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Bem-vindo(a) à disciplina de História do Cristianismo I! Nela você estudará prioritariamente aspectos históricos ligados à fé cristã nos períodos antigo e medieval, buscando também fazer conexões de análise com a realidade da igreja em outras temporalidades. APR ESEN TAÇÃO DA DISCIPLIN A UN IDADE 1 - CR ISTIAN ISMO AN TIGO - PAR TE I UN IDADE 2 - CR ISTIAN ISMO AN TIGO - PAR TE II Apresentação da disciplina Introdução à unidade 1 1. O estudo da História. O Cristianismo Antigo e Medieval 2. O contexto sociocultural do Cristianismo antigo: o ambiente greco-romano 3. Contexto religioso em que se desenvolveu o Cristianismo antigo 4. Crescimento do movimento cristão em seus primórdios Introdução à unidade 2 Apostila: História do Cristianismo I (PDF) UN IDADE 3 - CR ISTIAN ISMO MEDIEVAL UN IDADE 4 - CR ISTIAN ISMO MEDIEVAL 1. Con�itos entre Cristianismo e Império Romano 2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga 3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo antigo 4. O papel dos Pais da igreja: por uma igreja �el às origens apostólicas Considerações �nais Introdução à unidade 3 1. Como se deu o surgimento do catolicismo romano? 2. Como se caracterizava a igreja medieval institucional e como era a religiosidade do povo? 3. Doutrinas e ritos praticados na Idade Média Considerações �nais Introdução à unidade 4 1. O surgimento do Islã e as cruzadas medievais 2 - Vida monástica: por uma espiritualidade voltada à simplicidade e ao próximo 3. Movimentos pré-reformadores: por um retorno doutrinal e eclesiástico às origens apostólicas Considerações �nais Bem-vindo(a) à disciplina de História do Cristianismo I! Nela você estudará prioritariamente aspectos históricos ligados à fé cristã nos períodos antigo e medieval, buscando também fazer conexões de análise com a realidade da igreja em outras temporalidades. Dentro da organização curricular da FTSA, a contextualização tem um papel muito representativo, pois seu ensino está comprometido em oferecer uma educação contextualmente direcionada às necessidades das igrejas brasileiras e latino-americanas. Para análise da realidade, o conhecimento histórico é preponderante, pois possibilita a compreensão do Apresentação da disciplina História do Cristianismo I Professor Riscado desenvolvimento social, político, cultural religioso que configurou esta realidade. Permite que se conheça a realidade, fundamente sua interpretação e, por conseguinte, oriente a ação transformadora em contextos do tempo presente, visto que a missão da igreja é continuidade de práticas que nos antecederam no transcurso dos tempos. Neste sentido, a FTSA desde suas origens não abre mão do legado teológico produzido pelo processo histórico no advento da Reforma Protestante do século XVI, mas, igualmente, considera preponderante que essa teologia, que deve estar sempre se reformando, seja interpretada e relida a partir das especificidades do ambiente latino americano. A história possibilita compreender como a igreja, em outras temporalidades, vivenciou a fé, a espiritualidade, praticou seu culto, formulou sua teologia e cumpriu sua missão, agindo em favor de um mundo mais justo e pleno de vida, pelas prerrogativas do reino de Deus, promovendo assim transformações em perspectiva integral. Deste modo, a disciplina histórica serve de referência para as demais, pois é transversal aos diferentes conteúdos que compõem a matriz curricular do curso teológico. Por ser também crítica da realidade, contribui para ensinar que o movimento cristão experimentou situações de luta, crises e desafiadores comprometimentos; fala de perseguições sofridas que ameaçaram sua subsistência, assim como de perseguições que ele mesmo empreendeu, em dados momentos, contra os que se lhe opuseram ou não se moldaram a seus dogmas. O trabalho do estudante de história consiste em estabelecer uma relação de interrogação recíproca entre presente e passado, promovendo uma problematização, evitando os simplismos, triunfalismos e determinismos, tendo em vista que o presente não é mera repetição de fenômenos ou acontecimentos passados. Como uma metáfora do estudo da história, das relações entre passado e presente, ou das permanências e rupturas ocorridas no tempo, os historiadores costumam citar o exemplo do palimpsesto. Palimpsesto é uma palavra grega usada para identificar o que ocorria com a escrita em pergaminhos: uma antiga escrita, depois de ser apagada para dar lugar a um novo registro, com o passar do tempo reaparecia, permitindo sua leitura interposta ao novo relato, mesmo em tempos muito posteriores. A analogia do palimpsesto é usada para demonstrar como determinadas práticas podem reaparecer em tempos subsequentes, não como mera repetição, mas de forma ressignificada, com novos sentidos, mesmo que já tenha sido considerada superada ou apagada pelo tempo. São os processos de rupturas e permanências que caracterizam o transcurso histórico. Na estrutura curricular da FTSA, o curso de história está distribuído em três disciplinas. A parte I concentra-se nos primórdios do movimento cristão em evidência no ambiente judaico e greco- romano, avançando até o mundo medieval, quando ocorre a consolidação da cristandade. Em história II, os conteúdos focam os processos que envolveram a Reforma Protestante e seus desdobramentos no mundo ocidental, nisto incluindo os movimentos que marcaram os séculos XVIII e XIX, como avivamento e impulso às missões modernas. E, finalmente, a parte III abordará a presença do Cristianismo no contexto brasileiro e na América Latina, com caracterização dos grupos que deram origem ao cenário religioso hoje em evidência: católicos, protestantes e pentecostais, em suas diversas tipologias. A mensagem que teve início na Galileia, passou por Jerusalém, e como Jesus havia predito, chegou até “aos confins da terra” (At 1:8). A disciplina de História possibilitará compreender como isso foi possível, guiando-nos numa travessia de 21 séculos pelos caminhos desafiadores que o tempo desenhou. Você, estudante, é nosso(a) convidado(a) a dar os primeiros passos nesta fascinante jornada a partir de agora. Prof. Dr. Wander de lara Proença Esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos conceituais que orientam o estudo da História; identificar aspectos característicos do Cristianismo antigo e medieval; compreender o contexto em que surgiu e se desenvolveu o Cristianismo; apresentar exemplos históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval. Apresentaremos alguns dos procedimentos que orientam o estudo da História. Identificaremos o contexto de surgimento das primeiras comunidades cristãs, assim como as transformações que envolveram as práticas do Cristianismo nascente a partir do ambiente judaico, grego e romano. Estudar a trajetória do movimento cristão nestes primeiros séculos significa incursão em temáticas historicamente riquíssimas e desafiadoras, como por exemplo: quem e como viviam os primeiros cristãos? as relações de conflito com o Império Romano? as estratégias que utilizaram para a propagação de sua fé? quais desafios enfrentaram em um contexto complexo de mitologias crenças e correntes filosóficas? Introdução à unidade 1 Introdução à unidade Esta unidade tem como principais objetivos conhecer aspectos conceituais que orientam o estudo da História; identificar aspectos característicos do Cristianismo antigo e medieval; compreender o contexto em que surgiu e se desenvolveu o Cristianismo; apresentar exemplos históricos da vivência da fé cristã no ambiente antigo e medieval. Apresentaremos alguns dos procedimentos que orientam o estudo da História. Identificaremos o contexto de surgimento das primeiras comunidades cristãs, assim como as transformações que envolveram as práticas do Cristianismo nascente a partir do ambiente judaico, grego e romano. Estudar a trajetória do movimento cristão nestes primeiros séculos significa incursão em temáticas historicamenteriquíssimas e desafiadoras, como por exemplo: quem e como viviam os primeiros cristãos? as relações de conflito com o Império Romano? as estratégias que utilizaram para a propagação de sua fé? quais desafios enfrentaram em um contexto complexo de mitologias crenças e correntes filosóficas? 1. O estudo da História. O Cristianismo Antigo e Medieval A História configura-se no campo de conhecimento que estuda o “tempo”, mais essencialmente, os acontecimentos e as transformações ocorridos ao longo do tempo. Ou ainda, como afirmou o influente historiador Marc Bloch: “História é o estudo do ser humano no tempo”. Um dos termos da língua grega para a palavra “tempo” é kronos – de onde advém cronologia, que trata das temporalidades históricas. Essas temporalidades são classificadas para melhor demarcar os períodos históricos. Para definição dessas escalas temporais, que indicam quando começa e quando termina uma temporalidade, são convencionalmente propostos alguns marcos ou acontecimentos representativos. Glossário As divisões cronológicas da História: 1. Pré-história: todo o período que antecede a invenção da escrita em 3 mil a.C. 2. Período antigo: da invenção da escrita, em cerca de 3 mil a.C., até a queda do Império Romano no Ocidente, no século V d.C. 3. Período medieval: da queda do Império Romano no Ocidente até o fim do Império Romano no Oriente, no século XV, quando em 1453 os muçulmanos tomaram a cidade Constantinopla (capital do referido Império. 4. Período moderno: desde a tomada de Constantinopla até a Revolução Francesa, em 1789. 5. Período contemporâneo: da Revolução Francesa aos dias atuais. 1.1 Em que consiste o estudo da História? Fica caracterizado, pelos episódios indicados acima, que os critérios usados são indicativos de mudanças (com dimensões geralmente políticas ou sociais). Mas isto é algo simbólico, pois não significa que abruptamente um período se encerra e começa outro absolutamente novo, pois um determinado período continua existindo ou se estendendo na temporalidade do outro, naquilo que em História se chama de “continuidades” ou “permanências”. Também é importante dizer que outros critérios ou circunstâncias podem ser usados para distinguir uma temporalidade de outra. Veja o texto de apoio, a seguir. Texto de apoio O historiador Martin Dreher, por exemplo, apresenta argumentos pertinentes sobre isto. Ao invés de indicar a queda do Império Romano no Ocidente como marco divisor, prefere o ano 529, como referência simbólica. Diz ele: “Onde começa a Idade Média, onde termina? No ano 529, um decreto do imperador cristão Justiniano ordenou o fechamento da academia platônica de Atenas, que ali funcionara sob esse mesmo nome por nove séculos. No mesmo ano de 529, aconteceu outro fato de maior relevância: Bento de Núrsia fundou Monte Cassino – o primeiro mosteiro Beneditino. O ano é, pois, significativo: sinaliza o final de um período e aponta para o novo. O fechamento da academia representaria o fim da “filosofia pagã”; mas a fundação do Monte Cassino representa a preservação do pensamento dos antigos, pois é nos conventos que o saber da Antiguidade vai ser preservado, também a filosofia pagã. Do convento vai surgir a universidade, centro de estudo e pesquisa. Assim, a Idade Média é também um período de gestação do novo. A Idade Média começou com a busca por assimilação de todo o mundo da cultura da Antiguidade. A Idade Média terminou, assim me parece, quando esse processo de assimilação chegou ao seu final [...] As novidades trazidas com o descobrimento de novos mundos, Para o estudo da história são fundamentais as fontes, que servem para o historiador buscar evidências em sua análise e relato. As fontes para estudo do Cristianismo são diversas, como por exemplo: os próprios textos neotestamentários, as obras de Flávio Josefo, os achados arqueológicos dos manuscritos de Qumran, a Didaquê, as catacumbas de Roma, registros de historiadores não cristãos, correspondências, literaturas não canonizadas, dentre outros. Em geral, as fontes se dividem em três principais categorias: escritas, orais (tradição transmitida apenas de forma verbal) e materiais (objetos e vestígios estudados, por exemplo, pela Arqueologia). da parte dos europeus, trouxeram crise para o mundo medieval” (DREHER, Martin. A igreja no mundo medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.7-9). Glossário 1 – Fontes históricas: Documentos ou vestígios que, através de seus sinais e interpretação, permitem ao historiador reconstruir ou interpretar a história. 2 – Flávio Josefo: Judeu que viveu entre os anos 37 e 100 d.C, e liderou a revolta judaica contra Roma, na Palestina, no ano 66. Posteriormente, capturado pelos romanos, tornou-se autor de obras importantes sobre os episódios do século I, como a História dos Hebreus. 3 – Manuscritos de Qumran: Conjunto de textos encontrados em 1947, em cavernas nas regiões do Mar Morto, na Judéia, preservados em jarros de barro, referentes a uma numerosa comunidade judaica surgida no ano 150 a.C., conhecida como essênios, e que existiu até a guerra entre judeus e romanos no ano 66 d.C. Estima-se que João Batista, personagem do Novo Testamento, tenha sido membro desta comunidade. As literaturas encontradas correspondem a todos os livros do Antigo Testamento, exceto o livro de Ester, além de vários manuais litúrgicos e o modo de vida da comunidade). 4 – Didaquê: Manual litúrgico elaborado por volta do ano 100 d.C., usado pelas comunidades cristãs primitivas nas atividades de culto e práticas de fé. 5 – Catacumbas de Roma: Túmulos de cristãos sepultados em cemitérios próximos à cidade de Roma, no período de perseguição sofrida pela igreja nos três primeiros séculos; no local, preservam-se pinturas representando símbolos da fé cristã primitiva, que servem de fontes de análise para a pesquisa histórica. 6 – Historiadores antigos não cristãos: Tácito, Suetônio, dentre outros, que no século II registram informações sobre o movimento cristão nascente e sua relação com o Império Romano. 7- Correspondências: Cartas trocadas entre o governador Plínio, da Bitínia, na Ásia Menor, e o imperador romano Trajano, no século II, sobre como o Estado deveria agir em relação aos cristãos. 8 – Literaturas não canonizadas: Textos cristãos dos séculos I e II, como o Evangelho de Tomé, que foi achado em 1945, em um cemitério copta no Egito, que revelam práticas de comunidades cristãs em diferentes regiões do mundo antigo. A história de conquista, poder e domínio do Império Romano começa com a morte de Alexandre, chamado de Alexandre O Grande, no século IV a.C. Com a morte deste imperador, o Império grego foi se fragmentando, possibilitando assim a dominação de um outro poder emergente: Roma. Mantendo a influência da cultura e língua dos gregos, os romanos tornaram-se sucessores daquela civilização em todos os lugares conhecidos no mundo antigo, passando a difundir em regiões extensivas de todo o Mar Mediterrâneo, abrangendo o Ocidente, Oriente, Ásia e África, os valores da então chamada cultura greco-romana (resultante da fusão entre as duas culturas) por meio da construção e manutenção desse poderoso Império. Segundo o historiador Martin Dreher, houve um movimento que foi o grande responsável pela unidade cultural do Império Romano: o helenismo. Basicamente, trata-se da cultura da era de Alexandre, quando língua, costumes, utensílios, arte, literatura, filosofia e religião dos gregos foram disseminados em diferentes lugares do mundo antigo. 2. O contexto sociocultural do Cristianismo antigo: o ambiente greco-romano Saiba Mais Siglas que identificam temporalidades: a.C: antes de Cristo d.C: depois de Cristo a.D: anno domini (termo que significa “ano do Senhor”, em referência à era de Cristo) No período em que se consolidou como imperador romano, nos anos 40 a.C., Otaviano estabeleceu uma ordem ansiada por muitos, por meio da chamada Pax Romana. Utilizando-se do controle das legiões armadas, fez cessar os conflitosnas dimensões do Império através do uso da força. Em 12 a.C. recebeu o altíssimo cargo sacerdotal de “Pontifex Maximus”. Por meio de uma votação popular o senado lhe acrescentou ainda: “Augusto pater patriae”. Pouco antes de morrer, Otaviano Augusto apresentou um relatório retrospectivo de sua política, destacando orgulhosamente os títulos que recebera como homenagem por sua clemência, justiça e piedade. Os romanos desenvolveram o culto ao imperador a partir do momento em que este passou a receber o título de “Augusto”. Uma inscrição feita na Ásia menor, em 9 a.C., dizia: “Pode-se colocar o início do ano no aniversário de César, pois a divina providência trouxe à vida dos homens: paz, salvação, abolição de guerras. O dia do nascimento do deus foi para o mundo o início de boas notícias”. De acordo com Dreher (1993), a unidade do Império apresentava-se de maneira visível na figura do Imperador, que reunia na sua pessoa os principais cargos da antiga república romana. Glossário Pax Romana: paz romana Pontifex Maximus: máximo pontífice Pontífice: líder religioso supremo Pater Patriae: pai da pátria Augusto: venerável, digno de culto. César: título concedido aos imperadores romanos que sucederam a Caio Júlio César; designava o sucessor do imperador reinante. No ano 14 d.C., ocorreu a morte de Augusto (aos 76 anos de idade). Seu filho adotivo Tibério logo assumiu o governo, com 56 anos. Sob o seu governo, Pôncio Pilatos foi constituído procurador da Judéia e da Samaria (26-36 d.C.) – Jesus morreu durante o seu reinado. Em 37 d.C., Calígula assumiu o governo, com 25 anos de idade: vida dissoluta e aspiração exagerada; quis exigir que sua estátua fosse colocada no templo de Jerusalém. Sua morte súbita, impediu a realização deste projeto. Em 41 d.C. foi morto numa revolta palaciana, pela guarda pretoriana, a qual proclamou Cláudio (tio de Calígula), como César (41-54). Em Roma, Cláudio, no ano 49 (d.C.), fez um decreto contra os judeus devido a conflitos surgidos entre eles. O testemunho do historiador antigo Suetônio - em sua obra Vidas dos Césares - apresenta as razões dessa medida adotada: “Expulsou os judeus de Roma, por que causavam agitação contínua, instigados por um certo Chresto” (apud FABRIS, p. 45). Chresto seria uma referência a Cristo? As circunstâncias parecem denotar esta interpretação: a pregação sobre Jesus, anunciado como Cristo, o Messias de Israel, teria provocado divisões e conflitos entre judeus, uma parte ligada ao judaísmo e outra já convertida ao Cristianismo. Fato é que os judeus foram expulsos da cidade, havendo lá grande comunidade deles. Foram proibidos a eles o culto e as reuniões sinagogais. Este decreto também envolveu, portanto, os judeus-cristãos. Mais tarde, Nero revogaria esse edito. Glossário Sinagoga: etimologicamente significa “casa do livro”, ou seja, lugar de ensino da Lei e dos costumes judaicos; as sinagogas surgiram no período do exílio babilônico sofrido pelos judeus, no século VI a.C., passando a ter um papel importante na diáspora (dispersão) decorrente daquele exílio, no propósito de manter a identidade das tradições judaicas, na ausência ou distanciamento geográfico do Templo de Jerusalém. No ano 54 d.C., Cláudio foi envenenado por sua esposa Agripina, que o assassinou para entronizar seu filho Nero, fruto de seu primeiro matrimônio, adotado por Cláudio. Nero tinha apenas 17 anos, recebendo, por isso, auxílio de outros na condução de seu governo. Tornou-se depois descomedido: gostava de apresentar-se publicamente como artista; mandou matar sem escrúpulos quem se opusesse a ele; instigou a primeira perseguição contra os cristãos em Roma, incendiando a cidade em 64, culpando por isto os cristãos, perseguindo e condenando à morte os que eram presos. Tácito, historiador antigo, relata as atrocidades praticadas por Nero, mandando, inclusive, matar membros de sua família; suicidou-se em 68. Tempos depois da morte de Nero, correu o boato de que na verdade não havia morrido, o que teria sido apenas mais uma de suas artimanhas. A sua possível reaparição causava terror e pode estar associada à base imaginária com que o Apocalipse descreve a Besta que ressurge, depois de ter sido “ferida de morte” (Ap 13). Após sua morte, três generais foram proclamados simultaneamente seus sucessores: Galba (Espanha); Oto (Roma); Vitélio (Germânia). Nenhum dos três conseguiu aprovação de todo o Império: o que tornava iminente uma nova guerra civil. Diante disto, Vespasiano (que estava com suas tropas na Palestina, e com o apoio delas, conseguiu apoderar-se do governo e estabelecer a ordem, em 69 d.C. Vespasiano impôs a renovação da instituição do “primeiro sucessor”, criada por Augusto, assegurando assim a sucessão de seus filhos. Em 79, morre; seu filho Tito - o conquistador de Jerusalém - tornou-se imperador. Em 81, sucedeu-lhe o seu irmão Domiciano (81-96), que: procurava sublinhar seu poder absoluto; propagava em público a santidade de sua pessoa, deleitando-se com a aclamação do povo a si e à sua esposa no anfiteatro, no dia do grande banquete (“salve nosso Senhor e nossa senhora”); exigia de todos uma cega submissão às suas ordens; sufocava qualquer movimento de resistência; em 96, foi vítima de uma conjuração. Este é o imperador que ocupa o poder na época em que o livro do Apocalipse foi escrito. Após sua morte, operou-se uma mudança: o senado elegeu como imperador um descendente de uma antiga família romana: Nerva (96-98), correspondendo assim à imagem do soberano movida pelo pensamento estóico: “o melhor deveria governar em função do bem comum”. Em 98, Trajano (Filho adotivo de Nerva) ocupa o poder, nele permanecendo até o ano 117. Desta forma, pelo método da adoção, assegurava-se a escolha do mais capacitado entre os candidatos. Saiba Mais Continue assistindo ao vídeo: O Império Romano – Parte I. (Série Curiosidades bíblicas e histórias do Cristianismo). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=d91zM8qIE_E&t=3s https://www.youtube.com/watch?v=d91zM8qIE_E&t=3s 3.1 Crenças e diversidade de cultos no contexto greco-romano Desde a antiguidade, o Oriente considerava os soberanos como filhos dos deuses. Por exemplo, no Egito, o Faraó recebia poder, leis e proteção para governar o seu povo; isso legitimava seu poder como majestade intocável. Quanto aos gregos, os deuses adorados por eles não estavam separados dos homens por uma fronteira bem definida. Homens importantes podiam ser elevados da condição humana à divina, colocados como heróis na comunhão sagrada, como observado nas mitologias. Acreditava-se que os deuses vinham até onde estavam os humanos ou desciam à terra em forma humana, semelhante ao que é observado em Atos 14:11: Paulo e Barnabé, em Listra, após a cura de um paralítico desde a infância, provocaram a reação de que “deuses em forma humana desceram até nós”. Alexandre Magno, que difundiu o Império grego, no século IV a.C., já era venerado por muitos de seus súditos. Sobre o chamado culto estatal, as cidades romanas tinham seus deuses particulares: construíram-lhes esplêndidos templos; a vontade dos deuses determinava a vida da cidade e do Estado; festas e espetáculos culturais eram realizados durante o ano em sua homenagem, das quais algumas, por exemplo, estão associadas aos jogos Olímpicos realizados a cada quatro anos. Os deuses romanos participavam ativamente da política e da sociedade. O culto era voltado em torno do Estado, havendo datas pré-estabelecidas pelo calendário. O culto era obrigação civil. Durante a época de Augusto, muitos templos foram edificados na Grécia, na Itália, no oriente e norte da África. Tentava-se forjar uma moral a partir da religião, mas a influências externas culturais eram muito intensas. Também houve forte influência de cultos estrangeiros, trazidos do oriente para Roma. Valorizavam-se os sacerdotes, cujos oráculos orientavam as batalhas, por exemplo. O deus Sol (Hélio) ganhou projeção, na época do Novo Testamento,o qual 3. Contexto religioso em que se desenvolveu o Cristianismo antigo correspondia a Mitras (deus persa), ao ponto do próprio imperador se identificar como seu legítimo filho. No ano 40 a.C., Herodes O Grande, de origem induméia, convertido ao judaísmo e cidadão hebreu, que governava sobre os judeus, assinou um acordo deste povo com Roma, no qual foram assegurados três principais benefícios aos judeus: não trabalhar no sábado, não servir ao exército romano, não cultuar os deuses do Império (apenas fazer orações em favor do imperador). Nos primeiros anos de sua existência, comunidades cristãs, formadas também por judeus, beneficiaram-se destas prerrogativas concedidas a este povo no âmbito do Império Romano, pois eram vistas pelas autoridades como ramificações do judaísmo. Muitos cristãos, em função disto, optavam inclusive por realizar a circuncisão, como forma de se proteger de possível questionamento pela não veneração aos deuses romanos ou pela ausência em cerimônias religiosas obrigatórias. Posteriormente, porém, à medida que os cristãos cresceram, tendo a adesão de diferentes povos gentílicos – havendo, também, conflitos entre judeus e cristãos – estas regalias foram desaparecendo, dando lugar a tensões e conflitos. No Império Romano, um elemento importante destes cultos eram os sacrifícios e oferendas de animais, feitos, de modo geral, da seguinte maneira: parte era queimada; parte era dada aos sacerdotes; outra vendida como carne no mercado; parte era distribuída aos pobres em ocasiões especiais; desse modo, toda carne era de alguma forma sacrificada. Também se faziam banquetes no templo, com a presença de parentes e amigos. Esperava-se, com isto, que os deuses favorecessem o destino dos humanos e afugentassem o infortúnio e a ruína das cidades. Acontecimentos milagrosos também ocorriam por meio de pessoas consideradas dotadas de poderes especiais, que irradiavam força divina. Por exemplo, quando o imperador Vespasiano chegou a Alexandria, no início dos anos 70, pouco tempo depois de tomar posse do governo romano, um cego pediu-lhe que molhasse seus olhos com saliva, e um paralítico que lhe tocasse a perna com seu calcanhar. Segundo Suetônio, historiador romano, o imperador atendeu a esses pedidos, transmitindo força curativa aos doentes, que recuperaram a saúde. 3.2 Religiões de mistério Paralelamente ao culto oficial desenvolveu-se grande religiosidade popular marcada por intenso misticismo. No século I era muito forte o medo, a ameaça dos poderes demoníacos, de doenças, infortúnios etc. As pessoas se sentiam indefesas ante as forças sobrenaturais. Havia a busca por acontecimentos milagrosos. As religiões de mistério se apresentavam para dar segurança e meios de proteção, prometendo salvação e oferecendo-lhe força curativa. Por exemplo, o deus da cura Asclépio (ou Apolo), era popularmente muito venerado, cujo símbolo era a serpente. O culto foi introduzido em 19 a.C., devido à grande peste que ocorrera nas dimensões do Império. Ao redor dos templos deste deus, existiam vários dormitórios onde os Glossário Cultos de mistério: A expressão decorre do fato de os adeptos reunidos para determinados atos cultuais guardarem silêncio absoluto sobre tais atos, nada podendo revelar aos que não fossem iniciados. Os iniciados recebiam fórmulas sagradas e sinais simbólicos, que ajudavam na identificação mútua. Celebrava-se ali o renascimento da pessoa para a eternidade; acreditava que os deuses sofriam, morriam e ressuscitavam. Estes elementos criaram aproximações entre os adeptos e a mensagem que ouviram sobre Jesus. Destes cultos participavam libertos e escravos, homens e mulheres. Circuncisão: rito praticado pelos judeus a partir de uma aliança estabelecida entre Deus e este povo, nos primórdios da narrativa do Antigo Testamento. Para o menino hebreu, determinava-se a realização deste rito ao oitavo dia de vida; mas era também praticado na fase adulta aos homens que se convertiam à fé judaica. A prática consiste em: realizar de uma pequena “cirurgia” ou corte do prepúcio no órgão genital masculino, possibilitando melhores condições de higiene, assepsia e saúde, sendo por isso considerado um “sinal de vida” e longevidade. doentes ficavam hospedados, esperando serem curados durante o sono à noite – especialmente paralíticos, mudos e cegos. O culto a Mitras também se difundiu bastante no Império Romano. Proveniente da Pérsia, esse culto tratava de luta e vitória, por isso muitos soldados se filiavam a essa religião, levando-a às fronteiras do Império. Venerado como deus da luz, Mitras era aquele que dissipava as trevas. Era uma religião de mistério que, ao contrário das demais, só aceitava a filiação de homens, que eram marcados na fronte com um ferro candente, como um guerreiro. Tornavam-se membros por meio de um batismo, após o qual podiam participar dos banquetes santos, para os quais a comunidade se reunia. Após a morte, cada um deveria responder por seus atos perante um tribunal divino, que os pesaria numa balança antes de permitir-lhes a entrada ou não para o mundo da luz. Este culto atraía fiéis pelo dever moral que impunha. Saiba mais Exemplo de um rito de iniciação nos cultos de mistério Um dos rituais que envolvia os cultos de Ísis e Apolo dava-se geralmente da seguinte maneira: o iniciante fazia votos de ablução (não comer carne por um determinado tempo, por exemplo, 10 dias); logo após, o noviço vestia uma roupa específica, ao pôr-do-sol, e era levado ao salão de culto, sendo que ali, repetia palavras como: “eu cheguei às proximidades da morte e com a ajuda da divindade estou agora alcançando a luz verdadeira”; no dia seguinte, ao clarear do dia, terminada a celebração, o iniciado apresentava-se ao povo, vestido com uma estola adornada com a figura do deus Sol. Isto significava que, através da consagração, nasceu agora como ser divino, cheio de força e rodeado por brilhante luz; estava agora preparado para um dia se apresentar a Osíris, o juiz dos mortos. Em síntese, os cultos de mistério: (a) estavam difundidos em todo o Império; (b) ofereciam proteção contra o mal e ajuda redentora da divindade; (c) concediam benesses mediante os ritos praticados pelos iniciados. Saiba mais Mitras e o Cristianismo: o culto a Mitras desempenhou uma acirrada disputa com o Cristianismo pela conquista de adeptos. Como será visto em detalhes, mais adiante, esse embate terminou no 4º século, quando o imperador romano Constantino – adepto de Mitras – declarou-se cristão e ressignificou ritos deste culto com ritos cristãos, como, por exemplo, a fixação do dia 25 de dezembro como o natal de Cristo. Por isso, em muitos lugares construíram-se templos cristãos sobre santuários de Mitras, simbolizando a vitória de Cristo. Mapa: regiões de expansão do cristianismo entre os séculos I e IV 4.1 As contribuições que o Cristianismo recebeu para se expandir Costuma-se afirmar que três povos ou civilizações acabaram por contribuir para a expansão do Cristianismo no contexto em que surgiu: os gregos – pela língua grega, que foi difundida pelo 4. Crescimento do movimento cristão em seus primórdios Império de Alexandre o Grande, facilitando assim a comunicação do evangelho (todo o Novo Testamento, exceto o evangelho de Mateus, foi escrito nessa língua); os romanos – criaram redes de comunicação por meio das estradas, além da tolerância religiosa geralmente praticada em relação aos diferentes povos sob seu domínio, o que deu certa liberdade para o Cristianismo se expandir por um determinado tempo; os judeus – outorgaram ao Cristianismo a fé monoteísta e a ideia da vinda de um Messias, por meio das inúmeras sinagogas espalhadas no tempo da diáspora; além do que, o judaísmo é o berço religioso das comunidades cristãs, em termos de culto e espiritualidade, conforme atestado pelo próprio Novo Testamento. Por que os judeus foram para países estrangeiros? Por vários móvitos: devido aos exílios a que foram submetidos; para seguir as grandes rotascomerciais, estabelecendo-se nas cidades mercantes ou portos; em razão dos pesados tributos impostos pela dominação estrangeira à agricultura, cresceu a pobreza e muitos preferiram outra sorte, por isso recorreram ao comércio. O judaísmo da diáspora também crescia pela conversão de não-judeus. Glossário Diáspora: termo que ignifica dispersão. Em relação aos judeus, dá-se o nome de diáspora às duas grandes dispersões que envolveram este povo: a primeira ocorrida por ocasião do cativeiro babilônico, no século VI a.C.; e a segunda quando da destruição do templo de Jerusalém pelos romanos, no ano 70 d.C. Para o judeu que vivia fora da Palestina, Jerusalém permaneceu como o centro da sua fé e referencial de vida. Lá era o local de sacrifícios ou peregrinações. A Palestina continuava sendo a sua terra, herança dada por Deus. Fora do país, o povo hebreu estava em terra alheia ou impura. A diáspora judaica só começou a se desfazer em 1948, quando houve a reconstrução do Estado de Israel, por decisão e reconhecimento político da ONU, conforme se verá com mais detalhes nas disciplinas de história do Cristianismo, ao longo do curso. Podem ser identificados os seguintes locais em que viviam os judeus, em expressivas aglomerações no mundo antigo: Babilônia; Síria; Ásia menor e Norte da África. Só no Egito, viviam 1 milhão de judeus, sendo a maior parte em Alexandria. Sobre as condições em que viviam os judeus na Diáspora, os seguintes dados se destacam: a) desfrutavam de isenção do serviço militar; b) não tinham necessidade de comparecer no dia de sábado perante instituições públicas e tribunais; c) as comunidades tinham certa autonomia especialmente nas questões de fé; d) todo judeu pagava sua contribuição ao templo, anualmente, o equivalente a dois dias de trabalho (jornaleiro); quem podia pagava voluntariamente quantidades mais altas; e) viagem a Jerusalém nas festas religiosas; f) por outro lado, o Templo mantinha relações com as comunidades judaicas da diáspora; g) falavam quase que exclusivamente grego; h) sofriam influência do helenismo (iam ao teatro, participavam de competições esportivas etc.); i) atraíam muitos simpatizantes às sinagogas, identificados com as pregações e orações, mas o rito da circuncisão se tornava obstáculo para se fazer prosélito; j) sofriam perseguições e discriminações devido ao seu estilo de vida e costumes. 4.2 Desafios do movimento cristão para se desenvolver no mundo urbano antigo O movimento que Jesus inaugurou e liderou ocorreu em um ambiente com traços marcadamente rurais. Seus ensinos têm como cenário a vida camponesa: fala de sementes na parábola do semeador, de flores, trigo, pássaros, pescadores, lírios do campo, e assim por diante. Em razão disto, após sua morte há uma grande demanda por se fazer a transposição desta mensagem cristã de cariz rural para o mundo urbano, da pólis (cidade) grega. Para o tempo em que isto se fez necessário, a providência divina preparou e vocacionou Saulo (depois, Paulo). Este teria a tarefa de fazer prosseguir a obra de Jesus agora no espaço das grandes cidades. Neste aspecto, comparativamente, cabe estabelecer um contraponto entre Jesus e Saulo: - Saulo, nascido e formado até os 18 anos na cidade intelectual de Társis, mudou-se em seguida para Jerusalém para estudos na escola rabínica farisaica, tendo como mestre Gamaliel. Nesse tempo de estudos, residiu provavelmente na casa de sua irmã, que morava naquela cidade (At 23:16). Jesus, por sua vez, 90% de sua existência terrena foram vividos nas regiões rurais da Galileia; não obteve títulos na escola rabínicas do Templo (nem teria condições financeiras para tal). Saulo era cidadão romano; Jesus, para sobreviver, trabalhava na carpintaria ou no campo. - Saulo, posteriormente, irá elaborar todo o seu ensino tendo como pano de fundo a vida urbana: suas ilustrações e metáforas têm origem naquilo que é próprio do seu contexto de formação, ou seja, em seus escritos, encontram-se reflexos de vistas e cenários de Tarso de quando era ainda jovem, de ser conduzido em “triunfo”, de jogos olímpicos, compara o “tabernáculo terrestre” desta vida a um edifício de Deus, destaca as correntes filosóficas circulantes nas pólis gregas. - Seguindo a estratégia de Jesus, Paulo procurou também formar líderes, voltados aos grandes centros, especialmente com a criação da Escola Paulina de Éfeso, para que os mesmos dessem continuidade à missão de proclamar o evangelho, principalmente entre os gentios. Saiba mais Társis: região da atual Turquia, com uma população de 300 mil habitantes à época de Paulo. Era considerada o terceiro mais importante centro da filosofia antiga, ficando atrás somente de Atenas e Alexandria. Por essa razão, nela circulavam diferentes correntes de pensamento; uma cidade cosmopolita, ou seja, nela estavam representados diferentes mundos culturais. Jerusalém: cidade com cerca de 60 mil habitantes nos dias de Jesus. Nela estava situado o templo judaico, que abrigava a escola rabínica (formada por fariseus) e a escola sacerdotal (formada por saduceus); ambas forneciam membros para compor o Sinédrio (alta corte jurídica formada por 70 doutores da Lei). Saulo, depois Paulo, teve, portanto, um papel decisivo na tarefa de introduzir a mensagem cristã nos espaços das grandes cidades do mundo antigo. O êxito de tal empreitada se pode medir pela presença da igreja – muitas vezes incômoda - nas principais cidades do mundo antigo até o século II, como: Roma, Alexandria no Egito, Éfeso, Corinto, além de Jerusalém e Antioquia. 4.3 Grupos sociais influentes no Império Romano A mensagem cristã exerceu atração sobre três principais grupos sociais bastante representativos no Império romano: escravos, soldados e mulheres. Em relação aos escravos, que compunham basicamente dois terços da população total do Império Romano, que era de cerca de 70 milhões de pessoas, a pregação cristã falava de igualdade de relações, como por exemplo: “porque em Cristo não há mais escravo nem livre” (Gl 3:28); quando ao escrever a Filemon, Paulo adverte que o escravo Onésimo fosse tratado como “irmão caríssimo” e não mais como escravo (Fm 16); dentro da comunidade cristã as distinções sociais eram niveladas, não havendo mais separação entre senhor e escravo; isso apontava para o fim da escravidão em escala crescente à medida que o reino de Deus fosse implantado e Jesus retornasse para reinar. Saiba mais Escola Paulina de Éfeso: Éfeso era a cidade greco- romana com a segunda maior população do Império Romano: 500 mil habitantes à época, ficando atrás apenas de Roma. Ali Paulo permaneceu por cerca de 18 meses (seu maior tempo de fixação em uma cidade, quando esteve em liberdade) e criou a Escola Paulina, provavelmente no lugar onde anteriormente funcionara a Escola de Tirano (At 19:9). A Escola Paulina teve três importantes funções: )1 treinar e preparar l íderes para a expansão missionária (Tito, Timóteo e Silas são exemplos destas lideranças ali treinadas); produzir cópias das cartas paulinas para envio circular a diferentes comunidades paulinas; 3) preservar a teologa paulina, voltada aos gentios, fazendo frente às ideias judaizantes que influenciavam o Cristianismo nascente. Em relação aos soldados, a guerra era uma das sinas do Império Romano, expondo precocemente a vida dos combatentes; desse modo, uma mensagem que falava de um mundo novo no qual não mais haveria a guerra e a violência, exercia grande fascínio sobre tais personagens e suas respectivas famílias, que ansiavam por novos valores de preservação da vida. Quanto à mulher, sua condição de exclusão social foi impactada por uma mensagem de que em Cristo “não há mais distinção entre homens e mulheres” (Gl 3:28). Segundo Rodney Stark (2006), as comunidades cristãs se transformaram em espaços de acolhimento de mães em busca de proteção para as filhas recém-nascidas que, segundo costumes no mundo greco- romano, poderiam ser “descartadas” (abandonadas) ao nascer quando em umacasa já existisse uma filha. Abortos e infanticídios de meninas eram comuns naquela sociedade. A igreja primitiva combateu as práticas abortivas e de infanticídio de meninas, promovendo assim uma mobilização em favor da vida. As mulheres, com isso, recorreram à comunidade cristã e a dela passaram a fazer parte, ocasionando desse modo uma presença numericamente muito expressivas de mulheres nas comunidades cristãs. Glossário Androcentrismo: comportamentos, sociedades ou situações em que o foco é o homem, ou que são controlados por uma perspectiva masculina. Samaritanos: Após a morte do rei Salomão, o reino de Israel foi dividido em reino do Sul (com duas tribos) e reino do Norte (com 10 tribos). O reino do Norte foi invadido em 722 a.C. pelos Assírios, os quais introduziram naquele território povos estrangeiros, que se casaram com judeus, além de promover a disseminação de outros costumes culturais e crenças. Isto fez com que houvesse uma radical separação com os judeus do reino do Sul, culminando num isolamento e estado de conflito étnico e religioso entre os dois grupos irmãos. Estas tensões estavam presentes até os dias de Jesus, conforme a própria mulher samaritana reconhece: “porque os judeus não se dão com os samaritanos” (Jo 4). Saiba mais A mulher no mundo antigo O valor dado à mulher é um aspecto marcante no contexto das primeiras comunidades cristãs. No ambiente judaico havia se formatado desde os tempos vétero-testamentários uma mentalidade patriarcal de absoluta superioridade do homem sobre a mulher. Exemplo disto era o rigor com que a Lei religiosa se impunha em relação à mulher, sendo por isso legada sua participação nos cerimoniais e cultos a uma condição de inferioridade e submissão. Nestes eventos, havia espaços próprios e limites para a sua restrita participação, sendo obrigada, inclusive, a permanecer em silêncio. Tais restrições impostas à mulher geravam comportamentos até mesmo constrangedores: estudos mostram que todo judeu piedoso costumava repetir três vezes ao dia a oração “graças te dou, oh! Deus, porque não nasci samaritano, nem escravo e nem mulher”. Na filosofia grega à época também não era muito diferente: a liberdade era atributo do homem. Platão e Xenofonte, por exemplo, afirmavam que as mulheres haviam sido criadas exclusivamente para trabalhos domésticos. Nesse contexto, foi decisiva para a libertação da mulher a atitude de Jesus na realização de seu ministério terreno. Ele estabeleceu um comportamento inaugural ao criar espaços de sociabilidade em relação às mulheres, razão pela qual muitas passaram a segui- lo e a servi-lo, como atestam os relatos dos evangelhos (Mt 27:55,56). Esta participação ativa pode ser observada nos evangelhos, de forma explícita ou não: Jesus valorizou a viúva no momento do ofertório (Mc 12:41-44); beneficiou-as com milagres e curas (Mt 9:19-22, 15:21-28); citou-as em seus ensinos (Mt 13:33; 25:1-13); delas recebeu presentes (Mt 26:6-13); no momento em que celebrou a última páscoa, no cenáculo, lá certamente estavam as mulheres não apenas servindo na preparação dos elementos, mas também desfrutando daquele momento de comunhão; no primeiro anúncio que se faz da ressurreição acontecida, confiou-se a uma mulher, Maria Madalena, essa nobre tarefa; também quando ocorreu o envio do Espírito Santo em pentecostes, mulheres também estavam lá presentes, em oração. Um antigo manuscrito, que se constatou ser um evangelho escrito pelo apóstolo Tomé, foi encontrado por arqueólogos no Egito, em 1945, o qual não apenas registra referências da valorização dada por Jesus à mulher, como também destaca a participação de liderança feminina no movimento comandado pelo Filho de Deus. Quando nasceram inúmeras comunidades cristãs pelo trabalho apostólico, mulheres também participaram ativamente do estabelecimento daquela tarefa, constituindo-se também em membros da liderança que se formava. São exemplos disto: Febe, diaconisa e líder da igreja existente no porto de Cencréia, na cidade de Corinto; Trifena, Trifosa e Pérside, que “muito trabalharam” em comunidades paulinas; Priscila, que juntamente com seu marido, Áquila, realizou importante trabalho missionário em Roma e, depois, em Corinto como colaboradores de Paulo, ressaltando-se que há, inclusive, hipóteses de ter Priscila participado da redação da carta aos Hebreus; Maria, mãe de Jesus que, segundo tradições da igreja antiga, teve um importante papel de liderança nas igrejas da Ásia Menor, desempenhando funções de pregadora e missionária em toda aquela região, especialmente na cidade de Éfeso, onde também morou até o final da sua vida junto à família de João apóstolo. Em síntese, fica evidente que a mensagem e a práxis cristã no mundo antigo não separaram alma de corpo, ou o que é espiritual do que é material. Com isso, desenvolveu-se uma missão contextualizada com as demandas sociais daquele tempo, caracterizando-se, assim, por uma integralidade no modo de cumprir sua tarefa. O movimento cristão nascente não quis apenas salvar as almas, mas transformar o mundo pela pregação do Evangelho. Referências BARRO, Jorge H. De cidade em cidade. Londrina: Descoberta, 2002. COMBLIN, José. Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993. COMBY, J.; LEMONON. Vida e religiões no império romano no tempo das primeiras comunidades cristãs. São Paulo: Paulinas, 1988. DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993. DREHER, Martin. A igreja no mundo medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1994. FABRIS, Rinaldo. Jesus de Nazaré: história e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988. MOULE, C. F. D. As origens do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1979. STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006. Textos complementares DREHER, Martin. A igreja no império romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993, p.10-21. STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006. Capítulo 5: O papel das mulheres no crescimento cristão (p.109-144) UNIDADE II – CRISTIANISMO ANTIGO Nesta unidade, veremos sobre a expansão do Cristianismo, investigando possíveis razões que conduziram um movimento religioso de minorias e vinculada a seguidores de condições sociais menos favorecidas, ao patamar de religião em franca expansão e, por fim, assumindo um caráter universal em termos de adesão e amplitude. Iniciaremos destacando as perseguições e martírios que envolveram o movimento cristão pelos conflitos ocasionados em relação ao Império Romano, com seu poderio e controle. [A1] Abordaremos também como se delineia a espiritualidade cristã nos quadros da igreja antiga, usando como base alguns fragmentos de textos espirituais da época, como os do Bispo Hipólito de Roma. Primeiramente, falaremos sobre como eram as reuniões e cultos na igreja em seus primórdios. Em seguida, a partir do exemplo de Hipólito, delinearemos algumas das características da espiritualidade cristã primitiva, mesmo sabendo que elas não se aplicavam a todos em todos os contextos. Trataremos também das controvérsias doutrinárias e sobre a atuação dos Pais da Igreja. O Cristianismo, diferente das religiões pagãs do mundo romano, não nascera como resultado de mitos e mágicas. Ele teve como base a realidade e o fato histórico. Orígenes, Tertuliano, Justino Mártir, Agostinho e tantos outros defensores da fé tiveram grande influência em tornar a mensagem do movimento cristão mais razoável para os intelectuais, levando inclusive muitos destes à conversão. Teremos, portanto, a oportunidade de estudar e conhecer um pouco mais sobre a contribuição de alguns deles. Introdução à unidade 2 1. Conflitos entre Cristianismo e Império Romano: os imperadores que perseguiram e as formas de perseguição O primeiro imperador a iniciar uma ostensiva perseguição ao cristianismo foi Nero (54-68). Após o incêndio na cidade de Roma, no ano64, a mando do próprio imperador, quando dez dos quatorze bairros foram destruídos, os cristãos passaram a ser acusados como culpados por tal episódio, sofrendo por isso atroz perseguição. Tácito, historiador antigo, descreve as atitudes tomadas por Nero na perseguição aos cristãos: Além de matá-los (aos cristãos) fê-los servir de diversão para o público. Vestiu-os em peles de animais para que os cachorros os matassem a dentadas. Outros foram crucificados. E a outros acendeu-lhes fogo ao cair da noite para que a iluminassem. Nero fez que se abrissem seus jardins para esta exibição, e no circo ele mesmo ofereceu um espetáculo pois se misturava com as multidões disfarçado de condutor de carruagem (Gonzalez, 1989, p. 56). Dados históricos e informações preservadas pela tradição antiga referentes ao que ocorrera com os apóstolos e outros importantes líderes do cristianismo em seus primórdios, também nos ajudam a entender que o compromisso com o caminho da cruz foi levado até às últimas consequências. Muitos foram submetidos ao martírio por causa do evangelho de Cristo. Vejamos primeiramente alguns exemplos envolvendo aqueles que fizeram parte dos doze discípulos chamados por Jesus (Mc 3:13-19): 1. . Conflitos entre Cristianismo e Império Romano André: após a morte e ressurreição de Jesus, foi pregar o evangelho na região do Mar Negro (hoje parte da Rússia); depois, segundo a tradição, pregou na Grécia, em Acaia, onde foi martirizado numa cruz em forma de “X”. Daí este instrumento de tortura ter ficado conhecido como “cruz de Santo André”. Bartolomeu: pregou inicialmente na Arábia, depois Etiópia, e por fim, ao lado de Tomé, atuou como missionário na Índia, onde foi martirizado. Filipe: atribui-se a este apóstolo a fundação da igreja de Bizâncio, cidade mais tarde conhecida como Constantinopla. Posteriormente, pregou o evangelho na Ásia Menor, na região de Hierápolis, onde se convertera a mulher de um cônsul romano pela sua pregação. O cônsul, então furioso por este episódio, mandou prender a Filipe e matá-lo de forma cruel. Matias: Para o lugar de Judas Iscariotes, que se suicidou, a igreja primitiva escolheu Matias como seu substituto (At 1:21-26). Segundo a tradição, esse apóstolo se tornou missionário na Síria, onde acabou sendo queimado numa fogueira por causa do evangelho. Judas Tadeu: segundo a tradição, pregou na Pérsia, onde foi martirizado. Mateus: desenvolveu grande parte de seu ministério pastoreando a igreja de Antioquia, onde também escreveu o seu evangelho. Dirigiu- se posteriormente para a Etiópia, onde veio a ser martirizado por causa da pregação. Pedro: depois de exercer importante liderança na igreja de Jerusalém, este apóstolo transferiu- se para a cidade de Roma, capital do Império. No ano 67, durante perseguição imposta por Nero, Pedro foi preso e condenado a morrer crucificado. Relatos do segundo século afirmam que o apóstolo, antes de sua execução, disse que não era digno de morrer como morrera Jesus, o seu Senhor, e pediu para que fosse crucificado de cabeça para baixo, e assim ocorreu. Paulo: considerado um apóstolo “nascido fora de tempo” (1 Co 15:8), tornara-se o grande líder da igreja entre os gentios e propagador da “mensagem da cruz” (1Co 1:18-23). Uma carta de Clemente de Roma, no segundo século, testifica o que ocorrera com este apóstolo: Paulo esteve preso sete vezes; foi chicoteado, apedrejado; pregou tanto no Oriente quanto no Ocidente, deixando atrás de si a gloriosa fama de sua fé; e assim, tendo ensinado justiça ao mundo inteiro, e tendo para esse fim viajado até os mais longínquos confins do Ocidente, sofreu por fim o martírio por ordens dos governadores, e partiu deste mundo para ir ocupar o seu santo lugar (Anglin e Knight, 1947, p. 13). No ano 67, quando da perseguição movida por Nero, Paulo foi preso e levado a Roma, onde recebera o martírio. Pelo fato de possuir cidadania romana, este apóstolo não poderia ser crucificado (algo humilhante para o cidadão romano), por isso deram-lhe como sentença a decapitação (morte instantânea). A tradição conservou de forma reverente o lugar da execução deste apóstolo, juntamente com Pedro: “Desde a mais alta antiguidade, a igreja romana celebrou juntos os martírios de Pedro e de Paulo no dia 29 de junho” (Comblin, 1993, p. 169,170). Simão Zelote: desenvolveu seu ministério de evangelização na Pérsia, onde o culto ao deus Mitras (deus Sol) estava extremamente desenvolvido. Devido a conflitos com seguidores de Mitras, acabou sendo morto por se negar a oferecer sacrifício a esta divindade. Tiago (Filho de Alfeu): pregou o evangelho na Síria. Segundo o historiador antigo Flávio Josefo, foi linchado e apedrejado até a morte (Proença, 2001, p. 103). Tiago (filho de Zebedeu): segundo tradições antigas, citadas por Justo Gonzalez, este apóstolo desenvolveu um trabalho missionário na Espanha, pregando na região da Galícia e Zaragoza. “Seu êxito não foi notável, pois os naturais desses lugares se negaram a aceitar o evangelho”. Ao regressar para Jerusalém, percorreu o caminho que deu origem ao lugar hoje conhecido como “Caminho de San Tiago de Compostela”, na Espanha. Em Jerusalém, veio a ser preso, sendo em seguida, decapitado por ordem de Herodes Agripa, no ano 44 (At 12:1,2) (Proença, 2001, p. 103). Saiba mais Santiago de Compostela: Os Caminhos de Santiago são os percursos dos peregrinos que afluem a Santiago de Compostela, na região noroeste da Espanha, desde o século IX, para venerar as Tomé: segundo a tradição, desenvolveu sua atividade missionária inicialmente na Índia. Dali dirigiu-se para o Egito, onde realizou importante trabalho entre os habitantes de língua copta, ministério este que deu origem à comunidade até hoje lá existente. A Igreja Cristã Copta, como é conhecida, está separada do catolicismo romano desde o IV século, tendo patriarcas em sua liderança (Proença, 2001, p. 103). João: este é, reconhecidamente pela tradição e pelos depoimentos do cristianismo antigo, o último apóstolo a morrer. Morreu na velhice, por volta do ano 100, na cidade de Éfeso, onde morava com sua família. Este apóstolo desenvolveu o seu ministério na Ásia Menor, onde foi preso nos anos 90, na época da intensa perseguição imposta pelo imperador Domiciano ao cristianismo, quando acabou deportado à ilha de Patmos, no Mar Egeu, vindo a receber ali a revelação do Apocalipse, por volta do ano 96. Sendo solto posteriormente, permaneceu em Éfeso ensinando até ao final da sua vida (Gonzalez, 1989, p. 60). Além dos apóstolos, outros importantes líderes do Cristianismo primitivo também deram a vida pela causa do evangelho. É o caso de Timóteo, discípulo de Paulo, que segundo testemunho de Nicéfero, no segundo século, “foi martirizado durante o reinado de Domiciano, no ano 96 a.D., em Éfeso, cidade onde morava quando o apóstolo lhe escreveu as duas cartas” (Anglin, 1947, p. 15). Também Tiago, conhecido como “o irmão do Senhor”, que exerceu importante liderança na igreja de Jerusalém, foi martirizado. O historiador Flávio Josefo, que descreveu o sítio desta cidade pelo exército do general Tito, no ano 70, atribui a destruição de Jerusalém a um “juízo de Deus sobre os judeus pelo fato de terem assassinado a Tiago, o Justo” (Anglin, 1947, p. 11). De igual modo, o historiador da igreja, Eusébio, cita um escritor do segundo século, chamado relíquias do apóstolo Tiago, cujo suposto sepulcro se encontra na catedral daquela cidade. A peregrinação foi uma das mais concorridas da Europa medieval, sendo concedida indulgência plena a quem a fizesse. Ainda hoje, peregrinos de diferentes matizes religiosas ou espirituais, refazem o percurso desse caminho motivados por elementos de fé. Hegesipo, que descreve a morte de Tiago. Afirma este autor, que tinha se levantado um conflito entre os judeus convertidos e os descrentes a respeito de Jesus ser ou não o Messias, e pediram a Tiago que resolvesse a questão. “Os escribas e fariseus” – diz Hegesipo – “Colocaram Tiagode um lado do templo e exclamaram, dirigindo-se a ele: visto que o povo é levado em erro a seguir a Jesus que foi crucificado, declara-nos qual é a porta pela qual se chega a Jesus, o crucificado?” Ao que ele respondeu em alta voz: “O Filho do Homem está agora assentado nos céus, à mão direita do grande poder e está para vir nas nuvens do céu”. E como muitos se gloriaram no testemunho de Tiago, estes mesmos sacerdotes e fariseus tomaram a decisão de levá-lo à parte alta do templo e de lá o lançaram abaixo, “passando em seguida a apedrejá-lo, visto não ter morrido logo que caiu no chão, enquanto, ajoelhando-se pedia o perdão de Deus aos seus agressores”. Deste modo ele sofreu o martírio (Anglin e Knight, 1947, p. 11,12). Até o terceiro século da era cristã, a cruz realmente pautou a atuação da igreja. E é evidência disto o fato de tal período ter ficado conhecido como a “era dos mártires”. O historiador Justo Gonzalez descreve com precisão ainda outros fatos desse período, como por exemplo, o testemunho de fé demonstrado por Inácio de Antioquia. Discípulo do apóstolo João, viveu no período de 60 a 117 d.C. Tornou- se célebre pela fidelidade a Cristo em meio às perseguições que sofrera e às cadeias que enfrentou devido à fé que professava. Sendo levado a Roma, em algumas paradas obrigatórias, não se esquecia de escrever às igrejas que o recebiam ou lhe enviavam saudações. Para testemunhar sobre Jesus Cristo, Inácio está disposto a enfrentar a morte. E, a caminho do martírio, proferiu as seguintes palavras: “Não quero apenas ser chamado de cristão, quero também me comportar como tal. Meu amor está crucificado. Não me agrada mais a comida corruptível... mas quero o plano de Deus que é a carne de Jesus Cristo... e seu sangue quero beber, que é bebida imperecível. Porque quando eu sofrer, serei livre em Jesus Cristo, e com ele ressuscitarei em liberdade. Sou trigo de Deus, e os dentes das feras hão de me moer, para que possa ser oferecido como pão limpo de Cristo” (Gonzalez, 1989, p. 66). Não é diferente o exemplo de fé de Policarpo de Esmirna, o qual, diante da insistência das autoridades para que jurasse pelo imperador e maldissesse a Cristo, recebendo em troca disto a liberdade, respondeu: “vivi oitenta e seis anos servindo-lhe, e nenhum mal me fez, como poderia eu maldizer ao meu rei, que me salvou?” E estando atado já em meio à fogueira, Policarpo elevou os olhos ao céu e orou em voz alta: “Senhor Deus Soberano [...] dou-te graças, porque me consideraste digno deste momento, para que, junto a teus mártires, eu possa ser parte no cálice de Cristo. Por isso te bendigo e a te glorifico. Amém” (Gonzalez, 1989, p. 71,72). As experiências de Inácio e Policarpo retratam bem a disposição dos cristãos de tal período em dar testemunho de sua fé em obediência a Jesus Cristo, até às últimas consequências. Para a igreja desse período, a ressurreição foi, sem dúvida, o impulso maior à perseverança e à fidelidade ao caminho da Cruz. Ao falar sobre martírios de cristãos, o teólogo Jürgen Moltmann diz que em Cristo aconteceu o que acontecerá com todos os que trilham o caminho da cruz: nos sofrimentos de Cristo são antecipados os sofrimentos escatológicos do mundo inteiro. Ele acrescenta que “é Cristo que sofre através dos seus discípulos mártires, pois na Paixão apostólica pelo evangelho e pela nova criação está presente o próprio Cristo”. Por isso os sofrimentos apostólicos, como perseguição, prisão, pobreza e fome, são também sofrimentos de Cristo e, como tais, dores de parto da nova criação. E finaliza: “Nestes sofrimentos do caminho da cruz, o mundo presente perece e nasce o novo mundo de Deus” (Moltmann, 1993, p. 216). Trilhando o caminho da cruz, a igreja primitiva encontra na ressurreição de Cristo a grande esperança de vitória e transformação, como visto no texto de Apocalipse 12:11: “[...] por causa do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida”; e Apocalipse 20:4, “vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus... viveram e reinaram com Cristo. Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte nessa ressurreição... sobre estes a segunda morte não tem autoridade [...]”. Na comunidade cristã do primeiro século, iniciou-se um novo paradigma litúrgico, no qual predominava não os holocaustos expiatórios mosaicos – posto que a cruz era o cerne da fé e da práxis dos crentes, sendo, portanto, o sacrifício de Cristo suficiente para a remissão dos pecados e à “justificação” do pecador –, mas sim, os atos que provocavam comunhão, misericórdia e solidariedade entre os fraternos. Esta é uma possibilidade aceita, mesmo considerando a posição de alguns autores, como N. Lohfink, que alegam que a prestação de culto a Jesus como Divino no primeiro século é uma hipótese que esbarra na tradição monoteísta judaica, da qual aqueles primeiros cristãos procediam, fato que leva a ponderar a possibilidade de ter-se prestado culto a Jesus como “intermediário”, ou seja, um culto que “de Cristo subia novamente a Deus Pai” (Proença, 2001, p. 24). Vale destacar algumas das características comuns aos cultos das primeiras comunidades cristãs, com base nas informações de Justo Gonzalez (1993, p. 150-155). A primeira delas, o espírito de celebração, que aquela comunidade mantinha em quase todos os cultos. Segundo Gonzalez, tudo era motivo para celebração: “a comunhão era uma celebração. O tom característico do culto era o gozo e a gratidão, e não a dor ou a compunção”; sabe-se com segurança, porém, que o paradigma da comunhão entre os da fé era simbolizado pelo “partir do pão”, conforme ensinara Jesus. A comunidade se reunia para o culto todo primeiro dia da semana, impulsionada especialmente pela alegria da comunhão e a celebração do Cristo ressurreto: “É patente que o maior motivo que levou os primeiros cristãos a cultuarem a Jesus foi, sem dúvida alguma, a sua ressurreição, a qual autenticou sua origem divina e seu senhorio” (Proença, 2001, p. 26). Outra característica comum era a participação da comunhão somente aos batizados. A todos era permitido assistir os cultos. Todavia, quando se aproximava o momento da ceia, permaneciam obrigatoriamente no recinto apenas os membros assíduos da igreja, ou seja, apenas os batizados. Neófitos não batizados e visitantes ficavam de fora. 2. Liturgia e espiritualidade na igreja antiga Gonzalez (1993, p. 152) ressalta ainda outra característica que, desde cedo, fizera parte do repertório litúrgico daquelas comunidades: a celebração nas catacumbas. A razão pela qual se davam estas reuniões nestes locais inauditos, era porque ali estavam enterrados os heróis da fé; e os cristãos criam que a comunhão os unia, não só entre si e com Jesus Cristo, mas também com seus antepassados na fé. Contudo, muito mais que nas catacumbas, os cristãos reuniam- se nos lares particulares. Há inclusive indicações disto nas Escrituras (como, por exemplo, em At 16:40 e Fl 1,2). Gonzalez afirma que, à medida que as congregações iam crescendo e se expandindo, algumas casas foram dedicadas exclusivamente aos cultos, e posteriormente foram transformadas em templos (mas com a devida descrição pública). Por muito tempo, pode-se dizer que o cristianismo continuou sendo um “braço” do judaísmo, posto que, mesmo avançando com a doutrina evangélica apostólica, este preservou a tradição ritualística da lei e dos costumes judaicos. Daí se fala em uma tradição “judaico-cristã”, não podendo desvincular a segunda da primeira. Um exemplo é que a igreja primitiva possuía duas vertentes teológicas: a ala judaizante (representada por Pedro), e a ala gentílica, da qual Paulo fora o mentor. Aliás, de acordo com José Comblin, Paulo foi o verdadeiro fundador do cristianismo, como movimento religioso independente do judaísmo (Comblin, 1993). Para melhor traçar o perfil religioso aqui referido, faremos breve menção do caso de um bispo e pastor da igreja de Roma no século III, Hipólito de Roma (160-235).Exímio escritor e erudito, Hipólito intentara com seus escritos recuperar para a vida da igreja o que considerava a “verdadeira tradição apostólica”, difundindo seus comentários e lembranças dos costumes legados pelos apóstolos, mas que aos poucos vinham sendo deixados de lado. A espiritualidade cristã, em Hipólito, resumia-se basicamente em guardar preceitos morais e costumes religiosos (“místicos”). Nota-se uma observância exagerada aos mínimos detalhes dos ritos, que regiam a ação humana de forma global. Havia ritos e normas para tudo: quanto ao “uso” correto da sexualidade, sobre a castidade, sobre casados e solteiros, orientações aos batizandos, aos catecúmenos, às viúvas, confessores e até crianças. Sobre a doutrina de Hipólito, um comentarista, que escreveu a introdução de um de seus escritos, disse o seguinte: Torna-se moralista. Considerada a época crítica e difícil da igreja, comenta o livro de Daniel e, fazendo ressaltar as catástrofes do porvir da humanidade, tira lições, dá conselhos [...] Pretende assim levar à confiança em Deus, mesmo quando se é perseguido ou incompreendido, fatos esses reais em sua vida agitada [...] Liga-se de modo escravizante ao texto bíblico como este se encontra, sem interrogar se tal capítulo fora escrito em hebraico, aramaico ou se encontra apenas em grego [...] Preocupa-se com o ensinamento que pretende tirar de um texto, como perfeito alegorista, sem tomar em consideração a realidade à qual a revelação quer ser resposta (Roma, 1981, p. 08). Dessa forma, observa-se que a liturgia era a própria vida para os cristãos que seguiam tais preceitos, e a vida prosseguia sendo regida por normas e orientações de ordem litúrgica. Exercia-se o sacerdócio sob o controle da tradição apostólica, porém, admitindo paralelamente a submissão a um legalismo ritualístico, reminiscente do judaísmo. Estabelecia-se, assim, uma espiritualidade “seletiva”, onde as regras de fé e prática mais aparentavam um código de posturas moralizante e legalista do que qualquer outra coisa, fato que mais distanciava do que facilitava a aproximação dos neófitos até Cristo. De que modo podemos relacionar o problema das controvérsias teológicas e doutrinárias entre a igreja e outras crenças ou religiosidades do mundo antigo com o desenvolvimento e as facetas que o cristianismo foi assumindo até a conclusão deste período? Essa pergunta servirá como problema e orientação para o que será desenvolvido nesse tópico. A ideia básica é a de expor sobre duas abordagens inter-relacionadas com este problema, a saber: a) caracterização das crenças e/ou “heresias” principais que fizeram frente ao cristianismo; b) as respostas dadas pela Igreja, seja contra ou a favor da manifestação dessas crenças. Conflitos são comuns quando falamos em ser humano e história. Mais ainda, quando esse ser humano é o crente (tanto no sentido estrito, como lato), e quando essa história é a história da Igreja. Desde os começos da era cristã, vimos controvérsias de todos os tipos: no tempo de Paulo foram o gnosticismo, judaísmo e outras doutrinas semelhantes; no século III foi debatida a questão da readmissão dos “desviados” na igreja. Quer dizer, não faltaram querelas e muito menos respostas (umas se julgando bem fundamentadas, outras nem tanto) para as principais questões que envolviam a fé cristã de um modo geral. Neste tópico, vamos tratar especificamente sobre algumas das crenças e “heresias” que geraram muitas das controvérsias até o IV século da era cristã. De modo semelhante, também veremos a atuação dos chamados “Pais da Igreja”, tanto no Oriente como no Ocidente cristão, nos casos de afirmação ou negação e combate de uma determinada doutrina ou crença. As perguntas que podemos lançar inicialmente são: quais os fatores que, na história da igreja, determinaram o surgimento da teologia cristã? O que é uma heresia e como ela se constitui? De que forma a igreja combateu os “hereges” desse período? Em nome de que ou quem e com que “armas” ela combateu e por quê? Qual foi o papel dos pais da igreja nesse contexto de conflitos 3. O desenvolvimento doutrinal do Cristianismo antigo de interesse e controvérsias doutrinárias? Nosso olhar certamente estará condicionado pelo presente, mas nunca na intenção de julgar, e sim de compreender (ainda que parcialmente) o passado, que sempre estará em suspenso e seus fatos nunca poderão ser apreendidos absolutamente, “tal como aconteceram”. 3.1. Os chamados “movimentos heréticos” Os movimentos chamados “heréticos”, muitas vezes pejorativamente e sem uma devida investigação, são considerados, na história da igreja, como aqueles que se apresentaram subversivos à ortodoxia, por defenderem ideias, práticas e doutrinas que ameaçavam a integridade dogmática e institucional da igreja. Nesse sentido, vale observar que, para a igreja, bastava algum movimento ou pessoa destoar do que era ensinado e determinado pela regra de fé ortodoxa, que já poderia ser considerado “herético” e digno de condenação, o que nem sempre significava avesso à Bíblia e seus ensinamentos. Um exemplo disso está no que aconteceu com os anabatistas no século XVI, perseguidos pela própria igreja protestante e julgados como hereges perturbadores da ordem, basicamente porque ansiavam e lutavam por uma reforma mais profunda (estrutural). Assim, faz-se necessário para nós pesquisadores da igreja, considerar uma multiplicidade de vertentes que geram um dado movimento e certa crença ou doutrina, sem condenar de antemão. O julgamento sempre deve ser evitado, especialmente no estudo da história. O que aqui vamos fazer é um breve “passeio” pelos principais movimentos que foram condenados na era cristã, descrevendo as mais latentes marcas deixadas, tentando exercitar, antes, uma mentalidade crítica e investigativa, e não condenatória. a) Gnosticismo (séc. I) Afirmava basear-se no “conhecimento” (gnose), embora não se tratasse do conhecimento racional (que, por sinal, era rejeitado pelos gnósticos), mas um conhecimento místico, sobrenatural, transcendental. Defendia uma visão dualista do universo, de origem persa, que separava pares opostos, irreconciliáveis, como o Deus transcendente dos gnósticos (criador da realidade espiritual, boa) e um “demiurgo” (semideus, que criara o mundo material, mau). Considerando que o mundo material é mau, logo, Cristo não poderia ter tido uma encarnação real, mas aparente, isto é, de natureza docética, um espírito visível, um fantasma. Boa parte dessa visão gnóstica da realidade se arraigou tanto que até hoje continua viva e presente, inclusive na Igreja. b) Marcionismo (séc. II) Um dos movimentos provenientes do gnosticismo. Foi fundado em 144 d.C. por Marcião de Sinope, um cristão religioso que foi denunciado pela igreja como herege. Sustentava em sua doutrina elementos gnósticos, tais como o dualismo, o docetismo cristológico e a recusa do Antigo Testamento. Desenvolveu melhor essa doutrina dos dois deuses, representados nos dois testamentos: A.T. - Demiurgo (justiça/lei); N.T. - Deus Superior (Jesus/Evangelho/amor). c) Montanismo (séc. II) Originou-se entre 160 e 170 na Frígia, através de um certo Montanus, um ex-sacerdote das religiões de mistério, convertido ao movimento cristão. Ao ser batizado, pelo ano 150, manifestou a glossolalia (dom de línguas), passando a ensinar, a partir daí, que a direção da igreja não deveria ser por intermédio de cargos ou ofícios, mas sim, pela “voz do Espírito Santo” transmitida pela glossolalia. Passou a anunciar o fim do mundo através de suas profecias e ordenava a seus adeptos a se reunirem em um determinado local — regiões da Frígia, na Ásia Menor — para aguardar a descida da Jerusalém celestial. Possuía duas discípulas imediatas: Priscila e Maximila, que serviam como suas intérpretes, quando dizia comunicar-se verbalizando “línguas espirituais”. Foi um movimento que queria a renovação das realidades pneumáticas e escatológicas da igreja dos primeiros tempos.Sua doutrina reunia três elementos principais: escatologia, ascetismo e profetismo. c) Arianismo (séc. III-IV) Foi uma visão cristológica sustentada pelo presbítero Ário (246- 336), que negava a divindade de Jesus e sua consubstancialidade com o Pai. O início da controvérsia se deu quando o bispo Alexandre de Alexandria (250-328) começou a debater teologicamente com o pai do arianismo. A dinâmica do debate é bastante ampla. Seus pontos eram vários e sutis. Mas, como faz lembrar Justo González (1991, p. 90), “podemos resumir toda a controvérsia à questão de se o Verbo era co-eterno com o Pai ou não”. O próximo tópico trata, dentre outras coisas, dos desdobramentos desta controvérsia na vida da igreja da época. Gonzalez resume graficamente o campo de forças em torno do qual tal querela gravitava: Ário dizia que o Verbo (Cristo) não era Deus, mas somente a primeira dentre as criaturas. Alexandre, valendo-se da visão do Evangelho de João, afirmava que o Verbo sempre tinha existido com o Pai e que, junto com o Pai, ele também era Deus, isto é, tinham a mesma essência divina, embora não fossem uma e a mesma pessoa. Interessante notar que ambos os partidos tinham textos bíblicos em que se embasavam e razões lógicas que faziam a posição do oponente parecer insustentável (Gonzalez, 1990, p. 91). 3.2. A reação da igreja: doutrinas e dogmas Evidentemente, a Igreja não permaneceu calada e imóvel, apenas assistindo a implosão de suas doutrinas e práticas tradicionais. O cerne de sua reação se dá por conta de iniciativas isoladas, como a de Alexandre e outros bispos e teólogos da igreja, não citados. Quer dizer, tinha-se, em primeiro lugar, a convicção de que essas contendas só podiam ser vencidas pela força do argumento da fé. E é aqui que começam a surgir, de maneira mais sistematizada, as produções teológicas do período. A teologia nasce como produto do conflito. Porém, em segundo lugar, entravam também as implicações políticas dessas controvérsias. Com o surgimento da “paz” na Igreja, após a ascensão e “conversão” ao cristianismo do Imperador Constantino o perigo de perseguição se tornou praticamente remoto, ao passo que havia uma liberdade maior para se debater religião. Porém, Igreja e Estado aliaram-se no sentido de conter os conflitos que pudessem surgir entre os fiéis em função de tais debates. Segundo Gonzalez (1990, p. 88), “Constantino queria que a igreja fosse o ‘cimento do império’, e por isso qualquer divisão nela podia ameaçar a unidade do Império”. Assim, quando a controvérsia ariana se tornou pública, com o risco de dividir toda a igreja oriental, Constantino resolveu interferir, dando opiniões sobre o assunto. A saída que ele encontrou para resolver esse e outros impasses e colocar a vida da igreja em estabilidade, foi a de convocar uma grande assembleia de todos os bispos cristãos. E foi assim que, em 325, o concílio afinal se reuniu na cidade de Nicéia, na Ásia menor, perto de Constantinopla. Hoje conhecemos esta assembleia como sendo o primeiro concílio universal da igreja na história. Não se sabe o número exato de bispos ali reunidos. Como informa Gonzalez, acredita-se que tenham sido trezentos. Embora a maioria dos cristãos ali congregados não pertencesse a nenhum dos grupos outrora mencionados, conta-se que a maioria se posicionou para o lado que defendia a doutrina da Trindade, em oposição à negação da divindade de Jesus por parte dos arianos. Aliás, a natureza divino-humana, ora apenas divina, ora apenas humana, de Jesus foi um dos temas mais recorridos desde o primeiro século, como vimos anteriormente. Em Nicéia, portanto, chega-se ao que podemos chamar de ápice, naquele tempo, das discussões acerca da natureza de Deus: divino? Humano? Um? Dois? Três? Depois de um processo interno à reunião, que aqui não cabe narrar, mas que contou, entre outras coisas, com a intervenção de Constantino, sugerindo que fosse incluída a palavra “consubstancial” (de uma só substância) no documento final, chegou- se à formulação de uma Doutrina da Trindade através do “Credo Niceno”, que hoje em dia é tido como o credo cristão mais universalmente aceito. Pode-se dizer, como finalização deste tópico, que as reações da Igreja a todos estes e outros movimentos, crenças e “heresias” que surgiram até o fim do período antigo, deram-se através de quatro principais instâncias: Primeiro, o fortalecimento da autoridade apostólica: hierarquização ou clericalização da Igreja; Segundo, a produção de importantes escritos: credos, confissões de fé, manuais. Terceiro, Concílios eclesiásticos; Quarto, estabelecimentos de livros “canônicos”, os quais deveriam ser escritos por apóstolos ou por discípulos de apóstolos; serem livros cristocêntricos e, por fim, serem aceitos perante a comunidade. Nesta unidade, estamos aprendendo um pouco mais sobre como se fazia teologia no período antigo com a experiência dos chamados Pais da Igreja. A partir deles, veremos que a teologia é um saber racional, sim, mas que tem uma dimensão espiritual e de reverência para com o sopro do Espírito. Ao mesmo tempo, concluiremos que teologia é coisa humana, composta a partir de experiências concretas de fé, luta e busca por iluminação pela vontade de Deus. Sua matéria- prima é a própria vida e seu chão é a história. A pergunta é: de que maneira homens como Gregório, Ambrósio, Agostinho ou Jerônimo tornaram-se pais da igreja e em função de que questões e atuação? Os Pais da Igreja ficaram assim conhecidos por serem os representantes diretos e indiretos da tradição apostólica, isto é, a tradição da igreja. Devemos tratar de uma maneira mais específica sobre quem foram os pais, por quais critérios eles foram assim chamados e as razões pelas quais os cristãos, hoje, ainda podem e devem recorrer à leitura dos pais. Uma dessas características é o zelo para com as Escrituras, algo bastante peculiar em se tratando do contexto ao qual acabamos de estudar, de controvérsias e conflitos doutrinários. O professor de estudos bíblicos e teológicos do Eastern College, Christopher Hall, afirma que os pais demonstravam um enorme zelo para com Deus e as Escrituras. E, muitas vezes, como acontece conosco, seu zelo manifestava-se tanto em suas forças como em suas fraquezas. Afirma que “eles têm muito a ensinar-nos sobre reverência, santo temor, autosacrifício, autoconsciência e autodecepção, adoração, respeito, oração, estudo e meditação” (Hall, 2000, p. 53). 4. O papel dos Pais da igreja: por uma igreja fiel às origens apostólicas Dentro da classificação mais ampla dos “pais da igreja”, segundo Hall, encontramos os oito doutores da igreja: quatro doutores do oriente e quatro doutores do ocidente, aos quais, baseados neste autor, dedicaremos especial atenção, destacando os principais pontos que envolvem suas vidas e pensamentos. 4.1. Os quatro doutores do Oriente a) Atanásio (296-373): Segundo relatos, foi um dos homens mais corajosos, astutos e cuidadosos de seu tempo. “Não haviam respostas neutras a Atanásio” (Hall, 2000, p. 59). Precoce no desenvolvimento de seu pensamento, escreveu duas importantes obras (“Um discurso contra o incrédulo” e “Sobre a Encarnação”) antes dos 20 anos de idade. Aos 33, foi nomeado bispo da igreja em Alexandria. Durante quarenta e cinco anos, foi exilado cinco vezes de sua igreja pela oposição firme feita às ideias do presbítero Ário. Suas ênfases principais geralmente gravitavam em torno do tema da encarnação do Filho. A controvérsia com o arianismo era o que balizava sua teologia, que era principalmente Glossário Patrística: filosofia cristã formulada pelos pais da igreja nos primeiros cinco séculos da era cristã, buscando combater a descrença e o paganismo por meio de uma apologética da nova religião, calcando-se em argumentos e conceitos procedentes da filosofia grega. Algumas das principais ênfases ou marcas teológicas da “teologia patrística” são: as “duas naturezas de Cristo” (humanidade e divindade); formulação da doutrina da trindade;
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