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DissertacIaIãÆo-ALVES--Izabella-Riza--aÔéôESSE-POVO-MATA-MESMOaÔéØ--biopoliIütica-e-cisnormatividade-nas-audieIÔÇÜncias-de-custoIüdia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
Programa de Pós-graduação em Direito 
 
 
 
 
 
 
Izabella Riza Alves 
 
 
 
 
 
 
 
 
“ESSE POVO MATA MESMO”: biopolítica e cisnormatividade nas audiências de 
custódia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Belo Horizonte 
2021 
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
Programa de Pós-graduação em Direito 
 
 
 
 
Izabella Riza Alves 
 
 
 
“ESSE POVO MATA MESMO”: biopolítica e cisnormatividade nas audiências de 
custódia 
 
 
 
 
Dissertação de Mestrado apresentada ao 
Programa de Pós-graduação em Direito da 
Universidade Federal de Minas Gerais 
(UFMG), como requisito obrigatório para 
obtenção do título de Mestre em Direito. 
Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio Sousa 
Alves 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Belo Horizonte 
2021 
 
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Junio Martins Lourenço - CRB 6 3167.
 A474e Alves, Izabella Riza
 "Esse povo mata mesmo" [manuscrito]: biopolítica e
 cisnormatividade nas audiências de custódia / Izabella
 Riza Alves.-- 2021.
 Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas
 Gerais, Faculdade de Direito.
 1. Direito Penal - Brasil - Teses 2. Processo penal
 - Brasil - Teses 3. Biopolitica - Teses 4. Transexuais
 - Teses 5. Travestis - Teses I. Alves, Marco Antônio Sousa
 II. Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de
 Direito III. Título
 CDU: 343.1(81)
 
 
 
 
 
 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFMG 
 
 
________________________________________________ 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO 
Av. João Pinheiro, 100 - 11º andar - Centro - Belo Horizonte - MG – Brasil - 30130-180 
Fone: (31) 3409.8635 - E-mail: info.pos@direito.ufmg.br – https://pos.direito.ufmg.br 
FACULDADE DE DIREITO UFMG 
DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO 
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: DIREITO E JUSTIÇA 
BELª. IZABELLA RIZA ALVES 
 
 
 Aos vinte e seis dias do mês de agosto de 2021, às 14h00, via plataforma virtual, 
reuniu-se, em sessão pública, a Banca Examinadora constituída de acordo com o art. 
73 do Regulamento do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade 
Federal de Minas Gerais, e das Normas Gerais de Pós-Graduação da Universidade 
Federal de Minas Gerais, integrada pelos seguintes professores: Prof. Dr. Marco 
Antônio Sousa Alves (orientador da candidata/UFMG); Prof. Dr. Andityas Soares de 
Moura Costa Matos (UFMG) e Profa. Dra. Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (UFMG), 
designados pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Direito da 
Universidade Federal de Minas Gerais, para a defesa de Dissertação de Mestrado da 
Belª. IZABELLA RIZA ALVES, matrícula nº 2019666760, intitulada: "'ESSE POVO 
MATA MESMO': BIOPOLÍTICA E CISNORMATIVIDADE NAS AUDIÊNCIAS DE 
CUSTÓDIA". Os trabalhos foram iniciados pelo orientador da candidata, Prof. Dr. 
Marco Antônio Sousa Alves, que, após breve saudação, concedeu a candidata o prazo 
máximo de 30 (trinta) minutos para fins de exposição sobre o trabalho apresentado. Em 
seguida, passou a palavra ao Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos, para o 
início da arguição, nos termos do Regulamento. A arguição foi iniciada, desta forma, 
pelo Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos, seguindo-se-lhe, pela ordem, os 
Professores Doutores: Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro e Marco Antônio Sousa Alves. 
Cada examinador arguiu a candidata pelo prazo máximo de 30 (trinta) minutos, 
assegurando a mesma, igual prazo para responder às objeções cabíveis. Cada 
examinador atribuiu conceito a candidata, em cartão individual, tendo se verificado o 
seguinte resultado: 
 
 
Prof. Dr. Marco Antônio Sousa Alves (orientador da candidata/UFMG) 
Conceito: 100 (cem) 
 
 
Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) 
Conceito: 100 (cem) 
 
 
Profa. Dra. Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (UFMG) 
Conceito: 100 (cem) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFMG 
 
 
________________________________________________ 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO 
Av. João Pinheiro, 100 - 11º andar - Centro - Belo Horizonte - MG – Brasil - 30130-180 
Fone: (31) 3409.8635 - E-mail: info.pos@direito.ufmg.br – https://pos.direito.ufmg.br 
FACULDADE DE DIREITO UFMG 
 
A Banca Examinadora considerou a candidata aprovada, com nota 100 (cem). Nada 
mais havendo a tratar, o Professor Doutor Marco Antônio Sousa Alves, orientador da 
candidata, agradecendo a presença de todos, declarou encerrada a sessão. De tudo, 
para constar, eu, Fernanda Bueno de Oliveira, Servidora Pública Federal lotada no 
PPG Direito da UFMG, mandei lavrar a presente Ata, que vai assinada pela Banca 
Examinadora e com o visto da candidata. 
 
BANCA EXAMINADORA: 
 
 
 
Prof. Dr. Marco Antônio Sousa Alves (orientador da candidata/UFMG) 
 
 
 
Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) 
 
 
 
Profa. Dra. Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (UFMG) 
 
 
 
 
 
- CIENTE: Izabella Riza Alves (Mestranda) 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 Este trabalho é a realização de um sonho que compartilhei com pessoas que confiaram 
no potencial que a palavra, a troca, os estudos e a pesquisa têm para transformar a vida. 
Agradeço à minha família pelo amor, por confiar na pessoa que eu sou e por apoiar 
incondicionalmente as minhas escolhas. Às minhas amigas e amigos, principalmente à Tainá, 
à Maria Clara e à Juliana, agradeço pelos conselhos e por tonarem a minha vida mais leve. Ao 
Thales, obrigada por caminhar esse percurso ao meu lado. 
 Ao Marco Antônio, agradeço, especialmente, por confiar na minha pesquisa desde o 
ingresso na Pós-graduação, pela orientação cuidadosa, pela amizade e por ser um exemplo de 
docência. Aos professores Marco Aurélio Máximo Prado, Leandro de Oliveira e Andityas 
Matos, agradeço pelas contribuições feitas na minha banca de qualificação. À Ludmila Ribeiro, 
obrigada por me acolher durante essa trajetória e por me auxiliar no trajeto, às vezes tortuoso, 
da pesquisa de campo. Ao professor Pablo Alves de Oliveira, agradeço por ter sido fundamental 
no início da minha carreira acadêmica, que nasceu na graduação. 
 Agradeço aos meus colegas da Divisão de Assistência Judiciária (DAJ/UFMG) por me 
ensinarem tanto sobre advocacia criminal, principalmente à Zilda, pelo acolhimento na 
Faculdade. Ao Projeto Solta Minha Mãe, agradeço pela oportunidade de fazer da advocacia um 
instrumento para a libertação de mulheres. Ao Desencarcera-MG, por ser a minha referência na 
luta abolicionista penal. Agradecimento especial às integrantes do Grupo de Estudos em 
Criminologia Crítica Feminista, por construírem esse projeto tão incrível comigo. Aos meus 
educandos da Educafro, sou eternamente grata por me mostrarem que educação é resistência. 
Às integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Sistema de Justiça Criminal do CRISP, agradeço 
pelo auxílio nas entrevistas e na produção das transcrições. Ao Lucas Caetano, pela paciência 
em me auxiliar durante a análise dos dados da pesquisa de campo. 
 As críticas propostas nesse trabalho só foram possíveis devido a pessoas como Viviane 
Vergueiro, Jaqueline Gomes de Jesus, Julia Serano, Emi Koyama, Hailey Kaas, Sayonara 
Nogueira, Sam Bourcier e Paul Preciado e tantas outras, que me fazem pensar em uma política 
e prática tansfeministas e feministas que sejam emancipatórias para todas as pessoas. 
 Agradeço à Ariane Gontijo e à Cláudia Amaral por abrirem as portas da custódia para 
mim, e, também, à equipe da custódia, da CEAPA e do Acompanhamento Multidisciplinar pela 
disponibilidade para as entrevistas e pela confiança que foi depositada a mim. 
 À Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) agradeço pelo 
financiamento desta pesquisa. 
RESUMO 
O objetivo desta dissertação de mestrado consistiu em analisar as práticas das audiências de 
custódia em relação às experiências de travestis e transexuais e buscar, por meiodessas práticas, 
compreender o papel que desempenham na operacionalização de dispositivos biopolíticos. Os 
dados apresentados são o resultado de pesquisa em profundidade realizada sobre as Audiências 
de Custódia, em Belo Horizonte, ao longo de dois anos (2020 e 2021). Mobilizo o aparato 
teórico para compreender como os dispositivos de gênero e penais movem as práticas nas 
audiências de custódia, a partir dos seguintes elementos: a categoria do gênero-delinquente; o 
nome de registro e o nome social da pessoa travesti e transexual e as medidas alternativas da 
prisão, com o foco na assistência social executada pela Equipe do Acompanhamento 
Multidisciplinar. Persigo a hipótese de que as práticas cisnormativas da audiência de custódia 
estão insertas em um sistema jurídico que é peça fundamental do racismo de Estado, de uma 
biopolítica que se funde ao velho poder soberano de morte. 
 
Palavras-chave: audiência de custódia; biopolítica; cisnormatividade; transexual; travesti. 
 
 
ABSTRACT 
 
The aim of this master's thesis was to analyze the practices of custody hearings in relation to 
the experiences of transvestites and transsexuals and seek, through these practices, to 
understand the the operationalization of biopolitical devices. The data presented in this search 
are the result of an “in-depth research” carried out on the Custody Hearings, in Belo Horizonte, 
over two years (2020 and 2021). I mobilize the theoretical apparatus to understand how gender 
and criminal dispositives move practices in custody hearings, based on the following elements: 
the gender-offender category; the civil name and social name of the transvestite and transsexual 
people and the alternative measures of the prison, with a focus on social assistance carried out 
by the “Multidisciplinary Monitoring Team”. I pursue the hypothesis that the cisnormative 
practices of the custody hearing are inserted in a legal system that is a fundamental part of State 
racism, of a biopolitics that merges with the old sovereign power of death. 
 
Keywords: biopolitics; cisnormativity; custody hearings; transsexual; transvestite. 
 
LISTA DE SIGLAS 
 
APFD – Auto de Prisão em Flagrante e Delito 
CAO-DH/MPMG – Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos 
Direitos Humanos e Apoio Comunitário em Direitos Humanos do Ministério Público de Minas 
Gerais 
CEFLAG – Central de Recepção de Flagrantes 
CAO-CRIM/MPMG – Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, de 
Execução Penal, do Tribunal do Júri e da Auditoria Militar do Ministério Público de Minas 
Gerais 
CNCD/LGBT - Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de 
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais 
CNJ – Conselho Nacional de Justiça 
CRISP – Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública 
HIV/AIDS – Acquired Immunodeficiency Syndrome (Síndrome da Imunodeficiência 
Adquirida) 
IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa 
INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias 
LBT – Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais 
LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais 
NUH – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG 
REDS – Registro de Defesa Social 
TGEU – Tansgender Europe 
TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais 
TMM – Observatório de Pessoas Trans Assassinadas 
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais 
 
 
LISTA DE FIGURAS 
 
Figura 1: Gráfico sobre o preenchimento do campo “identidade de gênero”.......................... 17 
Figura 2: Folha de São Paulo, 1º de março de 1987................................................................. 59 
Figura 3: Cabeçalho do Termo de Audiência de Custódia......................................................115 
 
SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 
1.1 Procedimentos metodológicos e a construção do campo de pesquisa .......................... 21 
CAPÍTULO 1: GÊNERO E SISTEMA PENAL ................................................................. 29 
1.1 Gênero e cisnormatividade .............................................................................................. 32 
1.2 Sistema punitivo e a gestão de ilegalismos ...................................................................... 39 
1.3 A produção da “delinquência de gênero” ....................................................................... 52 
CAPÍTULO 2: DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS E PRECARIEDADE ........................ 62 
2.1 O que é um dispositivo? ................................................................................................... 62 
2.2 A encruzilhada do gênero: Biopolítica, racismo de Estado e disciplina ...................... 66 
2.4 Precariedade ...................................................................................................................... 78 
CAPÍTULO 3: TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NA CUSTÓDIA ................................... 84 
3.1 Atores da custódia: apresentação e diagnóstico do fluxo .............................................. 85 
3.2 Medidas cautelares: O Atendimento da Equipe Multidisciplinar ............................... 94 
3.3 A operacionalização da cisnormatividade na custódia ............................................... 103 
3.3.1 A visão de cisgêneros sobre pessoas travestis e transexuais ..................... 103 
3.3.2 “Termômetro”: o nome social e o nome de registro ................................. 110 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 118 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 123 
 
 
 
 13 
INTRODUÇÃO 
 
“Esse povo mata mesmo”. Essa foi uma das poucas frases que um juiz1, responsável por 
conduzir as audiências de custódia no Fórum Lafayette de Belo Horizonte, direcionou a mim 
durante uma conversa. Nesse dia, 11 de março de 2020, ele me perguntou se fiquei sabendo de 
um homicídio que aconteceu naquela madrugada. De acordo com ele, o homicídio envolvia 
prostituição e “dois travestis [sic]”. Após narrar os detalhes sobre o fato, contando que a faca 
do crime foi encontrada alguns quarteirões perto do local, que “o travesti [sic]” suspeito roubou 
um carro para fugir e que “foi uma confusão absurda”, perguntei-lhe: “mas será mesmo que foi 
isso que aconteceu? Será que essa pessoa, essa travesti, que matou?”. Além de fazer questão 
em evidenciar o pronome feminino, pensei que o questionamento pudesse provocar algum 
deslocamento naquelas pessoas, já que elas estavam certas que aquela cena aconteceu. O juiz 
estava narrando uma história que ouviu em um jornal de televisão, nada mais prudente que 
questionar se aquela narrativa continha traços de sensacionalismo, tão comum nos programas 
televisivos que contam notícias sobre crimes. Entretanto, a resposta foi certeira: “Esse povo 
mata mesmo”. Para ele há algo intrínseco naqueles sujeitos que permite concluir que, de fato, 
a autoria do crime estava comprovada, pois, esse é um tipo de povo que “mata mesmo”. 
Comentários como esses não são episódicos nos ambientes jurídico-penais. Eles 
compõem as narrativas dos fatos, fazendo com que as características pessoais das pessoas trans 
sejam acionadas enquanto mecanismos de criminalização. Fato este que, inclusive, não é 
nenhuma novidade. Inúmeros são os depoimentos de pessoas travestis e transexuais 
denunciando situações em que foram expostas e agredidas por agentes do Estado, tratadas como 
criminosas, simplesmente por suas identidades de gênero. Durante a finalização da escrita desta 
introdução, recebi a notícia que Paola Amaral, uma travesti negra, foi mantida presa, dentro de 
um porta-malas de um carro e submetida a diversas agressões físicas e verbais, e à tortura, por 
um grupo de homens que faziamtodas essas ações em frente aos membros da Guarda Municipal 
de Teresina, no Piauí. Os vídeos do fato que circularam pela internet, principalmente pelas redes 
sociais da ANTRA2, mostram a passividade e a omissão da população e dos agentes do Estado 
ao verem a travesti ser agredida, amarrada pelos pés por uma corda e arrastada por um homem. 
Este fato, que faz parte do cotidiano brasileiro de violência contra travestis e transexuais, 
 
1 Objetivando a proteção do anonimato, referencio os operadores do direito que compõem o campo de pesquisa 
conforme a profissão que exercem, colocando todos com o gênero masculino para que não ocorra possibilidade de 
distinção, considerando que há pouca rotatividade entre os profissionais que atuam nas audiências de custódia em 
Belo Horizonte. 
2 Disponível em: https://twitter.com/AntraBrasil/status/1417463665113145346. Acesso em 20 jul. 2021. 
 14 
escancara uma cultura de naturalização da violência contra uma população que é tratada como 
indigna de ter uma vida vivível, como passível de ser matada. 
O contexto da pandemia do Covid-19 tem evidenciado as violências estatais em relação 
às populações consideradas como “indesejáveis”. Essa violência tem adquirido contornos mais 
explícitos e dramáticos atualmente, tornando a morte de negras e negros, pessoas LGBTs, 
mulheres e moradores de comunidades cada vez mais aceitável. Ainda, observamos o 
alastramento de políticas negacionistas em relação às violências estatais, através da sistemática 
ocultação de dados3 e da desmobilização de programas de assistência social. Este fato aponta 
para explícita política de legitimação de violências, vista como heroica e necessária em meio a 
uma narrativa de guerra de enfrentamento ao inimigo radical. 
Esta pesquisa é movida pela percepção de que nós, bichas, travestis, gays, sapatões, 
bissexuais, negras e negros, isto é, a parcela da sociedade vista como indesejável, somos, 
cotidianamente, alvo do poder punitivo e da violência estatal de maneira diferencial. Mobilizo 
diversos trabalhos que compõem uma extensa literatura, denunciando a forma pela qual o 
gênero é articulado enquanto um mecanismo que compõe cenas de crimes e corrobora para 
narrativas de criminalização. Procuro, por meio de uma análise biopolítica, aprofundar e 
compreender o modo como esse tratamento diferencial e essas violências atravessam as práticas 
jurídico-penais e, em especial, as audiências de custódia. Além do caráter denunciativo que 
trago neste texto, pretendo também apontar para as contradições observadas no campo jurídico. 
Se, por um lado, o direito é instrumento de legitimação de violências, por outro, compreendo 
que ele é também um campo de disputa4, podendo exercer um papel denunciativo, ao menos 
em certa medida e em termos táticos. 
Mas, por que a custódia? As audiências de custódia consistem na obrigatoriedade de 
apresentação da pessoa presa em flagrante delito, em até 24 horas, à autoridade judicial 
competente, para que seja ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou 
apreensão. As decisões e encaminhamentos que são proferidos pelo magistrado são 
determinantes para o futuro processual da pessoa presa, pois ela pode ter o flagrante convertido 
em uma prisão provisória; pode ser liberada para responder ao processo sem ou com alguma 
medida cautelar; ou pode não responder a nenhum processo, pois o flagrante foi considerado 
 
3 Como, por exemplo, a exclusão dos casos de violência policial do Relatório Anual de Direitos Humanos, em 
junho de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/governo-bolsonaro-exclui-
violencia-policial-de-relatorio-sobre-violacoes-de-direitos-humanos.shtml. Acesso em 08 set. 2020. 
4 Refiro-me às disputas táticas no jogo das relações de poder, principalmente no que concerne ao gênero, à classe 
e à raça. Isto é, levando-se em consideração a “guerra” como um mecanismo de inteligibilidade das relações de 
poder, o direito é um instrumento tático que está constantemente em disputa pelos diferentes atores sociais. 
 15 
ilegal. Ainda, a custódia é um instituto jurídico importante, que surgiu com a intenção de 
diminuir a quantidade de presos provisórios no país, bem como controlar a atividade policial, 
evitando torturas. Ela está em constante disputa, principalmente considerando o momento 
histórico de recrudescimento do punitivismo e de tentativa de desmobilização do enfrentamento 
às violências estatais (principalmente a policial)5. Inclusive, a pandemia do Covid-19 surgiu 
como um momento oportuno para o enfraquecimento das audiências de custódia, visto as 
tentativas de manutenção de sua suspensão6 definida pelo TJMG em março de 2020 e, também, 
de virtualização das audiências7. 
Na tentativa de se pensar o perfil das pessoas que passam pelas audiências de custódia, 
o gênero aparece enquanto categoria a ser analisada, limitada ao sexo biológico constatado 
através do registro civil. O monitoramento do CRISP e do IDDD aponta para o problema da 
burocratização do gênero pela justiça, visto que seu relatório sistematizou as informações sobre 
o gênero das pessoas custodiadas a partir das informações presentes nos Registros de Eventos 
de Defesa Social (REDS), também chamados de Boletim de Ocorrência, considerando apenas 
as categorias cisgêneras8 de mulher e homem. Isto porque, de acordo com a justificativa 
presente no monitoramento, “o Tribunal de Justiça não adota a autoidentificação e trata os 
flagranteados em conformidade com o registro civil”9. Apesar de a Resolução n.º 11 do 
CNCD/LGBT de 2014 ter incluído nos REDS os campos de preenchimento de “identidade de 
gênero”, “orientação sexual” e “nome social”10, percebe-se que as pesquisas sobre o Sistema 
de Justiça Criminal brasileiro se restringem à análise binária de gênero. Este fato me faz 
desconfiar que as ferramentas utilizadas para se pensar o gênero em relação às práticas jurídicas 
são, muitas vezes, limitadas, visto que se prendem à própria lógica cisgênera do direito. 
 Apesar das pesquisas sobre a custódia serem relativamente recentes, tendo em vista o 
pouco tempo da inauguração do instituto no Brasil, proponho que seja importante que elas 
 
5 “O massacre do Jacarezinho foi uma forma de dizer ao STF que ninguém controla a polícia, que ela é quem 
define o que é excepcional e legítimo na sua atuação, que ela não se submeterá a nenhum controle externo, que as 
operações não serão interrompidas, e que a polícia tampouco assume qualquer compromisso em reduzir as altas 
taxas de letalidade”. Disponível em: https://diplomatique.org.br/analise-da-coletiva-de-imprensa-da-policia-civil-
sobre-o-jacarezinho/. Acesso em 21 jul. 2021. 
6Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/informes/suspensao-das-audiencias-de-
custodia.htm#.Xz2NjC2gQ_U. Acesso em 19 ago. 2020. 
7 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3364. Acesso em 19 ago. 2020. 
8 De acordo com Jesus (2012, p. 10) termo “cisgênero” é um conceito que abarca as pessoas que se identificam 
com o gênero que lhes foi determinado em seu nascimento. Assim, há uma coerência entre o sexo atribuído de 
acordo com uma visão biológica binária de mulher/homem e o gênero da pessoa. 
9 RIBEIRO et al., 2020, p. 33. 
10 “Considerando a necessidade de dar visibilidade para os crimes violentos praticados contra a população LGBT, 
resolve: Art. 1o Estabelecer os parâmetros para a inclusão dos itens “orientação sexual”, “identidade de gênero” e 
“nome social” nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais no Brasil.” (CNCD/LGBT, 
Resolução n.º 11/2014) 
 16 
produzam informações a respeito de realidades de gênero diversas ao binômio mulher e homem, 
buscando descortinar as relações entre o direito e a vida de pessoas travestis e transexuais. É 
preciso compreender que as instituições governamentais responsáveis por essa produção de 
dados, incluindo a academia, são permeadas por uma cultura de apagamentoe invisibilização 
das violências sofridas por pessoas trans. O fato de encontrarmos pesquisas que, 
primordialmente, realizam abordagens cisgêneras, me faz desconfiar que o foco dado às 
questões de gênero privilegia experiências que correspondam com as coerências formuladas 
pelas normas de gênero. Além do mais, as ferramentas para pesquisar gênero no campo jurídico 
são, de fato, limitadas, tendo em vista o reforço às burocracias que insistem em se 
operacionalizar a partir de categorias binárias. Assim, é imprescindível que se faça um giro na 
análise de gênero, tanto no sentido de redefinir as categorias, quanto no sentido de olhar para a 
cisgeneridade enquanto um campo de estudos e investigação. 
 Entre janeiro de 2008 a junho de 2016, o Observatório de Pessoas Trans Assassinadas 
(TMM), da Tansgender Europe (TGEU), registrou 2190 casos de homicídios que tinham como 
vítimas pessoas trans. Em números absolutos, o Brasil registrava um total de 868 mortes, um 
número três vezes maior de seu sucessor, o México, com 25911. Apesar de o Brasil ser, em 
números absolutos, o país que mais mata travestis e transexuais do mundo, é recorrente o 
silêncio das instituições de segurança pública em produzir dados quantitativos a respeito do 
assassinato sistêmico de travestis e transexuais. Geralmente, esta produção fica a cargo do 
movimento social, tais como o Observatório Trans, a ANTRA, a Rede Trans e, também, 
algumas iniciativas das universidades. 
 A produção de dados e informações sobre as violências sofridas por esse público produz 
contranarrativas que colocam luz sobre as violações sistêmicas de direitos. Mais além, elas são 
relevantes no sentido de demonstrarem como as práticas institucionais estão localizadas em 
uma manutenção e produção biopolítica de precarizações da vida e assassínio direito ou 
indireto. Coacci12, em sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal de Minas 
Gerais, aponta para a relevância de se pensar a produção de informações sobre a violência letal 
contra travestis e transexuais. Ele afirma que a representação pública da violência em relação a 
essas pessoas, pode colaborar para evidenciar a urgência de se investigar a interseção entre 
práticas jurídicas e gênero. Isso porque a violência institucional focada contra esse público é 
específica em relação ao seu gênero, por isso, deve ser especialmente investigada. Neste 
sentido, entendo ser obrigação da pesquisa acadêmica rever o olhar sobre as questões de gênero 
 
11 TGEU, 2016, p.14. 
12 COACCI, 2018, p. 198-207. 
 17 
a fim de não continuar reproduzindo a cultura de exclusão e invisibilização de travestis e 
transexuais. 
 O Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH), em parceria com 
o CAO-DH/MPMG, publicou, em 2019, o relatório de “Registros de homicídios envolvendo 
LGBTs no estado de Minas Gerais”, com o objetivo de analisar REDS, de 2016 a 2018, que 
envolveram pessoas LGBTs. Os REDS são responsáveis por fornecer importantes informações 
que compõem o Auto de Prisão em Flagrante e Delito (APFD). Lages13 alerta, em sua 
dissertação de mestrado sobre as audiências de custódia em Belo Horizonte, que o APFD 
orienta a análise dos aplicadores do direito no momento da audiência de custódia. Neste sentido, 
procuro entender, também, como as questões de gênero são tratadas nesses documentos, pois 
essas informações podem ajudar a sinalizar alguns pontos interessantes para a minha 
investigação. A partir da pesquisa do NUH, podemos observar um padrão de omissão no 
preenchimento dos REDS no que se refere ao campo de “identidade de gênero”. Vê-se que os 
campos “não se aplica” e “ignorado” foram utilizados majoritariamente: 
 
Figura 1: Gráfico sobre o preenchimento do campo “identidade de gênero”. 
 
Fonte: Relatório do NUH de Análise dos Registros de homicídios envolvendo LGBTs em Minas Gerais entre 
2016 e 2018, p. 17. 
 
 Das 56 pessoas transexuais e travestis registradas nos REDS analisados, 60,7% eram 
vítimas de homicídio e 28,6% autoras. Nos REDS em que as vítimas eram transexuais e 
travestis, a maior parte dos ferimentos está localizada no tórax e na cabeça, fato que indica o 
desejo de desfazimento da imagem e da identidade da vítima. “Assim, há casos em que a 
identidade de gênero suposta da vítima, o fato de ‘ser travesti’, parece ser o fator determinante 
 
13 LAGES, 2019, p. 70-77. 
 18 
da execução [...]”14. A brutalidade é uma constante nos crimes de homicídio contra pessoas 
trans, sendo inúmeras as situações que reverberam para requintes de ódio contra elas15. 
 Ademais, em nenhuma das ocorrências envolvendo pessoas transexuais e travestis foi 
registrada a motivação/causa presumida como transfobia. Entretanto, nos 8 casos em que a 
suposta autoria é de alguma pessoa transexual ou travesti, apenas 1 não tem o registro da causa 
presumida preenchido. Ainda de acordo com o relatório, apenas 50% das ocorrências tiveram 
o campo “nome social” preenchido corretamente. Se olharmos mais a fundo, observamos que 
quando registradas como vítimas, a maioria teve o nome social ignorado sendo que, quando 
autoras, a maior parte teve o nome social preenchido. 
 A importância conferida à causa do homicídio depende se a pessoa travesti ou transexual 
está na posição de vítima ou de autora dos fatos. O gênero torna-se irrelevante e descartável se 
elas são vítimas. Mas, se autoras, importa o aparecimento da identidade de gênero. Este 
apagamento do gênero ocorre em momentos oportunos e estratégicos, ou seja, quando não há 
interesse em identificar as violências de gênero. Isto porque se objetiva invisibilizar e reduzir a 
questão a um problema como outro qualquer, deixando à sombra a dimensão biopolítica, da 
guerra interna contra um sujeito marcado como inimigo, que deve ser domado ou eliminado. 
Só é possível compreender essa dinâmica biopolítica a partir do momento em que se retira da 
invisibilidade os marcadores da diferença. Na esteira do raciocínio de pensar como as práticas 
jurídicas são permeadas pelas normas de gênero, proponho-me a investigar as audiências de 
custódia, em Belo Horizonte. Através do olhar e da fala dos operadores da custódia que são 
cisgêneros, busco compreender as práticas insertas neste instituto jurídico e suas interseções 
com as experiências de pessoas travestis e transexuais. 
 Portanto, o tema-problema da presente pesquisa consiste em analisar as práticas das 
audiências de custódia em relação às experiências de travestis e transexuais e buscar, por meio 
dessas práticas, compreender o papel que desempenham na operacionalização de dispositivos 
biopolíticos. Os pontos de partida para o debate sobre biopolítica consistem, principalmente, 
no curso Em Defesa da Sociedade, ministrado por Michel Foucault em 1976, e no livro História 
da Sexualidade I: a vontade de saber, publicado originalmente no mesmo ano. Foucault 
sustenta a tese de que os processos biológicos da população, do ser humano enquanto espécie, 
passam a ser alvo de um intenso e radical investimento político na modernidade. Para o autor, 
uma das faces dessa política de produção da vida está na identificação de populações como 
indesejáveis. Para que a vida de alguns possa ser produzida e florescer, é necessário que Outros 
 
14 CARRARA; VIANNA, 2006, p. 245. 
15 VIDAL, 2019, p. 74. 
 19 
sejam alvo de um poder de morte direto ou indireto, através do funcionamento do racismo de 
Estado. Foucault argumenta que o racismo consiste no fundamento para a operacionalização 
dos mecanismos biopolíticos negativos. O racismo, em sua apreensão moderna, é o princípio 
de separação e de segregação social, entre o “nós” e o “eles”, entre os que são vistos como 
iguais e aqueles que são tomados enquanto uma ameaça, um inimigo. O racismo impõe uma 
cisão em um continuum biológico e confere um caráter essencial à diferença, entre a vida digna, 
legítima, merecedora de proteção, e a vida degenerada, desumanizadae eliminável. Esse 
“corte” que é produzido no corpo da população define quem deve viver e quem deve morrer16, 
direcionando o poder de morte a determinada parcela da sociedade. Foucault, ao afirmar que “a 
função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do 
biopoder, pelo racismo”17, possibilita a compreensão de que o racismo orienta a racionalidade 
da ação estatal e se materializa em aparatos políticos concretos, consolidando-se em um racismo 
de Estado18. Assim, o racismo de Estado é a incorporação do paradigma da raça através de uma 
guerra permanente conta o Outro, taxado como inimigo social. Portanto, para que a sociedade 
possa viver, é necessário que o Outro morra. 
 Deste modo, é necessário entender como o gênero é articulado enquanto uma categoria 
que ontologiza a diferença, definindo populações como indesejáveis. Entendo que as normas 
de gênero atuam nas práticas sobre a vida a partir do racismo de Estado, realizando esse corte 
capaz de deferir violências de gênero sobre determinadas experiências. Essa operacionalização 
das normas de gênero pauta-se em uma matriz heterossexual e binária, taxando como desviantes 
as experiências e corpos que extrapolam aquilo que é considerado como “normal”. 
 Importante salientar que não pretendo, com esta análise, supor uma espécie de 
universalidade das experiências de pessoas travestis e transexuais, colaborando com a 
percepção de que existiria um sujeito universal trans que representaria experiências comuns a 
todas essas pessoas. Na verdade, parto de uma crítica aos limites da política de identidade, 
inspirando-me nos trabalhos de Judith Butler, principalmente em sua obra Problemas de 
gênero. Certamente, as políticas representacionais possuem um papel importante na luta por 
melhorias nas condições de vida das populações vulnerabilizadas pelas violências sociais, 
políticas e econômicas. Conforme salienta Butler, não se trata de negá-las enquanto proposta 
tática de enfrentamento, mas sim promover uma crítica às categorias de identidade que são 
engendradas e naturalizadas pelas estruturas jurídicas. O ponto consiste em apontar para os 
 
16 FOUCAULT, 2005a, p.304. 
17 FOUCAULT, 2005a, p.306 
18 LEMKE, 2018, p. 65. 
 20 
limites das categorias universais, que tendem a plastificar experiências, enquadrando algumas 
como abjetas. Quando me recordo da fala de Sojourner Truth de “eu não sou uma mulher?”, 
ouço, a partir dela, as vozes de tantas outras mulheres: negras, indígenas, asiáticas e LGBTs, 
questionando e reformulando a categoria mulher que foi (e ainda é!) limitada às experiências 
exclusivas de mulheres brancas, heterossexuais e burguesas. Portanto, o exercício consiste em 
sempre questionar, colocar à prova e reformular essas categorias19. 
 Considerando que as práticas da custódia são interpeladas por normas de gênero, desejo 
compreender em que medida há o fortalecimento do mecanismo biopolítico, de produção da 
vida de alguns em detrimento das populações indesejáveis. A hipótese da pesquisa é de que as 
práticas cisnormativas da audiência de custódia estão insertas em um sistema jurídico que é 
peça fundamental do racismo de Estado, de uma biopolítica que se funde ao velho poder 
soberano de morte. Quando Michel Foucault afirma que a biopolítica marca o exercício político 
na modernidade, deve-se observar que o poder soberano repressivo (“matar” e “deixar viver”) 
é condicionado ao poder sobre a vida. A biopolítica, portanto, consistiria no “fazer viver” para 
alguns e o “deixar morrer” para outros. Em que pese essa subordinação, o poder de morte direto, 
repressivo, não deixa de existir. 
 Portanto, a dissertação está organizada em três capítulos principais, sendo que o 
primeiro versará sobre questões fundamentais acerca do gênero, apresentando conceitos-chave 
que orientam o debate. Para isso, trabalho as abordagens transfeministas e feministas para a 
construção crítica do raciocínio. Ainda nesse capítulo, demonstro como as normatividades de 
gênero se relacionam com o sistema penal para a produção da “delinquência de gênero”, 
apresentando este enquanto campo institucional legitimador de práticas e discursos. O segundo 
capítulo é dedicado ao debate teórico sobre biopolítica e sobre precariedade. Busco entender 
como a relação entre biopolítica e gênero se dá para o aumento de precariedades nas 
experiências de travestis e transexuais e para a efetividade do poder de morte (direto e indireto), 
por meio do racismo de Estado. No terceiro capítulo, trato sobre o diagnóstico do campo de 
pesquisa, apresentando o fluxo da audiência de custódia, em dois momentos. No primeiro, 
apresento a da custódia, mostrando quais são seus atores, instituições e organizações parceiras. 
Conjuntamente, apresento um diagnóstico mais genérico dos problemas que a custódia enfrenta 
e que pude perceber durante a pesquisa de campo. Após, destino um subcapítulo para discorrer 
sobre a audiência de custódia, trabalhando os dados qualitativos produzidos a partir do 
acompanhamento das audiências. Neste ponto, disseco alguns fatos sensíveis observados no 
 
19 BUTLER, 2016, p. 23. 
 21 
momento da audiência, em relação ao nome social das custodiadas travestis e transexuais, que 
servem como um termômetro importante para se pensar a relação do direito com a 
cisnormatividade. Além disso, pretendo questionar e debater algumas medidas cautelares 
diversas da prisão, pensando de que forma elas integram a rede de dispositivos biopolíticos que 
encontram no gênero e no Sistema de Justiça Criminal, os lugares de demarcação e 
administração das populações consideradas como indesejáveis. 
Por fim, algumas advertências devem ser feitas. Primeiro, considero importante 
compreender que proponho focalizar nas práticas do opressor, isto é, ter como objeto de 
investigação as práticas jurídicas e suas reiterações sobre as normas de gênero. Em segundo 
lugar, pretendo entender como essas práticas se dão, a fim de manter e produzir regimes de 
poder-saber específicos em relação às experiências de gênero. Procuro investigar a forma como 
a cisnormatividade é reiterada nas práticas jurídicas, impactando as experiências de pessoas 
travestis e transexuais. Outra advertência importante ser feita é a escolha terminológica feita 
por mim em não utilizar, de maneira indiscriminada, o termo “trans” enquanto uma referência 
mais genérica, buscando evitar um apagamento das identidades de gênero de travestis e 
transexuais. Os discursos jurídico-penais impõem distinções significativas entre as categorias 
da transexualidade e da travestilidade, sendo importante compreender como essas diferenças 
são mobilizadas. A travestilidade é comumente associada à criminalidade, tratada, inclusive, 
como elemento importante que configura a narrativa dos fatos e a posterior culpabilização. Já 
a transexualidade é apresentada enquanto uma categoria mais “higienizada”, mas que, ainda 
assim, é vulnerabilizada pela lógica cisgênera do direito20. Assim sendo, utilizo o termo “trans”, 
como um termo mais geral, em momentos específicos e estratégicos, quando não percebo haver 
este marcador de diferença. 
 
1.1 Procedimentos metodológicos e a construção do campo de pesquisa 
 
Desde o início da minha pesquisa de mestrado, eu pretendia pesquisar as interseções 
entre gênero, biopolítica e direito. O objetivo consistia em compreender como o direito, em 
suas intuições, práticas e discursos, servia como instrumento para a opressão, criminalização e 
precarização das experiências de pessoas travestis e transexuais, considerando que o Sistema 
 
20 De acordo com Bento (2012, p. 572), a patologização da sexualidade origina da introdução dos saberes médicos-
psis na compreensão de que a sexualidade “desviante” é fruto de “anomalias”, de “perversões” e “transtornos de 
gêneros”. Não pretendo avançar neste debate, entretanto, acredito ser importante mencionar que os discursosde 
patologização da transexualidade e travestilidade representam um importante estigma nos processos de 
criminalização das experiências de pessoas trans. 
 22 
Penal integra a rede de dispositivos biopolíticos para gerenciar a vida, através do gênero. Assim, 
pensei em trabalhar com o Sistema Prisional, principalmente por uma curiosidade que tinha em 
entender como as categorias de gênero eram interpretadas pelo direito à luz da cisgeneridade. 
Eu percebia a existência de uma tentativa de catalogar as identidades de gênero e as 
sexualidades dissidentes nos parâmetros da binariedade e da heterossexualidade compulsória21, 
fato que sinalizava, para mim, algumas facetas da operacionalização das normas de gênero no 
direito. Entretanto, conforme fui trilhando o campo de pesquisa e acessando o Sistema de 
Justiça Criminal enquanto pesquisadora, acabei conhecendo pessoas que me apresentaram as 
audiências de custódia como um campo possível no direito, como o professor Marco Aurélio 
Máximo Prado (UFMG). Logo, o interesse em pesquisá-la surgiu das possibilidades que se 
abriram durante a construção do campo de pesquisa e, também, da disponibilidade e 
contribuição dos profissionais que se dispuseram a participar das entrevistas e das conversas 
durante as visitas que fiz ao Fórum Lafayette. Posso afirmar que a custódia “veio” até mim, 
através de professores e operadores do direito que permitiram que este campo de pesquisa fosse 
um espaço de crítica e de construção de novos entendimentos sobre as práticas jurídico-penais. 
Assim sendo, os dados apresentados nesta dissertação de mestrado são o resultado de 
uma pesquisa em profundidade realizada sobre as Audiências de Custódia, em Belo Horizonte, 
ao longo de dois anos (2020 e 2021). A pesquisa apresentada possui caráter interdisciplinar, na 
qual convergem conteúdos pertencentes a saberes produzidos no âmbito da filosofia e dos 
estudos sociais. Evidencio os estudos de gênero, realizando uma interseção com os estudos 
sobre o sistema punitivo e sobre a biopolítica. Defendo a necessidade de construirmos 
pensamentos feministas críticos, através de saberes localizados22, que destituem as 
objetividades e as imparcialidades do direito que é branco, homem cis/hetero, eurocêntrico e 
burguês. A partir da proposta de Haraway, proponho a construção de um pensamento que 
privilegia a contestação e a desconstrução das estruturas vigentes, buscando estabelecer novas 
conexões, novas formas de se relacionar em sociedade que possam transformar os sistemas de 
conhecimento, de saberes e de apreensão do mundo. Ou seja, defendo que fabriquemos, através 
das nossas críticas, das nossas posições, das nossas palavras e olhares localizados, um 
“conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de 
dominação”23. É a partir da nossa existência, enquanto um ser material e pensante, que possui 
 
21 RIZA ALVES, 2019. 
22 Para Haraway, os saberes localizados consistem em uma proposta de promover saberes diferentes dos 
tradicionais saberes ocidentais, que são centralizados na unidade, no universalismo, propondo-se saberes 
concretos, ancorados nas diversas experiências terrenas. HARAWAY, 1995, p. 18. 
23 HARAWAY, 1995, p. 24. 
 23 
corpo, gozo e angústia, que podemos produzir algo novo, pois há “grande valor em definir a 
possibilidade de ver a partir da periferia e dos abismos”24. 
Optei por combinar a pesquisa bibliográfica com a análise qualitativa dos dados 
produzidos em campo, tomando atenção para não hierarquizar a importância de um momento 
de pesquisa em relação ao outro, mas sim de combinar as análises, considerando que eu, 
enquanto pesquisadora, sou atravessada tanto pelo campo ao qual estou inserida, quanto pelas 
leituras cotidianas. Busquei construir um campo de pesquisa que pudesse abarcar o fluxo do 
Sistema de Justiça Criminal de forma mais ampla, incluindo as práticas e discursos pré, durante 
e pós custódia. Para isso, o presente trabalho se organiza em torno de dois momentos 
metodológicos diferentes, mas compreendidos simultaneamente, e divididos através das 
seguintes etapas que discorro a seguir. 
Em um primeiro momento, acompanhei as audiências de custódia realizadas no Fórum 
Lafayette de Belo Horizonte. O objetivo era assistir às audiências das custodiadas que se 
declaravam travestis ou transexuais, para poder analisar os acontecimentos, as práticas e os 
discursos dos operadores cisgêneros, em relação às custodiadas trans. Para que os 
acompanhamentos das audiências fosse possível, combinei com um servidor da secretaria da 
Central de Recepção de Flagrantes (CEFLAG) do tribunal de me informar, através do meu 
telefone celular, se na pauta das audiências do dia havia alguma custodiada travesti ou 
transexual. Geralmente, os servidores adotavam os seguintes procedimentos para fazer essa 
“triagem”: eles conferiam se o presídio havia informado sobre a presença de alguma presa trans 
para a pauta de audiências do dia seguinte; ou eles identificavam a identidade de gênero, no 
Autos de Prisão em Flagrante (APFD) e nos Registro de Defesa Social (REDS), a partir dos 
campos específicos destinado à identificação do gênero ou através da narrativa contida nos 
relatos. 
Nesta etapa, procedi a uma análise qualitativa do acompanhamento das audiências, a 
partir da escrita do diário de campo, que contém as observações sobre as práticas e 
acontecimentos vividos na custódia, bem como sobre os discursos e histórias ouvidas. Após o 
acompanhamento das audiências, explorei dados qualitativos produzidos através dos APFD, 
tais como as narrativas dos policiais, da vítima e da suposta autora. Parto do pressuposto de que 
há um fluxo na produção prática e discursiva entre os momentos anteriores à custódia e os da 
própria audiência. Assim, procurei observar quais elementos relacionados ao gênero das 
custodiadas eram mobilizados, no APFD, para a construção da cena do crime e, de que forma, 
 
24 HARAWAY, 1995, p. 22. 
 24 
eles reverberavam na audiência. Para isso, observo como a categoria da travesti e da transexual 
aparecem e, são articuladas a outros elementos para a construção da ideia de periculosidade e 
criminalidade. 
Entretanto, devido ao contexto da crise sanitária da pandemia do Covid-19, houve a 
suspensão das audiências de custódia e determinação do trabalho remoto25, tornando-se inviável 
o acompanhamento presencial das audiências. Tive que redirecionar os esforços, buscando 
maneiras de utilizar os dados produzidos através das audiências que já havia assistido e dos 
documentos processuais que consegui obter. Foram acompanhados, efetivamente, cinco casos 
que tiveram audiências de pessoas travestis e transexuais e quatro que tinham pessoas 
cisgêneras conduzidas. Além disso, a secretaria da CEFLAG disponibilizou as cópias dos 
processos destes casos que envolviam pessoas trans conduzidas sendo que, destes cinco casos, 
pude acompanhar presencialmente a audiência de três, sendo que os outros dois foram avaliados 
a partir das cópias dos processos, pois não puderam ser acompanhados presencialmente por 
questões de logística. Optei por manter a análise documental destes casos porque tive acesso ao 
APFD e ao REDS durante o campo de pesquisa e também porque estes documentos apresentam, 
explicitamente, discursos e práticas policiais que integram os processos de criminalização de 
pessoas trans no fluxo do Sistema de Justiça Criminal. 
Após esse trabalho, realizei entrevistas semiestruturadas com as(os) operadoras(es) da 
custódia, através de depoimentos não presenciais, por meio da plataforma Google Meet. 
Também foram realizadas duas entrevistas presenciais, uma com um agente da carceragem do 
Fórum Lafayette e outra com membros da Equipe Multidisciplinar, sendo que seguimos todos 
os protocolos de higiene e segurança. A etapa metodológica de entrevista foi imprescindível 
para o mapeamento do fluxo, pois, através dela, pudecompreender as funções de cada ator no 
fluxo da custódia e os significados de suas práticas organizacionais26. A escolha dos 
entrevistados foi realizada por meio de três critérios: a) atuação direta na audiência de custódia; 
b) atuação nas medidas cautelares pós custódia; c) disponibilidade e receptividade para 
realização das entrevistas através de vídeo chamadas, considerando o contexto de isolamento 
social devido à pandemia. Foram feitas onze entrevistas, no total, com os seguintes 
profissionais: um juiz de direito fixo da custódia; um promotor de justiça fixo da custódia; um 
defensor público fixo da custódia; um servidor da secretaria da Central de Recepção de 
Flagrantes (CEFLAG); três profissionais da Equipe do Acompanhamento Multidisciplinar; um 
colaborador em Audiência de Custódia do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; um membro da 
 
25 MINAS GERAIS, 2020 
26 RIBEIRO; VILAROUCA, 2019, p. 278. 
 25 
Equipe da carceragem e dois profissionais da Central de Acompanhamento de Alternativas 
Penais (CEAPA). Algumas categorias de operadores não foram incluídas na amostragem 
devido à impossibilidade de acesso às entrevistas, como, por exemplo, os representantes do 
Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, de Execução Penal, do 
Tribunal do Júri e da Auditoria Militar do Ministério Público de Minas Gerais (CAO-
CRIM/MPMG), que seriam uma peça importante para análise da atuação do Ministério Público 
para o fortalecimento do instituto das audiências de custódia. 
Utilizei um guia de entrevista que continha as perguntas principais, no qual realizei 
anotações sobre as falas dos entrevistados, a fim de garantir uma coleta mais completa de dados 
e informações sobre os depoimentos dos operadores. Fiz a gravação do áudio desses 
depoimentos e, para o seu uso, todos os onze entrevistados assinaram o Termo de 
Consentimento Livre e Esclarecido27. Em seguida, os depoimentos orais foram transcritos para 
a análise de conteúdo, preservando a fala dos entrevistados, mesmo os termos coloquiais. 
Procedi à análise do conteúdo dos depoimentos através de duas etapas. Primeiro, identifiquei 
algumas categorias chaves, sendo que para cada uma delas abri uma coluna do Excel na qual 
as falas dos entrevistados foram coladas, respectivamente, de forma que eu pudesse 
compreender como os discursos se organizavam. Por se tratar de uma pesquisa de caráter 
indutivo, as categorias analisadas foram extraídas dos dados28 e correlacionadas às teorias 
estudadas. Após, utilizei o software de análise de dados em pesquisas qualitativas ATLAS.ti 
para a ampliação e o aprofundamento metodológicos. As estratégias criadas para a análise dos 
dados e apoiadas no software foram a codificação manual, o agrupamento de códigos e a análise 
qualitativa da combinação dos códigos. Assim, criei outra lista de códigos no software. 
Posteriormente, fiz outra leitura das transcrições e do diário de campo e apliquei os códigos às 
passagens que versavam sobre o mesmo tipo de conteúdo. A partir desses códigos, foi possível 
selecionar “citações” nos documentos que, depois, foram compiladas em um relatório gerado 
pelo ATLAS.ti. Este relatório compilou todas as citações referentes a cada código, apresentando, 
também, a combinação de outros códigos que foram aplicados às mesmas citações. Isso me 
permitiu compreender como, nos discursos, diversos códigos são associados às mesmas 
situações como, por exemplo, no caso dos códigos em que pretendia identificar as visões que 
os operadores da custódia tinham de pessoas trans, pude ver como várias categorias, como a 
prostituição, o crime, o uso ou a venda de drogas eram associadas conjuntamente. Além disso, 
durante a análise, foi possível fazer comentários das citações selecionadas, que continham 
 
27 Trabalho aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), CAAE: 33843520.5.0000.5149. 
28 NUNES et al., 2017, p. 237. 
 26 
minhas impressões, ideias e observações sobre o campo de pesquisa. Estes comentários estão 
incluídos no relatório gerado pelo ATLAS.ti e que orientaram a etapa de escrita do texto, pois 
facilitaram a análise dos dados em relação às teorias adotadas. 
Durante a fase de produção da escrita, o nome e a profissão das pessoas entrevistadas 
foram ocultados, a fim de preservar o sigilo e a privacidade dos participantes, conforme a 
Resolução nº 510 de 2016 do Conselho Nacional de Saúde29. Optei por referenciar os 
entrevistados pelo termo “Operador”, seguido de uma numeração, de acordo com a ordem 
temporal de realização das entrevistas. Entendi que a estratégia de numerar os entrevistados 
facilitaria a proteção do anonimato. Além disso, escolhi referir os entrevistados no pronome 
masculino, pois a quantidade de profissionais, nas Audiências de Custódia, é enxuto, sendo 
facilmente identificáveis. Durante as entrevistas, constatei a identidade de gênero da pessoa 
entrevistada pela forma como ela se apresentava em discurso, ao se referir às custodiadas 
travestis e transexuais. Os entrevistados se posicionavam enquanto um grupo oposto às pessoas 
trans, referindo-se a elas como pessoas “diferentes”, como “esse público” e como “público 
LGBT”. Este posicionamento enquanto um “nós” que se distancia dos “Outros” é interessante, 
inclusive, para análise dos dados a partir da teoria adotada, na medida em que demonstram a 
diferença que recorta o tecido social. Por fim, em alguns momentos, optei por criar nomes 
fictícios para referir às presas travestis e transexuais que apareciam nos casos acompanhados, 
por entender que a simples numeração, neste caso, não caberia e que o respeito ao nome social 
é central nesta pesquisa. 
Após a escrita dos capítulos, realizei uma “reunião de devolutiva” com os entrevistados, 
para apresentar o capítulo três da dissertação, que concentra as análises e críticas ao campo de 
pesquisa. Buscou-se construir um diálogo com os entrevistados, para que eles pudessem tecer 
comentários, que foram avaliados por mim, posteriormente. As pessoas entrevistadas 
afirmaram, principalmente, que se sentiram tocadas com o conteúdo do trabalho, 
principalmente por não perceberem, no cotidiano, que cometiam uma série de microviolências 
em relação às custodiadas. Disseram que, ao verem essas questões apontadas em seus próprios 
discursos, foram movimentadas a pensar sobre o tema de maneira mais profunda. Além disso, 
agradeceram e elogiaram o trabalho que foi feito, afirmando que pesquisas sobre gênero 
sexualidade deveriam ser mais comuns nas audiências de custódia e no Sistema de Justiça em 
geral. 
 
29 Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html. Acesso em: 
1 jun. 2020. 
 27 
No que diz respeito à análise de discurso, é importante salientar que ela não pretende 
desvendar ou reafirmar uma universalidade de sentidos sobre as questões de gênero. Seguindo 
a orientação foucaultiana, em A ordem do discurso, pretendo explorar os discursos e práticas 
que são “escondidos” pelos mecanismos de rarefação e afirmação dos discursos hegemônicos30. 
De acordo com Michel Foucault, uma análise crítica deve ligar-se aos sistemas de recobrimento 
do discurso, procurando “detectar, destacar esses princípios de ordenamento, de exclusão e de 
rarefação do discurso”31. Isto é, não pretendo dizer que todas as experiências dos sujeitos que 
participam da construção da pesquisa podem ser generalizadas, mas sim entender com 
profundidade as práticas das audiências de custódia e compreender como essas práticas reiteram 
normas de gênero. Neste sentido, a união entre a análise dos discursos e das práticas jurídicas 
é fundamental para explorar e compreender a forma pela qual o direito lida com as experiências 
transexuais e travestis. 
Junto à pesquisa de campo, utilizo, também, pesquisas quantitativas a respeito da 
realidade de experiências de pessoas travestis e transexuais em relação ao sistema penal, 
produzidaspor organizações e pesquisas acadêmicas, tais como os relatórios NUH que avaliam 
os REDS envolvendo pessoas travestis e transexuais no período de 2016 a 2018. Essas 
pesquisas são utilizadas a fim de compor um quadro geral sobre as experiências trans e o sistema 
penal, principalmente no que concerne às fases do fluxo do Sistema de Justiça Criminal que são 
anteriores à custódia. 
Associo tais procedimentos metodológicos à pesquisa teórica, focando nos estudos 
sobre biopolítica, a partir de Foucault (2005a, 2019) e, também, Mbembe (2017, 2018a) para 
pensar, mais detidamente, sobre como a produção da morte indireta se vale do racismo de 
Estado para precarizar experiências através do Sistema Penal. A crítica biopolítica é pertinente 
ao objetivo da pesquisa, tendo em vista que pretende compreender como a gestão política da 
vida é feita e permeada por mecanismos de diferenciação, pela lógica do racismo de Estado. 
Assim, investiga-se a precarização decorrente das experiências de gênero no sistema punitivo, 
este compreendido enquanto campo de legitimação de discursos, práticas e violências, 
colocando o gênero enquanto instrumento de gestão populacional. A fim de localizar este 
debate sobre a atuação das normas de gênero no campo biopolítico, conectando com a crítica 
biopolítica ao sistema penal, tomo como principais referências Butler (2016, 2018, 2019a, 
2019b), Jesus (2012; 2014; 2015; 2016), Davis (2003) e Andrade (1994; 2003; 2005). 
 
30 FOUCAULT, 2014, p. 66. 
31 FOUCAULT, 2014, p. 65. 
 28 
Compreender como as práticas jurídicas facilitam a gestão biopolítica do gênero é 
importante para descortinar e denunciar violências sistêmicas sobre as experiências travestis e 
transexuais, buscando pensar em formas de resistência. Portanto, o que apresento nos próximos 
capítulos são as interpretações desses materiais, associados à pesquisa teórica, a fim de entender 
como as categorias de gênero são mobilizadas nas audiências de custódia a partir da 
cisgeneridade. 
 
 
 29 
CAPÍTULO 1: GÊNERO E SISTEMA PENAL 
 
Neste capítulo, apresento quais concepções de poder aproprio nesta pesquisa, para 
pensar o gênero. Em seguida, busco entender como as normas de gênero definem experiências 
consideradas como normais, em detrimento daquelas que são taxadas como ininteligíveis ou 
que são enquadradas no paradigma do inimigo, em um jogo de identidades por inversão. Faço 
o uso da concepção performativa de gênero, compreendendo que ele não deve ser reduzido a 
um dado biológico, externo às relações sociais, mas sim entendido enquanto um construto 
social. Sobre os corpos dos sujeitos e as instituições sociais há a operacionalização das normas 
de gênero, que se orientam por cálculos específicos de poder. Por fim, pretendo tecer reflexões 
sobre como o gênero é mobilizado, no interior do Sistema Penal, como um mecanismo de 
disciplinamento e administração da população. 
Afinal, o que entendo por poder? Seguindo a abordagem de Foucault, o poder não é 
concebido como algo que se possui, mas como um conjunto de relações complexas em rede. O 
autor sugere a adoção de uma estratégia de análise do poder diferente daquela comumente 
adotada pela tradição jurídica e pela filosofia política moderna, que o pensava a partir do 
Estado, considerado o centro emanador do poder. A proposta é analisá-lo através de suas 
extremidades e não, apenas, de seu suposto centro, fazendo aparecer sua dimensão microfísica. 
A analítica do poder foucaultiana possibilita dissecar o cotidiano da atuação das relações de 
poder, permitindo compreender como o sujeito é marcado em sua individualidade, em seus 
processos de construção de identidade. É uma forma de compreensão do poder que permite 
enxergar a norma que interpela o sujeito, que compõe seus processos de subjetivação32. 
Portanto, o poder é constitutivo e não apenas repressivo: “deve-se considerá-lo como uma rede 
produtiva que atravessa todo corpo social, muito mais do que uma instância negativa que tem 
por função reprimir”33. 
Importante salientar que existe, para Foucault, uma diferença entre a norma e a lei. A 
norma é o elemento que circula através de mecanismos contínuos de regulação e 
disciplinamento, ao passo que a lei consiste na expressão do sistema jurídico (de suas práticas 
e instituições). Assim, a norma assume uma importância maior do que o sistema jurídico da lei, 
pois ela está inserida nas relações capilares de poder. Isso não significa que a lei não possui 
funcionalidades e importância, mas sim que o corpo social é regado de normas difusas que 
 
32 FOUCAULT, 1995, p. 235. 
33 FOUCAULT, 2017, p. 45. 
 30 
exercem o poder de administração e de regulação dos sujeitos, sendo a lei uma das possíveis 
expressões da norma. Nas palavras do autor: 
 
[...] a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra 
cada vez mais num contínuo de aparelhos [...] cujas funções são sobretudo 
reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de 
poder centrada na vida34. 
 
De acordo com Candiotto: 
 
A tese de Foucault é de que nas sociedades modernas a norma tem alcance maior do 
que a lei. Ela prevalece como aspecto fundamental das relações de poder. Enquanto a 
lei é exterior ao indivíduo, ao operar unicamente por ocasião da violação de um ato 
considerado proibido, a norma envolve o conjunto da existência humana. Ela está 
presente no seu cotidiano, alcança sua interioridade mediante distribuições espaciais 
e controles temporais das condutas. A lei é direta e teatral. A norma é difusa e indireta; 
ela funciona como padrão culturalmente construído a partir do qual uma 
multiplicidade de indivíduos é cindida por dentro, entre normais e anormais35. 
 
Assim, para pensar as relações de gênero e suas conformações através das normas é 
necessário extrapolar o modelo da lei e do direito que se origina da teoria da soberania. No 
curso Em defesa da sociedade, principalmente na aula de 04 de fevereiro de 1976, Foucault 
realiza uma reconstrução do pensamento jurídico contratualista que desembocou na teoria da 
soberania, a partir dos escritos de Hobbes. Os contratualistas compreendiam o poder em termos 
de propriedade, ou seja, como algo que poderia ser cedido ao soberano, através de um contrato 
social. Todavia, Foucault argumenta que o poder não é um objeto que se possa possuir, mas 
sim uma relação atravessada por diversos dispositivos. 
Foucault sugere que a análise do poder não deve limitar-se ao modelo jurídico, visto que 
ele oculta relações de dominação, apontando para a importância de um novo vocabulário sobre 
o poder capaz de captar as relações, os saberes e as práticas que ficaram à sombra, ocultadas. 
Para isso, o autor realiza uma reconstrução genealógica do pensamento jurídico, demonstrando 
como a figura da soberania fora forjada, objetivando a neutralização de guerras insurgentes. 
Desse modo, o direito legítimo consistiria naquele representado pela figura do soberano, que 
conteria em si todas as representações do povo. Foucault afirma que, na realidade, a intenção 
em desenvolver uma teoria da soberania residiria em defender os interesses da aristocracia à 
época, construindo um discurso jurídico que trouxesse legitimidade às relações de poder 
vigentes. Portanto, uma análise do poder que se restringe ao modelo jurídico não consegue 
apreender a complexidade das relações, pois o direito fora criado, justamente, para ocultar e 
legitimar relações de dominação. Isto é, “a teoria da soberania é vista como insuficiente para 
 
34 FOUCAULT, 2019, p. 156 
35 CANDIOTTO, 2012, p. 21. 
 31 
descrever diversos mecanismos de poder, tendendo a ocultar relações em jogo e mascarar as 
técnicas de dominação, comprometendo resistências e lutas possíveis”36. A forma legal não 
captura os múltiplos meios de funcionamento do poder, que se dão através de outros 
dispositivos, como os disciplinares ou os biopolíticos.A ideia consiste em, justamente, 
compreender que as formas modernas de dominação se valem do modelo jurídico enquanto 
mecanismo de legitimação, sendo imprescindível apreender o poder em suas formas mais 
microfísicas. 
Logo, considerando que “o direito não descreve o poder”37, não pretendo defender 
simplesmente que as práticas jurídicas são responsáveis pelas opressões de gênero e que no 
direito estão concentradas as relações de poder. Como ressaltado, parto da análise foucaultiana 
de que o poder é microfísico, exercido em rede e, não apenas, por instituições ou grupos sociais 
específicos. Entretanto, reconheço a importância do direito na dinâmica negativa e positiva do 
poder, tendo em vista que ele tanto reprime, quanto produz sujeitos. Assim, examinar os 
procedimentos de sujeição pelos discursos e práticas que circulam no direito é essencial para 
compreender a relevância das práticas jurídicas na ordem de gênero. Isto porque as instituições 
atravessam o conjunto do corpo social38, desempenhando papel fundamental, pois veiculam 
relações de dominação, fortalecendo e legitimando práticas e discursos39. 
O domínio da sexualidade pode ser entendido enquanto um campo da vida de atuação 
do poder. Apesar de o autor não trabalhar especificamente com a diferenciação entre sexo, 
gênero e desejo, sua abordagem sobre a questão da sexualidade, compreendida enquanto um 
campo amplo de saber sobre o sexo, importa para entender que a formação do sujeito e, 
consequentemente, seus desejos e práticas estão imersos em uma ordem de poder-saber 
produtivo. Isto é, esses saberes tornam-se referência na formação dos sujeitos, interpelando-o. 
Entretanto, vale salientar que, ao mesmo tempo em que o sujeito é atravessado pelas relações 
de poder, ele também exerce um papel ativo sobre este mesmo poder. Isto é, o sujeito não é 
somente um reprodutor passivo ou um efeito do poder40. 
Para Foucault, não há “um certo domínio da sexualidade que pertence, de direito, a um 
conhecimento científico, desinteressado e livre, mas sobre o qual exigências do poder [...] 
fizeram pesar mecanismos de proibição”. Os mecanismos de exclusão, de interdição, de 
proibição e de vigilância sobre o sexo integram a micromecânica do poder, podendo ser 
 
36 SOUSA ALVES, 2015, 171. 
37 FOUCAULT, 2017, p. 360. 
38 FOUCAULT, 2019, p.103 
39 FOUCAULT, 2005a, p.31 
40 FOUCAULT, 2005a, p. 35. 
 32 
mobilizados a serviço de um lucro político específico. O pensamento de que há sexos, gêneros 
e desejos “verdadeiros” e “legítimos” é, geralmente, sustentado em prol da manutenção de 
ordens sociais. Nas culturas ocidentais, a ideia de perversão foi explorada e difundida, a fim de 
se estruturar e manter uma ordem sexual centrada na reprodução, no matrimônio e na 
heterossexualidade. Um exemplo utilizado por Foucault é a utilização da figura do homossexual 
para a sustentação do que é considerado como uma sexualidade digna. Para o autor, a 
homossexualidade foi extraída, classificada e distribuída com o objetivo de estimular quais 
prazeres são considerados legítimos: isto é, os heterossexuais. Mais do que reprimir 
experiências homossexuais, o objetivo seria utilizar as práticas consideradas como desviantes 
para reafirmar o que é normal. Logo, a mecânica do poder estaria incumbida de encravar nas 
sexualidades uma espécie de verdade a priori, naturalizada, que definiria a qualidade daquele 
corpo em que ela é exercida. Não se objetivava uma mera exclusão de sexualidades 
consideradas como aberrantes, mas sim a sua produção, classificação, como se elas fossem a 
desordem por natureza. Assim, estabeleceu-se uma fisionomia rígida das perversões: para saber 
se uma pessoa é perversa, indigna ou desviante, basta identificar a natureza de suas práticas41. 
As perguntas que orientam este capítulo são: o que são sexo e gênero? Especificamente, 
o que eles são para o direito? A qual ordem de gênero as práticas jurídicas se referenciam? 
Como o gênero é articulado no sistema penal? Observo que, frequentemente, no universo 
jurídico, o gênero é associado à ideia de coerência biológica. Isto é, o sexo biológico é a 
referência para a definição do gênero dos sujeitos, como, por exemplo, é possível perceber na 
insistência em se ignorar o nome social de pessoas trans, priorizando o uso do nome de registro. 
 
1.1 Gênero e cisnormatividade 
 
O que é gênero? Tomo a concepção de gênero que rompe o determinismo biológico, a 
fim de se mostrar como a formação dos sujeitos está localizada em ordens específicas, 
estruturadas pelas normas de gênero. Sexo e gênero, muitas vezes, são compreendidos a partir 
de uma definição biológica que separa o mundo entre homens (com órgãos genitais masculinos) 
e mulheres (com órgãos genitais femininos). Existem ainda aquelas pessoas que compreendem 
que o sexo possui origem biológica, ao contrário do gênero, que adviria do meio social. Nesta 
linha de raciocínio, o gênero seria uma construção cultural que pode, ou não, estar de acordo 
com o sexo biológico da pessoa, representando uma impressão da cultura no corpo. Porém, 
 
41 FOUCAULT, 2019, p. 49-55. 
 33 
pergunto: seriam sexo e gênero categorias diferenciadas? Ou ambas não seriam, afinal, 
construídas e produzidas? Isto é, não seriam as concepções de sexo e de gênero uma 
interpretação cultural do biológico? 
A bióloga e ativista social Anne Fausto-Sterling, em sua obra traduzida para o português 
como Sexuagem do corpo (Sexying the Body), apresenta a tese de que os conhecimentos 
científicos sobre a sexualidade humana são elementos de lutas políticas, sociais e morais da 
cultura e da estrutura econômica42. A ciência não “descobre” a realidade concreta sobre os 
sexos, mas sua investigação é orientada a partir de uma base moral que atua sobre os corpos, 
determinando o que compreendemos enquanto real. De acordo com a autora, os estudos 
avançados em genética demonstram que a redução do sexo a categorias, como as de “mulher” 
e “homem”, não são simples de serem feitos, pois, biologicamente, o corpo humano é 
extremamente complexo em sua composição. Para Anne Fausto-Sterling, a classificação de 
sexos binários é uma decisão social, tendo em vista que os nossos sentidos sobre o gênero são 
responsáveis por conduzir o conhecimento científico e produzir um saber sobre o sexo. Logo, 
“nossas crenças sobre o gênero afetam o tipo de conhecimento que cientistas produzem sobre 
o sexo, em primeiro lugar”43, de modo que a cultura afeta o corpo, primordialmente. Portanto, 
o gênero consiste em aparato de produção dos sexos, visto que, a partir de discursos culturais 
hegemônicos, fronteiras em relação às experiências de gênero são estabelecidas44. 
Recorrendo à Butler, principalmente ao livro Problemas de gênero, utilizo alguns 
conceitos como ferramenta para auxiliar na compreensão da relação entre as categorias de 
gênero e uma ordem dominante de heterossexualidade compulsória. Butler sugere que a matriz 
heterossexual e binária é responsável por determinar os limites em que a experiência de gênero 
é construída. Isto porque esta matriz consiste em um modelo discursivo/epistemológico que 
define a relação entre o corpo e a anatomia a partir de gêneros estáveis, que se complementam 
em sua utilidade, por meio da prática da heterossexualidade. Butler utiliza o termo matriz 
heterossexual para se referir a uma ordem de gênero, a uma “grade de inteligibilidade cultural”, 
que aplica regras de heterossexualidade compulsória em relação aos corpos, aos gêneros e aos 
desejos. Essas regras estabelecem que, para que um gênero seja considerado como natural e 
adequado, ele deve derivar da natureza. Além disso, os desejos devem ser direcionados ao 
gênero oposto. Isto é: o macho designa o masculino; a fêmea designa o feminino e, por fim, 
 
42 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 5. 
43 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 3, tradução livre. No original: “our beliefs about gender affect what kinds of 
knowledge scientistsproduce about sex in the first place”. 
44 BUTLER, 2016, p. 27-31. 
 34 
masculino e feminino possuem um desejo heterossexual um pelo outro45. Logo, para que as 
experiências sejam consideradas como “corretas”, inteligíveis nos marcos da cis-
heterossexualidade, deve haver uma continuidade entre sexo, gênero e desejo, estabelecida por 
normas socialmente instituídas. Neste sentido, algumas experiências são consideradas como 
inteligíveis, pois mantêm certa coerência. Outras, são consideradas como abjetas, incorretas, 
ininteligíveis, por apresentarem descontinuidades nessa relação entre sexo biológico binário, 
gênero binário decorrente do sexo e desejo heterossexual que liga os gêneros opostos46. Nas 
palavras de Butler: 
 
O gênero só pode denotar uma unidade de experiência de sexo, gênero e desejo, 
quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige um gênero – sendo o gênero 
uma designação psíquica e/ou cultural do eu – e um desejo – sendo o desejo 
heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao 
outro gênero que ele deseja. A coerência e a unidade internas de qualquer dos gêneros, 
homem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estável e oposicional. Essa 
heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a univocidade de cada 
um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de 
gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional. Essa concepção do 
gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo, gênero e desejo, mas sugere 
igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero reflete ou 
exprime o desejo47. 
 
Mais do que isso, os marcos que enquadram os gêneros entre corretos e incorretos, 
estabelecem um jogo de inversão em que algumas identidades de gêneros são marcadas pelo 
paradigma do inimigo. Isto é, o jogo de “identidades por inversão” define que as experiências 
que escapam os marcos da cis-heterossexualidade são compreendidas como um risco aos 
sujeitos “normais e corretos”, como inimigas dos “cidadãos de bem”. Neste sentido, além de as 
normas de gênero ocasionarem o fenômeno da ininteligibilidade de experiências de gêneros 
diversas, conforme é apresentado por Butler, percebo que, em determinados casos, o que ocorre 
é a colocação de grupos sociais em um lugar do inimigo de gênero, do sujeito que deve ser 
normalizado. 
Portanto, entendo, nesta pesquisa, que o gênero é constituído pela ação do sujeito, 
performativamente, a partir e através das práticas reguladoras de coerência de gênero. As 
experiências de gênero e, consequentemente, de produção do corpo, estão condicionadas à 
lógica cultural do gênero. Isso não significa dizer que não há possibilidades para a existência 
de experiências que extrapolem as normatividades de gênero. O que se sustenta é que não há 
gênero anterior à experiência do sujeito, não há sexo pré-definido, natural, desconectado das 
 
45 BUTLER, 2016, p. 258. 
46 BUTLER, 2016, p. 43-44. 
47 BUTLER, 2016, p. 52 
 35 
relações de poder. Esses limites, que atravessam a experiência do sujeito, são estabelecidos a 
partir de um discurso cultural hegemônico baseado em estruturas binárias e heterossexistas. Ao 
afirmar que “o gênero não é um substantivo”48, Butler destaca que, além de não ser decorrência 
direta da anatomia (já que a biologia não é destino, pois é produzida culturalmente), o gênero é 
performativo, isto é, produzido através das ações do sujeito em relação à norma. Não há uma 
espécie de colagem direta do sujeito à norma. Entre a matriz heterossexual binária e a feitura 
do gênero, há uma espécie de vácuo, de distância, que permite o surgimento de outras 
possibilidades que escapam ao binarismo e à heterossexualidade. Por isso a autora utiliza o 
verbo “interpelar”, afirmando que a norma confronta, interroga, interpela o sujeito, 
convocando-o à ação. Neste sentido, o gênero é performativo, é o fazer de um sujeito localizado 
em determinadas relações de poder, ele é “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos 
repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo 
para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”49. 
Para não cair no determinismo puro e simples e, também, a fim de se compreender a 
existência de experiências de gênero que fogem da lógica de coerência, Butler recorre a 
Foucault, explorando, através do autor, as resistências dentro das lógicas de poder, pois onde 
há poder, há resistência50. O poder não aprisiona, havendo a possibilidade de alteração de suas 
relações, de suas formas de dominação e de sua materialidade51. O conceito de gênero de Butler 
está integrado a essas possibilidades de resistência. Isso porque a produção do gênero ocorre 
através da prática, na dimensão psíquica do sujeito, em relação às normas de gênero 
hegemônicas. As normas são responsáveis por produzir o gênero e atuar na subjetivação do 
sujeito que, por sua vez, atua sobre as normas, causando fissuras nessa matriz cristalizada. 
Apesar de Butler já nos ter alertado sobre os perigos da narrativa essencialista sobre a 
feminilidade, que busca o estabelecimento da “unidade” de gênero em identidades fixas52, 
acredito ser essencial atualizar os conceitos e debates sobre a normatividade de gênero pelas 
discussões transfeministas. Koyama compreende que sexo e gênero são construídos 
socialmente, entretanto, a distinção social entre ambos é feita de forma artificial e conveniente, 
a fim de manter relações de poder e submissão. Ela ainda denuncia que as concepções sobre 
 
48 BUTLER, 2016, p. 56. 
49 BUTLER, 2016, p. 69. 
50 FOUCAULT, 2019, p. 104. 
51 FOUCAULT, 2017, p. 360. 
52 BUTLER, 2016, p. 17-42. 
 36 
gênero que desmantelaram as compreensões tradicionais em relação ao sujeito mulher falharam 
em abordar as experiências trans53. 
O transfeminismo é definido por Jaqueline Gomes de Jesus como: 
 
[...] uma linha de pensamento e de prática feminista que rediscute a subordinação 
morfológica do gênero (como construção psicossocial) ao sexo (como biologia), 
condicionada por processos históricos, criticando-a como uma prática social que tem 
servido como justificativa para a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não 
estão conforme à norma binária homem/pênis e mulher/vagina [...]54. 
 
Jesus defende uma teoria e prática transfeminista denominada de “meio-termo”, em que 
não há a defesa da abolição do gênero, mas sim de políticas identitárias que não façam 
hierarquizações de gênero. A autora compreende que há a diferença entre sexos biológicos, pois 
trabalha com o conceito de identidade de gênero formada socialmente e de sexo natural. Em 
que pese este ponto ser um pouco distante do que entendo nesta pesquisa, acredito que seu 
trabalho é fundamental para pensar sobre as críticas às normas de gênero cissexistas e 
heterossexuais. Neste sentido, é necessário compreender o cissexismo, termo trabalhado por 
escritoras transfeministas, que se articula com o que Butler denomina como “matriz 
heterossexual e binária”. 
Afinal, o que é cissexismo? Para Jesus, ele resulta da lógica binária em que há uma 
crença de que o gênero deve corresponder ao sexo biológico, gerando uma série de prejuízos 
às possibilidades de expressão de gênero das pessoas. Ele se dá a partir de mecanismos legais 
e culturais de subordinação das pessoas cisgênero e transgênero, sendo que “para as pessoas 
trans, em particular, o cissexismo invisibiliza e estigmatiza suas práticas sociais”55. O 
cissexismo consistiria em um projeto que deslegitima possibilidades de ser outras, 
marginalizando as experiências de pessoas travestis e transexuais. 
Nas palavras de Hailey Kaas: 
 
Primeiramente é a desconsideração da existência das pessoas trans*56 na sociedade. 
O apagamento de pessoas trans* politicamente por meio da negação das necessidades 
específicas dessas pessoas. É a proibição de acesso

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