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ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE n. 45-46, jul.2013/jun.2014 DESAMPARO E VULNERABILIDADES ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / INSTITUTO APPOA Porto Alegre REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE EXPEDIENTE Publicação Interna n. 45-46, jul. 2013/jun. 2014 Título deste número: DESAMPARO E VULNERABILIDADES Editores: Deborah Nagel Pinho e Maria Ângela Bulhões Comissão Editorial: Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Deborah Nagel Pinho, Gláucia Escalier Braga, Joana Horst, Maria Ângela Bulhões, Mariana Hollweg Dias, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira, Otávio Augusto Winck Nunes, Renata Maria Conte de Almeida. Colaboradores deste número: Àlvaro Olmedo, André Oliveira Costa, Lucy Linhares da Fontoura, Luiza Olmedo. Editoração: Jaqueline M. Nascente Consultoria linguística: Dino del Pino Capa: Clóvis Borba Linha Editorial: A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém es- tudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País. Associação Psicanalítica de Porto Alegre Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS Fone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922 E-mail: appoa@appoa.com.br - Home-page: www.appoa.com.br ISSN 1516-9162 R454 Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, - Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Semestral ISSN 1516-9162 1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre CDU 159.964.2(05) CDD 616.891.7 Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837 Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http:// www.bvs-psi.org.br/) Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br Impressa em março 2015. Tiragem 500 exemplares. DESAMPARO E VULNERABILIDADES SUMÁRIO EDITORIAL .................................. 07 TEXTOS Desamparo e Vulnerabilidades no Laço Social – a função do psicanalista Helplesness and Vulnerabilities in the Social Tie – the function of the psychoanalys Jaime Betts ....................................... 09 O desejo do psicanalista face ao desamparo contemporâneo The desire of the psychoanalyst in the face of contemporary distress Caterina Koltai ................................... 20 Um luto impossível: efeitos de trauma em imigrações An impossible mourning: effects of trauma in immigration Ana Costa ......................................... 32 Do Exílio ao Asilo: Escutas Clínicas From exile to asylum: clinic listenings Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet ........... 37 Imagens, apesar da catástrofe Images despite the catastrophe Robson De Freitas Pereira ................ 49 É possível falar sobre essa tragédia? Is it possible to talk about this tragedy? Luciana Portella Kohlrausch .............. 58 A colaboração da Psicanálise na construção do Serviço de Acolhimento às vítimas do incêndio na boate Kiss The contribution of Psychoanalysis in the cons- truction of the Embracement Service to the victi- ms of the fire in the Kiss nightclub Volnei Antonio Dassoler .................... 67 Apoio matricial, uma clínica em extensão Matrix support, a clinic in extension Elaine Rosner Silveira ...................... 78 A clínica e as práticas de cuidado na rede de atenção à infância e adolescência The clinic and the care practices in the attention to childhood and adolescence service Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna .......................... 89 “Secretários do Alienado”? A psicose e a instituição Psicanalítica “Secretaries of the Alienated”? The psychosis and the psychoanalytic Institution Siloé Rey Liz Nunes Ramos ........................... 100 Corpo e violência estrutural das psicoses: o suicídio do outro em Louis Althusser Body and psychosis’s structural violence: the other’s suicide in Louis Althusser Manoel Madeira ............................. 108 A Casa dos Cata-Ventos: uma aposta na dimensão política do brincar The Casa dos Cata-Ventos: a bet on the political dimension of play Anderson Beltrame Pedroso e Edson Luiz André de Sousa ............ 122 A autoridade do professor e a questão do saber-fazer com o sinthoma The authority of the teacher and the question of know-how with the sympthom Marcelo Ricardo Pereira ................. 135 A dimensão traumática da educação The the traumatic dimension of education Roséli M. Olabarriaga Cabistani ......146 Educação e vida pulsional Education and drive life Gerson Smiech Pinho ...................... 153 Educação (im)possível? (Im)possible education? Larissa Costa Beber Scherer ........... 161 A prática dos educadores na contemporaneidade: algumas reflexões Teaching practice in the contemporary society: a few reflections Cristina Py de Pinto Gomes Mairesse .... 172 ENTREVISTA Transferências de um psicanalista Interview: Transfers of a psychoanalyst Alfredo Jerusalinsky ........................ 181 RECORDAR, REPETIR, ELABORAR Uma aula sobre a dialética hegeliana do senhor e do escravo A lesson on the Hegelian dialectic of master and slave Marilena Chauí ............................... 192 VARIAÇÕES Os números irracionais de Lacan (parte 2): as transmutações do fi The irrational numbers of Lacan (part 2): the transmutations of fi Ligia Gomes Víctora ....................... 218 Dez proposições para ler Jacques Lacan Ten propositions to read Jacques Lacan Norton Cezar Dal Follo da Rosa Junior ... 226 Poética do letramento The poetics of literacy Elaine Milmann ............................... 243 EDITORIAL 7 O desamparo é uma experiência fundamental da condição humana e é em torno dela que se constitui a posição do sujeito no laço social. Freud faz do estado de desamparo (hilflosigkeit) um conceito de referência em sua obra. Ele o enfatiza como o protótipo das situações traumáticas, geradoras de angústia no adulto, pois o confronta, no tempo presente, com a impotên- cia de seu estado de desamparo infantil originário. Segundo Freud, o mal- estar, a infelicidade e as situações traumáticas chegam de três direções: do sofrimento do próprio corpo, do mundo externo e das insatisfações ou da violência desencadeadas pelas relações com os outros. O sofrimento pro- veniente desta última talvez seja o mais penoso de todos eles. Com a cultura, se responde a este inevitável mal-estar da condição hu- mana que desencadeia inúmeras situações de vulnerabilidade, evidencian- do o eterno conflito entre civilização e barbárie. O catastrófico se articula com o desamparo estrutural e o sujeito se confronta com o trauma do real irrepresentável. Toda vez que ficam esquecidas a fragilidade e a finitude da condição humana e ideais são impostos em nome do progresso, da razão, ou da fé, o resultado pode ser da ordem da barbárie. O desamparo e as diferentes vulnerabilidades colocam um desafio para a clínica da psicanálise em extensão. Diante da irrupção do real e dos restos dela decorrentes o trabalho se impõe, buscando fazer contornos possíveis. Nesta revista, os textos trazem recortes do que é encontrado na clínica e do que se testemunha, como sujeitos de uma época. É de fundamental impor- tância para o trabalho que norteia o Instituto APPOA propor debates sobre as intervenções fundadas no desejo do analista e na ética da psicanálise junto ao social e seu inevitável mal-estar. Nesse sentido, contemplam-se ensino,formação e transmissão da psicanálise. 8 O convite a pensar o sujeito, sua inserção na cultura e o sofrimento disso decorrente já estava presente em Freud, Lacan e outros que os suce- deram. Reiteramos o convite já enunciado e desejamos a todos uma ótima leitura! EDITORIAL TEXTOS 9 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.09-19, jul. 2013/jun. 2014 Resumo: O presente artigo aborda o conceito de desamparo no âmbito das vul- nerabilidades com que o mal-estar na cultura contemporâneo confronta o sujei- to, questionando a função do psicanalista e sua inserção no contexto institucio- nal e as intervenções possíveis no laço social dirigidas pela ética da psicanálise. Palavras-chave: desamparo, vulnerabilidades, ética da psicanálise, laço social, psicanálise em extensão. HELPLESNESS AND VULNERABILITIES IN THE SOCIAL TIE – THE FUNCTION OF THE PSYCHOANALYS Abstract: The present paper discusses the concept of helplessness in face of vulnerabilities with which culture and its discontents confront the subject, ques- tioning the function of the psychoanalyst in institutions and possible interventions in social ties guided by psychoanalytic ethics. Keywords: helplessness, vulnerabilities, psychoanalytic ethics, social ties, psy- choanalysis on extension. DESAMPARO E VULNERABILIDADES NO LAÇO SOCIAL – A FUNÇÃO DO PSICANALISTA1 Jaime Betts2 1 Versão ampliada do texto de abertura da III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Inter- venções Sociais – Desamparo e Vulnerabilidades, agosto de 2013, em Porto Alegre. 2 Jaime Betts; Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e Diretor Executivo do Instituto APPOA. Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes do processo criativo com Claudia Stern. Porto Alegre: Território das Artes, 2005; e (Re)Velações do Olhar – recortes do processo criativo com Liana Timm. Porto Alegre: Território das Artes, 2005. E-mail: jaimebetts@gmail.com 10 Jaime Betts Desamparo e Vulnerabilidades. Desamparo está no singular, pois se trata de um conceito metapsicológico e de uma condição estrutural primordial do ser humano. Já as vulnerabilidades são plurais, inúmeras, oriundas de ameaças que vêm de diferentes direções. Freud, em Mal-estar na civilização ([1929]1996), afirma que a infelici- dade e o mal-estar (e as situações de vulnerabilidade, potencialmente trau- máticas) chegam aos seres humanos de três direções: da fragilidade e do sofrimento do próprio corpo; do mundo externo e das forças da natureza; e das insatisfações ou da violência desencadeadas pelas relações com os outros. O mal-estar proveniente da relação com os outros, pondera Freud, tal- vez seja o mais penoso de todos eles. Quando somos atingidos por alguma dessas direções, a violência, a perda, a doença ou o catastrófico se articula com o desamparo primordial e somos confrontados de modo mais ou menos direto, com mais ou menos anteparos, com o trauma do real irrepresentável. Através da cultura/civilização/laço social3, procuramos fazer frente a esta condição de desamparo. Entretanto, o mal-estar da vida em sociedade é inevitável e nos defronta com inúmeras situações de vulnerabilidade em seu movimento permanente de conflito entre civilização e barbárie. Em to- das estas situações, o sujeito e o outro estão diretamente implicados, muito embora estejam frequentemente alienados dessa implicação, bem como de sua responsabilidade por suas escolhas e seus atos. Freud faz do estado de desamparo ̶ hilflosigkeit ̶ do bebê humano um conceito fundamental ao longo de sua obra, enfatizando-o como o protótipo das situações traumáticas. As situações tornam-se traumáticas e geradoras de angústia intensa no adulto, na medida em que o confrontam, no tempo presente, com a impotência de seu estado de desamparo infantil originá- rio. Nesse estado, sua vulnerabilidade é absoluta em sua dependência das atenções vindas de um outro cuidador, constituindo o que Freud denominou complexo do próximo (Freud, [1895]1976). O laço social com o outro cuida- dor está colocado desde os primórdios da constituição do sujeito. Entretanto, se o laço social com o outro cuidador está colocado desde o início, este laço só é possível por meio da linguagem, o que quer dizer que entre o sujeito e o outro está o Outro da linguagem, que Lacan ([1953]1998) denomina em certo momento de seu ensino como o muro da linguagem. 3 Faço aqui como Freud ([1927]1976) e não diferencio os termos, acrescentando o de laço social, forjado por Lacan. 11 Desamparo e vulnerabilidades no laço social... Soma-se à condição de imaturidade do infante humano o fato de que a linguagem também nos deixa desamparados, pois, ao não nos fornecer a palavra final, a palavra que finalmente recobriria perfeita e definitivamente o furo do real, somos confrontados com o impossível, o que nos remete ao desamparo primordial. O impossível em psicanálise é o real, que é impossí- vel de ser simbolizado. Como o desamparo infantil é uma condição estrutural, ele implica des- de o início uma abertura ao outro, ao outro cuidador, que interpreta os gritos e manifestações de desconforto e sofrimento do bebê como um apelo. Apelo que tem como resposta a significação sancionada pela interpretação dada aos mesmos pelo adulto. As significações atribuídas pelo adulto fornecem uma imagem do objeto de satisfação e seus traços são inscritos no corpo do bebê pelo dom materno da alternância de sua presença e de sua ausên- cia. Esta alternância simbólica de presença/ausência condiciona o funciona- mento das funções corporais intrincadas ao processo libidinal da montagem das pulsões que erogenizam o corpo, ao mesmo tempo em que constituem o lugar do sujeito nas relações de parentesco e no laço social. Esses encontros primordiais entre o bebê e o adulto se inscrevem como processo de desejo, fundando o laço social em torno do desampa- ro estrutural como desejo de desejo do outro. Sentir-se amado pelo outro, visto como um ser superior, representa inconscientemente uma proteção contra todas as ameaças. E a ameaça maior torna-se a da perda do amor ou a separação do ser protetor. A ameaça de ser abandonado ou de ser confrontado com a perda do ser amado remete o sujeito à sua condição de desamparo e impotência primordiais. E tudo isso se dá banhado num caldo de cultura que determina as diferentes configurações simbólicas e imaginá- rias do laço social em que os cuidados são ministrados. Nesse sentido, a cultura/civilização/laço social é substituta da função materna (Rassial, 2006) diante do desamparo, pois fornece, por um lado, meios simbólicos e imaginários de reconhecimento do que representa ao sujeito e reafirma sua identidade. Por outro lado, a cultura é herdeira do su- pereu parental, estabelecendo deveres morais e ideais do eu, bem como é herdeira da função paterna, pois permite que possamos ser criativos a partir do amparo materno diante do impossível, inventando novas formas de viver em sociedade. Ou seja, é em torno da experiência do desamparo que se constitui tanto o sujeito e sua posição no laço social, quanto o próprio laço social, pois cada qual se estrutura em torno do impossível. Cada língua viva constrói uma cultura específica para aqueles que a compartilham, construção que implica um laço social em que a violência simbólica que determina o que fica excluído da mesma se constitui como 12 Jaime Betts tabu. Imigrantes, exilados e refugiados – os estrangeiros, os diferentes, os de outra tribo – são alvos preferenciais da hostilidade e até mesmo do ódio de parte dos que são da cultura local. Por quê? Quando uma cultura entra em contato com outra, o que é tabu para uma não necessariamente é tabu para a outra. Quando o que é proibido de um lado é exposto pelo outro, o mal-estar se intensifica e a hostilidade se deflagra no laço social. Quanto mais se recusa a violência simbólica funda- dora de uma cultura e se atribui a mesma ao estrangeiro, mais a intolerânciase instala e a violência real eclode nos corações e mentes, na convivência dos estrangeiros para nós mesmos4. O capitalismo globalizado, marcado pela tendência à dissolução de vínculos e promoção de desigualdades nos espaços ocupados pelos grupos que se deslocam e cruzam fronteiras, vem realizar em escala planetária o mito da torre de Babel. Mito no qual a construção da torre (para além das interpretações de cunho religioso, trata-se de uma metáfora da construção da vida em sociedade) é interrompida pela confusão de línguas e da violên- cia desencadeada pela mesma, tornando o entendimento e o convívio, no conjunto de seus construtores, impossível. E ‘assim caminha a humanidade’5, criando por um lado novas formas de viver e de desfrutar a vida, assim como novas formas de destruição e barbárie. Frequentemente, diante da falta no Outro, referido anteriormente, de um significante definitivo, surge a figura de plantão de um mestre ou amo, que se acha dono da verdade e a quem se recorre em busca dessa ansiada e ilusória palavra final que poupe o confronto com o desamparo. As diversas formas de messianismo, tirania, colonialismo ou totalitarismo que são forjadas no laço social respondem de forma alienada e alienante a esse desamparo estrutural. Frente ao sofrimento subjetivo compartilhado no laço social cabe per- guntar: quais as intervenções possíveis e compatíveis com a ética da psica- nálise, quando se cruza a fronteira de uma língua? Diante das questões com que a diferença cultural confronta o laço so- cial contemporâneo – confronto intensificado com o incremento das migra- ções regionais e imigrações –, a regra que vigora de modo predominante nas comunidades culturais ao redor do mundo é etnocêntrica. Ou seja, é 4 Referência ao título do livro de Julia Kristeva, O estrangeiro de nós mesmos, lançado, no Brasil, em 1994, Ed. Rocco. 5 Alusão ao título do clássico do cinema de 1956, dirigido por George Stevens e estrelado por James Dean, Elizabeth Taylor e Rock Hudson. 13 Desamparo e vulnerabilidades no laço social... imposta ao estrangeiro uma escolha forçada de ser assimilado às regras e costumes locais, ou ser estigmatizado e excluído (o que é comum acontecer mesmo quando a assimilação se deu – o estrangeiro nunca será visto como um nativo, por mais que se esforce e renegue suas origens). O problema, tanto para o sujeito, quanto para o laço social, são as consequências psico- patológicas que a exclusão e a perda da língua e da memória trazem consi- go na alienação requerida pelas políticas de assimilação. Diferentemente de uma perspectiva de adaptação do sujeito ao contexto social, o discurso do analista implica permitir ao sujeito, através do recorte simbólico dos signifi- cantes que o representam para outros significantes – incluindo significantes da cultura de chegada –, construir socialmente sua inserção na comunidade local. E vice-versa, ou seja, o processo desencadeado pelo efeito sujeito de desejo implica que o sujeito da cultura local também possa se reconhe- cer em significantes que o representam para outros significantes, inclusive alguns da cultura estrangeira. O efeito sujeito de desejo, como veremos adiante, implica um reordenamento micro, por vezes macro, dos elementos do laço social – individuais, políticos e culturais. Nesse sentido, a clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise no âmbito da diferença cultural no laço social é: [...] um percurso que estuda o modo segundo o qual nossas cul- turas fazem trabalhar as figuras da origem e da alteridade, do es- tranho e do familiar, seus efeitos sobre as realidades das trocas das determinações identitárias, mas também a ressonância des- tes tratamentos da ‘identidade-alteridade’ sobre o real dos corpos (Douville, 2004, p.190). Segundo Lacan ([1970-1971]1992), o que faz laço social é o discurso (não desenvolveremos extensamente a sua ‘teoria dos quatro discursos’). Lembramos apenas que o discurso é uma estrutura linguageira que organi- za a comunicação e especifica as relações do sujeito com os significantes e com o objeto, sendo determinante para o sujeito e regulador das formas do laço social (Chemama, 1995). Ocorre, nesse sentido, que cada vez mais a violência no laço social contemporâneo é organizada pelo discurso capitalista e pelo discurso da ciência. No discurso do capitalista, o sujeito do inconsciente, sujeito de de- sejo, é visto exclusivamente segundo sua potência fálica de consumidor manipulável pelo marketing, alienável no gozo de consumo dos objetos ofer- tados. O discurso da ciência, por sua vez, se funda sobre a foraclusão do sujeito de desejo. O sujeito do enunciado é reconhecido, mas o sujeito da 14 Jaime Betts enunciação é foracluído. É o discurso do analista que vem recolher pela escuta o sujeito de desejo foracluído pela universalização que o discurso da ciência introduz, ou que o discurso do capitalista cala pela mercantilização do desejo com a oferta de consumo de toda sorte de objetos que fazem semblante ao obscuro objeto do desejo. O sujeito do enunciado pode ser universalizado através de um discurso que se torne suficientemente hegemônico para uniformizá-lo numa massa desumanizada que se identifica pela marca dos objetos que consome, e que facilmente entra numa luta de puro prestígio de vida ou morte com os portadores de uma marca diferente da sua, fenômeno de identificação ima- ginária descrito por Freud em Psicologia de grupo e a análise do eu (Freud, [1921]1976). Os campos de concentração e outras tantas formas contemporâneas de banalização do mal em nossas comunidades decorrem da desumaniza- ção, fruto da universalização introduzida pelo discurso da ciência, que exclui a singularidade do sujeito do desejo, assim como o aliena de sua implicação e responsabilidade por seus atos (Lacan, [1967]2003). Segundo Hannah Arendt (1963), os discursos totalitários alienam o sujeito, privando-o da ca- pacidade de pensar. O sujeito da enunciação, por sua vez, é sempre singular, contado um por um. A função do psicanalista é apontar o impossível, o que abre cami- nho para a simbolização da falta, dando lugar para o sujeito de desejo e minimizando as ilusões com que o laço social procura recobri-las. Em outras palavras, ser operador da psicanálise, seja em intensão, seja em extensão, é apontar na transferência quando surgem na fala os significantes que re- presentam o sujeito, um por um, para outros significantes, perfazendo o litoral com o impossível, permitindo que a capacidade desejante de pensar e criar advenha. A função da psicanálise em extensão é presentificar a psicanálise no mundo. A psicanálise em intensão presentifica a psicanálise através da clí- nica do sujeito individual, ou seja, preparando operadores da psicanálise, lembrando aqui a afirmação de Lacan, de que toda análise que chega a seu fim forma um analista, seja ele praticante ou não (Lacan, [1968]2003). O operador da psicanálise em extensão pode presentificar a psicaná- lise no mundo de diferentes maneiras, nos mais diferentes campos profis- sionais, mas será sempre um operador da psicanálise implicado no que faz, e nunca um aplicador da psicanálise que opera de modo selvagem fora de um laço transferencial. Cabe lembrar que o caminho que cada sujeito percorre no campo da psicanálise é sempre singular, e árduo, pois, no percurso analítico se trata 15 Desamparo e vulnerabilidades no laço social... de recortar nas múltiplas repetições sintomáticas os significantes que deli- mitam as bordas do impossível. O ato analítico do recorte significante do impossível conjuga também a desconstrução das identificações imaginárias que sustentam as certezas de um sujeito, bem como os significados estabelecidos na cultura aos fatos e às coisas, e a definição dos usos e costumes que regulam as relações so- ciais com que se procura recobrir o impossível. Nesse sentido, nas palavras de Douville: “laço social designa [...] o modo como uma coletividade mas- cara umafalta estrutural na relação do sujeito com o Outro” (2004, p.181). Qualquer que seja o campo de implicação do operador da psicanálise, o que deve predispor o psicanalista na clínica em extensão é o desejo do analista de escutar a prevalência do saber textual onde quer que se mani- feste. O inconsciente é um saber textual insabido pelo sujeito, pois precisa ser decifrado a partir de suas associações livres, para que os significantes (que representam o sujeito para outros significantes) possam ser identifica- dos. E o desejo do analista é o desejo de que surja a diferença, de que a falta estrutural (o impossível) em que advém, o sujeito de desejo seja reco- nhecido através dos seus significantes no laço social. A diferença é produzida pelo real que não cessa de não se inscre- ver (Lacan, [1972-1973]1982), fazendo hiato entre S1 e S2. Presentificar a psicanálise no mundo é presentificar a ética do desejo no laço social. A inclusão do sujeito de desejo no laço social resulta no estabelecimento da inscrição de uma falta no Outro, e marca um processo singular, diferencia- do, para cada sujeito, mesmo estando entre outros, por fazer parte de uma equipe ou de um coletivo. Cabe ao operador da psicanálise apontar o impossível ali onde é reco- berto pelas identificações imaginárias que sustentam as diferentes formas de alienação, exclusão e dominação no laço social, nas quais o sujeito do desejo é rejeitado, forcluído, submetido ou alienado. A clínica em extensão quase sempre se caracteriza por ser uma clínica entre vários e, portanto, como clínica inserida num contexto institucional multiprofissional. Quando um operador da psicanálise – alguém atraves- sado pela ética da psicanálise – se encontra inserido num contexto institu- cional, como se posicionar? A questão que se coloca nessa circunstância é como o discurso do analista (e seu operador) se insere na instituição sem se dissolver nos discursos que fundam e/ou circulam na instituição? Fre- quentemente, como último recurso, o analista fica isolado em seu canto, atendendo seus pacientes. Outra situação relativamente comum nas instituições é de o psicana- lista ocupar algum cargo administrativo ou de direção ou coordenação. E 16 Jaime Betts aí a questão é como exercer o cargo e suas responsabilidades e também operar a função de psicanalista? Com relação a isso, cabe lembrar que, sempre que o reconhecimento dos significantes da emergência do sujeito no contexto institucional ocorre, há certo efeito – salutar, diga-se de passagem – de desorganização das regras institucionais estabelecidas. Os enunciados institucionais dão lugar à enunciação singular de vozes plurais. Abre-se uma fresta de reorgani- zação das regras postas pelo poder instituinte da emergência do efeito sujeito de desejo. Por vezes, o efeito se limita ao sujeito em questão e seu laço social com os colegas. Mas há momentos fecundos, em que o recorte de significantes, chave do saber textual, que subjaz às regras, permite que as mudanças institucionais aconteçam. Nesse sentido, em Instância da letra, Lacan ([1957]1998) coloca: “É que ao tocar, por pouco que seja, na relação do homem com o significante [...] altera-se o curso de sua história, modificando as amarras de seu ser” (p.531). Um exemplo comum nas instituições é o das equipes multiprofissio- nais, nas quais o operador da psicanálise se encontra inserido. Nas equi- pes multidisciplinares, cada profissional aborda a questão trazida pelo su- jeito desde o ângulo específico de sua disciplina, geralmente não levando em consideração as intervenções dos demais profissionais. E a posição do sujeito, objeto das intervenções, tampouco é levada em consideração, pois caberá a ele juntar os pedaços de cada recorte disciplinar a que é submetido. É o próprio sujeito que se vê desamparado diante do fato de ser dissecado por cada especialista. Geralmente não é abordado como uma pessoa, que pode precisar de intervenções de diferentes especialida- des, mas que seja levado em conta como sujeito de desejo. A lógica que vigora no contexto predominante da multidisciplinarida- de é de que o sujeito é que deve se adaptar ao modo de funcionamento de sobreposição das especialidades (seja na educação, na saúde mental, ou outro campo) e não a abordagem da equipe levar em consideração a sin- gularidade de seu caso, o que deveria ser o ordenador das intervenções das diferentes especialidades. Para que a prática clínica psicanalítica em contextos institucionais – por exemplo, da atenção educativa numa escola, da atenção à saú- de mental de um CAPS, ou do atendimento hospitalar – possa poupar o sujeito que os procura de ser esquartejado pela multidisciplinaridade dos profissionais das diferentes disciplinas agindo em paralelo em relação aos demais, o operador da psicanálise pode intervir no sentido de buscar que o funcionamento da equipe seja regido numa perspectiva interdisciplinar, e, num segundo tempo, como equipe transdisciplinar (Pais, 1996). 17 Desamparo e vulnerabilidades no laço social... Segundo Pais (1996), uma equipe interdisciplinar se caracteriza por uma concepção de sujeito compartilhada por todas as disciplinas implica- das na mesma, viabilizando uma comunicação entre as disciplinas. Essa concepção é construída a partir do cotejo das diferenças no marco da pro- dução teórico-clínica de cada especialidade, permitindo que adquiram sen- tido umas em relação às outras. Trata-se de uma conquista importante no funcionamento de uma equipe, pois é condição necessária para que sua prática clínica possa chegar a ser transdisciplinar. Uma prática clínica transdisciplinar se alcança, conforme o autor, quan- do a equipe, além da comunicação interdisciplinar, opera a partir de uma concepção ética comum. Ou seja, quando uma equipe tem como referência ética o conceito de sujeito de desejo (Pais, 1996). E, por isso, toma sempre o caso a caso em sua singularidade no laço transferencial. Tomar caso a caso em sua singularidade no laço transferencial deve ser o ordenador das intervenções das diferentes especialidades, para além das rivalidades ou disputas de prestígio de cada disciplina dentro do contexto institucional. A construção de um funcionamento transdisciplinar não é pouca coi- sa, e nem é fácil, pois ao incluir o sujeito de desejo, o instituído é posto em questão, dando lugar à palavra humanizante, o que implica, como foi dito acima, certa desorganização das regras da instituição e das formas de interação dentro da equipe multiprofissional. Voltando ao tema do operador da psicanálise que trabalha em insti- tuições, situar sua função implica verificar como o discurso do analista se insere na instituição em relação aos demais discursos vigentes na mesma, bem como questionar sempre o posicionamento do operador da psicanáli- se diante das regras institucionais. O reconhecimento dos significantes que representam o sujeito opera- do pelo discurso do analista implica certo questionamento que surpreen- de e provoca uma salutar desorganização das regras instituídas, ou seja, desencadeia um efeito de “oxigenação” do laço social dentro do contexto instituído, por provocar certa descontinuidade, tanto com o que é esperado implicitamente no modo de funcionamento da instituição, quanto explicita- mente em seu planejamento. O paradoxo da posição do operador da psicanálise cuja prática está inserida no contexto das instituições implica, de um lado, o reconhecimen- to do que legitima a ordem instituída na qual se encontra, e, por outro, sustentar o efeito sujeito de desejo que o ato analítico implica, e a ruptura decorrente com a ordem instituída. A ética da psicanálise implica permitir uma abertura no laço social insti- tuído para o advento do sujeito. Se a ética da psicanálise se define por uma 18 Jaime Betts ética do bem dizer do desejo, a mesma está disjunta da moral do serviço dos bens, assim como da moral universalizante da saúde e do bem-estar decorrentes da medicalizaçãodo cotidiano. Levando em consideração o que foi dito acima, o operador da psica- nálise, ou seja, agente do discurso do analista, seja na clínica em intensão, seja na clínica em extensão, deve levar em consideração três operadores da leitura do saber textual em sua escuta e intervenções (Brousse, 2003): Primeiro: o Outro é barrado, ou seja, não existe palavra final sobre o que quer que seja. O que quer dizer que as suposições de saber instituídas (e seus mestres de plantão) podem ser interrogadas; Segundo: sustentar esta abertura à fala do sujeito implica que o opera- dor da psicanálise suporte o sujeito-suposto-saber na relação transferencial em que o sujeito endereça seu sintoma, ao mesmo tempo em que questiona o sintoma institucional no qual se encontra inserido e no qual seu gozo está de algum modo implicado; Terceiro: O sujeito barrado ($), o sujeito do inconsciente enquanto sa- ber textual e não referencial, que emerge na fala do sujeito na relação trans- ferencial, marcado pelos significantes de sua história e cultura, questiona o saber referencial instituído no laço institucional pelos “especialistas” de plantão. O desamparo e as múltiplas vulnerabilidades no laço social colocam um desafio para a clínica da psicanálise em extensão. Lacan tinha a ex- pectativa de que o discurso analítico pudesse fundar um novo laço social, em que o sujeito de desejo pudesse ser escutado e reconhecido em seus significantes. Estaremos à altura do desafio? REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém [1963]. São Paulo: Companhia das Le- tras, 2000. BROUSSE, M-H. 4 menos 1. Cuadernos de Psicoanálisis: Revista del Instituto del Campo Freudiano en España. Bilbao, n. 27, jan. 2003. p.37-40. CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. DOUVILLE, Olivier. Uma melancolização do laço social? Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro: v. VII n. 2 jul/dez 2004.p.179-201.Disponible em: http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516- FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica [1895]. In: ______. Obras completas, v. I, ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.381-517. FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e a análise do eu [1921]. In: ______. Obras completas, v. XVIII, ESB. 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THE DESIRE OF THE PSYCHOANALYST IN THE FACE OF CONTEMPORARY DISTRESS Abstract: This article address the desire of the psychoanalyst in face of contem- porary distress. It provides a brief overview of the major social and political trans- formations throughout the century, as well as those occurred within psychoanaly- sis as theory and therapy. It highlights the importance of the analyst´s creativity in welcoming the fundamental experience of the human condition that is distress. Keywords: desire, psychoanalysis, distress, psychoanalyst, contemporaneity. O DESEJO DO PSICANALISTA FACE AO DESAMPARO CONTEMPORÂNEO Caterina Koltai1 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.20-31, jul. 2013/jun. 2014 1 Socióloga; Psicanalista; Professora aposentada da graduação e pós-graduação da PUCSP. Autora de Política e Psicanálise: O Estrangeiro (Ed. Escuta 2000) e Totem e tabu: um mito freudiano (Ed. Civilização Brasileira, 2010). E-mail: catykoltai@yahoo.com.br 21 O desejo do psicanalista... O desejo do psicanalista face ao desamparo contemporâneo É sempre difícil transformar uma conferência num texto publicável, razão pela qual opto aqui pelo caminho mais fácil, tentando fazer rimar os três termos presentes em meu título: desejo do analista, desamparo e contem- poraneidade. Comecemos pelo desejo, desejo do analista que remete a Freud e ao seu desejo singular, que Lacan acabou teorizando, transformando-o no verdadeiro fundamento do tratamento psicanalítico. Renovou, desse modo, a abordagem da prática analítica então vigente, subordinando a questão técnica à questão ética decorrente da descoberta do inconsciente. Entendo o desejo do analista tal qual formulado por ele no seminário 7, o da ética (Lacan, [1959-1960]1988), como uma consequência lógica de seu questio- namento da ética do soberano bem, tal qual vinha sendo formulada de Aris- tóteles a Kant, face à modificação aí introduzida pela descoberta freudiana. O desejo do analista remete tanto ao particular de uma análise, na qual o analista tem que sustentar a demanda que lhe é endereçada, quanto ao mundo em que vivemos. É o que me permite afirmar que não podemos nos furtar a relacionar o inconsciente freudiano com as transformações sociais e históricas do mundo contemporâneo, uma vez que não podemos esquecer que, além de uma terapêutica do sujeito, a psicanálise é também uma teori- zação da relação desse sujeito com o mundo em que vive. Qual seria o desejo do analista em nossa contemporaneidade, num mundo em constante transformação, que levou o prêmio Nobel Illya Prigo- gine (2000) a afirmar estarmos perante uma grande bifurcação, fruto das três revoluções contemporâneas: a econômica, a numérica e a genética, da mesma grandeza daquela que, há doze mil anos atrás, nos fez passar do paleolítico ao neolítico, substituindo o nomadismo pela cidade, a oralidade pela escrita, a horda pelo Estado. As mudanças são sem dúvida grandes e constantes, mas nem por isso precisamos dar crédito aos que anunciam o fim do mundo, basta que aceitemos os atuais desafios. Para responder a essa pergunta, permitam à judia errante que sou uma pequena viagem no tempo, com duas paradas: a primeira na Viena de Freud, onde, como lembra Roudinesco (1999), prevaleciam a família patriar- cal, a soberania monárquica e o culto da tradição. A segunda, na França do pós guerra, na qual, sempre segundo a autora, dominava o estado de direito marcado pelo culto de uma república universalista e igualitária, e onde La- can lançou seu retorno a Freud. Em Viena, o fundador da psicanálise, médico de formação, elaborou uma teoria que foi a primeira a postular a natureza sexual do indivíduo. Ao 22 Caterina Koltai mesmo tempo, criou um método, o da cura pela palavra, curando lá onde a medicina fracassara, através de um processo em que o analisando é convi-dado a associar livremente e o analista a deixar flutuar sua atenção, suspen- dendo todo julgamento moral para que o infantil, o sexual e o cruel, amorais por definição, possam comparecer. Com o passar do tempo, acabou esta- belecendo uma distinção entre o cobre da sugestão direta e o ouro puro da psicanálise, afirmação que alguns entenderam como uma recomendação para deixar de lado o terapêutico da psicanálise. Quero dizer desde já que não me reconheço nesses que assim pensam, visto que, a meu ver, a psica- nálise longe de ser uma busca filosófica ou mística, ou uma viagem interior, é e continuará sendo uma psicoterapia, não necessariamente praticada por médicos. Ao mesmo tempo, ela não se restringe a isso, deve ser entendida, também, como uma tentativa de encontrar outra via para o espírito, alargan- do os limites do pensável autorizado para um indivíduo numa determinada sociedade. Não fosse assim, por que alguém procuraria uma análise num mundo que oferece tantas outras formas de psicoterapia? Respondo a minha própria pergunta, afirmando que é quando o sujeito se depara com uma irrupção do real, com um sofrimento do qual nem os medicamentos, nem a vida familiar, nem a companhia dos amigos pode dar conta que costuma recorrer a uma análise, para tentar entender a comple- xidade de sua relação consigo próprio e com o mundo, visto que, concomi- tantemente à natureza sexual, Freud postulou também a natureza relacional do indivíduo, obrigado a manter uma relação vital com os demais humanos desde o início de sua vida. Tal fato o torna um ser histórico, depositário da própria história, o que explica que o tratamento da alma proposto por Freud tenha aberto um novo campo para a apropriação subjetiva. A tarefa nem sempre é fácil, e não por acaso Freud nos alertou para o fato de que, assim como educar e governar, psicanalisar também é uma profissão impossível, o que não o impediu de passar a vida analisando, só parando em 39, pou- cas semanas antes de sua morte. Como chamar a isso, se não desejo de analista? Ao recorrer a um analista, o sujeito faz a aposta de que, ao dizer, falar e interrogar um sofrimento que lhe pertence e o constitui, este poderá ser acolhido. E, ainda que ele seja o único juiz de seu percurso subjetivo, cabe ao analista tomar parte ativa nesse processo e tomar para si a responsabili- dade de uma abertura. A escuta flutuante e a neutralidade benevolente não me parecem suficientes, o analista precisa se deixar afetar por aquilo que ouve, até porque só falamos quando nos sabemos realmente escutados. Como diz Levallois (2007), para que um analisando possa se apropriar de sua história e assumir a responsabilidade pela sua vida, deixando aflorar 23 O desejo do psicanalista... seus pensamentos recalcados, é preciso que o analista aceite se deixar surpreender. Minha segunda parada é a França da segunda metade do século XX, na qual Lacan ofertou, não mais a cura e, sim, um novo saber scilicet – você pode saber – sustentado por novos conceitos. Num momento em que a psicologia do ego reinava soberana e pretendia transformar a clínica psi- canalítica numa particularidade da clínica médica, visando a uma melhor adaptação do indivíduo à sociedade, sua proposta de retorno a Freud reno- vou teoria e clínica, antes de vir a ser corroída pelo vírus da ideologização, que ele foi o primeiro a denunciar. No que diz respeito a sua obra, duas pontuações me são necessárias: A primeira é o seu aforismo, de que o inconsciente é o social, com o qual postula uma transindividualidade primordial, através da qual o sujeito é, por definição, marcado pela história. Podemos constatá-lo em Função e campo da palavra (Lacan, [1953]1966), onde define o inconsciente como “essa parte do discurso concreto enquanto transindividual que não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (p. 258) ou, logo a seguir, quando afirma que “o inconsciente é esse capítulo de minha história que está marcado por um branco ou ocupa- do por uma mentira: é o capítulo censurado, mas que a verdade pode ser reencontrada na maioria das vezes, estando inscrita alhures” (p.259). Minha segunda pontuação diz respeito à distinção que ele estabeleceu entre necessidade, demanda e desejo, com a qual chamou nossa atenção para o desejo enquanto motor da atividade humana, definindo-o como de- sejo do Outro. Afirmar que o desejo é desejo do Outro significa que o objeto do desejo não responde a nenhuma necessidade, não é da ordem da na- tureza e, sim, da cultura. O desejo faz a ponte entre o coletivo e o singu- lar, tanto que creio poder afirmar que a revolução, acontecimento coletivo por excelência, assim como o sonho, acontecimento psíquico singular, são provocados pelo desejo. Ambos não respondem a nenhuma necessidade, ainda que a reivindicação da maioria das revoluções seja a satisfação das necessidades. Com seus novos conceitos, Lacan abriu um novo campo de pensa- mento, o que não o impediu de nos alertar, como Freud fizera antes dele, para as dificuldades do exercício da psicanálise, insistindo no fato de que ela precisava ser reinventada com todo novo analisando, e a cada nova sessão. E nem poderia ser diferente, visto que a clínica psicanalítica requer algo diferente da mera teoria, um algo que se adquire de modo sempre diferente, enraizado no inconsciente do analista. Desemboca, ou pelo me- nos deveria desembocar, num estilo próprio, fruto de um percurso sempre 24 Caterina Koltai único e singular. Assim como Freud, Lacan também atendeu até o final da vida, e isso apesar de uma longa doença cujos sinais já vinham se fazendo sentir há bastante tempo. Mais uma vez, como chamar isso senão desejo de analista? Mas esses foram os tempos áureos da psicanálise. Hoje em dia a psi- canálise vem sendo contestada pelas neurociências e demais terapias cog- nitivas, e parece ter perdido um pouco de seu antigo charme, fazendo com que os psicanalistas se sintam, a meu ver, desnecessariamente acuados. Não vejo razões para lamúrias, como tampouco me parece uma boa ideia fazer coro à ladainha de que não existem mais verdadeiras demandas de análise, de que cada vez mais nos deparamos com pacientes inanalisáveis, com sujeitos sem gravidade e outros acusações do gênero, em que o réu é sempre o analisando. Gostaria de poder aproveitar essa crise de modo mais produtivo, questionando o que nós analistas temos a ver com o que está acontecendo e qual a parte que nos cabe nessa “suposta” crise da psicaná- lise. Como bem lembra Zygouris (2007), a luta pela sobrevivência costuma ser fonte de criatividade, o que me faz esperar que talvez possamos apro- veitar essa conjuntura, até certo ponto desfavorável para a psicanálise, e seguir o exemplo de nossos ilustres antepassados: ousar inovar, visto que o desejo do analista, entendido como um desejo de saber sobre a relação de desconhecido e um poder curar de outra maneira, me parece continuar presente. Confesso que faço parte dos que ainda veem a psicanálise, esse discurso antitotalitário por excelência, como uma das grandes aventuras possíveis em nosso mundo, à condição que ela resista a se deixar globalizar falando uma única e só língua. Dito isso, qual é meu desejo de psicanalista? Qual é a psicanálise que desejo e posso praticar hoje em dia com os pacientes que me procuram, le- vando em conta as mutações históricas do laço social e seus efeitos sobre a economia psíquica do sujeito, e tendo em mente que, a meu ver, hoje como ontem, a tarefa do analista continua sendo a de lidar com o desamparo? Tema deste encontro, o desamparo remete a essa experiência inevitá- vel e inerente à condição humana, a de se ver lançado no estrangeiro, numa dependência absoluta ao outro e confrontado ao enigma de seu desejo. Para designar o que é um verdadeiro ato de nascimento do sujeito, Freud recorreu ao termo do alemão corrente Hilflosigkeit, sem transformá-lo em conceito. Como salienta Lebovici (2012),Hilflosigkeit é, como na maioria das vezes na língua de Freud, uma palavra do alemão cotidiano, compre- ensível por todos, até mesmo por uma criança. Ela nos remete à questão crucial da dor original, dor sem a qual o infans não seria levado a estabe- lecer uma relação com o outro humano. Não é um conceito e, sim, uma 25 O desejo do psicanalista... noção sobre a qual o criador da psicanálise fez repousar nada menos que a causa do laço com o Outro, noção entendida aqui como aquilo que se situa no registro do elementar e do fundamental. Em alemão, o sufixo keit, cujo equivalente não existe, segundo a autora, em francês, e que eu saiba nem em português, exprime um estado, o de ser desprovido (los) de ajuda (hilflos). E é exatamente esse o estado do infans quando vem ao mundo em sua total dependência para com seu primeiro Outro, tendo que fazer face à opacidade de seu desejo. A língua alemã entra em cheio no universo da infância, visto que a pala- vra hilflos convoca imediatamente o universo dos contos em que as crianças se perdem ou são abandonadas na floresta profunda. A definição freudiana do desamparo prossegue em direção ao mal-estar que decorre daquilo que o sujeito vive como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o outro e com o mundo, obrigando-o a defrontar-se com inúmeras situações de vulnerabilidade que evidenciam o eterno conflito entre civilização e bar- bárie, que atravessa tanto o processo individual quanto o civilizatório. Esse conflito, estrutural e não meramente conjuntural, se torna mais claro se pensarmos, como faz Zygouris (2010), com quem concordo, que existem sintomas, sofrimentos, infelicidades que remetem diretamente às competências daquilo que ela chama de espécie humana, entre as quais ressalta a crueldade e a competência ao assassinato sem nenhuma ne- cessidade vital para tanto. Essa competência não é apenas a transgressão individual de um tabu, é um impulso assassino que, ao se propagar em cer- tas circunstâncias por demais recorrentes, desemboca nos massacres em massa. Por outro lado, temos a pulsão generosa da espécie, que pode ser atribuída a Eros, do qual talvez o melhor exemplo seja o dom. Barbárie e genocídio são, portanto, características humanas para as quais Freud nunca deixou de nos alertar, tanto que, no prefácio de seu úl- timo livro, Moisés e o monoteísmo ([1939] 2006), chama novamente nossa atenção para o pacto firmado entre progresso e barbárie. Felizmente não viveu o suficiente para conhecer o ápice dessa barbárie, os campos de ex- termínio para os quais foram mandadas e morreram duas de suas irmãs. Lacan (1967) será o primeiro a fazer uma análise freudiana da herança de Auschwitz, esse acontecimento maior, individual e coletivo, posterior à me- tapsicologia freudiana, que, segundo Zaltzmann (1999), marcou o desmoro- namento da civilização em sua função de defesa do indivíduo contra o reino da morte. A partir de então, esse desmoronamento passou a fazer parte da herança da realidade humana. Ao tirar importantes conclusões da subversão operada pelos campos de extermínio, Lacan (1967) pode afirmar que, longe de serem um acidente 26 Caterina Koltai monstruoso, os campos deveriam ser vistos como precursores de um pro- cesso desencadeado pelo remanejamento dos grupos pela ciência. Esta- va coberto de razão, e sua percepção vem sendo corroborada tanto pela realidade quanto pelos interessantes estudos de Agamben (1997 e 1999), para o qual o campo de extermínio deixou de ser um fato histórico, uma anomalia do passado, para se tornar a matriz escondida do espaço político em que vivemos. Ao introduzir um traço específico, o da impossibilidade de recurso a uma lei, que ocuparia o lugar de terceiro, ele se tornou o fenôme- no emblemático de nossa modernidade. Nos campos, a vida foi reduzida a algo puramente degradável, e o humano definido como alguém passível de ser assassinado e morto sem que sua morte seja vista como transgressão e seu assassinato punido. Um dos objetivos dos nazistas foi o de tornar a humanidade irreconhecível, de modo que os restos dos corpos deixassem de ter qualquer semelhança humana e viessem a ser usados como material de construção. No projeto nazista, o que estava em jogo não era o mero assassinato, da ordem do humano e, sim, fazer desaparecer o que era hu- mano, o que explica a importância de privar o outro de sepultura, daquilo que entre os humanos permite a sobrevivência de um humano em outro humano. Tanto Lacan (1967) quanto Agamben (1997 e 1999) nos ajudam a en- tender que, apesar do horror da Shoah, e da recorrente afirmação do Isso nunca mais, a violência extrema não só persiste, como vai se declinando sempre de novas maneiras, atingindo sempre os mais vulneráveis, e isso sessenta anos após a elaboração em grande pompa da Declaração dos Direitos Humanos, como se ela tivesse que caminhar pari passu com sua sistemática violação; como se nada viesse fazer barreira a essa vertigem do mal, termo que retomo de Michela Marzano e Jacques Saint Victor (2008), na apresentação que escreveram para um numero especial da revista Cité. Neste texto, lembram que toda vez que esquecemos a fragilidade e a fini- tude da condição humana e passamos a impor ideais, em nome da fé, do progresso ou da razão, o resultado é sempre da ordem da barbárie, como pudemos comprovar ao longo da história. Só posso concordar com eles, quando lembro que foi em nome de Deus e do bem que a Santa Mãe Igreja, durante a Inquisição, se julgou au- torizada a queimar os heréticos e a expulsar Satã do corpo das possuídas. Foi em nome dos ideais de certo darwinismo social que as primeiras leis eugenistas autorizaram a eliminação dos atingidos por uma deficiência, e em nome dos ideais veiculados pelas teorias biológicas e raciais sobre a pureza do sangue que o Estado moderno se autorizou a massacrar judeus, ciganos, armênios e tútsis. Foi, ainda, em nome do bem soberano do Estado 27 O desejo do psicanalista... que os totalitarismos eliminaram os dissidentes, mandando-os para campos de trabalho, para serem “reeducados”. Como entender essa vertigem do mal sem pô-la em relação com a banalidade do mal num momento em que temos Hanna Arendt2 nas telas? Ela demonstrou que, para se tornar um assassino profissional, não é preciso nem sadismo nem fanatismo, basta aptidão profissional para tanto. Ao des- crever Eichmann como um homem banal e até certo ponto cômico, em nada demoníaco ou monstruoso, um perito ou especialista como era chamado, totalmente desprovido de pensamento, um funcionário do nada, que se via como mero cumpridor de ordens, ela apontou para o infinito das possibili- dades do humano. Ele agia em conformidade com a lei e era obediente, de uma obediência que ele próprio definiu como obediência de cadáver. Pensar a banalidade do mal, a terrível, indizível banalidade do mal, nos diz Zimra (2005), significa pensar a desintegração de uma sociedade que perdeu sua capacidade de pensar, deixando-se reduzir a uma engrenagem da mecânica da morte. Aqui a banalidade do mal assume os traços do coti- diano, de uma normalidade aterrorizante, de um homem que se contenta em obedecer às ordens, mandando para a morte homens, mulheres e crianças. Foi esse homem que constitui para Arendt ([1963]1991) o protótipo de hu- manidade produzida pelo nazismo, um alguém que perdeu toda faculdade crítica, toda capacidade de pensamento e julgamento, incapaz de distinguir em seus atos o bem do mal, o humano do desumano. No que acabo de pontuar, dois significantes são importantes para dar sequência a minha exposição, a saber: obediência e perícia. Entendo aqui obediência no sentido da servidão voluntária, tal qual definida por La Boétie (1999), servidão essa que me parece ser uma das formas do mal-estar con- temporâneo. Paturet (2013) me parece ir nessa mesma direção, ao ressaltar que, apesar de a cultura ocidental moderna veicular a imagem de um ho- mem livre, o humano raramente é esse ser desejosode liberdade que não suporta viver numa gaiola, ainda que dourada. O que ele constata é que, ao longo da história, o homem se submeteu aos mais diferentes poderes, justamente pelo fato de a servidão ser voluntária. O poder de dominação se funda sempre sobre uma crença, e cada sociedade inventou as suas. Nossa 2 Hannah Arendt. Direção: Margarethe Von Trotta. Produção: Heimatfilm, Amour Fou Luxem- bourg, MACT Productions. Germany, Israel, Luxembourg, France. 2012. 113min. Dolby digital, color black and White, Formato: DCP. 28 Caterina Koltai época procura sua legitimidade na competência e na perícia, que vêm se transformando nos significantes mestres do discurso político, médico e eco- nômico contemporâneo, principalmente por se pretenderem neutras, visto que são veiculadas numa linguagem técnica, numérica e informatizada, as- pirando eliminar a polissemia e a polifonia da língua, que expõe o humano ao equívoco e à incerteza. O homem contemporâneo acredita poder se li- vrar do inconsciente, esse estraga prazeres, que trai o ideal de controle e prevenção. Mas, como se livrar daquilo que nos escapa, os sonhos que so- nhamos, os lapsos e atos falhos que cometemos e os sintomas e repetições que nos interrogam? Esse mundo da perícia é uma manifestação da sociedade de contro- le, em que a biopolítica, conceito foucaultiano, aprofundado por Agamben (no conjunto da sua obra), suplantou a política, e na qual a vida vai sen- do progressivamente reduzida ao bios e posta a serviço da rentabilidade, performance, economia e gestão. Como salienta Zimra (2005), no mundo globalizado e uniformizado que vivemos, a guerra, a economia, a política e a cultura formam um biopoder no qual capital e soberania se confundem. A globalização inaugurou uma nova era, quando as fronteiras foram aparen- temente abolidas e as relações de dominação reformuladas no sentido de uma maior abertura ao mercado. Quanto ao homem da globalização, pas- sou a vivenciar uma nova servidão, na qual só consegue pensar o futuro em termos de cálculo, controle, medição, reduzindo-se, como diria Musil, a um homem sem qualidades. Falando em globalização, gostaria, antes de terminar, de enfocar o fe- nômeno migratório planetário que ela vem pondo em marcha, assim como a segregação que o acompanha. O enfoque ocorre não só porque é um tema que me é especialmente caro, mas também por considerar o refugia- do como um dos símbolos do desamparo contemporâneo. Se recorro aqui ao refugiado como metáfora do desamparo é porque, assim como acon- teceu no entreguerras, os refugiados me parecem representar novamente um fenômeno de massa que, tanto os organismos internacionais quanto os diferentes países, não sabem como enfrentar, transferindo o problema, como bem lembrou Agamben (1994), para as organizações humanitárias, e principalmente para a polícia. E isso se dá, segundo ele, porque o refugiado representa na estrutura do Estado-nação um elemento inquietante, na me- dida em que rompe a suposta identidade entre o homem e o cidadão, entre naturalidade e nacionalidade, pondo em xeque a ficção originária da sobe- rania. É justamente por romper a antiga trindade Estado-nação-território, que o refugiado vem se tornando a figura central da nossa história política contemporânea. Traído por seu país de origem, onde sua sobrevivência se 29 O desejo do psicanalista... tornou inviável, o refugiado se vê obrigado a pedir asilo ou entrar clandesti- namente num outro país cuja língua, na maioria das vezes, não fala e cujos hábitos desconhece. O sofrimento do refugiado, que tomo aqui como símbolo de todo aque- le que foi exposto a alguma forma de violência do estado, tem, a meu ver, uma característica própria: a sensação de ter deixado de pertencer à “espé- cie humana”, visto que sua vida deixou de ter valor para os demais. Acom- panhamos planetariamente barcos de refugiados superlotados que tentam aportar nas costas da Itália ou da Espanha e que, no pior dos casos, são deixados à própria sorte, sem que uma mão os impeça de se afogarem, e, no melhor dos casos, são salvos do naufrágio para serem internados em campos. Os que se dispõem a escutá-los sabem que existe uma especifici- dade nessa clínica, tanto na escuta quanto na direção do tratamento. Face a alguém que perdeu a confiança no outro e na palavra, que vive no terror de ser mandado de volta para o lugar de onde fugiu e corria risco de vida, o analista precisa demonstrar uma curiosidade e um investimento explícito. Precisa manifestar claramente seu desejo de analista, para que esse sujei- to possa voltar a sentir que ele pode interessar a alguém e elaborar a dor da perda da pátria, da língua materna e do lugar onde seus antepassados estão enterrados. Essa clínica engaja o analista, como bem salientaram Da- voine e Gaudillière (2006), a estar em permanente contato com sua própria história, inclusive no que diz respeito aos exílios e guerras que possam ter marcado sua história pessoal. Face ao desamparo, somos obrigados, como lembrou Fedida (2002), a imaginar aquilo que o outro diz ou pensa ser inimaginável, porque ser in- capaz de imaginar é negligenciar que isso possa ter acontecido. O analista, a quem o sujeito frequentemente se dirige quando a pulsão de destruição, ou de autodestruição, se sobrepõe ao desejo, precisa poder imaginar o que é da ordem da destruição e do horror vivido pelo paciente, e que este não tem como questionar. O analista precisa poder imaginar o que o outro viveu, precisa poder construir, o que não significa reconstruir. Certos pacientes vivem e expressam tamanho sofrimento que nos levam de fato ao limiar do inimaginável. Em tais casos não se trata de nos lançarmos na empatia do horror, mas de termos a possibilidade de saber no que aquilo que é horrível desfaz nossas próprias representações. A capacidade de imaginar é ne- cessária ao analista, pois é quando se dispõe a isso que pode vir a abrir a porta do sentido numa fraternidade discreta, na medida que analista e ana- lisando ocupam lugares assimétricos, assimetria necessária para que haja hospitalidade. Cabe ao analista abrir sua psique para que o outro a habite temporariamente, pois um espaço psíquico povoado de medo, apreensão 30 Caterina Koltai e solidão só pode vir a se tornar um lugar habitável pelo intermediário do espaço psíquico do analista. Retorno ao início e à minha questão do desejo do analista face ao de- samparo na nossa contemporaneidade, para fazer minhas as palavras de Zaltzman (1997), quando ela afirma que a tarefa da psicanálise é a de tratar do sujeito enquanto sujeito da condição humana, como emissário de uma realidade psíquica que é a dele e do conjunto de humanos que faz dele aqui- lo que ele é. Uma análise nesse sentido tem a ver com o rochedo daquilo que constitui a realidade do humano. Para que isso aconteça, precisamos, a partir do que nos ensinaram nossos mestres, reinventar nossas práticas e aceitar, apesar de mal visto, sermos analistas terapeutas, sem que isso signifique transformar a análise numa mera terapêutica da compaixão. Devemos nos implicar nas análises tanto quanto nossos analisandos, e não deixá-los sozinhos face a seus dis- cursos, para que possam se servir desse espaço singular reinvestindo nas pulsões de vida. Para tanto, e para concluir, diria com Zygouris (2013) que, para ser analista é preciso saber dar boas risadas, ter humor e não temer a solidão. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Au délà des droits de l´homme; exil et citoyenneté européenne. Tu- multes, n.5, nov.1994 –Figures de l´étranger –L´Harmattan. AGAMBEN, G. Homo sacer, le pouvoir souverain et la vie nue. Paris: Seuil, 1997. AGAMBEN, G. Ce qui reste d’Auschwitz. Paris: Éd. Payot, coll. Bibliothèque Ri- vages, 1999. ARENDT, H. Eichmann à Jérusalem: rapport sur la banalité du mal [1963]. Paris: Gallimard, 1991. DAVOINE F.; GAUDILLIERE J.M. Histoire et trauma. Paris: Ed. Stock, 2006. FEDIDA, P. Humain/déshumain. Paris: PUF, 2007. FREUD, S. Moisés e o monoteísmo(1939 [1934-38]). In: ______. Obras psicológi- cas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. 23. LACAN, J. Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse [1953]. In: ______. Écrits. Paris: Seuil,1966. LACAN, J. 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AN IMPOSSIBLE MOURNING: effects of trauma in imigration Abstract: This paper discusses the effects that influence different imigrations, using the Lacanian propositions involving castration, frustration and privation. It unfolds the relationship between trauma and injury as an impossibility of welcom- ing the immigrant, and situates the questioning regarding the subject’s relation with the speech’s place of addressment as one of the elements of the impossible mourning in these situations. Keywords: trauma, privation, mourning, injury. UM LUTO IMPOSSÍVEL: efeitos de trauma em imigrações1 Ana Costa2 1 Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais – Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Pro- fessora do PPG em Psicanálise da UERJ. Autora de diversos livros: A ficção de si mesmo (Cia. de Freud, 1998); Corpo e Escrita (Relume-Dumará, 2001); Tatuagens e Marcas corporais (Casa do Psicólogo, 2003); Sonhos (Jorge Zahar, 2003); Clinicando (APPOA, 2008). E-mail: medeirosdacostaanamaria@gmail.com Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.32-36, jul. 2013/jun. 2014 33 Um luto impossível... Abordarei o tema de algumas imigrações forçadas, nas quais as condi-ções de produção de uma experiência não estão dadas. Experiência, aqui, pode ser tomada tanto no sentido da possibilidade de sua transmis- são, numa inclusão no laço social, quanto amparada nos fundamentos da psicanálise, na produção das condições possíveis para que o sujeito se si- tue na relação à fala. É a relação do sujeito com a fala que se problematiza nas situações que vou tratar. Em princípio, pode parecer muito evidente, e até mesmo natural, que a condição adquirida por alguém na apropriação de sua fala fique preservada em seus deslocamentos. Desde sua funda- ção, a psicanálise trata de inúmeras problematizações justamente nessa função. São múltiplos os motivos que levam alguém a deixar seu lugar de ori- gem. Vou citar somente alguns, sem me deter em suas especificidades. Para tanto, retomarei as propostas lacanianas situadas como castração, frustração e privação. Estas proposições podem contribuir na apresentação de diferenças no que diz respeito às imigrações. A primeira busca de imigração, aparentemente mais simples, diz res- peito à relação entre o ideal e o desejo. O ideal é aquilo que o sujeito coloca no horizonte, na distância a ser alcançada, e que requer um movimento para sua realização. Apesar de produzir deslocamento, o ideal sempre se coloca a partir de uma referência construída na história familiar. É o lugar de um filho que quer realizar algo dos valores dos pais, com o clássico trabalho a partir da castração. Na segunda busca de imigração, vamos encontrar uma referência ao imaginário, quando a falta se registra do lado da frustração. Ou seja, quando o brilho fálico buscado tem a ver com um gozo mais imediato, do que com a relação ao desejo. O exemplo que me ocorreu do lado do imaginário diz respeito a algumas crises narcísicas de modelos de moda. Esta colocação é aproximativa, não se situa como explicação para tais casos, mas como um elemento importante na apresentação clínica de alguns. Chama atenção como o registro da oralidade entra em causa, muitas vezes com o consumo excessivo de drogas. Nessas situações podemos depreender que alguma coisa fica problematizada do lado das referências identificatórias, que inter- pelam sem mediação. Digamos que situam um modelo sem contexto. O terceiro motivo implica mais diretamente a privação: quando o des- locamento é situado a partir de uma violência. A este tipo de deslocamento atribuímos corriqueiramente a condição de ser traumático. Nele situam-se os imigrantes forçados, ou aqueles que – ao imigrarem – não se integram ao laço social, ficando à margem, não encontrando uma via de circular no laço social para onde se deslocam. 34 Ana Costa É possível reconhecer que em qualquer condição de deslocamen- to, um sujeito pode padecer de uma crise semelhante à privação, e, ao mesmo tempo, nem todos imigrantes posicionam-se como tendo sido privados. Situo aqui uma diferença entre o registro social e a elaboração possível do sujeito. É sempre preciso considerar as singularidades com a experiência do tempo e não antecipar uma resposta simplesmente pro- tocolar. Muitas vezes, as boas intenções de uma assistência social, situa- da nas políticas públicas, não considera a singularidade de cada caso. O tema do assistencialismo entra aí numa condição de antecipação de res- postas genéricas, não encontrando o sujeito num tempo de apropriação de sua questão. A contribuição que a psicanálise pode dar às políticas públicas diz respeito especificamente a isso: considerar e apostar no tempo do sujeito. Dito isso, tratemos da especificidade do que traumatiza instaurando uma dinâmica de privação. Aqui, é preciso especificar algumas relações, que não são simples. A primeira delas, de grande importância, diz da rela- ção com a linguagem. O âmbito da língua diferencia linguagem instrumental e endereçamento da fala. Pode-se aprender qualquer língua para ter condi- ções de comunicação – este é seu sentido instrumental –, no entanto, pode não haver endereçamento da fala, ou seja, pode-se não singularizar o lugar desde onde se fala. São coisas absolutamente distintas, e a experiência de viver num país estrangeiro coloca isso em causa. No endereçamento da fala está colocado o se deixar “ser falado”, sem somente tentar dominar a forma do que é falado. A linguagem instrumental – o que implica saber falar a língua para se comunicar – não registra o espírito da língua, que é o lugar do terceiro. Terceiro, aqui, pode ser entendido como o que está colocado em qualquer diálogo, no qual se situa aquele que fala, seu interlocutor e o cam- po da linguagem, como um campoprenhe de mal-entendidos, semidizeres, bem como de significações antecipadas, implícitas em cada laço social. Em tais condições, muitas formas de atribuição funcionam do lado da injúria, ou seja, como se aquilo que está semidito, ou mesmo enigmático, fosse encar- nado como o estranho, numa relação dual, sem referência ao terceiro que media o laço discursivo. Freud ([1893]1972) foi otimista com a injúria, na medida em que si- tuou nela a substituição da ação pela palavra. Ou seja, que o primeiro que injuriou, ao invés de passar ao ato – matar – teria podido substituir a ação pela palavra. No entanto, diferentemente do otimismo freudiano, isso para nada deixou de produzir guerras. A injúria evoca um princípio de exclusão: a dimensão que todos temos de um excluído do próprio corpo. Por essa razão, também, que a injúria recoloca o corpo em causa: seja pela cor da 35 Um luto impossível... pele, pelos traços estrangeiros, etc. O interlocutor encarna – faz corpo – da ofensa. O circuito da injúria é violento em si mesmo. Para entendermos a injúria, vale fazermos uma diferença entre o chiste e o cômico. Este último diz respeito a rir do outro: fazer da imagem do outro objeto de comicidade. Já no chiste, entra em causa o terceiro ausente, como inscrição do jogo da língua, isto é, suas criações e potencialidades metafó- ricas. O endereçamento da fala diz respeito à possibilidade de inscrição do terceiro. É deste lugar da língua, enquanto jogo simbólico, que herdamos as condições da referência ao desejo e à castração – tema que mencionamos anteriormente. Assim, situamos primeiramente a língua, como a condição que se pro- blematiza numa privação. O segundo elemento diz respeito à relação com os objetos, que constituem suportes culturais necessários para construção de identificações. Pode-se depreender que são esses objetos e vestes que – mais que somente enfeitar – criam um lugar, eles são significantes. O ritu- al, por exemplo, constrói enlaces importantes entre imaginário e real, situan- do o objeto como presença nas condições de uma herança. Nesse sentido, não se pode dizer que uma herança seja somente simbólica, ela traz junto uma presença/ausência transmitida num objeto. Pode-se perceber que a globalização, com o descarte consumista do objeto no capitalismo, proble- matiza justamente esta face das transmissões das heranças. Encontramos diferentes eventos produtores de trauma, eles colocam em cena aquilo que Lacan ([1964]1985) designou como duas muralhas do impossível: por um lado, a relação com a morte; por outro, a relação com o sexo. É curioso pensar como isso se confirma nos eventos mais violentos: nas guerras e violências urbanas reconhecemos que sexo e morte estão juntos. Não há somente os assassinatos, há também grande incidência de estupros. Pode-se situar que um evento traumatiza quando o sujeito perde sua condição de responder ao laço social, ou seja, de situar-se numa referência significante, bem como na possibilidade de velar o real por meio da fantasia. Assim, o trauma situa um acontecimento em que o sujeito perde sua con- dição de endereçar sua questão desde o campo discursivo, e se confunde com o que é excluído – o gozo excluído da circulação – no limite: com o injuriado. A privação, aqui, apresenta o furo repleto da porcaria, que se ex- pressa como um resto corporal. É aqui que se apresenta um luto impossível. Pensando nessas situações, podemos reconhecer que o luto tem duas faces e não acontece imediatamente, de uma única vez. Numa das faces ele é carregado por uma função social, efetivada por aqueles que acom- panham. Como fica essa função social para o imigrante, se ele ainda não 36 Ana Costa está inscrito no laço social, se ele não tem o suporte do semelhante para testemunho? A função social é vivida no ritual, que permite uma primeira separação. Assim, a separação é um trabalho doloroso, que não reconhece imposições de fora, nem de uma atribuição de realidade à situação, precisa de muitas elaborações. A outra face do luto se refere a viver a perda, reco- nhecendo-a enquanto um registro da experiência. É a experiência solitária, que diz respeito a cada um, mais além do compartilhado. Assim, a reconstituição do endereçamento na fala é todo o trabalho dessa clínica. Tem-se falado em testemunho. No entanto, pensar no teste- munho significa pensar em como lidar com a antecipação na relação com o pequeno outro. Testemunho significa reconhecer a perda, o que dimen- siona a possibilidade de um luto. No entanto, penso que, para o imigrante submetido a uma vivência de privação, coloca-se antes uma suspensão da perda, tanto quanto uma suspensão do tempo. É como se o deslocamento não houvesse acontecido e o sujeito ficasse no limbo. É nessa medida que é necessário um trabalho preliminar ao luto, situando as condições de ende- reçamento na entrada ao novo lugar, para que o sujeito, a posteriori, possa testemunhar sobre seu desterro. Ou seja, para sair é preciso primeiro entrar. REFERÊNCIAS FREUD, Sigmund. Lecciones introductorias al psicoanálisis [1915-1917]. In: ______. Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1972. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. Recebido em 20/05/2014 Aceito em 10/06/2014 Revisado por Cristian Giles TEXTOS 37 Resumo: O presente artigo trabalha alguns aspectos da clínica do exílio reali- zada junto a recém-chegados admitidos pelo ACNUR/ASAV (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados/Associação Antonio Vieira), inserida no Projeto SIG Intervenções Psicanalíticas. No contexto específico de uma política de reassentamento, interessa-nos explorar como a não ritualização da partida forçada engendra episódios desorganizadores sobre uma economia pulsional cindida, quando da não passagem de uma cultura a outra. A interrogação sobre o que faz trauma no exílio, assim como sobre os episódios injuntivos de reatua- lização traumática, servirão como fio condutor à nossa investigação. Palavras-chave: exílio, trauma, reassentamento. FROM EXILE TO ASYLUM: CLINIC LISTENINGS Abstract: The present article aims to work some aspects of the exile clinic con- ceived with the new-arrived admitted by the HCR/ASAV and the Project SIG Psychoanalytic Interventions. In the specific context of a resettlement policy, it concerns us to develop how the non-ritualisation of the forced departure leads to some overwhelming episodes onto a divided libido economy, regarding the non-passage between one culture to another. Theses questions about what do traumatize in exile, and the episodes of traumatic re-actualization will be the conductors lines in our investigation of metapsychological keys to read the exile Keywords: exile, trauma, resettlement. Alexei Conte Indursky2 Barbara de Souza Conte3 Daniela Feijó4 Liege Didonet5 DO EXÍLIO AO ASILO: escutas clínicas1 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.37-48, jul. 2013/jun. 2014 1Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais – Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013. 2 Psicólogo; Doutorando da Universidade Paris VII; Integrante do SIG/Intervenções Psicanalíti- cas. E-mail: leco.indursky@globo.com 3 Psicanalista; Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madrid; Coordenadora do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: barbara.conte@globo.com 4 Psicanalista; Integrante do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: danitrois@gmail.com 5 Psicanalista; Integrante do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: liegedidonet@ yahoo.co.uk 38 Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet Era de madrugada quando K. chegou. O vilarejo estava coberto de neve. A colina do Castelo permanecia invisível, a bruma e a obscuridade o contornavam, não existia mesmo um vulto que indicasse a presença do grande Castelo. K repousou longamente sobre a
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