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Política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão Quarta parte: das forças, capítulo 2: Da ação.1 A barricada cria uma higiene mental cuja etimologia nos ensina a Antigüidade. Pois a arte de alinhar barricadas cheias de óleo ou de vinho, mas também de areia ou de serragem, de pregos ou de terra, equivale a uma metáfora de toda interposição entre duas forças opostas. De um lado e de outro se exprimem as partes envolvidas naquilo que se convencionou chamar a luta de classes, se tomamos cuidado de as definir dentro da aceitação contemporânea do modelo economista. A complexidade do século XX ainda não chegou a ser concluída, a diversidade das lógicas de submissão desenvolvidas pelo capitalismo, o benefício simbólico compensando às vezes um ou outro um real escrito ao modo da servidão, a ilusão de que o colarinho branco dispensa uma solidariedade com o azul dos operários, a fragmentação, a dispersão desejadas para melhor assegurar as dominações, tudo isso contribuiu para tornar aparentemente caduco o recurso à noção de classe. Sem dúvida, o relacionamento com os meios de produção, o fato de os possuir ou não, não basta mais para decidir sobre um pertencimento à burguesia ou ao proletariado. Um presidente de empresa, na referência marxista, posto que assalariado do grupo que preside e não sendo proprietário do meio de produção no qual trabalha, torna-se um proletário, enquanto que um pequeno camponês trabalhando nos seus vinte hectares aumentaria assim a fileira de burgueses. O desenvolvimento do setor terciário, a revolução cibernética e informática, a utilização comum e corrente do virtual nas relações de produção e os relacionamentos de intersubjetividade no trabalho colocam todos em duas categorias ordenadas nas quais a alienação, a exploração, a servidão, a sujeição não são sempre evidentes nem suscetíveis de serem reparadas à primeira vista. Na mesma proporção que uma compensação em vantagens transversais opera no registro contra- revolucionário, ou ao menos no sentido da extinção das veleidades reivindicativas. Reputação, estatuto de excelência, ocupação de locais simbólicos, ritualizações e hierarquizações, modos de aparecimento ou de confinamento, vestuários, mobilidade mais ou menos autorizada dos trajetos e dos fluxos dentro do espaço trabalhoso, gestão da palavra e da imagem, assim como mil outros usos perfeitamente conhecidos e dominados pelo capitalismo, permitem uma desmontagem dos focos de contestação. Duas classes, eis o que era possível nos tempos freqüentados por Marx desde que um pouco de retórica e um bocado de dialética façam o necessário para o convencimento disso. Hoje, uma série de esferas se entrecortam, e dentro das quais todos habitam conforme as lógicas determinadas incessantemente, justifica mais precisamente o real e executa uma cartografia melhor do estado do capitalismo após vários séculos de plasticidade e metamorfoses. O cruzamento dos círculos sociais recorta o dos registros simbólicos, étnicos, metafísicos, ontológicos, religiosos, demográficos, geográficos, históricos, se não toda outra disciplina suscetível de fornecer o modo de refinar as classificações. Para tanto, a inscrição no conjunto de círculos onde se é ou dominado ou dominador produz um resultado suficientemente marcante do pertencimento ao mundo da servidão ou ao da dominação. Pobre em vez de rico, de cor e branco, animista em vez de católico, operário em vez de patrão, africano em vez de não-europeu, iletrado de preferência a cultivado, mulher, criança ou velho em vez de adulto, homossexual quando a heterossexualidade estabelece a norma, só onde triunfa o modelo do casal, sempre as ocasiões decidem sobre o pertencimento a uma esfera ou a outra. Pode-se assim compreender o quanto certas posições parecem socialmente mais invejáveis que outras. As atitudes são aqui recompensadas e ali punidas, umas celebradas e vangloriadas, as outras perseguidas e desonradas. As classes são múltiplas, o pertencimento a um só círculo não basta para assinalar o registro dentro do qual se evolui. Mas, no final das contas, aqueles que acumularam as ocasiões de ficar confinados somente na servidão são facilmente identificáveis. Eles correspondem àqueles que a cartografia infernal da miséria localizou e que se aproximam do grau zero da humanidade. A barricada instala um limite, uma barreira, um corte nítido entre dois mundos cujos interesses divergem. Qualquer que seja o assunto pelo qual se ergue uma barricada, ela reduz o múltiplo à evidência de duas forças que se opõem, de duas potências em luta pelo reconhecimento, a potência e o império. Sua existência fornece um princípio seletivo. Sua vantagem reside na materialização evidente da constatação da situação: de um lado ou de outro, quaisquer que sejam as diferenças de proveniência, de origem ou de recrutamento, a ação comanda a unidade, a síntese: o bloco. 1 ONFRAY, Michel. Política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão; tradução de Mauro Pinheiro. – Rio de Janeiro: Rocco, 2001. Pp. 236-8.