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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Direito Izabella Riza Alves “ESSE POVO MATA MESMO”: biopolítica e cisnormatividade nas audiências de custódia Belo Horizonte 2021 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Direito Izabella Riza Alves “ESSE POVO MATA MESMO”: biopolítica e cisnormatividade nas audiências de custódia Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), como requisito obrigatório para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio Sousa Alves Belo Horizonte 2021 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Junio Martins Lourenço - CRB 6 3167. A474e Alves, Izabella Riza "Esse povo mata mesmo" [manuscrito]: biopolítica e cisnormatividade nas audiências de custódia / Izabella Riza Alves.-- 2021. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. 1. Direito Penal - Brasil - Teses 2. Processo penal - Brasil - Teses 3. Biopolitica - Teses 4. Transexuais - Teses 5. Travestis - Teses I. Alves, Marco Antônio Sousa II. Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Direito III. Título CDU: 343.1(81) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFMG ________________________________________________ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO Av. João Pinheiro, 100 - 11º andar - Centro - Belo Horizonte - MG – Brasil - 30130-180 Fone: (31) 3409.8635 - E-mail: info.pos@direito.ufmg.br – https://pos.direito.ufmg.br FACULDADE DE DIREITO UFMG DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: DIREITO E JUSTIÇA BELª. IZABELLA RIZA ALVES Aos vinte e seis dias do mês de agosto de 2021, às 14h00, via plataforma virtual, reuniu-se, em sessão pública, a Banca Examinadora constituída de acordo com o art. 73 do Regulamento do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, e das Normas Gerais de Pós-Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, integrada pelos seguintes professores: Prof. Dr. Marco Antônio Sousa Alves (orientador da candidata/UFMG); Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) e Profa. Dra. Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (UFMG), designados pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, para a defesa de Dissertação de Mestrado da Belª. IZABELLA RIZA ALVES, matrícula nº 2019666760, intitulada: "'ESSE POVO MATA MESMO': BIOPOLÍTICA E CISNORMATIVIDADE NAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA". Os trabalhos foram iniciados pelo orientador da candidata, Prof. Dr. Marco Antônio Sousa Alves, que, após breve saudação, concedeu a candidata o prazo máximo de 30 (trinta) minutos para fins de exposição sobre o trabalho apresentado. Em seguida, passou a palavra ao Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos, para o início da arguição, nos termos do Regulamento. A arguição foi iniciada, desta forma, pelo Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos, seguindo-se-lhe, pela ordem, os Professores Doutores: Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro e Marco Antônio Sousa Alves. Cada examinador arguiu a candidata pelo prazo máximo de 30 (trinta) minutos, assegurando a mesma, igual prazo para responder às objeções cabíveis. Cada examinador atribuiu conceito a candidata, em cartão individual, tendo se verificado o seguinte resultado: Prof. Dr. Marco Antônio Sousa Alves (orientador da candidata/UFMG) Conceito: 100 (cem) Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) Conceito: 100 (cem) Profa. Dra. Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (UFMG) Conceito: 100 (cem) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFMG ________________________________________________ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO Av. João Pinheiro, 100 - 11º andar - Centro - Belo Horizonte - MG – Brasil - 30130-180 Fone: (31) 3409.8635 - E-mail: info.pos@direito.ufmg.br – https://pos.direito.ufmg.br FACULDADE DE DIREITO UFMG A Banca Examinadora considerou a candidata aprovada, com nota 100 (cem). Nada mais havendo a tratar, o Professor Doutor Marco Antônio Sousa Alves, orientador da candidata, agradecendo a presença de todos, declarou encerrada a sessão. De tudo, para constar, eu, Fernanda Bueno de Oliveira, Servidora Pública Federal lotada no PPG Direito da UFMG, mandei lavrar a presente Ata, que vai assinada pela Banca Examinadora e com o visto da candidata. BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Marco Antônio Sousa Alves (orientador da candidata/UFMG) Prof. Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) Profa. Dra. Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro (UFMG) - CIENTE: Izabella Riza Alves (Mestranda) AGRADECIMENTOS Este trabalho é a realização de um sonho que compartilhei com pessoas que confiaram no potencial que a palavra, a troca, os estudos e a pesquisa têm para transformar a vida. Agradeço à minha família pelo amor, por confiar na pessoa que eu sou e por apoiar incondicionalmente as minhas escolhas. Às minhas amigas e amigos, principalmente à Tainá, à Maria Clara e à Juliana, agradeço pelos conselhos e por tonarem a minha vida mais leve. Ao Thales, obrigada por caminhar esse percurso ao meu lado. Ao Marco Antônio, agradeço, especialmente, por confiar na minha pesquisa desde o ingresso na Pós-graduação, pela orientação cuidadosa, pela amizade e por ser um exemplo de docência. Aos professores Marco Aurélio Máximo Prado, Leandro de Oliveira e Andityas Matos, agradeço pelas contribuições feitas na minha banca de qualificação. À Ludmila Ribeiro, obrigada por me acolher durante essa trajetória e por me auxiliar no trajeto, às vezes tortuoso, da pesquisa de campo. Ao professor Pablo Alves de Oliveira, agradeço por ter sido fundamental no início da minha carreira acadêmica, que nasceu na graduação. Agradeço aos meus colegas da Divisão de Assistência Judiciária (DAJ/UFMG) por me ensinarem tanto sobre advocacia criminal, principalmente à Zilda, pelo acolhimento na Faculdade. Ao Projeto Solta Minha Mãe, agradeço pela oportunidade de fazer da advocacia um instrumento para a libertação de mulheres. Ao Desencarcera-MG, por ser a minha referência na luta abolicionista penal. Agradecimento especial às integrantes do Grupo de Estudos em Criminologia Crítica Feminista, por construírem esse projeto tão incrível comigo. Aos meus educandos da Educafro, sou eternamente grata por me mostrarem que educação é resistência. Às integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Sistema de Justiça Criminal do CRISP, agradeço pelo auxílio nas entrevistas e na produção das transcrições. Ao Lucas Caetano, pela paciência em me auxiliar durante a análise dos dados da pesquisa de campo. As críticas propostas nesse trabalho só foram possíveis devido a pessoas como Viviane Vergueiro, Jaqueline Gomes de Jesus, Julia Serano, Emi Koyama, Hailey Kaas, Sayonara Nogueira, Sam Bourcier e Paul Preciado e tantas outras, que me fazem pensar em uma política e prática tansfeministas e feministas que sejam emancipatórias para todas as pessoas. Agradeço à Ariane Gontijo e à Cláudia Amaral por abrirem as portas da custódia para mim, e, também, à equipe da custódia, da CEAPA e do Acompanhamento Multidisciplinar pela disponibilidade para as entrevistas e pela confiança que foi depositada a mim. À Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) agradeço pelo financiamento desta pesquisa. RESUMO O objetivo desta dissertação de mestrado consistiu em analisar as práticas das audiências de custódia em relação às experiências de travestis e transexuais e buscar, por meiodessas práticas, compreender o papel que desempenham na operacionalização de dispositivos biopolíticos. Os dados apresentados são o resultado de pesquisa em profundidade realizada sobre as Audiências de Custódia, em Belo Horizonte, ao longo de dois anos (2020 e 2021). Mobilizo o aparato teórico para compreender como os dispositivos de gênero e penais movem as práticas nas audiências de custódia, a partir dos seguintes elementos: a categoria do gênero-delinquente; o nome de registro e o nome social da pessoa travesti e transexual e as medidas alternativas da prisão, com o foco na assistência social executada pela Equipe do Acompanhamento Multidisciplinar. Persigo a hipótese de que as práticas cisnormativas da audiência de custódia estão insertas em um sistema jurídico que é peça fundamental do racismo de Estado, de uma biopolítica que se funde ao velho poder soberano de morte. Palavras-chave: audiência de custódia; biopolítica; cisnormatividade; transexual; travesti. ABSTRACT The aim of this master's thesis was to analyze the practices of custody hearings in relation to the experiences of transvestites and transsexuals and seek, through these practices, to understand the the operationalization of biopolitical devices. The data presented in this search are the result of an “in-depth research” carried out on the Custody Hearings, in Belo Horizonte, over two years (2020 and 2021). I mobilize the theoretical apparatus to understand how gender and criminal dispositives move practices in custody hearings, based on the following elements: the gender-offender category; the civil name and social name of the transvestite and transsexual people and the alternative measures of the prison, with a focus on social assistance carried out by the “Multidisciplinary Monitoring Team”. I pursue the hypothesis that the cisnormative practices of the custody hearing are inserted in a legal system that is a fundamental part of State racism, of a biopolitics that merges with the old sovereign power of death. Keywords: biopolitics; cisnormativity; custody hearings; transsexual; transvestite. LISTA DE SIGLAS APFD – Auto de Prisão em Flagrante e Delito CAO-DH/MPMG – Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos e Apoio Comunitário em Direitos Humanos do Ministério Público de Minas Gerais CEFLAG – Central de Recepção de Flagrantes CAO-CRIM/MPMG – Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, de Execução Penal, do Tribunal do Júri e da Auditoria Militar do Ministério Público de Minas Gerais CNCD/LGBT - Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais CNJ – Conselho Nacional de Justiça CRISP – Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública HIV/AIDS – Acquired Immunodeficiency Syndrome (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias LBT – Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais NUH – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG REDS – Registro de Defesa Social TGEU – Tansgender Europe TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais TMM – Observatório de Pessoas Trans Assassinadas UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais LISTA DE FIGURAS Figura 1: Gráfico sobre o preenchimento do campo “identidade de gênero”.......................... 17 Figura 2: Folha de São Paulo, 1º de março de 1987................................................................. 59 Figura 3: Cabeçalho do Termo de Audiência de Custódia......................................................115 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 1.1 Procedimentos metodológicos e a construção do campo de pesquisa .......................... 21 CAPÍTULO 1: GÊNERO E SISTEMA PENAL ................................................................. 29 1.1 Gênero e cisnormatividade .............................................................................................. 32 1.2 Sistema punitivo e a gestão de ilegalismos ...................................................................... 39 1.3 A produção da “delinquência de gênero” ....................................................................... 52 CAPÍTULO 2: DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS E PRECARIEDADE ........................ 62 2.1 O que é um dispositivo? ................................................................................................... 62 2.2 A encruzilhada do gênero: Biopolítica, racismo de Estado e disciplina ...................... 66 2.4 Precariedade ...................................................................................................................... 78 CAPÍTULO 3: TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NA CUSTÓDIA ................................... 84 3.1 Atores da custódia: apresentação e diagnóstico do fluxo .............................................. 85 3.2 Medidas cautelares: O Atendimento da Equipe Multidisciplinar ............................... 94 3.3 A operacionalização da cisnormatividade na custódia ............................................... 103 3.3.1 A visão de cisgêneros sobre pessoas travestis e transexuais ..................... 103 3.3.2 “Termômetro”: o nome social e o nome de registro ................................. 110 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 118 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 123 13 INTRODUÇÃO “Esse povo mata mesmo”. Essa foi uma das poucas frases que um juiz1, responsável por conduzir as audiências de custódia no Fórum Lafayette de Belo Horizonte, direcionou a mim durante uma conversa. Nesse dia, 11 de março de 2020, ele me perguntou se fiquei sabendo de um homicídio que aconteceu naquela madrugada. De acordo com ele, o homicídio envolvia prostituição e “dois travestis [sic]”. Após narrar os detalhes sobre o fato, contando que a faca do crime foi encontrada alguns quarteirões perto do local, que “o travesti [sic]” suspeito roubou um carro para fugir e que “foi uma confusão absurda”, perguntei-lhe: “mas será mesmo que foi isso que aconteceu? Será que essa pessoa, essa travesti, que matou?”. Além de fazer questão em evidenciar o pronome feminino, pensei que o questionamento pudesse provocar algum deslocamento naquelas pessoas, já que elas estavam certas que aquela cena aconteceu. O juiz estava narrando uma história que ouviu em um jornal de televisão, nada mais prudente que questionar se aquela narrativa continha traços de sensacionalismo, tão comum nos programas televisivos que contam notícias sobre crimes. Entretanto, a resposta foi certeira: “Esse povo mata mesmo”. Para ele há algo intrínseco naqueles sujeitos que permite concluir que, de fato, a autoria do crime estava comprovada, pois, esse é um tipo de povo que “mata mesmo”. Comentários como esses não são episódicos nos ambientes jurídico-penais. Eles compõem as narrativas dos fatos, fazendo com que as características pessoais das pessoas trans sejam acionadas enquanto mecanismos de criminalização. Fato este que, inclusive, não é nenhuma novidade. Inúmeros são os depoimentos de pessoas travestis e transexuais denunciando situações em que foram expostas e agredidas por agentes do Estado, tratadas como criminosas, simplesmente por suas identidades de gênero. Durante a finalização da escrita desta introdução, recebi a notícia que Paola Amaral, uma travesti negra, foi mantida presa, dentro de um porta-malas de um carro e submetida a diversas agressões físicas e verbais, e à tortura, por um grupo de homens que faziamtodas essas ações em frente aos membros da Guarda Municipal de Teresina, no Piauí. Os vídeos do fato que circularam pela internet, principalmente pelas redes sociais da ANTRA2, mostram a passividade e a omissão da população e dos agentes do Estado ao verem a travesti ser agredida, amarrada pelos pés por uma corda e arrastada por um homem. Este fato, que faz parte do cotidiano brasileiro de violência contra travestis e transexuais, 1 Objetivando a proteção do anonimato, referencio os operadores do direito que compõem o campo de pesquisa conforme a profissão que exercem, colocando todos com o gênero masculino para que não ocorra possibilidade de distinção, considerando que há pouca rotatividade entre os profissionais que atuam nas audiências de custódia em Belo Horizonte. 2 Disponível em: https://twitter.com/AntraBrasil/status/1417463665113145346. Acesso em 20 jul. 2021. 14 escancara uma cultura de naturalização da violência contra uma população que é tratada como indigna de ter uma vida vivível, como passível de ser matada. O contexto da pandemia do Covid-19 tem evidenciado as violências estatais em relação às populações consideradas como “indesejáveis”. Essa violência tem adquirido contornos mais explícitos e dramáticos atualmente, tornando a morte de negras e negros, pessoas LGBTs, mulheres e moradores de comunidades cada vez mais aceitável. Ainda, observamos o alastramento de políticas negacionistas em relação às violências estatais, através da sistemática ocultação de dados3 e da desmobilização de programas de assistência social. Este fato aponta para explícita política de legitimação de violências, vista como heroica e necessária em meio a uma narrativa de guerra de enfrentamento ao inimigo radical. Esta pesquisa é movida pela percepção de que nós, bichas, travestis, gays, sapatões, bissexuais, negras e negros, isto é, a parcela da sociedade vista como indesejável, somos, cotidianamente, alvo do poder punitivo e da violência estatal de maneira diferencial. Mobilizo diversos trabalhos que compõem uma extensa literatura, denunciando a forma pela qual o gênero é articulado enquanto um mecanismo que compõe cenas de crimes e corrobora para narrativas de criminalização. Procuro, por meio de uma análise biopolítica, aprofundar e compreender o modo como esse tratamento diferencial e essas violências atravessam as práticas jurídico-penais e, em especial, as audiências de custódia. Além do caráter denunciativo que trago neste texto, pretendo também apontar para as contradições observadas no campo jurídico. Se, por um lado, o direito é instrumento de legitimação de violências, por outro, compreendo que ele é também um campo de disputa4, podendo exercer um papel denunciativo, ao menos em certa medida e em termos táticos. Mas, por que a custódia? As audiências de custódia consistem na obrigatoriedade de apresentação da pessoa presa em flagrante delito, em até 24 horas, à autoridade judicial competente, para que seja ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão. As decisões e encaminhamentos que são proferidos pelo magistrado são determinantes para o futuro processual da pessoa presa, pois ela pode ter o flagrante convertido em uma prisão provisória; pode ser liberada para responder ao processo sem ou com alguma medida cautelar; ou pode não responder a nenhum processo, pois o flagrante foi considerado 3 Como, por exemplo, a exclusão dos casos de violência policial do Relatório Anual de Direitos Humanos, em junho de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/governo-bolsonaro-exclui- violencia-policial-de-relatorio-sobre-violacoes-de-direitos-humanos.shtml. Acesso em 08 set. 2020. 4 Refiro-me às disputas táticas no jogo das relações de poder, principalmente no que concerne ao gênero, à classe e à raça. Isto é, levando-se em consideração a “guerra” como um mecanismo de inteligibilidade das relações de poder, o direito é um instrumento tático que está constantemente em disputa pelos diferentes atores sociais. 15 ilegal. Ainda, a custódia é um instituto jurídico importante, que surgiu com a intenção de diminuir a quantidade de presos provisórios no país, bem como controlar a atividade policial, evitando torturas. Ela está em constante disputa, principalmente considerando o momento histórico de recrudescimento do punitivismo e de tentativa de desmobilização do enfrentamento às violências estatais (principalmente a policial)5. Inclusive, a pandemia do Covid-19 surgiu como um momento oportuno para o enfraquecimento das audiências de custódia, visto as tentativas de manutenção de sua suspensão6 definida pelo TJMG em março de 2020 e, também, de virtualização das audiências7. Na tentativa de se pensar o perfil das pessoas que passam pelas audiências de custódia, o gênero aparece enquanto categoria a ser analisada, limitada ao sexo biológico constatado através do registro civil. O monitoramento do CRISP e do IDDD aponta para o problema da burocratização do gênero pela justiça, visto que seu relatório sistematizou as informações sobre o gênero das pessoas custodiadas a partir das informações presentes nos Registros de Eventos de Defesa Social (REDS), também chamados de Boletim de Ocorrência, considerando apenas as categorias cisgêneras8 de mulher e homem. Isto porque, de acordo com a justificativa presente no monitoramento, “o Tribunal de Justiça não adota a autoidentificação e trata os flagranteados em conformidade com o registro civil”9. Apesar de a Resolução n.º 11 do CNCD/LGBT de 2014 ter incluído nos REDS os campos de preenchimento de “identidade de gênero”, “orientação sexual” e “nome social”10, percebe-se que as pesquisas sobre o Sistema de Justiça Criminal brasileiro se restringem à análise binária de gênero. Este fato me faz desconfiar que as ferramentas utilizadas para se pensar o gênero em relação às práticas jurídicas são, muitas vezes, limitadas, visto que se prendem à própria lógica cisgênera do direito. Apesar das pesquisas sobre a custódia serem relativamente recentes, tendo em vista o pouco tempo da inauguração do instituto no Brasil, proponho que seja importante que elas 5 “O massacre do Jacarezinho foi uma forma de dizer ao STF que ninguém controla a polícia, que ela é quem define o que é excepcional e legítimo na sua atuação, que ela não se submeterá a nenhum controle externo, que as operações não serão interrompidas, e que a polícia tampouco assume qualquer compromisso em reduzir as altas taxas de letalidade”. Disponível em: https://diplomatique.org.br/analise-da-coletiva-de-imprensa-da-policia-civil- sobre-o-jacarezinho/. Acesso em 21 jul. 2021. 6Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/informes/suspensao-das-audiencias-de- custodia.htm#.Xz2NjC2gQ_U. Acesso em 19 ago. 2020. 7 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3364. Acesso em 19 ago. 2020. 8 De acordo com Jesus (2012, p. 10) termo “cisgênero” é um conceito que abarca as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado em seu nascimento. Assim, há uma coerência entre o sexo atribuído de acordo com uma visão biológica binária de mulher/homem e o gênero da pessoa. 9 RIBEIRO et al., 2020, p. 33. 10 “Considerando a necessidade de dar visibilidade para os crimes violentos praticados contra a população LGBT, resolve: Art. 1o Estabelecer os parâmetros para a inclusão dos itens “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social” nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais no Brasil.” (CNCD/LGBT, Resolução n.º 11/2014) 16 produzam informações a respeito de realidades de gênero diversas ao binômio mulher e homem, buscando descortinar as relações entre o direito e a vida de pessoas travestis e transexuais. É preciso compreender que as instituições governamentais responsáveis por essa produção de dados, incluindo a academia, são permeadas por uma cultura de apagamentoe invisibilização das violências sofridas por pessoas trans. O fato de encontrarmos pesquisas que, primordialmente, realizam abordagens cisgêneras, me faz desconfiar que o foco dado às questões de gênero privilegia experiências que correspondam com as coerências formuladas pelas normas de gênero. Além do mais, as ferramentas para pesquisar gênero no campo jurídico são, de fato, limitadas, tendo em vista o reforço às burocracias que insistem em se operacionalizar a partir de categorias binárias. Assim, é imprescindível que se faça um giro na análise de gênero, tanto no sentido de redefinir as categorias, quanto no sentido de olhar para a cisgeneridade enquanto um campo de estudos e investigação. Entre janeiro de 2008 a junho de 2016, o Observatório de Pessoas Trans Assassinadas (TMM), da Tansgender Europe (TGEU), registrou 2190 casos de homicídios que tinham como vítimas pessoas trans. Em números absolutos, o Brasil registrava um total de 868 mortes, um número três vezes maior de seu sucessor, o México, com 25911. Apesar de o Brasil ser, em números absolutos, o país que mais mata travestis e transexuais do mundo, é recorrente o silêncio das instituições de segurança pública em produzir dados quantitativos a respeito do assassinato sistêmico de travestis e transexuais. Geralmente, esta produção fica a cargo do movimento social, tais como o Observatório Trans, a ANTRA, a Rede Trans e, também, algumas iniciativas das universidades. A produção de dados e informações sobre as violências sofridas por esse público produz contranarrativas que colocam luz sobre as violações sistêmicas de direitos. Mais além, elas são relevantes no sentido de demonstrarem como as práticas institucionais estão localizadas em uma manutenção e produção biopolítica de precarizações da vida e assassínio direito ou indireto. Coacci12, em sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal de Minas Gerais, aponta para a relevância de se pensar a produção de informações sobre a violência letal contra travestis e transexuais. Ele afirma que a representação pública da violência em relação a essas pessoas, pode colaborar para evidenciar a urgência de se investigar a interseção entre práticas jurídicas e gênero. Isso porque a violência institucional focada contra esse público é específica em relação ao seu gênero, por isso, deve ser especialmente investigada. Neste sentido, entendo ser obrigação da pesquisa acadêmica rever o olhar sobre as questões de gênero 11 TGEU, 2016, p.14. 12 COACCI, 2018, p. 198-207. 17 a fim de não continuar reproduzindo a cultura de exclusão e invisibilização de travestis e transexuais. O Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH), em parceria com o CAO-DH/MPMG, publicou, em 2019, o relatório de “Registros de homicídios envolvendo LGBTs no estado de Minas Gerais”, com o objetivo de analisar REDS, de 2016 a 2018, que envolveram pessoas LGBTs. Os REDS são responsáveis por fornecer importantes informações que compõem o Auto de Prisão em Flagrante e Delito (APFD). Lages13 alerta, em sua dissertação de mestrado sobre as audiências de custódia em Belo Horizonte, que o APFD orienta a análise dos aplicadores do direito no momento da audiência de custódia. Neste sentido, procuro entender, também, como as questões de gênero são tratadas nesses documentos, pois essas informações podem ajudar a sinalizar alguns pontos interessantes para a minha investigação. A partir da pesquisa do NUH, podemos observar um padrão de omissão no preenchimento dos REDS no que se refere ao campo de “identidade de gênero”. Vê-se que os campos “não se aplica” e “ignorado” foram utilizados majoritariamente: Figura 1: Gráfico sobre o preenchimento do campo “identidade de gênero”. Fonte: Relatório do NUH de Análise dos Registros de homicídios envolvendo LGBTs em Minas Gerais entre 2016 e 2018, p. 17. Das 56 pessoas transexuais e travestis registradas nos REDS analisados, 60,7% eram vítimas de homicídio e 28,6% autoras. Nos REDS em que as vítimas eram transexuais e travestis, a maior parte dos ferimentos está localizada no tórax e na cabeça, fato que indica o desejo de desfazimento da imagem e da identidade da vítima. “Assim, há casos em que a identidade de gênero suposta da vítima, o fato de ‘ser travesti’, parece ser o fator determinante 13 LAGES, 2019, p. 70-77. 18 da execução [...]”14. A brutalidade é uma constante nos crimes de homicídio contra pessoas trans, sendo inúmeras as situações que reverberam para requintes de ódio contra elas15. Ademais, em nenhuma das ocorrências envolvendo pessoas transexuais e travestis foi registrada a motivação/causa presumida como transfobia. Entretanto, nos 8 casos em que a suposta autoria é de alguma pessoa transexual ou travesti, apenas 1 não tem o registro da causa presumida preenchido. Ainda de acordo com o relatório, apenas 50% das ocorrências tiveram o campo “nome social” preenchido corretamente. Se olharmos mais a fundo, observamos que quando registradas como vítimas, a maioria teve o nome social ignorado sendo que, quando autoras, a maior parte teve o nome social preenchido. A importância conferida à causa do homicídio depende se a pessoa travesti ou transexual está na posição de vítima ou de autora dos fatos. O gênero torna-se irrelevante e descartável se elas são vítimas. Mas, se autoras, importa o aparecimento da identidade de gênero. Este apagamento do gênero ocorre em momentos oportunos e estratégicos, ou seja, quando não há interesse em identificar as violências de gênero. Isto porque se objetiva invisibilizar e reduzir a questão a um problema como outro qualquer, deixando à sombra a dimensão biopolítica, da guerra interna contra um sujeito marcado como inimigo, que deve ser domado ou eliminado. Só é possível compreender essa dinâmica biopolítica a partir do momento em que se retira da invisibilidade os marcadores da diferença. Na esteira do raciocínio de pensar como as práticas jurídicas são permeadas pelas normas de gênero, proponho-me a investigar as audiências de custódia, em Belo Horizonte. Através do olhar e da fala dos operadores da custódia que são cisgêneros, busco compreender as práticas insertas neste instituto jurídico e suas interseções com as experiências de pessoas travestis e transexuais. Portanto, o tema-problema da presente pesquisa consiste em analisar as práticas das audiências de custódia em relação às experiências de travestis e transexuais e buscar, por meio dessas práticas, compreender o papel que desempenham na operacionalização de dispositivos biopolíticos. Os pontos de partida para o debate sobre biopolítica consistem, principalmente, no curso Em Defesa da Sociedade, ministrado por Michel Foucault em 1976, e no livro História da Sexualidade I: a vontade de saber, publicado originalmente no mesmo ano. Foucault sustenta a tese de que os processos biológicos da população, do ser humano enquanto espécie, passam a ser alvo de um intenso e radical investimento político na modernidade. Para o autor, uma das faces dessa política de produção da vida está na identificação de populações como indesejáveis. Para que a vida de alguns possa ser produzida e florescer, é necessário que Outros 14 CARRARA; VIANNA, 2006, p. 245. 15 VIDAL, 2019, p. 74. 19 sejam alvo de um poder de morte direto ou indireto, através do funcionamento do racismo de Estado. Foucault argumenta que o racismo consiste no fundamento para a operacionalização dos mecanismos biopolíticos negativos. O racismo, em sua apreensão moderna, é o princípio de separação e de segregação social, entre o “nós” e o “eles”, entre os que são vistos como iguais e aqueles que são tomados enquanto uma ameaça, um inimigo. O racismo impõe uma cisão em um continuum biológico e confere um caráter essencial à diferença, entre a vida digna, legítima, merecedora de proteção, e a vida degenerada, desumanizadae eliminável. Esse “corte” que é produzido no corpo da população define quem deve viver e quem deve morrer16, direcionando o poder de morte a determinada parcela da sociedade. Foucault, ao afirmar que “a função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo”17, possibilita a compreensão de que o racismo orienta a racionalidade da ação estatal e se materializa em aparatos políticos concretos, consolidando-se em um racismo de Estado18. Assim, o racismo de Estado é a incorporação do paradigma da raça através de uma guerra permanente conta o Outro, taxado como inimigo social. Portanto, para que a sociedade possa viver, é necessário que o Outro morra. Deste modo, é necessário entender como o gênero é articulado enquanto uma categoria que ontologiza a diferença, definindo populações como indesejáveis. Entendo que as normas de gênero atuam nas práticas sobre a vida a partir do racismo de Estado, realizando esse corte capaz de deferir violências de gênero sobre determinadas experiências. Essa operacionalização das normas de gênero pauta-se em uma matriz heterossexual e binária, taxando como desviantes as experiências e corpos que extrapolam aquilo que é considerado como “normal”. Importante salientar que não pretendo, com esta análise, supor uma espécie de universalidade das experiências de pessoas travestis e transexuais, colaborando com a percepção de que existiria um sujeito universal trans que representaria experiências comuns a todas essas pessoas. Na verdade, parto de uma crítica aos limites da política de identidade, inspirando-me nos trabalhos de Judith Butler, principalmente em sua obra Problemas de gênero. Certamente, as políticas representacionais possuem um papel importante na luta por melhorias nas condições de vida das populações vulnerabilizadas pelas violências sociais, políticas e econômicas. Conforme salienta Butler, não se trata de negá-las enquanto proposta tática de enfrentamento, mas sim promover uma crítica às categorias de identidade que são engendradas e naturalizadas pelas estruturas jurídicas. O ponto consiste em apontar para os 16 FOUCAULT, 2005a, p.304. 17 FOUCAULT, 2005a, p.306 18 LEMKE, 2018, p. 65. 20 limites das categorias universais, que tendem a plastificar experiências, enquadrando algumas como abjetas. Quando me recordo da fala de Sojourner Truth de “eu não sou uma mulher?”, ouço, a partir dela, as vozes de tantas outras mulheres: negras, indígenas, asiáticas e LGBTs, questionando e reformulando a categoria mulher que foi (e ainda é!) limitada às experiências exclusivas de mulheres brancas, heterossexuais e burguesas. Portanto, o exercício consiste em sempre questionar, colocar à prova e reformular essas categorias19. Considerando que as práticas da custódia são interpeladas por normas de gênero, desejo compreender em que medida há o fortalecimento do mecanismo biopolítico, de produção da vida de alguns em detrimento das populações indesejáveis. A hipótese da pesquisa é de que as práticas cisnormativas da audiência de custódia estão insertas em um sistema jurídico que é peça fundamental do racismo de Estado, de uma biopolítica que se funde ao velho poder soberano de morte. Quando Michel Foucault afirma que a biopolítica marca o exercício político na modernidade, deve-se observar que o poder soberano repressivo (“matar” e “deixar viver”) é condicionado ao poder sobre a vida. A biopolítica, portanto, consistiria no “fazer viver” para alguns e o “deixar morrer” para outros. Em que pese essa subordinação, o poder de morte direto, repressivo, não deixa de existir. Portanto, a dissertação está organizada em três capítulos principais, sendo que o primeiro versará sobre questões fundamentais acerca do gênero, apresentando conceitos-chave que orientam o debate. Para isso, trabalho as abordagens transfeministas e feministas para a construção crítica do raciocínio. Ainda nesse capítulo, demonstro como as normatividades de gênero se relacionam com o sistema penal para a produção da “delinquência de gênero”, apresentando este enquanto campo institucional legitimador de práticas e discursos. O segundo capítulo é dedicado ao debate teórico sobre biopolítica e sobre precariedade. Busco entender como a relação entre biopolítica e gênero se dá para o aumento de precariedades nas experiências de travestis e transexuais e para a efetividade do poder de morte (direto e indireto), por meio do racismo de Estado. No terceiro capítulo, trato sobre o diagnóstico do campo de pesquisa, apresentando o fluxo da audiência de custódia, em dois momentos. No primeiro, apresento a da custódia, mostrando quais são seus atores, instituições e organizações parceiras. Conjuntamente, apresento um diagnóstico mais genérico dos problemas que a custódia enfrenta e que pude perceber durante a pesquisa de campo. Após, destino um subcapítulo para discorrer sobre a audiência de custódia, trabalhando os dados qualitativos produzidos a partir do acompanhamento das audiências. Neste ponto, disseco alguns fatos sensíveis observados no 19 BUTLER, 2016, p. 23. 21 momento da audiência, em relação ao nome social das custodiadas travestis e transexuais, que servem como um termômetro importante para se pensar a relação do direito com a cisnormatividade. Além disso, pretendo questionar e debater algumas medidas cautelares diversas da prisão, pensando de que forma elas integram a rede de dispositivos biopolíticos que encontram no gênero e no Sistema de Justiça Criminal, os lugares de demarcação e administração das populações consideradas como indesejáveis. Por fim, algumas advertências devem ser feitas. Primeiro, considero importante compreender que proponho focalizar nas práticas do opressor, isto é, ter como objeto de investigação as práticas jurídicas e suas reiterações sobre as normas de gênero. Em segundo lugar, pretendo entender como essas práticas se dão, a fim de manter e produzir regimes de poder-saber específicos em relação às experiências de gênero. Procuro investigar a forma como a cisnormatividade é reiterada nas práticas jurídicas, impactando as experiências de pessoas travestis e transexuais. Outra advertência importante ser feita é a escolha terminológica feita por mim em não utilizar, de maneira indiscriminada, o termo “trans” enquanto uma referência mais genérica, buscando evitar um apagamento das identidades de gênero de travestis e transexuais. Os discursos jurídico-penais impõem distinções significativas entre as categorias da transexualidade e da travestilidade, sendo importante compreender como essas diferenças são mobilizadas. A travestilidade é comumente associada à criminalidade, tratada, inclusive, como elemento importante que configura a narrativa dos fatos e a posterior culpabilização. Já a transexualidade é apresentada enquanto uma categoria mais “higienizada”, mas que, ainda assim, é vulnerabilizada pela lógica cisgênera do direito20. Assim sendo, utilizo o termo “trans”, como um termo mais geral, em momentos específicos e estratégicos, quando não percebo haver este marcador de diferença. 1.1 Procedimentos metodológicos e a construção do campo de pesquisa Desde o início da minha pesquisa de mestrado, eu pretendia pesquisar as interseções entre gênero, biopolítica e direito. O objetivo consistia em compreender como o direito, em suas intuições, práticas e discursos, servia como instrumento para a opressão, criminalização e precarização das experiências de pessoas travestis e transexuais, considerando que o Sistema 20 De acordo com Bento (2012, p. 572), a patologização da sexualidade origina da introdução dos saberes médicos- psis na compreensão de que a sexualidade “desviante” é fruto de “anomalias”, de “perversões” e “transtornos de gêneros”. Não pretendo avançar neste debate, entretanto, acredito ser importante mencionar que os discursosde patologização da transexualidade e travestilidade representam um importante estigma nos processos de criminalização das experiências de pessoas trans. 22 Penal integra a rede de dispositivos biopolíticos para gerenciar a vida, através do gênero. Assim, pensei em trabalhar com o Sistema Prisional, principalmente por uma curiosidade que tinha em entender como as categorias de gênero eram interpretadas pelo direito à luz da cisgeneridade. Eu percebia a existência de uma tentativa de catalogar as identidades de gênero e as sexualidades dissidentes nos parâmetros da binariedade e da heterossexualidade compulsória21, fato que sinalizava, para mim, algumas facetas da operacionalização das normas de gênero no direito. Entretanto, conforme fui trilhando o campo de pesquisa e acessando o Sistema de Justiça Criminal enquanto pesquisadora, acabei conhecendo pessoas que me apresentaram as audiências de custódia como um campo possível no direito, como o professor Marco Aurélio Máximo Prado (UFMG). Logo, o interesse em pesquisá-la surgiu das possibilidades que se abriram durante a construção do campo de pesquisa e, também, da disponibilidade e contribuição dos profissionais que se dispuseram a participar das entrevistas e das conversas durante as visitas que fiz ao Fórum Lafayette. Posso afirmar que a custódia “veio” até mim, através de professores e operadores do direito que permitiram que este campo de pesquisa fosse um espaço de crítica e de construção de novos entendimentos sobre as práticas jurídico-penais. Assim sendo, os dados apresentados nesta dissertação de mestrado são o resultado de uma pesquisa em profundidade realizada sobre as Audiências de Custódia, em Belo Horizonte, ao longo de dois anos (2020 e 2021). A pesquisa apresentada possui caráter interdisciplinar, na qual convergem conteúdos pertencentes a saberes produzidos no âmbito da filosofia e dos estudos sociais. Evidencio os estudos de gênero, realizando uma interseção com os estudos sobre o sistema punitivo e sobre a biopolítica. Defendo a necessidade de construirmos pensamentos feministas críticos, através de saberes localizados22, que destituem as objetividades e as imparcialidades do direito que é branco, homem cis/hetero, eurocêntrico e burguês. A partir da proposta de Haraway, proponho a construção de um pensamento que privilegia a contestação e a desconstrução das estruturas vigentes, buscando estabelecer novas conexões, novas formas de se relacionar em sociedade que possam transformar os sistemas de conhecimento, de saberes e de apreensão do mundo. Ou seja, defendo que fabriquemos, através das nossas críticas, das nossas posições, das nossas palavras e olhares localizados, um “conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação”23. É a partir da nossa existência, enquanto um ser material e pensante, que possui 21 RIZA ALVES, 2019. 22 Para Haraway, os saberes localizados consistem em uma proposta de promover saberes diferentes dos tradicionais saberes ocidentais, que são centralizados na unidade, no universalismo, propondo-se saberes concretos, ancorados nas diversas experiências terrenas. HARAWAY, 1995, p. 18. 23 HARAWAY, 1995, p. 24. 23 corpo, gozo e angústia, que podemos produzir algo novo, pois há “grande valor em definir a possibilidade de ver a partir da periferia e dos abismos”24. Optei por combinar a pesquisa bibliográfica com a análise qualitativa dos dados produzidos em campo, tomando atenção para não hierarquizar a importância de um momento de pesquisa em relação ao outro, mas sim de combinar as análises, considerando que eu, enquanto pesquisadora, sou atravessada tanto pelo campo ao qual estou inserida, quanto pelas leituras cotidianas. Busquei construir um campo de pesquisa que pudesse abarcar o fluxo do Sistema de Justiça Criminal de forma mais ampla, incluindo as práticas e discursos pré, durante e pós custódia. Para isso, o presente trabalho se organiza em torno de dois momentos metodológicos diferentes, mas compreendidos simultaneamente, e divididos através das seguintes etapas que discorro a seguir. Em um primeiro momento, acompanhei as audiências de custódia realizadas no Fórum Lafayette de Belo Horizonte. O objetivo era assistir às audiências das custodiadas que se declaravam travestis ou transexuais, para poder analisar os acontecimentos, as práticas e os discursos dos operadores cisgêneros, em relação às custodiadas trans. Para que os acompanhamentos das audiências fosse possível, combinei com um servidor da secretaria da Central de Recepção de Flagrantes (CEFLAG) do tribunal de me informar, através do meu telefone celular, se na pauta das audiências do dia havia alguma custodiada travesti ou transexual. Geralmente, os servidores adotavam os seguintes procedimentos para fazer essa “triagem”: eles conferiam se o presídio havia informado sobre a presença de alguma presa trans para a pauta de audiências do dia seguinte; ou eles identificavam a identidade de gênero, no Autos de Prisão em Flagrante (APFD) e nos Registro de Defesa Social (REDS), a partir dos campos específicos destinado à identificação do gênero ou através da narrativa contida nos relatos. Nesta etapa, procedi a uma análise qualitativa do acompanhamento das audiências, a partir da escrita do diário de campo, que contém as observações sobre as práticas e acontecimentos vividos na custódia, bem como sobre os discursos e histórias ouvidas. Após o acompanhamento das audiências, explorei dados qualitativos produzidos através dos APFD, tais como as narrativas dos policiais, da vítima e da suposta autora. Parto do pressuposto de que há um fluxo na produção prática e discursiva entre os momentos anteriores à custódia e os da própria audiência. Assim, procurei observar quais elementos relacionados ao gênero das custodiadas eram mobilizados, no APFD, para a construção da cena do crime e, de que forma, 24 HARAWAY, 1995, p. 22. 24 eles reverberavam na audiência. Para isso, observo como a categoria da travesti e da transexual aparecem e, são articuladas a outros elementos para a construção da ideia de periculosidade e criminalidade. Entretanto, devido ao contexto da crise sanitária da pandemia do Covid-19, houve a suspensão das audiências de custódia e determinação do trabalho remoto25, tornando-se inviável o acompanhamento presencial das audiências. Tive que redirecionar os esforços, buscando maneiras de utilizar os dados produzidos através das audiências que já havia assistido e dos documentos processuais que consegui obter. Foram acompanhados, efetivamente, cinco casos que tiveram audiências de pessoas travestis e transexuais e quatro que tinham pessoas cisgêneras conduzidas. Além disso, a secretaria da CEFLAG disponibilizou as cópias dos processos destes casos que envolviam pessoas trans conduzidas sendo que, destes cinco casos, pude acompanhar presencialmente a audiência de três, sendo que os outros dois foram avaliados a partir das cópias dos processos, pois não puderam ser acompanhados presencialmente por questões de logística. Optei por manter a análise documental destes casos porque tive acesso ao APFD e ao REDS durante o campo de pesquisa e também porque estes documentos apresentam, explicitamente, discursos e práticas policiais que integram os processos de criminalização de pessoas trans no fluxo do Sistema de Justiça Criminal. Após esse trabalho, realizei entrevistas semiestruturadas com as(os) operadoras(es) da custódia, através de depoimentos não presenciais, por meio da plataforma Google Meet. Também foram realizadas duas entrevistas presenciais, uma com um agente da carceragem do Fórum Lafayette e outra com membros da Equipe Multidisciplinar, sendo que seguimos todos os protocolos de higiene e segurança. A etapa metodológica de entrevista foi imprescindível para o mapeamento do fluxo, pois, através dela, pudecompreender as funções de cada ator no fluxo da custódia e os significados de suas práticas organizacionais26. A escolha dos entrevistados foi realizada por meio de três critérios: a) atuação direta na audiência de custódia; b) atuação nas medidas cautelares pós custódia; c) disponibilidade e receptividade para realização das entrevistas através de vídeo chamadas, considerando o contexto de isolamento social devido à pandemia. Foram feitas onze entrevistas, no total, com os seguintes profissionais: um juiz de direito fixo da custódia; um promotor de justiça fixo da custódia; um defensor público fixo da custódia; um servidor da secretaria da Central de Recepção de Flagrantes (CEFLAG); três profissionais da Equipe do Acompanhamento Multidisciplinar; um colaborador em Audiência de Custódia do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; um membro da 25 MINAS GERAIS, 2020 26 RIBEIRO; VILAROUCA, 2019, p. 278. 25 Equipe da carceragem e dois profissionais da Central de Acompanhamento de Alternativas Penais (CEAPA). Algumas categorias de operadores não foram incluídas na amostragem devido à impossibilidade de acesso às entrevistas, como, por exemplo, os representantes do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, de Execução Penal, do Tribunal do Júri e da Auditoria Militar do Ministério Público de Minas Gerais (CAO- CRIM/MPMG), que seriam uma peça importante para análise da atuação do Ministério Público para o fortalecimento do instituto das audiências de custódia. Utilizei um guia de entrevista que continha as perguntas principais, no qual realizei anotações sobre as falas dos entrevistados, a fim de garantir uma coleta mais completa de dados e informações sobre os depoimentos dos operadores. Fiz a gravação do áudio desses depoimentos e, para o seu uso, todos os onze entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido27. Em seguida, os depoimentos orais foram transcritos para a análise de conteúdo, preservando a fala dos entrevistados, mesmo os termos coloquiais. Procedi à análise do conteúdo dos depoimentos através de duas etapas. Primeiro, identifiquei algumas categorias chaves, sendo que para cada uma delas abri uma coluna do Excel na qual as falas dos entrevistados foram coladas, respectivamente, de forma que eu pudesse compreender como os discursos se organizavam. Por se tratar de uma pesquisa de caráter indutivo, as categorias analisadas foram extraídas dos dados28 e correlacionadas às teorias estudadas. Após, utilizei o software de análise de dados em pesquisas qualitativas ATLAS.ti para a ampliação e o aprofundamento metodológicos. As estratégias criadas para a análise dos dados e apoiadas no software foram a codificação manual, o agrupamento de códigos e a análise qualitativa da combinação dos códigos. Assim, criei outra lista de códigos no software. Posteriormente, fiz outra leitura das transcrições e do diário de campo e apliquei os códigos às passagens que versavam sobre o mesmo tipo de conteúdo. A partir desses códigos, foi possível selecionar “citações” nos documentos que, depois, foram compiladas em um relatório gerado pelo ATLAS.ti. Este relatório compilou todas as citações referentes a cada código, apresentando, também, a combinação de outros códigos que foram aplicados às mesmas citações. Isso me permitiu compreender como, nos discursos, diversos códigos são associados às mesmas situações como, por exemplo, no caso dos códigos em que pretendia identificar as visões que os operadores da custódia tinham de pessoas trans, pude ver como várias categorias, como a prostituição, o crime, o uso ou a venda de drogas eram associadas conjuntamente. Além disso, durante a análise, foi possível fazer comentários das citações selecionadas, que continham 27 Trabalho aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), CAAE: 33843520.5.0000.5149. 28 NUNES et al., 2017, p. 237. 26 minhas impressões, ideias e observações sobre o campo de pesquisa. Estes comentários estão incluídos no relatório gerado pelo ATLAS.ti e que orientaram a etapa de escrita do texto, pois facilitaram a análise dos dados em relação às teorias adotadas. Durante a fase de produção da escrita, o nome e a profissão das pessoas entrevistadas foram ocultados, a fim de preservar o sigilo e a privacidade dos participantes, conforme a Resolução nº 510 de 2016 do Conselho Nacional de Saúde29. Optei por referenciar os entrevistados pelo termo “Operador”, seguido de uma numeração, de acordo com a ordem temporal de realização das entrevistas. Entendi que a estratégia de numerar os entrevistados facilitaria a proteção do anonimato. Além disso, escolhi referir os entrevistados no pronome masculino, pois a quantidade de profissionais, nas Audiências de Custódia, é enxuto, sendo facilmente identificáveis. Durante as entrevistas, constatei a identidade de gênero da pessoa entrevistada pela forma como ela se apresentava em discurso, ao se referir às custodiadas travestis e transexuais. Os entrevistados se posicionavam enquanto um grupo oposto às pessoas trans, referindo-se a elas como pessoas “diferentes”, como “esse público” e como “público LGBT”. Este posicionamento enquanto um “nós” que se distancia dos “Outros” é interessante, inclusive, para análise dos dados a partir da teoria adotada, na medida em que demonstram a diferença que recorta o tecido social. Por fim, em alguns momentos, optei por criar nomes fictícios para referir às presas travestis e transexuais que apareciam nos casos acompanhados, por entender que a simples numeração, neste caso, não caberia e que o respeito ao nome social é central nesta pesquisa. Após a escrita dos capítulos, realizei uma “reunião de devolutiva” com os entrevistados, para apresentar o capítulo três da dissertação, que concentra as análises e críticas ao campo de pesquisa. Buscou-se construir um diálogo com os entrevistados, para que eles pudessem tecer comentários, que foram avaliados por mim, posteriormente. As pessoas entrevistadas afirmaram, principalmente, que se sentiram tocadas com o conteúdo do trabalho, principalmente por não perceberem, no cotidiano, que cometiam uma série de microviolências em relação às custodiadas. Disseram que, ao verem essas questões apontadas em seus próprios discursos, foram movimentadas a pensar sobre o tema de maneira mais profunda. Além disso, agradeceram e elogiaram o trabalho que foi feito, afirmando que pesquisas sobre gênero sexualidade deveriam ser mais comuns nas audiências de custódia e no Sistema de Justiça em geral. 29 Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html. Acesso em: 1 jun. 2020. 27 No que diz respeito à análise de discurso, é importante salientar que ela não pretende desvendar ou reafirmar uma universalidade de sentidos sobre as questões de gênero. Seguindo a orientação foucaultiana, em A ordem do discurso, pretendo explorar os discursos e práticas que são “escondidos” pelos mecanismos de rarefação e afirmação dos discursos hegemônicos30. De acordo com Michel Foucault, uma análise crítica deve ligar-se aos sistemas de recobrimento do discurso, procurando “detectar, destacar esses princípios de ordenamento, de exclusão e de rarefação do discurso”31. Isto é, não pretendo dizer que todas as experiências dos sujeitos que participam da construção da pesquisa podem ser generalizadas, mas sim entender com profundidade as práticas das audiências de custódia e compreender como essas práticas reiteram normas de gênero. Neste sentido, a união entre a análise dos discursos e das práticas jurídicas é fundamental para explorar e compreender a forma pela qual o direito lida com as experiências transexuais e travestis. Junto à pesquisa de campo, utilizo, também, pesquisas quantitativas a respeito da realidade de experiências de pessoas travestis e transexuais em relação ao sistema penal, produzidaspor organizações e pesquisas acadêmicas, tais como os relatórios NUH que avaliam os REDS envolvendo pessoas travestis e transexuais no período de 2016 a 2018. Essas pesquisas são utilizadas a fim de compor um quadro geral sobre as experiências trans e o sistema penal, principalmente no que concerne às fases do fluxo do Sistema de Justiça Criminal que são anteriores à custódia. Associo tais procedimentos metodológicos à pesquisa teórica, focando nos estudos sobre biopolítica, a partir de Foucault (2005a, 2019) e, também, Mbembe (2017, 2018a) para pensar, mais detidamente, sobre como a produção da morte indireta se vale do racismo de Estado para precarizar experiências através do Sistema Penal. A crítica biopolítica é pertinente ao objetivo da pesquisa, tendo em vista que pretende compreender como a gestão política da vida é feita e permeada por mecanismos de diferenciação, pela lógica do racismo de Estado. Assim, investiga-se a precarização decorrente das experiências de gênero no sistema punitivo, este compreendido enquanto campo de legitimação de discursos, práticas e violências, colocando o gênero enquanto instrumento de gestão populacional. A fim de localizar este debate sobre a atuação das normas de gênero no campo biopolítico, conectando com a crítica biopolítica ao sistema penal, tomo como principais referências Butler (2016, 2018, 2019a, 2019b), Jesus (2012; 2014; 2015; 2016), Davis (2003) e Andrade (1994; 2003; 2005). 30 FOUCAULT, 2014, p. 66. 31 FOUCAULT, 2014, p. 65. 28 Compreender como as práticas jurídicas facilitam a gestão biopolítica do gênero é importante para descortinar e denunciar violências sistêmicas sobre as experiências travestis e transexuais, buscando pensar em formas de resistência. Portanto, o que apresento nos próximos capítulos são as interpretações desses materiais, associados à pesquisa teórica, a fim de entender como as categorias de gênero são mobilizadas nas audiências de custódia a partir da cisgeneridade. 29 CAPÍTULO 1: GÊNERO E SISTEMA PENAL Neste capítulo, apresento quais concepções de poder aproprio nesta pesquisa, para pensar o gênero. Em seguida, busco entender como as normas de gênero definem experiências consideradas como normais, em detrimento daquelas que são taxadas como ininteligíveis ou que são enquadradas no paradigma do inimigo, em um jogo de identidades por inversão. Faço o uso da concepção performativa de gênero, compreendendo que ele não deve ser reduzido a um dado biológico, externo às relações sociais, mas sim entendido enquanto um construto social. Sobre os corpos dos sujeitos e as instituições sociais há a operacionalização das normas de gênero, que se orientam por cálculos específicos de poder. Por fim, pretendo tecer reflexões sobre como o gênero é mobilizado, no interior do Sistema Penal, como um mecanismo de disciplinamento e administração da população. Afinal, o que entendo por poder? Seguindo a abordagem de Foucault, o poder não é concebido como algo que se possui, mas como um conjunto de relações complexas em rede. O autor sugere a adoção de uma estratégia de análise do poder diferente daquela comumente adotada pela tradição jurídica e pela filosofia política moderna, que o pensava a partir do Estado, considerado o centro emanador do poder. A proposta é analisá-lo através de suas extremidades e não, apenas, de seu suposto centro, fazendo aparecer sua dimensão microfísica. A analítica do poder foucaultiana possibilita dissecar o cotidiano da atuação das relações de poder, permitindo compreender como o sujeito é marcado em sua individualidade, em seus processos de construção de identidade. É uma forma de compreensão do poder que permite enxergar a norma que interpela o sujeito, que compõe seus processos de subjetivação32. Portanto, o poder é constitutivo e não apenas repressivo: “deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social, muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”33. Importante salientar que existe, para Foucault, uma diferença entre a norma e a lei. A norma é o elemento que circula através de mecanismos contínuos de regulação e disciplinamento, ao passo que a lei consiste na expressão do sistema jurídico (de suas práticas e instituições). Assim, a norma assume uma importância maior do que o sistema jurídico da lei, pois ela está inserida nas relações capilares de poder. Isso não significa que a lei não possui funcionalidades e importância, mas sim que o corpo social é regado de normas difusas que 32 FOUCAULT, 1995, p. 235. 33 FOUCAULT, 2017, p. 45. 30 exercem o poder de administração e de regulação dos sujeitos, sendo a lei uma das possíveis expressões da norma. Nas palavras do autor: [...] a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos [...] cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida34. De acordo com Candiotto: A tese de Foucault é de que nas sociedades modernas a norma tem alcance maior do que a lei. Ela prevalece como aspecto fundamental das relações de poder. Enquanto a lei é exterior ao indivíduo, ao operar unicamente por ocasião da violação de um ato considerado proibido, a norma envolve o conjunto da existência humana. Ela está presente no seu cotidiano, alcança sua interioridade mediante distribuições espaciais e controles temporais das condutas. A lei é direta e teatral. A norma é difusa e indireta; ela funciona como padrão culturalmente construído a partir do qual uma multiplicidade de indivíduos é cindida por dentro, entre normais e anormais35. Assim, para pensar as relações de gênero e suas conformações através das normas é necessário extrapolar o modelo da lei e do direito que se origina da teoria da soberania. No curso Em defesa da sociedade, principalmente na aula de 04 de fevereiro de 1976, Foucault realiza uma reconstrução do pensamento jurídico contratualista que desembocou na teoria da soberania, a partir dos escritos de Hobbes. Os contratualistas compreendiam o poder em termos de propriedade, ou seja, como algo que poderia ser cedido ao soberano, através de um contrato social. Todavia, Foucault argumenta que o poder não é um objeto que se possa possuir, mas sim uma relação atravessada por diversos dispositivos. Foucault sugere que a análise do poder não deve limitar-se ao modelo jurídico, visto que ele oculta relações de dominação, apontando para a importância de um novo vocabulário sobre o poder capaz de captar as relações, os saberes e as práticas que ficaram à sombra, ocultadas. Para isso, o autor realiza uma reconstrução genealógica do pensamento jurídico, demonstrando como a figura da soberania fora forjada, objetivando a neutralização de guerras insurgentes. Desse modo, o direito legítimo consistiria naquele representado pela figura do soberano, que conteria em si todas as representações do povo. Foucault afirma que, na realidade, a intenção em desenvolver uma teoria da soberania residiria em defender os interesses da aristocracia à época, construindo um discurso jurídico que trouxesse legitimidade às relações de poder vigentes. Portanto, uma análise do poder que se restringe ao modelo jurídico não consegue apreender a complexidade das relações, pois o direito fora criado, justamente, para ocultar e legitimar relações de dominação. Isto é, “a teoria da soberania é vista como insuficiente para 34 FOUCAULT, 2019, p. 156 35 CANDIOTTO, 2012, p. 21. 31 descrever diversos mecanismos de poder, tendendo a ocultar relações em jogo e mascarar as técnicas de dominação, comprometendo resistências e lutas possíveis”36. A forma legal não captura os múltiplos meios de funcionamento do poder, que se dão através de outros dispositivos, como os disciplinares ou os biopolíticos.A ideia consiste em, justamente, compreender que as formas modernas de dominação se valem do modelo jurídico enquanto mecanismo de legitimação, sendo imprescindível apreender o poder em suas formas mais microfísicas. Logo, considerando que “o direito não descreve o poder”37, não pretendo defender simplesmente que as práticas jurídicas são responsáveis pelas opressões de gênero e que no direito estão concentradas as relações de poder. Como ressaltado, parto da análise foucaultiana de que o poder é microfísico, exercido em rede e, não apenas, por instituições ou grupos sociais específicos. Entretanto, reconheço a importância do direito na dinâmica negativa e positiva do poder, tendo em vista que ele tanto reprime, quanto produz sujeitos. Assim, examinar os procedimentos de sujeição pelos discursos e práticas que circulam no direito é essencial para compreender a relevância das práticas jurídicas na ordem de gênero. Isto porque as instituições atravessam o conjunto do corpo social38, desempenhando papel fundamental, pois veiculam relações de dominação, fortalecendo e legitimando práticas e discursos39. O domínio da sexualidade pode ser entendido enquanto um campo da vida de atuação do poder. Apesar de o autor não trabalhar especificamente com a diferenciação entre sexo, gênero e desejo, sua abordagem sobre a questão da sexualidade, compreendida enquanto um campo amplo de saber sobre o sexo, importa para entender que a formação do sujeito e, consequentemente, seus desejos e práticas estão imersos em uma ordem de poder-saber produtivo. Isto é, esses saberes tornam-se referência na formação dos sujeitos, interpelando-o. Entretanto, vale salientar que, ao mesmo tempo em que o sujeito é atravessado pelas relações de poder, ele também exerce um papel ativo sobre este mesmo poder. Isto é, o sujeito não é somente um reprodutor passivo ou um efeito do poder40. Para Foucault, não há “um certo domínio da sexualidade que pertence, de direito, a um conhecimento científico, desinteressado e livre, mas sobre o qual exigências do poder [...] fizeram pesar mecanismos de proibição”. Os mecanismos de exclusão, de interdição, de proibição e de vigilância sobre o sexo integram a micromecânica do poder, podendo ser 36 SOUSA ALVES, 2015, 171. 37 FOUCAULT, 2017, p. 360. 38 FOUCAULT, 2019, p.103 39 FOUCAULT, 2005a, p.31 40 FOUCAULT, 2005a, p. 35. 32 mobilizados a serviço de um lucro político específico. O pensamento de que há sexos, gêneros e desejos “verdadeiros” e “legítimos” é, geralmente, sustentado em prol da manutenção de ordens sociais. Nas culturas ocidentais, a ideia de perversão foi explorada e difundida, a fim de se estruturar e manter uma ordem sexual centrada na reprodução, no matrimônio e na heterossexualidade. Um exemplo utilizado por Foucault é a utilização da figura do homossexual para a sustentação do que é considerado como uma sexualidade digna. Para o autor, a homossexualidade foi extraída, classificada e distribuída com o objetivo de estimular quais prazeres são considerados legítimos: isto é, os heterossexuais. Mais do que reprimir experiências homossexuais, o objetivo seria utilizar as práticas consideradas como desviantes para reafirmar o que é normal. Logo, a mecânica do poder estaria incumbida de encravar nas sexualidades uma espécie de verdade a priori, naturalizada, que definiria a qualidade daquele corpo em que ela é exercida. Não se objetivava uma mera exclusão de sexualidades consideradas como aberrantes, mas sim a sua produção, classificação, como se elas fossem a desordem por natureza. Assim, estabeleceu-se uma fisionomia rígida das perversões: para saber se uma pessoa é perversa, indigna ou desviante, basta identificar a natureza de suas práticas41. As perguntas que orientam este capítulo são: o que são sexo e gênero? Especificamente, o que eles são para o direito? A qual ordem de gênero as práticas jurídicas se referenciam? Como o gênero é articulado no sistema penal? Observo que, frequentemente, no universo jurídico, o gênero é associado à ideia de coerência biológica. Isto é, o sexo biológico é a referência para a definição do gênero dos sujeitos, como, por exemplo, é possível perceber na insistência em se ignorar o nome social de pessoas trans, priorizando o uso do nome de registro. 1.1 Gênero e cisnormatividade O que é gênero? Tomo a concepção de gênero que rompe o determinismo biológico, a fim de se mostrar como a formação dos sujeitos está localizada em ordens específicas, estruturadas pelas normas de gênero. Sexo e gênero, muitas vezes, são compreendidos a partir de uma definição biológica que separa o mundo entre homens (com órgãos genitais masculinos) e mulheres (com órgãos genitais femininos). Existem ainda aquelas pessoas que compreendem que o sexo possui origem biológica, ao contrário do gênero, que adviria do meio social. Nesta linha de raciocínio, o gênero seria uma construção cultural que pode, ou não, estar de acordo com o sexo biológico da pessoa, representando uma impressão da cultura no corpo. Porém, 41 FOUCAULT, 2019, p. 49-55. 33 pergunto: seriam sexo e gênero categorias diferenciadas? Ou ambas não seriam, afinal, construídas e produzidas? Isto é, não seriam as concepções de sexo e de gênero uma interpretação cultural do biológico? A bióloga e ativista social Anne Fausto-Sterling, em sua obra traduzida para o português como Sexuagem do corpo (Sexying the Body), apresenta a tese de que os conhecimentos científicos sobre a sexualidade humana são elementos de lutas políticas, sociais e morais da cultura e da estrutura econômica42. A ciência não “descobre” a realidade concreta sobre os sexos, mas sua investigação é orientada a partir de uma base moral que atua sobre os corpos, determinando o que compreendemos enquanto real. De acordo com a autora, os estudos avançados em genética demonstram que a redução do sexo a categorias, como as de “mulher” e “homem”, não são simples de serem feitos, pois, biologicamente, o corpo humano é extremamente complexo em sua composição. Para Anne Fausto-Sterling, a classificação de sexos binários é uma decisão social, tendo em vista que os nossos sentidos sobre o gênero são responsáveis por conduzir o conhecimento científico e produzir um saber sobre o sexo. Logo, “nossas crenças sobre o gênero afetam o tipo de conhecimento que cientistas produzem sobre o sexo, em primeiro lugar”43, de modo que a cultura afeta o corpo, primordialmente. Portanto, o gênero consiste em aparato de produção dos sexos, visto que, a partir de discursos culturais hegemônicos, fronteiras em relação às experiências de gênero são estabelecidas44. Recorrendo à Butler, principalmente ao livro Problemas de gênero, utilizo alguns conceitos como ferramenta para auxiliar na compreensão da relação entre as categorias de gênero e uma ordem dominante de heterossexualidade compulsória. Butler sugere que a matriz heterossexual e binária é responsável por determinar os limites em que a experiência de gênero é construída. Isto porque esta matriz consiste em um modelo discursivo/epistemológico que define a relação entre o corpo e a anatomia a partir de gêneros estáveis, que se complementam em sua utilidade, por meio da prática da heterossexualidade. Butler utiliza o termo matriz heterossexual para se referir a uma ordem de gênero, a uma “grade de inteligibilidade cultural”, que aplica regras de heterossexualidade compulsória em relação aos corpos, aos gêneros e aos desejos. Essas regras estabelecem que, para que um gênero seja considerado como natural e adequado, ele deve derivar da natureza. Além disso, os desejos devem ser direcionados ao gênero oposto. Isto é: o macho designa o masculino; a fêmea designa o feminino e, por fim, 42 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 5. 43 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 3, tradução livre. No original: “our beliefs about gender affect what kinds of knowledge scientistsproduce about sex in the first place”. 44 BUTLER, 2016, p. 27-31. 34 masculino e feminino possuem um desejo heterossexual um pelo outro45. Logo, para que as experiências sejam consideradas como “corretas”, inteligíveis nos marcos da cis- heterossexualidade, deve haver uma continuidade entre sexo, gênero e desejo, estabelecida por normas socialmente instituídas. Neste sentido, algumas experiências são consideradas como inteligíveis, pois mantêm certa coerência. Outras, são consideradas como abjetas, incorretas, ininteligíveis, por apresentarem descontinuidades nessa relação entre sexo biológico binário, gênero binário decorrente do sexo e desejo heterossexual que liga os gêneros opostos46. Nas palavras de Butler: O gênero só pode denotar uma unidade de experiência de sexo, gênero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige um gênero – sendo o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu – e um desejo – sendo o desejo heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. A coerência e a unidade internas de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estável e oposicional. Essa heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional. Essa concepção do gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo, gênero e desejo, mas sugere igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero reflete ou exprime o desejo47. Mais do que isso, os marcos que enquadram os gêneros entre corretos e incorretos, estabelecem um jogo de inversão em que algumas identidades de gêneros são marcadas pelo paradigma do inimigo. Isto é, o jogo de “identidades por inversão” define que as experiências que escapam os marcos da cis-heterossexualidade são compreendidas como um risco aos sujeitos “normais e corretos”, como inimigas dos “cidadãos de bem”. Neste sentido, além de as normas de gênero ocasionarem o fenômeno da ininteligibilidade de experiências de gêneros diversas, conforme é apresentado por Butler, percebo que, em determinados casos, o que ocorre é a colocação de grupos sociais em um lugar do inimigo de gênero, do sujeito que deve ser normalizado. Portanto, entendo, nesta pesquisa, que o gênero é constituído pela ação do sujeito, performativamente, a partir e através das práticas reguladoras de coerência de gênero. As experiências de gênero e, consequentemente, de produção do corpo, estão condicionadas à lógica cultural do gênero. Isso não significa dizer que não há possibilidades para a existência de experiências que extrapolem as normatividades de gênero. O que se sustenta é que não há gênero anterior à experiência do sujeito, não há sexo pré-definido, natural, desconectado das 45 BUTLER, 2016, p. 258. 46 BUTLER, 2016, p. 43-44. 47 BUTLER, 2016, p. 52 35 relações de poder. Esses limites, que atravessam a experiência do sujeito, são estabelecidos a partir de um discurso cultural hegemônico baseado em estruturas binárias e heterossexistas. Ao afirmar que “o gênero não é um substantivo”48, Butler destaca que, além de não ser decorrência direta da anatomia (já que a biologia não é destino, pois é produzida culturalmente), o gênero é performativo, isto é, produzido através das ações do sujeito em relação à norma. Não há uma espécie de colagem direta do sujeito à norma. Entre a matriz heterossexual binária e a feitura do gênero, há uma espécie de vácuo, de distância, que permite o surgimento de outras possibilidades que escapam ao binarismo e à heterossexualidade. Por isso a autora utiliza o verbo “interpelar”, afirmando que a norma confronta, interroga, interpela o sujeito, convocando-o à ação. Neste sentido, o gênero é performativo, é o fazer de um sujeito localizado em determinadas relações de poder, ele é “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”49. Para não cair no determinismo puro e simples e, também, a fim de se compreender a existência de experiências de gênero que fogem da lógica de coerência, Butler recorre a Foucault, explorando, através do autor, as resistências dentro das lógicas de poder, pois onde há poder, há resistência50. O poder não aprisiona, havendo a possibilidade de alteração de suas relações, de suas formas de dominação e de sua materialidade51. O conceito de gênero de Butler está integrado a essas possibilidades de resistência. Isso porque a produção do gênero ocorre através da prática, na dimensão psíquica do sujeito, em relação às normas de gênero hegemônicas. As normas são responsáveis por produzir o gênero e atuar na subjetivação do sujeito que, por sua vez, atua sobre as normas, causando fissuras nessa matriz cristalizada. Apesar de Butler já nos ter alertado sobre os perigos da narrativa essencialista sobre a feminilidade, que busca o estabelecimento da “unidade” de gênero em identidades fixas52, acredito ser essencial atualizar os conceitos e debates sobre a normatividade de gênero pelas discussões transfeministas. Koyama compreende que sexo e gênero são construídos socialmente, entretanto, a distinção social entre ambos é feita de forma artificial e conveniente, a fim de manter relações de poder e submissão. Ela ainda denuncia que as concepções sobre 48 BUTLER, 2016, p. 56. 49 BUTLER, 2016, p. 69. 50 FOUCAULT, 2019, p. 104. 51 FOUCAULT, 2017, p. 360. 52 BUTLER, 2016, p. 17-42. 36 gênero que desmantelaram as compreensões tradicionais em relação ao sujeito mulher falharam em abordar as experiências trans53. O transfeminismo é definido por Jaqueline Gomes de Jesus como: [...] uma linha de pensamento e de prática feminista que rediscute a subordinação morfológica do gênero (como construção psicossocial) ao sexo (como biologia), condicionada por processos históricos, criticando-a como uma prática social que tem servido como justificativa para a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conforme à norma binária homem/pênis e mulher/vagina [...]54. Jesus defende uma teoria e prática transfeminista denominada de “meio-termo”, em que não há a defesa da abolição do gênero, mas sim de políticas identitárias que não façam hierarquizações de gênero. A autora compreende que há a diferença entre sexos biológicos, pois trabalha com o conceito de identidade de gênero formada socialmente e de sexo natural. Em que pese este ponto ser um pouco distante do que entendo nesta pesquisa, acredito que seu trabalho é fundamental para pensar sobre as críticas às normas de gênero cissexistas e heterossexuais. Neste sentido, é necessário compreender o cissexismo, termo trabalhado por escritoras transfeministas, que se articula com o que Butler denomina como “matriz heterossexual e binária”. Afinal, o que é cissexismo? Para Jesus, ele resulta da lógica binária em que há uma crença de que o gênero deve corresponder ao sexo biológico, gerando uma série de prejuízos às possibilidades de expressão de gênero das pessoas. Ele se dá a partir de mecanismos legais e culturais de subordinação das pessoas cisgênero e transgênero, sendo que “para as pessoas trans, em particular, o cissexismo invisibiliza e estigmatiza suas práticas sociais”55. O cissexismo consistiria em um projeto que deslegitima possibilidades de ser outras, marginalizando as experiências de pessoas travestis e transexuais. Nas palavras de Hailey Kaas: Primeiramente é a desconsideração da existência das pessoas trans*56 na sociedade. O apagamento de pessoas trans* politicamente por meio da negação das necessidades específicas dessas pessoas. É a proibição de acesso
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