos estabelecidos, a importância deste fórum é inegável, afinal de contas, é a partir deste momento que a gestão da cultura e do patrimônio passam a ser discutidas de uma maneira mais consolidada, buscando novas dire- trizes e a resolução de problemas, tanto para a área de patrimônio quanto para o profissional responsável por sua gestão. O problema é que o fórum foi basicamente pautado nas questões econô- micas da preservação e globalização do patrimônio, ou seja, qual era o recurso financeiro disponível e qual lucro se obteria com esse gasto. Os novos gestores culturais eram orientados a pensar no patrimônio como um bem capital e que necessariamente deveria arcar com os seus próprios gastos de preservação. A maior parte dos Patrimônios Nacionais são usados para a captação de renda, ou seja, servem muito mais como ponto turístico do que salva- guarda da cultura e memória, principalmente os Patrimônios Mundiais; o título que a UNESCO proporciona é um chamariz para as oportunidades de fazer negócio sobre o patrimônio. Mas por que essa valorização financeira do patrimônio é de certa maneira prejudicial? Nas palavras de Pestana, lembramos que preservamos o nosso patrimônio cultural porque ainda tem um significado no contexto sociocultural. A sociedade estabelece vínculos vitais com seus bens culturais conservando aqueles elementos que cumprem uma função social. Existe um consenso geral de resistência à destruição de certos fatos que tem valor e, em que cada um possa reconhecer a si mesmo e sua expe- riência de vida associada. Portanto, é necessário partirmos da con- cepção da importância social da preservação do patrimônio cultu- ral. (PESTANA, [S.d.], p. 14). Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 40 – Ou seja, o Patrimônio Cultural, quando vendido, deixa de cumprir seu papel de resgatar e rememorar a história e a cultura. Ele se torna um atributo, algo sacralizado, muito mais importante para os turistas do que para a sociedade que deveria se sentir pertencente e ressignificada nele. O patrimônio pode sim ser um ponto turístico, mas ele deve ir além disso, é um espaço de conquista, um espaço de cultura e resistência. É papel do cidadão reivindicar seu direito ao patrimônio. Como já vimos anteriormente, o Patrimônio Cultural é eleito pela história e cultura de múltiplos grupos sociais, ou seja, é eleito ou deveria ser eleito pelo povo e ter importância relevante para esse. Pestana fala que quando intervimos de alguma forma em nosso patrimônio cultu- ral tocamos em fibras muito sensíveis dos vínculos histórico-cul- turais que dão coerência e congruência a toda sociedade. Nesse sentido, é importante considerar, antes de tudo, que o patrimônio cultural pertence à comunidade, a qual estabelece vínculos vitais com seus bens culturais, conservando aqueles elementos que cum- prem uma função social. Estas relações podem ser de caráter eco- nômico, social, cultural, etc. Ou seja: as relações da comunidade com seu patrimônio cultural não se circunscrevem somente na esfera econômica, mas nas diferentes e complexas esferas da vida social. (PESTANA, [S.d.], p. 16) É nesse sentido que o cidadão se torna agente na preservação do Patri- mônio Cultural. É pelas mãos da sociedade que o patrimônio deixa de ser apenas uma forma de angariar fundos e passa a ter valor cultural. Ser agente do patrimônio significa reivindicar o seu lugar na história, preservar ele é preservar nossa cultura. Usando o exemplo antes dado, o Cais do Valongo pode ser um lugar turístico, com grande valor capital e isso ser de auxílio para que tenha capital suficiente para sua própria preservação, mas de nada vale mantê-lo vivo se a população ao qual ele diz respeito não se sentir pertencida a ele, não lhe preservar e não lhe compreender como lugar de memória. 2.3 Patrimônio e paisagem A paisagem é por definição um conjunto heterogêneo de componen- tes, seja ele natural ou criado pelo homem e que pode ser visto. Esse con- ceito está presente nos nossos dias e é natural termos a certeza de que o – 41 – O patrimônio desde sua origem até o século XXI entendemos. Mas o que a paisagem tem a ver com o Patrimônio Cultural, neste capítulo discutido? Segundo George Bertrand (1978 apud ALMEIDA, 2007), a paisagem é um produto social, é uma resultante da história local ou regional. Se ela é um produto social é, portanto, parte incondicional da nossa cultura. E se torna patrimônio quando a ela atribuímos características únicas, seja pelo seu valor histórico ou mesmo pelo privilégio de ser única, como, por exemplo, as ruínas da Igreja de São Miguel: esse Patrimônio Cultural é simbólico pela sua admirável característica de construção que é singu- lar no Brasil, mas também é uma referência histórica. É nesse sentido que as belas ruinas deixam de ser apenas uma paisagem para se tornarem um patrimônio. Mas como se define uma paisagem patrimonial? O artigo Os valores patrimoniais da paisagem cultural: uma abordagem para o processo de intervenção, elaborado por Silva e colaboradores (2007), busca na inter- pretação de Sauer a seguinte resposta para esta pergunta: a paisagem cultural é, nas palavras de Sauer (Corrêa e Rosendahl, 1998, p. 9), “modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado”. Todavia, Sauer privilegiou a aná- lise morfológica da paisagem cultur\al e os aspectos materiais da cultura, não considerando seus aspectos subjetivos. (SILVA et al., 2007, p. 299) Contudo, é importante salientar que uma paisagem patrimonial, assim como compreendemos no Patrimônio Cultural, pode ter diversas formas de representação e pertencimento, desde a mais simples e individual, até as mais complexas e coletivas, chegando a níveis mundiais. Quem avalia a paisagem mundial é a UNESCO, desta maneira podemos perceber sua proximidade com a relação do Patrimônio Cultural. As questões da paisagem natural vêm sendo discutidas ao longo do século XX, principalmente com o avanço das políticas de globalização e também com os avanços das indústrias e a visível perda de Patrimônio Natural. É nesse contexto histórico que passa a se perceber a necessidade de conservação e, mais do que isso, preservação de Patrimônios Natu- rais. A paisagem neste quesito assume duplo papel: o de corresponder às Memória, Patrimônio Histórico e Meio Ambiente – 42 – necessidades humanas,
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