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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UnB Instituto de Ciências Humanas – IH Departamento de História Programa de Pós-Graduação em História – PPGHIS Teto de Vidro ou Labirinto de Cristal? As Margens Femininas das Ciências Betina Stefanello Lima Brasília Julho/2008 Teto de Vidro ou Labirinto de Cristal? As Margens Femininas das Ciências Betina Stefanello Lima Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade de Brasília como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Rita Laura Segato Banca Examinadora: Prof.ª Dr.ª Rita Laura Segato (Orientadora) Prof.ª Dr.ª Maria Margaret Lopes (IG/Universidade Estadual de Campinas) Prof.ª Dr.ª Ondina Pena Pereira (PSI/Universidade Católica de Brasília) Suplente: Prof.ª Dr.ª Cristina Stevens (LIT/Universidade de Brasília) Brasília 2008 Dedicatória Dedico esta pesquisa a todas as físicas entrevistadas sem as quais não poderia ter feito este trabalho. RESUMO Este trabalho dedica-se à análise qualitativa dos mecanismos de inclusão subalterna das mulheres nas ciências, neste caso, as físicas. Esta reflexão é realizada a partir de dezenove entrevistas com físicas em variadas posições no Brasil, da participação no evento “Second Iupap Conference on Women in Physics” em 2005 e da experiência como analista em ciência e tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. A pesquisa foi orientada pelas teorias dos Estudos Feministas e de Gênero. As análises realizadas ao longo desta dissertação apontam para uma rede complexa de mecanismos que tem perpetuado a inclusão subalterna das mulheres no campo científico. Palavras-chave: gênero, ciências, físicas, ascensão profissional, mulheres, feminismos, carreira científica. ABSTRACT This work provides a qualitative analysis of the mechanisms of women subaltern inclusion in Science, in this case, Physics. This study is based on nineteen interviews with female physicists working on different positions in Brazil, on their participation on the “Second IUPAP Conference on Women in Physics” in 2005, and on the experience of a Science and Technology Analyst of the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq). This research was guided by the theories of Feminist and Gender Studies. The analysis performed during this work indicate a complex net of mechanisms that has perpetuated the subaltern inclusion of women on the scientific field. Keywords: gender and science, Physics, scientific career, feminism AGRADECIMENTOS Agradeço à vida por ter me deixado conquistar o direito de permanecer respirando, pensando, sofrendo, transformando, acreditando... Não que esta declaração seja um louvor à vida, a morte é também bem-vinda. Agradeço imensamente às pesquisadoras que me receberam e que me permitiram realizar esta pesquisa. Algumas delas, especialmente, por compartilharem suas vidas, suas dores, suas alegrias e seus dilemas. Sinto-me honrada pela confiança depositada em mim. Agradeço ao professor José Jorge de Carvalho por me incitar o gosto pela antropologia ainda nas aulas de introdução e incentivo para continuar. Agradeço ao professor José Bizerril e às professoras Ondina Pena e Tânia Mara Almeida por terem me possibilitado um caminho a ser trilhado no conhecimento durante a especialização de antropologia. A estas duas últimas professoras agradeço também o incentivo e encaminhamento ao mestrado e por terem me apresentado à Profa. Rita Segato. Agradeço a todas as pensadoras (professoras e colegas) a quem tive acesso durante o mestrado e que iluminaram esta dissertação de tantas formas que é difícil nominá-las. Agradeço à Profa. Diva Couto por suas perguntas e pensamentos temperados de uma sagacidade irônica única e também por toda sua confiança e apoio. Agradeço à Profa. Tânia Navarro-Swain pelos arrombamentos, nunca definitivos, das grades binárias do conhecimento. Agradeço à Profa. Cristina Stevens por apresentar os caminhos deliciosos da literatura feminista e da metaficção. Agradeço à Anette Maia por sua solidariedade infinita e seu saber, cirúrgico e poético cuja influência excedeu em muito a esfera acadêmica. Agradeço à Profa. Rita Segato por ser uma fonte constante de inspiração e por acreditar em mim quando muitas vezes eu mesma duvidava. Agradeço à Profa. Ondina Pena pelo seu constante apoio e por suas sugestões ao longo do trabalho. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico por ter apostado no meu projeto, em suas diversas contribuições, cito algumas: Zenilda Pereira por seu profissionalismo e empenho as questões referentes à minha licença capacitação sem a qual não seria possível realizar esta dissertação; Lourdes Queirós por seu incentivo e incessante apoio; ao Prof. José Roberto Drugowich pela confiança depositada no meu trabalho. Agradeço especialmente a duas pessoas maravilhosas que me acolheram no Programa Mulher e Ciência e se tornaram exemplos em minha vida: Sônia Malheiros e Isabel Tavares. Agradeço à Profa. Margaret Lopes por me apresentar os caminhos que a discussão na área de gênero e ciência têm tomado. Agradeço ao Marcos por seu companheirismo e bom humor essenciais ao clima, por vezes, tenso e solitário da construção de um saber teórico. Agradeço aos meus pais por apoiarem minhas escolhas ainda que não concordem com elas. Agradeço a toda(o)s amigas e amigos por me apoiarem de diferentes formas, mesmo que tenha sido para me tirar do foco apenas da dissertação: Linda, Bárbara, Leonardo, Liz, Alinne, Denise, Fernanda, Marjorie, Célia, Antônia Cristina, Magali, Dani, Flávia, Ivan, Clotilde, Karin, Sandra, Ellen, Claudia, Julianas, Caetano, Giordana e Tana.. Á toda(o)s estes que representam as estrelas do meu céu, luzes que dão sentidos a este meu caminho nem sempre claro. Agradeço à tate pela leitura atenta e revisão final. Índice SEJAM BEM-VINDA(O)S: A CASA É NOSSA!? ................................................................7 Caminhos da Pesquisa ........................................................................................................................ 9 No meio do caminho existia um tema............................................................................................... 14 Enquanto Pesquisadora Feminista .................................................................................................... 15 Roteiro para a Leitura ....................................................................................................................... 17 CAPÍTULO 1 ..........................................................................................................................19 Gênero nas Ciências 19 Ciência: Uma Prática Androcêntrica................................................................................................. 20 Ciência: Um saber Androcêntrico..................................................................................................... 26 Outra Ciência .................................................................................................................................... 29 Um Conto para a História ................................................................................................................. 39 Outra Física....................................................................................................................................... 43 CAPÍTULO 2 ..........................................................................................................................46 Entre Inteligências Descorporificadas e Super-Mulheres:O Drible da Dor 46 CAPÍTULO 3 ..........................................................................................................................56 Violências de Gênero nas Ciências 56 Sexismo Automático ......................................................................................................................... 59 Sexismo Instrumental ....................................................................................................................... 67 CAPÍTULO 4 ..........................................................................................................................72 Na Contramão dos Discursos: entre “Ser Mulher” e “Ser Cientista” 72 Casamento e Ciência em Laços e Nós .............................................................................................. 77 Maternidade: A Realização ............................................................................................................... 85 Formas de Agir em Conflito ............................................................................................................. 91 Trajar-se: Do Ultraje à Armadura ................................................................................................... 100 Política e Ciência ............................................................................................................................ 106 QUE SEJA UM PONTO, MAS NÃO FINAL.................................................................... 119 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................123 ANEXOS ...............................................................................................................................128 7 Sejam Bem-vinda(o)s1: A Casa é Nossa!? Admite-se que a mulher estude física, admite-se que ela faça doutorado, admite-se que ela esteja por aí fazendo serviços, mas o que dificilmente se admite é que ela realmente alcance postos mais elevados na carreira. Para verificar isso basta olhar. É muito difícil, e não é difícil porque as mulheres não têm competência, é difícil porque realmente é dificultado ao máximo e porque talvez nem todas são tão ambiciosas, tão decididas como eu fui. Joanna O meu tema de pesquisa e inquietação se refere à lenta e escassa ascensão das cientistas nas carreiras em ciências em seu amplo sentido. Nesta dissertação, analiso as dificuldades relatadas pelas físicas referentes à carreira científica2. É importante perceber que mesmo em áreas científicas constituídas tipicamente enquanto femininas, por exemplo, nutrição, as pesquisadoras não se encontram no plural em posições de destaque. A princípio, as posições de destaque seriam conseqüências de uma carreira de sucesso. O ápice do sucesso de um(a) cientista pode ser caracterizado por grandes descobertas ou brilhantes teorias que tragam novos caminhos ou resoluções de problemas, modelos de ampla utilização. Entretanto, como mensurar isso? Em tese, as(os) cientistas com este perfil seriam reconhecida(o)s e agraciado(a)s com prêmios e com as melhores bolsas, estariam como líderes de grupo de pesquisa, ocupariam as posições de titular em suas instituições, estariam nas Academias de Ciências de seus países, dentre outras distinções. Considerar que grandes nomes da ciência, em especial os de mulheres, não foram reconhecidos e, muitas vezes, elas foram banidas de seus meios, induz a pensar que são variáveis complexas as que determinam quem recebe os frutos institucionais de uma carreira científica de sucesso. Para fins metodológicos, considero 1 É complicado encontrar uma forma de escrever que escape do formato sexista e androcêntrico da linguagem. Um modo de expressão em que o feminino é, de maneira geral, invisibilizado pelo plural masculino (exemplo: os cientistas). Inicialmente pensei em escrever conforme sugestão de um colega, Felipe Areda, com o x (exemplo: xs cientistas) como forma de utilizar uma linguagem menos sexista, uma possibilidade de sair do cunho binário e androcêntrico do dito que se faz real. No entanto, esta forma foi esteticamente questionada e considerada pouco palatável, ou seja, de difícil leitura. Assim, escolhi escrever fazendo, sempre que necessário, a menção dupla do feminino e do masculino (exemplo: a(o)s cientistas). Contudo, decidi por alternar as vogais entre parênteses e a ordem em que estas aparecem. Esta forma de escrever, ainda que seja de cunho binário e sexista, confunde, pelo menos, a ordem de inclusão e subverte o referente. 2 Farei o esforço para sair da grade binária na qual somos compelida(o)s a aprisionar o pensamento, portanto, não utilizarei a divisão, muito questionável, entre ciências “hard” e “soft”. Sobre esta metáfora de separação das ciências “duras” e “moles”, que nitidamente remete à experiência sexual masculina, Pauline Bart (citada no trabalho de Ângela Lima e Souza, 2002) sugere a substituição por “secas” e “molhadas”. 8 como um dos parâmetros para definir uma “posição de destaque” o recebimento das bolsas de Produtividade em Pesquisa3 nos mais altos níveis (1A e 1B) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, sem deixar, contudo, de buscar entender quais variáveis estão implicadas neste processo. A exclusão das mulheres da ciência foi mapeada de duas formas: a horizontal ou territorial, que trata da divisão de áreas do conhecimento caracterizadas em femininas ou masculinas nas ciências, e a vertical ou hierárquica, que se refere à exclusão das mulheres do topo da carreira científica, fenômeno também chamado “teto de vidro4”. Na exclusão horizontal, percebe-se o maior número de mulheres em áreas construídas como de menor prestígio. Na exclusão vertical, o “teto de vidro” é utilizado como metáfora ao se referir à invisibilidade das barreiras5 que dificultam e impedem a ascensão das mulheres na carreira. Sandra Harding (1996:56), ao se referir à exclusão das mulheres nas ciências, conclui que “A segregação vertical e a horizontal se combinam para garantir a perpetuação desta situação”. O principal foco desta pesquisa se refere ao “teto de vidro”. Quais são as barreiras encontradas no “teto de vidro”? Como atuam estas barreiras? Quais as estratégias encontradas para superá-lo? Quais os custos desta superação? Também me interessa problematizar a atuação das pesquisadoras enquanto constituídas nas suas experiências diversas, como mulheres. Sua inserção no campo de pesquisa contribui com um outro modo de fazer ciência? Fazer ciência se conjuga no feminino e no plural? Focar o olhar nas mulheres parece, para muito(a)s, em especial para o(a)s não- estudioso(a)s ou não-familiarizado(a)s com o tema, descabido. Falar em feminismo, então, tem um tom anacrônico ou parece fora de lugar. No discurso veiculado principalmente pela mídia, as mulheres já chegaram à tão desejada igualdade e não têm mais do que reclamar. As oportunidades estão dadas. Muito é divulgado sobre a igualdade já alcançada entre os sexos, por exemplo, em citações sobre já sermos maioria nos cursos superiores e na pós-graduação6, mas pouco se fala da baixa representatividade feminina em “posições de destaque” na carreira 3 Estas bolsas são destinadas segundo a definição disponível na página do órgão: “Distinguir o pesquisador, valorizando sua produção científica segundo critérios normativos, estabelecidos pelo CNPq, e específicos, pelos Comitês de Assessoramento – CAs do CNPq.” A bolsa, em seus diferentes níveis, representa status e recursos para a pesquisa. 4 Londa Schiebinger (2001: 76-80) utiliza as expressões de Margaret Rossiter: segregação hierárquica e segregação territorial para vertical e horizontal. Ela somou a estas duas segregações a segregação institucional em que cita Harriet Zuckerman: “quantomais prestigiosa uma instituição, mais as mulheres demoram para ser promovidas.” Schiebinger também explica o conceito “teto de vidro”. 5 Estas barreiras são tidas como invisíveis uma vez que não são obstáculos formais. 6 Consta nas estatísticas divulgadas pelo Diretório de Pesquisa do CNPq que, em 2004, no doutorado, a distribuição por sexo era masculino: 7.836 e feminino: 8.750. 9 científica. Conforme apresentam as autoras Marta Garcia e Eulália Sedeño (2006) a participação das mulheres nas ciências se encontra, mundialmente, em torno de 30%, e em altos postos estima-se que em torno de 5 a 10%. Esta taxa ainda é menor nas áreas consideradas masculinas. Conforme apresento no Anexo IV, o percentual de mulheres bolsistas de Produtividade em Pesquisa (PQ) nível 1A tem a pequena variação não- progressiva, nos anos de 2001 a 2006, de 22% a 24%. Na área da física há quatro bolsistas mulheres PQ-1A para um total de 68 bolsas neste nível em vigência7. Já ouvi que esta ascensão é uma questão de tempo... Quanto tempo? Será que esse sistema funciona de forma tão linear assim? Será que por elas terem “igualmente” o título de doutorado, tido como passaporte para a carreira científica, chegarão ao topo da carreira? Será o campo científico, assim, sistematicamente diferente do político, no qual para as mulheres serem eleitas, basta, nos termos formais, o título de eleitor(a) e sua filiação partidária? A eliminação de barreiras formais é suficiente para garantir as condições de inclusão plena das mulheres nas ciências? O que as exclui ou as inclui subalternamente? Quais são estes mecanismos? Caminhos da Pesquisa Este trabalho é feito pelas vozes das físicas entrevistadas, nos sentidos que tomaram pela minha interpretação e do que pude fazer emergir destes discursos. São falas localizadas de pesquisadoras de hoje, na física, no Brasil, de diferentes regiões: Sul, Nordeste, Centro- Oeste e Sudeste, a maioria do estado de São Paulo. Doze das dezenove entrevistadas são do estado de São Paulo, alocadas em diferentes instituições. São pesquisadoras de diferentes estágios na carreira, inclusive, duas aposentadas e uma estudante de doutorado. A maioria que entrevistei possui bolsa de Produtividade em Pesquisa em todos os diversos níveis: 1A, 1B, 1C, 1D, 2. São mulheres de diferentes idades, origens, classes sociais, linhas de pesquisa, posições na carreira. Entrevistei apenas uma pesquisadora negra, ainda em início de carreira. Costuro uma colcha de retalhos com os recortes que obtive sobre suas vidas enquanto mulheres e cientistas. Não há um fio que as amarre previamente. Tramo os depoimentos com o discurso das teorias de gênero e feministas. Costuro as falas sobre suas experiências 7 Dado consultado em 28/01/2008 em <http://plsql1.cnpq.br/divulg/RESULTADO_PQ_102003.prc_comp_cmt_links?V_COD_DEMANDA 10 próprias de um feminino que não é único. Assim, não assumo que a categoria mulher ou que a categoria cientista tenham um sentido único, mas uma complexa rede de características na qual variados elementos dessa rede estão presentes em diferentes casos. Segundo sugerido por Linda Nicholson (2000:35), utilizo a metáfora de uma tapeçaria: “que adquire unidade através da sobreposição dos fios coloridos, mas na qual nenhuma cor em particular pode ser encontrada.” Conforme a perspectiva de Joan Scott (1999), assumo o conceito de experiência enquanto mais representativa de uma posição do que de uma essência. Experiências que constituem sujeito(a)s, no caso as físicas, e que são também constituídas por elas, porém não de forma aleatória, e sim nas formas disponíveis no social, no cultural, no histórico, na linguagem. Como a própria autora expressa: Ser um sujeito significa estar “sujeitado a condições de existência definidas, condições de designação de agentes e condições de exercício”. Essas condições possibilitam escolhas, apesar de não serem ilimitadas. Sujeitos são constituídos discursivamente, a experiência é um evento lingüístico (não acontece fora dos significados). Já que o discurso é, por definição, compartilhado, a experiência é coletiva assim como individual. Experiência é uma história do sujeito. A linguagem é o local onde a história é encenada. (Scott, 1999:42) Costuro uma versão possível de histórias do presente com as ferramentas, melhor dizendo, com as agulhas que aprendi a manejar neste momento da minha própria trajetória. Infelizmente, na história que costuro, minhas cientistas não serão visibilizadas8. Escolhi não identificá-las, pois o comprometimento de anonimato permitiu que me contassem fatos de suas vidas que possivelmente não teriam sido relatados. Em alguns casos, o anonimato foi crucial para que pudessem aceitar o meu convite para a entrevista. Assim, muitos detalhes tiveram que ser ocultados e muito do que ouvi também teve que ser calado a fim de que tivessem sua identidade preservada. Muitas informações relevantes terão que ser omitidas como, por exemplo, o estado ou a instituição à qual são vinculadas. Esta atitude parte da percepção de que a comunidade das mulheres na física é relativamente pouco numerosa e, logo, estes dados já seriam suficientes para identificar as fontes das falas. Escolhi seus pseudônimos segundo os nomes de pesquisadoras destacados no livro =200310&V_TPO_RESULT=CURSO&V_COD_AREA_CONHEC=10500006&V_COD_CMT_ASS ESSOR=FA> 8 Afinal, a visibilização das mulheres nas ciências é também um foco importante dos estudos de gênero e ciência. 11 “Pioneiras da Ciência no Brasil”, de Hildete Pereira de Melo e Ligia M C S Rodrigues. Trata- se de uma estratégia de visibilização da história das mulheres na ciência. As cientistas cujos primeiros nomes utilizarei para substituir os das minhas entrevistadas são: Johanna Döbereiner (agronomia), Elza Furtado Gomide (matemática), Neusa Amato (física), Carolina Martuscelli Bori (psicologia), Bertha Lutz (biologia), Eulália Maria Lahmeyer Lobo (história), Nise da Silveira (psiquiatria), Ruth Sontag Nussenzveig (biologia), Marília Chaves Peixoto (matemática), Maria da Conceição de Almeida Tavares (economia), Victória Rossetti (agronomia), Elisa Frota-Pessoa (física), Marta Vanucci (biologia), Graziela Maciel Barroso (Botânica), Alice Piffer Canabrava (história), Maria Josephina Matilde Durocher (obstetrícia), Blanka Wladislaw (química), Maria José von Paugartten Deanne (parasitologia), Sonja Ashauer (física). Pretendo deixar, ao longo dos capítulos, suas vozes – ainda que editadas9 – para que outra(o)s tomem seus próprios rumos e possam ir além da minha análise. Destaco que apenas duas entrevistadas têm alguma aproximação com a discussão temática sobre gênero e têm expressado publicamente esta posição. As demais são perfeitamente representativas do universo amplo das mulheres atuantes no campo da física. Muitos relatos apresentados nesta dissertação se aproximam de outros que obtive ao longo do trabalho com pesquisadoras de diversas áreas durante a especialização. Os depoimentos das físicas também dialogam com outras falas expostas nos trabalhos, por exemplo, de Carla Cabral (2006) sobre as trajetórias acadêmicas das engenheiras da Universidade Federal de Santa Catarina e Nádia Lima et alli (2003) sobre as experiências de cientistas de diversas áreas na Universidade Federal de Alagoas - UFAL e na Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE. Escolhi a área da física como campo de pesquisa por ser uma área majoritariamente masculina onde, provavelmente, os mecanismos operados pelo gênero estão mais nitidamente expostos. Também por terem sido algumas físicas as organizadoras das primeiras conferências sobre o assunto no Brasil: “Congresso Mulheres Latino-Americanasnas Ciências Exatas e da Vida” em 2004 e “Second Iupap Conference on Women in Physics” em 2005. Tive a oportunidade de participar deste último evento enquanto pesquisadora. Esta pesquisa está pautada na análise das dezenove entrevistas que realizei com pesquisadoras em física e na observação do Congresso Internacional Second Iupap Conference on Women in Physics em 2005, realizado no Rio de Janeiro. Essa observação teve 9 As falas foram editadas apenas com o objetivo de torná-las de fácil compreensão. 12 lugar quando ainda era estudante de especialização em Antropologia da Universidade Católica de Brasília, deste trabalho de campo saíram muitas impressões, posteriormente consideradas e elaboradas ao longo do mestrado em Estudos Feministas e de Gênero e desta dissertação. A série de conferências sobre o tema de mulheres na física é resultado de uma iniciativa da International Union of Pure and Applied Physics – IUPAP. Em 1999, esta organização, preocupada com a sub-representação das mulheres na física em muitos países, formou um grupo de trabalho. Este grupo realizou a primeira conferência sobre mulheres na física em 2002, em Paris. Participei da segunda conferência realizada 2005, no Rio. Em outubro de 2008, a Coréia será sede da terceira conferência. A primeira conferência contou com mais de 300 participantes com o objetivo de discutir barreiras locais, dividir histórias de sucesso e propor estratégias de aumento da participação das mulheres na física10. A segunda conferência foi elaborada com o mesmo intuito da primeira, além de propor pensar os progressos feitos desde o último encontro. A conferência foi realizada em quatro tipos de eventos: palestras, mesas redondas, grupos de discussão e apresentação de pôsteres. A programação pode ser consultada no anexo III. Os tópicos temáticos tratados nos grupos de trabalhos são sobre estratégias para: 1) atrair meninas para a física; 2) ter sucesso na carreira; 3) ter mulheres em posição de liderança em âmbito nacional e internacional; 4) melhorar a estrutura institucional e o ambiente das mulheres na física; 5) aprender com as diferenças regionais e entre países, e 6) conciliar família e trabalho. As participantes se inscreviam em apenas dois dos grupos, no entanto, resolvi participar um pouco em cada um dos grupos como parte da minha estratégia de observação participante. Ao final da conferência foi apresentado um resumo do que foi discutido em cada um dos grupos. Consegui duas entrevistas formais, gravadas no local da conferência. As outras entrevistas foram somente anotadas e não foram contabilizadas nesta pesquisa, ou seja, não estão entre as dezenove apontadas na dissertação. Apesar de não terem sido sistematicamente contabilizadas, os resultados das entrevistas anotadas foram incorporados a este trabalho. A maior parte das minhas observações foi feita a partir do que ouvi nos grupos de discussão e na conversa informal, seja em grupos no momento da refeição, seja nos percursos de ônibus. Apresentei-me como pesquisadora do assunto e funcionária do CNPq. Minha presença e minhas perguntas direcionaram para que grande parte dos assuntos tratados fosse sobre as dificuldades encontradas na carreira de física por serem mulheres. Considero ter sido 10 O resumo histórico da conferência pode ser acessado em <http://www.cbpf.br/~women-physics/> 13 relevante o fato de eu ter me apresentado também como funcionária do CNPq, um dos órgãos federais mais importantes de financiamento de pesquisa e formação acadêmica. No trabalho de campo feito durante o mestrado realizei dezesseis entrevistas formais, todas gravadas. Apenas uma entrevista não pôde ser gravada, já que não foi previamente marcada. Utilizei um roteiro semi-estruturado de perguntas nas entrevistas que poderá ser consultado no anexo II. Este roteiro foi elaborado com perguntas tais como: Como foi sua escolha pela física? Já pensou em desistir da carreira? Teve dificuldades especificamente por ser mulher? Estas perguntas foram elaboradas para orientar a entrevistada a construir o seu discurso sobre sua história de vida enquanto cientista e mulher. É importante pontuar que cada entrevistada aprofundou temas diferentes conforme suas experiências: para umas a maternidade, para outras a luta política, entre outros. A duração das entrevistas variou de trinta minutos a aproximadamente 140 minutos. Somente uma entrevista foi realizada em dois encontros. A maior parte das entrevistas foi feita no local de trabalho das pesquisadoras, em suas salas ou laboratórios. Uma entrevista foi realizada na residência da cientista e outras três foram feitas no decorrer de eventos11. Após a transcrição das entrevistas, agrupei em tópicos suas variadas falas em temas recorrentes como maternidade, topo da carreira, assédio sexual, agressividade na carreira, e assim sucessivamente. Li e reli o conteúdo de cada um dos tópicos até que pudesse reagrupá- los em capítulos temáticos, analisados segundo as teorias feministas e de gênero. Obviamente, não pude tratar nesta dissertação de toda a riqueza e multiplicidade do mundo que me foi apresentado pelas físicas, portanto, escolhi alguns elementos para analisar. Esta dissertação também foi elaborada segundo as observações advindas das experiências enquanto analista em ciência e tecnologia no CNPq e expostas como relatos etnográficos. Conforme propõem as autoras Maria Margaret Lopes e Maria Conceição Tavares (2005:83): “no caso das discussões sobre gênero em ciências, se não se trata mais apenas de darmos a nossa versão ao ‘Why so few?’, como muitas continuam fazendo, cabe agora maior engajamento nas discussões internacionais dessa década, problematizando nossas versões do ‘Why so slow inside sciences?’, acrescentando, ainda, nossas próprias especificidades de “por que a morosidade da inserção das ciências nos estudos de gênero?” Os tópicos escolhidos pretendem abordar aspectos destas perguntas: por que tão poucas cientistas? Por que tão devagar na ascensão da carreira científica? Que diferença faria 14 a atuação das mulheres nas ciências? São as três perguntas que guiam minha pesquisa e que permeiam os textos produzidos pelas estudiosas do tema. São perguntas inseparáveis e busco possibilidades de entendimento, principalmente, para as duas primeiras questões. No meio do caminho existia um tema... A escolha do tema não foi aleatória, a atuação das mulheres cientistas tornou-se uma inquietação a partir de algumas experiências. Apresento alguns marcos desta trajetória. As desigualdades sociais (raciais, de classe, de sexo...) desde muito cedo me inquietaram; no entanto, as desigualdades decorridas de sexo, em um corpo construído no feminino, afetaram- me mais concretamente: na família, na escola, no trabalho, no ambiente social em que existo. Foi inicialmente no curso de especialização em Antropologia e Mundos Contemporâneos, da Universidade Católica de Brasília, em 2004, que estas experiências tomaram um sentido mais amplo e teórico pelas lentes das relações de gênero. A partir deste referencial teórico, as evidências da desigualdade de gênero se concretizaram também no campo profissional, no desempenho das atividades enquanto analista em ciência e tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq, na área da matemática. Desigualdades de gênero observadas no sistema científico, como por exemplo, na interação durante quatro anos com um comitê de assessores12 formado unicamente por pesquisadores homens, e também na estrutura hierárquica do quadro de funcionário(a)s do órgão, onde as mulheres estão em cargos de confiança menos remunerados e de menor responsabilidade. Também fui impelida ao tema pela divulgada declaração do reitor da Universidade deHarvard, Lawrence H. Summers, em 2005, em uma conferência do Centro Nacional de Pesquisa Econômica intitulada “Diversificando a Ciência e a Engenharia de Trabalho: Mulheres, Minorias Subvalorizadas e suas Carreiras em Ciência e Engenharia”, em que ele afirmou que a explicação para o menor número de mulheres nos campos das Ciências Exatas 11 Como dito anteriormente, duas entrevistas foram realizadas no Second Iupap Conference on Women in Physics. 12 O Comitê de Assessores é formado por representantes de áreas do conhecimento e tem a atribuição de analisar e julgar os pedidos de bolsas e recursos encaminhados ao CNPq. 15 deveria ser atribuída a diferenças inatas entre os sexos. Já interessada pelo tema, participei do Grupo Interministerial “Mulher e Ciência” formado pela Secretaria Especial de Políticas Públicas, CNPq, Ministério da Educação, Ministério da Ciência e Tecnologia, entre outros parceiros. Além das discussões estimulantes, fiquei impressionada com os dados apresentados por Isabel Tavares, analista em Ciência e Tecnologia do CNPq, que podem ser verificados nos gráficos do anexo I. Enquanto Pesquisadora Feminista Entendo que pesquisar e (re)produzir conhecimento, na perspectiva feminista, é se permitir escrever o texto na primeira pessoa, é tornar visível minha responsabilidade e comprometimento com o tema, é tomar posição e apresentá-la, é permitir ser concreta(o), comum e local. Adoto a perspectiva de Donna Haraway (1995) na construção de saberes localizados, ou seja, saberes posicionados, que recusam o descomprometimento do incorpóreo, que assumem sua visão parcial e que permitem, ao tornarem-se parte do que estudam, desenvolverem uma relação interativa entre sujeitos. Assim, abandono a relação binária de apropriação sujeito/objeto13. Estar nos estudos feministas é questionar freqüentemente os termos dos discursos que circulam e concretizam o mundo. É pelo menos suspeitar do feminino conjugado no passivo, do sujeito oculto feminino, da impossibilidade de plural feminino nas esferas de poder, do feminino como objeto, do feminino citado precedido de palavras como “apesar”... É se constituir no discurso e ao mesmo tempo desnaturalizá-lo, desconstituir-se. É encontrar os lugares que são contra-lugares. É escapar para uma heterotopia e encontrar lugares de (re)criação (Tânia Swain, 2003). Assim, empreender uma pesquisa em estudos feministas passa necessariamente por questionar os pressupostos da ciência conhecidamente androcêntricos da universalidade, neutralidade e objetividade. Valores que, apesar de sua política de não-localização e descomprometimento, incorporam o homem, branco, heterossexual, eurocêntrico, capitalista, 13 Esta abordagem será melhor discutida no capítulo 1. 16 patriarcal, falocêntrico como sujeito do conhecimento. Assumo uma perspectiva pós-moderna, apresentada por Jane Flax (1991), no sentido de questionar as crenças fundadas na razão iluminista: 1) a existência de eu estável e coerente; 2) o conhecimento científico como objetivo, seguro e universal; 3) o conhecimento como tradução da realidade; 4) a razão como transcendental e universal; 5) a conexão simples entre razão, autonomia e liberdade; 6) a ciência como neutra e necessariamente benéfica; 7) a linguagem como transparência. Também compreendo o pós-modernismo, conforme delineado por Linda Hutcheon (1998), enquanto fenômeno contraditório, múltiplo, permeado pela desconstrução, desafiador das instituições, que evoca um passado para uma reelaboração crítica, destituidor de fronteiras, desessencializador, de certezas áridas e movediças. Identifico-me com as perspectivas pós-identitárias e mesmo pós-modernas na tentativa de tornar mais escorregadias as grades mentais em que aprisionamos o mundo. A constante recusa de um lugar singular e idêntico, comumente pautado por um sistema binário e hierarquizado, provavelmente possibilite a formação de grades mentais mais fluídas e libertárias. Grades mentais sim, pois assumo que o pensamento, ainda que subversivo, é constituído nos limites do imaginário14 social, amplo e diversificado, de caráter histórico e sociocultural. Entretanto, a constituição de identidade ainda é, para mim, estratégia política. A obtenção de direitos, por exemplo, passa por essa amarração identitária. E ainda que recusemos os lugares, tão fechados e rígidos, a nós destinados, nossa sociedade ainda funciona por meio deles. Por mais que eu questione ser definida por um detalhe anatômico ainda estou imersa e fui constituída por uma sociedade que se pauta nesta diferença. Por mais que problematize essa pauta, por exemplo: no preenchimento do meu currículo Lattes será socialmente necessário que eu assinale “feminino”. Paradoxalmente, foi esta invenção binária e hierárquica, reflexo de práticas discursivas e não-discursivas de hierarquia, que me permitiu observar a pouca representatividade das mulheres em posições de destaque e formular meu projeto de pesquisa. Penso que, por mais opostas que possam parecer, as estratégias pós-identitárias e 14 O imaginário não significa deformação do real, é entendido aqui como forma de apreensão, concretização, constituição do real (Bazco, 1985). Ou ainda, a relação do real e do imaginário não é dicotômica, como também enfatiza Tânia Swain (1996: 56): “o imaginário e o real não são como opostos, mas como dimensões formadoras do social, em um processo atualizador imbricado; imaginário e real não se distinguem, senão arbitrariamente.” 17 identitárias não são excludentes. Ambas estratégias têm seu lugar em uma luta que deverá ser travada em várias frentes. Acredito que posições identitárias são bem-vindas para fazer reivindicações pontuais, e para a reflexão sobre as amarras representacionais e seus resultados concretos, no presente. Considero as posições pós-identitárias como lugar principal da desnaturalização do passado e formulação de novas configurações do futuro, como discursos que emergem e se consolidam contra o discurso “hegemônico”. Neste prisma, me aproximo da afirmação de Linda Nicholson (2000: 38): “Talvez seja hora de assumirmos explicitamente que nossas propostas sobre as ‘mulheres’ não são baseadas numa realidade qualquer, mas que elas surgem de nossos lugares na história e na cultura; são atos políticos que refletem os contextos dos quais nós emergimos e os futuros que gostaríamos de ver.” Roteiro para a Leitura No primeiro capítulo, discuto os principais marcos teóricos que pontuam o debate sobre gênero e ciências. A ciência é estruturada em pilares androcêntricos, ou seja, os requisitos considerados para produzir conhecimentos científicos legítimos obedecem a um formato masculino. O feminino, construído como oposto, parcial e menor que o masculino, é excluído da lógica das ciências, à qual se atribui generalidade e masculinidade. Esta lógica perversa resulta em saberes científicos sexistas que corroboram com a marginalização das mulheres nas ciências. Assim, o feminismo acadêmico é apontado como uma possibilidade de construção de outras ciências. No segundo capítulo, busco entender as manobras utilizadas pelas cientistas para não se identificarem com este lugar de dor e violência constitutiva do pertencimento ao sexo feminino em uma sociedade patriarcal. Entendo que estas manobras são possíveis segundo a articulação com representações sociais mais amplas como a definição de ciência e de cientista. No terceiro capítulo, analiso as diferentes violências relatadas pelas físicas em seu percurso acadêmico segundo a perspectiva teórica de gênero e feminista. 18 No quarto capítulo,analiso os temas abordados de forma recorrente nas entrevistas e destaco nestas falas que os atributos do perfil de um(a) cientista se contrapõem ao que é considerado positivo para feminilidade. 19 Capítulo 1 Gênero nas Ciências Neste capítulo, apresento os principais marcos teóricos que pautam a discussão de gênero nas ciências. A expressão “gênero e ciências”, segundo Margaret Lopes (2006), foi utilizada pela primeira vez em 1978 como título de um artigo de Evelyn Fox Keller, a respeito de objetividade. Margaret Lopes (2006) apresenta as três linhas de pesquisa posteriormente formadas no âmbito da temática “gênero e ciências” citadas por Keller: mulheres na ciência, construções científicas de gênero e influência do gênero nas construções históricas da ciência. Esta dissertação se insere principalmente na primeira linha sem, contudo, deixar de abordar questões referentes às últimas duas. Portanto, proponho analisar a atuação das mulheres físicas com enfoque nas dificuldades relatadas para ascensão na carreira, entendendo que estas dificuldades são produzidas pelo patriarcado15 estruturante tanto do sistema científico quanto da sociedade, em seu sentido amplo. Assim, a análise sobre a inclusão, atuação e ascensão das mulheres na carreira científica implica em um questionamento sobre a cultura hegemônica das ciências. Trata-se de compreender que a ciência é centrada em valores masculinos e o quanto este padrão androcêntrico16 restringe a participação das cientistas. A limitada atuação das mulheres nas ciências é percebida pelo pequeno número de pesquisadoras em posições de destaque na carreira científica e pelo quanto seus saberes e práticas são invisibilizados pela história. A 15 Utilizo o termo patriarcado para me reportar a um sistema diversificado de opressão às mulheres. Conforme afirma Carole Pateman (1993: 18): “a sociedade civil moderna não está estruturada no parentesco e no poder dos pais, no mundo moderno, as mulheres são subordinadas aos homens enquanto homens, ou enquanto fraternidade. O contrato original é feito depois da derrota política do pai e cria o patriarcado fraternal moderno.” Pateman aborda em seu livro “Contrato Sexual” que o contrato social enquanto relato da constituição da esfera pública da liberdade civil, institui tanto a liberdade dos homens quanto a sujeição das mulheres. A autora afirma que o patriarcado é o único conceito que se refere especificamente à sujeição das mulheres e ao poder masculino constituído pelo fato dos homens serem homens. Enfatizo, porém, que não me aproprio do patriarcado enquanto uma categoria universal, homogênea e a-histórica. Destaco ainda que mesmo no interior do sistema patriarcal, as opressões às mulheres são distintas uma vez que estas também são alocadas nesta estrutura de forma diferenciada, atravessadas por outras questões como a racial. 16 O androcentrismo é uma palavra proveniente do grego, “andros” se refere a homem. É um conceito que apresenta o olhar masculino como central para a leitura da realidade, onde o homem é a única medida para o conhecimento e para representação global de humanidade. 20 cultura androcêntrica tem cerceado a atuação das pesquisadoras e este cerceamento não tem impulsionado fortemente para uma mudança na cultura hegemônica das ciências. Trata-se de um sistema de retroalimentação onde o discurso científico hegemônico exclui o feminino17 das ciências, assim como não se conjuga uma ciência como campo de atuação das mulheres e um lugar possível para o feminino sem a ampla participação das cientistas. As possibilidades de debater questões relacionadas com feminismo, gênero e ciências são estratégias de resistência e ruptura ao padrão androcêntrico na produção científica, para que não apenas as mulheres atuem nas ciências mas também outro(a)s atores e atrizes estejam apt(o)as a levar outros valores e construir outros saberes científicos, como o pensamento negro ao questionar o racismo acadêmico. Neste capítulo, apresento as discussões teóricas sobre o androcentrismo nas ciências a partir das teorias feministas e de gênero. O tópico denominado “Ciência: Uma Prática Androcêntrica” concentra a análise dos valores e práticas necessárias para produzir uma ciência considerada legítima; o tópico “Ciência: Um saber Androcêntrico” aponta para a produção de conhecimentos científicos marcadamente sexistas e heteronormativos; o tópico “Outra Ciência” apresenta a discussão sobre a possibilidade de produzir ciência de outras formas e expõe algumas contribuições teóricas feministas ao conhecimento científico; o tópico “Outra História” situa a discussão feminista e de gênero no campo da História, e finalmente, “Outra Física” aponta para a possibilidade da diversidade dos olhares das mulheres ser vetor de mudança na produção de conhecimentos na Física. Ciência: Uma Prática Androcêntrica Diversas autoras, em especial Sandra Harding, Evelyn Fox Keller, Londa Schiebinger e Donna Haraway, apontaram para o caráter androcêntrico das ciências. Os parâmetros para produzir uma ciência considerada legítima estão configurados segundo o androcentrismo. Este orienta a produção de um saber descorporificado em que a mente é separada do corpo e 17 Destaco que a palavra “feminino” é uma construção binária que só faz sentido a partir do seu oposto masculino. Também não entendo que as mulheres sejam necessariamente as portadoras do feminino embora, por pertencerem ao sexo feminino, sejam automaticamente enquadradas desta forma pelos discursos hegemônicos. As mulheres são usualmente associadas a uma categoria conjugada no singular, o “ser mulher”. No entanto, destaco que as mulheres, dispostas em um lugar comum pelo discurso hegemônico, são submetidas, ainda que de maneiras diversas, à socialização feminina. Portanto, tornam-se prováveis agentes de outras formas de produção do conhecimento científico. 21 possui primazia sobre outros componentes corporais. A dicotomia corpo e mente operada na cultura científica também está relacionada com as representações sociais: do corpo associado ao feminino e da mente ao masculino. Assim, tanto o corpo quanto o feminino são marginalizados nas ciências. O saber descorporificado apresenta-se na forma de uma prática de pesquisa orientada pelos valores da neutralidade, universalidade e objetividade. Estes valores excluem corpos, uma vez que o conhecimento é gerado a partir de um ponto não-localizável. Assim, os únicos sujeitos de conhecimento, que pretensamente podem excluir seus corpos na produção do conhecimento, são o que Donna Haraway (1995: 27) chama de “os que ocupam as posições de dominadores auto-idênticos, não marcados, incorpóreos, não mediados, transcendentes, renascidos”. A posição de dominante está alocada segundo a estrutura do “Patriarcado Capitalista Branco” que define o homem, branco, de países colonizadores enquanto quem deve produzir e para quem deve ser produzida ciência. A relação hierárquica entre sujeito e objeto também responde ao formato androcêntrico das ciências. Na pesquisa científica, pressupõe-se um sujeito que analisa a fim de gerar um conhecimento para a dominação e controle do objeto. A idéia de observação pressupõe um sujeito que observa o objeto em uma ação que não supõe interação, e sim dominação, já que o(a) observador(a) assume a posição de sujeito e o(a) observado(a) de objeto. Esta relação de dominação entre sujeito e objeto tem sido associada ao disposto no gênero em que feminino é tomado enquanto objeto e o masculino enquanto sujeito. Também se questionam as razões pelas quais, ao contrário de uma relação hierárquica, no formato das relações de gênero, a pesquisa não seria orientada para uma relação de interação, por exemplo, entre sujeito(a)s. O modo de produção científico tambémse pauta na pretensão de supressão da subjetividade. Novamente, encontra-se a relação dicotômica entre subjetividade e objetividade estruturada na forma do gênero onde a objetividade associada ao masculino é a postura mais valorizada para um(a) cientista. Assim, os valores associados ao masculino, dos quais as mulheres são consideradas naturalmente desprovidas, são os adequados para produzir conhecimentos científicos. Nesta perspectiva, Sandra Harding (1996) aponta que as características balizadoras tais como a objetividade, a preferência pelo modelo quantitativo e o raciocínio linear são representadas como masculinas e são as mesmas necessárias para produzir conhecimentos científicos legitimados. Por conseguinte, não é aleatória a configuração do cientista enquanto um ser descorporificado, ou seja, que observa seu objeto de estudo de um ponto de 22 observação não-passível de localização. De que lugar é possível observar sem ser observado? Acaso seria também coincidência que a imagem do cientista tem sido editada como apenas sujeito de pesquisa e não como objeto? Como se sua presença não fosse percebida e não condicionasse suas possibilidades de pesquisa? Esta representação do “ser cientista” e “do fazer ciência” estão muito longínquas, não casualmente, do construído como feminino: em sua imagem associada ao corpo, à subjetividade, ao lugar de objeto. Esta imagem está desenhada segundo o formato da própria masculinidade. Um olhar não-localizado de um ser descorporificado é a ferramenta para a construção de um saber pretensamente universal já que este se torna não-localizável. Somente nesta configuração de “fazer ciência” é possível anunciar um saber: neutro, universal e objetivo. Santiago Castro-Gómez afirma que este modo cartesiano de fazer ciência, ainda no topo da legitimidade da produção do conhecimento científico, necessita da distância entre sujeito e objeto (objetividade) e impõe a decomposição do todo em partes. Assim, ele afirma que a colonialidade do saber obedece a um modelo epistemológico da modernidade ocidental chamado “Hybris do ponto zero”. O autor explica que no início da formação do paradigma epistemológico das ciências houve uma ruptura no modo como a natureza era vista. A visão orgânica e integral de natureza, em que a humanidade era parte integrante, foi substituída, com a formação do sistema capitalista e expansão colonial, pela separação do ser racional (cultura) da natureza. Dentro dessa visão fragmentária e hierarquizada, o conhecimento é destinado não mais para compreender as ligações entre todas as relações do todo, mas a decompor a realidade para dominá-la. Segundo o autor, a “Hybris do ponto zero” é caracterizada pela forma em que a ciência moderna gera conhecimento como se estivesse no lugar de Deus, em uma plataforma invisível e situada fora do mundo, mas diferente de Deus, por primar pela visão analítica e não- orgânica do mundo. A “Hybris do ponto zero” é explicada como o pecado da desmedida em que a ciência moderna pretende ser um ponto de vista acima de todos os pontos de vista, sem se considerar um ponto de vista. Evelyn Fox Keller (1989) também afirma que o desenvolvimento da ciência moderna, a partir de uma visão mecanicista das ciências, emerge e reflete a ideologia de gênero. A autora aponta Francis Bacon como a ponte de transição entre as concepções herméticas e mecanicistas. Keller compara as metáforas dos discursos herméticos com as dos discursos mecanicistas, por exemplo, enquanto para os primeiros a imagem utilizada era de um(a) hermafrodita, no sentido de uma fusão de masculino e feminino, para os mecanicistas era de um super-homem viril, no sentido do homem (masculino) dominar a natureza (feminino). As 23 metáforas mecanicistas abordam a ciência enquanto poder, dominação e uma força suficientemente viril capaz de penetrar e subjugar a natureza: A meta da nova ciência não é o intercâmbio metafísico e sim a dominação, não é a união mente e matéria e sim o estabelecimento do ‘Império do Homem sobre a Natureza’. O triunfo daqueles que se agruparam de um modo geral como ‘filósofos mecânicos’ representou uma derrota decisiva da visão da natureza e da mulher como algo divino, e de uma ciência que, de acordo com isto, havia garantido a ambas ao menos certo respeito. (Keller, 1989: 62, tradução minha18) O discurso central da ciência moderna é estruturado por metáforas de controle e dominação, seus objetivos são a apropriação e a manipulação de uma natureza que não interage, é inerte. As características normalmente associadas à natureza também são “naturalmente” aplicadas às mulheres, já que natureza e mulher são construídas como sinônimos, ou melhor, como termos metonímicos. A relação hierárquica que se estabelece, na pesquisa científica, pressupõe um pesquisador na posição de dominador que será masculino, já que a natureza coisificada é significada como feminina. Mary Gergen (1988: 112), em uma leitura de vertente psicanalítica, também analisa o conceito de objetividade nas ciências enquanto uma construção masculina. A autora propõe que a preferência pela separação entre sujeito e objeto de pesquisa, ao invés de um modelo de interdependência entre eles, segue o modelo masculino de desenvolvimento desenhado pela psicanálise, em que a construção de uma identidade pessoal masculina pressupõe separação e diferenciação em relação aos seus agentes maternais/femininos19. Assim, o teor da relação e os termos envolvidos estão definidos para uma configuração masculina com as quais as mulheres, em outros processos de construção de identidade, não estariam imediatamente identificadas. Esta abordagem de desenvolvimento da identidade masculina é baseada na teoria apresentada por Nancy Chodorow (1979: 72): “um menino, em sua tentativa de obter uma identificação masculina ilusória, freqüentemente define essa masculinidade em termos amplos e negativos, repelindo tudo o que é feminino ou relacionado às mulheres”. A 18 “La meta de la nueva ciencia no es el intercambio metafísico sino la dominación, no es la unión de y materia sino el estabelecimiento del ‘Imperio Del Hmbre sobre la Naturaleza’. El triunfo de aquellos que han sido agrupados de um modo general com ‘filósofos mecánicos’ representó uma derrota decisiva de la visión de la naturaleza y la mujer como algo divino, y de una ciencia que, de acuerdo com ello, habría garantizado a ambas al menos cierto respeto’. 19 Esta abordagem também aparece nas obras de Sandra Harding (1996) e Evelyn Fox Keller (1989). 24 interpretação psicanalítica20 do processo de individuação masculina apresentada por Chodorow parece ser uma possibilidade de explicação teórica para esta estrutura de gênero cravada nas ciências e na nossa sociedade, em que há um banimento ou inferiorização de práticas, saberes e valores considerados femininos. Este processo é produzido à semelhança da construção da própria masculinidade de negação e menosprezo do feminino: em que a entrada no simbólico, no afirmar-se ser humano, significa a negação do materno constituído no feminino. Ao invocar como necessárias as características como objetividade e neutralidade para a produção de conhecimentos científicos legítimos, cria-se uma separação estanque entre a atividade científica e a sociedade, como se a(o) cientista não fosse um ser cultural, social e histórico. Ruth Hubbard (1988) expõe a construção da objetividade para as ciências naturais: As ciências naturais alcançam sua objetividade considerando a natureza e os fenômenos naturais (inclusive as outras pessoas) como objetos isolados. Para isso os cientistas dessa área comumente negam, ou pelo menos ignoram, seu relacionamento com os ‘objetos’ de seu estudo. Em outras palavras, os cientistas nas ciências naturais descrevem suas atividades como se eles eas atividades existissem num vácuo. Neste vácuo, então, eles fabricam fatos e formulam leis. Tomemos, por exemplo, as ‘leis do gás ideal’. Elas pretendem descrever o comportamento de partículas (moléculas de gás) que não têm relação umas com as outras ou com outras substâncias – partículas que não são reais, mas ‘ideais’. (Ruth Hubbard, 1988: 30) Este afastamento da(o) pesquisador(a) garante a suposição de que o conhecimento científico seja incomparavelmente superior aos outros conhecimentos produzidos no seio da própria sociedade. Este isolamento do(a) cientista sugerido pela objetividade não busca apenas uma distância entre sujeito e objeto, busca uma distância hierárquica entre sujeitos distintos de conhecimento: o público em geral, o(a)s pesquisado(a)s, entre outros. Esta é uma manobra para garantir autoridade, pois a fala científica, conforme divulgada, não é de um ser dentre nós, ou seja, nenhum(a) “não-cientista” possuiria as características necessárias e legítimas para questionar os conhecimentos científicos produzidos. Nesta manobra de retirada de voz, toda(o)s não-cientistas são tornado(a)s objetos. A universalidade é outro conceito utilizado para mascarar a produção de verdades e tem sido utilizada em larga escala para justificar os pontos de vista dos grupos dominantes e 20 É nítido que este modelo de individuação passa por papéis e uma estrutura familiar definida e estática, não levando em consideração as novas organizações familiares como as de famílias 25 também como formas de opressão às mulheres, colonizado(a)s, negro(a)s, entre outro(a)s. Ilana Löwy (2000) traz importantes elementos para o questionamento da ciência construída enquanto universal, neutra e objetiva. A autora expõe que um dos argumentos utilizados para se afirmar que a ciência é universal refere-se à representação de natureza enquanto universal, estável, com leis imutáveis. Além desta descrição de natureza ser questionável, parece mais uma tentativa de uma separação radical entre humanidade (cientistas) e natureza (dados), como se fosse possível qualquer acesso direto e imediato a esta natureza, e como se os diversos olhares e manipulações não construíssem a própria natureza. Ilana Löwy afirma sobre a fabricação do conhecimento pretensamente universal: “segundo eles, não é porque são universais que os conhecimentos científicos circulam, eles são universais porque circulam” (Löwy, 2000: 31). A autora explica que para que as leis da gravidade se tornassem válidas para e o(a)s habitantes da Melanésia, foram precisos o ensino destas leis nas escolas, a formação de professore(a)s, a impressão de livros e a contínua ligação com os centros deste saber no exterior. Segundo ela: “este é o preço da manutenção de uma natureza universal, estável e previsível” (idem, 2000: 31). São conceitos, metáforas e imagens de todo um sistema androcêntrico que erguem fronteiras entre o masculino/científico, em um lado, e o feminino/excluído da ciência em outro. São fronteiras fundadas em dicotomias, tais como: objetivo e subjetivo, racional e emocional, sujeito e objeto, cultura e natureza, mente e corpo, ciências duras (hard sciences) e ciências moles (soft sciences) que configuram quem pode produzir ciência e para quem a ciência é produzida. Estas equações de valores são construídas pelo, para e no sistema de gênero que define como sujeito do conhecimento o homem enquanto representante do masculino em um modo de fazer ciência cujas habilidades e características necessárias e valorizadas são tidas como masculinas. A ciência dita universal é uma ciência branca, masculina, elitista, ocidental, colonial, ainda que sua forma de apresentar-se tente mascarar suas características invocando um sujeito universal, isto é, que representa a todas as posições. O molde para atuar em ciências é pré-determinado e coercitivo. É uma ciência feita por pouco(a)s e para pouco(a)s. homoafetivas. 26 Ciência: Um saber Androcêntrico Não apenas o modo de fazer ciência é androcêntrico como também os saberes científicos, enquanto conhecimentos socialmente constituídos e produzidos, muitas vezes, são sexistas e androcêntricos21. Conforme aponta Londa Schiebinger: O poder da ciência ocidental – sua metodologia e epistemologia – é celebrado por produzir um conhecimento objetivo e universal que transcende as restrições culturais. Com respeito a gênero, raça, e muito mais, entretanto, a ciência não é neutra. Desigualdades de gênero, incorporadas nas instituições da ciência, influenciaram o conhecimento saído destas instituições. (Londa Schiebinger 2001: 206) Uma vertente importante dos estudos realizados em gênero e ciência propõe analisar os saberes produzidos pela ciência. Fabíola Rodhen (2001), por exemplo, analisa a institucionalização da “medicina da mulher” ou da ginecologia de nossos dias como uma ciência da diferença. Conforme a autora afirma, os fenômenos exclusivamente femininos como a gravidez e o parto eram assuntos estudados na obstetrícia. O surgimento da ginecologia demonstrou o interesse em posicionar a mulher como um objeto de investigação mais precisa, agora reduzida à função dos seus órgãos sexuais e reprodutores. Não existe semelhante especialidade para os homens, o conhecimento médico não considerou necessário explicá-los em função de seus órgãos genitais e reprodutores, ou seja, sua sexualidade não foi vista como um problema a ser estudado para explicar sua natureza humana. Nesta ótica, muitas teorias foram utilizadas como argumentos legítimos e verdadeiros para impedir o acesso das mulheres, por exemplo, ao estudo. Segundo Rodhen (2001: 77), o argumento comum utilizado no final do século XIX era que as mulheres, principalmente na puberdade, não poderiam estudar para não gastar a energia necessária ao amadurecimento dos órgãos sexuais e reprodutivos. Esta preocupação com o desgaste físico feminino e suas danosas conseqüências não era voltada para as trabalhadoras de classes populares, conforme apontou Mary Putnam Jacobi citada pela autora. Mary foi a primeira mulher a ser admitida na “New York Academy of Medicine”.22 A entrada de mulheres na medicina trouxe a esperança da contestação e a formação de outros discursos médicos com argumentos que ajudariam a justificar a inclusão das mulheres enquanto cidadãs plenas. 21 Além de trazerem outras marcas de seu local de produção elitista, racista, eurocêntrico. 22 Pesquisa feita na Internet: <http://ocp.hul.harvard.edu/ww/people_jacobi.html> 27 A ninfomania e a histeria eram construídas como doenças advindas do mau- funcionamento dos órgãos reprodutivos femininos, ou seja, anomalias tidas como tipicamente femininas em que os considerados distúrbios femininos, corporais e mentais, eram resumidos a distúrbios funcionais do aparelho sexual-reprodutivo. Fabíola Rodhen (2001: 142) aponta para um quadro abrangente de sintomas que mostra como qualquer comportamento feminino seria passível de ser enquadrado como histérico: da irritabilidade fácil à falta de energia. Por sua a vez, a ninfomania era a construção como anomalia do desejo sexual exacerbado das mulheres em um contexto social em que os homens tinham “naturalmente” mais desejo sexual. A satiríase, nome dado ao distúrbio derivado do excesso de desejo masculino, foi pouco diagnosticada em homens e raramente se falava em castração e reclusão como comumente se aplicava às pacientes femininas. Tampouco, como discute a autora (Rodhen, 2001: 29), comportamentos como adultério e flerte, que caracterizam a ninfomania, eram utilizados para diagnosticar a satiríase. Afinal, os homens não eram definidos pelasua genitália. Fabíola Rodhen (2001: 42) também assinala que, enquanto a ciência da mulher é a ginecologia, a ciência do homem é a antropologia: De um lado temos uma ciência do homem que é também uma ciência da humanidade, aquela que permite a instauração da diferença e a comparação entre outras unidades, as raças, os povos, as civilizações. De outro, temos uma ciência da mulher, que descreve e justifica a diferença sexual. O interessante é que ambas têm em comum o recurso a supostos dados biológicos que legitimam visões de mundo e hierarquia sociais. Assim, se por um lado temos uma ciência, a antropologia, cuja referência é o homem branco e ocidental, do outro, temos um conjunto de conhecimentos, no campo da ginecologia, que tornam a mulher reduzida a seu aparelho reprodutor, como objeto de toda a construção da diferença sexual enquanto base para a desigualdade social. As mulheres como sujeitos de conhecimento ou como seres humanos em sua completude orgânica são excluídas ou marginalizadas pelas duas ciências. Poderia se argumentar que todas estas concepções de mulher reduzida ao seu sexo são noções do passado. No entanto, não é o que aponta, por exemplo, Emily Martin (2006), em seu livro: “A Mulher no Corpo”, em que ela afirma que o corpo da mulher é visto como uma fábrica de bebês. Os fenômenos tais como a menstruação e a menopausa são vistos, segundo esta ótica, enquanto falhas nesta produção. Nesta perspectiva, toda a vida das mulheres é 28 definida por fases em relação ao seu ciclo reprodutivo (puberdade, menopausa, TPM...), como se o cerne da natureza feminina estivesse baseado na reprodução, e isto seria um dado biológico e não uma construção sociocultural. Emily Martin (2006) também aponta para o fato de que os processos femininos, por exemplo, a menstruação, são descritos de forma pejorativa, em termos de falência e deterioração. A autora afirma que o revestimento estomacal também possui um processo cíclico de expulsão, mas que este não recebe a descrição negativa da menstruação: Pode-se escolher entre olhar para o que acontece no revestimento do estômago e do útero negativamente, como falência e decomposição, necessitando de reparos, ou positivamente, como produção e reabastecimento contínuos. Como dois lados da mesma moeda, o estômago, que tanto mulheres como homens têm, cai no lado positivo; já o útero, que apenas as mulheres têm, cai no lado negativo. (Emily Martin 2006: 100) A autora também traz uma reflexão sobre a Síndrome Pré-Menstrual – SPM, mais comumente chamada de Tensão Pré-Menstrual – TPM, ao apontar para uma lista ampla de “sintomas” psicológicos, emocionais, físicos com os quais as mulheres “sofrem” neste período. Os sintomas da TPM são biologicamente explicados como uma “disfunção da produção de hormônios durante o ciclo menstrual, em particular o hormônio feminino, a progesterona23”. Estimativas apontam que três quartos das mulheres sofrem de TPM, ou seja, a maioria das mulheres sofre “disfunções” hormonais, o que nos leva a crer que o próprio funcionamento do aparelho reprodutor das mulheres é tido como um problema. Portanto, a TPM, da forma como é descrita, tornou-se uma nova forma de enquadrar a mulher em um sexo-problema, de colocá-la novamente como um ser (des)governado pela natureza, tendente à histeria. Como a autora afirma, são momentos, justificados pela medicina, em que as mulheres podem liberar toda sua raiva e contestação contra o sistema patriarcal que as oprime. No entanto, se de um lado, este discurso biológico da TPM permite esta liberação, por outro, não permite uma reflexão profunda das causas sociais deste mal-estar das mulheres. Emily Martin cita, no início do livro, um trecho muito significativo de Adriene Rich (Do Nascimento da Mulher): Não conheço nenhuma mulher – virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária, tire ela seu sustento como dona-de-casa, garçonete de festas ou técnica de tomografia cerebral – para quem o próprio corpo não seja um problema fundamental: seus significados encobertos, sua fertilidade, seu desejo, sua assim chamada frigidez, seu discurso sangrento, seus silêncios, suas mudanças e mutilações, suas violações 23 Emily Martin, 2006: 183. 29 e maturações. (Adrienne Rich apud Emily Martin, 2006: 31) A quem interessa este discurso de significar processos unicamente femininos como problemas e anomalias? O patriarcado se concretiza em discursos científicos que remetem à natureza os fundamentos das desigualdades entre homens e mulheres. Lewontin, Rose e Kamin (2003: 161) chamam a atenção para a forma com que a influência dos hormônios tem sido utilizada como justificativa para cercear e impedir as mulheres a assumir cargos de comando, como diretoras e presidentas. Os autores explicam que o determinismo biológico constrói que as diferenças humanas de comportamento entre homens e mulheres encontram paralelismo em sociedades não-humanas24 (de primatas a roedores). Este paralelismo carrega uma aparente universalidade das leis biológicas que não pode ser negada simplesmente desejando que essas fossem mais justas. Estas leis são construídas para não admitirem contestação. Outro argumento determinista, apontado pelos autores, afirma que as diferenças sexuais são formuladas segundo a gradual seleção natural, assim as diferenças entre os sexos não somente são naturais como funcionais, ou seja, estas são convertidas em uma grande vantagem para a espécie. Eles apontam como algumas teorias que avaliam o desempenho dos meninos em matemática como superior ao das meninas é tomado como uma evidência que se justifica biologicamente desconsiderando o contexto histórico, social e cultural. Os autores enfatizam a impossibilidade de explicar o comportamento da(o)s humano(a)s somente pela biologia, não há ser humano que se desenvolva sem a influência do seu meio cultural. Os saberes sexistas e androcêntricos são múltiplos. Há aqueles conhecimentos produzidos em nome de um universal que, na verdade, é um saber unicamente sobre o masculino; há aqueles produzidos sobre a mulher que servem para concretizar diferenças enquanto assimetrias. São saberes produzidos na lógica do gênero que determina enfoques, descrições, objetos de pesquisa, abordagens, pressupostos, teorias sexistas e androcêntricas. Outra Ciência A partir das teorias apresentadas, percebe-se que a participação das mulheres nas ciências é efetivada por um processo de inclusão em um mundo já constituído e estruturado 24 Sandra Harding (1996: 88) também aponta para esta ênfase da ciência conforme apresentarei no capítulo 3. 30 em pilares androcêntricos. Em que medida esta inclusão pode levar à transformação para uma ciência feita com pluralidade de valores e olhares? Nos diálogos entre feminismos25 e ciências, Londa Schiebinger (2001) aponta para um importante debate, ainda binário, que permeia a literatura de gênero, feminismo e ciências. Trata-se do que ela chama de “becos sem saída”: a oposição entre a ciência analisada pelo feminismo da igualdade e pelo feminismo da diferença. De um lado, os feminismos da igualdade buscam a eqüidade entre os sexos nas ciências, de forma que a ciência se torne também uma tarefa das mulheres. De outro, os feminismos da diferença alertam para o fato de que os termos do mundo das ciências foram construídos por um referente masculino. A inserção do feminino se dará, portanto, pela igualdade segundo o modelo masculino. Assim, os feminismos da diferença propõem a construção de uma ciência feminina. No entanto, ao se determinar os termos de uma ciência feminina, o feminino busca suas antigas essencializadas etiquetas construídas a partir do pólo masculino, ou seja, o feminino torna-se não mais do que não-masculino. Os caminhos, conforme apontadoacima, para pensar e fazer uma Outra ciência se dividem, ou talvez se multipliquem. Marta González e Eulália Sedeño (2006) nos propõem um mapa26 das diferentes vertentes: o empirismo feminista ou ingênuo, o enfoque psicodinâmico, a teoria feminista do ponto de vista, os empirismos feministas contextuais e as epistemologias pós-modernas. Segundo as autoras, o empirismo feminista ou ingênuo não questiona as normas científicas tradicionais e sim critica sua aplicação incorreta, ou seja, teorias repletas de sexismo são frutos de uma ciência praticada inadequadamente. Esta linha teórica não considera que a ciência tenha que ser repensada, preocupa-se com o sexismo presente na ciência sem responsabilizar seus métodos e sua estrutura. Desta forma, a postura epistemológica correta garantiria a produção de conhecimentos livres do sexismo. Considero esta vertente, em parte, próxima ao feminismo da igualdade ao focar na inclusão das mulheres sem se preocupar com a violência estrutural daquilo que já está construído em pilares androcêntricos. O enfoque psicodinâmico trabalha com a idéia de uma ciência feminina, ou seja, diferenciadas pela socialização as mulheres teriam outras perspectivas, práticas e teóricas, sobre a ciência. Parte desta lógica é que as cientistas mulheres, por seu lugar de socialização, 25 Feminismos enfaticamente no plural por contemplar múltiplas abordagens e posições: igualitário, da diferença, da feminitude... Descarries (2000) nos oferece um possível mapa dos feminismos. 26 Há outros mapeamentos disponíveis: Margaret Lopes (1998, 2006), Cecília Sardenberg (2002), Alexandra Martinez (2001), Maria Teresa Citeli (2000), Sandra Harding (1996). 31 desenvolveriam uma imagem mais complexa e interativa do mundo e poderiam, por exemplo, inventar novas formas de relação não-objetificantes com seus temas de pesquisa.27 Uma das críticas feitas a esta linha teórica é que esta parte de uma essencialização do feminino e de uma naturalização da mulher. Além disto, também considero como questionável pensar na socialização das mulheres e não considerar a socialização pela qual passam para se tornarem cientistas. Afinal, as cientistas, em suas diversas áreas, são socializadas para atuarem no meio científico e são compelidas a produzir conhecimento científico e a fazer ciência de modo masculino. Assim, a socialização das cientistas, ainda que na sua diversidade, não pode ser desconsiderada. A teoria feminista do ponto de vista defende a construção de uma ciência feminista em que as mulheres, em sua condição de marginalidade no sistema, ocupariam uma posição privilegiada de análise como pesquisadoras. No entanto, me pergunto quais mulheres têm esta vantagem epistêmica: as feministas? Quais feministas28liberais, sociais, da feminitude? Quais são elegíveis para ocupar este local privilegiado de conhecimento? E os outros sujeitos marginalizados como população negra, indígena, entre tantos, também são portadores de uma outra ciência ainda que não necessariamente feminista? Os empirismos feministas contextuais argumentam que o foco de análise não deve ser colocado no sujeito de conhecimento, mas na comunidade científica.29 De certa forma, o enfoque na comunidade resolve o problema de quem é o(a) sujeito(a) apto(a) para fazer uma outra ciência, já que esta responsabilidade recai sobre o grupo. É interessante a ênfase dada na comunidade por ressaltar as características sociais da produção de conhecimento científico. No entanto, conforme sublinham Marta González e Eulália Sedeño (2006), esta abordagem não está isenta de questões, uma vez que implica na problematização de conceitos como comunidade e consenso. As epistemologias pós-modernas entendem que produzir ciência é um espaço de negociação, mais de interesses do que de verdades. Este enfoque melhor dimensiona gênero e ciência enquanto arenas de disputa por poder. Estas correntes são fundamentadas nos pós- estruturalismos e no desconstrucionismo e têm sido criticadas por seu relativismo cujo terreno não se considera sólido o bastante para o compromisso feminista. 27 Parte desta discussão pode ser entendida no texto de Sondra Farganis (1997). 28 Conforme assinalou Francine Descarries (2000), dentre tantas autoras, não há feminismo no singular. 29 Segundo Maria Conceição da Costa e Neide Osada (2006), esta visão não defende a formação de uma ciência feminista, mas a inclusão da perspectiva feminista no processo de produção das ciências. 32 Uma outra forma de apresentar o mapa de implicações entre feminismo e ciências gira em torno do conceito de objetividade. Para Evelyn Fox-Keller (1989), as mulheres, por sua socialização diferenciada, seriam possíveis portadoras do que chama de “objetividade dinâmica”, que se define pela relação interativa com o que estuda; ao contrário da tradicional “objetividade estática”, que estabelece uma relação de apropriação pela objetificação do que se estuda, característica tida como do universo masculino. Estas categorias podem ser apropriadas pelo acima denominado “enfoque psicodinâmico” e, portanto, as críticas à essencialização do feminino podem ser aplicadas da mesma maneira. Para Sandra Harding, a “objetividade forte” é aquela consciente da sua parcialidade e de seu contexto social. A autora é conhecida pela corrente da “teoria feminista do ponto de vista”. Donna Haraway (1995) complementa esta argumentação ao enfatizar o conhecimento situado, utilizando o conceito de “objetividade corporificada”. A autora considera que a perspectiva parcial e localizada é a única possível. No entanto, a autora problematiza a posição de privilégio ao qual o(a)s sujeito(a)s marginais podem estar associado(a)s na produção do saber, ela alerta para o perigo de se romantizar a visão dos menos poderosos. Donna Haraway tem sido reconhecida como uma autora pós-moderna. As três abordagens - “objetividade dinâmica”/”objetividade estática”, “objetividade forte” e “objetividade corporificada” - estão empenhadas em ressignificar o conceito de objetividade. A objetividade tem sido considerada um valor central para a definição de um saber científico. As ressignificações feministas do conceito de objetividade apontam para uma tentativa de não perder legitimidade científica. É desta fronteira discursiva que o conceito de objetividade continua sendo reeditado como forma de legitimação e superioridade do discurso científico? Será tão necessário diferenciar a ciência de outros discursos? Margaret Lopes (2006) assinalou que a busca pela ressignificação do conceito de objetividade representa, para muitas teóricas feministas, a recusa tanto a um construtivismo tido como reducionista quanto ao objetivismo tido como não-reflexivo. A autora também aponta que muitas críticas foram tecidas a estas construções de objetividade enquanto centrais e atemporais nas ciências. A autora também traz a discussão de outros teóricos não pertencentes ao campo de gênero, que lembram que o conceito de objetividade não é monolítico e nem imutável. Em outro artigo publicado, Margaret Lopes (1997) também afirma que um dos elementos de distanciamento entre algumas teorias feministas de crítica às ciências e a maioria dos estudos sociais sobre a ciência é justamente o conceito de objetividade. De um Segundo Alexandra Martinez (2001), Helen Longino defende a instituição de uma democracia 33 lado, os estudos sociais sobre ciência entendem a produção do conhecimento científico como uma construção social e recusam valores como objetividade que podem lhe garantir um lugar à frente de outros tipos de conhecimento. De outro lado, conforme assinala a
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