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Judaísmo, Cristianismo e Helenismo - André Leonardo Chevitarese e Gabriele Cornelli

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Judaísmo, Cristianismo e Helenismo.
Ensaios Acerca das Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo.
André L. Chevitarese e Gabriele Cornelli
Apresentação de Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013)
Judaísmo, Cristianismo e Helenismo. Ensaios Acerca das Interações Culturais no Mediterrâneo
Antigo.
Edição Revista
2021
Kliné Editora ®
Rua Maria Amália, 591, Tijuca, Rio de Janeiro - RJ - Brasil
contato@klineeditora.com | www.klineeditora.com
Coordenação Editorial
Felinto Pessôa de Faria Neto
Leonardo Gonçalves Martins
Raphael Botelho de Moura
Conselho Editorial
Daniel Brasil Justi (UNIFESSPA)
Marta Mega (UFRJ)
Mônica Selvatici (UEL)
Osvaldo Ribeiro (UNIDA)
Diagramação e Capa
Raphael Botelho de Moura
C452
Chevitarese, André Leonardo; Cornelli Gabriele
Judaísmo, cristianismo e helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo. / André Leonardo
Chevitarese e Gabriele Cornelli. - Rio de Janeiro: Kliné, 2021. Edição revista.
Formato: epub
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-7419-714-2
1. Cristianismo. 2. Judaísmo. 3. Helenismo. 4. Religião. 5. Interações Culturais. 6. Historiografia. I. Título.
CDU 232
CDD 200.901
https://www.klineeditora.com/
Sobre os autores
André Leonardo Chevitarese é Professor Titular do Instituto de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua no Programa de Pós-
Graduação em História Comparada do Instituto de História e no Programa
de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional.
Gabriele Cornelli é Professor Associado do Instituto de Ciências Humanas
da Universidade de Brasília. É Diretor da Cátedra UNESCO Archai sobre
as origens plurais do pensamento ocidental e atua no Programa de Pós-
Graduação em Metafísica da mesma instituição. É Doutor em Ciências da
Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e Doutor em Filosofia
pela Universidade de São Paulo.
Índice
Sobre os autores
Apresentação
Abreviaturas Utilizadas
I - Reflexões em torno de Daniel 9:1-19
II - Jesus era Judeu? Ou a Galiléia Esquecida
III - Práticas Mágicas no Novo Testamento e para Além Dele
IV - Convergências Apocalípticas nas Esquinas da Magia: o Sincretismo
Religioso Helenístico dos Papiros Mágicos Gregos
V - Amuletos, Salomão e Cultura Helenística
VI - O Anel de Salomão: Magia e Apocalíptica no Testamento de Salomão
VII - O Uso de um Esquema Imagético Politeísta entre os Primeiros
Cristãos
VIII - Sexualidade e Violência no Reino dos Céus: o Caso do Evangelho
Secreto de Marcos e as tradições cristãs primitivas
Bibliografia
Catálogo Sumário das Imagens Utilizadas.
Apresentação
Nas universidades dos Estados Unidos e de países europeus, há muitas
décadas atrás, as disciplinas voltadas para estudos da religião apresentavam
um forte preconceito pró cristão. Numa disciplina como Religiões
Comparadas, por exemplo, o cristianismo costumava ser tomado como
paradigma indiscutível ao ser confrontado com outros credos.
Elementos vistos por historiadores cristãos como “positivos” em
religiões pré-cristãs como, por exemplo, a do antigo Egito freqüentemente
seriam encarados não a partir da lógica intrínseca do pensamento religiosos
em questão mas, sim, como algo que prefigurava ou antecipava aspectos do
cristianismo − ou mais em geral do pensamento judaico-cristão − ainda por
vir, numa perspectiva no mínimo fortemente anacrônica além de
preconceituosa. Entretanto, uma disposição tão reducionista foi pouco a
pouco abandonada por diversas razões. Uma delas percebe-se no contato
crescente dos estudos religiosos, incluindo a História das Religiões, com
disciplinas como a Antropologia, a Arqueologia, a Sociologia ou a
Filosofia. Mais recentemente, fator poderoso em tal sentido foi o
multiculturalismo pós-moderno vinculado, entre outras coisas, às
consequências da descolonização para as relações entre povos no âmbito
mundial. Tal multiculturalismo, diante de qualquer manifestação de um bias
cristão, levaria a que se perguntasse: por que um setor de alguma cultura
não-ocidental, como a sua religião, deveria ser julgado de fora, a partir dos
parâmetros religiosos da cultura ocidental? Por estes e outros caminhos,
cada vez mais viu-se como algo muito natural − mesmo de parte de pastores
protestantes ou sacerdotes católicos − que também o trabalho crítico com os
livros sagrados judaico-cristãos fosse feito de modo idêntico e com as
mesmas exigências aplicáveis a quaisquer textos antigos. Assim, um padre
ou pastor que seja ao mesmo tempo especialista em crítica
veterotestamentária ou neotestamentária não manterá o mesmo discurso
acerca dos textos para ele sagrados ao falar, por um lado, do púlpito de sua
igreja ou, por outro, em reuniões científicas de sua área.
O Brasil, entretanto, tem uma tradição ainda pobre na área de estudos
universitários e científicos das religiões. Até mesmo no que concerne a
tradução de trabalhos estrangeiros, é limitado aquilo de que se pode dispor
em português em matéria de trabalhos atualizados. Neste país, o fato de
estudos judaico-cristãos − numa perspectiva histórica informada por
disciplinas “auxiliares” tradicionais como a Filologia, mas igualmente pela
Antropologia e pelos estudos iconográficos de objetos descobertos
arqueologicamente − tratarem os escritos que os cristãos consideram
sagrados e divinamente inspirados com critérios aplicáveis do mesmo modo
a quaisquer textos ainda pode chocar, sobretudo em épocas como a atual,
marcada pelo avanço de posições religiosas fundamentalistas tanto entre
protestantes quanto entre católicos. É salutar, portanto, que se desenvolvam
entre nós os estudos religiosos de tipo acadêmico, apoiados em pesquisas
sérias, até que os seus achados e debates se tornem, pelo menos nos
ambientes acadêmicos, algo corriqueiro como já é nos Estados Unidos ou
na Europa.
Vejo a partir de tal perspectiva esta coleção de ensaios que André
Leonardo Chevitarese e Gabriele Cornelli ora dão a público. Alguns destes
artigos seus são voluntariamente polêmicos ou provocativos, é o que me
parece. Defendem posições que podem − e devem − alimentar controvérsias
e, mesmo, discussões acadêmicas acaloradas (debates acalorados
emocionalmente derivados de preferências ou interpretações religiosas
específicas são, pelo contrário, irrelevantes e improdutivos ao se tratar de
textos oriundos de processos pesquisa, como estes).
Os autores escolheram uma perspectiva teórico-metodológica de
contornos claramente definidos e por eles expostos, que é a dos estudos
culturais contemporâneos numa de suas vertentes − ilustrada, por exemplo,
pelo antropólogo Marshall Sahlins em sua fase pós-evolucionista, na qual,
em função de estudos na França, sofreu forte influência (nem sempre
suficientemente percebida ou sublinhada) de uma pensadora búlgara que fez
carreira em Paris, Julia Kristeva. Bem antes de Sahlins, esta semiotista
mostrara que as práticas significativas verbais e não-verbais tanto podem
reproduzir quanto transformar os códigos a partir dos quais se elaboram; e,
quando os mudam, fazem-no um pouco à maneira da famosa boutade de
Lampedusa em seu Gattopardo, ou seja, no sentido de que é preciso que
tudo mude para que tudo fique como está.
Espero que estes ensaios cumpram um papel de peso na ampliação e
renovação, entre nós, dos estudos religiosos universitários.
Ciro Flamarion Cardoso
Professor Titular de História Antiga e Medieval
Universidade Federal Fluminense
Abreviaturas Utilizadas
Ag, Ageu.
AJ. Antiguidades Judaicas (Josefo).
Ap. Apocalipse de João, o Visionário.
At. Atos dos Apóstolos.
Can. Livro dos Cânticos.
CC. Contra Celso (Orígenes).
CJA. Cneu Júlio Agrícola (Tácito).
Dn. Daniel.
Dt. Deuteronômio.
Ecl. Eclesiástico.
Ex. Êxodo.
GJ. A Guerra dos Judeus contra os Romanos (Josefo).
Gl. Epístola aos Gálatas.
Jo. Evangelho de João.
Jr. Jeremias.
Lc. Evangelho de Lucas.
Mc. Evangelho de Marcos.
Mt. Evangelho de Mateus.
Nm. Números.
PMD. Papiros Mágicos Demóticos (Betz).
PMG. Papiros Mágicos Gregos (Betz).
Sb. Sabedoria.
TA. Tradição Apostólica (Hipólito).
TLevi. Testamento de Levi.TSol. Testamento de Salomão.
1En. Primeiro Livro de Enoque.
2Cr. Segundo Livro de Crônicas.
1Mc. Primeiro Livro de Macabeus.
2Mc. Segundo Livro de Macabeus.
1Rs. Primeiro Reis.
1Sm. Primeiro Samuel
Introdução
I. O público, em geral, e os estudiosos, em particular, que estejam
interessados em ler trabalhos, em língua portuguesa, que abordem as várias
oportunidades que judeus, cristãos e politeístas, inseridos no Mediterrâneo
antigo, tiveram de se encontrar, veem-se completamente frustrados com a
quase ausência de livros que abordam estes encontros. Podem ser apontadas
duas obras, lançadas em português três décadas atrás, que enfocam o tema
em questão, cada uma delas, porém, por um viés distinto:
Cristianismo Primitivo e Paideia Grega, de Werner Jeager,
originalmente publicado em inglês, em 1961, com uma tradução para o
português de Portugal, em 1991. Este livro não apresenta índice, já que se
trata de um conjunto de preleções feitas pelo autor no momento da sua saída
da Universidade de Harvard. Jeager (1991: 13) deixa claro, logo no início,
que o seu objeto é uma análise histórica do cristianismo e a sua relação com
a cultura grega, demonstrando que o primeiro elemento da relação está
completamente envolvido no segundo. Implica dizer, muito embora Jeager
(1991: 17-18) reconheça o cristianismo como um movimento judaico, ele
observa que a sua rápida disseminação, desde a sua primeira geração, era
devido a dois aspectos centrais: os judeus achavam-se helenizados no
tempo de Paulo, não só na diáspora judaica mas, num grau considerável,
também na Palestina; e foi precisamente para esta fração helenizada do
povo judeu que os missionários cristãos primeiro se dirigiram.
Para Jeager, neste sentido, não é possível compreender o cristianismo
fora do contexto helenístico1. Para reforçar ainda mais esta sua hipótese, ele
(Jeager 1991: 17-26) dá vários exemplos, ao longo do seu discurso: (i) o
cristianismo usou, desde o seu início, a língua grega; (ii) o nome da nova
seita, christianoí, teve origem na cidade grega de Antioquia; (iii) o grego
era falado em todas as sinagogas do Mediterrâneo (e do Egeu), o que
implicou: o contato dos cristãos com um séquito de prosélitos politeístas
presentes nas sinagogas; que toda a atividade de Paulo baseou-se neste fato;
que as discussões com os judeus, a quem Paulo se dirigia nas suas viagens e
a quem tentava levar o evangelho eram conduzidas em grego; (iv) tanto
Paulo quanto os judeus citavam, via de regra, o Antigo Testamento da
versão grega dos Setenta; (v) a presença marcante, nos autores cristãos, não
só das formas literárias gregas da Epístola, segundo o modelo dos filósofos
gregos, como, também, de inúmeros exemplos, contidos em seus trabalhos,
extraídos de autores gregos. A análise feita por Jeager, ao longo do livro,
compreende basicamente os quatro primeiros séculos da nossa era,
buscando sempre reforçar a profunda dependência que a cultura helenística
irá impor ao cristianismo.
Os Limites da Helenização. Interação Cultural das Civilizações Grega,
Céltica, Judaica e Persa, de Arnaldo Momigliano, escrita originalmente em
inglês, em 1975, e traduzida para o português do Brasil em 1991. Esta obra
está organizada a partir de duas premissas:
(i) Antes das conquistas de Alexandre Magno, as várias civilizações
desenvolviam-se em linhas paralelas, o que Momigliano (1991: 16) chamou
de tempo axial (achsenzeit). Este argumento é derivado do livro de Karl
Jasper de 1949, sem tradução para a língua portuguesa, denominado Vom
Ursprund und Ziel der Geschichte. Momigliano (1991: 15), acompanhando
de perto as ideias de Jasper, observa que a China de Confúcio e de Lao-Tsé,
a Índia de Buda, o Irã de Zoroastro, a Palestina dos profetas e a Grécia dos
filósofos, trágicos e historiadores apresentavam características comuns,
como por exemplo: (i) dominavam a escrita; (ii) apresentavam uma
complexa organização política que conjugava governo central e autoridades
locais; (iii) um cuidadoso planejamento das cidades; (iv) uma avançada
tecnologia do metal; (v) a prática da diplomacia internacional; (vi) uma
profunda tensão entre as forças políticas e os movimentos intelectuais; e
(vii) buscavam difundir uma maior pureza, maior justiça, maior perfeição e
uma explicação mais universal das coisas. Convém observar, porém, que
apesar de apresentarem elementos comuns, tais civilizações estavam
inseridas no tempo axial, o que implica dizer: elas eram independentes
umas das outras e se ignoravam.
(ii) O período helenístico apresentava uma novidade sem precedente na
História (Momigliano, 1991: 16): ele proporcionou a circulação
internacional às ideias, embora reduzisse fortemente o seu impacto
revolucionário. Conforme observa ainda Momigliano (1991: 16),
comparada ao tempo axial, a época helenística é dócil e conservadora. O
marco para este encontro das civilizações foram os resultados trazidos pelas
conquistas de Alexandre Magno, quando os gregos (e macedônios)
descobriram os romanos, os celtas, os judeus, os persas. Assim, nas
palavras de Momigliano (1991: 10), a era helenística assistiu a um
acontecimento intelectual de primeira categoria: a confrontação dos gregos
(e macedônios) com quatro outras civilizações, três das quais antes lhes
tinham sido praticamente desconhecidas e uma que fora conhecida sob
condições muito diferentes. Não deve ser perdido de vista, porém, que da
mesma forma que Jeager, Momigliano (1991: 13) também afirma que a
civilização helenística permaneceu grega na língua, nos costumes e
(sobretudo) na consciência de si mesma.
II. Com relação aos dois trabalhos apresentados acima, é importante
considerar o seguinte: (i) os seus autores estão entre os mais destacados
pesquisadores do mundo antigo do século passado; (ii) os dois livros, apesar
de já terem sido publicados nas décadas de 1960 e 1970 respectivamente,
ainda trazem questões extremamente oportunas; e (iii) estas duas obras são
consideradas clássicas no campo historiográfico, na medida em que muitas
das atuais pesquisas ainda são tocadas pelas ideias trazidas pelos seus
autores.
Apesar disto, porém, estes dois livros apresentam problemas que não
estão contidos neles mesmos, mas que lhes são exteriores. Estas questões
passam pela formação acadêmica de seus respectivos autores, aliás, diga-se
de passagem, que ainda predomina fortemente nos dias atuais. Os
problemas podem ser assim agrupados:
(i) Ambos os autores fazem parte de uma geração de pesquisadores que
praticamente ignorava os resultados obtidos pelas pesquisas arqueológicas,
em especial àquelas desenvolvidas na região do Mediterrâneo. A bem da
verdade, para sermos honestos, Momigliano (1991: 72) até que utilizou
alguns dados advindos da Arqueologia, mas estas informações só entraram
no seu discurso para confirmar – nunca para contestar ou refutar – uma
dada posição assumida pelos autores antigos (gregos, romanos, latinos,
judeus e cristãos).
(ii) Da mesma forma, os dados antropológicos também ficaram
submetidos a um segundo plano, interferindo praticamente muito pouco nas
duas respectivas obras. Não deve ser perdido de vista, porém, que o tema
desenvolvido por ambos os pesquisadores – encontros entre diferentes
culturas – é muito mais antropológico do que histórico ou filosófico2.
(iii) Verifica-se também um baixíssimo aproveitamento dos textos
denominados canônicos, deuterocanônicos e apócrifos produzidos por
judeus e cristãos, nas obras de Jeager e Momigliano. O primeiro
pesquisador, mais interessado nas interações entre cristianismo e helenismo,
priorizou basicamente, na sua narrativa, a literatura patrística, enquanto que
o segundo autor, ao discutir os contatos entre gregos e judeus, limitou-se às
referências básicas (poderíamos dizer, os lugares comuns) de textos
judaicos. Ambos os autores deixaram de fora, talvez por causa das
dificuldades e/ou dos receios sentidos pelos cientistas sociais em lidar com
a Torá ou a Bíblia cristã. Todos os pesquisadores da antiguidade esmiúçam
os inúmeros textos literários e epigráficos antigos produzidospor gregos e
romanos que chegaram até os dias atuais, os tratam como documentos que
ajudam a reconstruir a História de um dado período, mas ainda são poucos
aqueles pesquisadores3 – pelo menos aqui no Brasil – que olham os textos
sagrados judaicos e cristãos como documentos literários4.
(iv) O inevitável impacto que o tempo produz em qualquer obra,
inclusive nas de Jeager e Momigliano. Novos trabalhos têm sido
publicados5 no exterior, na forma de livros, e no Brasil, através de
Dissertações e de Teses dos Programas de Pós-Graduações. Eles têm
ampliando consideravelmente o horizonte das pesquisas nas áreas
relacionadas aos encontros culturais promovidos, a partir das conquistas
alexandrinas, nas últimas décadas do século IV a.C. em diante.
III. Marshall Sahlins publicou, em 1985, uma obra denominada Islands
of History. Este trabalho, lançado posteriormente no Brasil, em 1990,
recebeu o título Ilhas de História. O seu tema central diz respeito ao
encontro entre ingleses e havaianos, ocorrido no final do século XVIII. Esse
livro proporcionou uma série de questões extremamente pertinentes aos
temas desenvolvidos pelos autores deste livro. São elas:
(i) Cultura é historicamente reproduzida e alterada na ação (Sahlins,
1990: 7).
Esta definição adquire aqui um peso muito importante, na medida em
que os oito capítulos abordam os vários encontros ocorridos entre as
culturas monoteísta e politeístas. No momento em que as culturas grega e
judaica se encontraram, de forma mais duradoura, a partir das conquistas de
Alexandre Magno6, na Judeia e na Galileia, por exemplo, pode-se admitir
que os agentes envolvidos diretamente nesses encontros nunca mais foram
os mesmos. Esta afirmação baseia-se na premissa feita por Sahlins (1991:
7), segundo a qual a cultura se reproduz e se altera na História. Implica
dizer, ela está sempre em constante movimento, sendo síntese de
estabilidade e de mudança. É de se esperar, portanto, que esse movimento
produza uma “transformação estrutural”, pois a alteração de alguns sentidos
muda a relação de posição entre as categorias culturais, havendo assim uma
“mudança sistêmica”.
(ii) Sahlins (1991: 8) observa uma proposição comumente feita entre os
teóricos do sistema mundial:
“[...] dado que as sociedades tradicionais que os antropólogos habitualmente estudam são
submetidas a mudanças radicais, impostas externamente pela expansão capitalista ocidental, não
é possível manter a premissa de que o funcionamento dessas sociedades está baseado em uma
lógica cultural autônoma”.
À luz desta proposição, o autor (Sahlins, 1990: 8) estabelece quatro
críticas básicas. Na medida em que cada uma delas é extremamente
relevante para este livro7, elas serão inseridas nos contextos históricos aqui
trabalhados.
1ª. Há uma certa confusão, entre os teóricos do sistema mundial, entre
sistema aberto e a total ausência de sistema (Sahlins, 1990: 8).
Esta crítica nos é extremamente cara, na medida em que as três culturas
por nós discutidas8 – judaica, cristã e grega – interagiram-se culturalmente.
No momento em que elas interagiam, elas caracterizavam-se por sistemas
abertos, estabelecendo negociações, admitindo trocas até um certo limite.
Isto implica dizer que, ao longo deste livro, não há espaços para noções de
influências de uma cultura sobre a outra9. Portanto, priorizar-se-á a idéia de
negociação, de interação cultural.
2ª. A própria teoria do sistema mundial faz concessões à preservação
das culturas satélites enquanto meios de reprodução de capital na ordem
dominante europeia (Sahlins, 1990: 8).
Esta crítica feita aos teóricos mundiais é bastante pertinente com os
períodos helenístico (séculos III-I a.C.) e romano (II a.C. – IV d.C.). Tanto
as monarquias helenísticas (selêucida e ptolomaica), quanto os governos
republicano e principado romanos admitiram concessões às diversas
culturas submetidas aos seus domínios políticos e militares. Basta lembrar
que os monarcas selêucidas10 e ptolomaicos, bem como o Senado e os
“príncipes” romanos não interferiram nas formas como as riquezas eram
produzidas no interior dos seus respectivos territórios, bem como não
intervieram nas múltiplas formas de manifestações religiosas existentes
entre as diferentes culturas inseridas nas fronteiras dos seus impérios. A
riqueza dos impérios selêucida, ptolomaico e romano estava atrelada à
reprodução e até mesmo à transformação criativa da ordem cultural desses
povos (ponto de vista dos chamados povos dominados);
3ª. O sistema é, no tempo, a síntese da reprodução e da variação
(Sahlins, 1990: 9).
Sob o ponto de vista temporal e espacial, os ensaios deste livro inserem-
se basicamente em dois grandes impérios antigos: o selêucida e o romano.
Muitas vezes, porém, ao se discutir os grandes impérios antigos do
Mediterrâneo e do Egeu, incluindo os dois citados, constata-se uma idéia
implícita nessas discussões: eles aparecem como estruturas político-
administrativas estáticas, não sujeitos às variações externas ou internas ao
longo do tempo e do espaço. Buscamos enfatizar nestes Ensaios, a partir
desta questão levantada por Sahlins, uma visão exatamente oposta àquela
comumente aceita: os impérios selêucida e romano, em contato com as
diferentes culturas inseridas nos seus domínios territoriais, reproduziam-se
de maneira distinta nas suas inúmeras partes, já que os processos de
interações culturais ocorridos no interior dos seus domínios devem ser
entendidos como uma via de mão dupla. Implica dizer, a dinâmica
reprodutiva dos impérios selêucida e romano era também responsável pelas
variações que eles conheceram ao longo do tempo e do espaço.
4ª. A transformação de uma (dada) cultura também é um modo de sua
reprodução (Sahlins, 1990: 174).
Esta última questão colocada por Sahlins também irá aparecer ao longo
das várias discussões travadas nas páginas que se seguem. Trabalharemos
com a noção de judaísmos e cristianismos. Esta opção deve-se basicamente
às inúmeras oportunidades de contato envolvendo as comunidades judaicas
(e/ou cristãs) e politeístas disseminadas na bacia mediterrânea, por
exemplo, proporcionando, em níveis locais, especificidades no ver, no
sentir, no praticar essas experiências religiosas no interior dessas mesmas
comunidades. Na medida em que reconhecemos esses encontros (deve-se
incluir também neste raciocínio a própria cidade de Jerusalém), admitimos
também uma transformação local nas experiências vividas pelas
comunidades judaicas, cristãs e politeístas, proporcionando reproduções
locais diferentes (por menor que possam parecer essas mudanças). Foram
essas possibilidades de transformação, bem como, a própria capacidade
diária de reprodução de judeus e cristãos em áreas majoritariamente
ocupadas por outras comunidades culturais, que lhes permitiram a
sobrevivência e a continuidade das suas práticas religiosas, incluindo aí a
possibilidade de aproximação ou afastamento dos indivíduos às suas
crenças. Foram estas transformações locais que possibilitaram o
desenvolvimento de diferentes culturas judaicas, cristãs e politeístas – sob o
ponto de vista sincrônico e diacrônico – com historicidades diferentes
(Sahlins, 1990: 11).
Estas quatro questões são consideradas chaves para compreender a
própria dinâmica deste livro. Elas nos levam, porém, para duas definições,
propostas por Sahlins, de cultura que se complementam e que estarão
presentes nas páginas que se seguem:
1ª. a cultura é justamente a organização da situação atual em termos do
passado (Sahlins, 1990: 192).
Ao nos referirmos, ao longo dos capítulos, às culturas judaica, cristã e
politeísta, estamos admitindo o uso de um conceito que estabelece a todo
momento, em termos individuais ou coletivos, um diálogo constante entre o
presente e o passado. Este passado não deve ser visto como um elemento
estático, mas em constante mudança, conforme observou Sahlins (1990:
10), parafraseando Marc Bloch, “[...] os nomes antigos, que estão na boca
de todos, adquirem novas conotações, muito distantes de seus sentidos
originais”.
2ª. a culturafunciona com uma síntese de estabilidade e mudança, de
passado e presente, de diacronia e sincronia (Sahlins, 1990: 180).
Esta outra definição pode ser explicada através das próprias palavras de
Sahlins (1990: 181), ao verificar o contato entre ingleses e havaianos (do
nosso lado, porém, entre judeus e politeístas, cristãos e politeístas, judeus e
cristãos): “No final, quanto mais as coisas permaneciam iguais, mais elas
mudavam, uma vez que tal reprodução de categorias não é igual. Toda
reprodução da cultura é uma alteração [...]”.
IV. A relevância destes Ensaios para o leitor brasileiro assume uma
conotação toda especial quando se presta atenção à profunda convergência
de formas e conteúdos entre esta história dos encontros culturais no mundo
helenístico e a definição de conceitos como interação cultural, sincretismo,
imbricação, tão caros à historiografia brasileira.
A questão mais premente, do ponto de vista historiográfico, é
exatamente aquela de conseguir compreender o “produto final” das diversas
interações entre culturas diferentes para originarem este estágio cultural
específico. Tanto para a “grande praça” do helenismo antigo como para o
Brasil colonial, um termo muito usado é “sincretismo”.
Uma indicação de percurso se faz aqui necessária: estes Ensaios não
devem ser lidos a partir de uma visão culturalista do sincretismo, na linha
clássica de Artur Ramos de Araújo Pereira (1945; cf. tb., neste sentido, a
avaliação de Sanchis, 1994: 4-11). O sincretismo pode ser pensado como
uma estratégia de contraposição dos valores da cultura dominante sobre a
cultura dominada, no sentido, por exemplo, de grande parte do que
compreendermos em nossos dias com o termo “globalização”. Estas
páginas a seguir, de fato, querem ser lidas a partir de uma compreensão
mais processual e plural dos processos sincréticos, como acontecem de
maneira especial no interior do imaginário cultural-religioso: isto é, como
uma forma de reinterpretação dos elementos culturais adquiridos no
processo de troca.
Desta forma, categorias que surgem, a partir dos estudos antropológicos
e históricos brasileiros, podem vir a desenhar mais precisamente os
caminhos teóricos para a compreensão dos “produtos finais” analisados nos
Ensaios a seguir. O conceito de interpenetração das civilizações de Bastide,
por exemplo, pensado como um processo aberto de relações aculturadoras
parece esclarecer melhor o risco de se utilizar uma concepção das
interações culturais, quanto compreendida no sentido de uma síntese
estática de culturas diferentes. Assim o mesmo Bastide (1973: 187, nota
46):
“Nas modernas concepções de aculturação e transculturação (...) tende-se cada vez mais a
considerar que o elemento tomado de empréstimo é ‘digerido’, por assim dizer, pela cultura
assimiladora, que se adapta ao novo complexo cultural ou paideuma. (...) A antiga concepção de
aculturação esquece que existem elementos não-digeridos (e que, às vezes, fazem explodir a
antiga cultura) e que, para empregar a linguagem dos sociólogos brasileiros, não existe um
centro de gravitação: toda cultura é ‘polinuclear”.
Exemplos deste sincretismo aberto, no interior dos estudos históricos
brasileiros, não faltam. Estudos como os de Vainfas (1999) e de Mello e
Souza (1987) podem ser pensados como “espelhos” metodológicos
contemporâneos para a compreensão do helenismo antigo. A Santidade de
Jaguaripe, por exemplo, sabá indígena do Recôncavo Baiano, estudada pelo
Vainfas, é um espelho de um processo de aculturação aberto, onde o ritual
extático indígena tanto exerce uma sedução irresistível sobre o colonizador
como se modifica, aproximando símbolos e formas ao encontro da estrutura
do mundo cultural do mesmo colonizador.
Um outro autor, muito lido e apreciado entre os historiadores brasileiros,
Carlo Ginzburg, pode ser considerado mais um interlocutor destes Ensaios.
Tanto pela abordagem metodológica que procede a partir da microanálise de
casos bem delimitados (mas cujo estudo revela problemas de ordem bem
mais geral), como pela célebre categoria da circularidade cultural, que o
mesmo autor (Ginzburg, 1987: 13) define como
“[...] um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo
para cima, bem como de cima para baixo [...]”.
Desta forma, a teoria da circularidade permite superar a relação passiva
e unidirecional entre centro/periferia ou erudito/popular: um esquematismo
maniqueísta que acaba por focalizar metodologicamente mais as proibições
e os limites, os critérios de exclusão sobre os quais a cultura foi construída,
do que os excluídos em si e seus referenciais culturais alternativos. Mais
uma contribuição metodológica para a compreensão das interações culturais
que originam novas culturas.
A partir destas convergências teórico-metodológicas, os Ensaios a seguir
convidam o leitor a superar uma concepção clássica da cultura, e desta
forma da cultura no mundo antigo, pensada como algo unívoco e
monolítico. “O” judaísmo, “o” cristianismo, “o” politeísmo grego nunca
existiram, enquanto formas culturais autônomas e independentes, fora das
simplificações manualísticas ou das identificações ideológicas posteriores.
A esta visão, impõe-se a necessidade de substituir uma teoria mais
flexível, que possa explicar interações que se deem em níveis culturais
diferentes. Uma ocupação militar ou uma dominação do espaço econômico-
financeiro não esgotam a possibilidade de uma autonomia relativa de outros
espaços culturais. É o caso, por exemplo, do mundo do imaginário
religioso, com toda a carga de seus mitos e rituais. Nestes casos pode-se
revelar um fenômeno complexo, o de uma aculturação de retorno, na qual a
cultura dos dominados entra numa troca aberta, circularmente (na linha do
Ginzburg acima) ou dialogicamente (na linha bakhtiniana), com a da cultura
dominadora, em certos níveis e a partir de definidos espaços de autonomia.
Uma complexa interação multidirecional e polinuclear à qual demos o
nome de sincretismo aberto.
É com esta bagagem metodológica e hermenêutica que os autores dos
Ensaios a seguir se propuseram uma releitura de alguns testemunhos desta
“grande praça” que foi o mundo helenístico. A história da cultura ocidental
procura nos tempos atuais rever suas formas e conteúdos num diálogo
difícil, mas rico, com culturas e sabedorias “outras”, de várias formas
distantes: desde o mundo oriental, por exemplo, até visões originárias
indígenas de diferentes origens. Por outro lado, uma complementar revisão
profunda de sua tradição, uma “faxina” em suas origens (e o que é mais
uma tradição senão o lugar onde nos sentimos “em casa”?) pode fazê-la
redescobrir riquezas esquecidas, numa interação de culturas e de visões do
mundo mais amplas do que aquelas a que os modernos manuais nos
acostumaram.
Esta, talvez, a afirmação do desejo mais profundo, do compromisso
ético destes Ensaios: convidar a reencontrar o “outro”, aparentemente tão
distante, no âmago da própria história cultural.
André L. Chevitarese e Gabriele Cornelli
1 Jeager (1991: 17, nota 6) demonstra que o termo “helenismo” sofreu um processo de interpretações
variadas na antiguidade. De imediato, com Teofrasto, no século IV a.C., esta palavra adquire o
sentido do uso gramaticalmente correto da língua grega, o grego livre de barbarismos e solecismos.
Posteriormente, porém, helenismo vai caracterizar a adoção das maneiras gregas, do modo de vida
grego, em especial fora da Hélade, onde a cultura grega tornara-se moda. Levine (1998: 16-17), mais
recentemente, buscou estabelecer uma definição mais clara, pelo menos no entender dos autores
destes Ensaios, de dois termos que aparecem imbricados na análise de Jeager: ele define helenismo
como o meio cultural, largamente grego, dos períodos helenístico, romano e uma extensão mais
limitada do bizantino, enquanto que, por helenização, Levine chama o processo de adoção e
adaptação desta cultura em um nível local. Implica dizer que a helenização não deve ser vista como
um processo homogêneo, como parece sugerir a definição de Jeager,mas repleto de especificidades
locais, resultado do encontro da cultura grega com as múltiplas e variadas culturais locais dispostas
no Mediterrâneo, no Egeu e para além desses dois mares.
2 Esta constatação não quer sugerir que historiadores, filósofos ou teólogos não possam discuti-lo.
3 Referimo-nos especificamente aos historiadores, filósofos e antropólogos da antiguidade.
4 Aliás, tão literários quanto a Ilíada e a Odisseia de Homero, a Eneida de Virgílio, a História de
Heródoto, As Histórias de Políbio, as poesias cômicas e trágicas dos poetas gregos e latinos.
5 Uma rápida olhada na bibliografia apresentada no fim deste livro colocará o leitor a par destas
publicações.
6 Para uma discussão envolvendo as várias possibilidades de contato, antes do final século IV a.C.,
ver: Chevitarese, 2004: 69-82.
7 Convém observar, como salientou Momigliano (1991: 9-26), que o período helenístico se
caracterizou pelo encontro de inúmeras culturas disseminadas na bacia mediterrânea e para além
dela, sob a égide do helenismo.
8 Particularmente as duas primeiras culturas compostas basicamente, mas não exclusivamente, por
pequenas comunidades espalhadas em contextos helenísticos.
9 Deve-se entender aqui, por inserção e contato das comunidades judaicas com os de fora (pode-se
generalizar também para cristãos e os de fora das suas comunidades), não um processo de
assimilação de hábitos, costumes e valores externos às respectivas comunidades – o que implicaria
em uma forma de descaracterização das mesmas –, mas, o que Rutgers (2000:67,91-95) chamou de
interação entre judeus e não-judeus (ou entre cristãos e não-cristãos). Trata-se de um processo onde a
apropriação, por um lado, era equiparada pela afirmação da identidade judaica (ou cristã), por outro.
10 Para uma posição mais nuançada do papel de Antíoco IV Epífanes em relação aos judeus, ver:
Scurlock, 2000:125-161.
I
Reflexões em torno de Daniel 9:1-19
Não é uma tarefa fácil, para um helenista familiarizado com os períodos
arcaico e clássico gregos, analisar um material literário produzido nas
regiões sob a influência do império selêucida. Esta empreitada torna-se
ainda mais complicada quando se considera que esse material não foi
produzido por um autor grego, nem originalmente escrito em grego. Em se
tratando de Daniel, as dificuldades só tendem a aumentar, já que o seu livro
apresenta uma série de “armadilhas” históricas, capazes de confundir até
mesmo o especialista no assunto1. Não é sem propósito, neste sentido, que o
título do referido trabalho traga a idéia de reflexão, já que ele busca
compartilhar com o leitor algumas observações acerca da passagem Dn 9:1-
19.
I. Como ponto de partida, há um aspecto que perpassa a referida obra: as
imprecisões históricas. Elas parecem sugerir um desconhecimento do autor,
principalmente na primeira parte do livro, do próprio contexto histórico
onde a ação se desenrola. Quanto mais distante temporalmente a narrativa
se situa do período de Antíoco IV Epífanes, onde o autor do texto
demonstra possuir não apenas um bom conhecimento, mas, também, um
enorme interesse, maiores são as possibilidades de acontecerem estas
imprecisões. Assim, por exemplo, para o período babilônico, elas ocorrem
logo no início das primeiras linhas da narrativa2. O autor observa (Dn 1:1)
que o rei Nabucodonosor participou diretamente do cerco de Jerusalém.
Esta afirmação apresenta os seguintes problemas: de imediato,
Nabucodonosor, naquele momento, não era rei, já que o seu pai,
Nabopalasar, ainda estava vivo; segundo problema: ele não participou do
cerco de Jerusalém. Imediatamente após a batalha de Karkemís, em 605
a.C.3, ele retornou a Babilônia, já que o seu pai estava muito enfermo,
tornando-se rei em 604 a.C.. Com relação ao período persa, em que pese o
fato de existirem pouquíssimas informações sobre esta época ao longo da
narrativa, o autor afirma (Dn 5:30-31) que Dario, o medo, conquistou a
Babilônia com a morte de Baltazar4. Ocorre, porém, que não há nenhum
registro histórico que comprove a existência deste Dario. Ao contrário, os
documentos assinalam Ciro, o persa, como conquistador da Babilônia.
Situando-se ainda no ponto de partida, a leitura do livro de Daniel,
apesar de apresentar uma unidade obtida graças à ação direta de um
“compilador” ou de um “editor” (Momigliano, 1984: 264, 282), foi dividida
em duas partes, de acordo com a aproximação ou o afastamento da narrativa
em torno de Antíoco IV Epífanes5: os capítulos 1 a 6 – que tratam das
histórias de Daniel e seus três companheiros – constituem a primeira parte;
já os capítulos 7 a 12 – relacionados com as visões apocalípticas –
compõem a última parte da narrativa. Henze (2001: 6) levanta dois outros
pontos que ajudam a reforçar esta proposta de divisão do livro: (i) constata-
se, na primeira parte da obra (capítulos 1-6), o autor referindo-se a Daniel
na terceira pessoa do singular, enquanto, na segunda parte da obra
(capítulos 7-12), há uma mudança da terceira para a primeira pessoa do
singular, passando o próprio Daniel a descrever as visões; e (ii) a primeira
parte do livro está totalmente desprovida de elementos apocalípticos, o que
contrasta marcadamente com a segunda, já que ela está pesadamente
dependente desses elementos.
Esta divisão não deve ser tomada de forma absoluta, já que, como será
visto posteriormente, é possível identificar referências ao referido rei
selêucida no cântico de Azarias na fornalha. Ela permite datar com maior
segurança, no entanto, as duas partes de Dn, apesar da objeção feita por
Henze (2001: 7, nota 5), cujos argumentos parecem repousar em bases não
convincentes: a primeira delas pode ser datada a partir da referência no
texto (Dn 2:43) ao casamento entre Antíoco II e Berenice, filha de
Ptolomeu II, consumado no ano 250 a.C.. Como observou Momigliano
(1984: 260, 283-284), este acontecimento é conclusivo e não poderia ser
compreendido para um texto escrito não muito depois desta data. Neste
caso, os capítulos 1 a 6 poderiam ser situados entre os anos 250-230 a.C.6.
A segunda parte de Dn não traz em si grandes problemas de datação, já que
o autor parece desconhecer por completo a morte de Antíoco IV ocorrida
em torno de novembro de ١٦٤ a.C. (Momigliano, 1984: 259, 284). Neste
caso, os capítulos 7 a 12 podem ser datados entre 167-164 a.C.
II. O contexto histórico, em que se insere Dn, é bastante instável, com as
posições políticas dos reis e das facções envolvidas variando
consideravelmente de lugares. As duas datas propostas mais acima, 250
a.C. e 167-164 a.C., apontam a existência de pelo menos dois autores
situados temporalmente entre o intervalo de duas gerações. Ambos sentem
as fortes pressões externas sobre Jerusalém, já que a todo o momento são
mencionados, direta ou indiretamente, em suas narrativas, soberanos
estrangeiros intervindo na vida dos habitantes da cidade santa. Um pequeno
e rápido esboço do contexto histórico da Judéia será importante, neste
sentido, para situar o referido livro.
Esta região foi palco de violentas tensões entre facções judaicas rivais.
Estes enfrentamentos podem ser vistos como resultados de ações externas
que se ramificaram internamente. Estas ações externas se inserem no campo
da política internacional, já que Coele-Síria foi objeto de intensa disputa
militar entre os impérios selêucida e ptolomaico ao longo do terceiro
século. Estas disputas estão materializadas nas várias guerras sírias (Hengel,
1980: 21-41). Esta intensa movimentação internacional ajuda a explicar as
tensões internas, em que as famílias judaicas dominantes e poderosas
(Tobíades, Oníades, Simônides e Hasmoneus) se organizam em facções
pró-selêucidas e pró-ptolomaicas (2Mac 3:1-40; Hayes e Mandell, 1998:
48-49; Bickerman, 1997: 119-122). Elas buscam, em termos palpáveis, o
controle político e econômico. No campo político, elas brigam pela
liderança e autoridade sobre a comunidade; no campo econômico, elas
lutam pelo controle das finanças e da coleta de impostos, com forte ênfase
nos ganhos econômicos e nos privilégios.
III.A passagem conhecida em algumas bíblias brasileiras como a oração
de Daniel parece destoar significativamente do restante da obra do referido
profeta, principalmente no que se refere às responsabilidades pelas
proibições das práticas religiosas, seguidas de perseguições e mortes em
Jerusalém a todos aqueles que ousassem desrespeitá-las. A elaboração de
duas tabelas permitirá visualizar as posições antagônicas.
Ao observar a Tabela 1, fica evidente, pelos atributos que o autor destina
a Antíoco IV Epífanes, uma quase associação do soberano selêucida com o
anticristo.
Tabela 1. Atributos relacionados com Antíoco IV Epífanes em Dn.
Atributos Dn
Injusto 3:32
O mais malvado 3:32
Aquele que profere insultos contra o Altíssimo 7:25, 8:9, 8:25, 11:36
Tramador de coisas inauditas 8:24
Arruinador dos poderosos e do povo santo 8,24
Aquele que age com perfídia 8:25, 11:23
Miserável 11:21
Sorrateiro 11:21, 11:24
Tem o coração voltado para o mal 11:27
Mentiroso 11:27
Profanador 11:31
Coloca-se acima dos deuses 11:36-37
Não tem consideração 11:37
Ele é apresentado como um rei injusto, malvado, arrogante, miserável,
pérfido, sorrateiro, que se arvora deus, ou melhor, que se coloca acima do
próprio Deus de Israel, o verdadeiro Senhor! Todos estes qualificativos
extremamente negativos que o autor de Dn atribui a Antíoco IV, devem-se,
sem sombra de dúvida, às reformas que serão introduzidas em Jerusalém
pelos judeus helenizados, por um lado, e pelo próprio soberano selêucida,
por outro. O interessante, ao longo da narrativa, no entanto, é que o
primeiro grupo aparece apenas de forma esporádica, sem um maior
detalhamento por parte do autor (Dn 9:27; 11:30; 11:32; 11:39). O mesmo
não pode ser dito com relação a Antíoco IV Epífanes. Ele é identificado
como a origem do mal que se abate sobre Israel, ele é o inimigo que precisa
ser derrotado através de uma guerra santa, uma guerra que já estava prevista
desde o início dos tempos, da mesma forma que o seu vencedor, o Senhor
Deus de Israel (Dn 8:24). Não há dúvida, o rei selêucida é a fonte do mal
que se abate sobre Jerusalém, ou melhor, é o próprio mal “encarnado”, já
que por decisão sua as tropas profanaram o Templo, o santuário que abriga
o Santo dos Santos, abolindo o sacrifício perpétuo e, em seu lugar,
introduziu-se a abominação da desolação.
Da mesma forma que a Tabela 1 oferece uma quantidade de atributos
negativos a Antíoco IV Epífanes, a Tabela 2 apresenta uma longa lista de
predicados nada favoráveis aos judeus.
Tabela 2. Atributos associados aos Judeus na Oração de Daniel.
Atributos Dn
Pecadores 9:5, 9:8, 9:15-
16
Iníquos 9:5
Ímpios 9:5
Aqueles que se rebelam com Deus 9,5, 9,9
Aqueles que se afastam dos mandamentos e normas de
Deus
9:5
Não ouvem os profetas 9:6
Infiéis 9:7
Transgressores da Lei 9:11
Estão sob o efeito da maldição e da imprecação inscritas
na Lei
9:11
Aqueles que não têm atendido à voz de Deus 9:10-11, 9:14
Maus 9:15
Eles são apresentados como pecadores, iníquos, ímpios, infiéis,
transgressores, aqueles que se rebelam contra o Deus dos seus pais, os que
não querem ouvir a voz do Senhor e os que não prestam mais atenção às
palavras dos profetas. Diferentemente da Tabela 1, contudo, o que se
observa aqui é uma crítica interna muito dura, em que o autor procura olhar
para dentro da sua casa, para o interior do seu povo e pede perdão a Deus
pelo fato dos judeus, inclusive ele próprio, serem pecadores. Não deve ser
perdido de vista, e este é um aspecto interessante, o fato do contexto
histórico vivido pela Judéia praticamente inexistir ao longo da oração. O
atual momento deve-se exclusivamente a um problema de ordem interna. Se
Jerusalém está desolada, se o Santuário está devastado, se o sacrifício
perpétuo está interrompido, se os judeus são motivo de escárnio pelos seus
vizinhos, tudo isto se deve, no entender do autor, ao afastamento do próprio
povo judaico de Deus. O contexto histórico, neste momento, é peça
descartável. Trata-se aqui de uma questão de ordem teológica, não
histórica!
Esta oração, se não for contemporânea ao início da resistência,
provavelmente antecede por muito pouco à revolta macabeia, na medida em
que o autor ainda lamenta o Santuário devastado e a cidade desolada, sobre
a qual o nome do Senhor é invocado. Tal oração deveria ser bem conhecida
de todos os judeus opositores das reformas “helenizantes” ocorridas na
cidade santa, já que ela critica o afastamento do próprio povo das leis de
Deus, como pode ser lido: “[...] todo Israel transgrediu a tua lei e desviou-se
para não escutar a tua voz” (Dn 9:11). Será interessante para as discussões
que se seguirão, recapitular, mesmo que rapidamente, os principais pontos
destas reformas.
Elas estão centradas em torno de Joshua ou Jasão, como ele queria ser
chamado, irmão de Onías III, ambos sumo-sacerdotes (Joshua, como sumo-
sacerdote, ver: 2Mac 4:7-10; com relação ao cargo ocupado por Onías III,
ver: 2Mac 3:1, 15:12). Jasão estabeleceu um conjunto de obras e ações, de
caráter marcadamente helenizante, em Jerusalém: o ginásio, que parece ter
substituído o papel catalisador do Templo (1Mac 1:13; 2Mac 4:12-15); o
ephebeîon, utilizado para educar os jovens nos princípios helênicos; o
alistamento de homens de Jerusalém como cidadãos de uma pólis, de tipo
helenístico, possivelmente “Jerusalém de Antioquia” (2Mac 4:9)7. Caberia a
Jasão e aos seus apoiadores diretos a autoridade para determinar quais
seriam os habitantes de Jerusalém que obteriam direitos e privilégios como
cidadãos da nova pólis. Como pode ser observado, porém, os dois
principais textos para entender, mesmo que parcialmente as reformas
helenizantes em Jerusalém são o 1Mc e 2Mc e não Dn.
Os três textos apresentam pontos de contato, embora eles sejam poucos,
no que diz respeito à participação dos judeus nas reformas helenizantes
propostas. Estes pontos se resumem há dois aspectos: (i) a aliança feita
entre Antíoco IV e uma parcela considerável dos judeus de Jerusalém (Dn
9:27,11:30,32; 1Mac 1:11-12,15,43,52), particularmente os habitantes
citadinos; não apenas habitantes citadinos, como, também, da população
rural, conforme demonstrou convincentemente Scurlock (2000: 153-159); e
(ii) o fato de os judeus terem sido reduzidos a bem poucos entre todos os
povos (Dn 3:37). Provavelmente esta afirmação não está relacionada com
um decréscimo da população judaica provocado pela baixa taxa de
natalidade, mas ao fato de as ações de Antíoco (1Mac 1:21-24,37,46-
47,50,56,60-61) terem provocado morte e fuga de muitos judeus que se lhes
opunham, tornando Jerusalém estranha a sua progênie (1Mac 1:38,53).
Convém apontar algumas questões acerca dos dois aspectos citados:
1º. Muito embora os autores dos livros de Daniel e de Primeiro
Macabeus levem os seus leitores a deduzir que os responsáveis pela aliança
com Antíoco IV Epífanes fossem somente os cidadãos citadinos de
Jerusalém, Scurlock (2000: 153-159) levantou uma interessante (e
convincente) hipótese de que a população rural também apoiou este acordo.
O seu argumento baseia-se nas ações do rei selêucida de retornar a adoração
de Yawhew à sua forma original, antes da reforma de Ezequias (Dt 12:2;
2Rs 18:4; 2Cr 31:1), nos lugares altos;
2º. Segundo outros autores (Scurlock, 2000: 128-129; Chevitarese,
2004: 80), as iniciativas que culminaram nas reformas helenizantes foram
propostas pela própria comunidade judaica. Não há nenhuma referência nos
textos antigos, alguns deles escritos por autores extremamente duros em
suas críticas a Jasão, que venha a sugerir ou indicar uma oposição às ações
deste sumo-sacerdote. Nenhum dos autores acusa Jasão de violar ou alterar
o culto praticado no Templo de Jerusalém ou de ter proibido as práticas
normais do judaísmo. Por fim, mesmo diante de textos violentamente
contrários a Antíoco IV Epífanes, não se observa nenhuma ação contrária a
Jasão ou ao soberano selêucida, quando este último visitou Jerusalém. Ao
contrário, o rei foi magnificamente acolhido pela cidade, nela foi
introduzido à luz de tochase ao som de aclamações (2Mac 4:22).
Constata-se, portanto, que a comunidade judaica, principalmente aquela
localizada em Jerusalém, já estava plenamente mergulhada no processo de
helenização, e a cidade santa era uma das mais helenizadas no Mediterrâneo
oriental. Havia pouquíssimas áreas e povos, ao longo do terceiro e segundo
séculos, imunes ao processo de helenização. Este, porém, não era o caso das
populações citadinas da Judéia. Como bem observaram Hayes e Mandell
(1998: 21), Alexandre não introduziu a cultura grega na Palestina, ele a
encontrou lá (para um maior aprofundamento da questão, ver: Chevitarese,
2004). Por outro lado, o fato de um autor bíblico escrever em hebraico ou
aramaico não é garantia de que ele esteja mais imune ao helenismo do que
aquele que optou por escrever em grego. Como é sabido de todos, os
autores dos livros de Macabeus escreveram em grego. Muito mais do que
sugerir uma adesão ao helenismo por ambos os autores, tal fato deixa
transparecer dois fortes indícios: (i) um intenso processo de interação
cultural – sob o ponto de vista das ideias e dos conceitos presentes no
helenismo – envolvendo muitos judeus situados não apenas na Palestina,
como, também em toda a bacia mediterrânea8; e (ii) a própria incapacidade
de muitos judeus de lerem os textos sagrados em hebraico, por já não
conhecerem mais esta língua9.
Dn10 não sugere, de imediato, que os seus leitores não soubessem o
grego ou estivessem imunes ao helenismo. Como foi bem observado por
Momigliano (١٩٨٤: 258-60, 284-85), o autor do capítulo dois de Daniel,
que opta por escrevê-lo em aramaico, já que esta língua estava bastante
difundida no território propriamente judaico (Levine, 1998: 80-83), lança
mão da teoria da sucessão dos impérios que é genuinamente uma idéia
grega. Para que a narrativa sobre o sonho de Nabucodonosor, relativo à
estátua compósita, pudesse ser plenamente entendida, o leitor deveria ter o
mínimo de conhecimento desta idéia e dos conceitos gregos nela
envolvidos.
Retornando, agora, à oração de Daniel (9:1-19), ela pode ser entendida
no interior do contexto de críticas às ideias helenizantes que estavam
perpassando toda a sociedade judaica, particularmente, mas não
exclusivamente, a de Jerusalém. Esta oração, como já foi observado, insere-
se no início das lutas ou provavelmente no período que antecede a revolta
macabéia. Ela pode ser pensada como uma tomada de consciência de uma
parcela significativamente grande daqueles judeus que haviam admitido
inicialmente as reformas helenizantes propostas pelo sumo-sacerdote Jasão,
consideradas por eles, no momento em que elas foram propostas, como
boas e inevitáveis. Eles agora estavam juntos, com os demais judeus que
tinham se oposto, desde o início, aos planos de Jasão – este parece ter sido o
caso do autor desta oração que está sendo agora analisada –, lutando contra
a profanação do Templo, as proibições dos holocaustos, dos sacrifícios, das
festas, das práticas religiosas, do shabat, da devastação de Jerusalém. Esta
oração busca aglutinar forças contra o inimigo comum, qual seja: Antíoco
IV Epífanes, no particular, ou o império selêucida, no geral.
IV. Em termos conclusivos, o emprego repetidamente da primeira
pessoa do plural ao longo da oração, associando o nós aos pecadores,
iníquos, ímpios, infiéis, transgressores da Lei, chama para uma proposta de
reconciliação entre as partes da sociedade judaica. Elas precisam estar
coesas, unidas em torno do objetivo comum, qual seja: libertar Israel da
opressão religiosa. Neste caso, o autor da oração estaria enfatizando uma
visão histórica mais particularista do que universalista (Levine, 1998: 100;
as porções apocalípticas de Daniel estando repletas de sentimentos gentios,
ver: Grant, 1997: 214). A questão, portanto, não estava em criticar
abertamente as influências helenizantes da sociedade judaica (como foi
salientado, este processo era inevitável), já que este procedimento não
aglutinaria o todo, mas, ao contrário, o dividiria. Daí o fato que a presente
oração, muito embora transpire todo um contexto histórico tenso, busque
chamar Israel sob o argumento religioso e não histórico.
1 Parece existir um consenso na historiografia moderna de que este Daniel e suas histórias nunca
existiram, ver: Bickerman, 1997: 24; Grant, 1997: 212-213; Collins, 1995: 413.
2 Para as demais passagens referentes à Babilônia, ver: Dn 4:25-30 (a zoantropia de Nabucodonosor),
5:2 (Baltasar como rei da Babilônia).
3 Quando as datas forem antes de Cristo, elas serão especificadas pela sigla “a.C.”. Para aquelas
datas inseridas temporalmente como sendo depois de Cristo, não será utilizada a sigla “d.C.”.
4 Para uma outra passagem repleta de imprecisões históricas, ver: Dn 11:2. Nela, o autor observa
que, após Ciro, existiram outros quatro reis persas, sendo que o último, possivelmente Xerxes,
buscou invadir a Grécia. Alexandre Magno viria depois dele!
5 Bickerman (1997: 63) parece ser o único autor que afirma não haver nada nas histórias de Daniel
que se refira ao rei selêucida e à sua perseguição à religião judaica.
6 Bickerman (1997: 60), lançando mão de outros argumentos, situa os capítulos 3, 4, 5 no final do
século III a.C.
7 Sobre a dificuldade em se saber da sobrevivência ou não dessa pólis depois das reformas, ver:
Scurlock, 2000: 136-137, especialmente nota 47.
8 Para o grego como língua regular entre os vários grupos judaicos, ver: Levine, 1998: 76-80; para
um aprofundamento da questão, ver: Hengel, 1980: 110-126; para a falta de evidência do impacto da
língua grega em Jerusalém, ver: Bickerman, 1997: 79.
9 O hebraico estava restrito aos círculos mais altos da sociedade, ver: Levine, 1998: 74-76.
10 Escrito em hebraico (Dn 1:1-2,4a, 8:1-12,13), aramaico (Dn 2:4b-7,28) e grego (partes
“deuterocanônicas”, Dn 3:24-90,12-13).
II
Jesus era Judeu? Ou a Galiléia Esquecida.
A Galiléia é uma região de enorme importância para a história do
cristianismo e do judaísmo. Ali nasceu, viveu e iniciou a sua missão Jesus,
o nazareno. Ali também, depois das duas destruições de Jerusalém (entre 66
e 70 e entre 132 e 135 – revolta de Bar Kokba), os judeus fugitivos e muitos
rabinos fundaram academias e escolas, onde foram redigidas obras
fundamentais do judaísmo formativo: primeiramente a Mixná e depois o
Talmude de Jerusalém.
Exatamente por causa da importância estratégica desta região, para as
duas tradições religiosas, é necessário esboçar algumas questões
historiográficas1.
Os estudiosos adotam quase unanimemente um paradigma, que se
tornou por isso dominante, que distingue, na Galiléia, de um lado um
mundo judeu e do outro um mundo cristão, e antes, um mundo helenístico e
um mundo judeu. O que parece esconder-se por trás dessa posição é o
preconceito e a ignorância a respeito de quanto problemática deve ter sido
uma suposta “judaização“ da Galiléia antes do ano 70. Pode-se dizer a
mesma coisa a respeito da convicção segundo a qual as primeiras
comunidades cristãs entendiam-se como cristãs versus judias.
Simplesmente não existe nenhuma evidência histórica disso até o século IV.
Pensar ainda a Galiléia como um campo de batalha entre judaísmo e
helenismo esconde uma complexidade muito maior subjacente. Quem foi
helenizado? Todo mundo ou só uma parte da população, umas classes, umas
regiões? Pode-se, por exemplo, considerar as aldeias da Galiléia
helenizadas ou judaizadas?
É possível reconhecer neste esquema fechado ecos das ideias
culturalistas americanas sobre os fenômenos de aculturação, assimilação e
sincretismo entre diversas culturas. Um tipo de aproximação antropológica
que já Roger Bastide chamava de círculo encantado do culturalismo2. Na
realidade os fenômenos de encontros entre culturas nunca acontecem num
ponto zero das civilizações. É preciso considerar a situação em que esse
encontro acontece3. A Galiléia – como qualquer outro lugar cultural – não
pode ser considerada simplesmente como um campo neutro, asséptico, onde
se dá a interação entre helenismo e judaísmo (e entre judaísmo formativo e
cristianismodepois).
Isso equivale a se perguntar: como se dá a interpenetração de
civilizações diferentes num mesmo território? Qual a relação entre Grande
e Pequena Tradição, isto é entre a cultura dominante, global - diríamos hoje
-, e as culturas periféricas, dominadas ou alternativas?
O Galileu Jesus era judeu. Até pesquisa mais recente sobre o Jesus
Histórico, a assim chamada Third Quest, terceira busca pelo Jesus histórico,
não parece ter nenhuma dúvida sobre isso4.
Mas a questão do judaísmo na Galiléia é mais complexa do que poderia
parecer. Como pensar em uma religião monolítica, isto é, em um único
judaísmo, quando inserimos na análise as categorias dialéticas da crítica
histórica? Podemos talvez imaginar, por exemplo, que opressores e
oprimidos partilhem da mesma expressão religiosa de fato? Ou devemos
imaginar “tradições outras”, menores, orais, de resistência, dos camponeses
galileus, provavelmente enraizadas nas antigas tradições israelitas?
Resistência contra quem: somente contra o helenismo ou também contra o
judaísmo oficial? E Jesus, como se insere neste contexto? Quais as
dinâmicas de resistência religiosa que ele viveu e pregou?
Parece, então, que as problemáticas acima evidenciadas encontram eco e
confirmação num comentário do historiador do cristianismo primitivo
Eduardo Hoornaert (1994), que – ao mesmo tempo – não perde a ocasião de
uma boa puxada de orelhas a “certos” exegetas:
“Os assim chamados estudos bíblicos não prestam muita atenção às religiões semitas em
si. O que lhes interessa são as tradições religiosas do judaísmo. Paradoxalmente os próprios
estudos bíblicos constituem, desta forma, um problema para a interpretação da história do
cristianismo (...). As religiões do Oriente Médio não são estudadas em si nem por si, mas quase
exclusivamente numa perspectiva bíblica. Existe por trás disso uma hierarquização de origem
ideológica: a religião bíblica (ou revelada) no centro, as demais religiões semitas (os
paganismos) na periferia. É importante que aqui, no nosso mundo colonizado, percebamos a
redundância dessa postura preconceituosa para nosso modo de nos relacionar com nossos
paganismos”.
As palavras do Hoornaert resumem bem o ponto hermenêutico e o
objetivo deste ensaio: resgatar um ponto de vista sobre a história da Galiléia
no tempo de Jesus para melhor entendermos a tradição religiosa que
constituiu o caldo de cultura da figura histórica de Jesus nos evangelhos
sinóticos. A suspeita inicial é que a definição do Galileu Jesus como judeu é
imprecisa e contribui para o esquecimento da complexa formação
sociocultural da Galiléia.
Ainda, à guisa de introdução, precisamos gastar duas palavras sobre
documentação. Quais as fontes à nossa disposição para essa pesquisa sobre
a Galiléia?
Primeiramente Flávio Josefo. Josefo é, porém, uma fonte bastante
problemática, enquanto envolvido pessoalmente na Galiléia, durante a
grande revolta de 66-67, como general do governo revolucionário de
Jerusalém. A sua posição política e os interesses ideológicos que emergem
claramente nos seus textos o tornam uma testemunha nem sempre
confiável, apesar de indispensável.
Depois os Evangelhos Sinóticos, Marcos e a fonte Q de maneira
especial, considerando-se, porém, que a intenção única dos textos não é a de
fornecer um relato histórico5. O texto evangélico é literatura religiosa de
uma comunidade, que lê o movimento de Jesus à luz das questões que a
mesma comunidade estava vivendo no tempo dela. Os últimos estudos
exegéticos apontaram, porém, uma proximidade muito grande dos relatos
da fonte Q de maneira especial com a Galiléia (Vaage, 1994).
De grande importância são também os escritos da literatura rabínica
primitiva, da qual grande parte foi produzida exatamente na Galiléia. O
problema que se põe, e no qual muitos caíram, veja-se, por exemplo, a
interpretação do que é sinagoga, é que estes escritos na sua maioria se
referem aos anos sucessivos aos acontecimentos relativos ao século I.
A Arqueologia torna-se também uma fonte essencial, especialmente
após as recentes escavações na Baixa Galiléia6.
Deixamos com Josefo (GJ 3:41-42), profundo conhecedor da região, por
causa de suas campanhas militares, a apresentação do lugar:
“Há duas Galiléias, uma chama-se a alta e a outra a baixa; ambas são limitadas pela
Fenícia e pela Síria. Do lado do ocidente estão a cidade de Tolemaida, todo o seu território e o
monte Carmelo, que outrora pertencia aos galileus e agora é dos tírios, perto do qual está a
cidade de Gamala, chamada a cidade dos cavaleiros, porque o rei Herodes para lá mandava os
dispensados. Do lado do Sul tem, na fronteira, a Samaria e Citópolis, até o rio Jordão. Do lado
do oriente os seus limites são Hipom, Gadaris e Galaunita, que são também os do reino de
Agripa. E do lado do Norte confinam com Tiro e seus territórios”.
Mais umas informações de Flávio Josefo sobre o povo galileu (GJ 3:41-
43):
“Embora estas duas províncias estejam rodeadas de tantas e diversas nações, todavia elas
sempre lhes resistiram em todas as suas guerras, porque, além de ser muito populosas, seus
habitantes são muito valentes e instruídos, desde a infância, na arte da guerra. As terras são tão
férteis e tão bem plantadas, com todas espécies de árvores, que sua abundância convida a
cultivá-las mesmo aqueles que têm pouca inclinação para a lavoura e não há terras inutilizadas.
Não somente há uma grande quantidade de aldeias e vilas, mas também um grande número de
cidades, tão populosas que a menor delas tem mais de quinze mil habitantes”.
A atitude de resistência da população da Galiléia7 contra as ocupações e
as dominações estrangeiras, destacada por Flávio Josefo, tem muito a ver
com a topografia e a grande produtividade da terra acima mencionadas.
Fora as cidades – das quais falaremos mais adiante –, o povo vivia em
pequenas aldeias construídas em montes e vales.
Para a economia deste ensaio não será o caso de aprofundar a complexa
história da Galiléia desde o fim da frágil monarquia israelita do Norte, em
722 a.C., quando a região havia sido tomada pelo rei assírio Tiglat-Pileser,
entre 733 e 732 a.C.8. O que nos interessa é que, desde 733 a.C. até 104
a.C., a Galiléia ficou politicamente separada de Judá. Durante os impérios
assírio, persa e babilônio, a Galiléia e a Samaria permaneceram separadas
como entidades administrativas autônomas de Judá, dentro da grande
satrapia Sob-o-rio. Mas enquanto os persas entregaram novamente o poder
às velhas famílias reinantes que voltavam do exílio em Judá, o mesmo não
aconteceu na Galiléia, que continuou sendo governada por oficiais
imperiais desde Megiddo.
Assim, enquanto os impérios helenísticos reconheceram os israelitas
como ethnos, como povo, nação, e, pelo menos inicialmente, não
empreenderam uma política de helenização agressiva da região, pelo
contrário, na Galiléia, começaram logo a fundar muitas cidades helenísticas
como Ptolemaida, Citópolis e as cidades da assim-chamada Decápolis no
sul-oeste da região. Mas, como para os impérios precedentes, também os
helenísticos não interferiam muito na organização de base e na cultura
própria das aldeias, que se mantinha segundo ritmos e padrões antigos e
tradicionais, como em grande parte das pequenas sociedades agrárias
antigas
A Galiléia e Jerusalém então, depois da monarquia davídica,
continuaram separadas9.
Surge, frente a esta separação, a pergunta sobre como foram cultivadas
as tradições israelitas na Galiléia? Em que forma? Onde? Quais as relações
com o judaísmo de Jerusalém? Para isso será necessário ver mais de perto o
que aconteceu nos cem anos em que a Galiléia foi governada - depois de
oito séculos - por Jerusalém.
Os estudiosos que admitem a persistência de tradições judaicas na
Galiléia durante os séculos de autonomia de Judá veem, na “reconquista
asmoneia”, a reunião das duas regiões sob uma única matriz cúltica e
cultural (Gottwald, 1998: 419). Outros autores, porém, pensando a “Galiléia
das gentes” como totalmente “pagã”, consideram os cem anos de
dominação de Judá sobre a Galiléiacomo um período de “conversão
forçada” ao judaísmo, como também Flávio Josefo queria mostrar em sua
visão um tanto nacionalista da história da Palestina deste período.
Frente a este impasse, parece mais correta a posição de Horsley (1994:
40), que sustenta a tese segundo a qual o conceito de “conversão” da
Galiléia, usado por alguns estudiosos, não seria adequado. A Galiléia, de
fato, foi conquistada militarmente pelos vários impérios, e foi disputada
entre eles até os asmoneus. O conceito de “conversão” depende de fato de
uma hipótese de pesquisa que assume a religião como algo separado das
várias implicações políticas e econômicas. E este pressuposto é
metodologicamente inaceitável.
A questão que se coloca é, de fato, e sob todos os pontos de vista: como
se deu a relação entre a “pequena tradição” galileia e a “grande tradição” do
Templo e da Torá de Jerusalém?
Com relação ao templo, parece, por exemplo, que os galileus realizavam
romarias periódicas até o Templo, em Jerusalém. Isso é aceito normalmente
como uma prova da lealdade da Galiléia ao judaísmo (Freyne, 1996: 137)10.
A bem ver, porém, estas romarias revelam um caráter bastante ambíguo,
como destaca também Horsley (1994: 145)11.
Ao mesmo tempo, testemunhos literários como os de 1En e do TLevi
relatam, em tom apocalíptico, visões recebidas na região da Galiléia.
Ambas as visões constituem também uma crítica (de idolatria) ao
sacerdócio de Jerusalém. Juntando estes elementos nasce facilmente a
suspeita de que certos ambientes galileus nutriam uma forte aversão (em
bom estilo israelita do Norte) contra o templo de Jerusalém.
Casos como o do profeta apocalíptico Jesus Ben Hanina, camponês do
interior que veio a Jerusalém, profetizando a sua ruína e a destruição do
templo, são sinais de uma certa desafeição das bases camponesas em
relação ao templo de Jerusalém. E não podemos deixar de lembrar as
profecias de Jesus de Nazaré sobre a destruição do templo (Mc 13:1-23,
14:58; Mt 26:61; Jo 2:19).
A questão de uma pretensa devoção dos galileus para com o templo
permanece, portanto, uma hipótese ainda muito obscura, e, de toda forma,
bastante aberta.
Pelo que diz respeito à Torá, não está claro se a célebre afirmação de
Josefo de que a Galiléia ficou “sob a lei dos judeus” signifique que essa
passou politicamente para a dominação dos asmoneus, ou se implique
também uma conformação dos costumes tradicionais galileus aos dos
judeus. Provavelmente as duas coisas juntas.
Nada, portanto, leva a pensar que a cultura tradicional das aldeias da
Galiléia sucumbiu “à grande tradição”. Sua força de resistência foi provada
por séculos de dominação estrangeira. Um fato, porém, chama atenção: à
diferença, por exemplo, de Judá (e também da Torá alternativa dos
samaritanos, acima citada), a Galiléia foi sempre administrada por
estrangeiros, mais interessados na cobrança de impostos dos trabalhadores
das terras que nos seus costumes e religiões. Não houve então uma
aristocracia sacerdotal local na Galiléia que cultivasse uma tradição oficial
em contraste com a tradição popular, e que lhe permitisse controlar também
ideologicamente as massas camponesas. O controle do imaginário da
tradição popular é a forma mais forte de dominação, em todos os tempos e
lugares. Esta, pouco manipulada pelos interesses dominantes, devia ter por
isso um espaço muito amplo e raízes muito fortes entre o povo.
Neste – como também em outros aspectos acima evidenciados –
concordamos com Freyne (1996: 231) quando afirma que a Galiléia do
século I é o símbolo da periferia.
Assim, enquanto periferia, a Galiléia deve ter se comportado com
relação ao “centro” cultural e religioso do século I.
Partindo do pressuposto da fácil conversibilidade dos valores religiosos
e culturais nas sociedades tradicionais, das imbricações culturais de
símbolos e expressões de diversas formas, e a compenetração entre vida
religiosa e vida social devia ser uma característica fundamental do
panorama religioso Galileu12.
E isso, no século I, após quase mil anos de ocupação estrangeira, pode
significar somente uma coisa: resistência.
Especialmente dois fatores acentuam a força de resistência cultural do
povo galileu: esta situação de perene colonização como constante ameaça,
direta ou indireta, à sobrevivência física e ideológica do povo, e uma forma
particular de resistência que marca o campesinato em geral, que Horsley
(1987: 128) descreve desta forma:
“Quando um povo colonizado é impedido de participar das decisões que definem a sua
própria vida, ele pode se voltar com um ânimo redobrado para as suas tradições culturais13. Os
ritos e as tradições religiosas passam a ter, então, uma importância especial, pois são os únicos
aspectos de sua vida que permanecem sob o seu controle. Vendo nisso uma maneira de preservar
um mínimo de dignidade, os povos colonizados tendem a se prender ainda mais às normas,
tradições e rituais de sua religião, como um símbolo da liberdade e da independência que
possuíam no passado. Isso faz com que sejam ainda mais sensíveis a qualquer violação destes
símbolos”.
Mas esta sensibilidade de resistência não encontrava necessariamente na
revolta em arma sua expressão mais adequada e autêntica. Assim James
Scott (Apud Crossan, 1994: 163-164):
“As rebeliões camponesas são raras e acontecem apenas em grandes intervalos de tempo.
A grande maioria é esmagada sem a menor cerimônia. Por isso creio ser mais importante estudar
o que poderíamos chamar de formas de resistência cotidiana dos camponeses – a luta prosaica,
mas constante, entre os camponeses e aqueles que procuram extrair-lhes trabalho, impostos,
aluguel e juros.(...) Estas formas de luta de classe exigem pouco planejamento e organização.
(...) Elas evitam qualquer confrontação direta ou simbólica com a autoridade”.
É esta luta cotidiana, resistência prosaica de corpos e símbolos, da qual
o povo camponês lança mão para sobreviver à constante opressão de sua
vida e de suas instituições tradicionais, que parece ser a condição de vida do
povo galileu.
Considerando todos estes elementos, a “lei dos judeus” de Jerusalém
deve ter encontrado muitos obstáculos para ser implantada nos vales da
Galiléia. Pois uma outra lei, profundamente “vivida” pelos camponeses,
estava “escrita nos corações” dos galileus.
Podemos afirmar então, com um certo grau de probabilidade histórica,
que os galileus, longe de considerar os asmoneus como libertadores dos
impérios helenísticos e jurar a eles fidelidade, resistiram à “lei dos judeus”,
seja enquanto “tradição de Jerusalém” (templo, sacerdócio e Torá) que os
seus ancestrais israelitas rejeitaram, seja como “grande tradição”, lei e
cultura dos mais fortes, opondo a ela as antigas tradições populares das
aldeias, capazes de grandes resistência.
Uma resistência cotidiana, silenciosa, que não precisava, em geral, de
grandes atos de ruptura, mas que minava a partir de baixo o sistema
ideológico dominante.
Quanto aos galileus, eles não estão sozinhos nesta resistência: a mesma
atitude é encontrada nos povos da Peréia e da Idumeia, e em outros grupos
ligados à experiência do banditismo social, como também na comunidade
de Qumran. Esta última, apesar de cultivar – à diferença dos galileus – a
Torá da Judéia, baseava a sua vida sobre algo ligado fortemente às tradições
israelitas do Norte: a aliança mosaica (Crossan, 1994: 157).
Mas no I século uma outra ameaça já preocupava as aldeias galileus – os
romanos.
Os romanos desde o começo de sua conquista da Palestina, fiéis a sua
estratégia de governar as nações indiretamente, por meio de uma elite
dirigente local, confirmaram a dinastia asmoneia no poder. Isso significou
concretamente, para os galileus, uma dupla tributação: pois além de terem
de pagar os tributos para Hircano e seus descendentes, agora eram
obrigados a entregar para Roma um quarto da colheita a cada dois anos. A
situação era muito grave e uma erupção de banditismo social é sinal disso.
A repressão dos romanos, que Tácito chamou de “salteadores do mundo,
que revolvem o própriomar”, foi extremamente brutal14.
Esta situação acabou enfraquecendo a dinastia asmoneia, já dizimada
por anos de guerra civil. Os romanos apontaram assim Antipater, um
ambicioso aristocrata idumeu, como “governador de toda Judá”, isto é da
Palestina toda. Este último designou o seu filho, Herodes, como governador
militar da Galiléia. Começa assim uma resistência do povo da Galiléia
contra o governador estrangeiro (idumeu). Três anos difíceis, até Herodes,
no ano de 37 a.C., ser proclamado “rei de Judá” pelos romanos,
interessados em consolidar o controle da Síria e da Palestina, contra as
recorrentes ameaças dos partas no norte. Herodes reprimiu duramente toda
oposição.
Aparentemente, Herodes, talvez para alcançar uma certa legitimidade,
manteve as instituições judaicas, o sumo sacerdócio, o templo e a Torá
intactas. Até se casou com a filha de Hircano II, Marianna, para dar a
impressão de uma certa continuidade com a dinastia asmonéia. Mas de fato
ele usou destas instituições para consolidar o seu poder e seus projetos
pessoais. A reconstrução do templo, num estilo helenista-romano, era a
edificação de um monumento de propaganda político-institucional, mais
que um serviço à comunidade judaica. Herodes foi muito mais um
imperador helenista do que um rei judeu. Prova disso é que, ao mesmo
tempo, edificou um templo de mármore branco dedicado a César Augusto,
bem perto da Galiléia, na região de Dã. Na Alta Galiléia fundou muitas
fortalezas e, no interior de seu programa de reforma administrativa, tornou
Séforis a principal capital de governo (e imposição fiscal) da região.
E para o campesinato galileu a situação ficou ainda pior. A imposição,
por parte dos romanos, de Herodes como rei-cliente, arrendatário,
acrescentou às primeiras duas (de Roma e da aristocracia sacerdotal de
Jerusalém) uma terceira camada de tributação. E devia ser bem pesada,
vistas as obras propagandísticas que Herodes realizou. Estima-se em
duzentos talentos (dourados) por ano somente a remessa que Herodes devia
enviar, enquanto rei-arrendatário, para os romanos (Crossan, 1994: 257)15.
Com um sistema tão pesado de tributação (tripla!) o campesinato da
Galiléia entrava numa espiral de endividamento de onde saía muitas vezes
sem-terra. O dinheiro coletado, de fato, não era investido pela aristocracia
para melhorar a produção, mas para adquirir sempre mais terra e para
formar capital para realizar empréstimos.
Se a espiral do endividamento pode parecer algo estranho, considere-se
que o empréstimo sempre foi algo proibido pelas leis israelitas e judaicas,
por causa da proibição bíblica (Ex 22:25, 23:20) de cobrar juros. “Feita a
lei, feito o engano” – já dizia um antigo provérbio mediterrâneo – e o
problema foi circundado, por meio da seguinte escamoteação: “se o devedor
pagava o empréstimo dentro do prazo, o credor não perdia nada e ganhava
um amigo agradecido. Se o pagamento era feito depois do prazo, o que
talvez era o que se esperava na maioria dos casos, a multa cobrada equivalia
a 20% do valor do empréstimo” (Crossan, 1994: 257-258). Uma segunda
dificuldade era a lei bíblica do jubileu (Dt 15), onde todas as dívidas
deviam ser canceladas no sétimo ano. Isso implicava claramente uma
dificuldade a cada dia maior de encontrar empréstimo à medida que o
sétimo ano se aproximava. A solução, atribuída ao grande rabino Hillel, foi
o prosbul, um documento que permitia ao tribunal cobrar dívidas não pagas,
mesmo durante o sétimo ano. Pois a lei bíblica referia-se aos indivíduos, e
não aos tribunais!
Assim, como resultado de tudo isso, uma quantidade sempre maior de
camponeses era empurrada para baixo da linha de subsistência, e até para a
marginalidade.
O fato talvez mais grave é que o empobrecimento progressivo do povo
quebrava as estruturas de ajuda de tipo clânico que asseguravam a
sobrevivência dos mais pobres nas aldeias da Galiléia. Nem é preciso
recordar aqui o ideal tribalista do Israel pré-monárquico para entender como
estas estruturas funcionavam. Trata-se de um fenômeno tipicamente rural,
de comunidades de subsistência, anteriores ao modelo do mercado, e que
até hoje sobrevivem (em sentido estreito) n os cantos mais remotos do
mundo globalizado.
Ontem como hoje a ruptura dos mecanismos sociais de assistência
mútua desencadeia a espiral da miséria. Testemunha disso é, por exemplo, a
massa de doentes que procuram Jesus nos evangelhos sinóticos, dando a
impressão de uma sociedade à beira do colapso. Os relatos dos Evangelhos,
especialmente as parábolas, estão cheios de personagens endividadas (Mt
18:23-26) e de sem-terra que viram lavradores assalariados e até diaristas
(Mt 20:1-6); além disto, também, é mencionado um patrão que mora longe
(na cidade?) e deixa tudo para o caseiro (Mt 21:33), o desespero dos pobres
que acabam assaltando (Mt 21:34-39) ou explorando os outros (Mt 18:27-
30, 24:48-50), a insegurança das estradas por causa dos assaltos (Lc 10:30),
funcionários corruptos (Lc 16:1-7), luxo que é uma verdadeira ofensa para
os pobres (Lc 16:19-21), gritando vingança na frente de Deus.
Nas capitais regionais como Séforis ou Tiberíades, os impostos eram
avaliados e as dívidas registradas. E não nos surpreende que foram estas
cidades os principais alvos das incursões dos bandidos e das revoltas dos
desesperados.
Houve uma na grande revolta que estourou logo após a morte do rei
Herodes. Ela foi tão grave que Varo, o legado romano da Síria, precisou de
mais de três legiões para reprimi-la. A repressão por sua vez foi tão dura
que levou a duas mil crucificações. Por quê?
Se pudéssemos ver essas cruzes, provavelmente enxergaríamos em
algumas delas a inscrição “Rex Ivdeorvm” – como na de Jesus. Pois os
movimentos como os de Judas, filho de Ezequias16, Simão da Peréia e
Atronges tinham em comum um sonho de fundo: o do messias. Eram
movimentos milenaristas messiânicos, que – depois da morte do rei
estrangeiro Herodes – acreditavam tivesse chegado à hora de um messias,
um novo Davi talvez, ou um outro homem de deus voltar a governar sobre
Israel.
Esse sonho era percebido claramente como uma ameaça direta pelos
dominadores romanos.
Uma figura extraordinária, que devia ter ficado impressa na memória do
povo da aldeia de Nazaré, é a de Judas, filho de Ezequias, uma espécie de
Robin Hood galileu, um bandido que assaltou o palácio real de Séforis
(onde estavam guardados, além das riquezas, os documentos de
empréstimo). Foi até proclamado rei e partiu para atacar as propriedades
dos aristocráticos. Ele obteve com facilidade o apoio popular, por causa de
suas pretensões de independência. A expectativa messiânica popular devia
estar ainda bastante enraizada no povo simples das aldeias da Galiléia.
Talvez mais um sinal de como as tradições israelitas permaneciam nos
alicerces da estrutura ideológica do povo.
Outros dois “messias”, dos quais temos notícias, foram Simão, um servo
de Herodes, que “assumiu o diadema” – segundo nos diz Josefo – na Peréia,
e Atronges, um simples pastor judeu. Comenta a respeito desse último o
aristocrático Flávio Josefo (GJ 2:57-58,60-62): “um mero pastor tinha a
temeridade de aspirar ao trono”. Mas se as origens de Atronges deixavam
Josefo atônito, o imaginário popular judeu podia reconhecer facilmente em
Davi o modelo do rei-pastor, base ideológica do messianismo popular, em
particular da Judéia (Crossan, 1994: 238).
Na mesma guerra (entre 66 e 70), dois líderes importantes foram
pretendentes messiânicos: Menaé (filho de Judas, o galileu) e Simão
Bargiora (filho de Gioras), que acabou se tornando o principal comandante
político-militar da resistência de Jerusalém quando a cidade sagrada foi
sitiada pelos romanos.
Até a revolta que estourou em 132 recebeu o nome do seu líder, um tal
de Simão bar Cosiba, que ganhou o apelido messiânico de Bar Kokba,
concedido a ele pelo Rabbi Akiba, um dos principais rabinos da época.
Endividamento, espiral de miséria, banditismo social e outras formas de
revolta: esse é o cenário da Palestina no tempo de Jesus.
Não entraremos no mérito do banditismo social

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