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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA EDER LUIZ NOGUEIRA MULHERES QUE PERDERAM FILHOS: UM ESTUDO SOBRE IDENTIDADE E MATERNIDADE Belo Horizonte 2011 EDER LUIZ NOGUEIRA MULHERES QUE PERDERAM FILHOS: UM ESTUDO SOBRE IDENTIDADE E MATERNIDADE Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Social Orientador: Prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do Nascimento Belo Horizonte 2011 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. 150 N778m 2011 Nogueira, Eder Luiz Mulheres que perderam filhos [manuscrito] : um estudo sobre identidade e maternidade / Eder Luiz Nogueira. - 2011. 153 f. Orientador: Adriano Roberto Afonso do Nascimento. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia. 1. Psicologia – Teses. 2. Identidade social – Teses. 3. Maternidade - teses. 4. Morte - Teses. 5. Psicologia social - Teses. I. Nascimento, Adriano Roberto Afonso do II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. A Deus. Aos meus pais, meus irmãos e minhas sobrinhas. Às mães que perderam seus (suas) filhos (as). AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, a Jesus e à vida que me proporcionaram a oportunidade de pensar sobre os mistérios que compõem a existência humana, tentar compreender as interpretações que não cessamos de construir para que o mundo nos pareça previsível, suscetível de planejamento e domínio. Ao meu pai, que deu o melhor de si para que os filhos sejam felizes e construam, eles mesmos, um caminho de paz. À minha mãe, pela dedicação, uma mulher tão linda e abençoada. Aos meus irmãos e minhas irmãs, Margareth, Eugênio, Anderson e Cristiano, e em especial, à Ângela, que contribuiu com tanto carinho para que este trabalho fosse possível. Às minhas sobrinhas Camila e Juliana. Ao Prof. Adriano, que compreendeu minhas fraquezas, meus limites e me incentivou a realizar este projeto. A objetividade, respeito e paciência durante a orientação foram imprescindíveis para que esta pesquisa fosse possível. À Profa. Ingrid, que foi presente em minha vida desde a graduação e me ensinou a elaborar os primeiros questionamentos sobre gênero, identidade e maternidade. À Aimara pelo apoio e amizade. À Fátima, pela amizade, carinho e incentivo. À Mariana Veiga pelo apoio na tradução do Francês e ao Rodrigo nos textos de Inglês. Às mães que compartilharam comigo suas vidas, seus pesares e suas alegrias. Sou grato por terem confiado em mim, por expressarem suas experiências de perder o filho pela morte e narrarem fatos tão difíceis de se apresentarem à consciência. A todos os amigos e colegas que contribuíram para a realização deste projeto. Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão apegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres. Porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. Carlos Drummond de Andrade RESUMO Nogueira, E. L. (2011). Mulheres que perderam filhos: um estudo sobre identidade e maternidade. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. A maternidade, naturalmente associada ao corpo feminino, tem consequências que não estão limitadas à função biológica da reprodução. Além de abrigar em si a gestação do futuro bebê, a mulher, em muitas sociedades, deverá se responsabilizar pelos cuidados com a criança, oferecer conforto e proporcionar as condições necessárias ao seu desenvolvimento físico, moral e intelectual. Para muitos autores, a maternidade exerce influência fundamental na construção da identidade feminina em função das representações sociais que relacionam maternidade à plenitude da mulher, aos cuidados e proteção dos filhos. Orientado por teorias e pesquisas sobre identidade, maternidade e morte, este trabalho investigou as construções sociais da maternidade em mulheres que perderam filhos por morte violenta ou acidental e seu impacto sobre a identidade. Para tanto, foram realizadas entrevistas individuais por meio de um roteiro semiestruturado com sete mães cujos filhos morreram nestas condições. As informações originadas a partir das entrevistas foram submetidas à metodologia de perspectiva fenomenológica para investigação psicológica que, depois de organizadas em estruturas narrativas, forneceram-nos elementos para a compreensão do fenômeno investigado. As mães entrevistadas apresentaram narrativas que atribuem às mulheres o desempenho de atividades prioritariamente relacionadas ao cuidado com o filho, responsabilidades pela sua formação moral e sucesso na vida social, o que revelou uma identidade estreitamente vinculada aos papéis tradicionais de mãe. Os resultados destacaram que o tratamento dado ao tema morte na atualidade, associado às construções sociais da maternidade, constituíram nas narrativas das mães entrevistadas elementos que acentuam o sofrimento, sentimentos de inadequação social e dificuldades para socializar e demonstrar publicamente o pesar pela perda do filho. A pesquisa evidenciou que ao resgatarem as memórias relativas aos filhos que morreram, o grupo de mulheres que participou da investigação atribui a eles qualidades sociais desejáveis, o que sugere a necessidade de preservarem a imagem de boas mães, mesmo após a morte do filho. O evento trágico e violento que vitimou os filhos, conforme as narrativas das mães, contrariou às suas expectativas de que morreriam antes deles, o que causou sentimentos de impotência. Para enfrentar a falta, a saudade e homenagear a memória dos filhos que morreram, o grupo de mães entrevistado optou por mantê-los vivos em suas lembranças ao preservarem fotos, a disposição dos espaços que ocuparam ou objetos que lhes pertenceram para que não sejam esquecidos por elas. Palavras-chave: Identidade, maternidade, morte. ABSTRACT Nogueira, E. L. (2011). Mulheres que perderam filhos: um estudo sobre identidade e maternidade. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. Motherhood which is a state naturally associated with the female body has consequences that are not limited to the biological function of reproduction. In many societies women must take responsibility for child care, comfort and provide the necessary conditions for their physical, moral and intellectual development in addition to protect the gestationof the future baby. For many authors, motherhood has a fundamental influence in the construction of female identity in terms of social representations which relate motherhood to women` fullness as well as care and protection of children. Guided by theories and research on identity, motherhood and death, this study investigated the social constructions of motherhood in women who have lost their children under violent or accidental circumstances and its impact on their identity. To this end, a semi-structured interview was carried out individually to seven mothers whose children died under these conditions. The data collected were analyzed through the phenomenological perspective of psychological research. They provided the information for the phenomenon comprehension after their organization into narrative structures. The mothers presented narratives that place women in activities related primarily to child care, responsibilities for its moral formation and success in social life, which revealed an identity closely tied to traditional roles of mother. The results highlighted that the treatment of the topic of death nowadays in association with social constructions of motherhood consisted in elements that accentuate the suffering, feelings of social inadequacy and difficulties to socialize and publicly demonstrate sympathy for the loss of the son in mothers’ narratives. The research found that the redeeming memories for the children who died provide them desirable social qualities which suggest the need of the mothers to preserve the image of good mothers, even after their son`s death. The violent and tragic event that killed the children went against the mothers’ expectations that they would die before them, which caused feelings of powerlessness. To deal with missing, longing and to honor the memory of the children who died, the group of mothers chose to keep them alive in their memories by preserving photos, layouts of spaces they have occupied before and their objects so they are not forgotten. Keywords: Identity, Motherhood, death. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................. 11 1.1 Identidade .................................................................................................................. 11 1.2 Considerações sobre a maternidade ........................................................................... 18 1.3 A morte e o morrer .................................................................................................... 29 1.4 Morte e perda de um filho: alguns apontamentos...................................................... 34 2 OBJETIVOS ....................................................................................................................................................... 37 3 MÉTODO ........................................................................................................................................................... 38 3.1 Caminhos percorridos ................................................................................................ 38 3.2 Os sujeitos ................................................................................................................. 43 3.3 Procedimento de coleta dos dados ............................................................................. 44 3.4 Procedimento de análise dos dados ........................................................................... 46 4 RESULTADOS .................................................................................................................................................. 50 4.1 As narrativas das mães .............................................................................................. 52 4.2 As vivências compartilhadas ................................................................................... 116 4.2.1 Maternidade ................................................................................................. 116 4.4.2 Como era o filho .......................................................................................... 120 4.4.3 Como entende a morte ................................................................................. 123 4.4.4 Isolamento e sociabilidade........................................................................... 130 4.4.5 Lembrança e saudades do filho ................................................................... 132 5 ANÁLISE DOS DADOS ................................................................................................................................. 137 6 CONSIDEÇÕES FINAIS ................................................................................................................................. 144 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ............................................................................................................ 147 ANEXOS ............................................................................................................................................................. 152 I – ROTEIRO SEMIESTRUTURADO PARA ENTREVISTA ................................... 152 II – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............................ 153 11 1 INTRODUÇÃO Este trabalho foi realizado a partir das reflexões provocadas pelas atividades de um dos pesquisadores junto a um grupo de mães que perderam filhos. O grupo teve início em função da procura destas mães pelo trabalho de aconselhamento. O pesquisador observou, desde o primeiro encontro, o enorme sofrimento relativo à perda do filho, as dificuldades que encontravam para falar da morte e expressarem socialmente os seus sentimentos. Independentemente do tempo da perda, a dor e a saudade do (a) filho (a) ainda estavam intensamente presentes e, talvez, por não se sentirem socialmente adaptadas, optaram por participar do grupo de apoio, espaço onde seria possível socializarem os sentimentos relativos à ausência do filho. Esse grupo de mães nos levou a pensar sobre o assunto maternidade e o impacto da perda de um filho sobre a identidade feminina. O tema maternidade é complexo, polêmico e tem produzido estudos em diferentes áreas do conhecimento. Algumas teorias sobre maternidade afirmam que os sentimentos da mulher com relação ao filho foram historicamente produzidos a partir de discursos filosóficos, científicos e políticos com o objetivo de vincular a mulher às atividades de cuidado com a criança. Portanto, a maternidade é relevante nas pesquisas científicas por influenciar a identidade feminina, determinar estilos de vida e estabelecer comportamentos socialmente legitimados para as mulheres. Com a finalidade de compreendermos alguns aspectos sobre as construções sociais de identidade, maternidade e morte, apresentaremos neste capítulo uma breve discussão teórica sobre estes temas. Inicialmente, discutiremos algumas teorias relativas à identidade e, em seguida, trataremos do assunto maternidade e sua influência sobre a identidade feminina para, então, discutirmos algumas teorias, tanto da psicologia, como da sociologia, que abordam o tema morte. Nosso estudo será orientado em torno da articulação destes temas, que serviram de referência para realizarmos a nossa investigação. 1.1 Identidade O universo das relações sociais estabelece modos de vida que são compartilhados e pactuados pelos diversos sujeitos de uma cultura. O sistema de relações sociais expressa significados culturais historicamente construídos que orientam 12 e legitimam ações que compõem as experiências vivenciadas pelos sujeitos em uma dada sociedade, grupo ou estado, nos quais estão inseridos. Estes contextos influenciam e constroem identidades a partirdas relações sujeito e sociedade. A identidade pessoal não pode ser pensada fora do contexto social no qual o sujeito se constitui, internaliza e reproduz valores, comportamentos e atitudes associados ao sistema de significações e regras que estruturam os grupos sociais e a sociedade aos quais pertence (Silva, 2000). A identidade, conforme propõe esse autor, não pode ser definida a partir de uma realidade biológica, como que determinada por um sistema de componentes fisiológicos, mas deve ser compreendida como algo complexo, produzida e referenciada pela cultura. A identidade de um indivíduo, portanto, é produzida a partir das experiências que compõem as suas relações sociais, sujeita a mudanças que se processam no decorrer da sua vida em conformidade com os modos de socialização que compõem sua inserção nos cenários da vida social. Deschamps e Moliner (2009) destacam que a noção de identidade ocupa um lugar central na Psicologia Social. Para os autores, esta afirmação está organizada em torno de uma das principais reflexões desta disciplina que é a relação entre o individual e o coletivo. Os autores concluem que, entre as teorias que se destacam na problemática da identidade neste campo estão os estudos sobre as representações sociais que, segundo eles, modulam o “jogo complexo das aproximações e das distanciações entre si mesmo, o grupo e os outros” (p. 152) e, portanto, exercem papel importante, senão essencial, na formação da identidade. Cohem- Scall e Molliner (2008) ao analisarem as diferentes concepções teóricas das relações entre representações sociais e identidade social e pessoal concluem que existe uma interdependência contínua entre identidade e representações sociais e indicam que estas não podem ser pensadas isoladamente. Uma definição consensual entre os teóricos das representações sociais foi proposta por Jodelet (2002). Para a autora, as representações sociais “são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (p. 22) e, portanto, são elaboradas e partilhadas pelos grupos sociais com a finalidade de construir, interpretar e significar a realidade. Uma relação importante entre representações sociais e identidade é apresentada por Doise (1999), apud Cohem- Scall e Molliner (2008). Para ele, a identidade pessoal pode ser pensada como uma representação social. Neste sentido, as representações 13 sociais influenciam a identidade pessoal na medida em que as pessoas recorrem às normas e valores compartilhados socialmente para definir suas posições individuais. Por sua vez, a identidade social, segundo Tajfel (1981), relaciona-se à parcela de auto-conceito proveniente da pertença a um grupo e, portanto, está fundada sobre conhecimentos, hábitos ou crenças que localizam o indivíduo em categorias sociais às quais ele pertence. Outra teoria em Psicologia Social que tem como objetivo tratar da questão da identidade é a teoria Ego-ecológica proposta por Zavalloni (2007). Segundo a autora, a identidade não está restrita ao indivíduo, mas é construída a partir da relação sujeito- sociedade, cujos papéis sociais conformam aspectos identitários relacionados e condicionados pela cultura. O modelo de identidade psicossocial apresentado por Zavalloni (2007) pressupõe que os grupos sociais desenvolvem formas de comunicação por meio da linguagem para demarcar sua identidade, ao mesmo tempo em que estabelecem diferenças com relação a outros grupos. A autora considera que as representações e sentidos que se põem diante de um indivíduo expressam seus valores e a construção de si mesmos em relação aos outros indivíduos e à sociedade. Este modelo está elaborado a partir da ideia da existência de um mundo interior relacionado às representações do ambiente. Segundo Cohem- Scall e Molliner (2008), a identidade para Zavalloni é concebida como uma elaboração cognitiva ligada ao pensamento representacional e se refere “às modalidades de organização das representações que um indivíduo tem dele mesmo e das representações dos grupos aos quais pertence” (p. 477). A identidade psicossocial, segundo Zavalloni (2007), situa-se em um complexo processo de elaboração que se apresenta como resultado das negociações entre indivíduo e sociedade, por meio de uma influência recíproca. A autora considera que o mundo social, as experiências vividas pelos sujeitos e as memórias a elas associadas produzem as representações cognitivas e emocionais que orientam e determinam a sua identidade. Com relação à memória e ao sentimento de identidade, Pollak (1992) afirma que estão intimamente relacionados. Segundo o autor, a “memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual, como coletiva” (p. 204). Para ele, a reconstrução dos relatos vividos pelos sujeitos é permeada pelas representações internalizadas em suas relações sociais e, portanto, A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale 14 dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo. (p. 205) Segundo Halbwachs (2004), a memória é, sobretudo, coletiva1. Para ele, mesmo que para muitos se apresente como um fenômeno individual, ela deve ser entendida como um processo social, sujeito a mudanças e reorganizações conforme as influências sociais. Segundo o autor, A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais explica- se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte, e em seu conjunto. (p. 56) Neste sentido, sendo a memória influenciada pelas relações sociais e estreitamente associada à identidade, conforme argumentam estes autores, não nos será difícil compreender que as lembranças que os indivíduos relatam sobre sua história de vida tendem a ser influenciadas pelas representações que possuem de si mesmos e reafirmam identidades legitimadas pelos grupos sociais ou sociedade às quais pertencem. Com relação à influência social sobre nossas lembranças, Lowenthal (1998) afirma que Na verdade, precisamos das lembranças de outras pessoas tanto para confirmar nossas próprias quanto para lhes dar continuidade. Ao contrário dos sonhos que são absolutamente particulares, as lembranças são continuamente complementadas pelas dos outros. Partilhar e validar lembranças torna-as mais nítidas e estimulam sua emergência; acontecimentos que somente nós conhecemos são evocados com menos segurança e mais dificuldade. No processo de entrelaçar nossas próprias recordações dispersas em uma narrativa, revemos os componentes pessoais para adequar o passado coletivamente relembrado e, gradualmente, deixamos de diferenciá-los. (p. 81) Representações sociais, memória e identidade social, conforme exposto até aqui, constituem um conjunto de fenômenos fortemente articulados. É importante considerarmos que a Psicologia Social teve suas origens tanto na Psicologia como na Sociologia (Álvaro e Garrido, 2006) e, por isso, não podemos deixar de incluir aqui algumas das recentes contribuições teóricas dos estudos de identidade com perspectivas sociológicas com o objetivo de melhor compreendermos o modo como os processos sociais interagem com o indivíduo na produção de identidades. 1 Sá (2005, p. 66) considera que “Halbwachs usou o adjetivo coletiva de preferência a social, com o propósito de associar a memória explicitamente à vida do grupoque a sustentava, enquanto este mesmo existisse, mas segundo sua releitura por Namer (2000), não teria com isso deixado de considerar os aspectos mais amplamente sociais do fenômeno da memória”. 15 Do ponto de vista de Woodward (2000), a identidade está relacionada aos contextos sociais e é neles produzida. Para a autora ela é modificada ou mantida por meio das relações sociais Diferentes contextos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais. Consideremos as diferentes “identidades” envolvidas em diferentes ocasiões, tais como participar de uma entrevista de emprego ou de uma reunião de pais na escola, ir a uma festa ou a um jogo de futebol, ou ir a um centro comercial. Em todas estas situações, podemos nos sentir, literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas nós somos, na verdade, diferentemente posicionados pelas diferentes expectativas e restrições sociais envolvidas em cada uma destas diferentes situações. (p. 30) É pela mediação cultural que o sujeito se apropria dos sistemas simbólicos que representam suas identidades. Woodward (2000), ao relatar a problemática do conflito entre os Sérvios e Croatas, afirma que as identidades se inserem em um sistema de representações simbólicas interposto pela linguagem, que classifica o mundo e nossas relações em seu interior. Segundo esta autora, a identidade é relacional e marcada pela diferença. A identidade é construída e assinalada pela exclusão, ou seja, ser Sérvio é não ser Croata, ser homem é não ser gay, ser branco é não ser negro. Deste modo, conforme esta autora, a identidade é relacional. A identidade sérvia depende, para existir, de algo fora dela: a saber, outra identidade (Croácia), de uma identidade que ela não é, que difere da identidade sérvia, mas que, entretanto, fornece as condições para que ela exista. A identidade sérvia se distingue por aquilo que ela não é. Ser um sérvio é ser um “não croata”. A identidade é, assim, marcada pela diferença. (p. 9) Woodward (2000) apresenta uma concepção de identidade não essencialista em que a configuração da identidade cultural é produto de um processo de construção da identidade que pressupõe uma relação estreita com o momento político, econômico e social experienciado pelos atores sociais. A representação identitária confere segurança e sentido às ações dos sujeitos e produz subjetividades fortemente marcadas pelos contextos nos quais os atores atuam. Neste mesmo sentido, Hall (2006) argumenta que a modernidade trouxe consigo um descentramento do sujeito e uma consequente crise de identidade. Ele entende que as velhas identidades que conferiam estabilidade ao mundo social estão em crise, provocando o surgimento de novas identidades e consequente fragmentação do sujeito. O indivíduo que trazia em si certezas identitárias de espaço e tempo, afirma o autor, encontra-se fragilizado em função das transformações sociais contemporâneas, em particular pelo fenômeno da globalização, que dilui as linhas de separação entre as 16 culturas e os modos de vida social dos diferentes povos. Tal concepção de identidade está vinculada à identidade do sujeito moderno Conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (p.12) Portanto, o sujeito moderno, conforme o autor, é um indivíduo fragmentado, cujas possibilidades identitárias estão marcadas por um processo de descentramento. Uma identidade que assume mudanças conforme as negociações necessárias para o estabelecimento de suas reivindicações. Trata-se de representações que convocam o sujeito a assumir diversos papéis, muitas vezes contrapostos e oponentes, que em um mesmo ou diferentes contextos instauram divisões do sujeito para o exercício dos diferentes papéis que lhe são atribuídos socialmente. Tais considerações nos levam a entender que, ao mesmo tempo em que o sujeito moderno se confronta com as exigências do mundo globalizado, que fragmenta e problematiza posições fixas, ele é convocado a sustentar uma identidade que reproduza e perpetue um discurso que lhe ofereça sentimento de pertença social. Este mesmo sujeito, que tenta incorporar às suas vivências um conteúdo massificado de conduta social globalizada, depara-se com a necessidade de pertencimento a grupos que, dentro de um contexto mais amplo, reivindicam identidades que lhe imprimam características específicas de acordo com suas necessidades de garantia de direitos individuais. Há, portanto, um conflito que se agrava diante da necessidade de que, apesar das mudanças intensas estimuladas pelo processo de modernização em função de uma nova estrutura social, o indivíduo tende a reproduzir valores historicamente constituídos para sustentar a identidade nós-eu. Para Nobert Elias (1994), o desaparecimento das tradições culturais em função das imposições estruturais da modernidade globalizada pode levar a um sentimento do que ele chama de morte coletiva. Este autor apresenta a ideia de que, se por um lado não se discute o conceito de sociedade, que por sua vez não apresenta definições bem compreendidas, as mudanças nas formas de vida em sociedade só existem porque os indivíduos querem e operacionalizam estas mudanças, apesar de que estas mesmas mudanças independem do planejamento individual. Segundo este autor, as pessoas são constituídas por suas características individuais, bem como por uma rede intersubjetiva de valores sociais e influências coletivas. A sociedade é constituída por meio da relação entre os sujeitos, porém, ao ser elaborada passa a 17 constituir uma estrutura própria que independe das posições individuais. Segundo Elias (1994), Essa imagem-do-nós, contudo, que muitas vezes assume a forma de um processo de maior ou menor extensão, não tem apenas uma função individual, mas também uma importante função social. Ela dá a cada indivíduo um passado que se estende muito além de seu passado pessoal e permite que alguma coisa das pessoas de outrora continue a viver no presente. (p.182) Em meio a estas contradições, Elias (1994) considera que as pessoas são ao mesmo tempo indivíduo e sociedade e esta individualidade singular interage com as demais para construir o mundo social. O autor, contudo, aponta para a ocorrência de uma crescente individualização dos sujeitos nas sociedades complexas. Segundo ele, nas sociedades primitivas há uma maior identificação dos sujeitos com seu grupo, família ou tribo, fazendo com que sua identidade fique mais estreitamente vinculada com estas figurações, criando um sentimento de dependência dos discursos e saberes locais, o que ele denomina de identidade-nós. Porém, nas sociedades modernas, alicerçadas em outra complexidade econômica, social e política, há uma predominância da identidade-eu, já que o indivíduo transita por diversos papéis, muitas vezes contraditórios, o que exige uma dinâmica de interações diferenciada daquela partilhada em sociedades onde as identidades permitem ao indivíduo um sentimento de unidade. Elias (1994) ainda destaca que o deslocamento do sujeito das relações de pertença e identidade associadas e referenciadas exclusivamente a um grupo específico para um contexto mais amplo fica ameaçado pelos valores globalizados. Assim sendo, este autor afirma que, a maior impermanência da relação nós, que nos estágios anteriores tinha muitas vezes o caráter vitalício e inevitável de uma coerção externa, coloca ainda mais ênfase no eu, na própria pessoa, como o único fator permanente, a única pessoa com que se tem que viver a vida inteira. (p. 167) A busca pela realização individual torna-se neste sentido uma condição importante para os indivíduos da modernidade,mas, por outro lado, há uma interdependência entre individual e coletivo, já que a realização individual só é possível socialmente. Neste aspecto, há que se entender que existe uma dinâmica entre o individual e o coletivo que nas sociedades modernas extrapola as relações do indivíduo com a comunidade local em função da possibilidade de acesso a conhecimentos facilitados pelas atuais tecnologias de informações. 18 As teorias e estudos relativos à identidade que se apresentam tanto no campo da Psicologia Social como no da Sociologia são contribuições importantes para a compreensão da identidade como produto das relações sociais, sua influência nos comportamentos individuais e o modo como cada indivíduo se define, vivencia e se modifica a partir das experiências sociais. Estas teorias articuladas nos informam sobre os esforços que a maioria dos indivíduos emprega para preservar suas identidades e, deste modo, preservar a imagem que criou sobre si mesmo na sociedade. No caso específico deste estudo, o impacto da perda de um filho sobre a identidade feminina é uma questão que foi problematizada em função das representações sociais de maternidade que compõem a identidade feminina. Portanto, as teorias aqui expostas contribuirão para embasar nosso estudo sobre maternidade e a perda do filho. Finalmente, com base nas teorias de identidade psicológicas e sociológicas aqui apresentadas, trataremos do tema maternidade na próxima seção, o que será importante para compreendermos como a identidade feminina foi historicamente associada à imagem de mãe e cuidadora dos filhos. 1.2 Considerações sobre a maternidade A maternidade é reconhecida em muitos estudos como um componente importante da identidade feminina. É por meio de diferentes processos que têm como princípio as crenças e valores compartilhados socialmente que as representações sobre o que é maternidade são internalizadas e vivenciadas como um dos fatores que estruturam a identidade feminina. Pensar a posição subjetiva da mulher contemporânea no contexto da maternidade exige que façamos considerações sobre algumas teorias científicas e processos sociais e culturais que historicamente produziram as funções de cuidado e dedicação exclusiva ao marido e aos filhos como um papel inerente à condição feminina. Os eventos biológicos da reprodução adquiriram significados sociais que atrelaram à mulher papéis específicos em sua rede social e exerceram influência importante sobre sua identidade pessoal e social, representados por comportamentos normatizados pela cultura. Pain (1998) considera que A gravidez e a maternidade são temas antropologicamente relevantes, uma vez que não se esgotam apenas como fatos biológicos, mas abrangem dimensões que são construídas cultural, social, histórica e afetivamente. A gravidez processa-se no corpo das mulheres, porém, como outros 19 acontecimentos do mesmo tipo, tem significados construídos com base na experiência social. Por conseguinte, pode-se pensar que são variáveis conforme a posição social ocupada pelos sujeitos, segundo classe, sexo, idade, etc.. (p. 31) A gravidez, como fenômeno social, ultrapassa as condições biológicas da gestação por constituir uma vivência que exigirá da futura mãe responsabilidades de cuidado e educação do filho, bem como definirá a concretização de uma identidade social importante para a mulher. Antes mesmo da gravidez, a mulher convive com as possibilidades de ser mãe e conjectura as consequências deste fato para sua vida. Nas sociedades ocidentais, o processo social da maternidade tem início durante a infância, período em que a criança por meio de elaborações lúdicas imita os papéis representados pelos adultos e, geralmente, internaliza o modo como as construções de gênero se articulam em seu contexto social (Brougère, 1995; Kishimoto & Ono, 2008; Azevedo, 2003). As práticas discursivas sobre a maternidade desempenham importante influência na produção de configurações subjetivas nas mulheres. Rodrigues (2008) afirma que a maternidade está naturalmente inserida no ciclo de vida das fêmeas, mas provoca repercussão intensa na vida das mulheres como fenômeno social, porque tem uma dimensão simbólica, ideológica, religiosa, política e econômica e existe muito antes para elas, que enfrentam as alterações orgânicas e psíquicas da gravidez do que para a sociedade e o estado que absorverão mais tarde o novo cidadão. (p. 44) Conforme esta autora, a gravidez, como acontecimento ligado ao corpo feminino, estabeleceu historicamente para a mulher condições inerentes às necessidades de sobrevivência da criança, tanto em seu contexto biológico, alimentação e higiene, como em processos de socialização e internalização dos valores morais, sociais e religiosos da cultura. Portanto, sujeito às influências históricas e culturais, o papel da mulher nos cuidados com a criança não se configura somente como produto de uma determinação biológica, mas pode ser adquirido e variar conforme os interesses dominantes de uma dada sociedade. Badinter (1985) afirma que a relação da mãe com a criança, do modo como se apresenta na modernidade, é resultado de transformações sociais ocorridas a partir do último terço do século XVIII. Segundo esta autora, o cuidado com a criança como uma atividade intrinsecamente feminina passou a influenciar, a partir deste período, o comportamento social europeu, sacralizando a imagem da mãe, evocando o amor materno como um instinto natural, tarefa para a qual, segundo os discursos 20 científicos, filosóficos e políticos da época, a natureza havia devidamente preparado a mulher. Naquele contexto, a criança, antes considerada um entrave aos interesses da mulher, passou a ocupar um lugar central nas relações familiares. As ações normativas do estado, da religião e da ciência aconselhavam às mães dedicarem carinho e amor a suas crianças. Segundo Badinter (1985), o papel de guardiã dos interesses da criança e da família competia à mulher que, além de responsável pelos cuidados com o recém- nascido, deveria cumprir, igualmente, a missão de promovê-lo a cidadão. Intensifica-se, desse modo, o processo de estreitamento entre a identidade feminina e o ideal de maternidade que inicia por organizar as classes burguesas para em seguida tornar-se uma prática discursiva também junto às famílias das camadas populares. No Brasil, esta influência se fez sentir mais acentuadamente a partir do século XIX, com a Proclamação da República, período em que ocorreram mudanças significativas no papel da mulher (Neder, 2008; Rocha-Coutinho, 1994; Almeida, 1987). As relações sociais sofreram um processo de modernização e no bojo destas mudanças a identidade feminina passou a ser construída e definida a partir do espaço doméstico. A criança, aos poucos, configurou-se como protagonista da experiência feminina e, neste sentido, houve um estreitamento dos laços afetivos entre a criança e a mulher. Badinter (1985) considera, ainda, que algumas teorias científicas contribuíram indubitavelmente para consolidar o processo de naturalização do sentimento materno. Freud (1996), por exemplo, apresenta o complexo de castração como um acontecimento universal com consequências inevitáveis para o desenvolvimento humano. Para a menina, segundo este autor, a descoberta de que é castrada conduz a três possíveis destinos estruturadores do psiquismo feminino: inibição sexual ou neurose, modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade ou à feminilidade normal. Freud (1996) associa a maternidade e o sentimento materno a este terceiro desfecho para o complexo de castração na menina, ao afirmar que a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante uma primitiva equivalênciasimbólica (...). Não nos passou despercebido o fato de que a mesma desejou um bebê anteriormente, na fase fálica não perturbada: este era, naturalmente, o significado de ela brincar com bonecas. Todavia esse brinquedo não era, de fato, expressão de sua feminilidade: serviu como identificação com sua mãe, com a intenção de substituir a atividade pela passividade. Ela estava desempenhando o papel de sua mãe, e a boneca era ela própria, a menina: agora ela podia fazer com o bebê tudo o que sua mãe costumava fazer com ela. Não é senão com o surgimento do 21 desejo de ter um pênis que a boneca-bebê se torna um bebê obtido de seu pai e, de acordo com isso, o objetivo do mais intenso desejo feminino. Sua felicidade é grande se, depois disso, esse desejo de ter um bebê se concretiza na realidade; e muito especialmente assim se dá, se o bebê é um menininho que traz consigo o pênis tão profundamente desejado. (p. 128) A psicanálise, segundo Badinter (1985), instaura uma relação intrínseca entre a feminilidade normal e o sentimento materno, como algo naturalmente dado e essencial ao ser mulher. O desejo de ser mãe se inscreve como um desejo natural da mulher em função da experiência universal da castração. Esta teoria, devido à influência que exerceu sobre a produção científica e, principalmente, sobre o pensamento médico, reforça o papel socialmente desejado para a mulher junto ao filho, já que normatiza a função feminina de cuidados com a criança por se traduzir em uma consequência natural do psiquismo feminino. Para Badinter (1985), a psicanálise promoveu a mãe à condição de responsável, quase que unicamente, pela felicidade de seu filho. As ideias propagadas pela psicanálise têm uma repercussão importante em todas as camadas sociais e, de algum modo, reiteram uma organização social baseada em uma identidade feminina concretizada na maternidade, consequentemente, nos cuidados com a criança. Disciplinas da psicologia, principalmente nas áreas da educação e desenvolvimento humano, articulam em alguns de seus estudos autores que reiteram aspectos instintivos da maternidade. Destacaremos aqui dois teóricos amplamente utilizados por estas disciplinas, contudo, esclarecemos que escapa aos objetivos deste trabalho contestar ou validar estas teorias. Nossa finalidade é apresentá-las de modo sucinto, para melhor visualizarmos alguns conceitos da psicologia que nortearam e produziram saberes que, ainda hoje, influenciam a produção científica sobre a maternidade e justificam socialmente o comportamento materno. Primeiramente, citaremos a teoria dos instintos, proposta por John Bowlby (1990), a qual inscreve o comportamento de cuidar dos filhos como algo inerente à natureza da mulher. Segundo este autor, a mãe sente um forte impulso para ficar perto de seus filhos pequenos, o que é determinado por uma função biológica de preservação da espécie. Bowlby (1990) afirma que “permanecer na proximidade de um bebê e recolhê-lo em seus braços em situações de alarme serve claramente a uma função protetora” (p. 257). No caso da espécie humana, afirma este autor, submeter ou resistir ao impulso de proteção depende de fatores pessoais, culturais e econômicos. 22 A teoria de Bowlby (1990), como ele mesmo destaca, embora apresente conteúdo da psicanálise tradicional, afasta-se desta na medida em que assume uma abordagem que se apoia substancialmente em observações de como membros de outras espécies, que não a humana, reagem a situações similares da presença ou ausência da mãe e que usa uma vasta gama de novos conceitos desenvolvidos por etólogos para explicar tais reações. (p. 7) Esta afirmação leva-nos a considerar que, para ele, o instinto materno presente nos humanos pode ser compreendido também por meio da observação do comportamento de espécies não humanas e, portanto, regido por princípios reguladores universais. Não obstante, ele destaca que O homem não é um macaco, nem um rato branco, muito menos um canário ou um peixe ciclídeo. O homem é uma espécie perfeitamente distinta, com certas características incomuns. Pode ser, portanto, que nenhuma das ideias provenientes de estudos de espécies inferiores seja relevante. Contudo, isso parece improvável. Nas áreas da alimentação do bebê, da reprodução e da excreção, por exemplo, compartilhamos características anatômicas e fisiológicas com espécies inferiores, e seria deveras estranho que não compartilhássemos nenhuma das características comportamentais que lhes são concomitantes. (p.7) Segundo este autor, o comportamento de cuidar da criança constitui uma habilidade natural da mulher. Mesmo que a criança apresente um comportamento incompatível com a dedicação necessária aos cuidados, como, por exemplo, gritos estridentes que irritem a mãe, a aversão aos gritos pode provocar um afastamento temporário, mas que rapidamente é abolido em função da necessidade de cuidado com a criança, já que numa mãe normal, o comportamento de afastamento, embora ocorra ocasionalmente, não é frequente nem prolongado, sendo rapidamente substituído pelo cuidado, quando os acontecimentos o exigem. Numa mãe emocionalmente perturbada, por outro lado, tal comportamento pode interferir seriamente com os cuidados ao filho. (p.9) Outro teórico importante neste cenário, que apoia a condição de mãe como natural é Winnicott. A teoria do amadurecimento de Winnicott propõe um modelo de mãe que se caracteriza por sua capacidade natural de corresponder às necessidades do bebê (Winnicott, 1996). A mãe, segundo ele, constitui o ambiente facilitador do desenvolvimento da criança, por se traduzir em uma instância que naturalmente sustenta e responde à dependência do bebê, ou seja, está sensível às demandas do lactente. Este ambiente, no conceito de Winnicott, não é externo ou interno à criança, mas se processa no âmbito da relação mãe-bebê (Dias, 2003). O ambiente facilitador, esclarece esta autora, é a própria mãe que se preocupa e cuida efetivamente da criança, esvaziando-se 23 da sua vida pessoal para atender às necessidades do bebê e é naturalmente esperado que a mãe atinja esta disposição afetiva por meio de uma profunda identificação com a criança. A totalidade dos cuidados com o recém-nascido que tomam conta da mãe fomenta o desenvolvimento psicológico da criança, cujo conjunto de qualidades dirigido ao bebê caracteriza, conforme proposto por Winnicott, “a mãe suficientemente boa”, o que representa uma preocupação materna primária. Segundo Dias (2003) Embora a preocupação materna primária seja um estado que advém, naturalmente, com a maternidade, existem mulheres que o temem e que resistem à regressão nele contida. Elas permanecem agarradas às suas ocupações adultas e não conseguem, ou não suportam, identificar-se com o bebê. Este tipo de mãe tenderá a cuidar do lactente por via mental; seus atos serão deliberados, regidos por regras intelectualmente estabelecidas. Talvez ela consiga provê-lo de algumas coisas básicas, mas não será capaz da comunicação profunda e silenciosa que a intimidade traz. Ela cuidará dele como se “cuida de bebês”, isto é, com um cuidado impessoal. (p. 136) Assim posto, podemos concluir, conforme a teoria destes autores, que a não ocorrência de um desenvolvimento normal do lactente será atribuída basicamente à mãe, e os fatores de ordem social, econômica ou pessoal não são destacados ou são pouco considerados como intervenientes possíveis no curso do desenvolvimento do bebê. Estudos realizados no Brasil também indicam que as teorias do instinto materno contribuíram para vincular a feminilidade ao exercício dos cuidados com a criança. Além disso, revelam que ter filhos estrutura a identidade feminina e constitui um requisito imprescindível à autoestima pessoal e coletiva da mulher. Souza e Ferreira (2005) em estudo que investigou asimplicações da condição de maternidade e não maternidade para a construção da autoestima pessoal e coletiva das mulheres concluiu que a maternidade desempenha importante papel na configuração da identidade feminina. As pesquisadoras apontam que Os resultados acerca dos maiores índices de autoestima pessoal e coletiva obtidos pelas mulheres mães, em comparação às não mães, levam à conclusão de que os estereótipos tradicionais, que atrelavam a maternidade à condição feminina, ainda exercem influência na construção da identidade feminina. (p. 23) E concluem que as mulheres pesquisadas “ainda sofrem influências da herança sociocultural pró natalista que permeia alguns segmentos da sociedade brasileira. Neste sentido, concebem e celebram a maternidade como um momento único, um marco essencial em suas vidas” (p. 23). Apesar de uma suposta mudança nos costumes e nas mentalidades da mulher contemporânea, os papéis vinculados à maternidade, conforme os resultados desta 24 pesquisa, permanecem como determinantes na relação da mulher com a sociedade e na construção de sua identidade. Barbosa e Rocha-Coutinho (2007) em estudo realizado com o objetivo de compreender o que as mulheres pensam sobre a maternidade e sobre a opção de adiá-la ou de não ter filhos, chegam à conclusão que, mesmo diante da possibilidade de escolher ou não a maternidade, as entrevistadas acreditam que a realização de uma mulher inclui, necessariamente, a maternidade. Neste sentido, as autoras afirmam que O sucesso na carreira e a realização profissional e pessoal fazem parte hoje dos objetivos de muitas mulheres e algumas delas abrem mão, inclusive, da maternidade para alcançar esses objetivos. Isto não quer dizer, contudo, que o investimento em um trabalho que lhe dê satisfação seja visto pela mulher atual como mais importante do que ser mãe. Para a maioria das mulheres e para a sociedade, de modo geral, o ideal seria conciliar a maternidade com a realização profissional. Desta forma, parece que a mulher hoje pode e deve encarnar novos papéis sem, contudo, abrir mão do ideal moderno da maternidade, pois só assim ela se tornaria um ser verdadeiramente completo. (p. 184) Ainda, neste sentido, as representações sociais da maternidade, conforme pesquisadas por Trindade (1991), em trabalho que envolveu a clientela de um Serviço de Aconselhamento Genético, apontam que “para as mulheres que não têm filhos a maternidade é representada com maior frequência como condição para a concretização da identidade feminina e da realização pessoal” (pág. 179). As representações da maternidade, segundo a pesquisadora, apresentaram elementos entre os quais destacamos identidade feminina, dádiva divina e supervalorização da mãe, entendida, esta última, como “falas que indicavam uma superioridade do papel materno em relação ao paterno ou uma superioridade absoluta e insubstituível do cuidado materno” (Trindade, 1996). A autora observou que as entrevistadas que relataram sentimento de culpa com relação ao filho em condições genéticas desfavoráveis indicaram com maior frequência a identidade feminina como elemento figurativo para a definição da representação da maternidade. O estudo leva-nos a concluir que a maternidade é um valor social importante, senão fundamental, para a concretização da identidade feminina. Trindade (1991) afirma ainda que, independentemente da representação da maternidade das mulheres investigadas, a existência de um filho afetado provoca sentimentos negativos e percepção de exclusão social. Espíndula, Trindade e Santos (2009), em estudo realizado sobre as representações sociais e práticas educativas referentes a filhos atendidos pelo Conselho Tutelar, observaram que as práticas educativas conduzidas e elaboradas pelas mães 25 pareciam ser orientadas por um modelo vinculado a um sistema de representações que inclui as representações sociais de maternidade e de boa mãe. As mulheres entrevistadas frequentemente atribuíram o comportamento adverso do filho à herança genética do pai, o que, segundo as autoras, parece fazer parte do processo de objetivação e serve ainda à manutenção da representação social de “boa mãe”. Ao atribuir às características genéticas do pai o comportamento problemático do adolescente, as mães, de certa forma, isentam-se mais uma vez da possibilidade de culpa e de questionamento de suas práticas educativas. Emergem processos simbólicos que visam, em última instância, preservar a integridade e a identidade materna. (p. 141) Outros estudos realizados no Brasil evidenciaram que os cuidados com a criança também foram influenciados pelos discursos científicos sobre a maternidade. Martins (2008) analisa a produção da literatura médica brasileira no período de 1938 a 1963 de aconselhamento para as mães com o objetivo de ensiná-las a criar seus filhos. Segundo esta autora, as primeiras a aderirem às orientações médicas foram as mães das classes privilegiadas e letradas e, mais tarde, para atingir as mães de classes populares, estes profissionais passaram a produzir livros com uma linguagem acessível que permitisse a elas o conhecimento técnico especializado sobre a infância. Segundo esta autora, o médico pediatra assumiu junto às mães o papel de moldar o que se propagava como naturalmente instituído por meio do conhecimento científico capaz de assegurar o cuidado adequado ao filho. Por serem dirigidas especialmente às mulheres, as informações reproduzem o sentido de responsabilidade da mulher relativa aos cuidados com as crianças. O entendimento médico daquela época preconizava que “como as crianças, as mães precisam ser educadas e os médicos atribuem a si essa tarefa por meio de um conjunto de práticas e de uma metodologia própria cujo objetivo é, em síntese, a normalização da maternidade” (p. 143). A mãe, no Brasil atual, ainda tem sido apontada como a principal responsável, senão a única, pelo desenvolvimento esperado para a criança em conformidade com os discursos científicos e culturais que adquiriram relevância junto à sociedade. Não obstante a existência de novos discursos que convocam o pai a assumir um papel de cuidado junto à criança (Osório, 2002), ainda predomina a cultura de um cuidado exclusivamente feminino sustentado, inclusive, pelas políticas públicas de saúde que desenvolvem programas voltados para os cuidados materno-infantis. Apesar disso, Paim (1998) destaca que mulheres pertencentes à camada média brasileira compreendem a gravidez e a maternidade como um projeto de vida estruturado em uma escolha pessoal 26 e recusam uma identidade feminina reduzida à dimensão da maternidade. Por outro lado, as mães de classes populares, segundo esta autora, mesmo exercendo atividades remuneradas fora dor lar, conferem à maternidade uma posição de mulher vinculada ao espaço doméstico e indispensável à construção da identidade feminina. Neste sentido, não podemos negar que ocorreram mudanças importantes relativas ao modo de socialização feminina, mas muitas práticas ainda permanecem, como um maior controle do comportamento da menina (Biasoli-Alves, 2000). Moreira e Romagnoli (2008) em estudo realizado com usuárias de uma maternidade pública em Betim – MG investigaram os efeitos do método canguru2 na produção de subjetividade das mães e na manutenção do ideal de cuidados com a criança como atribuição quase exclusiva da mulher. As autoras observaram que a importância da mãe é tão valorizada e imprescindível, que, de certa maneira, o pai torna-se desvalorizado e, em alguns momentos, é excluído do processo. Essa postura impede que o pai exerça seu papel como um dos adultos responsáveis, e que possa interferir de forma positiva na situação, não somente quando a mãe não dá conta (p. 215) As pesquisadoras concluem que, apesar do mérito do programa, corre-se o risco de sereforçar práticas sociais que preconizam um tipo ideal de mãe, que exclui atores importantes que devem compartilhar as responsabilidades em relação às limitações e dependências da criança em seus primeiros anos de vida. Asseveram, ainda, que o Programa Mãe Canguru, para além de uma estratégia importante para a promoção da qualidade de vida do bebê, deve emergir como ferramenta para consolidar ações individuais e coletivas que fortaleçam vínculos significativos entre o bebê, a família e a comunidade nas quais a criança desenvolverá suas potencialidades. Em outra pesquisa realizada com o objetivo de apreender as representações sociais de maternidade e paternidade entre mães com filhos prematuros internados em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal, Barros e Trindade (2007) apontam para uma conclusão semelhante à de Moreira e Romagnoli (2008). As pesquisadoras encontraram representações que reafirmam o modelo tradicional das relações parentais. As autoras observam que 2 O método mãe canguru foi criado em 1978 pelo médico Edgar Rey Sanabriaé e desenvolvido em 1979 pelo Instituto Materno Infantil de Bogotá, na Colômbia. Configura-se como estratégia que objetiva promover o desenvolvimento de bebês nascidos prematuramente. No Brasil, trata-se de um programa de saúde neonatal de ampla adesão pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e funciona como estratégia da política nacional de humanização do SUS (Ministério da Saúde, 2002). A lógica do procedimento baseia- se no ciclo de vida do mamífero marsupial canguru, cujos filhotes nascem pouco desenvolvidos e para sobreviverem vivem durante os primeiros seis meses no marsúpio, um tipo de bolsa de gordura no ventre, onde encontram calor, proteção e leite. Finalizada esta etapa do desenvolvimento gestacional, o filhote é então estimulado a conquistar seu próprio território e desenvolver estratégias de sobrevivência. 27 Tendo em vista um modelo de boa mãe socialmente construído e sempre almejado (porque não se consegue atingi-lo), as mães, como já discutido, assumiam a responsabilidade pelos cuidados com o recém-nascido, sofriam com esta sobrecarga, mas não compartilhavam os cuidados com os pais. Assim, evidencia-se que, apesar das transformações que ocorreram nas relações de gênero, principalmente nos últimos anos, a maternidade moderna ainda se respalda principalmente no ideal de boa mãe e de amor materno incondicional que surgiram com as transformações familiares a partir do século XVIII. Ter tais elementos como principais definidores da maternidade pode ocasionar sofrimento para muitas mães, uma vez que a realidade as frustra ao demonstrar a inatingibilidade da mãe ideal e a condicionabilidade do amor materno, que não é natural, mas construído através das interações. (p. 267) Outro aspecto importante a ser considerado é a contribuição das tecnologias reprodutivas (TR) para produzir importantes reflexões sobre a maternidade. Esses modos de intervenção da ciência sobre a gestação corroboram para que a maternidade seja organizada em torno de uma escolha e não mais como condição necessária, obrigatória e irremovível (Scavone, 2001; Borlot e Trindade, 2004). Neste sentido, a maternidade emerge como uma opção entre tantas outras possibilidades de realização feminina, entre as quais o ser mãe pode ou não estar incluído. Mulheres férteis, no contexto contemporâneo das intervenções médicas, podem planejar a quantidade de filhos e escolher o momento em que a maternidade concretizará uma nova identidade para sua vida. Por outro lado, mulheres estéreis podem submeter o desejo de ter um filho às considerações da medicina que investigará as possíveis intervenções que lhes possibilitarão a realização do evento materno. Scavone (2001) assevera que Com as TR passamos de uma recusa circunstancial da maternidade para a possibilidade de escolha, significando, também, para as mulheres a decisão ou adequação entre vida profissional e vida familiar. As TR expressam claramente um tipo de relação com a maternidade, construída histórica, social, política, culturalmente com base em uma mesma razão: a de que existe uma solução tecnológica para a reprodução humana (p. 143). Contudo, devemos considerar que, atualmente, as TR constituem, geralmente, prerrogativas de mulheres de classes sociais cujo poder econômico proporcione condições financeiras para o investimento em tais dispositivos. Além disso, questões sociais, interesses políticos e religiosos, bem como os saberes que compõem as relações cotidianas em uma determinada sociedade e classe social, limitam o alcance destes mecanismos de controle da reprodução, o que dificulta ou impossibilita o acesso de mulheres das classes populares. Concepções inovadoras esbarram em valores culturais, políticos e econômicos historicamente estabelecidos e, como consequência, prolongam o período para o estabelecimento de novos modelos de configuração social. Há que se 28 considerar que as TR representam uma prática de intervenção para corrigir um estado indesejável da natureza biológica, que associado aos discursos sociais, podem significar um reforço ao discurso da maternidade como componente natural da mulher. Ou seja, os casos que revelam infertilidade poderão ser corrigidos por métodos científicos e deste modo reiterar o conceito de feminilidade incompleta em virtude da impossibilidade da gestação de um filho biológico. Borlot e Trindade (2004) em pesquisa realizada com cinco casais moradores da Grande Vitória, ES, cujo objetivo foi investigar as representações sociais de filho biológico em casais que se submeteram às TR, afirmam que a análise dos resultados evidenciou a importância que os casais atribuem ao filho biológico como fator que consolida a identidade feminina. As autoras observam ainda que Mesmo aqueles casais que já haviam adotado, demonstraram que ter um filho biológico tinha sido seu objetivo um dia e que, por razões diversas, resolveram a questão da maternidade e da paternidade através da adoção. Aqueles que não decidiram o que irão fazer parecem ainda dar prioridade ao filho biológico, talvez por ainda não se sentirem preparados para a adoção ou porque preferem continuar tentando realizar este sonho. Outras alternativas, como a opção por não ter filhos, pareceram não estar incluídas nos projetos desses casais. (p. 69) Em pesquisa realizada por Trindade e Enuno (2001) sobre as representações sociais da infertilidade entre mulheres de diferentes estratos sociais, as autoras consideraram que os resultados deste estudo apontam para a permanência nos dias atuais de um modelo de feminilidade ainda associado ao ideal de maternidade. As construções sociais em torno da maternidade e do cuidado com os filhos têm sido tema de discussões entre os mais diversos grupos sociais e movimentos políticos contemporâneos. Este assunto, tão amplo e controverso, tem produzido, conforme exposto, pesquisas em diferentes campos do conhecimento científico e estimulado discussões em torno de políticas públicas relativas ao poder de decisão da mulher com relação à opção ou não pela maternidade. Os estudos oscilam entre a defesa do amor materno como instinto natural influenciado por componentes de natureza puramente biológica, capaz de determinar o comportamento e afetividade da fêmea junto às suas crias, e a maternidade como socialmente estabelecida e passível de mudanças históricas, sociais e culturais. Muitas teorias de cunho social, alicerçadas em investigações históricas, antropológicas e sociológicas, têm se orientado para a conclusão de que a relação da mulher com a maternidade, como experiência social, varia de acordo com a época, os povos e a cultura. No Brasil contemporâneo, conforme exposto, com base nos estudos realizados até então, principalmente com famílias de classes populares,a 29 maternidade, os cuidados com os filhos e papéis fortemente associados às atividades domésticas têm sido predominantes no contexto de formação da identidade feminina. De fato, como podemos constatar a partir da leitura dos autores aqui apresentados, existem polêmicas quanto à origem do sentimento materno e do papel da mulher nos cuidados com a criança, mas as suas implicações para a identidade feminina não podem ser desconsideradas. Ainda hoje, as mulheres assumem papéis caracterizados como femininos no espaço doméstico, como a criação, a educação e a formação moral dos filhos, mesmo ao considerarmos a profissionalização da mulher e a sua inserção no mercado de trabalho3. Como nos foi possível perceber até agora, a maternidade está associada a construções sociais que atribuem à mulher papéis específicos relacionados ao filho, o que, conforme os estudos apresentados, tem implicações para a identidade feminina. Assim como o nascimento de um filho, a morte de uma criança poderá ter consequências importantes para esta identidade tão bem engendrada socialmente (Rangel, 2008; Martins, 2001; Bussinger & Novo, 2008). Badinter (1985) afirma que, ao contrário do que aconteceu nos séculos XVII e XVIII, a morte de um filho na atualidade “deixa uma marca indelével no coração da mãe. Mesmo aquela que perde prematuramente seu feto conserva a lembrança dessa morte quando desejava a criança” (p. 87). Na próxima seção, trataremos do tema morte e as construções sociais relativas a ela, pois, no nosso entendimento, o modo social de lidar com a morte também influencia a percepção da mãe sobre a perda do filho. 1.3 A morte e o morrer A consciência da finitude, de que os projetos individuais um dia serão inevitavelmente interrompidos pela morte, tem consequências importantes para a subjetividade humana. De acordo com Kovács (1997), a morte como fenômeno puramente biológico se caracteriza pela “interrupção completa e definitiva das funções vitais de um organismo vivo, com o desaparecimento da coerência funcional e destruição progressiva das unidades tissulares e celulares” (p. 10). O corpo entregue a terra irá participar, por meio da sua decomposição, do processo de aproveitamento de suas potencialidades orgânicas e, deste modo, contribuirá para a manutenção do ciclo de 3 Neste ponto, deve-se considerar que o trabalho fora da esfera doméstica se deu como conquista das mulheres da classe média, conquanto, a maioria das mulheres das classes populares sempre trabalhou, dentro e fora do lar, para garantir a sua sobrevivência e de suas famílias (Almeida, 2007). 30 nutrientes do ecossistema. Porém, como a maioria dos fenômenos biológicos, a morte adquiriu significados sociais que são compartilhados entre membros de uma dada cultura e, como tal, não escapa às construções sociais. Menezes (2001) afirma que, dada a consciência que o ser humano tem da própria morte, durante milênios a proteção do aniquilamento foi a função central de grupos humanos. Há várias formas de os indivíduos lidarem com a ideia da finitude da vida: pode-se evitar a ideia da morte através da mitologização do final da vida, do encobrimento da ideia indesejada, pela crença na própria imortalidade ou encará-la como um fato da existência e ajustar a vida diante dessa realidade. (p. 147) As manifestações culturais evocam a noção da necessidade de dar um sentido ao impensável que é a morte, à única experiência social que não pode ser transmitida, nem compartilhada (Matta, 1997). Historicamente, a atitude humana diante da morte nas diversas sociedades ocidentais esteve assinalada por comportamentos que se movimentaram entre a percepção da morte como um evento sabidamente inevitável, acolhido socialmente e marcado por símbolos inscritos pela cultura até a sua negação e deslocamento para os bastidores da vida social (Ariés, 1981). A alta idade média foi marcada por uma peculiar proximidade entre o ser humano e a morte (Ariés, 1981). Nos cenários medievais a morte era algo simples. O moribundo, ao pressentir seu fim, recolhia-se ao seu quarto e presidia todos os acontecimentos relativos à própria morte. Segundo este autor, em conformidade com os preceitos culturais e religiosos, o doente ritualizava sua morte: “o primeiro ato é o lamento da vida, uma evocação triste, mas muito discreta, dos seres e das coisas amadas, uma súmula reduzida a algumas imagens” (p.32). Os ritos da morte eram aceitos e cumpridos de modo cerimonial com a presença de amigos, vizinhos e parentes, e era permitida a presença de crianças. Durante o ritual de despedida, “o quarto do moribundo transformava-se, então, em um lugar público, onde se entrava livremente” (p.32). A cerimônia acontecia sem exageros emocionais ou gestos dramáticos, o agonizante pedia perdão pelos atos infamantes, legava seus bens, exprimia suas derradeiras vontades, recomendava sua alma a Deus e se despedia. O sacerdote comparecia e oferecia seus préstimos religiosos, oportunidade em que o doente confessava, comungava e recebia a absolvição sacramental. O corpo do morto ficava exposto em uma cerimônia pública que antecedia ao sepultamento. Respeitados os costumes religiosos, os familiares fechavam as janelas, acendiam velas, pranteavam o morto e proclamavam seu pesar e saudade. O sepultamento acontecia no pátio das igrejas, antecedido por uma procissão fúnebre que 31 percorria o espaço entre a casa do morto e o local do enterro. A expressão de tristeza era facilitada e até mesmo desejada nas despedidas fúnebres. Segundo Ariès (1981), principalmente no final da idade média, os gestos de dor pela morte do moribundo eram manifestados com dramaticidade, costumava-se contratar carpideiras para tornar o luto mais intenso, estimular o sofrimento pela morte daquele que se foi. Havia, então, uma manifestação pública da morte que abrigava em sua expressão social uma dinâmica cujo início se dava com o pressentimento do moribundo de que iria morrer, gestos de despedida, orientações e orações vislumbrando lugares celestiais. Pessoas próximas pranteavam a partida e participavam de todo ritual fúnebre até a entrega do corpo à sepultura. A morte súbita era temida, não só porque privava o ser humano de ritualizar e presidir a própria morte, mas também não lhe concedia o tempo necessário para o arrependimento e para garantir o repouso eterno conforme pregado pelas crenças religiosas predominantes na idade média. Segundo Ariès (1981), “a morte repentina era considerada infamante e vergonhosa” (p. 12). O luto e os rituais de dor presentes na alta idade média expressavam, segundo Ariès (2003), a familiaridade do ser humano com relação à morte. Este autor destaca que Assim se morreu durante séculos ou milênios, em um mundo sujeito a mudança, a atitude tradicional diante da morte aparece como uma massa de inércia e continuidade. A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu nome. Por isso chamarei aqui esta morte familiar de morte domada (pp. 35 e 36). Philippe Ariès (2003) destaca ainda que nos registros das civilizações pré-cristãs a morte era apreendida como um destino coletivo inevitável e natural. Não se refletia sobre a morte como um fenômeno individual e ameaçador, esta constituía o destino inexorável de todo ser vivente. Aqueles povos acreditavam na possibilidade dos mortos retornarem do mundo que lhes era próprio para reivindicar a assistência dos vivos. Para obstar este retorno, o morto era sepultado com um conjunto de objetos que lhe asseguravam a provisão necessária para a existência no mundo dos mortos. Se, por um lado, a morte era aceita como natural efamiliar, por outro, em função da crença na possibilidade dos mortos voltarem para perturbar os vivos, os antigos mantinham os corpos em decomposição distantes das cidades. Além disso, a morada dos vivos deveria 32 ser separada da morada dos mortos porque os “mortos enterrados ou incinerados eram impuros: quando muito próximos, poderiam poluir os vivos” (p. 34). Com o advento do cristianismo, a repugnância à presença dos mortos nas cidades deu lugar à crença de que os túmulos deveriam ser edificados próximos aos mártires da igreja. No imaginário social este processo constituía fator relevante para a salvação da alma. Os mortos passaram então a serem enterrados nas cidades em solos sagrados e os cemitérios em espaços abertos foram substituídos pela igreja ou por locais contíguos a elas. Os túmulos individuais foram se tornando raros na alta idade média, os corpos eram colocados em um mesmo espaço e não se considerava importante que fossem identificados. Nem todos, porém, possuíam a prerrogativa de serem enterrados nas igrejas ou em seus arredores, estes lugares estavam destinados prioritariamente aos detentores de poderes políticos, religiosos e financeiros. Segundo Petruski (2006) Com o passar do tempo, os espaços no interior das igrejas foram ficando escassos, chegando ao limite na segunda metade do século XIV, quando a Peste Negra assolou o território europeu, provocando a morte de milhares de pessoas em poucos meses, deixando os cemitérios abarrotados de corpos. A única saída para aquele momento era enterrar os corpos, também, no pátio das igrejas, o que gerou a criação dos cemitérios ao lado ou aos fundos delas. Assim, entre os séculos XII e XIV, os enterros foram se tornando cada vez mais religiosos, até chegarem ao seu auge no século XVII. (p. 98) Na Europa, por medida sanitária, a partir do século XVIII os sepultamentos passam a acontecer em área aberta, nos chamados campos-santos ou cemitérios secularizados. A convivência com a morte e com o morto passou a sofrer transformações importantes. Petruski (2008) afirma que Na França, a nova postura diante da morte e dos mortos se delineou ao longo do século XVIII, no rastro do iluminismo e da secularização da vida cotidiana, criando-se uma atitude hostil à proximidade com pessoas moribundas e com os mortos. Além disso, os médicos também recomendavam que essa aproximação fosse evitada por motivo de saúde pública. O primeiro alvo desse novo discurso foram os cemitérios, especialmente o Cemitério dos Inocentes, localizado em Paris (p. 99). Há, também, neste período, uma acentuada sensibilidade familiar com os entes queridos mortos. Este fato pode ser verificado por meio da adoção das sepulturas individuais destinadas a acolher os restos mortais dos membros de uma mesma família. Segundo Freire (2006), “a aproximação familiar ocorrida neste período se reflete na adoção dos jazigos familiares como locais sagrados destinados à reunião dos membros” (p. 55). A forte presença da cultura europeia por meio da colonização exerceu importante influência sobre a morte o morrer no Brasil. Koury (2003) considera que 33 as categorias elaboradas pelos estudiosos europeus, e principalmente as de Ariès, construídas para entender as atitudes perante a morte e o morrer na Europa e nos Estados Unidos, ou nos países industrializados do Ocidente, servem também para informar sobre a cultura funerária no Brasil. Pelo legado europeu e de seu embate com outras culturas presentes, como a africana e a indígena, que influenciou a formação do país desde a colônia, e as relações estabelecidas internacionalmente após sua independência. Bem como as instituições internacionais, como as igrejas, principalmente a católica, presentes na conformação do pensamento ocidental no seu veio judaico-cristão, e as ideias e ideais culturais, estéticos, acadêmicos, científicos e tecnológicos no Ocidente, que influenciaram os embates presentes na configuração e consolidação do pensamento nacional. É impossível, assim, buscar uma compreensão de um pensamento brasileiro e das atitudes de sua população, sem situar a história de sua singular formação social a nível internacional, especificamente ligado à cultura européia (p. 57). Segundo Koury (2006), no Brasil do século XIX, a atitude diante da morte reportava-se àquela relatada por Ariès no transcurso da idade média denominada por ele de a morte domada. Ao pressentir a própria morte, o doente convocava os familiares, parentes, amigos, vizinhos, conhecidos e anônimos para participarem da cerimônia de despedida. Naquele momento, pedia-se perdão pelos erros cometidos, entoavam-se cânticos e rezas, como preparação para a entrada nos lugares celestiais e o livramento da condenação eterna. A morte anunciada, seja através dos sonhos, premonições ou adoecimento, era bem vista, uma dádiva divina, pois assim garantia-se o tempo necessário para um devido ajustamento com a misericórdia divina. A morte súbita exigia dos familiares e da comunidade um esforço maior de devoção e penitência, pois impossibilitava o morto de se organizar espiritualmente por meio do arrependimento de seus pecados e garantia da salvação. Não somente o falecido sofria as consequências da morte repentina, mas a família e a comunidade também deveriam se fortalecer e oferecer sacrifícios religiosos por motivo dos riscos espirituais que a morte repentina apresentava para a coletividade. A morte repentina assustava por se atribuir a ela uma dimensão mística, expressa pelo temor da vizinhança em sofrer as consequências da inadvertência do morto, que não conduziu a vida de modo a garantir uma boa morte. No Brasil do século XIX, a sepultura era também um lugar sagrado e necessário ao destino do corpo para a salvação da sua alma. Morrer em terra firme tinha a importância de permitir o enterro na Igreja e assegurar a morada final junto aos santos (Reis, 1991). Como na Europa, foi assim também no Brasil, a morte e o morrer adquiriam expressões e interpretações sociais e religiosas e os destinos do corpo e da alma eram simbolizados e compartilhados coletivamente. 34 Uma nova sensibilidade diante da morte e do morrer se configura nas sociedades ocidentais a partir da segunda metade do século XX. Segundo Ariès (2003), a morte na contemporaneidade sofreu um interdito. Esta interdição é expressa por meio de avanços científicos e tecnológicos cujo fim é garantir a vida a qualquer custo. A morte passou a ser um tabu. Já não se morre em casa, entre parentes, amigos e vizinhos, mas no hospital, solitário, em meio a instrumentos, aparelhos e medicamentos para garantir a sobrevivência do moribundo. A morte na modernidade foi interditada. Segundo Ariès (2003), já não se sabe mais o que é a morte. Segundo Elias (2001), as atitudes do ser humano diante da morte sofreram mudanças significativas no curso do processo civilizador. A morte, de pública e familiar, vai se tornando um assunto interditado nas configurações sociais, distante da experiência cotidiana. Este autor relata que ocorreu um recalcamento do fenômeno morte, seja no plano individual ou coletivo. O local da morte, segundo este autor, foi deslocado do ambiente doméstico para os hospitais, o que coincide com a ideia de Ariès (2003) de interdito da morte. Atualmente, as pessoas morrem silenciosamente. A rotina hospitalar, suas normas e protocolos produzem uma morte higiênica, sem odores, os hospitais estruturam o cenário adequado onde a morte deve ocorrer. Para Elias (2001), o hospital é “uma área vazia no mapa social” (p. 36). A exclusão do tema morte das questões cotidianas configura uma nova sensibilidade nas relações com aquele que vivencia a perda de um ente querido. Não há espaço para quem perdeu. A interdição da morte incide diretamente sobre as pessoas que vivenciam a perda de um ente querido. Por causa
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