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Autora: Camila Cristina Souza Lima Colaboradoras: Profa. Silmara Machado Profa. Christiane Mazur Doi História da Educação Professora conteudista: Camila Cristina Souza Lima Natural da cidade de Jaú, no interior do estado de São Paulo, tem bacharelado e licenciatura em História (2008), pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH‑USP). É mestra em História Social (2012), também pela FFLCH‑USP – com bolsa de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) –, e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo (2018) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU‑USP). Desde a graduação desenvolve pesquisas relacionadas à história moderna de Portugal e Espanha, com enfoque na cultura letrada e na relação entre arquitetura, poder e conhecimento entre os séculos XV e XVI. Atuou como professora de História em cursinhos populares e em escolas de ensino básico (ensino fundamental II e ensino médio), como orientadora on‑line do curso para professores da rede estadual de ensino de São Paulo (Projeto Redefor) e é professora do ensino superior no curso de Licenciatura em História da UNIP desde 2014. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L732h Lima, Camila Cristina Souza. História da Educação / Camila Cristina Souza Lima. – São Paulo: Editora Sol, 2023. 188 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517‑9230. 1. Educação. 2. Escola. 3. Redemocratização. I. Título. CDU 37(091) U517.30 – 23 Profa. Sandra Miessa Reitora Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice‑Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice‑Reitora de Pós‑Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice‑Reitora de Administração e Finanças Prof. Dr. Paschoal Laercio Armonia Vice‑Reitor de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice‑Reitor de Planejamento Profa. Melânia Dalla Torre Vice‑Reitora das Unidades Universitárias Profa. Silvia Gomes Miessa Vice‑Reitora de Recursos Humanos e de Pessoal Profa. Laura Ancona Lee Vice‑Reitora de Relações Internacionais Prof. Marcus Vinícius Mathias Vice‑Reitor de Assuntos da Comunidade Universitária UNIP EaD Profa. Elisabete Brihy Profa. M. Isabel Cristina Satie Yoshida Tonetto Prof. M. Ivan Daliberto Frugoli Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. M. Deise Alcantara Carreiro Profa. Ana Paula Tôrres de Novaes Menezes Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Leonardo Dantas do Carmo Vera Saad Sumário História da Educação APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 BREVE CARACTERIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO PERÍODO MEDIEVAL .......................................... 11 2 A CATEQUESE E O INÍCIO DA COLONIZAÇÃO: OS JESUÍTAS E A EDUCAÇÃO DA ELITE ..................30 3 A REFORMA POMBALINA ............................................................................................................................. 50 4 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL DO PERÍODO COLONIAL À REPÚBLICA ......................62 Unidade II 5 AS PRIMEIRAS DÉCADAS DA REPÚBLICA .............................................................................................. 82 5.1 Iniciativas oficiais e a experiência anarquista .......................................................................... 82 5.2 A Era Vargas e as reformas do ensino ........................................................................................103 6 A ESCOLA NOVA .............................................................................................................................................115 Unidade III 7 BRASIL E A EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA ........................................................................................131 7.1 Entre a Era Vargas e a Ditadura Militar .....................................................................................131 7.2 A Ditadura Militar e a Educação ..................................................................................................148 8 A EDUCAÇÃO NA REDEMOCRATIZAÇÃO E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL ...............161 7 APRESENTAÇÃO Nas páginas a seguir você percorrerá alguns momentos, processos, eventos e aspectos importantes para se compreender a história da educação. Mas por que conhecer formas de ensino e instituições que existiram no passado? Quando estudamos História podemos relativizar a maneira como nos organizamos em nosso próprio tempo. As preocupações que temos em relação à educação, nossos objetivos, concepções, quem compõe o alunado, os currículos educacionais, as correntes pedagógicas etc., tudo isso varia ao longo do tempo, são construções históricas, respondem ao contexto em que vivemos e dialogam com o que permaneceu do passado. Nem sempre tivemos escolas como as que conhecemos hoje, com professores, salas de aulas, meninos e meninas de mesma idade em uma turma. Nem sempre existiram as disciplinas que hoje estudamos. O conhecimento a ser socialmente partilhado responde à visão de mundo e às necessidades de cada sociedade em cada momento histórico. Alguns dos conhecimentos e disciplinas que eram estudados no passado podem continuar a fazer parte de nossa vida escolar, como a filosofia grega, outros são abandonados, como os estudos de lógica escolástica. A língua utilizada nos estudos e nos ambientes educativos também pode mudar e não necessariamente é a mesma utilizada por estudantes e professores em suas vidas fora dos muros das escolas. As universidades medievais tinham o latim como língua do conhecimento, hoje escolas básicas internacionais ou universidades com currículo internacional podem ter aulas ministradas em inglês, mesmo que estejam em países cuja língua oficial é o espanhol, o francês, o português ou o turco. O perfil daqueles que acessam a educação também pode mudar. Em alguns casos apenas um grupo específico da sociedade responsável por certas funções administrativas recebia educação formal; ou as elites podiam ser educadas de uma determinada forma para reforçar sua distinção em relação aos que trabalham; em certos momentos nem mesmo reis eram alfabetizados; em outros, apenas homens podiam estudar. O estudo da história pode nos tornar mais conscientes das heranças que formam o nosso presente. Nesse sentido, iniciamos aqui o convite para, nas próximas páginas, traçarmos caminhos, conhecermos processos e retomarmos experiências passadas sobre diferentes formas de se compreender e organizar a educação. Para tanto, são necessários recortes e escolhas sobre o que será estudado; os conteúdos e discussões aqui apresentados foram selecionados tomando como referência o que pode contribuir para entendermos mais especificamente a história da educação no Brasil e, dessa forma, perceber de maneira mais complexa seu contexto de atuação profissional como futuro educador. A abordagem das páginas que se seguem se centrará sobretudo na reflexão sobre diferentes sistemas escolares e pedagógicos ao longo do tempo, iniciando na Idade Média e percorrendo até próximo aos dias atuais. 8 Dessa maneira, a educação apresentada neste manual deve ser compreendida a partir de seu contexto social, histórico e cultural, gerando diferentes concepçõesde educação em nosso país, cujo estudo nos auxilia a relativizar nossas próprias percepções atuais sobre o ensino e o papel do educador. Também a relação entre as formas de poder e de governo e suas implicações na educação, inclusive sobre a abrangência do acesso ao ensino institucionalizado. Esse estudo também nos ajuda a compreender e buscar formas de superar problemas e desafios específicos da educação em nosso país, como a exclusão e a desigualdade social brasileira. Ou seja, ao longo dos estudos da disciplina História da Educação serão apresentados alguns conceitos mais amplos relacionados aos estudos históricos que contribuirão para a busca de uma compreensão crítica sobre nossa realidade. Por isso, os objetivos a serem buscados ao longo deste estudo são: • desenvolver consciência crítica sobre as relações entre educação e sociedade; • identificar e analisar as características econômicas, políticas e socioculturais dos diferentes períodos estudados em sua correlação com os processos educacionais; • analisar as influências das diferentes manifestações religiosas no processo e na prática educativa ao longo do tempo e do espaço. Mais especificamente, ao tratar dos conteúdos e discussões aqui apresentados, buscamos compreender: • o que é a história da educação e a importância desta em sua formação como educador; • quais processos educativos foram desenvolvidos ao longo do tempo, desde a Idade Média (especialmente sua influência na educação promovida pelos jesuítas) até a atualidade; • quais processos educativos ocorreram no Brasil e quais suas relações com o sistema social, identificando crises, avanços e inovações. Esperamos que as discussões aqui apresentadas sejam instigantes e que forneçam ferramentas para promover novas pesquisas e estudos sobre aspectos do passado educacional a partir de sua atuação profissional, e que a compreensão dos temas abordados auxilie nas escolhas que farão parte de sua trajetória como educador. 9 INTRODUÇÃO A disciplina História da Educação está dividida em três unidades. Como nosso enfoque destaca a educação desenvolvida em território brasileiro, iniciamos nosso percurso na Idade Média, momento em que a religião cristã tem papel decisivo nos rumos da educação na Europa, o que desempenhará forte influência em muitos aspectos da colonização da América Portuguesa, território que depois formaria o Brasil. Na primeira unidade estudaremos o ensino desenvolvido nos mosteiros e nas universidades e o surgimento da Companhia de Jesus em princípios da Idade Moderna, que se tornaria uma das principais agentes da Igreja católica no contexto das Reformas Religiosas e responsável pela missionação e pelo ensino nos territórios sob domínio de Portugal no além‑mar. Prosseguiremos estudando a educação no período colonial, que se transformará ao longo do tempo – um dos momentos de destaque nessas mudanças será a reforma empreendida pelo primeiro‑ministro do rei dom José I, o Marquês de Pombal, influenciado pelas ideias iluministas, que são aplicadas de forma adaptada ao contexto monárquico e católico português. Por fim, trataremos do período imperial após a Proclamação de Independência do Brasil, a transição para o fim da escravidão no país e as implicações desse processo nas concepções e políticas educacionais do momento. Cabe lembrar que a escravidão foi uma das instituições mais duradouras de nossa história e que, mesmo após seu fim, continuou a exercer influência nas instituições e nas desigualdades existentes em nosso país. Uma série de ações ocorridas nesse momento impediram que as populações escravizadas ou descendentes dos escravizados pudessem ser plenamente inseridos na sociedade. Nesse sentido, o acesso à educação foi um dos direitos dificultados às pessoas que se tornavam livres, mas continuavam excluídas em sua maioria. Na segunda unidade abordaremos as primeiras décadas da República brasileira até a Era Vargas. Como um país que mudava de sistema político e cujas elites passavam a ocupar de forma mais direta o poder, os projetos sobre o que se pretendia na construção desse novo Estado passam também por iniciativas e experiências distintas na educação. Trataremos das propostas e possibilidades relacionadas à educação das mulheres, da proposta de renovação da educação denominada Escola Nova e o Manifesto dos Pioneiros. Abordaremos também reformas realizadas pelo governo a fim de adequar a educação ao projeto político no poder. Por fim, na terceira unidade trataremos inicialmente do período entre a Era Vargas e a Ditadura Militar, com as propostas relacionadas à superação das desigualdades e da formação de cidadãos críticos, como a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, e dos esforços na redução do analfabetismo. Também estudaremos as reformas realizadas no período da Ditadura Militar e os esforços de ampliação da cidadania e dos direitos dos brasileiros no processo de redemocratização, buscando a universalização da educação básica e os desafios que ainda precisam ser superados em nossos tempos. Desejamos que esses conteúdos contribuam para sua formação como educador e como cidadão brasileiro, mais consciente dos caminhos percorridos para se resultar no quadro atual da educação nacional e das dificuldades a serem enfrentadas. 11 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Unidade I 1 BREVE CARACTERIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO PERÍODO MEDIEVAL Tradicionalmente, a história é dividida em alguns períodos: Pré‑História, Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Essa periodização toma como referência a Europa e sua relação com as demais partes do mundo e já passou por muitos questionamentos. Contudo, continuamos a utilizá‑la em materiais didáticos e mesmo para a pesquisa acadêmica, ainda que de maneira mais crítica e considerando cada recorte de modo mais complexo. Para estudar o passado muitas vezes precisamos de alguns artifícios interpretativos, ou seja, utilizar títulos, categorias, comparações que não existiam no momento estudado, mas que nos ajudam a entender ou, ainda, traduzir uma realidade que pela distância do tempo pode se tornar tão distinta da nossa e, por isso mesmo, muito difícil de compreender. Vamos retomar brevemente essa periodização. Assim teríamos: • Pré‑História: período que compreende o surgimento da nossa espécie no continente africano (Homo sapiens sapiens) até a criação da escrita (por volta de 3500 a.C.). • Antiguidade: do surgimento da escrita à Queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) – tradicionalmente estudamos nesse período os antigos egípcios, os povos da Mesopotâmia (sumérios, acádios, babilônios etc.), os gregos, os persas, os fenícios, os hebreus e os romanos. • Idade Média: a partir do que passou a ser chamado de Queda do Império Romano do Ocidente até a Queda do Império Romano do Oriente (1453) – costumamos também subdividir o período em Alta Idade Média (do século V ao IX) e Baixa Idade Média (do século X ao XV). • Idade Moderna: da Queda do Império Romano do Oriente até a Revolução Francesa (1789), compreendendo o período em que acontecem as viagens de expansão de Portugal e Espanha, que iriam conectar territórios muito distantes entre si através do comércio iniciado por esses dois reinos e depois a conquista e colonização do continente americano. • Idade Contemporânea: da Revolução Francesa até os dias atuais. Sobre todos os períodos da História, os marcos temporais de início e fim podem ser questionados, e indicaremos, ainda que de forma bastante breve, algumas das questões de periodização sobre os momentos que farão parte de nosso percurso nesta disciplina. 12 Unidade I No caso da Idade Média, período em que iniciaremos nossos estudos, as discussões são bastante interessantes e indicam preocupações sobre a duração de certos processos históricos. Nesse sentido, é comum encontrar em pesquisas sobre o século V o termo Antiguidade Tardia, o que indica a postura interpretativa de se ressaltar os elementos de continuidade em relação aoImpério Romano nesse momento. Como sintetiza Marcelo Cândido da Silva, pesquisador e professor de História Medieval: A Europa medieval nasceu do mundo romano, ou melhor, das transformações que esse mundo experimentou graças às migrações bárbaras, à difusão do cristianismo, à descentralização do poder político e ao fortalecimento da aristocracia rural (SILVA, 2019, p. 15). Na primeira fase do período medieval, a Alta Idade Média, vários reinos se formaram, mas sem conseguirem permanecer por muito tempo devido às disputas e novas levas migratórias ocorridas nos primeiros séculos do período. Aqueles que ficaram conhecidos pejorativamente na história como “povos bárbaros” eram compostos por diferentes grupos humanos que foram se integrando ao Império Romano desde muito antes de sua queda. O termo “bárbaro” foi emprestado dos gregos para designar aqueles que não eram romanos, porém alguns desses povos foram incorporados ao império de forma pacífica, recebendo a cidadania romana, o que dava acesso a diversos direitos, entre eles de não ser escravizado. Alguns dos “bárbaros” foram aliados políticos e militares do império, recebendo o título de rex (rei). Muitos dos filhos desses chefes recebiam a educação romana, aprendendo latim e retórica, o que também ajudou a manter na Idade Média a valorização de certos conhecimentos do mundo romano. A partir do Édito de Milão em 313 d.C., decretado pelo imperador Constantino, o Império passava a ser neutro em relação à religião, encerrando as perseguições feitas contra aqueles que não professavam a religião oficial, entre eles os cristãos. Em 380, o imperador Teodósio então tornou o cristianismo a religião oficial do Império, com o Édito de Tessalônica. As consequências dessa união entre poder político e religião cristã foram longas em nossa história, sendo que, apesar da fragmentação política existente nos séculos posteriores (Idade Média), a Europa tinha uma unidade religiosa, a chamada cristandade, ou seja, a identificação entre os diferentes povos e reinos que professavam o cristianismo no Ocidente. Com exceção dos territórios da Península Ibérica (que hoje são Portugal e Espanha), que foram cristãos durante a existência dos reinos dos suevos (entre os séculos V e VI) e dos visigodos (entre os séculos V e VIII), mas posteriormente tiveram seu território dominado pelos muçulmanos, a maior parte dos reinos formados na Europa do século VIII era cristã (SILVA, 2019). Além da manutenção do cristianismo como religião oficial, esses reinos mantinham a administração romana e o latim como língua oficial, com a qual eram redigidos os documentos oficiais, inclusive as leis, ainda que a língua falada no dia a dia fosse distinta. A população em sua maioria não era alfabetizada e vivia no campo, assim como fora nos períodos anteriores e continuaria sendo até a Revolução Industrial, entre o século XVIII e XIX. A diferença desse momento é que o poder político, econômico e jurídico se encontrava nas elites rurais, por isso utilizamos o termo dominação senhorial, ou senhorio territorial, para identificar essa nova forma de poder do período, que não se encontrava mais nas cidades e nas 13 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO instituições urbanas, como fora na Antiguidade (SILVA, 2019). Em livros didáticos você poderá encontrar também o termo feudalismo para descrever esse momento. A questão do analfabetismo de grande parte da população durante a Idade Média é bastante debatida, inclusive na história da arte. Seria esse um dos motivos que justificariam e reforçariam o uso de imagens nas igrejas. Primeiramente, porque a partir do momento em que o cristianismo passa a ser a religião oficial do Império Romano, há influência da cultura e da religião que anteriormente ocupavam essa posição. Se antes do século III eram pouco comuns representações iconográficas entre os cristãos, estas passam a ser cada vez mais recorrentes depois do Édito de Tessalônica. Além disso, o papa Gregório Magno (540‑604), ao escrever uma carta ao bispo de Marselha que vinha destruindo imagens religiosas feitas em sua diocese, apresentou um argumento contra essa atitude que ficou bastante celebre na história. Ainda que a adoração das imagens não fosse permitida e estivesse em contradição com os preceitos religiosos, estas não deveriam ser destruídas porque sua verdadeira função e utilidade era ensinar sobre o que deveria ser adorado. As imagens tinham a função didática de ensinar as histórias bíblicas àqueles que não sabiam ler, lembrar o exemplo de vida, os milagres e martírios sofridos pelos santos e como tinham se mantido como bons cristãos até o último suspiro. As imagens também comoviam mais do que as palavras, o que era importante para a conversão e manutenção da fé dos fiéis (CARMONA MUELA, 1998). Lembrete As imagens foram consideradas na Idade Média como forma privilegiada de ensinar as histórias religiosas àqueles que não sabiam ler, que eram a maioria da população. No ambiente rural, onde grande parte da população vivia, também foram construídos muitos mosteiros. Os monges eram homens que abandonavam as cidades para se retirar em locais distantes das aglomerações e da vida comum, vivendo com outros companheiros que partilhavam desse mesmo desejo de se afastar do seculum (que seria a vida mundana) para buscar na solidão maior proximidade com Deus, uma vida santa, renegando os pecados que os tentavam (MICCOLI, 1989). As comunidades de monges que se formavam passavam a seguir as regras que foram preconizadas pelos apóstolos, o abandono dos bens, do convício com os familiares, a ausência de distinção entre os crentes. No entanto, ao longo dos séculos, diferentes grupos monásticos foram se formando, nem sempre tão preocupados em manter uma vida simples e isolada do mundo. Ainda nesse primeiro momento de proliferação das comunidades monásticas no Ocidente, entre os séculos V e VI, o desejo de fuga do mundo e busca de Deus pelos religiosos mesclou as referências bíblicas do Novo Testamento com elementos da filosofia antiga, sobretudo do estoicismo e o neoplatonismo, organizando as justificativas teológicas para a forma de vida escolhida pelos monges, que fugiam das angústias, fraquezas e misérias comuns aos mortais, e em suas comunidades passavam a se dedicar à procura de Deus na contemplação e no silêncio. 14 Unidade I Os monges seguiam regras escritas que regiam a vida nos mosteiros e estavam submetidos à autoridade de um superior, responsável pelo local. O controle das próprias vontades (ascetismo) e aplicação de um determinado método para se alcançar o conhecimento da religião eram a base desse modo de vida. O momento de instabilidade e perigo vivenciado na Europa e os ataques às cidades que ocorriam quando novas levas migratórias avançavam pelo continente contribuíram para que mais homens e mulheres aderissem à vida monástica. Nas palavras de Miccoli (1989, p. 36): “Creio que será difícil negar que o monge não é, então, apenas uma alma em busca de Deus na oração e na solidão, mas também um homem que necessita de tranquilidade e de paz, num mundo cada vez mais hostil e difícil”. Assim, os mosteiros eram locais autossuficientes, organizados e que se apresentavam ao mesmo tempo como “um centro de oração, de trabalho e também de cultura” (MICCOLI, 1989, p. 36). As regras monásticas normalmente indicavam que os monges deveriam aprender a ler, o que os colocava em posição distinta da maioria da população. Também deveriam dedicar três horas diárias de leituras espirituais, que seriam decorados e depois repetidos oralmente em suas meditações (meditatio). Para isso os mosteiros contavam em seu interior com biblioteca, escola e scriptorium. Essas escolas monásticas substituíam as antigas escolas que existiram até o século VI e que ainda se ligavam à tradição romana de ensino, laicas e públicas. Conforme o mundo romano se transformava no mundo cristão medieval, a educação – assim como a maior parte das instituições e da cultura– passava a ser monopólio da Igreja, uma das grandes herdeiras do Império Romano. O papel da Igreja na educação medieval aparecia inclusive nos documentos da época, nos concílios provinciais e regionais, que indicavam que o bispo e os responsáveis pelas paróquias mais importantes tinham a obrigação de promover o ensino nos territórios em que exerciam seus poderes (VERGER, 2006). Os cargos da Igreja não tratavam puramente de assuntos religiosos e “da alma” dos fiéis – muitas das funções que hoje compreendemos como atribuições dos poderes públicos eram ocupadas pelos religiosos, tanto do clero regular (que seguiam uma regra específica, como os monges) quanto para o clero secular (padres, bispos, cardeais etc.) Os scriptoria (singular scriptorium), que se encontravam dentro dos mosteiros, eram os locais em que se produziam os manuscritos. Esses textos podiam ser cópias de obras anteriores, o que fez dos mosteiros espaços de enorme importância na preservação de textos antigos, que eram estudados e geravam importantes debates teológicos. Também poderiam ser textos novos, seja de caráter religioso ou não, como tratados, anais, crônicas, histórias etc. Alguns reis, aliados ao poder e às instituições da Igreja, também desempenharam importante papel na manutenção de elementos da cultura antiga e na construção de uma forma própria de organizar o ensino. Na Alta Idade Média, dentre os reinos formados, os francos tiveram existência mais duradoura, além de terem sido importantes agentes na consolidação do poder papal e na formação da cristandade, especialmente durante sua segunda dinastia, chamada de carolíngia, momento em que governou, entre outros, o rei Carlos Magno. No Natal do ano de 800, esse monarca foi coroado imperador pelo papa, evento que selava a aliança entre o poder temporal e espiritual, representados por esses dois 15 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO importantes atores políticos do momento. Carlos Magno oferecia ao papa proteção militar contra os diferentes inimigos que tentavam tomar o controle dos territórios do centro da Itália, especialmente Roma, sede papal, além de atuar de forma muito enfática na conversão dos povos que passava a dominar. Nas palavras de Marcelo Cândido da Silva: Carlos Magno governou um território que compreendia praticamente a Europa Ocidental atual, à exceção da Península Ibérica e das Ilhas Britânicas, chegando a ser qualificado, por um monge irlandês do século VIII, de “chefe do Reino da Europa”. O termo “Europa” adquiriu, sob os carolíngios, um sentido político e religioso, de espaço que reunia os católicos que estavam submetidos à autoridade temporal do imperador e à autoridade espiritual do papa romano (SILVA, 2019, p. 39). Com isso, o poder do papa adquiriu maior peso, diminuindo a influência que sofria de Constantinopla, e ele passou a exercer sua autoridade sobre as igrejas do Ocidente, o que persistiu mesmo após a desintegração do próprio império carolíngio, com o surgimento de inúmeros principados entre os séculos IX e X. Nesse momento, muitos mosteiros foram fundados na Itália, Germânia (Alemanha), Gália (França) e pelas Ilhas Britânicas (Reino Unido), formando uma verdadeira rede de espaços de cultura e de presença religiosa na paisagem europeia. A maioria dessas comunidades passou a seguir a regra de São Bento por influência do papa e do imperador (MICCOLI, 1989). Se os monges já tinham anteriormente a função de converter a população rural e de manter escolas para a formação do clero e para as elites laicas, essa função foi fortalecida nesse momento. Inclusive muitos mosteiros tinham duas escolas, uma interna, voltada para a formação dos monges, e outra externa, aberta às elites locais (VERGER, 2006). Além de fortalecer e engrandecer a rede de mosteiros e escolas já existentes, Carlos Magno criou a Escola do Palácio, onde os mais importantes eruditos do Ocidente ensinavam literatura clássica, direito, liturgia e gramática. Estavam entre os professores dessa escola: Paulo (Diácono), Pedro de Pisa, Paulino de Aquileia e Alcuíno de York. Estabeleciam‑se ali um conjunto de conhecimentos que deveriam servir às elites laicas em suas funções na administração do reino, e os membros do clero deveriam adquirir: um conhecimento mais aprofundado das regras monásticas, dos cânones conciliares (a legislação da Igreja) e, sobretudo, das Escrituras, de forma que pudessem ensinar corretamente os preceitos divinos ao rebanho de fiéis, corrigindo, ao mesmo tempo, todos os comportamentos pecaminosos (SILVA, 2019, p. 40). Outras escolas foram fundadas, como nas cidades de Tours, Fulda, Auxerre e Corbi. 16 Unidade I Figura 1 – Detalhe da Bíblia de Saint‑Riquier: exemplo de escrita minúscula carolina Disponível em: https://cutt.ly/CB007T8. Acesso em: 24 ago. 2022. Também ocorre uma tentativa de padronização da escrita para facilitar a compreensão. Devemos lembrar que por muito tempo os textos circularam apenas de forma manuscrita, e garantir que a letra do copista fosse compreensível ao maior número de pessoas era muito importante. Esse modo de escrita se chamava minúscula carolina ou minúscula carolíngia e tinha forma arredondada e mais regular. Muitas obras antigas apenas são conhecidas hoje devido às cópias realizadas em mosteiros carolíngios. Todos esses esforços realizados pelos francos, especialmente pelo imperador Carlos Magno, fizeram que esse momento fosse conhecido como Renascimento Carolíngio. A educação realizada nessas escolas monásticas que proliferavam pela Europa e dominaram o ensino da Alta Idade Média era baseada na patrística, ou seja, na autoridade dos padres da Igreja, que são os primeiros autores a organizar e consolidar o pensamento cristão, como Santo Agostinho e São Jerônimo. Além disso, certos conhecimentos dos antigos também eram mobilizados nessas instituições, sobretudo quando se considerava que seus ensinamentos poderiam auxiliar na compreensão das Sagradas Escrituras. Para isso, os cristãos estudavam as chamadas artes liberais, especialmente as artes que formavam o Trivium (gramática, retórica e dialética), que eram as disciplinas voltadas à escrita e à argumentação, bem como leitura e compreensão de texto, ferramentas importantes para se ler e comentar os textos religiosos. 17 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A partir do século XII, auge do desenvolvimento dos mosteiros na Europa, o cenário educacional começou a mudar. Ainda que as escolas monásticas continuassem a existir, seu papel passou a segundo plano, e as escolas ligadas às catedrais ganharam maior importância. Além disso, cada vez mais mestres passaram a ensinar de forma independente, ganhando fama, o que atraía estudantes, inclusive de locais distantes, que se dirigiam a certas cidades, para pagar pelas aulas desses grandes eruditos. Paris se apresentava como um dos mais importantes centros de atração desses mestres e discípulos. Era difícil para a Igreja controlar e fiscalizar essa atividade, ainda que a cultura geral ensinada por esses mestres estivesse em consonância com a religião. Um dos mestres mais conhecidos desse momento foi Pedro Abelardo (1079‑1142), professor em Paris, muito importante na história da filosofia pela ênfase dada à dialética aristotélica como instrumento para uma leitura racional da Bíblia, o que depois seria consagrado por Tomás de Aquino (1225‑1274). Essa forma de compatibilizar o conhecimento antigo e o pensamento cristão com a racionalização das leituras sagradas foi fundamental para o desenvolvimento posterior dos espaços de ensino na Europa. Outro aspecto importante de mudança nessa passagem da Alta para a Baixa Idade Média são as cidades, que passam a ser importantes centros de comércio e poder, assim como de ensino e cultura, o que antes acontecia no campo. Tanto os mestres individuais como as escolas das catedrais (nome das igrejas dos bispos, sede da diocese) se encontravam nas cidades. Isso ocorre porque a Europa passa por muitas transformações a partir do século X,como crescimento da população gerado por novas técnicas produtivas no campo, o êxodo rural, o fortalecimento do poder do papa, que consegue se sobrepor às elites locais nesse momento e o crescimento do comércio. E muitas dessas transformações estão relacionadas a um movimento de expansão da cristandade europeia que ficou conhecido posteriormente pelo nome de Cruzadas. Em 1095, o papa Urbano II, no Concílio de Clermont, convocou os cristãos a realizarem expedições que eram ao mesmo tempo militares e de peregrinação à Terra Santa, dando garantias de salvação eterna aos que se lançassem nessa jornada de penitência, justificando que os locais sagrados e os cristãos do Oriente se encontravam em perigo devido ao avanço turco na região (SILVA, 2019). Esse movimento se relacionava a um projeto de reforma empreendido pela Igreja por volta do ano 1000, em que o poder do papa era reforçado, ao mesmo tempo que se realizaria uma reforma da sociedade cristã, que seria empreendida com o auxílio de uma nova ordem religiosa, a Ordem de Cluny. Fazia parte dessa reforma a crítica ao comportamento de parte do clero e seus desvios dos ideais cristãos, a recusa à riqueza, a retomada do ideal dos apóstolos, além da organização de uma hierarquia eclesiástica em que o papa estivesse na posição mais elevada, a grande liderança e poder da cristandade, o que é chamado na historiografia de uma “monarquia papal” (SILVA, 2019). Ainda que os mercadores das cidades mediterrâneas não tivessem aderido às Cruzadas em suas primeiras convocações devido ao receio de consequências negativas para suas rotas de comércio, ao perceberem benefícios para seus negócios passam a participar das expedições fornecendo transportes e alimentos aos peregrinos, além de terem sido responsáveis pelo desvio da Quarta Cruzada (1202‑1204), o que teve como consequência o saque e a conquista de Constantinopla pelos cristãos. Tais empreendimentos resultaram no enriquecimento dos mercadores e das cidades italianas em que atuavam. 18 Unidade I Apesar de o papa convocar as Cruzadas, as expedições eram chefiadas por nobres, reis e pelos imperadores. Ainda assim, o resultado delas foi bastante favorável ao fortalecimento do poder papal. A partir do século XII o papa passa também a combater de forma mais vigorosa as heresias, que era o nome dado às posturas e crenças que não estavam em concordância com a ortodoxia religiosa – ou seja, eram desvios da fé e do comportamento em relação ao que era defendido pela Igreja. Dessa maneira, toda nova interpretação da Bíblia precisava ser autorizada pelo papa. Além disso, foram criados procedimentos judiciários que definiam como o herege seria identificado, julgado e punido, o que foi chamado de procedimento inquisitorial. Também foram preparadas listas de heresias e tratados sobre elas, e entre 1231 e 1233 surgiu a Inquisição. A Inquisição foi uma instituição criada e controlada pelo papa, que designava os juízes que atuariam nas questões relativas às heresias. Seus juízes respondiam apenas ao papa, que passava a ter o monopólio sobre o controle da ortodoxia, definindo o que era considerado como desvio (heresia). Todo o procedimento era secreto, os nomes das testemunhas não eram revelados, o acusado não tinha direito a nenhum tipo de assistência, advogados ou outros tipos de recursos que pudessem ajudar em sua absolvição. As ordens dos dominicanos e franciscanos eram os responsáveis por todo esse processo, pois ambas estavam diretamente ligadas ao papa. Se o acusado confessasse seu crime, isso configurava como prova inquestionável, ainda que fossem obtidas por meio de violência e tortura, e assim se encerrava o julgamento para se iniciar a punição (penitência). As transformações e contatos pelos quais a Europa passava nesse momento se desdobrariam também em novas formas de conhecimento e de ensino que teriam vida longeva. Diferentemente do que acontecia na cultura letrada da cristandade Ocidental até o século XII, no que restou do Império Romano no Oriente, que passou a ser chamado de Império Bizantino, a filosofia grega foi preservada. A partir do século VII, esse conhecimento passou a ser compartilhado com um novo império que surgia com expansão dos árabes, agora muçulmanos, após a morte do profeta Maomé, quando passaram a conquistar inúmeros territórios antes pertencentes aos romanos antigos no Oriente. Os árabes chegaram à Pérsia, à Índia, a toda a Península Arábica, à Síria, pressionando as fronteiras do Império Bizantino, avançando por todo o norte da África e finalmente tendo parte de seu território na Europa, ocupando toda a Península Ibérica (hoje Portugal e Espanha). Nessa expansão, além da proximidade e dos conflitos gerados com a cristandade, os árabes entraram em contato com a filosofia grega através do Império Bizantino, que foi apropriada por seus pensadores formando uma filosofia própria, a Falsafa, que em parte seria muito importante para a formação das novas escolas europeias da Baixa Idade Média, sobre as quais trataremos a seguir. Deixaremos de lado toda essa complexa história sobre a expansão muçulmana, indicando aqui brevemente alguns aspectos que estão mais diretamente relacionados à nossa história, já que a Península Ibérica fazia parte desse mundo islâmico a partir do século VIII. O território que hoje é Portugal permaneceu como muçulmano até o século XI, quando se iniciou a formação desse reino e os reinos que depois formariam a Espanha continuaram o processo de conquista de territórios que eram muçulmanos até 1492, com a incorporação de Granada, no mesmo ano em que Colombo chegou à 19 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO América. Os conflitos e disputas de territórios entre cristãos e muçulmanos se estenderia ainda por toda a Idade Moderna, sendo uma das motivações das expansões marítimas ibéricas. Mas retomemos brevemente a questão da filosofia árabe. Quatro filósofos árabes se destacam dentro do estudo da história da Falsafa: Al‑Kindi (769‑873), Al‑Farabi (972‑950), Ibn‑Sina (980‑1037) e Ibn‑Rushd (1126‑1198). Nenhum desses filósofos foi responsável por traduções dos textos antigos gregos para o árabe, pois já havia ocorrido anteriormente um longo processo de traduções das quais se beneficiaram esses pensadores. O primeiro, Al‑Kindi, foi responsável por tornar as traduções mais adequadas, explicando termos importantes da filosofia antiga ao árabe, ou seja, adaptando melhor os textos à sua língua, permitindo, com isso, a melhor leitura e compreensão de obras sobre lógica, música, astrologia, medicina etc. Seu mérito principal foi de introduzir Aristóteles ao Islã e aproximar o filósofo aos ensinamentos do Alcorão (ATTIE FILHO, 2002). No mesmo período, o principal autor grego ainda estudado no Ocidente era Platão, e esses dois autores antigos (Aristóteles e Platão) tinham posturas muito distintas sobre o conhecimento. Platão, alinhando‑se de forma mais direta à tradição iniciada por Sócrates, buscava o conhecimento ancorado sobretudo na razão e na dicotomia entre mundo material e mundo das ideias, de onde a alma imortal dos homens advinha, onde tudo era perfeito e que poderia ser ascendido, ainda que de forma menos perfeita, pela razão. Lembremos, é claro, do conhecido Mito da Caverna de Platão. Vem de Platão a forma de Agostinho de Hipona – Santo Agostinho, um dos padres da Igreja – de pensar a divisão entre a cidade de Deus e a cidade dos homens, o mundo divino perfeito e o mundo humano imperfeito, mas que deseja no amor a Deus aproximar‑se ao máximo possível dessa perfeição. Agostinho e seu platonismo representavam o pensamento mais marcante da Alta Idade Média. Não à toa, os monges buscavam a verdade a partir da leitura dos textos dos autores antigos romanos e dos livros sagrados e depois “meditavam” sobre esses textos (meditatio), ou seja, num movimento que em parte se assemelhavam a uma prece e à interiorização da sabedoria que poderia ser acessada por essas leituras. Por outro lado, Aristóteles, que sintetizavadiferentes tradições filosóficas que o precederam, considerava como fontes de conhecimento tanto a razão quanto os sentidos, o que era visto com certa desconfiança por filósofos alinhados ao pensamento platônico. Os sentidos e as experiências que eles permitem seriam as portas de acesso ao conhecimento. Mas os sentidos podem enganar, por isso é preciso acionar a razão para corrigir tais erros e buscar assim um conhecimento verdadeiro. Pense na ilusão de ótica, nas fotos de pessoas com a mão apoiando a torre de Pisa inclinada, como se a sustentassem, quando sabemos que esse efeito é possível devido ao ponto em que a câmera se coloca para fazer a foto. O sentido engana, mas a razão e o conhecimento permitem que o erro, ou, nesse caso, o artifício, seja percebido. Dessa maneira, o pensamento tendo como base o aristotelismo permitia novos caminhos ao conhecimento. Além disso, era possível compatibilizar o pensamento antigo com a fé religiosa, o que os árabes fariam de forma bastante bem‑sucedida. Essa postura de Al‑Kindi, de introdução do aristotelismo e dos textos gregos no pensamento árabe, teria continuidade no filósofo Al‑Farabi, que era um homem bastante erudito e que contribuiu organizando muito da filosofia antiga e apresentando teorias originais. 20 Unidade I Mas, desses filósofos da Falsafa, sem qualquer dúvida, os que teriam maior impacto no pensamento cristão medieval foram Ibn‑Sina e Ibn‑Rushd, tão conhecidos e comentados que seus nomes foram latinizados. Talvez Avicena e Averróis, respectivamente, sejam mais familiares a vocês. Avicena foi responsável por recolher e organizar grande parte do conhecimento de sua época. Tornou‑se em seu tempo um grande mestre em lógica, física e matemática. Além de ter sistematizado esse conjunto, também o reelaborou em uma abordagem própria e a partir de seus escritos influenciou a filosofia posterior em muitos sentidos, sendo conhecido no mundo islâmico e no mundo cristão medieval, onde continuou a ser referenciado e estudado até a Idade Moderna. Além de ter sido um grande erudito, foi médico de grande renome e escreveu importantes obras nessa área, como O cânone da medicina, que foi adotado nas escolas europeias até o século XVI e era uma síntese do conhecimento acumulado até aquele momento; foi base do ensino médico por mais de 500 anos após a sua morte. Por fim, nosso último filósofo árabe, Averróis, viveu no período de maior desenvolvimento do Al‑Andalus, que era o nome do que hoje conhecemos como a Espanha durante o período de governo muçulmano. Nascido em Córdoba, vinha de uma família de juízes (carreira que também seguiu), estudou medicina, astronomia, teologia, matemática, filosofia etc., tendo escrito ao longo da vida 92 obras, que tratavam de filosofia, teologia, direito, astronomia, gramática e medicina. Dessas obras, a maioria tinha em seu título o termo “comentário”, e muitas das obras de filosofia se ocupavam em discutir a obra de Aristóteles, mas também escreveu um volume considerável de textos com títulos originais. Averróis foi um dos maiores estudiosos sobre o trabalho de Aristóteles da Idade Média, tendo comentado a maior parte de sua obra, exceto a política, ainda que não soubesse grego e tenha estudado os textos do filósofo grego apenas pelas traduções para o árabe. O destino de Averróis marcou um momento importante de inflexão na história da filosofia, pois viveu e contribuiu para um período de enorme desenvolvimento da Falsafa, assim como da cultura do Al‑Andalus e do mundo islâmico como um todo, mas acabou por ser sufocado por correntes de pensamento contrárias à autonomia da filosofia entre os árabes e à sua base na cultura antiga grega, as quais consideravam que suas posturas colocavam em segundo plano as verdades da fé islâmica. Seus opositores tornaram‑se mais poderosos e passaram a pressionar o emir Al‑Mansur, que governava naquele momento. A maneira como os julgamentos eram conduzidos também fora motivo de críticas pesadas, e uma assembleia foi reunida para julgar o Averróis, considerado culpado e condenado, o que fez com que o emir retirasse sua proteção e o filósofo caísse em desgraça. Ainda sob pressão, Al‑Mansur ordenou que o estudo da filosofia grega fosse proibido e que os livros sobre o assunto fossem confiscados e queimados. Averróis e alguns outros estudantes e filósofos foram exilados em Lucena (cidade próxima a Córdoba), mas posteriormente foi perdoado por Al‑Mansur e passou a servi‑lo no Marrocos, onde faleceu pouco depois, aos 92 anos de idade. Averróis, com muitos de seus antecessores, compreendia que o estudo dos textos antigos não era incompatível com a religião islâmica, já que ambos contribuíam para o conhecimento de Deus a partir da inteligência com a qual os homens eram dotados desde o nascimento. Religião e filosofia andam juntos no pensamento de averroísta, não há contradição que implique a necessidade de escolher uma em detrimento da outra. 21 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Devido ao desfecho de sua vida como mestre e a condenação de seus livros, a obra de Averróis em árabe foi perdida, e o que conhecemos hoje sobre seus escritos se deve a traduções latinas e hebraicas. Os judeus que liam a obra de Averróis em árabe em Córdoba iniciaram as traduções de seus textos para o hebraico, e essas traduções foram então transpostas para o latim pelos cristãos, já que esses dois grupos eram tolerados em Al‑Andalus e desenvolveram fortes relações como minorias em território muçulmano. Também por esses motivos, Averróis não teve discípulos e continuadores no mundo árabe, mas passou a ser muito lido e estudado no mundo cristão – por Siger de Brabant (1240‑1285), Alberto Magno (1193‑1280) e Tomás de Aquino (1225‑1274) – e judaico, sendo influente no pensamento de Maimônides (1138‑1204). Segundo Attie Filho (2002), o pensamento ocidental medieval teve grande contribuição da filosofia árabe especialmente por três motivos. Primeiramente, devido à proximidade geográfica, já que o Al‑Andalus ficava na própria Europa e havia liberdade para que cristãos e judeus vivessem nesse território muçulmano, o que permitia que esses grupos mantivessem contato com o restante da Europa e assim a Falsafa pudesse penetrar o Ocidente Cristão, especialmente durante o apogeu do Al‑Andalus, quando Córdoba se configurava como importante centro de saber, rivalizando com a distante Bagdá para os ocidentais. As Cruzadas e o resultado desse avanço religioso para ter acesso aos locais sagrados para peregrinação no Oriente também permitiam maior contato com o mundo muçulmano, seja no caminho para Jerusalém, seja nas rotas de comércio abertas em decorrência dessa expansão europeia ocorrida a partir do século XI; muitos dos eventos ocorridos nos séculos posteriores, especialmente os que nos dizem mais diretamente respeito com a chegada dos portugueses na América, estão relacionados a esse primeiro movimento de expansão religioso e comercial. Ademais, as universidades medievais foram espaços privilegiados para o acolhimento desse pensamento árabe, que era um intermediário para os textos da Antiguidade. Como os ocidentais não tinham acesso, muitas vezes, aos textos originais na língua grega, as traduções árabes, então passadas ao latim, ampliavam o número de obras de filosofia antiga que poderiam acessar. A filosofia e a ciência, guardando o conhecimento antigo e também aprimorando e produzindo novos, tiveram uma existência fervilhante por séculos no mundo árabe, que englobava terras distantes e diversas, intercomunicadas por cidades e comércio. Esse mundo entraria em contato com a cristandade de três pontos de convergência. O astrolábio, tão útil no momento de expansão ibérica, vinha desse ambiente, assim como outros conhecimentos importantes de navegação, como a astronomia e as matemáticas. E nesse sentido não era uma feliz coincidência que Portugal e Espanha fossem reinos privilegiados no acesso a tais conhecimentos, já que tinham feito parte desse mundo islâmico porséculos, especialmente no caso espanhol, em que esse domínio foi mais duradouro (cerca de sete séculos). Dessa forma, muito se utilizou nas universidades medievais dos textos árabes comentando os textos antigos. Apenas posteriormente os estudiosos cristãos passaram a buscar diretamente os autores clássicos, como Aristóteles, Galeno, Platão etc. 22 Unidade I As traduções do árabe para o latim ocorreram sobretudo a partir do século XII, tendo oferecido grande contribuição nesse processo Adelardo de Bath (1080‑1152), que traduziu alguns textos árabes sobre a natureza (física). Graças à contribuição desse tradutor logo os árabes passaram a ser conhecidos no ocidente como homens de grande conhecimento e, dessa forma, suas obras, traduções e comentários geravam interesse nesse momento de proliferação dos centros de conhecimento que eram as universidades. A cidade cristã de Toledo, na Espanha, que era muito próxima de Al‑Andalus, devido ao incentivo do bispo, tornou‑se um grande centro de traduções do árabe para o latim. Essa atividade foi fundamental para que portugueses e espanhóis tivessem acesso aos conhecimentos necessários para realizarem suas navegações a partir do século XV (ALMEIDA, 2001). Inicialmente, as obras de Avicena foram as mais traduzidas entre os cristãos, depois os textos de Averróis também passaram a receber grande atenção dos tradutores. Por causa desse grande volume de obras árabes que passam a integrar o universo de conhecimentos da Europa Medieval os estudiosos podem hoje identificar influências de Avicena em autores célebres cristãos, como João Duns Escoto (c. 1266‑1308), e de Averróis em Alberto Magno (c. 1193‑1280), Rogério Bacon (1220‑1292) e Tomás de Aquino (1225‑1274). Essas considerações foram aqui apresentadas para indicar algumas questões importantes sobre o ensino e o conhecimento. Primeiramente, que as fontes do nosso saber podem percorrer vias múltiplas e complexas até que cheguem ao nosso conhecimento. Pense em quantos caminhos a filosofia grega percorreu para chegar até nós. Apenas nessas considerações já indicamos dois momentos importantes de cópias e traduções dos textos antigos. As cópias feitas nos scriptoria do período carolíngio, ainda que fosse mais comum a presença dos textos romanos; e posteriormente as traduções dos textos árabes sobre os autores antigos para o latim. Ainda teríamos outros momentos de valorização do conhecimento antigo pelos europeus. Ou seja, a Antiguidade nunca deixou de ser estudada no Ocidente, o que formaria uma longa tradição clássica, de conhecimentos e de representações artísticas que dialogavam e utilizavam modelos e referências da Grécia e de Roma, que seriam centrais até pelo menos o século XVIII. Posteriormente entenderemos como essa relação com a Antiguidade, ou melhor, com a ideia de autoridade do saber e da arte e com os modelos a serem seguidos mudou nesse momento. Mas tratemos especificamente das universidades e do pensamento escolástico, que serão predominantes na Baixa Idade Média e que muito influenciarão o ensino empreendido pelos jesuítas posteriormente nas colônias portuguesas na Idade Moderna. As universidades são filhas das cidades, que cresciam e tornavam‑se espaços privilegiados de conhecimento com mestres mais autônomos, ao mesmo tempo que a Igreja, e especialmente o papa, tentava controlar as formas de interpretação sobre a religião. A história não se faz de relações simples de causa e consequência, pois é nesse mesmo contexto, a partir do século XIII, que surge uma das instituições de maior autonomia e liberdade da Idade Média. Obviamente não devemos pensar a liberdade em nosso 23 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO sentido atual; seus agentes ainda eram homens de seu tempo, pensavam, agiam, decidiam segundo o que era possível dentro da visão de mundo do momento. Essas instituições eram as universidades: A universidade é uma das grandes criações da Idade Média. Configura‑se como uma instituição de tipo corporativo ligada ao progresso urbano e destinada ao que denominamos atualmente ensino superior. Ela evoluiu até os dias de hoje conservando importantes traços de sua origem medieval (VERGER, 2006, p. 573). As universidades têm sua origem nas escolas já mencionadas do século XII e nos mestres de renome. Ao retomarem os estudos de dialética aristotélica, outros conhecimentos passaram a fazer parte do ensino, pois poderiam desempenhar importantes funções na formação de conselheiros de príncipes e de cidades, médicos eruditos, funções no alto clero. O direito romano e a medicina passam a ser estudados novamente, pois passam a circular novamente na Europa textos de direito romano e de medicina greco‑árabes. Como uma instituição urbana, as universidades vão se aproximar das formas de organização mais características desse espaço, que eram as corporações de ofício. Nas cidades, o trabalho relacionado ao artesanato (trabalho de marceneiros, padeiros, ferreiros, pintores, escultores etc.) era organizado nessas corporações, associações de mestres e artesãos de um determinado ofício. Esses trabalhadores dominavam uma determinada arte, que era o termo utilizado para designar o conhecimento relacionado a uma série de técnicas para uma determinada atividade. Ainda hoje utilizamos a palavra nesse sentido, por exemplo, em “a arte da escrita”, que compreende conhecimentos e técnicas específicas necessárias para se escreverem determinados tipos de textos (gêneros literários). Os conhecimentos transmitidos dentro das oficinas dos artesãos que faziam parte dessas corporações eram as “artes mecânicas”, e não faziam parte dos ensinamentos existentes nas escolas ligadas ao clero. As elites e os membros do alto clero educados nas escolas monásticas, das catedrais, ou pelos mestres da época se baseavam inicialmente nas “artes liberais”, que não estavam relacionadas ao trabalho manual, mas ao intelecto. Essas artes liberais se dividiam em Trivium (gramática, retórica e dialética), já mencionadas anteriormente – que compreendiam os conhecimentos relacionados à produção e leitura de textos –, e Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), que tratavam das disciplinas relacionadas à matemática. Lembrete É importante destacar a distinção durante a Idade Média entre o conhecimento teórico e elevado das artes liberais e o conhecimento prático, voltado para uma determinada produção, como as artes mecânicas. 24 Unidade I Assim, mesmo que os conhecimentos pertencentes às corporações de ofício e às instituições de ensino ligadas à educação das elites fossem muito distintos, ao se deslocar o centro cultural do campo para a cidades e ao se diversificarem os conhecimentos ensinados pelos mestres o desejo de autonomia fez com que mestres e estudantes se associassem de forma semelhante às corporações de ofício. A maioria dos mestres e dos estudantes pertencia ao clero, mas com desejo de realizar o ensino com maior liberdade do que nas escolas diretamente ligadas à igreja. A Universidade de Paris foi uma das primeiras a surgir. Era um agrupamento de escolas e uma associação de mestres e estudantes, por isso o nome: Universitas magistrorum et scolarium Parisiensium. Mas as universidades podiam ser associações apenas de estudantes, como no caso da Universidade de Bolonha, que surge praticamente ao mesmo tempo que a de Paris. Dentro das universidades, as escolas eram agrupadas de acordo com as disciplinas ensinadas: Faculdade de Artes, Faculdade de Medicina, Faculdade de Direito (que poderia ser apenas o canônico, como no caso de Paris, ou civil e canônico) e Faculdade de Teologia. Em 1215 é promulgado o estatuto da Universidade de Paris, documento em que se especificam quais textos deveriam ser lidos (ou comentados) e quais textos eram proibidos de serem ensinados. Aristóteles, por exemplo, o célebre filósofo grego, tinha obras incluídas no ensino universitário e outras proibidas. No caso da Universidade de Bolonha, primeiramente surgiu a Faculdadede Direito, onde se ensinava direito civil e canônico. Essa instituição era particularmente famosa por sua primeira faculdade, sendo que os juristas aí formados tinham prestígio em toda a Europa. Depois as Faculdades de Artes e de Medicina foram incorporadas e, por fim, a Faculdade de Teologia, que era comandada pelos dominicanos. Como era uma associação de estudantes (que tiveram apoio do papa para conseguir sua autonomia), os mestres atuavam ali apenas mediante contratos. Observação Em 1999 foi assinada a “Declaração de Bolonha”, em que se pretendia aproximar o ensino universitário na União Europeia, facilitando a circulação dos estudantes e internacionalizando as universidades. No século XIII também surge a Universidade de Oxford, a partir da escola de teologia, e já em 1209 surge a Universidade de Cambridge a partir de uma associação de estudantes e mestres também de Oxford. 25 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Figura 2 – Vista atual da Universidade de Coimbra: ao centro está o prédio da Faculdade de Direito, uma das mais célebres instituições superiores portuguesas Figura 3 – Detalhe do pátio da Universidade de Coimbra, com destaque para o prédio da Biblioteca Joanina (canto esquerdo), construída durante o reinado de dom João V (1689‑1750), momento de grande exploração do ouro do Brasil Em Portugal, a primeira universidade seria fundada por volta de 1290, pelo monarca dom Dinis I (1261‑1325), na cidade de Lisboa. Essa universidade funcionou por alguns períodos em Coimbra, de 1308 a 1338 e de 1354 a 1377, sendo definitivamente transferida para essa cidade em 1537 (FONSECA, 2006), por dom João III (1502‑1557). A Universidade de Coimbra está em funcionamento até hoje e durante a maior parte de sua existência foi o principal centro de formação de juristas e médicos de Portugal e de suas colônias. 26 Unidade I As universidades tinham autonomia, o que era a primeira grande novidade dessa instituição. Podiam estabelecer regras internas e elaborar estatutos próprios. Também eram responsáveis pelo ingresso de novos estudantes e mestres. Mas, ao mesmo tempo, apresentavam um caráter universalista, já que os saberes estudados nas universidades eram iguais em qualquer local. Por isso os títulos e diplomas de seus estudantes eram reconhecidos em toda a Europa. Esse saber socializado e construídos nas universidades era a Escolástica (ALESSIO, 2016). A ideia de autoridade é central nessa forma de ensino. Em primeiro lugar o papa é o responsável por instituir as universidades, o que permite que não precisem se submeter às elites locais. Uma vez instituídas pela maior autoridade da Europa, os mestres eram responsáveis pelo ensino. O que hoje seriam as aulas eram chamadas naquele momento de comentários ou leituras – isso nos revela muito sobre como se construía esse conhecimento, que era centrado nos textos consagrados e autorizados. O conhecimento deveria ser apenas construído e transmitido a partir dos textos e autores permitidos, sendo os antigos romanos a base desse ensino, o que marca mais um momento de retomada da Antiguidade Clássica e mais um período de valorização dos livros, consequentemente dos copistas e dos livreiros, por isso era bastante caro ingressar nas universidades, sendo ainda um ensino voltado para as famílias mais abastadas. Ainda assim, alguns membros de grupos religiosos de destaque nas universidades (como os dominicanos e franciscanos), mesmo que oriundos de famílias mais modestas, tiveram apoio da ordem a qual pertenciam para ingressar e permanecer nas universidades. Ainda que cada faculdade tivesse completa autonomia e seus próprios autores consagrados para tratar de seus conhecimentos específicos, todos os que se dirigiam às universidades para realizar ali sua formação, seja como juristas, médicos ou teólogos, passavam antes pela Faculdade de Artes, onde se aprendiam os métodos base do ensino e do pensamento escolástico. Lembrete As universidades costumam ser formadas por quatro faculdades: Faculdade de Artes (filosofia), Faculdade de Teologia (dominada por franciscanos e dominicanos), Faculdade de Direito (civil e canônico) e Faculdade de Medicina. A lógica escolástica, que era o pilar de seu pensamento, baseava‑se na lógica aristotélica, especialmente da leitura que fazem de sua obra Organon, a partir da qual preparam sua forma característica de discutir os conhecimentos ali compartilhados. O fundamento desse ensino, que devemos reforçar, é o princípio da autoridade – ou seja, quase tudo o que se pretende saber para trilhar a formação universitária deve ser retirado de certos livros e autores em que se pode encontrar a verdade. Por isso, os mestres eram comentadores desses autores, que eram as verdadeiras autoridades do ensino, não o mestre em si. Por isso, a lição magistral, chamada lectio, e que é o pilar do conhecimento escolástico, era dividida em seis etapas sucessivas. Nessas lições, o mestre apresentava o conhecimento a ser compartilhado com os alunos a partir de uma questão (quaestio), e toda sua exposição era feita tomando um interlocutor imaginário, 27 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO que tem uma função bastante importante e específica nessa busca pela verdade empreendida com tal método. Vejamos então quais são as seis etapas, como nos apresenta Alessio (2006): • 1ª etapa – mestre tira do texto do autor estudado um problema, que é formulado como uma questão (quaestio); • 2ª etapa – interlocutor imaginário apresenta uma lista de objectiones, que são todos os argumentos da teoria oposta à que o mestre está apresentando nesse processo, ou seja, adianta as críticas do pensamento que está defendendo; • 3ª etapa – mestre apresenta de forma breve a sua tese magistral (sententia magistralis), ou seja, a ideia que está defendendo; • 4ª etapa – mestre defende sua tese magistral das objectiones anteriormente apresentadas; • 5ª etapa – mestre avança nos argumentos de sua tese; • 6ª etapa – mestre retoma os argumentos do interlocutor e os refuta através da resposta às objeções (responsio ad objectiones). Ao observarmos esse esquema do método da lógica escolástica podemos perceber que o interlocutor imaginário presente nessa fórmula tem por função afastar as dúvidas e questionamentos em relação ao texto da autoridade estudada. Esse método era muito caro às ordens mendicantes que tinham grande relevo nas universidades, pois em muitos aspectos estavam em concordância com as posturas desses religiosos, especialmente os dominicanos, que tinham como prerrogativa combater os desvios da fé, as heresias. O controle sobre os textos e autores estudados na universidade era bastante rigoroso. Havia em alguns momentos certa desconfiança sobre as leituras mais entusiasmadas que eram feitas sobre as obras de Averróis. Por isso, em 1277, o bispo de Paris, Estevão Tempier, condenou alguns dos seguidores do filósofo árabe. As desconfianças não eram muito distintas das que fizeram Averróis cair em desgraça ainda em vida, considerando que em seus textos a razão ocupava papel de destaque, deixando em segundo plano as verdades contidas nos textos sagrados. Por fim, também eram importantes nas universidades alguns textos de síntese dos conhecimentos indispensáveis a mestres e alunos que tinham sido produzidos no século XII, como as “Sentenças”, de Pedro Lombardo (1100‑1160), o “Decreto” de Graciano e a “Dialética” de Abelardo. Apesar da predominância do conhecimento pelas autoridades, havia espaço para a observação direta do mundo e da experiência, o chamado empirismo. Embora fosse muito distinto da maneira como compreendemos o fazer científico na atualidade, essa atitude desenvolvida no interior das universidades foi de extrema importância nos processos que posteriormente levariam ao chamado Renascimento e as Revoluções Científicas da Idade Moderna. Para ilustrar essa questão, Terezinha Oliveira (2007) menciona o exemplo do erudito medieval Alberto Magno (1193‑1280), que era estudioso e seguidor do 28 Unidade Ipensamento aristotélico, mas que, além da leitura e do conhecimento derivado dessa autoridade antiga, também estudava plantas e animais de forma empírica em suas viagens pela Europa. Todavia, o estudo das autoridades não implicava necessariamente um ensino uniforme e estanque. Havia disputas e pontos de discordância entre certos grupos no interior da instituição. Havia aqueles, por exemplo, que defendiam a manutenção de uma forma de conhecimento baseada em Santo Agostinho, como ocorria anteriormente à retomada dos estudos aristotélicos ocorrida no século XII. Havia, por outro lado, o grupo que pretendia aderir de modo mais radical ao pensamento aristotélico, valorizando assim o uso dos sentidos e da razão para alcançar o conhecimento. E havia, ainda, o grupo que tentava compatibilizar o pensamento aristotélico e as doutrinas do cristianismo daquele momento, postura sustentada por um dos principais nomes do pensamento cristão medieval, Tomás de Aquino (1225‑1274). Essas discussões continuaram por séculos e influenciaram as Reformas Religiosas do século XVI, entre outros aspectos importantes de princípios da Idade Moderna. Observação O ensino da realeza, para a preparação do rei, era feito sobretudo com preceptores, professores de grande prestígio que atuavam na formação ampla dos futuros governantes. Apesar de a universidade ser um espaço de ensino cristão, como tinham sido as demais escolas que se desenvolveram na Idade Média, mais uma de suas particularidades é o fato de ter sido, pela primeira vez, uma instituição criada exclusivamente para o ensino. Ou seja, as escolas anteriores faziam parte de um mosteiro ou de uma catedral, mas a universidade surge como um espaço autônomo e que não se relaciona e nem se subordina a outra instituição ligada à Igreja. Uma das consequências dessa particularidade é uma certa profissionalização do ensino (OLIVEIRA, 2007). Ainda hoje as universidades mantêm certa autonomia e essa função de ser um espaço privilegiado na construção do saber, apresentando‑se como uma instituição de longuíssima duração, ainda que tenha se transformado muito ao longo dos séculos e se adaptado às necessidades da sociedade em diferentes momentos. Também havia dois modelos mais ou menos definidos de universidades medievais. Aquelas que se assemelhavam mais ao modelo de Bolonha, com ênfase nos estudos laicos de medicina e direito, mais comum nas regiões mais próximas ao Mediterrâneo. E havia aquelas que se assemelhavam mais ao modelo de Paris, com ênfase nos estudos de teologia e filosofia, mais comum na Europa do Norte. A partir do século XIV, com o fortalecimento dos Estados Nacionais, as universidades continuaram a crescer em número de novas fundações e de estudantes matriculados. Em meados do século XIII existiam cerca de 10 universidades na Europa, número que passou a 28 em fins do século XIV e a 63 em 1500 (VERGER, 2006). Segundo Oliveira (2007), o surgimento das universidades reduziu a influência da Igreja na educação e permitiu que uma nova forma de conhecimento, muito mais laica que anteriormente, pudesse se 29 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO afirmar. Além disso, os homens formados nas universidades passaram a desempenhar papel decisivo nas relações de poder e nas tensões entre poder monárquico e papal. Por isso as universidades passaram a ser muito favorecidas pelos reis em fins da Idade Média, pois era de seus quadros que saíam seus secretários, conselheiros, juristas, confessores etc. Saiba mais Indicamos na lista a seguir alguns filmes sobre a educação medieval: O DESTINO. Direção: Youssef Chahine. França/Egito: Canal+, Centre national du cinéma et de l’image animée (CNC), Fonds Sud Cinéma, 1997. 135 min. EM NOME de Deus. Direção: Clive Donner. Reino Unido/Iugoslávia: Amy International Artists, FilmDallas Pictures e Jadran Film, 1988. 115 min. O NOME da rosa. Direção: Jean‑Jacques Annaud. Alemanha Ocidental/ Itália/França: Constantin Film, 1986. 126 min. Gomes (2001, p. 158) compreende a escolástica como “constituindo um método, ou via, um sistema organizativo do saber segundo o estado das ciências, e uma doutrina estruturada conforme aos artigos da fé”, e considera que foi uma forma de conciliar fé e razão que se desenvolveu tanto na Europa cristã, como no pensamento medieval islâmico e judaico, sendo que no mundo cristão o pensamento escolástico pode ser compreendido em três ciclos, a saber: • Escolástica medieval ou primeira escolástica: pensamento desenvolvido nas universidades medievais e apresentado nas páginas anteriores. • Segunda escolástica ou escolástica barroca: é a realizada especialmente pelas elaborações da Companhia de Jesus e seu projeto pedagógico na Europa, no Oriente, na África e nas Américas, sobre o qual trataremos a seguir – essa fase da escolástica se encerraria com as atitudes de combate aos jesuítas empreendidas pelo Marquês de Pombal no século XVIII. • Neoescolástica ou terceira escolástica: teria começado a partir de iniciativas papais do final do século XIX, retomando a postura de compatibilização da fé com o pensamento racional/científico. Dessa forma, percebemos que há uma grande continuidade e permanência dessa postura conciliadora do pensamento religioso e que sobreviverá, inclusive, ao surgimento dos estados laicos e burgueses após as revoluções do século XVIII e XIX e as guerras do século XX. Você mesmo deve conhecer instituições de ensino confessionais, ou seja, ligadas a uma religião específica, como escolas católicas, adventistas, presbiterianas, batistas etc. Essa relação entre religião e ensino se inicia de forma mais clara e íntima na Idade Média, mas podemos ainda perceber suas influências em nosso tempo. 30 Unidade I Exemplo de aplicação No estudo histórico muitas vezes buscamos compreender as permanências e as rupturas. Há estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais que podem perdurar por muito tempo, mesmo que haja mudanças e adaptações para que possam se desenrolar em uma longa duração. As relações entre educação e religião, mais especificamente sobre o cristianismo e a educação no mundo ocidental, do qual somos herdeiros em certa medida devido à colonização, podem ser compreendidas nessa chave interpretativa. Dessa maneira, sugerimos algumas questões para reflexão: Há ainda instituições de ensino ligadas a igrejas ou religiões? O que elas podem ter em comum e de distinto com as escolas medievais? Há relação entre essas instituições e o poder político hoje? Os conteúdos escolares precisam ser compatibilizados com as crenças religiosas? As universidades na atualidade têm as mesmas características das universidades medievais? Com seus apontamentos sobre essas questões, verifique se os conteúdos que trabalharemos nas próximas páginas podem auxiliar na compreensão de como essa relação entre cristianismo e educação foi sendo transformada ao longo do tempo. 2 A CATEQUESE E O INÍCIO DA COLONIZAÇÃO: OS JESUÍTAS E A EDUCAÇÃO DA ELITE As mudanças ocorridas entre fins da Idade Média e princípios da Idade Moderna foram marcadas pelo que se costumou chamar de Renascimento Cultural. Como foi indicado anteriormente, diversos momentos durante a Idade Média foram chamados de Renascimentos, então, o que haveria de distinto nesse “novo” renascimento? A retomada da Antiguidade Clássica? Como deve ter ficado evidente nas páginas anteriores, os textos e autores da Antiguidade não desapareceram, nem deixaram de ser utilizados ao longo desses séculos. Pelo contrário, foram tomados sempre como autoridade de conhecimento e conjugados aos estudos teológicos. Desde os primeiros padres da Igreja, como Santo Agostinho, São Jerônimo e Boécio, ou nos mosteiros e em suas escolas na Alta Idade Média, ou ainda nas universidades, os autores clássicos faziam parte do conhecimento validado e compartilhado pelas elites letradas, que representavam uma parcela muito pequena da população, mas crescente ao longo do tempo. O retorno se dava mais uma vez à Antiguidade Clássica;porém, a maneira de estudar esses autores mudava radicalmente, como bem apontou Erwin Panosfky na obra clássica Renascimento e Renascimento na arte ocidental. Primeiramente, porque aqueles que se dedicavam aos estudos dos autores antigos, as studia humanitatis (por isso o nome que receberam de humanistas), percebiam claramente a distância que os separavam de suas fontes. E essa questão do tempo e da história é fundamental nesses estudos. Os homens da Idade Média utilizavam os autores antigos como se não houvesse ruptura entre 31 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO o tempo em que viviam e o tempo em que escreveram aqueles autores tomados como referências. Além disso, os autores antigos, que eram tomados como autoridades nos estudos, eram utilizados de modo mais “instrumental”, ou seja, para serem aplicados a certas questões e discussões específicas dos eruditos medievais, especialmente para desdobrarem discussões teológicas. Já os humanistas, a partir do século XIV e XV, passam a estudar a Antiguidade por si só. Ou seja, o estudo estava centrado nos autores antigos em si mesmos, para compreender suas palavras, seu contexto de produção, os conceitos apresentados em seus pensamentos etc. Por isso, no discurso desses humanistas para justificar sua nova atitude em relação à Antiguidade e valorizar suas atividades, o que aparece comumente é uma desvalorização do conhecimento que os precedeu imediatamente, daí surge a ideia de uma “Idade Média”, dividindo os antigos, motivo de inspiração e admiração, e os eruditos daquele momento. Essa Idade Média teria distorcido os conhecimentos antigos e não seria um período de grande valorização do saber. Essa imagem negativa do período ainda faz parte do senso comum. Nas palavras dos autores humanistas aparece a imagem de um momento de declínio da cultura, de perda de conhecimentos que eram bastante desenvolvidos no passado mais longevo. Vamos observar o que Leon Batista Alberti (1404‑1472) diz ao abrir seu tratado sobre pintura: Eu costumava estranhar e ao mesmo tempo afligir‑me que tantas artes e ciências excelentes e divinas que sabemos, por obras e histórias, terem sido abundantes entre os virtuosíssimos antigos estivessem agora mutiladas ou quase perdidas. Pintores, escultores, arquitetos, músicos, geômetras, retóricos, áugures e outras inteligências nobilíssimas e maravilhosas são em nossos dias muito raras e há pouco para louvá‑las (ALBERTI, 2009, p. 67). A percepção do que foi realizado na Idade Média com as obras antigas era uma “mutilação”, o que se devia, em muitos aspectos, ao fato de que diversas obras, sobretudo dos gregos, apenas chegaram à Europa por traduções e comentários, especialmente dos árabes, como já vimos. A partir de fins da Idade Média, um conjunto maior de obras antigas em latim e em grego passava a ser mais bem compreendido com a vinda de estudiosos fugindo de Constantinopla. Além disso, os conhecimentos valorizados e estudados pelos humanistas não se restringiam às artes liberais, que anteriormente eram a base do saber escolástico, e alguns artífices ganharam prestígio apresentando sua arte como resultado do engenho. Por isso Alberti cita “pintores, escultores e arquitetos” entre aqueles antigos que detinham conhecimento desejável aos seus contemporâneos. O próprio Alberti escreve um tratado completo sobre a pintura, do qual extraímos a citação anterior, que é matéria digna de reflexão teórica de um humanista. Não que não existissem textos sobre essas artes (pintura, escultura e arquitetura) na Idade Média, mas hoje os consideraríamos mais como manuais explicando como aplicar conhecimentos técnicos. O que Alberti e outros humanistas passavam a valorizar em seus textos era a criação humana, a capacidade de conhecer e construir coisas novas. O engenho era a capacidade de criação humana. Podemos observar a mesma atitude nas primeiras palavras de Rafael Sanzio (1483‑1520) em sua “Carta ao papa Leão X sobre as Ruínas de Roma”: 32 Unidade I Há muitos, Santíssimo Padre, que, medindo com seu pequeno juízo as coisas grandíssimas que se escrevem dos romanos, sobre suas façanhas militares, e sobre a cidade de Roma no que diz respeito à admirável arte, riqueza, ornamentos e grandeza dos edifícios, acham que estas sejam mais fabulosas do que verdadeiras. Mas comigo costuma acontecer o contrário; pois, considerando a divindade daquelas almas antigas a partir dos vestígios que ainda vemos das ruínas de Roma, opino não ser além da razão acreditar que muitas coisas que parecem impossíveis para nós, para elas eram facílimas. Portanto, sendo eu muito estudioso dessas antiguidades, e tendo não pequeno cuidado em pesquisá‑las minuciosamente e medi‑las com diligência, lendo os bons autores e, comparando as obras com os textos escritos, penso ter conseguido algum conhecimento sobre arquitetura antiga (SANZIO, 2010, p. 45). Rafael Sanzio, pintor bastante conhecido, cujas obras estão presentes em muitos museus ao redor do mundo, dedicou‑se a estudar as ruínas de Roma, como muitos outros pintores e arquitetos fariam naquele momento e posteriormente. Para apresentar seus desenhos e estudos sobre o assunto, escreveu uma carta, que se inicia com as palavras apresentadas na citação anterior. Rafael reforça a imagem de declínio do conhecimento na Idade Média (que não recebe esse nome em suas palavras), que é um lugar comum nas obras desse período. Talvez você já tenha escutado alguém dizer “voltamos à Idade Média” querendo significar um retrocesso, o retorno a um período muito atrasado, obscurantista, de crenças absurdas e místicas etc. Essa imagem começa a se forjar nesse momento e esconde que diversos elementos “medievais” permanecem por muito tempo ainda na história, como a hegemonia do cristianismo na Europa, ainda que haja uma quebra na unidade religiosa com novas igrejas cristãs (luteranas, calvinistas, anglicanas, puritanas etc.), o latim como língua erudita e língua oficial da Igreja (até a atualidade), muitos elementos relacionados aos valores cristãos etc. Nas palavras de Rafael também percebemos a importância da observação in loco, da pesquisa nas ruínas aliadas à leitura dos textos antigos. Ele media cuidadosamente o que observava, não tomava como verdadeiro apenas o que os textos diziam, mas verificava se os preceitos indicados pelos autores da arquitetura eram efetivamente realizados nas cidades e nas casas romanas da Antiguidade. Ou seja, a autoridade do texto escrito agora é colocada lado a lado com o conhecimento empírico, que, ainda que existisse na Idade Média, era bastante restrito. Outro artista célebre cujos trabalhos nos deixam compreender bem a mudança de postura que acontecia nesse momento foi Leonardo da Vinci (1452‑1519), que além de pintor era inventor de máquinas de guerra, fazia desenhos de máquinas para voar, além de ser grande estudioso de anatomia, dissecando e desenhando cadáveres. A pintura contribuiu muito para a ciência, pois para realizar desenhos mais naturalísticos era preciso conhecer bem o mundo real, conhecer as paisagens retratadas, as plantas e objetos, os corpos humanos e seus movimentos. Também, quando era realizada uma viagem e se desejava registrar as novidades conhecidas em territórios longínquos, os relatos por escrito poderiam ser muito valiosos, mas, quando os artistas passam a observar e pintar essas novas realidades, a compreensão e o registro se tornam muito mais aprofundados. 33 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Nesse momento de “Renascimento” da Antiguidade Clássica no princípio da Idade Moderna, a Antiguidade não era tomada como autoridade única e havia bastante espaço para a construção de conhecimentos novos, o que se manteria durante muito tempo. As transformações mais radicais que ocorreriam no conhecimento científico no século XVII e a filosofia crítica do século XVIII seriam em muitos aspectos herdeiras desse processo iniciado na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Tal conhecimento empírico também seria fundamentala partir da expansão ultramarina portuguesa, pois o mundo que passava a ser conhecido pelos lusitanos, sobretudo com a chegada ao território que depois se tornaria o Brasil, trazia uma série de elementos nunca antes vistos pelos europeus: povos desconhecidos, natureza desconhecida, línguas desconhecidas… Para compreender esse Novo Mundo era necessário estar aberto à novidade, e não apenas tentar aplicar ou compatibilizar o que era visto com a autoridade dos antigos. Figura 4 – Desenho de estudos anatômicos de Leonardo da Vinci: feto no útero, c. 1511 Fonte: Bosi (2017, p. 27). 34 Unidade I Sobre a leitura dos textos antigos em latim e grego e na versão mais próxima ao que foi escrito originalmente por seus autores, os humanistas levavam em consideração que as palavras utilizadas no passado poderiam ter mudado de sentido e aplicação ao longo do tempo, que alguns conhecimentos que eram dados como sabidos e subentendidos nos textos antigos pudessem não ser mais conhecidos naquele momento da leitura, o que poderia dificultar a compreensão. O mundo vivido pelos autores e aquele experienciado pelos leitores eram tão distintos entre si, separados por séculos de história, que era necessário lê‑los traduzindo e buscando compreender em seu contexto de produção, não simplesmente aplicando o que estava sendo ensinado nos livros antigos. Aliado a essa percepção das transformações que o tempo impunha nas sociedades, que passados séculos poderiam tornar‑se completamente incompreensíveis, as mudanças ocorridas no final da Idade Média, com as rotas de comércio estabelecidas por terra até o Oriente após o movimento de expansão das Cruzadas, a vida nas cidades, com a crescente importância dos trabalhos manuais (artesanato e manufatura) e comércio, fez surgir uma percepção sobre a humanidade bastante elogiosa, uma valorização das capacidades humanas. Muitos autores reforçam essa percepção, mas vale destacar um texto cujo título explicita a questão: “Discurso sobre a dignidade do homem” (De hominis dignitate oratio), escrito em 1486 por Giovanni Pico della Mirandola (1463‑1496). Giovanni Pico della Mirandola foi um nobre do norte da Itália que fez um longo percurso de formação, passando pela Universidade de Bolonha, Ferrara, Pádua e Paris. Em 1486, depois de entrar em contato com diferentes escolas e grupos de pensadores, escreveu 900 teses para serem debatidas em Roma, sendo que esse “Discurso sobre a dignidade do homem” era uma espécie de introdução da obra. Porém, a recepção não foi muito favorável ao autor, pois algumas das teses foram consideradas heréticas. Em 1487 Pico della Mirandola escreveu uma defesa de sua obra, o que piorou sua imagem e fez com que o papa Inocêncio VIII o condenasse por heresia. Depois de uma fuga para a França, acabou retornando à Itália com a proteção de um importante mecenas da época, Lourenço de Médici. Em 1493 foi absolvido, mas desde seu retorno à Itália até sua morte passou a ter uma vida reclusa, de estudos e com bastante discrição. No mesmo ano de sua morte (1486), seu sobrinho publicou postumamente o “Discurso sobre a dignidade do homem” fazendo uma apresentação do autor, tentando reabilitar a imagem do seu tio (GANHO, 2006). Apesar de a história pessoal de Pico della Mirandola não ser das mais afortunadas, a maneira como ele valorizava a imagem humana é compartilhada por muitos homens de sua época. A valorização do homem estava relacionada ao seu lugar dentro da criação divina. Ao criar o mundo, Deus teria desejado que alguma de suas criaturas tivesse a capacidade de compreender sua obra, “que amasse a beleza e admirasse sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado […], pensou por último criar o homem” (DELLA MIRANDOLA, 2006, p. 55). Mas, além disso, outras características distinguiam o homem dos demais seres vivos criados por Deus. Os animais tinham, cada um com as especificidades de sua espécie, uma vida definida, ações definidas. Mas o homem fora criado, segundo Pico, de natureza indefinida e colocado no meio do mundo. Continuando sua argumentação ele simula o que Deus teria dito a Adão quando o criou, e essas seriam suas palavras: A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná‑la‑ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entregarei. 35 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Coloquei‑te no centro do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celestes nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até os seres que são bestas, poderás regenerar‑te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo (DELLA MIRANDOLA, 2006, p. 57). Assim, diferentemente dos animais, que trariam em si desde o nascimento tudo o que serão, o Homem não era predefinido, poderia transformar‑se e criar tanto coisas boas como ruins, segundo decisão própria (livre arbítrio). Segundo Pico, o Homem teria diversas sementes postas por Deus desde seu nascimento, que poderiam ser cultivadas de diversas formas, por isso seu destino não seria rígido como o dos animais e seria também capaz de criações ilimitadas: o Homem é animal de natureza vária, multiforme e mutável (DELLA MIRANDOLA, 2006, p. 61). Dessa maneira, justificando por meio da fé cristã e refletindo sobre os textos sagrados, o discurso de valorização do homem se ampara na razão humana que permite sua compreensão e contemplação da criação divina, sua capacidade de criar e transformar o mundo e seu próprio destino. O humanismo era, dessa forma, uma atitude cristã, mas que valorizava a razão humana como ferramenta para o conhecimento. Ainda assim, essa atitude poderia se chocar com a Igreja, porque ao glorificar o homem de qualidades que o permite contemplar a obra divina ele poderia fazê‑lo sem o intermédio da Igreja. Além disso, ao retomar a leitura dos textos clássicos numa perspectiva filológica, ou seja, levando em consideração a ação do tempo e a distância entre aqueles que escreveram e os estudiosos dessa passagem da Idade Média para a Idade Moderna, abre‑se a crítica das interpretações vigentes dos textos sagrados, permitindo novas atitudes religiosas, além do questionamento de certos documentos da Igreja. Comecemos pela crítica aos documentos e, consequentemente, à autoridade da Igreja. Outro importante humanista, Lorenzo Valla (1407‑1457), teve enorme importância ao questionar um documento conhecido como a “Doação de Constantino”. Nesse documento – supostamente escrito por Constantino –, o imperador responsável por tornar o cristianismo religião oficial do Império Romano também teria doado seu império ao papa. Esse documento era utilizado muitas vezes para justificar a autoridade do papa acima das demais autoridades dos reinos da cristandade. Porém, com o conhecimento de latim e sua crítica histórica ao texto, Valla percebeu que certos termos e construções utilizadas na carta não existiam no período de Constantino, aparecendo no latim apenas séculos após a vida desse imperador. Dessa forma, o documento era muito posterior e provavelmente escrito justamente para justificar o poder papal, ou seja, uma falsificação. Além dessas mudanças de posturas intelectuais, algumas mudanças materiais foram fundamentais nesse momento, entre elas o aparecimento da imprensa e o livro impresso. Desse modo, a produção dos livros tornava‑se mais rápida, pois eles podiam ser reproduzidos a partir de uma mesma matriz, o que barateava muito sua confecção. Ainda assim, livros eram artigos de luxo na Idade Moderna, ainda que circulando em quantidade muito maior que anteriormente. A imprensa fora fundamental, nesse sentido, para a difusão das ideias de questionamento da Igreja católica, como as teses de Martinho Lutero (1483‑1546), o pensamento de João Calvino (1509‑1564), Ulrico Zuínglio36 Unidade I (1484‑1531), entre outros reformadores da Igreja. Se as discordâncias em relação ao catolicismo não eram novidade – posto que o controle das heresias era uma preocupação do papa –, nesse período essas ideias podiam circular com muito mais força para todos os cantos do mundo. Ainda anterior à quebra da cristandade com as reformas protestantes, Portugal inicia seu processo de expansão no além‑mar, que a priori ainda apresentava um caráter cruzadista, justificando suas iniciativas com o combate aos muçulmanos e a expansão da fé cristã, ainda que a motivação pela busca de rotas de especiarias já fosse anunciada em seus primeiros tempos (MONT SERRATH, 2020). Em 1415 ocorreu a primeira conquista, iniciando a expansão, com a tomada da cidade de Ceuta, no norte da África, um importante porto de chegada de mercadorias que vinham em caravanas para aquela região desde o Mar Vermelho. Além disso, a região próxima a Ceuta poderia fornecer cereais para a Europa. Por volta de 1420 foi ocupada e povoada a Ilha da Madeira, e em 1439 o mesmo ocorreu no arquipélago dos Açores. A partir dessas conquistas, ao longo de todo o século XV, vai tomando forma o chamado périplo africano, com conquistas e perdas, e pouco a pouco, conforme os portugueses vão descobrindo maneiras de avançar pela costa do continente, eles passam a vislumbrar a possibilidade de constituir uma rota marítima para o Oriente. Ou seja, os portugueses buscavam tomar locais estratégicos na África que permitissem acessar rotas de comércio que passavam pelo continente trazendo produtos de alto valor no mercado europeu – por isso Ceuta foi a primeira conquista. Mas o projeto de chegar à Índia contornando a África só vai surgir conforme se mostra possível avançar nesse trajeto, conquistando pontos no litoral que serviam de parada e abastecimento das embarcações e aprendendo a navegar nesses mares. Há um enorme desenvolvimento dos conhecimentos e técnicas de navegação durante essa expansão, que foram possíveis graças aos saberes astronômicos e matemáticos que eram ensinados em Portugal, como já apontado, além do incentivo dos reis para que se avançasse nesses estudos. Como aponta Almeida (2001, p. 110): “Por volta de 1330, com o uso da numeração árabe, começara em Portugal uma lenta revolução, chamada de aritimetização do real, que viria a ter importantes reflexos no desenvolvimento das mentalidades protomodernas”. Ou seja, os cálculos matemáticos necessários para a navegação, bem como outros saberes que foram muito desenvolvidos durante a Idade Moderna, eram cada vez mais sofisticados, e o emprego dos numerais indo‑arábicos como utilizamos até hoje (1, 2, 3…) foi fundamental nesse processo. A justificativa religiosa da expansão portuguesa foi reconhecida pelo papa – que, como já apontamos anteriormente, nesse momento não era mera figura “religiosa”, já que Estado e religião estavam profundamente interligados, como continuaria a ser durante toda a Idade Moderna. O papa era um agente político fundamental na Europa, reconhecendo ou não o poder dos governantes e certos direitos e privilégios dos reis. Por isso, é importante mencionar algumas determinações do papa Nicolau V, como sua bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, que reconhecia as conquistas realizadas por Portugal e dava direito a seu rei, Afonso V, e seus sucessores a terem o monopólio da navegação nessas regiões. Além disso, este documento permitia a construção de igrejas e mosteiros nesses territórios e a ida de religiosos para expandirem a fé cristã nas conquistas. 37 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Desse longo processo de expansão se chega à consolidação da carreira da Índia. Em 1498 Vasco da Gama chega à Índia, e em 1500 Cabral aporta no Brasil. Nos primeiros anos, a ênfase de Portugal estava no comércio com o Oriente, que era extremamente vantajoso do ponto de vista econômico. Mas, com os questionamentos do monopólio português por outros reinos e o início de uma concorrência, a colonização do Brasil passa a ser intentada. Se a expansão da fé é justificativa central nas ações desempenhadas por portugueses e espanhóis em suas conquistas e no comércio marítimo, um agente seria aliado fundamental e instrumento do poder dos reis e do papa nessas terras longínquas: os jesuítas. A Companhia de Jesus nasceu intimamente ligada no contexto da fragmentação do cristianismo na Europa do século XVI, por isso é preciso explicar, mesmo que brevemente, tal contexto. A Igreja católica já havia passado por momentos de renovação anteriormente e inclusive de rupturas, como a separação do cristianismo entre o Ocidente e o Oriente em 1053, quando surge a Igreja ortodoxa separada do restante da cristandade europeia, cuja autoridade se centrava cada vez mais no papa em Roma. Também, no século XIV, ocorreu um novo momento de ruptura com o governo simultâneo de dois papas, um em Roma e outro na cidade francesa de Avignon, sendo que alguns territórios se submetiam à autoridade de um ou outro papa. Mesmo internamente à Igreja ocorreram outras atitudes de reforma anteriores sem significar uma ruptura. As primeiras ordens religiosas foram criticadas em seus excessos, o que fez surgir novos grupos monásticos no século XI, como os cartuxos, premonstratenses e os cistercienses. Mais radicais ainda eram os mendicantes, que faziam voto de pobreza e pregavam nas cidades. Ou seja, a Igreja católica muitas vezes aceitava internamente posturas críticas a certos costumes e vícios em curso, incorporando reformas e melhorando seus quadros. Os que não podiam ser aceitos internamente porque suas críticas feriam crenças inquestionáveis ou aspectos centrais do poder papal e da própria tradição e possibilidade de sobrevivência da igreja eram perseguidos e calados, função exercida pela Inquisição, como já indicamos. Quanto mais o mundo se transformava e a sociedade e os próprios membros da Igreja percebiam inadequações na conduta religiosa de seus representantes, mais eram necessárias essas adequações aos novos tempos – nesse sentido, as transformações profundas que ocorriam na Europa nos princípios da Idade Moderna não poderiam ser diferentes. Portugal primeiramente, seguido pela Espanha, colocavam‑se num processo de expansão em que o comércio europeu se via inundado por mercadorias que já eram conhecidas e desejadas, mas em um volume e dinamismo inéditos. Além disso, os contatos e as notícias dos outros povos ao redor do mundo obrigavam os europeus a olhar o novo e desconhecido. A imprensa fazia circular os livros com muito mais facilidade que anteriormente, e os meios de comunicação, com melhores estradas para transporte de mercadorias, pessoas e correspondências, faziam que as ideias pudessem circular mais facilmente (BURKE, 2013). Junto a isso, a nova forma de olhar a herança antiga grega e romana permitia uma visão mais crítica sobre o momento em que viviam e sobre as autoridades religiosas. Todo esse contexto era terreno fértil para contestações e críticas ao poder papal e a certas verdades da fé. A diferença é que parte dessas críticas não puderam ser nem incorporadas à Igreja católica, nem refutadas, perseguidas e caladas. 38 Unidade I Martinho Lutero (1483‑1546), que era um monge agostiniano – ou seja, um homem plenamente inserido na cultura educacional e na compreensão teológica e institucional da Igreja de seu tempo –, iniciou esse processo das Reformas Protestantes. Na bastante conhecida data de 1517, pregou suas 95 teses na porta da Catedral de Wittenberg, apresentando críticas a aspectos tanto institucionais como teológicos da Igreja. Suas teses foram consideradas heréticas, mas, diferentemente do ocorrido em casos semelhantes anteriores, Lutero teve apoio de príncipes governantes do Sacro Império Romano Germânico (que hoje corresponde mais ou menos ao território da Alemanha). Depois de guerras e muitos esforços fracassados por parte do papa e do imperador, foi selada em 1555 a Paz de Augsburgo em que a reforma é aceitacom o princípio de que cada príncipe determinaria a religião onde sua autoridade era exercida (cuius regio eius religio). Esse princípio já havia sido apresentado pelos príncipes alemães na Confissão de Augsburgo (1530) e nesse momento era confirmada pelo imperador Carlos V. Por outro lado, a Igreja católica também fez reformas em sua instituição, melhorando a formação dos seus pregadores, buscando conter certos abusos e desvios em seus quadros. Ao mesmo tempo reafirmou aspectos fundamentais da fé, como os sacramentos, a virgindade de Maria, a salvação através das obras etc. Além disso, também reagiu de maneira mais enfática à reforma buscando conter a perda de fiéis, e mais, expandindo a religião nas colônias que vinham sendo exploradas por Portugal e Espanha. Essas resoluções foram tomadas durante as reuniões do Concílio de Trento, ocorridas entre 1545 e 1563. A partir de Trento a Inquisição ganharia peso muito maior de combate a qualquer possibilidade de conversão para as religiões reformadas dentro dos países que se mantiveram católicos. Os livros eram matéria de controle também, passando pela avaliação do Santo Ofício para verificar se continham matérias heréticas. Se fosse o caso passavam a ser proibidos (Index Librorum Prohibitorum). O uso de imagens como elemento fundamental para mover as paixões dos fiéis e os conduzir ao amor divino e ao exemplo dos santos foi reafirmada, porém, com uma postura que se contrapunha à arte renascentista e mesmo barroca, que era um enorme cuidado com a maneira como as imagens eram pintadas, coibindo os excessos, sobretudo recriminando imagens que pudessem ser consideradas sensuais e que muitas vezes eram pintadas nas igrejas ao representar os santos a partir de modelos da Antiguidade (CARMONA MUELA, 1998). Essas posturas foram colocadas em prática especialmente em Portugal, Espanha e suas colônias, pois nesse momento esses reinos se reafirmaram como aliados do papa no contexto das reformas. Nesse contexto o papel dos jesuítas foi fundamental para dar suporte ao poder papal e colocar em prática os princípios defendidos após o Concílio de Trento. A Companhia de Jesus tem uma relação muito estreita com a Universidade de Paris, modelo nos estudos teológicos durante a Baixa Idade Média, como apontamos anteriormente. Como nos conta Gonçalves (2001), a sua origem se deu por um grupo de seis estudantes dessa universidade, entre eles um português, chamado Simão Rodrigues, e um navarro (Navarra era um dos reinos que formava a Espanha), chamado Francisco Xavier, de que falaremos mais. Seu fundador, em torno do qual se reuniam esses estudantes, era Inácio de Loyola (1491‑1556). Em 1534 os integrantes desse grupo decidiram fazer voto de pobreza e de castidade. Em 1538 estavam em Roma e decidiram fundar uma nova ordem 39 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO religiosa (já eram um grupo um pouco maior nesse momento, o que foi aprovado pelo papa em 1540, com a bula Regimini militantis Ecclesiae). Em 1550, a redação dos principais objetivos da ordem é confirmada pelo papa Júlio III, a saber: • A defesa e propagação da fé cristã por meio da pregação e dos exercícios espirituais; • A educação cristã das crianças e dos mais humildes; • A administração dos sacramentos e a realização de obras de misericórdia. A ordem era caracterizada, para além dos votos de castidade, pobreza e obediência, por um voto de obediência ao papa, justamente no momento de ruptura da cristandade com as reformas protestantes. É fundamental observar também que a educação cristã está entre seus objetivos e seria efetivamente das obras mais importantes realizadas pelos jesuítas. Muito rapidamente a ordem foi recebida em Portugal por iniciativa do monarca dom João III e desempenharia papel fundamental no ensino em seus territórios durante quase toda a Idade Moderna. Foram enviados a esse reino em 1540 os jesuítas Francisco Xavier (1506‑1552) e Simão Rodrigues (1510‑1579). Já em 1541, Francisco Xavier partiu para o Oriente. Simão Rodrigues ficou em Portugal e era responsável por organizar essa que seria a primeira província da ordem, que foi formalmente instituída em 1546, recebendo amplo apoio da monarquia e de membros da nobreza lusitana. Em 1542, Simão Rodrigues e mais seis religiosos se instalaram no Mosteiro de Santo Antão‑o‑Velho em Lisboa (primeira casa da Companhia de Jesus em todo o mundo), e no mesmo ano foi fundado o Colégio de Jesus, em Coimbra, onde seria realizada a formação dos membros da ordem, o que permitiu que a ordem se expandisse rapidamente no reino e em suas possessões ultramarinas, com inúmeras casas e escolas. Os dois principais centros de ensino da ordem no reino eram o Colégio de Santo Antão, inaugurado em Lisboa em 1553, e a Universidade de Évora, fundada em 1559. Mas até o final do século XVI também passaram a desenvolver o ensino nas cidades de Braga, Bragança, Funchal, Angra, Ponta Delgada e Faro. No século XVII passaram a atuar como professores em Portalegre, Santarém, Porto, Elvas, Faial, Setúbal, Portimão e Beja. Entre 1542 e 1739, foram fundados no reino 30 estabelecimentos de ensino apenas em Portugal, o que representavam uma importante rede escolar, presente em quase todas as cidades, muitas vezes como o único centro de educação das localidades (com exceção de Lisboa, Coimbra e Évora). O ensino era gratuito e aberto a todos os grupos sociais, o que era possível mediante doações em suas fundações. A coroa, inclusive, chegou a transferir para a Companhia de Jesus muitos bens de mosteiros extintos. Gonçalves (2001) nos apresenta alguns dados que podem ajudar a entender o peso dessas instituições também no reino. O Colégio das Artes de Coimbra fora entregue aos jesuítas em 1555 com 1.200 alunos, sendo que no final do século XVI contava com mais de 2 mil alunos. O Colégio de Santo Antão, em Lisboa, tinha inicialmente 500 alunos, em 1575 já contava com 1.300 e em 1593 eram aproximadamente 2 mil alunos. 40 Unidade I No território ultramarino a atuação dos jesuítas é ainda mais notável e conhecida. Em 1542, Francisco Xavier chegou a Goa (Índia) e durante 10 anos permaneceu no Oriente realizando seu trabalho como missionário, percorrendo muitos locais da Índia, passando por Malaca (hoje parte da Malásia), as Ilhas Molucas (hoje parte da Indonésia, muito importante para o fornecimento de noz‑moscada e cravo durante os séculos XVI e XVII), Japão (onde chegou em 1549) e quase chegou à China, mas faleceu antes em 1552, aos 46 anos. Depois de Francisco Xavier, outros grupos de missionários jesuítas se dirigiram em várias levas para o Oriente, para Macau, China, Camboja etc. Na África também estiveram presentes em Angola, no Congo, Etiópia e Moçambique. A primeira expedição ao Brasil ocorreu em 1549, sendo o superior responsável por essa missão o padre Manuel da Nóbrega. Para realizar as atividades missionárias, a organização da ordem dividia as regiões em que atuavam em províncias e vice‑províncias. No caso dos territórios lusitanos ou sob influência desse reino, a divisão era a seguinte: Província de Goa, Província de Malabar, Província do Japão, Vice‑Província da China, Província do Brasil, Vice‑Província do Maranhão e Província de Portugal. Todas essas províncias juntas formavam a Assistência de Portugal, que no ano de 1759 contava com 1.698 jesuítas, sendo 789 em Portugal e o restante no além‑mar. Os jesuítas eram peça fundamental dentro da colonização do “Novo Mundo”, pois faziam a intermediação com os povos locais, seja no Brasil, na África ou no Oriente, e também auxiliavam no processo de transformação das culturas locais através da assimilação da religião cristã, importante ferramenta de poder. A relação entre os portugueses e os povos que aqui já se encontravam quando aportaram as primeiras naus era conflituosa. A guerra e as disputas por territórios eram constantes. Não foi a divisão em linhas paralelas da costa formando as capitanias hereditárias que efetivamente fez desse território uma colônialusitana. Acordos, disputas, conflitos e a tentativa de aculturação fizeram que, em um longo processo, esses territórios passassem a ser ocupados sob o poder português, utilizando para isso a mão de obra escravizada africana. A história de Hans Staden exemplifica bem o que significava tentar se estabelecer nessas terras em princípios da colonização. Hans Staden foi um mercenário alemão que naufragou no litoral de Santa Catarina no século XVI e acabou capturado pelo povo tupinambá, sobre quem escreveu observando com espanto aquela cultura tão diferente e que tinha na antropofagia um elemento cultural tão distinto e ameaçador. Ele conseguiu sobreviver à captura porque se fez passar por aliado dos franceses, com quem esse povo mantinha relações amistosas e de aliança, diferentemente da relação estabelecida com os portugueses. Também utilizou de outros artifícios para se manter vivo e conseguir voltar à Europa, onde publicou suas aventuras em terras brasileiras. Nesse breve relato já temos elementos fundamentais do que era esse território nesse momento: não apenas portugueses estavam presentes no Brasil, mas havia mercenários de outras nacionalidades, sendo que alguns desses grupos eram mais fervorosos em suas críticas aos privilégios lusitanos garantidos pela autoridade papal em explorar essas terras. Além disso, a relação com os povos originários era complexa e conflituosa, com alianças e disputas, e alguns grupos locais preferiam se aliar a outros europeus. 41 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Os jesuítas, nesse sentido, tinham uma enorme capacidade em adequar seus métodos evangelizadores às muito diversas realidades existentes nesse mundo desconhecido que se abria aos europeus. Por isso, dom João III (1502‑1557), que reinou Portugal a partir de 1521 até sua morte e que foi o governante a ocupar o comando do império justamente nos momentos mais críticos de reafirmação do papel de Portugal na Europa após o Concílio de Trento e na colonização efetiva do Brasil a partir de 1530, deu aos jesuítas o encargo da missionação no além‑mar a partir de uma relação estreita com a monarquia, chamada de padroado. Na Ásia, os jesuítas se utilizavam sobretudo dos conhecimentos matemáticos, astronômicos e geográficos de alguns de seus membros para se aproximar das classes dirigentes e conseguir realizar a evangelização desses povos (GONÇALVES, 2001). No Japão, por exemplo, a relação das autoridades locais com os jesuítas logo passou a ser conflituosa, com perseguições aos religiosos europeus, que eram muitas vezes mortos de forma dolorosa e exemplar, os martírios. Saiba mais Os filmes sugeridos a seguir, sobre a colonização do Brasil e o Império Português nos séculos XVI e XVII, discutem as complexas relações estabelecidas entre diferentes culturas durante a expansão lusitana: HANS Staden. Direção: Luiz Alberto Pereira. Brasil/Portugal: Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual (IPACA), Jorge Neves Produção Audiovisual, Lapfilme, 1999. 92 min. DESMUNDO. Direção: Alain Fresnot. Brasil/Portugal: A.F. Cinema e Vídeo, 2003. 101 min. A MISSÃO. Direção: Roland Joffé. Reino Unido/França: Warner Bros., Goldcrest e Kingsmere, 1986. 125 min. SILÊNCIO. Direção: Martin Scorsese. Estados Unidos/Reino Unido/Taiwan/ Japão/México/Itália: SharpSword Films, AI‑Film e CatchPlay, 2016. 161 min. Assim, os jesuítas vieram ao Brasil justamente quando o monarca passou a incentivar a colonização e cuidar mais de perto da administração desse território. De 1500 a 1530 foram realizadas viagens de reconhecimento, exploração de madeiras, animais, mas não foi criada uma colonização efetiva. Mas era importante começar a intentar uma povoação para garantir a posse da terra, pois havia questionamento sobre o direito de Portugal de explorar essas terras. Desde o Tratado de Tordesilhas (1494), que dividia as novas descobertas entre Portugal e Espanha, outros reinos questionavam essa autorização papal e tentavam avançar e conquistar territórios no além‑mar. Segundo esse tratado, os territórios no continente americano correspondentes ao litoral do Brasil fariam parte da colônia portuguesa. A partir de 1534, para tentar incentivar o povoamento e a exploração desse território, a colônia é dividida em capitanias hereditárias, com 15 faixas de terra entregues a 12 donatários que deveriam promover a colonização. Essa forma de explorar o Brasil logo fracassou, fosse pelas dificuldades financeiras, distâncias, 42 Unidade I resistência indígena, presença estrangeira etc. que faziam que os donatários pouco conseguissem explorar e efetivamente controlar esses territórios. Era necessário, desse modo, que a monarquia fosse mais efetiva na exploração, criando assim um governo geral, com sede na cidade de Salvador, na Bahia, que seria a capital, em 1549. Os jesuítas vêm ao Brasil justamente nesse momento de instalação de um governo na colônia. É importante também ressaltar o que significava ser uma colônia durante a Idade Moderna. Como aponta Mesgravis: O termo colônia designa a posição de um país que é posse de outro (a metrópole), que, por sua vez, tem toda autoridade sobre ele do ponto de vista político, administrativo e, sobretudo, econômico – o que significa exploração das riquezas da colônia pela metrópole (MESGRAVIS, 2018, p. 9). A relação estabelecida entre colônia e metrópole é desigual, a colônia é instrumento de enriquecimento da metrópole, está em subordinação à metrópole. No caso específico dessa relação estabelecida durante a Idade Moderna, a historiografia tradicionalmente a enquadra no chamado Antigo Sistema Colonial (FALCON, 2001). O adjetivo antigo serve para diferenciar o colonialismo dos séculos XVI ao XVIII do novo colonialismo de princípios da Idade Contemporânea, sobretudo no século XIX, que passaria a se ocupar da exploração do continente africano e territórios do Oriente que tinham feito parte da zona de influência europeia durante a Idade Moderna, especialmente com relações comerciais e estabelecimentos de feitorias, mas sem ocupar efetivamente grandes territórios ou subordinar seus governos à autoridade de um império. A colônia é ocupada, mas não precisa ser desenvolvida, a não ser que isso seja feito para que a metrópole obtenha mais vantagens em sua exploração. Não por acaso, o sistema de trabalho era o escravista, os mesmos colonizadores portugueses eram os comerciantes de homens e mulheres retirados do continente africano para serem vendidos como mercadorias na outra margem do Atlântico. Atualmente na historiografia há uma série de discussões envolvendo a questão do quanto a metrópole portuguesa efetivamente conseguia se sobrepor enquanto colonizadora e, consequentemente, o quanto o Brasil efetivamente estava subordinado aos desejos do reino europeu. Também é importante compreender os atores coloniais. Como aponta Falcon (2001), o colonizador é todo sujeito ligado à administração colonial, leigos ou eclesiásticos (entre eles os jesuítas), bem como os comerciantes de grosso trato. Já o grupo dos colonos é composto por todos os níveis de proprietários coloniais, ou seja, proprietários de terras, animais, da mão de obra (já que o que caracteriza a escravidão é a posse, a compra e venda do sujeito escravizado), dos instrumentos etc. Por fim, os colonizados são todos os demais sujeitos subordinados ao poder político e religioso dos colonizadores ou o poder econômico dos colonos; são os indígenas, os negros escravizados, os mestiços, os brancos pobres. Desses grupos, o que entendemos como elites coloniais são os colonos, que se configuram por serem uma elite econômica (proprietária ou mercantil) e letrada. 43 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO O chamado Atlântico Português, nesse contexto colonial português, era compreendido por dois polos que estavam profundamente interligados. Em uma margem do Atlântico, a colônia portuguesa na América, o Brasil; na outra margem, as feitorias portuguesas na costa africana, de onde vinham pessoas na condição deescravizados, sobre o trabalho dos quais toda a estrutura de produção e exploração do Brasil foi organizada. Toda a história da colonização do Brasil dependeu do comércio de escravizados. As pesquisas de Luiz Felipe de Alencastro, importante historiador brasileiro dedicado ao estudo do tráfico de escravizados, são fundamentais para compreender essa questão. Sua obra mais famosa, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (ALENCASTRO, 2000), mostra como a escravidão era a base da colonização e como os colonos participavam desse comércio que muitas vezes escapava da zona de controle e de enriquecimento da metrópole. O “trato” é o comércio; “dos viventes” indica que eram seres vivos, humanos, tratados como mercadoria. Alencastro nos informa, inclusive, que o comércio escravista é o ciclo econômico mais duradouro, não se estendendo apenas ao período colonial, compreendendo a longa duração de 1550 a 1850 e incorporando em seu interior subciclos dependentes do ciclo negreiro, como o açúcar, o tabaco, o ouro e o café (ALENCASTRO, 2009). Nesse território colonial, subordinado à metrópole, cujo principal objetivo era a exploração econômica, como poderia ser organizada a educação? Existiam dois grupos muito distintos na população colonial que seriam objetos das práticas pedagógicas. Por um lado, havia as elites coloniais, que devemos compreender como os filhos de funcionários da coroa, filhos dos colonos donos de terras e o próprio clero residente no Brasil. Por outro lado, havia os colonizados, que não receberiam o mesmo tratamento por parte dos padres e do poder metropolitano. Observação Na Espanha a questão dos direitos dos povos conquistados na América foi discutida entre 1550 e 1551, na cidade de Valladolid, e ficou conhecida como a Controvérsia de Valladolid. Em relação aos colonizados, os jesuítas, como agentes do poder metropolitano, precisaram lidar com realidades muito distintas no Brasil e na África. No Brasil era preciso controlar e modificar os costumes dos povos indígenas que praticavam a antropofagia e a poligamia. Nesse sentido, a colonização é também um processo que intenta apagar as culturas dos povos originários dos territórios conquistados. Se não totalmente, pelo menos em seus aspectos mais contraditórios em relação ao cristianismo dos colonizadores. Por outro, tenta impor a cultura lusitana, a aceitação do cristianismo, da autoridade do papa e do monarca lusitano, além de imporem uma visão hierárquica da sociedade, em que havia pessoas com mais direitos e privilégios que outras. No caso dos indígenas no Brasil o foco foi a conversão para o cristianismo. Os indígenas eram considerados em um estado de menoridade social e mental, ou seja, numa visão de que os europeus deveriam tutelar e ensinar esses povos no caminho correto da fé e da cultura. Nesse sentido, a antropofagia, a poligamia, as guerras entre diferentes povos, tudo isso foi reprimido pelos portugueses. Os convertidos eram concentrados em aldeamentos feitos pelos religiosos. Como nos apresenta Gonçalves: 44 Unidade I Estas aldeias possibilitavam a realização de várias finalidades: o ensino da religião e da vida cristã, a aquisição de hábitos de trabalho regular e estável em vários campos de atividade e a defesa dos índios contra os abusos dos colonos e os ataques dos inimigos (GONÇALVES, 2001, p. 26). A questão da defesa era fundamental, visto que a situação no Brasil era bastante conflituosa. Uma das primeiras preocupações dos portugueses era a criação de fortes de defesa onde se instalavam no litoral. Além disso, percebe‑se nessa caracterização dos aldeamentos a presença da educação jesuítica. Essa educação voltada aos indígenas era uma das vertentes da missão pedagógica dos jesuítas. Porém, esse processo não era simples, já que os missionários tiveram que enfrentar a “inconstância da alma selvagem”, como nos apresentaria Viveiros de Castro (1992). Quando os jesuítas tentaram catequizar os tupinambás, uma contradição se apresentou aos religiosos. Se os indígenas pareciam muito entusiasmados e abertos a aprender o que os padres tinham a ensinar, ou seja, aprendiam rápido e com aparente entusiasmo, por outro lado também muito rapidamente abandonavam os preceitos cristãos supostamente adquiridos para retomarem seus próprios costumes de antes. O mesmo Viveiro de Castro analisa sobre essa questão um sermão do padre Antônio Vieira, um dos principais nomes da cultura erudita jesuítica em Portugal e no Brasil. No “Sermão do Espírito Santo”, de 1657, Vieira apresenta duas imagens distintas para tratar da conversão. A metáfora utilizada parte do exemplo dos jardins dos príncipes de sua época, onde se podia encontrar dois tipos de estátuas: as que são esculpidas em mármore e aquelas feitas a partir da poda dos arbustos e pequenas árvores (topiaria), que o jesuíta apresenta como feitas de murta, planta muito utilizada para esse fim. Imagine então o trabalho de um escultor realizando uma belíssima estátua de mármore, o tempo e o trabalho gastos em sua execução. E pense, por outro lado, no trabalho daqueles que vão preparar ornamentalmente esses arbustos em formas humanas ou de animais nos jardins. Nas palavras de Vieira: A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve (VIEIRA, 1657 apud CASTRO, 1992, p. 21). Essas duas formas de estátuas eram metáforas no discurso de Vieira para dois tipos de povos com que os jesuítas tinham que lidar em suas missões para evangelizar o mundo. Havia povos que eram mais resistentes às iniciativas jesuítas, mas depois de muito trabalho, uma vez convertidos, não retornavam aos seus costumes antigos. Eram como as estátuas de mármore. Por outro lado, havia povos que pareciam aceitar com facilidade os ensinamentos cristãos, mas se não houvesse a constante presença jesuítica entre eles rapidamente voltavam à forma como viviam anteriormente. Esses povos se assemelhavam à murta – e era o caso dos povos do Brasil, segundo a visão dos padres daquele momento. Antes da chegada dos jesuítas, os primeiros colonos que aqui chegaram – particularmente na capitania de São Vicente (hoje estado de São Paulo) – escravizavam indígenas para a realização de trabalho e para se desbravarem caminhos em busca de ouro. Desde as primeiras notícias de descoberta 45 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO de metais preciosos em terras castelhanas na América e da conquista dos incas por Pizarro, império onde se encontravam as abundantes minas de Potosí, os colonos dessa capitania tentavam encontrar essas riquezas no Brasil. Mesmo sendo proibida, a escravização de indígenas foi uma das atividades mais importantes economicamente para esses colonos, o que os colocou em choque com os jesuítas. Por isso, as aldeias criadas pelos religiosos eram locais onde os indígenas podiam buscar abrigo, tanto para escapar das disputas entre os diferentes povos, mas também da possibilidade de captura pelos paulistas. As aldeias passam a ser criadas a partir de 1566 como uma solução do governo português para os conflitos existentes entre jesuítas e colonos. Os jesuítas, que cuidariam dessas aldeias, teriam que fornecer indígenas aos colonos para trabalhar por um determinado tempo e mediante pagamento. Nesse acordo de trabalho os indígenas deveriam manter suas estruturas familiares, não os separando de seus parentes. Mas esses acordos comumente eram desrespeitados pelos colonos, não realizando os pagamentos devidos e não permitindo que os indígenas retornassem às aldeias no tempo acordado (MESGRAVIS, 2018). Por isso logo passou a ser do interesse dos jesuítas e dos próprios indígenas que essas aldeias fossem instaladas em locais mais distantes dos povoamentosde colonos, normalmente litorâneos: eram as missões. Nesses locais os jesuítas intentavam criar uma espécie de sociedade utópica “apartadas dos vícios e males dos europeus, a saber, a guerra, a cobiça e a violência. Achavam possível fazer dos índios católicos perfeitos” (MESGRAVIS, 2018, p. 27). Os governadores gerais também viam com bons olhos os aldeamentos jesuíticos, pois podiam frear as mortes dos indígenas por guerras e doenças, o que estava fazendo suas populações diminuírem drasticamente. Não há colônia sem povoamento. Se o território se encontra vazio outras potências podem tomá‑lo para si. Era preciso que os indígenas continuassem vivos e estivessem submetidos à autoridade da coroa, ou pacificados, como se dizia na época. A submissão à autoridade dos jesuítas, agentes da coroa, já implicava subordinação à monarquia portuguesa. Saiba mais Sobre o período colonial e a violência na construção deste território, os dois primeiros episódios da série documental Guerras do Brasil.doc trazem importantes informações e discussões: AS GUERRAS de Conquista. In: GUERRAS do Brasil.doc. Direção: Luis Bolognesi. Brasil: Buriti Filmes, 2019. 27 min. AS GUERRAS de Palmares. In: GUERRAS do Brasil.doc. Direção: Luis Bolognesi. Brasil: Buriti Filmes, 2019. 26 min. São criadas aldeias na Bahia (Ilhéus), no sul do Mato Grosso (Itatim), no Rio Grande do Sul (Tapes), no Paraguai (Guairá), várias ao redor de São Paulo (Pinheiros, São Miguel, Carapicuíba, Embu Mirim, Embu‑Guaçu, Itapecerica etc.). Nesses aldeamentos havia escolas, oficinas de artesanato, cabanas para os indígenas morarem, capelas e alojamentos para os padres (normalmente dois por missão). O ensino jesuítico nesses locais compreendia ofícios em geral, artes, a própria catequese, escrita e leitura. 46 Unidade I As cartas que os jesuítas escreviam aos seus irmãos de companhia também revelam muito sobre as formas como esse ensino era realizado. Inicialmente, os padres reproduziam certas técnicas pedagógicas comuns na Europa, o que incluía castigos físicos e advertências públicas severas. Os indígenas não aceitavam tais comportamentos com seus filhos, retirando as crianças da escola e se colocando contrários aos jesuítas. Por isso foi necessário adaptar o método – como já indicamos anteriormente, a adaptabilidade se tornou a grande especialidade dos jesuítas. Com isso, os padres passaram a utilizar danças, brincadeiras e cantos para o ensino das crianças; para os adultos, que tratavam os padres com grande respeito, os jesuítas aproveitavam essa predisposição a ouvir e tratar bem o outro para contar histórias religiosas e assim buscar a conversão daqueles indivíduos. Os jesuítas eram muito elogiosos ao mencionar algumas características e costumes indígenas, como a gentileza, a simplicidade, a boa vontade com estranhos, o desapego que tinham em relação aos bens materiais. Por causa das oficinas, muitos indígenas atuaram na construção de casas, igrejas, no entalhe das madeiras utilizadas para se fazer ornamentos e móveis para as capelas, nas pinturas. A mescla dos motivos cristãos a elementos indígenas nessas obras ficou conhecida como estilo missioneiro ou estilo jesuítico. Inicialmente os bandeirantes não atacavam as aldeias, mas passaram depois a ver nesses locais a possibilidade de aprisionar indígenas já pacificados. Também, durante o século XVII há problemas na vinda de africanos escravizados para o Brasil devido à invasão holandesa, o que faz das aldeias alvo dos bandeirantes. No entanto, as tentativas de ataque são recebidas com grande resistência dos indígenas cristianizados, implicando muitas perdas entre os bandeirantes nessas incursões. No final do século XVI uma importante mudança ocorreu no governo de Portugal. Com a morte (ou desaparecimento) de dom Sebastião em 1578 no norte da África, subiu ao poder seu tio‑avô, já que o jovem rei não tinha se casado e, por isso, não tinha filhos legítimos para sucedê‑lo. O cardeal dom Henrique, novo governante, era um homem idoso e também sem herdeiros, o que fez que diferentes pretendentes ao trono, que alegavam ter direito ao reino de Portugal devido ao parentesco com o finado rei, passassem a buscar o apoio dos nobres lusitanos para governar o país, o que foi conseguido por Felipe II de Espanha, que era tio de dom Sebastião. Nesse momento, todos os reinos que compunham a Península Ibérica passaram a ser governados pelo mesmo rei e todas as colônias de Portugal e Espanha também se uniram nesse império. Mesmo não havendo a fusão desses reinos e das colônias, as fronteiras na América Ibérica passaram a ser muito mais flexíveis, permitindo que os colonos portugueses adentrassem mais no continente. Isso implicou em aldeamentos ainda mais distantes do litoral, os jesuítas passaram a atuar intensamente nas margens da bacia do rio Amazonas, aproveitando as riquezas locais e os conhecimentos indígenas para fazer o comércio das “drogas do sertão”, que eram plantas medicinais e condimentos da região, de aves, alimentos, penas e madeiras, o que era muito lucrativo e gerou conflitos com colonos. Além da educação dos indígenas – seja a educação religiosa, seja o ensino de ofícios e a alfabetização –, era necessário formar padres na colônia. Se era tão difícil manter a fé desses povos, como dizia Vieira, era necessário que a Igreja estivesse bastante presente no Brasil. Nesse sentido, havia também uma outra modalidade de ensino organizada pelos jesuítas na colônia que se voltava para a formação do próprio clero e de parte das elites locais. 47 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Os colégios jesuíticos nas colônias seguiam os mesmos princípios e métodos dos colégios no reino. A base desse ensino estava indicada em um documento chamado Ratio Studiorum, cuja primeira versão foi publicada em Roma, em 1586. Conforme Gonçalves (2001, p. 23): “Estabelecia‑se uma organização escolar cuidada e rigorosa, mas, simultaneamente, flexível, para que fosse possível a adaptação a lugares, tempos e pessoas muito diversas”. O plano de estudos nos colégios jesuíticos consistia em um primeiro ciclo em que se estudava três anos de gramática, um ano de humanidades e um de retórica. Nesse contexto dos séculos XVI e XVII a retórica ganhava enorme importância nos estudos humanísticos com a valorização dos textos de Cícero, o que tinha como implicação direta uma nova forma de construir os sermões e de se realizar a atividade de pregação dos religiosos. O texto do padre Antônio Vieira mencionado anteriormente é um exemplo desse uso da retórica na pregação. As palavras são pensadas para envolver e mover os afetos dos ouvintes. As construções das frases são bem cuidadas, cria‑se expectativa sobre o desenvolvimento das ideias apresentadas pelo pregador, usam‑se exemplos inusitados para explicar os pontos defendidos. Na Antiguidade, a retórica era a arte da persuasão, ou seja, do convencimento, utilizada em tribunais, nos debates políticos no Senado romano ou na ágora da pólis grega, mas era também a arte de falar e escrever bem (MUHANA; LAUDANNA; BAGOLIN, 2012). Retomando o ensino dos colégios jesuíticos, após esse primeiro ciclo de estudos se iniciavam os estudos superiores, com três anos de filosofia seguidos de quatro anos de teologia. Em filosofia se aprendia matemática, física e astronomia. Apesar de a retórica dar nova roupagem ao ensino cristão dos padres jesuítas, ainda podia se perceber importantes permanências ou revivências de aspectos das universidades medievais. A lógica aristotélica voltava a ser estudada de modo mais rigoroso a partir das novas traduções e leituras possibilitadas pelo conhecimento de grego durante o Renascimento. Por isso se considera também que os Colégios de Artes Jesuíticos propiciavam o desenvolvimento de uma segunda escolástica, ou escolástica barroca (GOMES, 2001). As disputas ocorriam frequentemente entre os estudantes para aprimorar a capacidade de argumentação e manuseio dos conteúdos estudados nas aulas. A atividade educacionaldos jesuítas no Brasil fez com que criassem uma verdadeira rede de colégios, seminários, escolas primárias e oficinas. O ensino era gratuito. O primeiro curso de Artes foi criado no Colégio da Bahia, fundado pelos jesuítas em 1572, sediado em Salvador, então capital da colônia. Como já vimos anteriormente, o curso de Artes daquele momento corresponderia melhor em nossos tempos a um curso de Filosofia. Como nas universidades, a formação realizada nos colégios jesuíticos concedia aos graduados os títulos de bacharel, licenciado e mestre em artes. Segundo Barreto e Filgueiras (2007), o responsável por esse colégio, o provincial Inácio Tolosa, regia o curso na colônia de forma equiparada ao ensino jesuítico realizado na Universidade de Évora. Também existiam cursos de Artes, nos mesmos moldes da Bahia, realizados pelos jesuítas em muitas outras cidades durante o período colonial, como no Rio de Janeiro, São Paulo, Olinda e Recife. 48 Unidade I Ainda que o ensino fosse o mesmo que o realizado nas instituições superiores portuguesas, ou muito próximo, o título de “universidade” não foi concedido a esses centros de ensino, mesmo com muitos pedidos feitos ao longo do século XVII, especialmente no que dizia respeito ao Colégio de Salvador, o que foi negado com justificativas relacionadas à falta de utilidade e da necessidade de concentrar esforços na colônia em obter maior produção de açúcar para o comércio do Reino (BARRETO; FILGUEIRAS, 2007). A elite colonial de maiores recursos se dirigia a Portugal para estudar, especialmente na Universidade de Coimbra, também sob autoridade dos jesuítas. Muitos jesuítas, devido à educação que recebiam, tiveram grande destaque na cultura letrada de seu tempo, como tratadistas de diferentes áreas. A matemática e a astronomia também foram muito desenvolvidas em seus colégios, especialmente na Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão, que ficou célebre na formação de cartógrafos, pilotos e militares. Também faziam observações nos locais onde atuavam, como o padre João de Loureiro, que escreveu a obra Flora cochinchinensis (foi missionário durante 36 anos na Cochinchina). Além disso, destacavam‑se suas obras sobre linguística, já que era fundamental compreender as línguas dos povos que evangelizavam e buscar boas soluções para ensinar o português aos que estavam sob sua influência (GONÇALVES, 2001). Os jesuítas também atuavam no favorecimento da ciência de sua época, como o padre Manuel Maciel, que dava aulas de física no Seminário da Bahia, dedicando‑se ao estudo e ensino da Física Moderna. Foi seu pupilo o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, que estudou no Colégio de Belém (próximo à Vila da Cachoeira, no Recôncavo Baiano). Esse jesuíta se tornou célebre na história por suas invenções e experimentos com balões de ar quente, que chegaram a ser demonstrados ao rei dom João V em 1709. Diferentemente do que acontecia no Brasil, as colônias espanholas tiveram universidades, seguindo os mesmos moldes europeus. A primeira foi criada em Santo Domingo, na Ilha de Hispaniola (hoje República Dominicana), que recebeu a aprovação papal de Paulo III In apostolatus culmine, em 1538. Eram oferecidos nessa universidade os cursos de Medicina, Direito, Teologia e Artes. Também foram fundadas ao longo do século XVI universidades na Cidade do México, em Lima e em Quito. Entre os séculos XVI e XVII foram fundadas cerca 24 universidades na América (BARRETO; FILGUEIRAS, 2007). Na América Inglesa, predominantemente puritana e protestante, também foram fundadas instituições de ensino superior ainda no período colonial, como em Massachusetts, em 1636, que depois de três anos receberia o nome de seu patrocinador, o pastor John Harvard, o Harvard College. Em 1693 foi fundado o College of William and Mary, na Virgínia. Muitas outras foram criadas, como o Yale College, de 1701, mas até o século XVIII não usavam o nome universidade (BARRETO; FILGUEIRAS, 2007). Na Europa, devido ao contexto de ruptura da religião cristã em diversas igrejas distintas, a alfabetização passou a ser tratada como um elemento que contribuía para a catequese, fosse católica ou protestante. Também através da educação seria possível controlar a cultura popular, moldando‑a segundo os preceitos dos religiosos da época. A Idade Moderna é um período de muito controle dos costumes e guerras devido à religião. Tanto a cultura popular como a cultura erudita eram controladas nesse sentido, o que é demonstrado pelo número de perseguições da Inquisição aos autores de livros dos mais diversos temas. Como bem apresenta Peter Burke (2013), muitas festas e costumes populares foram alvos dos religiosos que buscavam aboli‑los ou adequá‑los à concepção religiosa desses agentes. Por exemplo, o bispo da cidade de Évora exigia que toda peça de teatro fosse aprovada antes que fosse 49 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO encenada. As festas passaram a ser condenadas como momentos de entrega aos prazeres da carne como a embriaguez, a glutonia, a luxúria, o que era combatido tanto por católicos como por protestantes. As danças passaram a ser malvistas, pois possibilitavam que as pessoas se tocassem de modo mais lascivo ou podiam ser indecorosas ao lançarem as damas ao ar, quando se poderia ver partes das pernas desnudas. Enquanto condenavam aspectos culturais populares antigos, instauravam novas músicas mais adequadas à nova forma de se viver a religiosidade na vida cotidiana. Por outro lado, essas posturas de maior controle da vida e dos costumes das pessoas, o que era muito percebido nos momentos de divertimento, também implicavam uma postura educacional distinta na Europa e que estava em concordância com muitos aspectos do que vimos anteriormente sobre a educação nas colônias. Entre os protestantes era uma importante prioridade tornar a Bíblia acessível, o que implicou as traduções de seu texto para as línguas vernáculas, enquanto católicos se apegavam à versão latina de São Jerônimo. Em 1522, Lutero publicou o Novo Testamento em alemão e, em 1534, a Bíblia completa traduzida também para esse idioma. A partir dessa iniciativa muitas outras traduções foram publicadas na Europa, como a Bíblia Sueca de Gustavo Vasa (1541), a Bíblia de Genebra em francês (1540 e depois em edição revista de 1588), a Bíblia de Kralice em tcheco (10 volumes publicados entre 1579 e 1593) e a Bíblia calvinista húngara (1590). Apesar de não serem artigos baratos, a difusão dessas bíblias fez que mais pessoas tivessem acesso, ainda que a maioria conhecesse as histórias através de outros leitores. Mas os livrinhos do catecismo protestantes com as informações elementares sobre a doutrina eram mais comuns e, da mesma forma, implicavam a necessidade de alfabetização dos fiéis. Como aponta ainda Burke, apenas no século XIX teremos dados mais confiáveis sobre a alfabetização na Europa, mas alguns indícios, como o número de assinaturas em documentos, dão algumas indicações sobre o assunto. A partir da análise dessas fontes é possível perceber que ainda a minoria do povo era efetivamente capaz de ler em princípios da Idade Moderna, e que até o final do período esse número aumentou, que os artesãos, ou seja, as pessoas que viviam nas cidades, tendiam a ter mais acesso às letras que os camponeses, bem como os homens representavam maior número de alfabetizados em relação às mulheres. Por fim, os protestantes apresentavam maior porcentagem de alfabetizados, o que é facilmente compreensível pelas mudanças de posturas sobre a relação entre fiéis e a Bíblia, que poderia ser lida e interpretada sem necessariamente passar pela intermediação da Igreja, além da necessidade de passarem pelo catecismo (com os livrinhos já mencionados) para poderem partilhar dos ritos da congregação. O crescimento da alfabetização nesse momento na Europa é o resultado dos esforços de homens eruditos devotos (católicos e protestantes), pois as elites letradas laicas não apresentavam a mesma preocupação. Por exemplo, muitos desconfiavam quea possibilidade da educação dos mais pobres fizesse florescer neles o inconformismo com a sua condição de vida. O próprio Voltaire considerava que nem todas as crianças deveriam aprender a ler e escrever. Ou seja, os avanços desse momento estavam intimamente ligados à religião. País de Gales, Inglaterra, Suécia, França foram reinos em que o crescimento da alfabetização só ocorreu graças à ação de grupos religiosos. Por fim, a análise dos impressos que circulavam também nos dá indicativos sobre a alfabetização no momento. O acesso foi facilitado pela presença de livrarias nas cidades e de mascates no campo, onde podia‑se comprar livros e folhetos. Se o papel ainda custava caro no momento, livros com menor número de páginas passavam a ser economicamente mais acessíveis. Por fim, os textos desses pequenos livros e folhetos passaram a ter uma linguagem mais simples que permitia a leitura daqueles que tinham apenas uma alfabetização mais básica, sem alcançar os níveis de erudição das elites letradas (BURKE, 2013). 50 Unidade I Velho e Novo Mundo convergiam em muitos aspectos nos rumos escolhidos para o ensino e a educação. 3 A REFORMA POMBALINA A partir do século XVII muitas mudanças acontecem no Brasil. Primeiramente porque em 1640 os portugueses entraram em guerra com a Espanha para retomar sua independência e ter um monarca lusitano, escolhendo para isso uma das famílias descendentes dos antigos reis, os Bragança. Esses conflitos se estenderiam até 1668, quando o fim da União das Coroas Ibéricas é aceito pela Espanha, assim como por outros governantes da Europa. Porém, isso gerou discussões ainda sobre como seriam organizadas as antigas colônias, já que a ocupação da América pelos colonos foi muito modificada nesse tempo de União das Coroas, com portugueses presentes em territórios que seriam espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas. Essas discussões foram finalmente resolvidas com o Tratado de Madrid, de 1750, que redefiniu os limites do Brasil, tornando‑se muito mais próximo do que é hoje. Dessa expansão também surgiu uma nova forma de exploração econômica e de ocupação do território a partir da descoberta de minas de ouro e depois de pedras preciosas. Entre 1695 e 1730, muitas pessoas se dirigiram à região de Minas Gerais em busca de ouro. Portugal já havia explorado minas antes na África do Sul, mas perdeu o controle dessa exploração em 1580, por isso já haviam sido transferidos para o Brasil pessoas e conhecimentos que permitiriam à metrópole investir na busca por minérios. Diferentemente do que acontecia com a produção de cana de açúcar no litoral, em que a população se concentrava no campo e as vilas e cidades tinham importância administrativa, na região das minas o povoamento foi essencialmente urbano. As formas de organizar o trabalho, ainda que fosse totalmente baseado na escravização de homens e mulheres africanas, tornou‑se mais complexa, com o estabelecimento de acordos entre senhores e escravizados, em que estes poderiam trabalhar com maior autonomia e ficar com parte dos rendimentos de seu trabalho. Esse costume permitiu que as pessoas escravizadas pudessem ter uma vida mais esperançosa e com propósito nas cidades, contribuindo para as irmandades e podendo acumular recursos para comprar sua própria liberdade. Essa relação de senhores e escravizados também teve como consequência, mais comum na região das minas, os trabalhadores negros terem um ofício específico, como carpinteiro, sapateiro, alfaiate. As mulheres também poderiam trabalhar especificamente como quitandeiras e prostitutas (a mando do senhor). Os que trabalhavam diretamente nas minas costumavam ter uma rotina mais desgastante, com muitas doenças devido ao frio e às jornadas que passavam dentro de pequenos córregos, com água até as canelas; além disso, não costumavam gozar desses diferentes acordos de trabalho. O controle da coroa passou a ser mais presente na vida da população, fosse pela fiscalização e pela existência de maior número de funcionários da metrópole, fosse pelo maior número de impostos que deveriam pagar. Para controlar ainda mais a região mineradora, não foi permitido que as ordens religiosas se instalassem ali, ou seja, a influência dos jesuítas e sua atuação como educadores nessa região foram barradas. Era permitida a presença de padres leigos, que estavam submetidos à autoridade do bispo de Mariana. 51 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Mas a vida religiosa e sua relação com a educação, especialmente para o exercício de certos ofícios, foi aprofundada na região devido às irmandades religiosas, caracterizadas por grupos de pessoas formados a partir de uma devoção comum, normalmente relacionada ao seu grupo social e/ou à sua profissão. Tais irmandades construíam uma capela própria para a realização dos serviços religiosos e a assistência espiritual dos fiéis, oferecendo um suporte material e espiritual em momentos importantes da vida das pessoas que compunham esse grupo. Davam assistência às grávidas, cuidavam dos doentes, cuidavam dos sepultamentos, dos casamentos, participavam das festas religiosas, momento em que a comunidade se unia e se apresentava em procissões etc. Havia uma certa competição entre as irmandades, o que fica visível nas igrejas construídas nas cidades históricas em que ocorria mineração. Por isso, essa região atraiu artífices portugueses, que, além de realizarem as obras, também ensinavam arquitetura, carpintaria, marcenaria, ourivesaria, pintura e escultura a seus filhos e aprendizes, normalmente homens negros, que passavam a atuar na região. Desse contexto surgiu o Barroco mineiro. Se antes os negros não podiam participar das aulas oferecidas pelos jesuítas e acabavam aprendendo no campo seu ofício e a religião segundo o desejo dos senhores, nas minas se abria espaço para que esses homens e mulheres, escravizados ou libertos pudessem adquirir conhecimentos distintos e traçar caminhos novos. Aleijadinho é um desses exemplares, filho de uma mulher escravizada e de um artífice português, realiza muitos trabalhos em arquitetura e escultura. A) B) Figura 5 – Igreja de São Francisco (A) e Igreja do Rosário (B), em Ouro Preto Devido às festividades religiosas mais frequentes nas cidades mineiras, muitos músicos e compositores foram educados na região para cumprir essas necessidades, entre eles grande número de homens negros. Segundo Mesgravis: 52 Unidade I Testemunhas contemporâneas e viajantes do século XVIII se deslumbraram com a abundância e a qualidade da música mineira executada e produzida por músicos mulatos ou negros, livres ou escravos, em todas as vilas e paróquias. Eram pagos por irmandades, por particulares ou pelas câmaras municipais, e conseguiam manter‑se com seu ofício. Alguns deles chegaram a organizar irmandades próprias, sendo a mais poderosa a de Santa Cecília, cujos estatutos revelam como regulava o exercício da profissão, os pagamentos, os deveres, as qualificações exigidas etc. (MESGRAVIS, 2018, p. 87). A opulência das minas começou a mostrar sinais de esgotamento em meados do século XVIII, e parte das reformas realizadas durante o período de governo de dom José I (1714‑1777) – juntamente com seu ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699‑1782), mais conhecido pelo título de Marquês de Pombal – foi tomada nesse contexto de decadência da arrecadação de impostos. Mas, para compreender essas mudanças na administração metropolitana, é preciso entender que as atitudes desses governantes visavam uma “modernização”, ou seja, uma maior adequação de seu reino a uma série de tendências que estavam surgindo no ambiente intelectual europeu. Essas tendências se baseavam em dois aspectos principais: o primeiro se relacionava ao impacto da revolução científica dos séculos XVII e XVIII na maneira de compreender o mundo e, consequentemente, em como se deveria ensinar nas escolas e universidades; o segundo aspecto relacionava‑se a uma postura filosófica crítica às estruturas europeias, masque ainda assim foi absorvida por governantes que pretendiam manter seu poder – o Iluminismo, e sua apropriação por governos absolutistas, chamados de déspotas esclarecidos. Por isso trataremos brevemente desses dois aspectos. No século XVII, uma série de transformações ocorreram na forma como se organizava e construía o conhecimento na Europa e que passaram a ser conhecidas como a Revolução Científica. Essa nova forma de conhecimento, que em breve chamaríamos de ciência moderna, se tornaria progressivamente a maneira de saber hegemônica no mundo. O método utilizado baseava‑se na experimentação, no uso de instrumentos que foram sendo criados para melhor medir e observar os fenômenos da natureza, como o telescópio. Além disso, a descrição desses fenômenos estudados era feita principalmente a partir da matemática, que se desenvolve profundamente a partir do século XVII. As regras de funcionamento da natureza que iam sendo descobertas e descritas matematicamente pelos homens de conhecimento eram válidas em qualquer parte do mundo, como as leis da mecânica de Newton (ROSSI, 1994). Fizeram parte dos primórdios dessa ciência moderna Kepler, Galilei, Bacon, Descartes, Boyle, Huygens, Harvey etc. São homens que já falavam em ciência, mas ainda sem um espaço institucionalizado ou uma profissionalização, o que só ocorreria aos poucos nos séculos XVIII (institucionalização) e XIX (profissionalização), quando finalmente começaríamos a nomeá‑los como cientistas. Segundo Mota e Casaleiro (2004), Galileu (1564‑1642) representaria um momento de inflexão na postura dos homens de saber, ao questionar de forma enfática as formas antigas de se compreender a natureza e as “autoridades” do saber. Tudo o que não pudesse ser testado e verificado deveria ser rejeitado. O saber deveria ser comprovado pela observação experimental e apresentado publicamente para que pudesse ser verificado pelos pares. 53 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Ainda no século XVII, essa atitude moderna em relação à ciência poderia ser encontrada mesmo onde a tradição ainda era defendida como a principal forma de conhecimento do mundo, como eram os jesuítas, por isso encontramos figuras como Bartolomeu de Gusmão, já mencionado. A partir do século XVIII, essa atitude nova foi consolidada, com o investimento de instituições e de governantes para o desenvolvimento de instrumentos científicos. Surgiram as academias (muitas vezes com patrocínio dos monarcas), que eram agrupamentos de homens de conhecimento de seu tempo, cujo objetivo era promover e divulgar o desenvolvimento científico e cultural do país onde se encontravam. Também se proliferaram os laboratórios, os jardins botânicos, os museus de história natural. Nesse momento também se fortaleceu a ideia de que as ciências eram construídas de forma coletiva, com experiências realizadas com testemunhas e com o compartilhamento de resultados e discussões para a validação das descobertas (RUIVO, 2004). Lembrete Academias de ciências, jardins botânicos, laboratórios e museus de história natural são espaços de conhecimento que surgiram particularmente ligados à Revolução Científica do século XVII. Ao mesmo tempo que as ciências modernas, contestadoras do passado, da tradição e da autoridade, passavam por esse processo de consolidação no século XVIII, no campo filosófico uma série de pensadores eruditos europeus passaram a ter uma atitude crítica em relação às estruturas políticas, econômicas, religiosas e culturais de seu tempo. Não havia uma unidade entre eles, um conjunto de pensamento uniforme, nem mesmo concordância entre os diversos autores. Mas já em sua época passou‑se a perceber uma tendência em comum, que era identificada com a metáfora da luz da razão, que ilumina as ideias, que faz pensar com clareza. Nesse “Século das Luzes”, ou Iluminismo, o desejo de conhecer as mais diferentes áreas se fez presente, e aliado a isso o desejo de duvidar das verdades e instituições estabelecidas e consideradas até o momento como “naturais” (GRESPAN, 2021). Dentre os pensadores iluministas, Kant sintetiza bem a postura de seus partidários no texto “O que é o esclarecimento”, na frase latina sapere aude, que significa “ousa saber”, ou ainda “ousa fazer uso da sua razão para questionar e tentar compreender as coisas, não se conforma de modo passivo com o que as autoridades dizem que é a verdade”. Como explica Grespan: Mais do que um convite ao estudo, o lema é uma convocação à independência intelectual diante dos demais, incluindo aí os filósofos, independência diante dos consagrados modos de ver o mundo, diante de todo conhecimento que se apresenta como definitivo, diante dos pressupostos em que se assenta o saber, inclusive o saber próprio (GRESPAN, 2021, p. 16). Por essa postura contestadora, os pensadores se colocaram como grandes críticos do poder monárquico absolutista e posteriormente foram apresentados pelos revolucionários franceses como 54 Unidade I a inspiração para o movimento que colocaria fim aos reis nesse país. A ordem social e política criticada pelos iluministas seria chamada a partir da Revolução Francesa de Antigo Regime, ou seja, aquilo que foi suplantado pelo movimento. Podemos entender o Antigo Regime, então, como o conjunto de instituições sobre as quais a Europa se organizou na Idade Moderna: o absolutismo monárquico, o mercantilismo (a economia controlada pelo estado), a sociedade estamental, em que uns eram melhores que os demais pelo nascimento, com privilégios de nascença (nobreza), pela confessionalização dos Estados a partir das Reformas Religiosas (cada Estado tinha sua própria religião, limitando a liberdade de outros grupos ou perseguindo‑os). As diferentes características do Antigo Regime claramente derivavam da concentração do poder nas mãos dos reis, apoiados na nobreza, que deixou de exercer diretamente seu poder nos territórios que herdavam (juntamente com seus títulos de nobreza) para participar da administração do Estado subordinada à monarquia. Esse fenômeno é especialmente perceptível no caso da França e na vida na corte, em que nobres e monarquia compartilhavam desse espaço de poder, deixando suas antigas características medievais rurais e guerreiras. O poder real também era apoiado pela burguesia, que, ainda que não participasse diretamente do poder político, beneficiava‑se e era parceira da monarquia nas concessões de monopólios comerciais ou de manufaturas. O mercado nesse momento não era livre, o poder real também controlava a economia, determinando quais atividades econômicas poderiam ser realizadas por quais famílias ou companhias de comércio. O Iluminismo se contrapõe a essas características da Europa Moderna. Criticavam o poder absoluto dos reis e a maneira como a política e a economia eram desempenhadas através de privilégios dados pelos monarcas àqueles que bem desejassem, nem sempre obedecendo a um critério racional, daquele que poderia desempenhar melhor uma função dada ou poderia gerar melhores resultados para o Estado. Os reis não governavam sozinhos, ainda que o termo absolutismo possa gerar essa percepção. Havia conselhos e a participação dos diferentes grupos que compunham a sociedade, que se reuniam de tempos em tempos, segundo as leis e costumes de cada reino. Além disso, no século XVII a Inglaterra passou por profundas transformações (as Revoluções Inglesas), que tiveram como resultado a manutenção do poder monárquico, mas com limites claramente postos e com a participação ativa do parlamento nos rumos do país. Dessas revoluções surgiu uma monarquia parlamentarista, submetida aos interesses da população representada pelas duas câmaras do parlamento (dos lordes e dos comuns). Tal experiência inglesa seria tomada como exemplo de comparação ao absolutismo francês pelos pensadores iluministas. Charles Louis de Secondat, Barão de Montesquieu (1689‑1755), e François Marie de Arouet, conhecido pelo pseudônimo de Voltaire (1694‑1778), viajaram para a Inglaterra maisou menos no mesmo período e escreveram muito a partir dessa experiência. Nessa época também vivia em Londres Isaac Newton (1643‑1727), fundamental para a transformação profunda vivida pela ciência, especialmente a física. Voltaire escreveu a partir disso as “Cartas Filosóficas”, em que faz elogios às instituições inglesas, ao mesmo tempo que utiliza tais exemplos para criticar a França. Montesquieu escreveu “Ensaio sobre a Constituição Inglesa” e depois a sua obra mais famosa, ainda com influência de sua viagem à Inglaterra, 55 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO O espírito das leis. Nesta obra, Montesquieu divide as formas de governo em república, monarquia e despotismo. A distinção entre monarquia e despotismo é que, mesmo que ambos possam ser ocupados pelo poder de um rei, a monarquia não é tirana se o governo se der em conjunto com os parlamentos e a nobreza. É essa forma de governo, a monarquia parlamentar, que aparece no discurso de Montesquieu como a melhor opção para os países da Europa de seu tempo. Não entraremos em elementos mais profundos sobre os diferentes autores iluministas e suas questões. Apenas apontaremos que havia autores mais radicais em suas formulações, os quais tiveram enorme contribuição para Revolução Francesa. Mas havia muitos aspectos do pensamento iluminista que poderiam ser adequados (ainda que isso significasse uma deturpação de muitos aspectos de seu potencial crítico) a governos monárquicos que, ainda que fossem absolutistas, ou tendessem ao absolutismo, poderiam reformar seus governos visando uma administração racionalizada e mais produtiva. Essa adoção de princípios iluministas com a manutenção de regimes absolutistas ficou conhecida como despotismo esclarecido e foi o caso de Portugal durante o governo do rei dom José I e o Marquês de Pombal, que subiu ao poder em 1750. O período de governo do Marquês de Pombal como primeiro‑ministro do monarca dom José I coincidiu no Brasil com um período de crise da produção colonial, como já mencionado. Até 1730 a mineração ainda crescia, mas em 1750 o setor já estava em crise, com queda da arrecadação da coroa, especialmente do quinto. Entre os anos de 1780 e 1790 há uma rápida expansão e diversificação do setor agroexportador, que gera uma certa euforia, mas ainda há percepção da crise do sistema colonial. A postura ilustrada do marquês é de buscar um diagnóstico do problema enfrentado e, a partir disso, preparar sugestões de reformas, o que ficou sob o encargo de burocratas e intelectuais da Real Academia das Ciências de Lisboa (FALCON, 2001). As saídas de Pombal buscavam em geral ter maior controle sobre o reino e sobre as colônias, com uma administração centralizada (o máximo possível através de reformas que foram implantadas em muitos setores do governo) e mais racionalizada, com ações efetivas e agentes administrativos mais bem preparados para ocupar tais funções. No campo econômico, foi criada em 1755 a Junta de Comércio, que era responsável pelas saídas das frotas de Portugal e, com isso, por coibir o contrabando. Essa junta deveria controlar o tráfico ultramarino, organizando e fomentando o comércio colonial e inclusive atuando na construção de navios em Portugal e no Brasil, feitos com madeiras das colônias. Também havia a política de incentivos às manufaturas no reino utilizando o mercado colonial e o “exclusivo metropolitano” para garantir a venda desses produtos; por isso as fábricas eram, em geral, proibidas nas colônias, com exceção de algumas poucas necessárias ao beneficiamento de produtos, como o arroz, ou produção de lonas, preparação de madeiras etc. O monopólio e o controle do comércio da colônia também foram fortalecidos com a criação das companhias de comércio; no Brasil havia duas, a Companhia Geral do Grão‑Pará e Maranhão (1755) e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759). Também foram proibidos de aportar no Brasil os navios estrangeiros. No campo político‑administrativo, para controlar melhor os locais de maior produção de riquezas no Brasil, a capital da colônia foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. Também 56 Unidade I foi extinto o Estado do Grão‑Pará e Maranhão, que passou a ser uma capitania geral incorporada ao Estado do Brasil. A coroa também adquiriu as capitanias que até então eram privadas, e o governador geral do Brasil passou a ter o título de vice‑rei em 1763. No campo cultural e educacional, Pombal implantou reformas que garantissem a penetração das ideias ilustradas, tanto em Portugal como nas colônias, o que passava necessariamente por uma reforma da educação. Com a expulsão dos jesuítas também foram fechadas as escolas de estudos menores em 1759. Houve grande controle sobre os livros que circulariam, com uma censura a obras estrangeiras que tivessem caráter crítico contra o absolutismo. O iluminismo de Pombal era moderado para que fosse compatível com um governo ainda absolutista e monárquico, ainda que buscasse proporcionar uma administração mais proveitosa para os interesses burgueses. Antes de ascender ao poder, Pombal mantinha boas relações com os jesuítas, o que mudou a partir do momento em que se tornou o braço direito do rei português dom José I, passando então a empreender uma série de reformas que visavam a tornar o Estado mais centralizado e com organização mais racionalizada nos moldes iluministas. Nesse sentido, toda a educação portuguesa dependia dos jesuítas, como já indicamos anteriormente. Ainda que os jesuítas estivessem sob o comando da monarquia, esses religiosos também mantinham relação estreita com Roma, impossibilitando o controle mais efetivo do poder secular sobre a educação. Gonçalves (2001) também considera que o patrimônio acumulado pelos jesuítas era alvo de interesse de Pombal. Uma série de críticas a esses religiosos foi publicada em toda a Europa, expressando que os jesuítas tinham se mostrado resistentes à aplicação do Tratado de Madrid, que fora celebrado entre Portugal e Espanha em 1750 para definir as fronteiras das colônias de ambas na América do Sul. Também teriam apresentado oposição às leis que regulavam a administração dos povoados indígenas no Brasil Setentrional. Os jesuítas ainda mantinham atividade comercial proibida a religiosos e teriam apresentado críticas (difamação) ao rei em países e territórios estrangeiros. Por fim, os jesuítas teriam participado do atentado ao rei dom José e da revolta popular do Porto ocorrida em 1757, se não de forma prática em termos morais. Ou seja, uma série de acusações graves, considerando o contexto monárquico português, que tinham como pano de fundo a insubordinação ao poder real. Em 1757 os cinco jesuítas que atuavam na corte como confessores e mestres dos príncipes foram expulsos desse ambiente, primeira ação que demonstrava a perseguição a esses religiosos retirando‑os do espaço de influência de maior proximidade com os membros da monarquia. Em seguida, uma série de ações foi empregada contra os jesuítas, das quais destacaremos apenas a proibição que receberam em junho de 1759 de realizarem atividades educativas. A partir desse momento não podiam mais ensinar, e logo em setembro do mesmo ano foi publicado o decreto de expulsão dos jesuítas de Portugal e de seus domínios (GONÇALVES, 2001). A influência de Pombal e seu embate com os jesuítas se prolongou ainda até conseguir a extinção da Companhia de Jesus pelo papa Clemente XIV, por meio da breve Dominus ac Redemptor, de 21 de julho de 1773. A ordem só foi restaurada em 1814, pela bula Sollicitudo omnium Ecclesiarum do papa Pio VII. No que diz respeito às reformas do Marquês de Pombal na educação, sua postura não foi contra o ensino religioso, mais especificamente contra os jesuítas. Mesmo antes da expulsão dos jesuítas de Portugal, o ambiente científico já estava aberto a ideias novas, com a instalação da Congregação de 57 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO São Filipe de Nery, cujos membros eram chamados de Oratorianos. Esses religiosos adeptos da ciênciamoderna estavam instalados na Casa das Necessidades, onde faziam sessões de divulgação de física experimental frequentadas pela nobreza. Os oratorianos também eram partidários de um conteúdo moderno dos estudos, como ensino de língua materna, de geografia, da história pátria (antes era estudada apenas a história sagrada) e as ciências naturais. A partir de 1740, com a proteção do rei, eles passam a ter seus colégios com os mesmos direitos e privilégios dos jesuítas, em que poderiam preparar seus alunos para as universidades (HILSDORF, 2015). Além deles, havia intelectuais portugueses que tinham frequentado cortes estrangeiras e, ao retornarem ao reino, traziam as ideias novas que circulavam na Europa. Eram os estrangeirados, e entre eles estava Luís Antônio Verney (1713‑1792), que escreveu o livro O verdadeiro método de estudar (1746‑1747), em que criticava as universidades da época e defendia a importância das ciências experimentais modernas. Com suas críticas entrava em conflito tanto com os jesuítas como com os oratorianos. Outro estrangeirado, Antônio Ribeiro Sanches (1699‑1783), que era médico, escreveu a obra Cartas sobre a educação da mocidade, em 1760, defendendo que o ensino nas escolas superiores deveria ser controlado pela coroa e que deveria ter como objetivo formar uma elite econômica e cultural, ideias que estariam de acordo com as posturas que seriam tomadas por Pombal. Ou seja, havia já a abertura para uma nova forma de ensino em Portugal, mas o Marquês de Pombal fez sua reforma de modo violento para eliminar o que parecia o maior empecilho ao desenvolvimento dos novos saberes no reino: o domínio quase completo das instituições de ensino pelos jesuítas. Com o fechamento dos colégios jesuíticos, são instituídas a partir de 1759 as aulas régias avulsas secundárias em todas as capitais de comarca, que seriam frequentadas pelos rapazes, e contavam com aulas de gramática latina, grega e hebraica, retórica e filosofia. Pombal define que os professores seriam selecionados por um concurso e pagos pelo Estado, como funcionários públicos (HILSDORF, 2015). Inicialmente o ensino elementar não é modificado, sendo caracterizado por aulas particulares (descreveremos com mais calma as aulas domiciliares adiante), ou por oratorianos e membros de outras ordens religiosas. Os colégios secundários passaram a ter obras de jesuítas proibidas, e passa‑se a aplicar nova metodologia, inclusive adotando a obra de Verney. O estudo do latim foi simplificado, com menos regras e pensado a partir da língua materna, com estudos da gramática portuguesa. Na colônia passa a ser proibido falar a língua geral, que era o tupi. As aulas elementares para meninos, criadas em 1772, contavam com aulas de ortografia e gramática da língua portuguesa, doutrina cristã, história pátria, aritmética e normas de civilidade. Visando a uma educação para formar profissionais necessários ao reino, foi criada em 1759 a Aula de Comércio, que deveria formar negociantes. Nessas aulas aprendia‑se caligrafia, contabilidade, escrituração comercial, línguas modernas etc. Em 1761, Pombal criou o Colégio dos Nobres. Nessa instituição foram implantadas novas disciplinas e conteúdos baseados nas ciências modernas. Apesar de a experiência ter sido um fracasso, foi a partir 58 Unidade I daí que ele pôde preparar a reforma da Universidade de Coimbra. Em 1771 criou a Junta de Providência Literária para avaliar a situação da universidade, o que resultou no “Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências e nos professores, e diretores que a regiam pelas maquinações, e publicações dos novos estatutos por eles fabricados”. O título já nos indica muito sobre a percepção dos envolvidos. Já em 1772 os novos estatutos pombalinos para a universidade estavam preparados. Dentre as inovações estava a criação de duas novas faculdades: de Matemática e de Filosofia, sendo que esta última substituiria a Faculdade de Artes. Também são criados novos estabelecimentos científicos da universidade: Jardim Botânico, Teatro Astronômico, Museu de História Natural, Gabinete de Física Experimental, Observatório Astronômico, Laboratório Químico e Dispensário Farmacêutico. A experiência passa a ser a base dos conhecimentos desenvolvidos na universidade. São adquiridos equipamentos modernos (elaborados com enorme requinte técnico e artístico), e os instrumentos que formavam o Gabinete de Física Experimental do Colégio dos Nobres são transferidos para a universidade. Evidentemente, nem tudo é racionalidade no projeto de Pombal. Muitos intelectuais portugueses de seu tempo, que poderiam ter contribuído muito para suas reformas, mas que eram desafetos pessoais do ministro, foram perseguidos por ele, como o caso de alguns jesuítas e de Teodoro de Almeida, que havia atuado como mestre do Gabinete de Física da Casa das Necessidades dos Oratorianos e ficou exilado durante todo o governo de Pombal (RUIVO, 2004). Essas reformas foram realizadas com participação dos franciscanos, especialmente na figura do dom frei Manuel do Cenáculo (GOMES, 2001). O corpo de docentes da Universidade de Coimbra foi renovado com a contratação de professores estrangeiros para aplicar a renovação do saber científico em Coimbra. Para Mota e Casaleiro (2004), uma das consequências da reforma da Universidade de Coimbra foi a formação de quadros qualificados para reconhecimento do Brasil. Era preciso conhecer melhor a colônia para fazer a defesa e para melhor explorá‑la e Coimbra proporcionava cientistas especialistas para isso. A história natural estava no centro das preocupações da Europa, não puramente pelo “amor ao conhecimento”, mas como forma de conhecer estrategicamente os recursos e possibilidades de exploração. Na passagem do século XVIII para o XIX o foco se voltará para as riquezas no continente africano, que passará a ser alvo das mais altas ambições europeias. O Marquês de Pombal também cuidou para que a universidade passasse a ter outras fontes de rendimento e os estudantes passaram a participar mais dos custos de sua educação. Anteriormente havia um pagamento quase simbólico para obtenção do grau, que foi bastante aumentado com as propinas (termo usado ainda hoje em Portugal para o pagamento dos estudantes pela universidade) anuais. As mudanças também trouxeram uma queda brusca no número de estudantes frequentando a instituição, especialmente entre os ingressantes. De acordo com Fonseca (2006), isso se dava por dois motivos. Primeiramente os cursos passaram a ter uma duração menor, de oito para cinco anos no caso dos juristas, o que impactava o número total de alunos. Mas o mais importante era que havia a preocupação de Pombal, apresentada em suas cartas ao reitor da universidade, para que a seleção dos novos alunos fosse mais rigorosa e que se reduzisse o número de estudantes, pois isso ajudaria 59 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO a elevar o nível científico e pedagógico, além de ter um caráter de preocupação social, já que era necessário que os formandos tivessem uma ocupação adequada na sociedade, o que não era possível se fossem em excesso. Fonseca (2006) também menciona o peso dos estudantes brasileiros em Coimbra. Entre 1700 e 1771, cerca de 93% dos formandos vinha do continente europeu. Dos que se dirigiam das colônias ultramarinas portuguesas para essa instituição os brasileiros eram a maioria, correspondendo a quase 5% dos formandos. O autor ainda menciona que, com a riqueza vinda da exploração das minas de ouro no Brasil, algumas famílias passaram a ter rendimentos capazes de suportar os gastos necessários para enviar seus filhos a estudarem em Coimbra. Esse peso dos brasileiros continuou durante o período da corte no Rio de Janeiro e mesmo após a Independência. Um dos representantes brasileiros na Universidade de Coimbra foi José Bonifácio de Andrada e Silva (1763‑1838), que participou da Independência do Brasil; eleera mineralogista e chegou a atuar como professor da universidade. Pode‑se mencionar, ainda, Vicente Seabra (1764‑1804), natural de Congonhas do Campo, Minas Gerais, que foi autor do primeiro manual de elementos de química pela Universidade de Coimbra, em 1788, utilizado tanto em Portugal como no curso de Química da Sociedade Literária do Rio de Janeiro (MOTA; CASALEIRO, 2004). Essas reformas na universidade portuguesa tinham impacto na educação colonial, pois era para Coimbra que as classes abastadas se dirigiam para educar seus filhos, especialmente a partir do Ciclo do Ouro. A partir da presença de estudantes brasileiros na Europa muitas ideias iluministas passaram a circular no Brasil, o que influenciou os movimentos de contestação do poder metropolitano, como a Inconfidência Mineira (1792) e a Conjuração Baiana (1798). Para controlar a influência do Iluminismo e das ciências modernas em Portugal e em seu império, havia uma censura prévia aos textos estudados nas instituições de ensino e aos livros que poderiam circular nesses territórios. Em 1768, para essa finalidade, foi criada a Mesa Censória. Havia grande desconfiança em relação aos autores franceses e suas ideias mais revolucionárias, como Rousseau. Por isso, segundo Hilsdorf (2015), os professores italianos eram mais comuns no ensino reformado, pois vinham de uma matriz iluminista mesclada com ideias católicas, mais adequadas ao contexto português. Mas havia a circulação clandestina de ideias iluministas, com panfletos, livros e anotações em cadernos sobre o pensamento dos autores franceses mais radicais. Também, havia estudantes brasileiros em outros centros com saber iluminista e baseado nas ciências modernas, como Paris, Edimburgo e Montpellier. No Brasil, inicialmente, são criadas 44 aulas avulsas régias, que formavam os estudos menores. Essas aulas estavam distribuídas em Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Pará e Maranhão. Compreendiam aulas de primeiras letras, de gramática latina, de retórica, gramática grega e filosofia. Com as aulas régias, o ensino deixava o monopólio da Igreja para ser ofertado pelo Estado. Ainda que houvesse muitos limites nessa iniciativa, devemos observar atentamente que há uma mudança importante em curso sobre qual poder teria a prerrogativa de educar a população. Os recursos para manter essa educação promovida pelo Estado no Brasil viriam de um imposto que incidia sobre a carne verde cortada nos açougues e a pinga destilada nos engenhos e que formava o subsídio literário. 60 Unidade I Falcon (2001) aponta algumas críticas feitas a essas reformas, indicando uma série de problemas em sua implantação, como baixa remuneração dos mestres, disputas sobre os textos que seriam utilizados no ensino, a utilização de disciplina autoritária e repressiva, a arrecadação insuficiente do subsídio literário (que era desviado de sua função), falta de livros, dificuldade em conseguir professores, demoras burocráticas, dificuldade em levar a educação ao campo. Essas considerações são acompanhadas por outros autores que não veem positivamente as intervenções no ambiente educacional da colônia durante o governo de Pombal, porém Hilsdorf (2015) considera as transformações do século XVIII positivas, especialmente pela proliferação de sociedades cultas (Academia dos Esquecidos e Academia dos Renascidos na Bahia, Academia dos Felizes, Academia dos Seletos no Rio de Janeiro, entre outros) de letrados que passam a atuar como professores das escolas pombalinas e mesmo que as reformas tenham sido implantadas com resistência, especialmente por partidários dos jesuítas, houve continuidade na criação das aulas régias avulsas no período em que a corte se instalou no Brasil, a partir de 1808. Além disso, houve a criação de um novo seminário em Olinda, no local onde antes se encontrava um colégio jesuítico. O Seminário de Nossa Senhora das Graças, criado por iniciativa de Azevedo Coutinho, bispo e governador da capitania de Pernambuco e ex‑aluno da Universidade de Coimbra já reformada, foi um exemplo de renovação na formação dos padres na colônia. Após a morte de dom José I, em 1777, Pombal também perdeu seu espaço no poder com a subida ao trono de dona Maria I. Porém, durante esse novo reinado houve ainda grande desenvolvimento da história natural em Portugal. Ou seja, o processo de fortalecimento das ciências continuou após os esforços pombalinos. Como aponta Ruivo: O interesse pela história natural reflete, por um lado, a importância que estes estudos tinham por toda a Europa e, por outro lado, a posição privilegiada de Portugal, que por via do seu império colonial, tinha acesso ao riquíssimo manancial de fauna, flora e minerais de África e Brasil (RUIVO, 2004, p. 36). Foram realizadas nesse momento as chamadas viagens filosóficas, que tinham o intuito de observar a natureza, desenvolver estudos e recolher espécies animais e vegetais, ou ainda coletar minerais e artefatos de povos indígenas para compor acervos de laboratórios e museus de história natural. Em 1783, iniciaram‑se viagens filosóficas para o Brasil, África e Índia, compostas de naturalistas e desenhistas que faziam importantes registros nesses percursos. Dentre as viagens mais proveitosas do momento está a exploração da Amazônia por Alexandre Rodrigues Ferreira, que era natural da Bahia e foi um grande naturalista; durante uma década ele percorreu toda a bacia do rio Amazonas recolhendo animais, minerais e artefatos indígenas (SANTOS, 2004). Também são destaques as viagens de José Mariano da Conceição Veloso, frade franciscano natural de Minas Gerais, que resultaram em sua obra Flora Fluminensis. Em 1790, o mesmo frade Veloso foi para Lisboa, onde trabalhou classificando espécies naturais no Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda; depois também atuou na imprensa do Arco do Cego, difundindo obras de caráter iluminista. 61 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Por fim, é importante lembrar que a educação responde às necessidades de seu tempo e aos projetos daqueles que detêm o poder ou conseguem se tornar protagonistas nas propostas educacionais. Sendo uma necessidade constante a defesa da colônia, especialmente quando se podia obter de maneira mais direta suas riquezas, como era o caso da mineração, no século XVIII surgiram muitas instituições voltadas para o ensino da arte da fortificação. Em 1699 foi instituída a Aula de Fortificação no Rio de Janeiro, que funcionou precariamente até 1738, segundo Barreto e Filgueras (2007). Em 1710 foi criada, em Salvador, uma Aula de Fortificação e Artilharia, com conteúdo de engenharia militar, que existiu até 1829. No Recife, em 1719, foi criada também uma Aula de Fortificação, que em 1788 foi transformada em Academia Militar. Ou seja, havia na colônia a formação de pessoas qualificadas para a fortificação, especialmente do litoral, além da formação de padres, como já apontamos anteriormente. Também foi enviado ao Brasil, por dom João V, o engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim (1700‑1765), que era responsável pela Aula de Engenharia Militar criada em 1738. Esse homem publicou livros com ensinamentos relacionados aos conhecimentos de engenharia militar de seu tempo, o Exame de artilheiros (1744) e o Exame de bombeiros (1748). Além de ter se dedicado à formação de engenheiros militares na colônia, também atuou como arquiteto, em uma grande variedade de obras que não se relacionavam à defesa do território, como o traçado da cidade de Mariana, o Palácio dos Governadores de Vila Rica (hoje sede da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto), o Palácio dos Governadores do Rio de Janeiro (hoje Paço Imperial), o Aqueduto da Carioca, além de ter edificado igrejas e conventos. Em 1792 também foi criada a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, que posteriormente se tornaria Academia Real Militar, depois Imperial Academia Militar (1822), Escola Militar (1840), Escola Central (1874), e posterior divisão da escola,que passou a ser frequentada também por civis a partir de 1874, surgindo assim a Escola Militar e a Escola Politécnica, com curso de Engenharia Civil. Finalmente seria incorporada à Universidade do Rio de Janeiro (atual UFRJ), criada em 1920. Ou seja, a maior parte das formações superiores das elites coloniais dependia do deslocamento para a Europa, especialmente para a Universidade de Coimbra, que passava a formar a partir de sua reforma uma elite versada nas ciências modernas e nas ideias iluministas, ainda que filtradas pelo controle da censura. No Brasil, durante a maior parte de sua história colonial, a formação superior aqui existente se destinava à formação do clero, num ideal pós‑tridentino de valorização da cultura dos religiosos e que tinha como finalidade prática a conversão para Roma e a incorporação à lógica administrativa colonial das comunidades indígenas para a metrópole portuguesa. E a partir do século XVIII também passa a ocorrer uma formação superior relacionada à defesa do território, com os engenheiros militares. O fato de apenas essas áreas estarem mais diretamente ligadas e incentivadas pelo reino não significa que outras formações não existiam, como indicamos anteriormente sobre os artesãos das mais diversas artes atuando nesses territórios. Trataremos a seguir do período da corte no Brasil e o período de governo imperial após a Independência, fechando assim nessa primeira unidade os momentos em que a educação brasileira esteve mais diretamente relacionada ao governo português. 62 Unidade I 4 A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL DO PERÍODO COLONIAL À REPÚBLICA A vinda da corte ao Brasil significou, em muitos aspectos, a continuidade e o aprofundamento das reformas realizadas no ensino pelo Marquês de Pombal. No entanto, em outros aspectos esse momento significaria mudanças profundas e prepararia um ambiente favorável à Independência, com o retorno do rei a Portugal. A Europa de fins do século XVIII fervilhava. As ideias iluministas tinham se difundido e as contradições internas da França monárquica absolutista tinham alcançado seu auge em um período de convulsões sociais que marcariam a Revolução Francesa (1789). A instabilidade decorrente da ruptura com o Antigo Regime fez surgir diferentes formas de governo e momentos de desdobramentos internacionais das guerras para além das fronteiras francesas. Esse processo complexo resultou na ascensão de Napoleão Bonaparte (1769‑1821), militar que tinha participado da revolução e foi coroado imperador dos franceses em 1804. Seu governo, de caráter expansionista, passou a ameaçar a soberania dos Estados europeus, entre eles o reino de Portugal. Em 1799, dom João (1767‑1826) se tornou príncipe regente, pois a rainha dona Maria I (1734‑1816), sua mãe, não estava em condições mentais para governar. Nesse contexto de expansão napoleônica, o monarca português tentava manter suas alianças com a Espanha e com a Inglaterra, país com o qual a França travava forte concorrência por mercados e influência. Quando Napoleão ordenou o fechamento de todos os portos europeus a navios e mercadorias inglesas, em 1806, e passou a invadir outros Estados, tornou‑se fundamental que a coroa portuguesa pensasse em maneiras de manter seu controle sobre o Brasil, principal fonte de riquezas desse reino. Portugal ainda tentou negociar com a França, um conselho foi criado para auxiliar na decisão do príncipe regente, que planejou enviar o filho primogênito de dom João, e seu sucessor ao trono, para o Brasil, tentando assim garantir a posse e controle da colônia (SCHWARCZ, 2008). Mas, a partir de muitas discussões e tentativas diplomáticas, surgiu a resolução de levar a corte ao Brasil em 1808. Além da rainha, do príncipe regente e sua família, os navios que compunham a frota real levavam ao Brasil ministros do reino e suas famílias, conselheiros de Estado, oficiais e servidores, fidalgos, nobres e amigos do príncipe regente. Após 54 dias no mar, no dia 22 de janeiro de 1808, o príncipe real chegou a Salvador, onde logo tomou suas primeiras medidas oficiais no Brasil. Em 28 de janeiro de 1808 promulgou o decreto que assegurava a abertura dos portos às nações amigas. Mesmo antes da vinda da corte ao Brasil, começavam a ser implantadas na colônia medidas que pudessem sanar as dificuldades decorrentes da inexistência de cursos de formação de médicos aqui, responsável pela escassez de profissionais da área, todos necessariamente formados na Europa. Uma das primeiras medidas nesse sentido foi a escrita de uma obra voltada à formação prática da população sobre como proceder em relação às doenças mais comuns da região das minas. Com o título Erário mineral, foi publicada em 1735 pelo cirurgião português Luís Gomes Ferreira, que atuou nessa localidade. Em 1801 é criado também o Hospital de Vila Rica, onde se ensinavam especialidades médicas, como cirurgia, anatomia e obstetrícia (BARRETO; FILGUEIRAS, 2007). Mas é apenas durante a breve estadia do príncipe regente na Bahia que é expressa a decisão de se criar a primeira escola 63 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO de medicina no Brasil, fundada em fevereiro de 1808 e transformada em Faculdade de Medicina da Bahia em 1832. Essa faculdade baiana teria grande importância na formulação de ideias que influenciariam a educação na Primeira República. Na sequência foi criada também a Academia Médico‑Cirúrgica do Rio de Janeiro. Em 8 de março, o príncipe regente desembarcou no Rio de Janeiro, capital da colônia. A corte transportada para o Brasil contava nesse momento com 10 mil pessoas, e mais 15 mil viriam nos anos seguintes (MESGRAVIS, 2018). Mudanças significativas derivaram da presença da monarquia, como a criação da imprensa régiaem 1808, anteriormente não era permitida a publicação de textos na colônia. A imprensa régia seria concretizada com a compra de máquinas inglesas e passaria a ter o monopólio da impressão no Rio de Janeiro até 1820. Assim surgem os primeiros jornais e revistas produzidos no Brasil, o que permitiu maior circulação de notícias e ideias. Também é criada a Biblioteca Real, o Teatro São João, o Jardim Botânico e a Escola de Música e de Canto Sacro da Capela Real, e passa a ser permitida a instalação de indústrias, que tinham sido proibidas por Pombal desde 1785. São criadas algumas fundições de ferro, mas a indústria efetivamente demoraria a se desenvolver aqui. Em 1815 o Brasil seria elevado à condição de Reino Unido, mesmo ano em que Napoleão é definitivamente derrotado. Um grupo de artistas franceses que atuaram para o governo napoleônico e que se encontravam em uma situação desfavorável na França após a derrota do imperador também dirigiu‑se ao Brasil. Conhecidos por muito tempo como integrantes da “Missão Francesa”, responsável por criar a Academia de Belas Artes no Brasil, esses artistas não vieram efetivamente com uma missão, como apontam os estudos de Lilia Schwarcz (2008), mas estavam em fuga e encontraram no Brasil um monarca aberto a seus trabalhos e suas presenças, mas sem um objetivo nobre primordial de elevação da formação artística nestas terras. Em suas justificativas nas negociações para a vinda a este território, é utilizado o argumento de que a capacitação daqueles homens, que eram artistas e artesãos, poderia contribuir para a indústria brasileira e para a elevação das artes. Obviamente, havia arte no Brasil anteriormente, mas estava em questão, nesse momento, a necessidade de adequação aos padrões franceses. Além disso, como já apontamos ao tratar do Iluminismo do século XVIII (e da curiosidade científica desse período em conhecer os povos), a fauna e a flora do Brasil eram um atrativo aos cientistas e artistas do momento, e era importante ao governante conhecer o território sob seu poder. Por isso, a presença de dom João no Brasil e sua corte favoreceu a realização de viagens científicas. Muitas vezes os artistas tinham esse papel duplo de favorecer a arte e a cultura e preparar registros científicose sociais do que existia e acontecia nos trópicos. 64 Unidade I Chegou ao Brasil, em 1816, então, um grupo de artistas e artesãos franceses liderado por Joaquim Lebreton, seguido do escultor Auguste‑Marie Taunay, o pintor Nicolas Antoine Taunay, o também pintor e desenhista Jean‑Baptiste Debret, o arquiteto Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny, o gravador Charles Simon Pradier, o professor de mecânica François Ovide, o compositor e pianista Sigismund von Neukomm, o mestre ferreiro e perito em construção naval Jean Baptiste Level, e o mestre serralheiro Nicolau Migliori Enout. Também faziam parte do grupo Louis Joseph Roy e Hypolite Roy, que eram pai e filho e atuavam como carpinteiros e fabricantes de carros, e dois surradores de peles, Pilite e Fabre. A) B) Figura 6 – Gravuras de Debret Disponíveis em: A) https://cutt.ly/OB02gRB e B) https://cutt.ly/AB02xyf. Acessos em: 10 jun. 2022. A Academia de Belas Artes só seria efetivamente criada em 1826, durante o governo de dom Pedro I, quando o Brasil já era um país independente. Para além desse projeto educativo com apoio da monarquia, esses artistas e artesãos atuaram individualmente com encomendas de trabalho e dando aulas. Também realizavam estudos e obras de iniciativa própria, como os registros do cotidiano social da colônia por Debret. Muito do que sabemos das festividades, costumes, relações entre senhores e escravizados na corte devemos aos registros de Debret, que comporiam sua obra Voyage pitoresque et historique au Brésil (Viagem pitoresca e histórica ao Brasil), publicada entre 1834 e 1839. Registros da fauna e flora brasileiras, dos diferentes povos indígenas conhecidos, suas habitações, tudo o que pudesse registrar a vida no Brasil era alvo de Debret. 65 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Figura 7 – Mapa do Brasil de Jean‑Baptiste Debret, de 1934 Disponível em: https://cutt.ly/RB02E7A. Acesso em: 10 jun. 2022. 66 Unidade I Em 1818, devido à morte da rainha dona Maria I, dom João VI é aclamado rei de Portugal estando ainda no Brasil. Os portugueses, que enfrentaram a invasão napoleônica e, mesmo após a derrota do imperador francês, aguardavam o retorno da família real ao reino e passaram a exigir a presença do monarca iniciando um movimento revolucionário. Temendo as consequências desse contexto, dom João partiu para Portugal, mas deixou dom Pedro como regente no Brasil. Chegaram a ser realizadas assembleias quando ainda nos encontrávamos na condição de Reino Unido, e, por isso, havia deputados enviados como representantes do Brasil, que discutiam questões como a criação de colégios em cada uma das províncias e a criação de uma universidade em São Paulo, influenciados por José Bonifácio, que fora professor da Universidade de Coimbra (BARRETO; FILGUEIRAS, 2007). No entanto, as tensões entre as elites brasileiras e o desejo de recolonizar o Brasil presente em parte dos portugueses culminou na declaração de independência em 7 de setembro de 1822. O Brasil se tornava independente, mas continuava com um governo monárquico e governado pela mesma família real de sua antiga metrópole. Muitas continuidades e algumas rupturas surgiram dessa nova condição de nosso país. Nesse momento em que o reconhecimento das potencialidades do país se tornava ainda mais importante para a defesa e manutenção da integridade do território, as viagens científicas foram muito incentivadas. A primeira esposa de dom Pedro, a imperatriz Leopoldina (1797‑1826), que era uma mulher muito culta e com conhecimentos de história natural, foi uma grande apadrinhadora de cientistas que vieram da Áustria, Baviera e Boêmia para o Brasil. Os naturalistas bávaros Johann Baptist von Spix (1781‑1826) e Carl Friedrich Philipp von Martius (1794‑1868) estudaram a natureza do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. Naturalistas boêmios também exploraram as riquezas minerais e botânicas de Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerias, Mato Grosso e Pará. Foi realizada também uma expedição do czar russo organizada por Georg Heinrich von Langsdorff (1774‑1852). Muitos outros viajantes vieram ao Brasil nesse momento. Saiba mais O Atlas dos viajantes no Brasil, da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, disponibiliza informações sobre diferentes expedições que ocorreram em nosso território para reconhecimento dos locais e dos povos que aqui habitavam. Esse recurso está acessível em: ATLAS dos viajantes no Brasil. São Paulo: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2021. Disponível em: https://cutt.ly/iB02CeC. Acesso em: 20 out. 2022. Antes de tratarmos das iniciativas do governo para promover a educação durante o primeiro reinado, devemos fazer algumas considerações sobre uma das modalidades de ensino mais recorrentes entre as elites no Brasil do século XIX e mesmo até as primeiras décadas do Brasil República, que foi a educação doméstica. Como explica Maria Celi Chaves Vasconcelos (2007), essa forma de educação era comum entre os filhos da nobreza europeia, mas a partir do século XVIII passa a ser escolhida 67 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO também pela alta burguesia, como forma de se aproximar da nobreza quanto ao acesso cultural e educacional. No Brasil também passou a ser adotada pelas famílias ricas de fazendeiros, ou membros da aristocracia, já que, a partir da vinda da família real, passaram a existir títulos nobiliárquicos não hereditários em solo brasileiro. Essa educação das crianças ricas era promovida pela própria família, sendo que muitas vezes um parente que vivia na casa poderia se encarregar de ensinar as várias crianças presentes no local. Também poderiam ser contratados professores particulares que atendiam às crianças em determinados horários ao longo da semana, podendo ser um professor para diversas matérias, ou vários professores, cada um com conhecimentos específicos de gramática, línguas, música, piano, artes etc. Ou ainda, a família poderia ter um preceptor para os filhos, que inclusive vivesse com eles na casa – frequentemente esta pessoa vinha da Europa contratada para ocupar essa função. Ainda que todas as crianças da família pudessem estudar juntas, a educação de meninos e meninas respondiam a objetivos distintos. As meninas eram preparadas para a vida adulta voltada à casa, aprendendo a ler, escrever e recebendo conhecimentos de matemática básica; ainda, podiam chegar a ter algum aprendizado cultural e artístico, com aulas de música, por exemplo. Os meninos eram ensinados a desenvolver um conhecimento de base sólida, que seria continuado depois, muitas vezes em universidades europeias. A formação dos meninos das elites visava a ocupar funções relevantes na sociedade, como profissões de destaque, participação política, administração dos negócios da família etc. Os mestres podiam gozar de certa importância social dependendo da família para a qual trabalhavam, o que se configurava como referências valiosas para futuros trabalhos. A escolha desses professores e preceptores era muito cuidadosa por parte das famílias, que poderia colocar até exigências quanto à aparência dos futuros funcionários. A família tinha, de fato, enorme controle sobre como essa educação seria encaminhada, uma vez que eles escolhiam os professores, podiam escolher as matérias, os métodos, além do fato de poderem fiscalizar o ensino, por acontecer dentro de suas próprias casas, normalmente em um cômodo reservado para ser ao mesmo tempo uma espécie de escritório e biblioteca, e, por fim, eles faziam o pagamento pelos serviços. Sobre as disciplinas ensinadas, assim nos explica Vasconcelos: Assim, são oferecidos para a educação doméstica, além de “primeiras letras” e “instrução primária” – caracterizadas como o ensino da escrita, leitura e contas –, ensinamentos de português e francês prioritariamente, seguidos de latim, inglês, alemão, italiano, espanhol, caligrafia, literatura, composição, religião, música, piano, solfejo, canto, rabeca, gramática portuguesa,latina, francesa e inglesa, lógica, matemática, geometria, aritmética, álgebra, contabilidade, escrituração mercantil, física, botânica, história universal, história do Brasil, geografia, desenho, pintura e aquarela. Para as meninas, havia conhecimentos específicos a serem aprendidos como bordar, coser, marcar, cortar, dançar, trabalhos de agulha, caia a ouro, prata, matiz e escama de peixe, tricot, filot, flores, obras de fantasia, recortar estofos, veludos e 68 Unidade I outros trabalhos manuais, que eram oferecidos para serem ministrados por professores particulares e preceptores, juntamente com algumas das demais matérias citadas (VASCONCELOS, 2007, p. 32). O método de ensino utilizado na educação domiciliar, que era compartilhado também pelas escolas públicas, se caracterizava pelo ensino individual – que, como o próprio nome indica, implicava o atendimento individual dos alunos, mesmo que houvesse mais crianças participando da aula ao mesmo tempo. Cada aluno era atendido para tratar de suas dificuldades, conhecimentos específicos, quando seriam “tomadas as lições”, em um ensino que era essencialmente voltado à memorização de conteúdos. Isso implicava grande proximidade entre professor e aluno, pois o professor, ao utilizar esse método, conhecia cada aluno, suas dificuldades, habilidades, interesses, o progresso do aprendizado etc. Também eram empregados castigos físicos, como a palmatória de pão, a vara de marmeleiro, entre outros, que ficavam expostos no local de estudos durante as aulas. Dentro desse método mais amplo havia espaço para uma vasta diversidade de abordagens de cada professor, que poderiam escolher certos materiais para guiar sua atuação, o que era muito comum especialmente entre os professores estrangeiros, que vinham com métodos de seus países de origem. Ou seja, não havia uma cultura compartilhada, ou um conjunto de objetivos e conteúdos validados socialmente. Saiba mais Os romances de Mario de Andrade (originalmente publicado em 1927) e Graciliano Ramos (cuja primeira edição é de 1945) sugeridos a seguir, bem como o filme de Fukunaga, trazem personagens importantes que atuam como professores nessa modalidade de educação doméstica: ANDRADE, M. Amar, verbo intransitivo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. RAMOS, G. Infância. 51. ed. Rio de Janeiro: Record, 2020. JANE Eyre. Direção: Cary Joji Fukunaga. Reino Unido/Estados Unidos: Focus Features, BBC Films e Ruby Films, 2011. 120 min. Os métodos estrangeiros implementados aqui poderiam trazer os resultados esperados, mas poderiam ser completamente inadequados ou, no mínimo, muito estranhos para a realidade brasileira, tornando‑os pouco efetivos. As aulas em geral baseavam‑se em leituras indicadas pelos professores nas páginas dos livros ou métodos utilizados. Após a leitura e realização de exercícios repetitivos e cópias para fixar o conteúdo, poderia ocorrer a verificação da memorização do que foi estudado, com questionários e sabatinas. 69 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A educação doméstica poderia se apresentar como diversa e desigual, pois não há um programa comum, nem verificações externas, apenas as escolhas realizadas pelos pais e pelos professores contratados, que variavam muito, inclusive dependendo de como as crianças se comportavam em relação à aprendizagem ali desenvolvida. Já eram comuns queixas dos professores sobre indisciplina ou o tempo perdido resolvendo outras questões que não pareciam estar diretamente relacionadas aos conteúdos que pretendiam trabalhar em suas aulas. Nesse mesmo momento o governo imperial intentava ampliar a educação formal dirigida pelo Poder Público, mas ainda havia muitas limitações nessa educação, o que fazia que muitas famílias da elite preferissem garantir de forma privada a educação básica de seus filhos. A educação imperial pública estava mais voltada às camadas populares e urbanas, enquanto a maioria da população ainda vivia no campo e parte significativa das elites econômicas era formada por grandes latifundiários agroexportadores. Lembrete A educação pública do período imperial atendia mais às camadas populares e urbanas da população. As famílias da elite promoviam a educação domiciliar com a contratação de professores particulares para seus filhos. Como aponta ainda Vasconcelos (2007), algumas províncias brasileiras tentaram estabelecer por lei a obrigatoriedade do ensino para as pessoas livres já na primeira metade do século XIX, mas efetivamente não havia recursos suficientes para que isso fosse realizado. Havia também resistência quanto à educação pública e estatal, não mais ligada a grupos religiosos como mencionado em períodos anteriores. O poder e o controle dos pais sobre a educação dos filhos pareciam estar em questão. Quando mencionamos os “pais” no plural, entenda‑se que não estamos tratando dos progenitores, pais e mães de cada família, mas apenas do poder paterno, do homem, chefe da casa, já que estamos num momento em que a autoridade masculina, sobretudo dentro do ambiente familiar, é praticamente inquestionável, e assim continuaria a ser por muito tempo. Foi preciso grande esforço discursivo para que a propostas de educação pública parecessem legítimas à população. As elites estavam pouco confortáveis em ter seus filhos compartilhando espaços com outras crianças, fossem do mesmo grupo social ou, ainda, de origens diversas. No discurso oficial imperial aparecia o argumento de que a instrução pública visava a distribuição do conhecimento a todo a população, o que contribuiria com o progresso da nação (VASCONCELOS, 2007). Além disso, a família estaria contrariando seu próprio dever, segundo o discurso oficial, apresentando‑se contrária à educação promovida pelo Estado, pois estaria privando seus filhos do desenvolvimento intelectual com o qual contribuiriam como futuros adultos. Também argumentavam com exemplos de outros países, demonstrando que havia uma tendência entre as “nações civilizadas” na obrigatoriedade do ensino sob a tutela do Estado, fosse nas escolas públicas ou ainda na elaboração de normas pelo governo a partir das quais deveriam estar também submetidas as escolas privadas. 70 Unidade I As discussões sobre a educação estavam presentes desde a formação de uma Assembleia Constituinte em 1823. Inclusive é notado por Barreto e Filgueiras (2007) a formação dos deputados que fizeram parte da constituinte. Havia considerável número de deputados com cursos superiores, a maioria deles formados em ciências, seguidos pelos bacharéis em direito, além de outros com curso de matemática e medicina. A Universidade de Coimbra era a instituição de formação da maioria, que era marcada por uma mentalidade iluminista, por isso, provavelmente essa corrente filosófica teve mais influência nas reuniões do que as correntes do século XIX, como o positivismo. Nessa ocasião, o deputado do Rio Grande do Sul José Feliciano Fernandes Pinheiro fez a proposta de criação de uma universidade em São Paulo. Também estava em pauta no momento, segundo Hilsdorf (2015), uma visão de que a educação popular era condição para a riqueza e a liberdade e seria também a responsável por formar homens livres para exercer a cidadania e o voto, além das habilidades necessárias para ocuparem os empregos necessários para a construção do Estado. Além disso, buscava‑se organizar um sistema nacional de educação, desejo abortado pela dissolução da Assembleia Constituinte por dom Pedro I. Ao promulgar sua Constituição de 1824, algumas das propostas discutidas na assembleia foram incorporadas, mas com muitas dificuldades para se efetivarem. Logo na primeira legislatura, foi apresentada a proposta de Januário Cunha Barbosa de um sistema nacional de educação, que seria composto por escolas primárias (pedagogias), secundárias (liceus e ginásios) e superiores (academias). Além disso, são muitas as discussões do legislativo sobre as dificuldades financeiras para se criar escolas. Em 1827 é aprovada a leia respeito dessas propostas, mas sem avançar muito em relação ao que se desejava. Apenas eram mantidas as aulas avulsas públicas de primeiras letras (origem pombalina), que seriam destinadas aos meninos e também às meninas, o que se configurava como uma inovação. Também se propunha um novo modelo de ensino para substituir o ensino individual, sobre o qual tratamos anteriormente. Esse modelo seria o ensino mútuo, que era praticado em outros países liberais e consistia em agrupar as crianças. Esse método também estava sendo empregado em outros países da América Latina que tinham alcançado a independência, e tinha como principal vantagem apresentada por seus defensores ser um método barato para conseguir sanar rapidamente e em larga escala as debilidades da educação de seus países em construção. O ensino mútuo já havia sido introduzido em instituições ligadas ao exército durante o período joanino e se tratava de uma influência dos ingleses que auxiliavam na preparação das defesas lusitanas e portuguesas, também sendo chamado de Método Lancaster. Em 1823, dom Pedro I decretou que essas aulas com ensino mútuo do exército fossem abertas a todas as classes de súditos, não apenas os militares. Havia a intenção de que aqueles que frequentassem essas aulas pudessem aprender o método e aplicá‑lo em suas províncias, para ensino de militares e civis, atendendo à comunidade que circundava os quartéis. Ou seja, essa instituição funcionava, segundo Kulesza (2021), como uma Escola Normal, com formação de professores‑monitores. O método também tinha a pretensão de ser simples, podendo ser aplicado por qualquer pessoa letrada. Alguns franceses, que eram pequenos produtores de café e proprietários de poucos indivíduos escravizados no Rio de Janeiro, assim alfabetizaram quem trabalhava em suas terras (KULESZA, 2021). 71 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO O método consistia em um conjunto de atividades realizadas pelos alunos de forma ordenada, com leitura, escrita e cálculo. O tempo era controlado para ser aproveitado da maneira mais produtiva possível, sendo utilizados apitos e outros sinais sonoros para indicar o ritmo com o qual deveriam ser realizadas as atividades. O adulto que acompanhava os alunos era um monitor, ou seja, não lecionava as aulas de forma expositiva, mas auxiliava na realização dessas tarefas e coordenava o tempo para as atividades. Muitas atividades eram realizadas oralmente, ou escritas em caixas de areia, e utilizavam‑se silabários impressos em quadros murais quando as atividades ocorriam em grupo. Tudo isso reduzia a necessidade de papéis, tintas e livros, que deveriam ser reservados aos alunos mais adiantados. Ainda em decorrência das discussões promovidas pela Assembleia Constituinte, foram criadas em 1827 duas Faculdades de Direito, uma em Olinda e outra em São Paulo, continuando as preocupações de formação da elite em território nacional. Nessas escolas eram formados futuros políticos do Império, magistrados, escritores, jornalistas e mesmo professores. Em 1831, dom Pedro I – pressionado com a questão sucessória do trono português, tentando garantir que seus herdeiros assumissem o reino de Portugal (com sua filha, dona Maria II) e o Império do Brasil (com seu filho, dom Pedro II) – abdicou do trono brasileiro, deixando aqui seu filho menor de idade, que tinha regentes governando em seu lugar até atingir a maioridade (que foi antecipada). A partir de 1834 a educação passou a ser tratada de modo mais descentralizado pelo governo, com base no ato adicional à constituição daquele ano (BRASIL, 1834), que estabelecia que as Assembleias Provinciais ficariam responsáveis pela criação de escolas de primeiras letras e de cursos de formação de professores, e a Assembleia Geral se ocuparia do ensino superior e das aulas oferecidas na capital do país. Segundo Hilsdorf (2015), o governo central se preocupava de maneira especial com o ensino superior porque era nesse nível de ensino que se formava a elite política, que deveria partilhar do mesmo ideal do Estado. Apenas um estabelecimento de ensino secundário foi criado pelo império, o Colégio Pedro II, em 1837. Os liceus e ginásios secundários criados pelas províncias e pela iniciativa privada ficavam proibidos de dar acesso direto às academias, como era o caso do Colégio Pedro II. Quem não estudasse nessa instituição ficava obrigado a realizar exames de ingresso aos cursos superiores. Isso levou muitas províncias a desistirem de investir no ensino secundário, abandonando os ginásios e liceus já criados. Na província de São Paulo havia dois liceus em 1846, que em 1850 já não funcionavam mais, e em 1868 o ensino secundário estava oficialmente desobrigado nesta província. Essas resoluções fizeram que o ensino secundário fosse oferecido especialmente por instituições particulares, em cursos avulsos de disciplinas preparatórias para os exames de ingresso das academias. Alguns desses cursos se anunciavam como colégios, liceus e ateneus, mas não se constituíam de fato assim. Segundo Hilsdorf: Davam uma preparação rápida e específica para os exames, contrariando a tendência contemporânea que predominava nos países europeus, de criação de estabelecimentos organicamente formadores dos adolescentes, cujos 72 Unidade I currículos eram integrados por cursos regulares, seriados e simultâneos de estudos enciclopédicos. O peso dos cursos parcelados foi de tal monta que o próprio Colégio Pedro II acabou por realizar exames finais por disciplinas, e não por séries (Reforma Paulino J. de Souza, de 1870), e a aceitar matrículas avulsas, frequência livre e exames vagos (Reforma Leôncio de Carvalho, de 1878), no lugar dos cursos seriados e regulares (HILSDORF, 2015, p. 47). Enquanto isso, a tendência em outros países era a criação de um ensino secundário cuja finalidade era a formação dos jovens. No Brasil, nem um quinto dos jovens entre 6 e 15 anos frequentavam escolas em 1872. Os estudos se voltavam aos exames das academias, cujos pontos contemplados eram publicados no Diário Oficial do Império. Para ingressar nas Academias de Direito era necessária a aprovação em latim, inglês e francês, história e geografia, retórica e filosofia racional e moral, aritmética e geometria; a partir de 1871 passa a ser exigida a aprovação em gramática portuguesa. Conforme avançava o Segundo Império, as correntes de pensamento liberais abolicionistas passavam a influenciar mais o debate político. Mesmo antes da independência, com os intelectuais iluministas que participavam da política brasileira, já havia a preocupação em avaliar os problemas brasileiros e apresentar propostas para superá‑los. Mesgravis (2018) lembra que José Bonifácio de Andrada e Silva, antes de ser o “patriarca da Independência”, já considerava que era necessário ao progresso do país incluir os negros escravizados, os indígenas e os homens pobres no projeto da nação, difundindo a instrução e a concessão de lotes de terra para cultivo, outro tema que se arrastaria por séculos no Brasil. Mas agora que o Brasil era independente e tinha como governante um homem culto, como era dom Pedro II, bastante envolvido com as grandes questões de seu tempo, especialmente as invenções, como o telefone e a fotografia, essas questões estavam mais do que nunca no debate político, especialmente a partir das leis que foram gradativamente controlando o tráfico de escravizados até finalmente abolir a escravidão em nosso país. Para os liberais desse momento (a partir de 1870), além da abolição era necessário promover as pequenas propriedades de terra, investir na indústria, tornar o voto universal, o ensino primário estatal gratuito e a liberdade de ensino para a iniciativa privada. Esses intelectuais pensam na educação como instrumento de modernização do país. Por isso, a partir dessas duas décadas finais do império vão se disseminar muitas instituições escolares elementares e secundárias. Em São Paulo, em 1862 havia 79 escolas de primeiras letras masculinase 64 femininas, além de aulas avulsas. Em 1872, na mesma província havia 314 escolas públicas elementares masculinas e 197 femininas, em um claro crescimento da instituição. Nesse momento os conservadores queriam manter o ensino elementar a cargo das províncias e os moderados queriam maior participação do poder central. Ambos concordavam em dar liberdade irrestrita à iniciativa privada, o que tinha resistência apenas da Igreja católica (que durante todo esse tempo continuava atuando na alfabetização) com receio de serem introduzidas no país ideias críticas à Igreja. Nesse momento, monarquia e Igreja católica ainda estavam unidas. 73 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO O político Rui Barbosa (1849‑1923), homem de importante participação nas primeiras décadas da República brasileira, também advogava em favor da maior promoção da educação pelo Estado no país, pois apenas este, livre das preocupações e regulações do mercado, poderia promover uma formação que preparasse o cidadão para o exercício da cidadania. Inclusive, o direito ao voto estava condicionado à alfabetização. A instrução deveria, então, ser pública e gratuita. Circulavam nesse momento muitos impressos com obras sobre modelos de educação implantados e discutidos na Europa e nos Estados Unidos. Também foram implantadas pela iniciativa privada diferentes correntes educacionais, com destaque para o Colégio Culto à Ciência (criado por maçons cientificistas), o Colégio Florence, destinado à formação de meninas e que aplicou muitas novidades nesse ensino, e o Colégio Internacional (confessional presbiteriano), todos em funcionamento no século XIX em Campinas, cidade de grande destaque devido à elite cafeicultora da região. Segundo Hilsdorf (2015), os liberais queriam que fossem aplicadas no Brasil inovações pedagógicas que estavam em voga na Europa e nos Estados Unidos. Seriam estas as inovações no ensino elementar: jardins de infância, “classes despertadoras”, ensino simultâneo de leitura e escrita, conteúdos seriados, disciplina branda, metodologia intuitiva, aulas de “lições de coisas”, aulas noturnas de alfabetização, métodos rápidos e práticos de ensinar a ler. Para o ensino secundário: matérias cientificas não trabalhadas nos cursos avulsos de preparatórios, como língua portuguesa, física, química, história natural, ensino prático em laboratórios, ensino leigo, classes de formação de professores, sobretudo nos colégios de meninas, cursos noturnos de formação profissional, congressos, exposições pedagógicas, novos compêndios. Com a instrução pública também passava a ser construído física e culturalmente um espaço específico destinado à educação: a escola. A educação, durante todo o período colonial e imperial, era acessível apenas à população livre. Como já vimos anteriormente, os indígenas, que eram considerados livres, tinham acesso às escolas jesuítas para a alfabetização nos aldeamentos. Nem sempre o interesse em se garantir a alfabetização desses grupos foi intenso, mas havia essa possibilidade. Já os negros escravizados não podiam acessar a escola. Mesmo que o senhor desejasse matricular seus escravizados na escola, isso era proibido, o que não impedia que pudessem receber algum tipo de alfabetização dentro das fazendas (MENEZES; SANTOS FILHO, 2007). Aos que eram libertos ou livres era possível a matrícula na escola pública. São conhecidos importantes homens negros livres que receberam boa educação nos padrões da época, muitos deles participantes ativos Do movimento abolicionista, como: André Rebouças, importante engenheiro, com grande atuação em projetos para o império; Luis Gama, que advogava em favor daqueles que se encontravam ilegalmente cativos; José do Patrocíno, Teodoro Sampaio, Juliano Moreira, Manoel Querino, entre outros. Mas, segundo Menezes e Santos Filho (2007, p. 17) “inexistiu, durante a escravidão ou depois dela, uma política de massas voltada explicitamente para garantir aos ex‑escravos o acesso à escola”. O acesso à educação dependia das possibilidades e condições de cada pessoa liberta. 74 Unidade I Durante o império, conforme as discussões sobre a abolição avançavam também surgiam propostas e discussões sobre como seria a vida das pessoas que se tornariam livres e como deveriam ser preparadas para que fossem incluídas na cidadania brasileira, com um projeto de organização de um sistema de ensino que fosse acessível às crianças livres (MENEZES; SANTOS FILHO, 2007). Também estava em questão nesse momento a educação das crianças negras que nasciam livres. Com a Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre (BRASIL, 1871), os filhos das mulheres escravizadas que nascessem a partir daquela data eram legalmente livres. Até os 8 anos essas crianças ainda ficariam sob a autoridade dos senhores das mães, que deveriam criá‑los e tratá‑los. A partir dessa idade a mãe, segundo a lei, poderia entregar a criança ao Estado, que pagaria uma indenização ao proprietário da mãe, ou o senhor poderia “utilizar‑se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completo”, o que acontecia frequentemente. Se a criança fosse entregue ao Estado era preciso antes providenciar uma declaração do senhor sobre esse assunto; caso nada tivesse sido preparado para o envio ao Estado, estava subentendido que tinha se optado por manter a criança para os serviços. Caso o menor pudesse em algum momento pagar uma indenização proporcional ao tempo que ainda lhe restava de serviço, ou se alguém pagasse por ele, poderia ser libertado antes. Legalmente, essas crianças só estavam sob a “tutela” do senhor devido à propriedade que ele possuía sobre a mãe. As crianças entregues ao Estado ou abandonadas pelos senhores das mães podiam ser cuidadas por associações autorizadas pelo governo. Essas associações tinham o direito de receber serviços gratuitos desses menores de idade ou mesmo de alugar seus serviços a outros. Mas tinham também a obrigação de criar e cuidar dessas crianças e adolescentes, preparar uma reserva financeira para quando fossem maiores de idade e procurar emprego para eles quando terminasse esse período de tutela. Wlamyra Albuquerque (2009) nos conta um episódio que nos dá alguma ideia sobre a importância da educação para os negros como forma de participação na vida comunitária após a abolição. Em 1889, um grupo de libertos da região de Vassouras, no Rio de Janeiro, teria enviado uma carta a Rui Barbosa exigindo instrução pública aos seus filhos. Com a abolição, o que restava do apoio das elites para a monarquia ruiu e passaríamos a viver em um país republicano, sobre o qual começaremos a discutir na próxima unidade. 75 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Resumo Na Idade Média a relação entre o ensino e a religião foi extremamente marcante. O ensino acontecia em escolas dentro dos mosteiros, depois em escolas ligadas às catedrais, e posteriormente surgiram as universidades. O conhecimento nesse período se baseava nas autoridades da Igreja, ou seja, nos textos sagrados, como a Bíblia, e os autores chamados de padres da Igreja, como Santo Agostinho e São Jerônimo. Também eram autoridades alguns autores gregos, mas sobretudo romanos. Durante o reinado de Carlos Magno, rei dos francos, houve um particular resgate de autores romanos, por isso é chamado esse período de Renascimento Carolíngio. No século XII um novo momento de retomada da Antiguidade se deu pelo contato das traduções de textos gregos, especialmente de Aristóteles, através das traduções árabes. Mas o período que mais foi lembrado pelo retorno à Antiguidade se deu entre os séculos XIV e XV, com uma profunda transformação na maneira de estudar os autores gregos e romanos tomados em seu contexto de produção, compreendendo a distância histórica entre os textos lidos e seus leitores. Tanto nas escolas monásticas como nas catedralísticas eram estudadas as sete artes liberais, que se dividiam em Trivium (gramática, retórica e dialética) e Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).Além dessas artes, todo aprendizado diretamente relacionado com a prática de uma profissão manual (artes manuais) acontecia nas próprias oficinas, e os reis e mais altos representantes da nobreza recebiam educação através de preceptores. Na passagem da Idade Média para a Idade Moderna ocorreram muitas transformações, entre elas os processos que levaram à concentração de poderes nas mãos dos reis e a formação das Monarquias Nacionais, a Expansão Marítima iniciada por Portugal e Espanha, que resultariam na colonização da América, além da quebra da unidade religiosa existente na Europa, chamada de cristandade. Dentro do movimento de Reformas Religiosas e a reação da Igreja católica, que fez também uma Reforma interna, ao mesmo tempo que combateu os avanços protestantes, com sua Contrarreforma, surgiu um grupo de religiosos que tiveram papel central na defesa da fé católica na Europa e nas colônias portuguesas e espanholas: os jesuítas. 76 Unidade I Os jesuítas atuaram como principais responsáveis pela educação e pela catequese em Portugal e no Brasil entre os séculos XVI e XVIII. Eles atuavam em diferentes níveis de educação, desde as primeiras letras e os ensinamentos religiosos para converter os indígenas até a educação para a formação dos religiosos em seus seminários. Uma das mudanças ocorridas nas Reformas e que eram críticas intensas à igreja era a falta de formação do clero, o que foi profundamente mudando com a Companhia de Jesus, que garantia aos seus religiosos uma formação bastante apurada com seu Ratio Studiorum, o método empregado na formação de seus membros. Por isso muitos jesuítas foram importantes escritores, como padre Antônio Vieira, ou chegaram até a se aproximar muito do que hoje consideraríamos um cientista, como o padre Bartolomeu de Gusmão. Porém, no século XVIII, com a ascensão do Marquês de Pombal como ministro do rei dom José I de Portugal, houve uma profunda reforma no ensino no reino e nas colônias, além da expulsão dos jesuítas. As reformas de Pombal eram influenciadas pelas transformações trazidas pela Revolução Científica do século XVII e pelo Iluminismo do século XVIII, que foi adaptado à realidade de um país absolutista. A universidade de Coimbra, que antes era dominada pelos jesuítas, passa por uma profunda reforma, com instalação de laboratórios e com maior preocupação com o ensino das ciências modernas. Isso gerou consequências no Brasil, pois os filhos das elites da região das minas iam estudar nessa universidade, onde acabaram por entrar em contato com ideias iluministas que passaram a dar o tom das discussões sobre a condição colonial. Com a transferência da corte para o Brasil, em 1808, manteve‑se uma tendência de maior participação do Estado no oferecimento de instrução pública, porém a maior parte das classes altas ainda educava seus próprios filhos, seja com o auxílio de algum parente que teve mais estudos, seja com a contratação de professores particulares e preceptores. Além disso, houve o favorecimento de instituições de formação profissional, como a Escola de Belas Artes, ou ainda a criação de cursos de Direito e Medicina, mas ainda não surgiu a universidade brasileira. A situação foi mantida no período pós‑Proclamação da Independência, durante o Primeiro e Segundo Reinado, com ampliação das escolas e cursos superiores, mas ainda com muitos limites ao acesso. A discussão sobre a escola para todos ficaria para o período republicano. 77 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Exercícios Questão 1. Leia o texto a seguir. Educação na Idade Média Por Lilian Aguiar Figura 8 – Sorbonne, uma das mais antigas universidades da Europa O processo de educação na Idade Média era responsabilidade da Igreja. Existiam, no período medieval, escolas que funcionavam anexas às catedrais ou a escolas monásticas, que funcionavam nos mosteiros. Nesse contexto, a Igreja assumiu a tarefa de disseminar a educação e a cultura no medievo, e o seu papel foi preponderante para o nosso legado educacional contemporâneo. A escola no período medieval era dirigida por um cônego, ao qual se dava o nome de scholarius ou scholasticus. Os professores eram clérigos de ordens menores e lecionavam as chamadas sete artes liberais – gramática, retórica, lógica, aritmética, geografia, astronomia e música –, que, mais tarde, constituíram o currículo de muitas universidades. Para acontecer o ensino, precisava‑se de uma autorização; esta era cedida pelos bispos e pelos diretores das escolas eclesiásticas, que, com medo de perderem a influência, dificultavam ao máximo tal concessão. Reagindo contra essas limitações, professores e alunos organizaram‑se em associações denominadas universitas, que mais tarde originou a palavra universidades. Adaptado de: https://cutt.ly/UNyegUI. Acesso em: 6 out. 2022. 78 Unidade I Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas: I – O processo educacional na Idade Média estava fortemente vinculado à Igreja, que tinha influência em várias esferas da sociedade na época. II – Nas escolas medievais, os professores eram clérigos de ordens menores que se restringiam a ensinar conteúdos religiosos. III – Docentes e discentes, em reação às dificuldades de autorização ao acesso às escolas na Idade Média, criaram as universitas, que deram origem às universidades. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) II, apenas. C) III, apenas. D) I e III, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa D. Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: segundo o texto, “o processo de educação na Idade Média era responsabilidade da Igreja”. Nessa época, havia “escolas que funcionavam anexas às catedrais ou a escolas monásticas, que funcionavam nos mosteiros”. Assim, “a Igreja assumiu a tarefa de disseminar a educação e a cultura no medievo”. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: segundo o texto, de fato, nas escolas medievais, “os professores eram clérigos de ordens menores”. No entanto, eles “lecionavam as chamadas sete artes liberais – gramática, retórica, lógica, aritmética, geografia, astronomia e música –, que, mais tarde, constituíram o currículo de muitas universidades”. III – Afirmativa correta. Justificativa: segundo o texto, “para acontecer o ensino, precisava‑se de uma autorização; esta era cedida pelos bispos e pelos diretores das escolas eclesiásticas, que, com medo de perderem a influência, 79 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO dificultavam ao máximo tal concessão”. Além disso, “reagindo contra essas limitações, professores e alunos organizaram‑se em associações denominadas universitas, que mais tarde originou a palavra universidades”. Enfim, no livro‑texto, vimos que, na Idade Média, a relação entre o ensino e a religião foi fortemente marcante. O ensino acontecia em escolas dentro dos mosteiros, depois, em escolas ligadas às catedrais, e, posteriormente, surgiram as universidades. Questão 2. Leia o texto a seguir. Pombal e a reforma educacional Ana Paula Seco e Tania Conceição Iglesias do Amaral A política educacional como outra qualquer de Pombal era lógica, prática e centrada nas relações econômicas anglo‑portuguesas. A reforma educacional pombalina culminou com a expulsão dos jesuítas precisamente das colônias portuguesas, tirando o comando da educação das mãos destes e passando para as mãos do Estado. Os objetivos que conduziram a administração pombalina a tal reforma foram, assim, um imperativo da própria circunstância histórica. Extintos os colégios jesuítas, o governo não poderia deixar de suprir a enorme lacuna que se abria na vida educacional tanto portuguesa como de suas colônias. Para o Brasil, a expulsão dos jesuítas significou, entre outras coisas, a destruição do único sistema de ensino existente no país. Para Fernando de Azevedo, foi “a primeira grande e desastrosa reforma de ensino no Brasil”. Como bem colocou Niskier, “a organicidade da educação jesuítica foi consagrada quando Pombal os expulsou, levando o ensinobrasileiro ao caos, através de suas famosas ‘aulas régias’, a despeito da existência de escolas fundadas por outras ordens religiosas, como os Beneditinos, os Franciscanos e os Carmelitas” (Niskier, 2001, p. 34). Enquanto na metrópole buscava‑se construir um sistema público de ensino, mais moderno e popular, na colônia, apesar das várias tentativas, através de sucessivos alvarás e cartas régias, as Reformas Pombalinas no campo da educação só lograram desarranjar a sólida estrutura educacional construída pelos jesuítas, confiscando‑lhes os bens e fechando todos os seus colégios. É importante destacar que a Reforma Pombalina no Brasil não foi implementada no mesmo momento nem da mesma forma que em Portugal. Foi de quase 30 anos o tempo de que o Estado português necessitou para assumir o controle pedagógico da educação a ser oferecida em terras brasileiras; da completa expulsão dos jesuítas e do desmantelamento sistemático de seu aparelho educacional, dos métodos aos materiais didáticos, até a nomeação de um diretor geral dos estudos que deveria, em nome do rei, nomear professores e fiscalizar sua ação na colônia. Através do Alvará Régio de 28 de junho de 1759, o Marquês de Pombal suprimia as escolas jesuíticas de Portugal e de todas as colônias ao expulsar os jesuítas da colônia e, ao mesmo tempo, criava as aulas régias ou avulsas de latim, grego, filosofia e retórica, que deveriam suprir as disciplinas antes oferecidas nos extintos colégios jesuítas. 80 Unidade I Essas providências, entretanto, não foram suficientes para assegurar a continuidade nem a expansão das escolas brasileiras, constantemente reclamadas pelas populações que até então se beneficiavam dos colégios jesuítas. Portugal logo percebeu que a educação no Brasil estava estagnada e era preciso oferecer uma solução. Somente quando a Real Mesa Censória, criada em 1767 (inicialmente com atribuição para examinar livros e papéis já introduzidos e por introduzir em Portugal), alguns anos depois, passa a assumir a incumbência da administração e direção dos estudos das escolas menores de Portugal e suas colônias é que as reformas na instrução ganham meios de implementação. Com as novas incumbências e a partir das experiências administrativas da direção geral de estudos, nos anos anteriores, a Mesa Censória apontou para as necessidades tanto na metrópole quanto na colônia referente ao campo educacional. Assim, os estudos menores ganharam amplitude e penetração com a instituição, em 1772, do chamado “subsídio literário” para a manutenção dos ensinos primário e secundário. Como Carvalho (1978) bem explicitou, “com os recursos deste imposto, chamado subsídio literário, além do pagamento dos ordenados aos professores, para o qual ele foi instituído, poder‑se‑iam ainda obter as seguintes aplicações: 1) compra de livros para a constituição da biblioteca pública, subordinada à Real Mesa Censória; 2) organização de um museu de variedades; 3) construção de um gabinete de física experimental; 4) ampliação dos estabelecimentos e os incentivos aos professores, entre outras aplicações” (Carvalho, 1978, p. 128). Adaptado de: https://cutt.ly/9Nyy7Nr. Acesso em: 6 out. 2022. Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas: I – No século XVIII, com a ascensão do Marquês de Pombal como ministro do rei dom José I de Portugal, observamos profunda reforma no ensino no reino e nas colônias, além da expulsão dos jesuítas. II – As Reformas Pombalinas foram implantadas de forma simultânea e idêntica tanto na metrópole quanto no Brasil colonial. III – O subsídio literário, de 1772, teve, entre outros objetivos, a redução dos estabelecimentos escolares, a fim de que pudessem ser oferecidos incentivos aos professores. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) II, apenas. C) III, apenas. D) I e III, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa A. 81 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: segundo o texto, “a reforma educacional pombalina culminou com a expulsão dos jesuítas precisamente das colônias portuguesas, tirando o comando da educação das mãos destes e passando para as mãos do Estado”. Além disso, vimos, no livro‑texto, que as reformas de Pombal foram influenciadas pelas transformações trazidas pela Revolução Científica do século XVII e pelo Iluminismo do século XVIII, que foi adaptado à realidade de um país absolutista. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: segundo o texto, “a Reforma Pombalina no Brasil não foi implementada no mesmo momento nem da mesma forma que em Portugal”. Isso porque “foi de quase 30 anos o tempo de que o Estado português necessitou para assumir o controle pedagógico da educação a ser oferecida em terras brasileiras; da completa expulsão dos jesuítas e do desmantelamento sistemático de seu aparelho educacional, dos métodos aos materiais didáticos, até a nomeação de um diretor geral dos estudos”. Além disso, “enquanto na metrópole buscava‑se construir um sistema público de ensino, mais moderno e popular, na colônia, apesar das várias tentativas, através de sucessivos alvarás e cartas régias, as Reformas Pombalinas no campo da educação só lograram desarranjar a sólida estrutura educacional construída pelos jesuítas, confiscando‑lhes os bens e fechando todos os seus colégios”. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: segundo o texto, houve, em 1772, a instituição do subsídio literário “para a manutenção dos ensinos primário e secundário”. Entre os objetivos desse subsídio, temos a “ampliação dos estabelecimentos e os incentivos aos professores”.