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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES Gabriela Córdova Christófaro CONVIVÊNCIA E ALTERIDADE NO PROCESSO DE CONHECIMENTO EM DANÇA : a abordagem de Marilene Martins no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea Belo Horizonte 2018 Gabriela Córdova Christófaro CONVIVÊNCIA E ALTERIDADE NO PROCESSO DE CONHECIMENTO EM DANÇA : a abordagem de Marilene Martins no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para o título de Doutor em Artes. Linha de pesquisa: Artes e Experiência Interartes na Educação Orientadora: Profa. Dra. Mariana de Lima e Muniz Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2018 À Marilene Martins. AGRADECIMENTOS À Profa. Dra. Mariana de Lima e Muniz, por acolher a pesquisa, por orientar-me com cuidado e rigor, pelo seu companheirismo. Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Artes, pela atenção e disponibilidade, em especial à Profa. Dra. Mônica Medeiros Ribeiro, que muito instigou esta pesquisa na disciplina Metodologia de Pesquisa, por ela ministrada. Aos professores e funcionários do Departamento de Fotografia, Teatro e Cinema, da EBA/UFMG. Aos professores do curso de Dança, em especial à Profa. Dra. Ana Cristina Carvalho Pereira, Profa. Dra. Anamaria Fernandes Viana, Profa. Ma. Raquel Pires Cavalcanti e Prof. Dr. Arnaldo Leite de Alvarenga, pelo estímulo e apoio. Aos membros da banca de qualificação, Profa. Dra. Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra), Profa. Dra. Mônica Medeiros Ribeiro e Prof. Dr. Arnaldo Leite de Alvarenga, pela leitura minuciosa e pelas importantes contribuições. À Profa. Dra. Lenira Peral Rengel, Profa. Dra. Mônica Medeiros Ribeiro, Prof. Dr. Arnaldo Leite de Alvarenga e Prof. Dr. Luis Carlos de Almeida Garrocho, que se disponibilizaram a compor a banca de avaliação desta Tese. À Marilene Martins e sua família, em especial à sua irmã, Maria Amélia Martins, por favorecer e autorizar o acesso aos materiais de seu acervo particular. Aos artistas-professores Arnaldo Alvarenga, Dorinha Baêta, Dudude, Lúcia Ferreira e Mônica Rodrigues, pela preservação e pela cessão dos cadernos de registro para a pesquisa. À Raquel, pelo compartilhamento de questões caras à atuação artística e à prática docente. À Ana Cristina, pelo incentivo. À Mônica, pelo estímulo à confiança. Ao Arnaldo, pelas conversas, oportunidades e pelo cuidado. Ao Arnaldo e Dolores, que abriram sua casa e permitiram o acesso à biblioteca. Ao Sérgio Penna, pelo carinho e traduções para o inglês. À Andréia Bernardon, pela competência para cuidar do meu corpo cansado e dolorido. Aos amigos Serginho, Marise e Raquel, pelos momentos de afeto, alegria, dança e vida. À Vivi, pelo pão. Ao Tatá, pela cumplicidade. À Celeste e Sérgio, pela torcida. Ao Clebinho, pelos momentos em que estivemos juntos. À minha mãe, Dôra, e ao meu pai, Cícero, pela energia. Aos meus filhos, Davi e Heitor, pela convivência e pelo amor “maior que o céu e a Terra...”. “[...] ajuntar as pernas com o calcanhar no chão e ir subindo lentamente conscientizando e procurando seu eixo”1 Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977) 1 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e 1977. 105 f. Acervo de Dudude. RESUMO Trata-se, nesta tese, do processo de conhecimento em dança de Marilene Martins no Trans- Forma Centro de Dança Contemporânea. Martins é reconhecida por ter fundado a primeira escola de dança moderna de Belo Horizonte e o Trans-Forma Grupo Experimental de Dança, que se constituíram em referências importantes para o desenvolvimento dessa arte na capital mineira. O objeto da pesquisa foi a abordagem epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna, compreendido como edificante na proposta artístico-pedagógica de Martins. O estudo foi de caráter qualitativo, conforme Creswell (2014), com base na Crítica Genética, de acordo com Salles (2008, 2009, 2014). Os procedimentos utilizados foram pesquisa de referência e análise documental, sendo esta configurada como acompanhamento crítico- interpretativo de cadernos de artistas-professores do Trans-Forma. Para a análise do dossiê constituído por vinte e um cadernos de cinco artistas-professores e manuscritos de Marilene Martins foi criada uma rede epistemológica composta pelo conceito de rede (MUSSO, 2013), conceito de criação como rede em processo (SALLES, 2014), a teoria da autopoiese, de Maturana e Varela (2001, 2003), bem como os conceitos de moderno e pós-moderno em autores que contemplam a dança, a aprendizagem de arte e os contextos da América Latina e do Brasil, como Banes (1987), Coutinho (2008), Coelho (2011), Efland (2008), Harvey (2012), Hutcheon (2014), Jagodzinsky, (2008), Louppe (2012), Lyotard (2011), Paz (1984) e Silva (2005). Através dos documentos foi possível o acesso ao conteúdo relativo à abordagem artístico-pedagógica de Martins e a uma escritura específica utilizada para registrar esse conteúdo. Na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna foi identificada a anatomia humana, abordagens somáticas, diversas técnicas de dança, além de rítmica e improvisação. No trabalho de Martins identificamos a ênfase em referenciais de dança moderna e constatamos a diversidade corporal, técnica e artística de modo fundamental, o que demonstrou uma atitude pós-moderna da artista-professora. O Curso Básico de Dança Moderna demonstrou correspondência com um sistema autopoiético, construído na convivência com a diferença, fundado na experimentação e que favoreceu um conhecer inventivo. Palavras-chave: Dança. Processo de conhecimento. Marilene Martins. Convivência. Alteridade. ABSTRACT This thesis deals with the knowledge process in dance developed by Marilene Martins at Trans-Forma Center of Contemporary Dance. Martins is recognized for having founded Belo Horizonte’s first modern dance school as well as Trans-Forma Experimental Dance Group, which became important references for the development of this art form in Minas Gerais State capital, Belo Horizonte. The objective of this research was an epistemological approach of the Basic Modern Dance Course, understood as enlightening in Martins’ artistic and pedagogical proposal. The approach bears a qualitative character, according to Creswell (2014), based on the Genetic Criticism, according to Salles (2008, 2009, 2014). The procedures used were the reference research and the documental analysis, the latter being done as a critical and interpretative accompaniment of Trans-Forma’s notebooks, produced by the artists-teachers. In order to analyze the dossier, made up of twenty-three notebooks created by five artists- teachers as well as Marilene Martins’ manuscripts, an epistemological network was created, comprising the concepts of networking (MUSSO, 2013), creation as a network in process (SALLES, 2014), and the Theory of Autopoiesis, by Maturana and Varela (2001, 2003), as well as modern and post-modern concepts found in authors who ponder about dance, art learning and the contexts of Latin America and Brazil, such as Banes (1987), Coutinho (2008), Coelho (2011), Efland (2008), Harvey (2012), Hutcheon (2014), Jagodzinsky (2008), Louppe (2012), Lyotard (2011), Paz (1984), and Silva (2005).Through the documentsit was possible to access contents related to Martins’ artistic pedagogical approach, as well as the specific piece of writing used to register such contents. Human anatomy, somatic approaches, diverse dance techniques with emphasis on modern dance, rhythmics, and improvisation were identified in the epistemological weaving of the Basic Modern Dance Course. In Martins’ work we reiterated the emphasis on modern dance referents and verified, fundamentally, the corporal, technical and artistic diversity, which revealed Marilene Martins’ post-modern attitude. The Modern Dance Basic Course proved correspondent to an autopoietic system, built through the coexistence with the difference, based on experimentation, and favoring an inventive knowledge base. Key-words: Dance. Knowledge process. Marilene Martins. Coexistence. Otherness. LISTA DE FIGURAS Figura 1- Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea ....................................................... 75 Figura 2 - Coreografia Polimorphia ......................................................................................... 90 Figura 3- Coreografia Rithmetron ............................................................................................ 90 Figura 4 - Espetáculo Kuadê - Juruna mata o sol .................................................................... 93 Figura 5 - Espetáculo A Casa da Infância ................................................................................ 94 Figura 6 - Escritura do Trans-Forma ........................................................................................ 98 Figura 7 - Caderno de Dudude ............................................................................................... 100 Figura 8 - Caderno de Lúcia Ferreira ..................................................................................... 101 Figura 9 - Caderno de Dorinha Baêta ..................................................................................... 101 Figura 10 - Cabeça .................................................................................................................. 108 Figura 11 - Nariz .................................................................................................................... 108 Figura 12- Coluna ................................................................................................................... 109 Figura 13- Costelas e caixa torácica ....................................................................................... 109 Figura 14- Membros inferiores e superiores........................................................................... 110 Figura 15- Mãos e dedos ........................................................................................................ 110 Figura 16- Articulação do ombro ........................................................................................... 111 Figura 17- Cotovelos .............................................................................................................. 111 Figura 18 - Punhos .................................................................................................................. 112 Figura 19 - Cíngulo inferior.................................................................................................... 112 Figura 20 - Triângulo do quadril ............................................................................................ 113 Figura 21- Articulação do quadril .......................................................................................... 113 Figura 22 - Joelhos ................................................................................................................. 114 Figura 23- Pés ......................................................................................................................... 114 Figura 24 - Metatarso e dedos ................................................................................................ 115 Figura 25- Triângulo do pé ..................................................................................................... 115 Figura 26 - Anatomia e corporalidade I ................................................................................. 116 Figura 27 - Anatomia e corporalidade II ................................................................................ 117 Figura 28 - Anatomia e corporalidade III ............................................................................... 117 Figura 29 - Anatomia e corporalidade IV ............................................................................... 118 Figura 30 - Anatomia e corporalidade V ................................................................................ 118 Figura 31 - Anatomia e corporalidade VI ............................................................................... 119 Figura 32 - Anatomia e corporalidade VII ............................................................................. 120 Figura 33 - “Relaxamento a dois: ‘Ativo e Passivo’” I .......................................................... 126 Figura 34 - “Relaxamento a dois: ‘Ativo e Passivo’” II ......................................................... 126 Figura 35 - Corpo e diferença ................................................................................................. 128 Figura 36 - Exercícios com máquinas .................................................................................... 132 Figura 37 - Exercício “Pressão” I ........................................................................................... 133 Figura 38 - Exercício “Pressão” II .......................................................................................... 133 Figura 39 - Exercício “Pressão” III ........................................................................................ 134 Figura 40 - Exercício “Pressão” IV ........................................................................................ 134 Figura 41 - Trabalho em duplas .............................................................................................. 135 Figura 42 - Sequência de Zena Rommet I .............................................................................. 136 Figura 43 - Sequência de Zena Rommet II ............................................................................. 137 Figura 44 - Sequência de Zena Rommet III ........................................................................... 137 Figura 45 - Sequência de Zena Rommet IV ........................................................................... 137 Figura 46 - Alinhamento articular .......................................................................................... 138 Figura 47 - Alinhamento e movimento articular .................................................................... 139 Figura 48 - Coluna vertebral ................................................................................................... 139 Figura 49 - “Sequência de Sensibilização” I .......................................................................... 140 Figura 50 - “Sequência de Sensibilização” II ......................................................................... 140 Figura 51 - Movimento de passagem ..................................................................................... 141 Figura 52 - Roteiro de aula I ................................................................................................... 145 Figura 53 - Roteiro de aula II ................................................................................................. 145 Figura 54 - Sequência “Pular maré” ....................................................................................... 148 Figura 55 - Sequência “Pular maré virando de costas e de frente” ........................................ 149 Figura 56 - Sequência “Relaxa, relaxa e fura o ar” ................................................................150 Figura 57 - Movimento no chão I ........................................................................................... 151 Figura 58 - Movimento no chão II.......................................................................................... 152 Figura 59 - Movimento no chão III ........................................................................................ 152 Figura 60 - Movimento no chão IV ........................................................................................ 153 Figura 61 - Movimento no chão V ......................................................................................... 153 Figura 62 - Pernas e pés paralelos .......................................................................................... 154 Figura 63 - Deslocamento I .................................................................................................... 155 Figura 64 - Deslocamento II ................................................................................................... 155 Figura 65 - Movimento de braços I ........................................................................................ 155 Figura 66 - Movimento de braços II ....................................................................................... 156 Figura 67 - Sequência “Grand plié com braço torcido” I....................................................... 157 Figura 68 - Sequência “Grand plié com braço torcido” II ..................................................... 157 Figura 69 - Sequência “Grand plié com braço torcido” III .................................................... 157 Figura 70 - Sequência “Grand plié com braço torcido” IV .................................................... 158 Figura 71 - Sequência “Grand plié com braço torcido” V ..................................................... 158 Figura 72 - Sequência “Torção do tronco (Caminho)” .......................................................... 159 Figura 73 - Sequência da cabeça com ombros e tronco ......................................................... 160 Figura 74 - Sequência da cabeça com ombros e tronco ......................................................... 161 Figura 75 - Articulação técnica I ............................................................................................ 162 Figura 76 - Articulação técnica II ........................................................................................... 163 Figura 77 - Articulação técnica III ......................................................................................... 164 Figura 78 - Articulação técnica IV ......................................................................................... 165 Figura 79 - Sequência de Jazz I .............................................................................................. 168 Figura 80 - Sequência de Jazz II ............................................................................................. 169 Figura 81 - Sequência de Jazz III ........................................................................................... 169 Figura 82 - Sequência de Jazz IV ........................................................................................... 170 Figura 83 - Sequência Afro-brasileiro I .................................................................................. 172 Figura 84 - Sequência Afro-brasileiro II ................................................................................ 173 Figura 85 - Sequência Afro-brasileiro III ............................................................................... 173 Figura 86 - Belly dance I ........................................................................................................ 175 Figura 87 - Relaxamento de tronco ........................................................................................ 176 Figura 88 - “Giro completo com o quadril, ‘com parada’” .................................................... 177 Figura 89 - Técnica de Martha Graham I ............................................................................... 179 Figura 90 - Técnica de Martha Graham II .............................................................................. 179 Figura 91 - Técnica de Martha Graham III............................................................................. 180 Figura 92 - Técnica de Martha Graham IV ............................................................................ 180 Figura 93 - Técnica de Martha Graham V .............................................................................. 181 Figura 94 - “Para soltar-relaxar” (Graciela Figueroa) ............................................................ 183 Figura 95 - “Ritmo (Melinha)” ............................................................................................... 186 Figura 96 - Ritmo 3 ................................................................................................................ 187 Figura 97 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) I ............................................................ 188 Figura 98 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) II .......................................................... 188 Figura 99 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) III.......................................................... 189 Figura 100 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) IV ....................................................... 190 Figura 101 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) V ......................................................... 190 Figura 102 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) VI ....................................................... 190 Figura 103 - Ritmo da Mônica ............................................................................................... 192 Figura 104 - “O mundo girando” ............................................................................................ 193 Figura 105 - Improvisação (Rolf Gelewski) ........................................................................... 195 Figura 106 - Improvisar e experimentar I ............................................................................... 196 Figura 107 - Improvisar e experimentar II ............................................................................. 196 Figura 108 - Improvisar e experimentar III ............................................................................ 197 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABRACE Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas APML Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário CBO Classificação Brasileira de Ocupações CBDM Curso Básico de Dança Moderna CEFAR Centro de Formação Artística CEFART Centro de Formação Artística e Tecnológica CNRS Centre National de la Recherche Scientifique COEP Comitê de Ética em Pesquisa DCE Diretório Central dos Estudantes EBA Escola de Belas Artes EEFD Escola de Educação Física e Desportos ENEFD Escola Nacional de Educação Física e Desportos da Universidade do Brasil FCS Fundação Clóvis Salgado LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC Ministério da Educação MTB Ministério do Trabalho do Brasil PPG-Artes Programa de Pós Graduação em Artes UFBA Universidade Federal da Bahia UNICAMP Universidade Estadual de Campinas UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro SUMÁRIO INTRODUÇÃO 14 1 METODOLOGIA, OU MODOS DE FAZER 23 1.1 Pesquisa documental 24 1.1.1 Artistas-professores do Trans-Forma 26 1.1.2 Dossiê: documentos de processo 27 1.2 Pesquisa de referência 29 1.2.1 Pontosde referência: “criação como rede em processo” e conceito de “rede” 30 1.2.2 Ponto de referência: teoria da autopoiese 32 1.2.2.1 Cognição e experimentação 34 1.2.2.2 Convivência e processo de conhecimento 35 1.2.2.3 Perturbação e alteridade 37 1.2.3 Pontos de referência: “moderno” e “pós-moderno” 38 1.2.3.1 Modernismo e pós-modernismo: atitudes artísticas 41 1.2.4 Rede de conversação 49 2 MARILENE MARTINS: DIÁLOGOS ARTÍSTICOS E PEDAGÓGIC OS 50 2.1 Carlos Leite e o Ballet Minas Gerais 51 2.2 Klauss e Angel Vianna, e o Ballet Klauss Vianna 56 2.3 Rolf Gelewski e a Escola de Dança da UFBA 62 2.4 Deslocamentos e flexibilidade artística 67 3 TRANS-FORMA CENTRO DE DANÇA CONTEMPORÂNEA: “UMA J ANELA VENTILADA” 74 3.1 Uma dança para todos e para cada um 78 3.1.1 Percursos formativos 81 3.1.2 Espetáculos didáticos 83 3.1.3 Espaço para ler dança 86 3.1.4 Grupo Trans-Forma 88 3.2 Corpo artístico-docente 95 3.2.1 Artista-professor e artista-dançarino 96 4 CURSO BÁSICO DE DANÇA MODERNA 105 4.1 Corpo-documento: a dança no papel 105 4.1.1 Escrever dança 106 4.1.2 Escrever e desenhar dança 107 4.1.3 Dança e anatomia humana: referência em si 115 4.2 Processo de conhecimento em dança por Marilene Martins 120 4.2.1 Consciência corporal 123 4.2.2 Estudo de movimento na dança 143 4.2.2.1 Sequências básicas de movimento: dança moderna e atitude pós-moderna no Trans- Forma 146 4.2.2.2 Convivência na alteridade 165 4.2.3 Rítmica e improvisação 184 CONSIDERAÇÕES FINAIS 199 REFERÊNCIAS 206 14 INTRODUÇÃO A Dança2, como área de conhecimento, tem se desenvolvido de forma importante no Brasil nas últimas décadas. Nesse período, ressalta-se a criação de cursos de graduação, nas modalidades bacharelado e licenciatura, em diversas Universidades públicas e privadas do país, bem como a ampliação das possibilidades de atuação profissional nesse campo (SILVA, 2016; STRAZZACAPPA, 2003, 2014; COSTAS, 2010). Com relação ao âmbito acadêmico, a partir do primeiro Curso Superior de Dança, fundado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1956, surgiram mais três graduações na década de 1980, e a partir da década de 1990 houve um crescimento significativo desse número. O panorama atual conta com quarenta e cinco graduações, sendo trinta e três cursos de licenciatura e doze de bacharelado, conforme o Ministério da Educação (MEC)3. Com relação ao campo profissional de dança, Rocha (2010, p. 96) caracteriza-o como um território de invenção, em que a autora aponta várias linhas de trabalho: É importante frizar portanto que fazer dança hoje, obviamente sem desmerecer tais atividades, não se restringe mais a coreografar, ensinar ou performar. Utilizamos o verbo performar e não dançar, justamente porque fazer dança hoje se conjuga em uma diversidade cada vez mais ampla de verbos – ensinar, performar, criticar, coreografar, conversar, escrever, pesquisar, fazer curadoria, pensar, manter um site na web, lutar por publicações nos mais variados formatos, dirigir festivais, promover encontros etc. Nesse contexto, a formação do profissional dessa área, que se apresenta bastante diversa, tem sido foco de reflexões. Os percursos formativos em dança abrangem hoje, além dos tradicionais cursos livres, normalmente situados em estúdios e academias, outros, como cursos técnicos, tecnológicos, de graduação e pós-graduação, em instituições públicas e privadas. Ressalta-se que diferentes âmbitos de trabalho poderão exigir formações específicas. Assim, para atuar em cursos livres, o professor, geralmente, também percorreu esse caminho, enquanto que o professor da educação básica necessitará cursar a licenciatura em uma universidade, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB 9394/96, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996). No período atual, que se caracteriza por mudanças quanto à atuação dos profissionais de dança, discute-se, além da formação, a sua diversificação, como apontado pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/2002), do 2 Utilizou-se o termo “Dança” com inicial maiúscula para indicar a referida área de conhecimento. 3 Cf. Classificação Brasileira de Ocupações, disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite 15 Ministério do Trabalho do Brasil (MTB)4. Ao descrever a ocupação do Artista da dança4, a CBO pondera sobre a importância do ensino superior para esse profissional, mesmo sem a sua obrigatoriedade: O exercício das ocupações da família [Artista da dança] não exige escolaridade formal determinada, embora siga-se a tendência que vem ocorrendo no mundo das artes em geral, rumo à profissionalização. Nesse sentido, torna-se-á cada vez mais desejável que o profissional tenha curso superior na área. Para o exercício pleno das atividades, requer-se mais de cinco anos de experiência.5 Além de uma formação ampliada, discute-se no seio da Universidade sobre a importância de articulação entre conhecimentos de naturezas diferentes, como propõe Costas (2010, p. 73): Penso ser importante considerar que tanto o ensino não-formal, quanto o ensino formal desempenham papéis importantes na dinâmica de gestação do artista da dança. Não se trata aqui de uma questão de valoração, mas de considerar funções específicas e diferenciadas, e porque não, articuláveis. Segundo alguns coordenadores de cursos de graduação em dança no país, a experiência diversificada tem sido contemplada no contexto acadêmico. Com relação ao curso de Graduação em Dança – Licenciatura, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Alvarenga (2016) ressalta a composição curricular que abrange conhecimento científico, artístico e os saberes tradicionais. Ao refletir sobre a trajetória de trinta anos da Graduação em Dança da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Gatti (2016, p. 79) menciona a relevância do diálogo entre o ensino formal e o não formal: O foco do ensino superior em Dança deve estar na promoção à pesquisa e na articulação e integração dos diferentes saberes e fazeres que perfazem a formação do artista e do educador da dança, bem como oferecer uma fundamentação capaz de rever e dinamizar os conteúdos e métodos de trabalho utilizados na educação não formal. Nesse contexto de formação em dança, em que se discutem articulações entre diferentes campos de conhecimento, ressalta-se o termo “artista-docente” e suas implicações com relação à compreensão dessa atividade profissional. A partir da CBO, compreende-se que a formação artística é condição imprescindívelpara o estabelecimento do binômio artista- docente, como consta da descrição referente à Artista da dança: “Concebem e concretizam 4 Cf. Cadastro e-MEC de Instituições e Cursos de Educação Superior, disponível em: http://emec.mec.gov.br/ 4 Descrita como “Bailarino (exceto danças populares)”. 5 Cf. Classificação Brasileira de Ocupações, disponível em http://www.ocupacoes.com.br/cbo-mte/262810- bailarino-exceto-dancas-populares 16 projeto cênico em dança, realizando montagens de obras coreográficas; executam apresentações públicas de dança e, para tanto, preparam o corpo, pesquisam movimentos, gestos, dança, e ensaiam coreografias. Podem ensinar dança”6. Compreende-se que “podem ensinar dança” aqueles que desenvolvem as ações supracitadas. Ao mesmo tempo, considerando que questões educacionais são intrínsecas ao fazer artístico, como discute Marques (2001), abrir mão delas também seria negar a configuração artista-professor. No entanto, a autora ressalta que essas relações educacionais inseridas no contexto artístico não devem escolarizar a dança. A perspectiva de Marques (2001, p. 112) de artista-docente auxilia a refletirsobre essa denominação: [...] o artista-docente é aquele que, não abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem também como função e busca explícita a educação em seu sentido mais amplo. Ou seja, abre-se a possibilidade de que processos de criação artística possam ser revistos e repensados como processos também explicitamente educacionais. Esta Tese partiu da premissa de que o diálogo entre o fazer artístico-docente no âmbito da Universidade e o fazer artístico-docente situado fora dela poderá contribuir para o desenvolvimento de ambos esses contextos. No caso, a dança no contexto universitário – que, como discutem alguns autores7, busca construir estruturas epistemológicas e metodológicas coerentes com demandas, características e necessidades acadêmicas – e a dança fora desse âmbito – que também configura modos de fazer a partir de perspectivas sobre o fazer artístico e docente. Este estudo relaciona-se ao processo formativo do profissional de dança no Brasil, especialmente, do artista-professor. O tema tratado foi a proposição artístico-pedagógica de dança, de Marilene Martins, reconhecida por ter fundado a primeira escola de dança moderna de Belo Horizonte e por dar continuidade às iniciativas modernistas de Klauss Vianna na capital mineira (ALVARENGA, 2002; REIS, 2005). A artista também se distingue no cenário nacional, tendo sido homenageada, em 2012, pelo Projeto Figuras da Dança, da São Paulo Companhia de Dança, sob a direção de Inês Bogéa. Nena, como Marilene também é chamada, fundou, em 1969, a Escola de Dança Moderna Marilene Martins, que, em 1981, passou a se 6 Cf. Classificação Brasileira de Ocupações, disponível em http://www.ocupacoes.com.br/cbo-mte/262810- bailarino-exceto-dancas-populares 7 Autores como Bolognesi (2014), Fortin e Gosselin (2014), Greiner (2011, 2012), Katz (2012) e Ribeiro (2013) discutem sobre o campo epistemológico da arte e da dança no contexto acadêmico. 17 chamar Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea8. A artista criou também o Trans- Forma Grupo Experimental de Dança, em 1971, que se destacou pelo caráter vanguardista e, conforme Reis (2005), influenciou e continua presente na cena belo-horizontina atual. Para Alvarenga (2002, p. 219), o trabalho de Marilene Martins foi determinante para a dança e seu ensino na capital mineira: A dança moderna de Marilene Martins traz não somente uma linguagem técnica a mais; encerra toda uma nova filosofia, uma nova significação em face do ato de dançar, um novo conceito de formação em dança, que alterou e redefiniu os caminhos dessa arte como veículo de expressão e trabalho profissional em Belo Horizonte; note-se, ainda, a possibilidade de se trabalhar o corpo dos não-dançarinos de uma forma diferente das atividades corporais existentes até então. O Trans-Forma constituiu-se em um espaço amplo de conhecimento em dança, com interesses voltados para o desenvolvimento humano, a investigação corporal e artística, o diálogo com diferentes perspectivas de dança e outras artes e, como ressalta Alvarenga (2002), engajamento social. Ressaltaram-se na pesquisa as iniciativas de Marilene Martins voltadas para a formação do artista-professor. No contexto do Trans-Forma, definiu-se como objeto de estudo a abordagem epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna (CBDM). Ao fazer esse recorte, consideramos, inicialmente, a estrutura da escola, na qual identificamos um eixo artístico-pedagógico formado pelo Curso Básico e pelo Curso Avançado de Dança Moderna, como explicitado no Regulamento Interno da Escola de Dança Moderna Marilene Martins: “O Curso da Escola é dividido em: Curso Básico [...] e Curso Profissional [...]. Podem (sic) haver ainda Cursos Especiais ou de Férias, paralelamente aos cursos normais da Escola”9. A opção por abordar o Curso Básico, com duração de cinco anos, deveu-se, principalmente, ao fato de apresentar uma sistematização específica concebida por Marilene Martins e desenvolvida com artistas-professores formados em sua escola. No caso do Curso Profissional, de três anos, as aulas eram dadas, principalmente, por professores convidados que trabalhavam conforme suas propostas. 8 Nesta pesquisa, optou-se por mencionar a escola de Martins pela denominação Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea, para acompanhar o modo como a própria Marilene faz referência à escola nas entrevistas concedidas à autora. Acrescenta-se que não foram identificadas alterações relativas à concepção artística de Marilene que possam ter justificado tal mudança. 9 MANUSCRITO: Regulamento Interno da Escola de Dança Marilene Martins. Belo Horizonte, (1971-1981). 8 f. Acervo de Marilene Martins. 18 O CBDM foi abordado por meio de cadernos de anotações de cinco artistas-professores10 que acompanharam Marilene: Arnaldo Alvarenga11, Dorinha Baêta12, Dudude13, Lúcia Ferreira14 e Mônica Rodrigues15. Trabalhamos a partir da hipótese que a identificação e a análise da abordagem epistemológica do CBDM poderia favorecer o reconhecimento de percursos formativos semelhantes ao de Martins, bem como oferecer referenciais para a reflexão e a constituição de outros processos de conhecimento nesta área. Ressalta-se que a análise desse Curso levou a um panorama abrangente e diverso de referenciais corporais, técnicos e artísticos. É necessário explicitar que, na pesquisa, não houve o objetivo de particularizar os referenciais encontrados. Optamos por abordá-los sob uma perspectiva sistêmica, em que foi enfatizada a construção da proposta de Marilene e em que se buscou compreender as escolhas epistemológicas da artista-professora. As temáticas que envolvem a formação em Dança fazem parte de meus interesses, considerando minha atuação como artista-docente em diferentes contextos formativos. Em minha experiência, ressalto a mudança ocorrida em 2010, quando prestei concurso para professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, desde então, integro o corpo docente do curso de Graduação em Dança – Licenciatura dessa Instituição. Durante os quinze anos anteriores, trabalhei como artista, de forma independente, e como professora de dança. Durante esse período, atuei como professora de dança contemporânea, criação coreográfica e 10 Nesta Tese, os artistas-professores do Trans-Forma foram tratados pelos seus nomes artísticos. 11 Arnaldo Alvarenga, nascido em 1958, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professor do CBDM dessa escola. Foi também dançarino e diretor do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Atualmente, é professor do Curso de Graduação em Teatro, do Departamento de Artes Cênicas, da EBA/UFMG. Presidiu a Comissão que criou o Curso de Graduação em Dança – Licenciatura desta mesma Instituição (Informação verbal). 12 Dorinha Baêta, nascida em 1956, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM e do Curso Avançado de Dança Moderna desta escola e assistente de Marilene Martins. Foi também dançarina do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Graduada em Psicologia, desenvolve um trabalho corporal que reúne dança e psicologia para crianças, adolescentes e adultos (Informação verbal). 13 Dudude, nascida em 1958, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM e do Curso Avançado de Dança Moderna desta escola e foi assistente de Marilene Martins. Foi também dançarina do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança, para o qual criou seu primeiro trabalho coreográfico Escolha seu sonho. A artista fundou, em Belo Horizonte, o Estúdio Dudude Herrmann e a Benvinda Cia. de Dança. Atualmente, trabalha em seu ateliê,localizado no município de Brumadinho/MG (Informação verbal). 14 Lúcia Ferreira, nascida em 1960, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM desta escola. Foi também dançarina do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Integrou o quadro de funcionários do Palácio das Artes/FCS, atuando como professora de dança, na preparação corporal para atores e à frente do Departamento de Extensão desta Instituição. Atua como preparadora corporal de atores e gestora cultural (Informação verbal). 15 Mônica Rodrigues, nascida em 1964, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM desta escola. Graduada em Pedagogia, atua como professora de dança em cursos livres e na educação básica (Informação verbal). 19 composição no Curso Básico e no Curso Profissionalizante de Dança do Centro de Formação Artística16 (CEFAR), da Fundação Clóvis Salgado (FCS). Atuei também como professora de dança contemporânea em grupos profissionais, como a Cia. de Dança Palácio das Artes17, Grupo de Dança Primeiro Ato18, Cia. Suspensa, Cia. Mário Nascimento19, Camaleão Grupo de Dança20. A UFMG possibilitou e demandou a ampliação dos horizontes para pensar em processos de conhecimento em dança. Do ponto de vista da formação nessa área, anteriormente à atuação na Universidade, dedicava-me ao processo formativo do dançarino, sendo comum que após, ou mesmo durante esse percurso, o profissional atuasse também como professor em cursos livres ou técnicos. Na Universidade, em um curso de licenciatura, a perspectiva de formação tornou-se outra e o alunado também bastante diverso. Interessou-me pensar no diálogo entre esses diferentes modos de conhecer e fazer dança, na perspectiva de que essas interações possam contribuir para reflexões sobre processos formativos nesse campo, particularmente no âmbito da Universidade, território no qual se situa essa pesquisa. Encontrei, em Marilene Martins, terreno fértil e material relevante para investigar, refletir e dialogar sobre a Dança como área de conhecimento. No ano de 2002, quando eu cursava a Graduação em Artes Cênicas21 na EBA/UFMG, tomei conhecimento da abordagem pedagógica de Marilene Martins no Trans-Forma e a sua importância para Belo Horizonte, por meio da Dissertação de Arnaldo Leite de Alvarenga. Posteriormente, em 2005, Glória Reis realizou uma publicação na qual abordou o Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Reis (2005) também enfatiza a relevância do trabalho artístico de Martins no contexto belo- horizontino. No período de 2006 a 2008, desenvolvi, junto ao PPG-Artes da EBA/UFMG, sob a orientação do Professor Dr. Luís Otávio Carvalho Gonçalves de Souza, o estudo que 16 Atualmente, o CEFAR é denominado Centro de Formação Artística e Tecnológica (CEFART). 17 A Cia. de Dança Palácio das Artes é um dos corpos artísticos estáveis da Fundação Clóvis Salgado e representa oficialmente o estado de Minas Gerais. A Companhia foi constituída em 1971, pelo Professor Carlos Leite, sob a denominação Corpo de Baile da Escola de Balé da Fundação Palácio das Artes (REIS, 2010). 18 O Grupo de Dança Primeiro Ato foi fundado em 1981, por Suely Machado, Ivana Pezzuti, Maria Inês Menicucci e Simone Caporali, às quais, posteriormente, juntou-se Kátia Rabelo (SIRIMARCO, 2009). Conforme Sirimarco (2009), logo no início, o Primeiro Ato passou a ser dirigido unicamente por Suely Machado, destacando-se por uma trajetória nacional e internacional e um trabalho caracterizado por forte teatralidade. 19 A Cia. Mário Nascimento foi fundada em São Paulo, em 1998, pelo músico Fábio Cardia e pelo coreógrafo e diretor Mário Nascimento (Cf. http://ciamn.blogspot.com/). 20 O Camaleão Grupo de Dança foi fundado em Belo Horizonte, em 1984, por Marjorie Quast, que assumiu a direção do Grupo desde seu início (Cf. http://camaleaogrupodedanca.blogspot.com/). 21 O nome deste curso foi alterado para Graduação em Teatro. 20 resultou na Dissertação intitulada Movimento expandido: confluência entre a dança e o teatro na criação do bailarino. Na ocasião, entrevistei Marilene Martins sobre a sua participação no processo de criação da coreografia O Caso do Vestido, de Klauss Vianna. Novamente, em 2010, retornei à Marilene Martins para abordar vida e obra da artista, como pesquisadora integrante do Projeto Missão Memória da Dança no Brasil, coordenado por Arnaldo Leite de Alvarenga. Esse trabalho gerou a publicação da série de livros denominada Personalidades da Dança em Minas Gerais, cujo objetivo foi traçar os perfis biográficos de artistas e professores pioneiros da dança em Belo Horizonte, entre eles, Marilene Martins. Esse Projeto permitiu-me entrevistar e ter acesso aos acervos particulares de Marilene Martins e dos artistas- professores, Arnaldo Alvarenga, Dudude e Lydia Del Picchia22. Nessa oportunidade, tomei conhecimento e tive em mãos os primeiros exemplares dos cadernos de anotações e manuscritos relativos à abordagem artístico-pedagógica de Martins, que me trouxeram ao doutoramento. Além das pesquisas que me levaram à Martins, anteriormente estive próxima ao Trans-Forma, seja na fase de formação artística, seja em minha atuação profissional como dançarina e professora de dança. No período de 1988 a 2000, estudei dança com Dudude. Também participei de processos de criação e remontagem coreográfica com Dudude e com Arnaldo Alvarenga, quando integrei a Meia Ponta Cia. de Dança23. Nesta Cia. dancei Serenata do Adeus, obra coreográfica de autoria de Arnaldo Alvarenga e Lydia Del Picchia, que fez parte do repertório do Grupo Trans-Forma. Posteriormente, no Centro de Formação Artística fui colega de Lúcia Ferreira, com quem compartilhei afinidades profissionais identificadas no contexto da escola de Marilene Martins. E, ainda, a partir do ano de 2000, iniciei uma parceria artística com Tarcísio Ramos Homem24, que fez sua formação com Martins e também integrou o grupo sob a direção da artista. A convivência com Tarcísio também foi importante para aproximar-me das ideias de Marilene Martins. 22 Lydia Del Picchia, nascida em 1962, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM e do Curso Avançado de Dança Moderna dessa escola. Foi também dançarina, professora de dança moderna e assistente de direção de Marilene Martins no Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Integrou, como dançarina, professora e assistente de coreografia, a Cia. de Dança Palácio das Artes (BH/MG) e o Grupo Primeiro Ato (BH/MG). Atualmente é atriz do Grupo Galpão (BH/MG) e coordenadora pedagógica do Galpão Cine Horto (Informação verbal). 23 A Meia-Ponta Cia. de Dança foi fundada em Belo Horizonte, em 1989, pelas dançarinas e coreógrafas Juliana Grillo e Marisa Monadjemi (Informação verbal). 24 Tarcísio Ramos Homem, nascido em 1964, é dançarino, coreógrafo, professor e pesquisador. Atualmente, é professor do Teatro Universitário da UFMG (Informação verbal). 21 A pesquisa25 realizada se apresenta, portanto, nesta Tese, composta por quatro capítulos, a partir da Introdução. O capítulo 1 – “Metodologia, ou modos de fazer”– apresenta a abordagem metodológica da pesquisa, fundamentada no campo da crítica genética, a partir de Salles (2008, 2009, 2014) e Creswell (2014). Essa parte também abrange os referenciais teóricos que compuseram o que denominamos rede de conversação, ou rede epistemológica, e que acompanhou o desenvolvimento do estudo. Fizeram parte desse tecido o conceito de “criação como rede em processo”, de Salles (2014), a conceituação de “rede”, a partir de Musso (2013) e a teoria da autopoiese, de Maturana e Varela (2001, 2003). E, ainda, diante da importância de contextualização doobjeto da pesquisa, alguns outros diálogos também foram traçados, a partir dos conceitos de “moderno” e “pós-moderno” em autores como Harvey (2012), Hutcheon (2014), Lyotard (2011) e Paz (1984). Nesse âmbito conceitual, interessaram perspectivas que enfatizam a dança, como em Banes (1987), Louppe (2012) e Silva (2005). Autores como Efland (2008) e Jagodzinsky (2008) foram importantes pelas reflexões que fazem sobre o processo de ensino-aprendizagem de arte nos contextos moderno e pós- moderno. E, ainda, considerou-se a relevância de discussões que problematizam esses movimentos artísticos na América Latina e no Brasil, como as de Coutinho (2008) e Coelho (2011). O capítulo 2 – “Marilene Martins: diálogos artísticos e pedagógicos”– descreve e analisa a trajetória de Marilene Martins, de 1952 a 1968, anterior à fundação de sua escola de dança. No período delimitado, ressaltamos os estudos de dança realizados por Marilene, as primeiras atividades profissionais, como dançarina e como professora, além de outras experiências que se mostraram relevantes na conjuntura do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. O capítulo 3 – “Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea: ‘uma janela ventilada’” – descreve e analisa a configuração da escola em torno da qual Marilene Martins estruturou o CBDM. Nesta parte, buscou-se identificar e compreender as ideias que fundamentaram a proposição artístico-pedagógica de Martins. Também foi abordado o investimento específico de Martins relativo à formação do artista-professor, que envolveu o que se denominou Curso de Didática, o acompanhamento do trabalho artístico-docente, os estudos relativos à 25 A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), da UFMG. Os termos de autorização dos participantes envolvidos encontram-se sob responsabilidade da pesquisadora. 22 proposição de dança de Marilene, além do registro deste trabalho, que resultou nos cadernos de anotações dos artistas-professores. O capítulo 4 – “Curso Básico de Dança Moderna” – apresenta o acompanhamento crítico- interpretativo dos cadernos de artistas-professores do Trans-Forma, por meio do diálogo com os referenciais componentes da rede epistemológica constituída para a pesquisa. Nessa parte, que envolve a escritura característica das anotações feitas nos cadernos e o conteúdo específico de dança registrado pelos artistas-professores, buscou-se compreender a tecitura epistemológica do CBDM, do Trans-Forma. Após o capítulo 4, são apresentadas as Considerações Finais da pesquisa. 23 1 METODOLOGIA, OU MODOS DE FAZER Para cada uma das coisas feitas, por um sujeito, há uma metodologia. [...] Para cada uma das coisas feitas, por inúmeros sujeitos, existem inúmeros modos de fazer. [...] As metodologias são criadas pelos sujeitos enquanto estes estão criando seus objetos. Antes, imaginam. [...] A pesquisa cria metodologias enquanto cria interpretações. (HISSA, 2013, p. 125) Consideramos metodologia, a partir de Hissa (2013), como modos de fazer. Na pesquisa, o pensar os modos de fazer também foi uma das formas de investigar o objeto – a abordagem epistemológica do CBDM, concebida por Marilene Martins, no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Para estudá-la, foi necessário verificar as fontes disponíveis, identificar questões apresentadas por elas e propor modos coerentes para analisá-las, seguindo também o pensamento de Pimentel (2014, p. 20), que compreende a metodologia como uma proposição do pesquisador: Por metodologia entende-se a construção, por parte d@26 pesquisador@, de propostas de hipóteses, teorias e soluções a partir do conhecimento dos fundamentos ou premissas de métodos, propostas ou abordagens divulgadas. Assim, os métodos estão à disposição de tod@s, mas a metodologia é criada por cada pesquisador@ a cada proposta de investigação. Nesse sentido, buscou-se constituir uma estrutura metodológica coerente com o objeto e com o ponto de vista da pesquisadora. Considerou-se que as características do objeto observado e o olhar do sujeito observador estão relacionados à possibilidade de se construir condições para a realização da pesquisa, como analisa Salles (2008, p.70): Sabe-se que o olhar do pesquisador está [...], impregnado de seu modo de perceber as coisas, ou seja, de sua visão de mundo, que envolve sua formação e as teorias críticas às quais teve acesso. Mas, ao mesmo tempo, os documentos se impõem ao olhar do crítico, propondo ou exigindo indagações e instigando rumos teóricos [...]. Nesta pesquisa, optou-se por uma abordagem qualitativa, conforme Creswell (2014). O autor explica que esses tipos de estudo envolvem especificidades quanto a alguns aspectos, como em relação às questões e perspectivas a serem tratadas, às condutas relativas à coleta e análise de dados, às atitudes do pesquisador em relação ao objeto e seu contexto, além das possíveis contribuições de uma pesquisa com esse caráter: 26 Pimentel (2014) utiliza o símbolo @ para indicar masculino/feminino. 24 A pesquisa qualitativa começa com pressupostos e o uso de estruturas interpretativas/teóricas que informam o estudo dos problemas da pesquisa, abordando os significados que os indivíduos ou grupos atribuem a um problema social ou humano. Para estudar esse problema, os pesquisadores qualitativos usam uma abordagem qualitativa de investigação, a coleta de dados em um contexto natural sensível às pessoas e aos lugares em estudo e a análise dos dados que é tanto indutiva quanto dedutiva e estabelece padrões ou temas. O relatório final ou a apresentação incluem as vozes dos participantes, a reflexão do pesquisador, uma descrição complexa e interpretação do problema e a sua contribuição para a literatura ou um chamado de mudança (CRESWELL, 2014, p. 52). A metodologia surgiu a partir do estudo do objeto, da delimitação de seu contexto de investigação, das fontes disponíveis – os cadernos de artistas-professores que atuaram no CBDM, do Trans-Forma –, dos objetivos propostos, da hipótese e das questões levantadas no decorrer do processo. Nessa perspectiva, consideramos pertinente a pesquisa documental e a pesquisa de referência, bem como a construção de uma rede epistemológica para subsidiar a abordagem crítico-interpretativa pretendida. 1.1 Pesquisa documental Definido o objeto e consideradas as fontes primárias da pesquisa – os cadernos de artistas- professores –, percebeu-se a pertinência da crítica genética27, a partir de Salles (2008, 2009, 2014), para a abordagem documental. Ressalta-se que, conforme esse campo de investigação, não se buscou a origem do trabalho de Marilene Martins, mas o percurso de criação de sua abordagem artístico-pedagógica, com o intuito de identificar os componentes que dele fizeram parte, sua organização, suas transformações. Como explica Salles (2009, p. 17): O foco de atenção é, portanto, o processo por meio do qual algo que não existia antes, como tal, passa a existir, a partir de determinadas características que alguém vai lhe oferecendo. [...] A grande questão que impulsiona os estudos genéticos é compreender a tessitura desse movimento. 27 A crítica genética surgiu na França, em 1968, em um movimento iniciado por Almuth Grésillon e Louis Hay. Na ocasião, um grupo de pesquisadores reunidos pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), foi incumbido de organizar os manuscritos do escritor alemão, Heinrich Heine, que acabava de ser adquirido pela Biblioteca Nacional da França (GRÉSILLON, 1991; LEBRAVE, 2002; SALLES, 2008). Lebrave (2002, p. 97) explica que o fato de manuscritos, já tratadosem outras circunstâncias, terem sido compreendidos naquele momento como “objeto de investigação científica” gerou uma postura que resultou na busca por parâmetros para abordar materiais de caráter processual. O campo da crítica genética expandiu seu espaço geográfico de atuação. No Brasil, chegou em meados de 1980, por meio das discussões de Philippe Willemart, que incomodaram o meio literário da época (ROMANELLI, 2015). Mesmo com uma recepção pouco acolhedora, a crítica genética se instaurou no país como uma área promissora de pesquisa, cujo desenvolvimento destacou-se no cenário internacional pela ampliação de suas delimitações conceituais e metodológicas, como analisado por Romanelli (2015). 25 Na perspectiva da crítica genética, Salles (2008, p.33) reitera que “[...] o pesquisador busca a história das obras; vive numa estreita ligação com um ato eminentemente íntimo; e procura pelos princípios (ou alguns princípios) que regem esse processo”. Ao optar pela via do processo, a crítica genética surge como um modo de capturar aquilo que parece invisível na obra, e que a sustenta. Esse caminho mostrou-se coerente com as necessidades e características do objeto e da pesquisadora. No caso, o objeto envolve o processo de construção de uma abordagem de conhecimento no campo de dança; e a pesquisadora, dançarina e professora, com interesse em processos de criação artística e de conhecimento nessa área. Ao valorizar o processo de criação, a crítica genética ressalta a figura do autor, sujeito no processo, e se posiciona contrária ao discurso dicotômico, considerando o processo, a obra e o autor como integrantes da unidade artística. A crítica genética interessou, então, inicialmente, por abordar processos de criação por meio dos registros desse percurso, feitos pelo sujeito criador, o que se mostrou coerente com o corpus documental da pesquisa. Cabe ressaltar que, em virtude de voltar-se para processos de criação, a crítica genética, embora surgida no campo da literatura, deslocou-se para outras áreas artísticas e também científicas (SALLES, 2008; FERRER, 2002; ROMANELLI, 2015). Compreende-se que, por apresentar território fronteiriço, o processo de criação aceita abordagens e atravessamentos distintos, o que também definiu os contornos da crítica genética. Salles (2008) observa que, a partir da década de 1990, houve uma expansão de caráter transdisciplinar nesse campo, inicialmente percebida pela diversidade de obras literárias e de referenciais teóricos que passaram a interessar os pesquisadores. Nessa perspectiva, Salles desenvolveu um trabalho precursor, ao introduzir diferentes áreas artísticas, como as artes visuais, a dança e o cinema nos estudos genéticos (ZULAR, 2002; FERRER, 2002). Essa abrangência conceitual foi outro aspecto importante para adotar esse referencial teórico-metodológico, já que nesta pesquisa o processo abordado tem caráter artístico-pedagógico. Para a pesquisa documental, organizou-se um “dossiê genético”, ou seja, um conjunto de documentos relativos ao processo de criação abordado (SALLES, 2008; PINO; ZULAR, 2007). Ressalta-se que os documentos que constituíram o dossiê encontravam-se guardados há quase trinta anos e não haviam sido, até então, reunidos ou tratados de forma sistemática. Considerando a especificidade desse tipo de documentação, esta pesquisa esteve condicionada 26 ao acesso a esses materiais possibilitado por alguns artistas-professores do Trans-Forma, que guardaram seus cadernos de registro durante esses anos. Além dos cadernos de artistas-professores, a pesquisa documental também abrangeu outros materiais, como manuscritos de Martins, entrevistas, matérias de jornais, programas de espetáculos e documentos administrativos do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Conforme Salles (2014) sugere, essas fontes serviram para apoiar a abordagem dos cadernos, já que também fazem referência ao trabalho desenvolvido por Marilene. No caso específico das entrevistas, foram utilizados depoimentos de Marilene Martins e artistas-professores do Trans-Forma concedidos à autora em ocasiões anteriores a esta pesquisa. Esses depoimentos foram importantes por conterem informações relativas ao percurso de Martins, bem como às atividades desenvolvidas no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Ressalta-se que alguns desses depoimentos abordam a construção do CBDM, além de terem explicitado a existência dos cadernos de artistas-professores relativos a este estudo. 1.1.1 Artistas-professores do Trans-Forma Os artistas-professores cujos materiais compuseram o dossiê da pesquisa foram Arnaldo Alvarenga, Dorinha Baêta, Dudude, Lúcia Ferreira e Mônica Rodrigues. Alguns motivos levaram aos nomes desses artistas. Inicialmente, no levantamento feito, foi constatada a presença de quinze professores no CBDM do Trans-Forma, no período de 1973 a 1985. Nesse panorama, os critérios utilizados para a escolha foram: o tempo de permanência no Trans- Forma como artista-professor; a continuidade do trabalho como artista-professor de dança, após a saída do Trans-Forma; e, principalmente, a existência do material e a possibilidade de acesso a ele. Com relação ao período de atuação como professores do Trans-Forma, Dorinha Baêta foi quem permaneceu mais tempo, de 1974 a 1983, tendo sido professora de Lúcia Ferreira e de Arnaldo Alvarenga, quando estes iniciaram seus estudos na escola. Dudude lecionou no Trans-Forma de 1975 a 1981. Arnaldo Alvarenga e Lúcia Ferreira trabalharam no mesmo período, de 1982 a 1984. No grupo de artistas-professores que fizeram parte desta pesquisa, Mônica Rodrigues foi quem menos tempo lecionou na escola, e embora tenha dado aulas apenas nos anos de 1983 e 1984, a artista-professora havia guardado seus cadernos de registro. Destaca-se que esses cinco profissionais apresentaram também cadernos de registro 27 relativos a trabalhos feitos posteriormente à saída do Trans-Forma, o que poderá estimular outros estudos. Duas outras artistas-professoras fizeram parte do grupo identificado na pesquisa – Juliana Braga28, que deu aulas de 1980 a 1984, e Lydia Del Picchia, de 1979 a 1985. Infelizmente, seus cadernos não foram encontrados durante o desenvolvimento desse trabalho. Ressalta-se que os artistas-professores participantes da pesquisa apresentaram em comum o fato de terem feito formação em dança no Trans-Forma. Isso implicou, inclusive, na composição de um corpo docente especializado. Observou-se, ainda, que todos esses artistas- professores, como vários outros que fizeram parte do corpo docente da escola, pertenceram a alguma fase do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Também foram identificadas outras funções desenvolvidas por esses artistas, desde atividades artísticas, como assistência de direção em espetáculos de final de ano, até a responsabilidade pela parte financeira do Grupo Trans-Forma, o que demonstrou um envolvimento abrangente dos artistas-professores com a escola, de forma geral. Nesse sentido, percebeu-se o caráter coletivo do processo de construção do CBDM. Considerando essa perspectiva de coletividade, os artistas-professores do Trans-Forma foram abordados, principalmente, como integrantes de um mesmo processo, respeitando-se suas individualidades, diferenças e contribuições. Os artistas-professores participantes da pesquisa foram tratados, primordialmente, no contexto coletivo identificado na escola. Assim, suas trajetórias individuais, embora tenham sido mencionadas, não foram consideradas de forma sistemática. 1.1.2 Dossiê: documentos de processo A organização do dossiê estabeleceu-se como uma etapa inicial da pesquisa. A constituição desse material pode ser compreendida como uma reunião de documentos definida por um recorte do pesquisador (PINO; ZULAR, 2007; SALLES, 2008), correspondendo, assim, a uma elaboração teórico-críticado pesquisador sobre o objeto. Ao constituir o dossiê, o intuito não foi refazer o percurso criador, já que não se considerou, concordando com Salles (2008) e Hay (2002), que esses documentos possam abranger a complexidade do processo de criação. O que se buscou nos documentos de processo foram “rastros” que permitissem o acesso ao 28 Juliana Braga (1964) realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM dessa escola. Atualmente reside na Holanda e atua como professora de dança (Informação verbal). 28 pensamento do sujeito criador, como sugere Salles (2008, p. 26): “Ao mergulhar no universo do processo criador, as camadas superpostas de uma mente em criação vão sendo lentamente reveladas e surpreendentemente compreendidas”. No caso da abordagem de Marilene Martins, buscamos materiais, conceitos, noções e articulações que fundamentaram sua perspectiva de conhecimento de dança. O dossiê desta pesquisa constituiu-se de vinte e um cadernos e alguns manuscritos de cinco artistas-professores do Trans-Forma e de Marilene Martins. Para compor esse dossiê, foi feita uma seleção do material total reunido, sendo escolhidas, exclusivamente, as anotações relativas ao CBDM, o que também correspondeu à maior parte das anotações encontradas. O dossiê abrangeu registros, ou, documentos de processo de todos os cinco anos desse Curso. Com relação ao teor, a documentação apresenta anotações dos conteúdos básicos trabalhados em cada um dos anos do Curso e também de temas específicos utilizados nas aulas. Quanto à prática artístico-docente, há roteiros de aula de todos os artistas-professores, feitos diariamente ou a cada semana, e, ainda, proposições relativas aos exames periódicos, realizados ao final do semestre. Sobre o cotidiano em sala de aula, há comentários sobre o desenvolvimento de alunos e turmas, além de anotações sobre recursos didáticos e atividades relativas ao planejamento e preparação das aulas. Ressalta-se que todos os cinco anos do Curso foram registrados por dois ou mais artistas-professores participantes da pesquisa, o que se mostrou importante na análise realizada. Assim, com relação ao 1º. Ano Moderno, há anotações de Arnaldo Alvarenga, Dorinha Baêta, Lúcia Ferreira e Mônica Rodrigues; do 2º Ano Moderno, foram encontrados registros de Dorinha Baêta, Dudude, Lúcia Ferreira e Mônica Rodrigues; quanto ao 3º,ao 4º e ao 5ºAnos, há anotações de Dorinha Baêta e de Dudude. Finalmente, foram encontradas anotações sobre reuniões do corpo docente, em que Marilene Martins apresentava materiais, orientava os professores e coordenava as discussões sobre o processo de ensino-aprendizagem. Os documentos que compuseram o dossiê foram selecionados, organizados, classificados e descritos. Trabalhamos a partir das noções de “armazenamento” e “experimentação”, de Salles (2014). Nesse sentido, por meio de uma primeira leitura de caráter interpretativo, buscou-se identificar os materiais armazenados, ressaltando dentre eles aqueles elementos que se mostraram fundamentais na proposta artístico-pedagógica de Martins. O acompanhamento também esteve voltado para observar e identificar a experimentação, ou seja, os modos 29 utilizados por Marilene e pelos artistas-professores para abordar os materiais componentes do processo, bem como a função de cada material no CBDM. À leitura interpretativa seguiu-se o acompanhamento crítico-interpretativo em que se buscou, em diálogo com referenciais teóricos, discutir a estrutura e a organização dos materiais encontrados, bem como as relações desses materiais entre si e com outros elementos. 1.2 Pesquisa de referência O conjunto de referenciais abrangeu, basicamente, a pesquisa bibliográfica realizada com o intuito de subsidiar o acompanhamento crítico-interpretativo do dossiê constituído e possibilitar a compreensão da abordagem epistemológica do CBDM, do Trans-Forma. Com relação ao tema tratado, ou seja, o processo de conhecimento em dança, inicialmente, as discussões de diversos pesquisadores brasileiros foram fundamentais, particularmente com relação aos ambientes de formação em cursos de graduação do país, divulgadas em publicações acadêmicas. Para abordar a trajetória artístico-pedagógica de Martins, ressaltamos a importância das Dissertações de mestrado de Arnaldo Leite de Alvarenga, defendida em 2002, e de Glória Reis, de 2005. Alvarenga tratou da construção da dança moderna em Belo Horizonte, discutindo a proposta educacional de dança de Marilene Martins no contexto sócio-cultural e a partir da história dessa arte na capital mineira. Reis aborda a história das artes cênicas também no panorama belo-horizontino. A autora defende a importância do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança, criado por Marilene Martins, para o desenvolvimento dessa arte na cidade. Em seu estudo, Reis constata a reverberação do trabalho artístico desenvolvido pelo Trans-Forma, mesmo após a finalização das atividades desse Grupo. Também conforme a orientação metodológica da crítica genética, alguns referenciais teóricos acompanharam a análise dos cadernos de artistas-professores. Nesse sentido, um aspecto relevante para o diálogo com a crítica genética foi a sua flexibilidade epistemológica que favoreceu a pesquisa, situada no campo da Dança. Ao discutir sobre as delimitações da crítica genética, Zular (2002, p. 14) expõe uma perspectiva que sugere adaptabilidade conforme o objeto a ser abordado: 30 [...] faz-se necessário explicitar, de pronto, o que a crítica genética não pretende ser. Isto é, as preocupações teóricas que a ensejam não têm por objetivo reduzir a criação artística a determinados critérios e conceitos, nem estabelecer os critérios de produção que conduzem às grandes obras e muito menos os artifícios e juízos de valor que permitiriam novas criações. Salles (2008) reitera que o arcabouço teórico deverá ser coerente com as necessidades do objeto e conforme sua materialidade e questões, e não, para legitimar um determinado processo de criação. Assim, esses referenciais foram buscados não para silenciar a dança, mas para possibilitar a construção de conhecimento nesse campo, o que identificamos ser possível a partir da discussão de Salles (2014, p. 15), que explica: “Os instrumentos teóricos devem ser convocados de acordo com as necessidades do andamento das reflexões, para que os documentos dos artistas não se transformem em meras ilustrações das teorias”. A partir da crítica genética, foram estabelecidas articulações teóricas para a interpretação crítica de um objeto de natureza processual, caracterizado por complexidade e dinamicidade. Propomos, assim, um terceiro procedimento metodológico, que se constituiu por uma rede epistemológica tecida a partir do que denominamos “pontos de referência”. 1.2.1 Pontos de referência: “criação como rede em processo” e conceito de “rede” Ao buscar um espaço epistemológico favorável à pesquisa, um aspecto importante do objeto observado foi a sua disponibilidade para estabelecer e articular novos diálogos. Esse panorama levou ao conceito de “criação como rede em processo”, de Salles (2014), que diz respeito a um ambiente de criação construído e sustentado por relações e pelas transformações geradas por elas. Ao construir essa noção, no âmbito da criação artística, Salles faz referência ao conceito de “rede”, que transita em diversos campos de conhecimento, como as ciências sociais e da natureza, a matemática, as tecnologias, a comunicação, a economia, a arte (MUSSO, 2013; PARENTE, 2013). Como Kastrup (2013, p. 85) ressalta, “[...] a rede articula elementos heterogêneos como saberes e coisas, inteligências e interesses [...]”. Cabe ressaltar a horizontalidade nas relações que caracteriza o tecido reticular. Esse aspectopermite a articulação de distintos saberes e modos de conhecer, o que se torna importante em uma pesquisa que, construída no contexto acadêmico, envolve epistemologias construídas nesse campo, mas também fora dele. Na Antiguidade, o termo rede esteve relacionado a tecidos internos do corpo humano, como o cérebro e o sistema circulatório (MUSSO, 2013). A imagem reticular esteve associada também ao vínculo que se acreditava existir entre o fluxo interno do corpo, o ambiente circundante e o Universo (CAUQUELIN, 1987). No século 31 XIX, a noção de rede passou de algo a ser imaginado ou observado na natureza para a compreensão de algo a ser construído (MUSSO, 2013), como aconteceu nesta pesquisa, em que a construção em rede foi um modo de desenvolvê-la. Nesse sentido, similarmente ao que observa Salles (2014), foram feitos dois movimentos, relacionados entre si. O primeiro, em que foi construída uma rede epistemológica para abordar o objeto. E, o segundo, em que o objeto da pesquisa tomado como rede em processo foi observado e analisado Ao sistematizar o conceito de “criação como rede em processo”, no âmbito da criação artística, Salles (2014) estabelece a presença de alguns aspectos fundamentais, sendo eles: a dinamicidade, a interação, a transformação e o inacabamento. A dinamicidade diz respeito ao caráter flexível e ao fluxo em um processo de criação. Esse é um aspecto que permite adicionar, dispensar ou deslocar elementos, estímulos e materiais. Salles compreende que tais ações sejam realizadas a partir de critérios do sujeito criador e se constituem em acessos para a observação e a análise do percurso criativo. As interações correspondem às conexões que se fazem entre os elementos que compõem a rede e definem a densidade e a complexidade da rede. Essas interações se fazem de forma não linear e não hierárquica, podendo seguir várias direções. Salles (2014) ressalta, e isso interessa neste estudo, que as interações têm caráter inferencial, ou seja, correspondem ao pensamento do sujeito criador que, ao relacionar um elemento com outro está desenvolvendo sua criação e expondo seu ponto de vista sobre o mundo29 do qual se fala. O acompanhamento das interações, a identificação dos modos como elas se constituíram e o seu significado na rede possibilitam chegar ao que Salles denomina transformação, que também caracteriza o conceito criado pela autora. Quanto ao inacabamento, Salles (2014, p. 20) explica que não se trata de algo que não foi finalizado, mas da natureza daquilo que foi gerado por meio de um processo de criação: Estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse – seja um romance, uma peça publicitária, uma escultura, um artigo científico ou jornalístico – como uma possível versão daquilo que pode vir a ser modificado. Compreendemos o inacabamento como o estado latente de criação em um processo que, considerado sob a perspectiva de um movimento em rede, encontra-se continuamente 29 Novamente, utilizamos o termo “mundo” conforme propõe Hissa (2013), que o utiliza com o significado de contexto da pesquisa e do sujeito da pesquisa, considerado também um sujeito criador. 32 disponível para a ocorrência de interações, o que se mostrou coerente com as discussões feitas por Alvarenga (2002) e Reis (2005) em relação à permanência das ideias de Martins no cenário de dança em Belo Horizonte. O inacabamento, juntamente com as características de heterogeneidade e ausência de hierarquia, que marcam o contexto de rede, oferecem subsídio para compreender a rede como parte de um contexto, em que se configura uma “rede de redes”, como sugere Musso (2013, p. 32). Essa perspectiva interessou para esta pesquisa, já que consideramos importante compreender a proposta artístico-pedagógica de Marilene Martins a partir também do contexto artístico, no qual a artista esteve inserida, anteriormente à fundação do Trans-Forma. Como observado neste estudo, alguns referenciais que compuseram o panorama do Trans-Forma acompanharam Marilene desde seus primeiros estudos de dança. 1.2.2 Ponto de referência: teoria da autopoiese Considerado o objeto desta pesquisa como um processo de conhecimento, o próximo ponto de referência da rede epistemológica se constituiu pela teoria da autopoiese30, dos biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela (2001, 2003), que aborda a fenomenologia do conhecer do humano. Assim como a crítica genética e o conceito de rede, o trabalho de Maturana e Varela extrapolou os limites de sua área científica. Vinte anos após a primeira publicação31 sobre a teoria da autopoiese, Varela (2003, p. 34) reflete sobre a abrangência do conceito: O que faz uma idéia como a autopoiese, estritamente uma teoria da organização celular, adquirir visibilidade e proeminência além da biologia e afetar campos distantes do conhecimento? [...] A essa distância, a autopoiesis ocupa, na minha opinião, um lugar privilegiado porque anunciou de forma clara e explícita uma tendência de hoje, já que é uma configuração de forças em muitos campos do fazer32 (Tradução da autora). 30 Nessa pesquisa, ao fazer referência ao conceito de autopoiese, comumente serão citados ambos os nomes dos pesquisadores, Humberto Maturana e Francisco Varela. No entanto, os pesquisadores poderão ser abordados, separadamente, em virtude de seus trabalhos individuais desenvolvidos posteriormente. Finalmente, cabe ressaltar que nessa pesquisa utilizamos, de forma mais proeminente, o trabalho de Maturana, especialmente sua noção de alteridade que integra o estudo do autor denominado Biologia do Amor. 31 Publicado em 1973, De máquinas e seres vivos: Autopoiese – a organização do vivo foi a primeira obra sobre a teoria da autopoiese escrita conjuntamente por Humberto Maturana e Fransciso Varela. Anteriormente a essa publicação, Maturana já havia iniciado estudos sobre sistemas de auto-organização e cognição e publicado artigos científicos, nos quais agradece a colaboração de Francisco Varela (MATURANA; VARELA, 2003). 32Trecho original: “Que hace que una idea como la autopoiesis, estrictamente una teoría de la organización celular, adquiera visibilidad y prominencia más allá de la biologia profesional y sea capaz de afectar campos de saber lejanos? Mi respuesta es que en último término sólo podemos compreender ese fenómeno porque la idea contiene un trasfondo de sensibilidades históricas de importancia com las cuales se alínea y resuena. Ese 33 A tendência a que Varela (2003, p. 34) se refere e denomina “giro ontológico da modernidade”33 diz respeito ao esgotamento do pensamento cartesiano que, a partir do fim do século XIX e no século XX, favorece o surgimento de novas perspectivas de produção de conhecimento caracterizadas por atravessamentos entre áreas distintas. Alguns autores (KASTRUP, 2008; MAGRO; PAREDES, 2001; MARIOTTI, 2001), apontam que a teoria da autopoiese gerou discussões e pesquisas em diversos campos como as ciências da cognição, a educação, as artes, a psicologia, a filosofia, dentre outras. Como observam Graciano e Magro (1999) e Kastrup (2007), os estudos de Maturana e Varela seguem pautados em procedimentos e em mecanismos científicos específicos para a demonstração dos fenômenos tratados, mas a abordagem que os autores fazem dessa temática apresenta uma dimensão de caráter filosófico, o que também colabora para a abrangência conceitual da autopoiese. Considerando esse aspecto nas ideias de Maturana e Varela, Kastrup (2008, p. 61) comenta: Procuramos demonstrar que é possível distinguir na ideia de autopoiese duas dimensões. A primeira, científica, diz respeito a sua encarnação nos seres vivos, em indivíduos concretos
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