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O Cortiço – Análise da obra ELEMENTOS DA NARRATIVA 1- Foco narrativo O romance apresenta, como é comum na narrativa naturalista, um narrador onisciente, que tudo observa, relata, investiga. É comum o movimento narrativo que parte de um quadro geral ou vista panorâmica do ambiente para a enumeração e ou descrição exaustiva de seus detalhes (objetos, personagens, ações), com uma capacidade extraordinária para fixar os movimentos das cenas (aprofundaremos isso no item “Linguagem e estilo”). 2- Tempo As ações do romance decorrem por volta da metade para o final do século XIX. Como é comum na literatura naturalista, o autor trata dos temas do seu tempo, retratando criticamente a sociedade em que está inserido e seus problemas. Algumas referências de tempo: a) no capítulo X, o título de Barão para o Miranda vem exposto no Jornal do Comércio, fundado em 1827. b) o “movimento abolicionista” é referido em mais de uma passagem do livro, e mesmo as primeiras discussões em torno da Lei Rio Branco, aprovada em 28 de setembro de 1871 e conhecida como “Lei do Ventre Livre”. c) a chegada de imigrantes europeus (como os italianos que vêm morar no cortiço) ao Rio de Janeiro ocorre com força nas décadas de 1870-1880. João Romão tem 25 anos quando seu patrão retorna a Portugal e lhe deixa a venda como parte do pagamento dos salários acumulados. Quando chega à corte para os preparativos para o curso de medicina, o que é explicado logo no capítulo II, Henrique tem 15 anos. No último capítulo (XXIII), afirma-se que “O estudante [Henrique], agora no seu quarto ano de medicina, vivia à solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico”. Podemos estimar, então, que do início da construção do cortiço, pouco tempo depois de João Romão e Bertoleza se amigarem, até a morte de Bertoleza e o “triunfo” final de João Romão, passaram-se de 5 a 8 anos. 3- Espaço O cortiço localizava-se no bairro de Botafogo. Começa com três cômodos. Em seu primeiro momento, atinge um máximo de 95 casinhas. Depois do incêndio e da reconstrução como “Avenida”, chega a mais de quatrocentas. O cortiço é descrito como um ambiente sempre movimentado, um formigueiro em constante atividade, com seus moradores se agitando sem parar. Há referências esporádicas a outros locais do Rio de Janeiro da época: o pagode de Rita em Jacarepaguá; a rua de São João Batista, onde Rita e Firmo se encontram depois da briga no cortiço e de ele ser proibido de ir até lá; a rua do Ouvidor frequentada pelo Botelho; a estalagem da Cidade Nova onde Rita e Jerônimo vão morar depois que saem do cortiço São Romão. Em oposição ao espaço do cortiço, há o sobrado, menos detalhado em sua descrição. São espaços que opõem duas forças sociais e econômicas diferentes: o da classe média alta e o da classe baixa. Trata-se, portanto, de um espaço urbano do Brasil no final do século XIX. Mas é importante notar como o cortiço é personificado, retratado como um organismo vivo: ora uma planta, ora um formigueiro ou “barro primordial” do qual brota a vida. Veja um exemplo: “E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.” “Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.” 4- Personagens Em O Cortiço, o ambiente social e a natureza, com suas determinações de caráter biológico (como a carga hereditária) impõem-se sobre o indivíduo, como prega a teoria determinista, assim, tanto o cortiço (enquanto conjunto ou meio) quanto a natureza tropical que o circunda são tratados, também, como organismos vivos. As personagens da literatura naturalista são, frequentemente, tipos que exemplificam patologias de ordem biológica (desvios psíquicos ou sexuais, por exemplo) ou social (miséria, violência, amoralidade etc.), daí o fatalismo: é impossível ao indivíduo fugir às determinações concretas de sua existência, como bem exemplificam, apenas para ficar nos casos mais gritantes, as trajetórias de Pombinha e Jerônimo. Os moradores, frequentemente comparados a vermes ou formigas, formam uma mistura de negros, mestiços, imigrantes europeus. Todos pobres, vivendo de trabalhos humildes ou miseráveis: praças de polícia, lavadeiras, cavouqueiros (trabalhadores da pedreira), mascates etc. Em contraste, há os moradores do sobrado − Miranda, Estela, Zulmira, Henrique – e mesmo João Romão, após sua transformação em “capitalista”. As personagens são quase sempre planas e caricatas, descritas a partir da animalização e do psicofisiologismo. Os naturalistas, como “cientistas da sociedade”, preferem os grandes painéis humanos, os aglomerados habitacionais. Também por isso as personagens naturalistas têm pouca profundidade psicológica, o que chamamos de personagens planas: elas são sempre produto ou consequência de algo anterior a sua vontade, agem movidos por forças sobre as quais não têm controle. A caricatura consiste na construção, em poucas linhas apenas, de uma figura acabada, física e psicologicamente, através do destaque e/ou exagero de algumas de suas características. A concepção biologista do ser humano, na qual se baseiam os romancistas naturalistas, acaba por promover uma animalização das personagens, isto é, sua caracterização como se fossem animais, bestas embrutecidas, muitas vezes ocorrendo a sua zoomorfização − um recurso estilístico típico da literatura naturalista: trata-se da caracterização do ser humano – seja no aspecto físico, seja quanto ao caráter − sempre a partir de identificação a animais. O psicofisiologismo consiste em fazer com que os traços físicos de um personagem estejam em estreita relação com sua identidade psicológica, sua maneira de ser, no ambiente narrativo. João Romão – Dos treze aos vinte e cinco anos trabalha como empregado de um patrício. A falta de escrúpulos é parte “natural” de sua personalidade, é consequência da patologia de que sofre (“moléstia nervosa, febre de enriquecer”). Comporta-se, então, de acordo com sua própria moral, segundo a qual tudo se justifica em nome dos seus interesses. O fato de ser um explorador dos seus semelhantes faz parte da ordem natural das coisas: é um animal vencedor impondo sua força na selva da vida, como analisaremos mais adiante. Bertoleza – No início da narrativa, é uma crioula de cerca de trinta anos, quitandeira afamada, escrava de ganho (que pagava aluguel por sua liberdade) de um velho cego do interior. A união com João Romão não altera sua natureza e muito menos seus hábitos de escrava, pelo contrário: passa a carregar (de bom grado, é verdade, pois agora está “livre”) três fardos de uma só vez – torna-se caixeira e criada (trabalhando como burro de carga para enriquecer o amante-patrão) e amante (servindo de fêmea ao seu homem): “(...) Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo”. Apenas em um momento da narrativa Bertoleza tem voz ativa: quando se recusa a ser encostada por João Romão como um traste qualquer: tem consciência do quanto é responsável pela ascensão do amante e quer tratamento à altura de sua importância na vida dele: “− Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira a toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!(...) Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso Senhor me deu força e saúde! (...) Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como você quer o seu! (...) Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e aguentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo; agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa, em que meti muito suor do meu rosto?...” Miranda – “Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a ideia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito àhombridade de português rico que já não tem pátria na Europa.” Enquanto João Romão vence pela capacidade de trabalho, pela habilidade natural para negociar e explorar e pela falta de escrúpulos, Miranda vence pela capacidade de dobrar-se às conveniências sociais: é humilhado pela mulher, com quem se casou para enriquecer, e sente inveja da força e esperteza do vizinho vendeiro, mas consegue o reconhecimento e a admiração dos homens ao fazer fortuna com a herança de Estela e conquistar o título de Barão. Busca uma identidade social quesó consegue vergando-se às conveniências. Seu nome vem do latim “miror” – admirar – e indica seu papel em relação a João Romão. Estela – É a personagem que melhor representa a hipocrisia social na narrativa. É uma caricatura naturalista típica: só tem defeitos: manias (a proteção ao Valentim, a fixação com a beleza), taras (a insaciabilidade sexual).Veja como a descreve o narrador a certa altura: “Dona Estela, coitada! é que se precipitava, a passos de granadeiro, para a velhice, a despeito da resistência com que se rendia; tinha já dois dentes postiços, pintava o cabelo, e dos cantos da boca duas rugas serpenteavam-lhe pelo queixo abaixo, desfazendo-lhe a primitiva graça maliciosa dos lábios; ainda assim, porém, conservava o pescoço branco, liso e grosso, e os seus braços não desmereciam dos antigos créditos.” A relação entre Miranda e Estela, baseada apenas em convenções sociais, revela uma crítica (comum na literatura realista e naturalista) aos casamentos arranjados, baseados em interesses ou conveniências. Jerônimo – De início, quando se mudou para o cortiço para trabalhar na pedreira, o cavouqueiro “era tão metódico e tão bom como trabalhador quanto o era como homem. (...) Era um português de seus trinta e cinco a quarenta anos, alto, espadaúdo, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, por debaixo de um chapéu de feltro ordinário: pescoço de touro e cara de Hércules, na qual os olhos, todavia, humildes como os olhos de um boi de canga, exprimiam tranquila bondade”. Destacava-se não só pela “força de touro que o tornava respeitado e temido por todo o pessoal dos trabalhadores, como ainda, e, talvez, principalmente, a grande seriedade do seu caráter e a pureza austera dos seus costumes. Era homem de uma honestidade a toda prova e de uma primitiva simplicidade no seu modo de viver”. Ele é a figura acabada do indivíduo dobrado pelo meio: toda a força física e retidão de caráter de Jerônimo não resistiram à força do sol tropical, e o contacto com Rita Baiana (símbolo da tropicalidade) transformou-o completamente; fazendo aflorar sua sensualidade, minando sua resistência física e transformando também sua personalidade, tornando-o preguiçoso, gastador, beberrão e desavergonhado: “O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais ninguém”. Sua trajetória – de animal vencido – é oposta à de João Romão – oanimal vencedor que domina e transforma o meio de acordo com seus interesses. A descrição de Jerônimo como um Hércules é apropriada: assim como o herói da mitologia greco-romana, ele era muito forte, e assim como Hércules definhou antes da morte envenenado por vestir um robe, enviado por sua mulher Dejanira, que (sem que ela soubesse) continha o veneno da Hidra, Jerônimo morre “envenenado” por “vestir a pele” de um brasileiro ao apaixonar-se por Rita Baiana. Rita Baiana – Símbolo da força sensual da natureza tropical brasileira, Rita é o centro irradiador de alegria e sensualidade no cortiço: “E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, (...) pondo à mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador”. Descrita por meio de metáforas ou comparações a elementos da flora e da fauna brasileira, Rita resume o fascínio e o poder da terra brasileira sobre o estrangeiro (particularizado em Jerônimo), entorpecendo e enfeitiçando-lhe as sensações: “Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.” Assim como Pombinha, Rita conhece exatamente o poder que a mulher tem sobre o homem, mas também cede às determinações de raça; assim como Bertoleza sente-se atraída por João Romão porque este era branco, ela, como mulata, cede à atração pelo “homem superior”, Jerônimo, por quem se apaixona e com quem continua a viver mesmo depois que este se torna um bêbado decadente: “desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranquila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no europeu o macho de raça superior”. Firmo – É uma caricatura do marginal malandro e valente. Mas sua agilidade e esperteza não foram suficientes para vencer Jerônimo, o “Hércules” europeu. AS LAVADEIRAS As lavadeiras são atraídas para o cortiço pelo “privilégio” de terem à disposição as tinas com que ganham a vida ou ajudam seus maridos a ganhá-la. Vivem, portanto, para serem exploradas por João Romão. São as personagens mais caricaturadas e planas de toda a narrativa, sua caracterização se reduz a poucos traços físicos e psicológicos essenciais. Leandra, a Machona – Mãe da Ana das Dores, Nenen e Agostinho; “portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo. (...) Ninguém ali sabia ao certo se a Machona era viúva ou desquitada; os filhos não se pareciam uns com os outros.” Está sempre pronta para a briga, quando necessário. A morte de Agostinho amolece um pouco sua dureza. Augusta Carne-Mole – “(...) brasileira, branca, mulher de Alexandre”; passava o tempo a trabalhar ou a cuidar dos filhos que não paravam de sair de sua barriga; “era de uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade sem mérito, porque vinha da indolência do seu temperamento e não do arbítrio do seucaráter”. Leocádia – Mulher de Bruno, o ferreiro, “portuguesa pequena e socada, de carnes duras, com uma fama terrível de leviana entre as suas vizinhas”. Depois de ser pega pelo marido no mato com Henriquinho (o que fizera para ganhar um coelho e “pegar um filho”, já que com o marido não conseguia engravidar), é expulsa de casa. Mas o marido se humilha e pede sua volta, o que acaba acontecendo. Paula – “(...) uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas virtudes de que só ela dispunha para benzer erisipelas e cortar febres por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia, grossa, triste, com olhos desvairados, dentes cortados à navalha, formando ponta, como dentes de cão, cabelos lisos, escorridos e ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe ‘Bruxa’”. Depois do enlouquecimento de Leocádia, termina perdendo o juízo também. Por duas vezes, tenta atear fogo ao cortiço para destruí-lo. Na segunda, consegue provocar um incêndio de grandes proporções, no qual morre. Marciana – “(...) mulata antiga, muito seria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre úmida das consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o mau humor punha-se logo a espanar, a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria a buscar um balde de água e descarregava-o com fúria pelo chão da sala.” Quando a filha, Florinda, aparece grávida, fica desesperada e começa a bater exageradamente na menina, o que a leva a fugir. Então, Marciana enlouquece, e louca morrerá, tempos depois. Dona Isabel – “(...) na estalagem lhes dispensavam todos certa consideração, privilegiada pelas suas maneiras graves de pessoa que já teve tratamento: uma pobre mulher comida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de chapéus, que quebrou e suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de francês. Tinha uma cara macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda, bochechas moles de pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da boca como saquinhos vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos engolidos pelas pálpebras. Puxava em bandos sobre as fontes o escasso cabelo grisalho untado de óleo de amêndoas doces. Quando saia à rua punha um eterno vestido de seda preta, achamalotada, cuja saia não fazia rugas, e um xale encarnado que lhe dava a todo o corpo um feitio piramidal. Da sua passada grandeza só lhe ficara uma caixa de rapé de ouro, na qual a inconsolável senhora pitadeava agora, suspirando a cada pitada.” A felicidade retorna a sua vida quando, enfim, Pombinha entra na puberdade e se casa com o João da Costa, mas a opção da menina pela vida de prostituição vai lhe encher novamente a vida de desgostos: “A pobre mãe chorou a filha como morta; mas, visto que os desgostos não lhe tiraram a vida por uma vez e, como a desgraçada não tinha com que matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça baixa o primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então, aceitou sempre, constituindo-se a rapariga no seu único amparo da velhice e sustentando-a com os ganhos da prostituição. (...), de desgosto em desgosto, foi-se sentindo enfraquecer e enfermar, até cair de cama e mudar-se para uma casa de saúde, onde afinal morreu.” Albino – “(...) um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caia, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de coisas que não exporiam em presença de outro homem (...)” Albino não deixava o cortiço por nada, exceto na época de carnaval, quando se vestia de mulher e passava dias fora, nas ruas e nos bailes: “Tinha verdadeira paixão por esse divertimento; ajuntava dinheiro durante o ano para gastar todo com a mascarada.” Em Albino, Aluísio de Azevedo registra a sedução do carnaval, já naquela época, sobre a população brasileira. A “alma musical” do povo brasileiro também domina o ambiente do cortiço: Marciana trabalha cantando “toadas monótonas do sertão”; Florinda “a rebolar sem fadigas, assoviava os chorados e lundus”; o “chorado baiano” de Firmo e Porfiro anima e excita os moradores nas noitadas promovidas por Rita Baiana; com a reforma do cortiço, as “quadrilhas e polcas” se tornam a trilha sonora para as reuniões familiares, a portas fechadas. Piedade – Seu nome diz tudo dos sentimentos que inspira. A mulher de Jerônimo, quando chega ao cortiço: “teria trinta anos, boa estatura, carne ampla e rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes pouco alvos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simpática expressão de honestidade simples e natural”. “Piedade merecia bem o seu homem, muito diligente, sadia, honesta, forte, bem acomodada com tudo e com todos, trabalhando de sol a sol e dando sempre tão boas contas da obrigação, que os seus fregueses de roupa, apesar daquela mudança para Botafogo, não a deixaram quase todos“. Incapaz de deter a paixão de Jerônimo por Rita, revoltada contra aquela natureza tropical que lhe tirara o homem amado e à qual não se acostumava, decai completamente quando é abandonada pelo marido: “sem se conformar com a ausência do marido, chorava o seu abandono e ia também agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a que nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras; (...) começou a afundar sem resistência na lama do seu desgosto, covardemente, sem forças para iludir-se com uma esperança fátua, abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus princípios, do seu próprio caráter, sem se ter já neste mundo na conta de alguma coisa e continuando a viver somente porque a vida era teimosa e não queria deixá-la ir apodrecer lá embaixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas freguesas de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madraça e moleirona (...).” Por fim, entrega-se completamente à bebida, torna-se passiva aos abusos dos homens, é expulsa da Avenida São Romão e refugia-se no Cabeça-de-Gato. DE MENINAS A MULHERES As meninas (crianças, adolescentes ou moças) do livro são personagens nas quais é notável a ação de forças biológicas ou sociais determinantes da personalidade e do comportamento. Quatro delas se destacam: Florinda - “(...) tinha quinze anos, a pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca. Toda ela estava a pedir homem, mas sustentava ainda a sua virgindade e não cedia, nem à mão de Deus Padre, aos rogos de João Romão, que a desejava apanhar a troco de pequenas concessões na medida e no peso das compras que Florinda fazia diariamente à venda”. Acaba engravidando de um caixeiro de João Romão, o que lhe custa muitas pancadas da mãe, até que resolve fugir de casa. Vive amigada, então, com vários homens, até se ajeitar com um despachante que a leva de volta para o cortiço, ao final da narrativa. A sensualidade de Florinda é natural de sua personalidade; ela não tem controle sobre ela. Zulmira - Como aconteceu com a mãe, está destinada a um casamento sobre o qual não poderá opinar. Não passa de uma “mercadoria” almejada por João Romão e negociada pelo pai, como fica claro na “oferta” de Botelho a João Romão: “— É um bom partido, é! Excelente menina... tem um gênio de pomba... uma educação de princesa: até o francês sabe! Toca piano como você tem ouvido... canta o seu bocado... aprendeu desenho... muito boa mão de agulha!... e... (...) Ali, tudo aquilo é sólido!... Prédios e ações do banco!...” Sugere-se que também ela sofre de um impulso sexual difícil de conter, conforme afirma Alexandre na conversa sobre os moradores do sobrado no pagode na casa de Rita: “E a pequena vai pelo mesmo conseguinte...” (entenda-se: pelo mesmo caminho da mãe, Estela). A sua transformação físicatambém parece sugerir isto: inicialmente, é descrita como fraca, doentia, decadente: “Zulmira tinha então doze para treze anos e era o tipo acabado da fluminense; pálida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das pálpebras e dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom úmido das flores noturnas, uma brancura fria de magnólia; cabelos castanho-claros, mãos quase transparentes, unhas moles e curtas, como as da mãe, dentes pouco mais claros do que a cútis do rosto, pés pequeninos, quadril estreito mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos.” Mas quando começa a corte de João Romão, seu corpo se desenvolveu e ela se torna mais atraente fisicamente: “Agora, refeita nos seus dezessete anos, não parecia tão anêmica e deslavada; vieram-lhe os seios e engrossara-lhe o quadril. Estava melhor assim.” Pombinha - é, inicialmente, a “flor do cortiço”. Vem de uma família decaída: seu pai era chapeleiro e se suicidou depois de ir à falência. Sua mãe, dona Isabel, foi obrigada a mudar para o cortiço e trabalhar para sustentar a filha, cuja saúde frágil a tornava incapaz para qualquer esforço físico. A menina, delicada, educada e bem-vestida, destacava-se no cortiço e era adorada por todos. Os moradores torciam para que sua puberdade chegasse logo, pois assim poderia se efetivar o casamento já contratado com João da Costa. Sua fisionomia angelical, saúde frágil, alma pura e personalidade virginal aparentemente estavam livres do contágio do estrume que a cercava. Mas acontecia de ela ser também a destinatária das confissões de toda aquela gente apalermada, animalesca, embrutecida e lasciva, uma vez que sua função no cortiço é justamente escrever as cartas em que os moradores se abrem a respeito de suas intimidades e angústias. O estrume acaba estragando o perfume da flor. Todos a sua volta aguardam que ela se torne mulher para o seu bem e para o bem de sua mãe. Não esqueçamos que isso só vai ocorrer depois do encontro lésbico com Léonie, que desperta o instinto sensual da moça de maneira incontrolável. A descrição do sonho que leva a sua primeira menstruação – talvez o trecho mais “poético” do livro – já antecipa, no fervor corporal e na força do seu desejo de se entregar ao sol-borboleta, seu destino de prostituta. Logo após a puberdade, na primeira vez em que, como “mulher”, escuta a confissão chorosa de Bruno de que aceitaria humilhar-se pela volta de Leocádia, tem a exata dimensão de seu poder sexual feminil. Quando sai de casa, como vestal, já está em plena metamorfose para se tornar bacante: “Pombinha surgiu à porta de casa, já pronta para desferir o grande voo; de véu e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda. Parecia comovida; despedia-se dos companheiros atirando-lhes beijos com o seu ramalhete de flores artificiais. (...) A noiva sorria, de olhos baixos. Uma fímbria de desdém toldava-lhe a rosada candura de seus lábios.” Ao se transformar, é comparada a uma “serpente”, para indicar seu novo papel sexual: em vez da menina frágil e virgem, a sedutora perigosa. Senhorinha - Seu destino é bastante semelhante ao de Pombinha: em função da decadência dos pais, a filha de Jerônimo e Piedade, aos nove anos, tem de sair do colégio e mudar-se para o cortiço. Passa a ocupar o lugar de Pombinha no coração dos moradores, que a adoram. De maneira abrupta e inevitável, passa a enxergar na mãe, no pai, dentro de casa e ao seu redor, a crueldade da realidade: seres animalizados pela miséria, entregues aos instintos de natureza violenta ou sexual. Assim como Pombinha atraía Léonie e era por ela protegida; Senhorinha agora atrai Pombinha e é por ela protegida. Seu destino é lógico: “Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jerônimo, a cuja filha, sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica à que noutro tempo inspirara ela própria à Léonie. A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.” Juju - A filhinha de Alexandre e Augusta e afilhada de Léonie é uma cópia menor da cocote. Criada pela madrinha, veste-se como ela (mesmas roupas, mesmos chapéus, mesmos penduricalhos, cabelos morenos alourados para ficar ainda mais parecida com Léonie), acompanha-a por todos os lugares e convive “normalmente” com a prostituição, desde pequenina, dentro de casa. Mesmo assim, a miniatura de prostituta se encanta pelos mimos dados à filha. OUTRAS PERSONAGENS MENORES: Botelho - “Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antipático, cabelo branco, curto e duro, como escova, barba e bigode do mesmo teor; muito macilento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam o tamanho da pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de acordo com o seu nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-se-lhe ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio. Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu de Braga enterrado nas orelhas. Fora em seu tempo empregado do comércio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desilusões, cheio de hemorróidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava à sombra do Mirada, com quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a princípio por acaso e mais tarde por necessidade.” Henriquinho - “O rapaz chamava-se Henrique, tinha quinze anos e vinha terminar na corte alguns preparatórios que lhe faltavam para entrar na Academia de Medicina”. Filho de um dos principais fregueses do Miranda, morava no sobrado e Botafogo. “(...) Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas de menina”. Em pouco tempo, é seduzido por Dona Estela. Também foi alvo de ataques do velho Botelho. Depois, ele seduzirá Leocádia, oferecendo-lhe um coelhinho. No final da narrativa, já no quarto ano de medicina, passeia pelo Rio de Janeiro com Pombinha (por quem já tinha uma queda desde os tempos de cortiço) a tiracolo. Seu nome, que significa “rico”, indica sua posição social. Léonie - A madrinha de Juju e “uma cocote de trinta mil-réis para cima, (...), com sobrado na cidade. Procedência francesa”. Quando vai ao cortiço, destaca-se: “(...) com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro (...).” Seu nome indica seu papel em relação a Pombinha: ela é a “leoa” que vai devorar a pomba. Ana das Dores – Filha de Leandra, a Machona, “afirmavam que fora casada e que largara o marido para meter-se com um homem do comércio; e que este, retirando-se para a terra e não querendo soltá-la ao desamparo, deixara o sócio em seu lugar. Teria vinte e cinco anos”. Nenen – Filha mais nova de Leandra, ainda donzela. “Espigada, franzina e forte, com uma proazinha de orgulho da sua virgindade, escapando como enguia por entre os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar. Engomava bem e sabia fazer roupa branca de homemcom muita perfeição.” Agostinho – “(...) menino levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a mãe”. Morre de maneira horrível: desfigurado após cair de uma altura de 200 metros na pedreira e quicar pelas pedras. Alexandre - Marido de Augusta Carne-Mole: “um mulato de quarenta anos, soldado de policia, pernóstico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado e um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço. (...) Alexandre, em casa, à hora de descanso, nos seus chinelos e na sua camisa desabotoada, era muito chão com os companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o costume de fustigar as calças de brim, ninguém mais lhe via os dentes e então a todos falava teso e por cima do ombro.” Libório - “Um tipão, o velho Libório! Ocupava o pior canto do cortiço e andava sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e a outro, como um mendigo, chorando misérias eternamente, apanhando pontas de cigarro para fumar no cachimbo, cachimbo que o sumítico roubara de um pobre cego decrépito. Na estalagem diziam todavia que Libório tinha dinheiro aferrolhado, contra o que ele protestava ressentido, jurando a sua extrema penaria. E era tão feroz o demônio naquela fome de cão sem dono, que as mães recomendavam às suas crianças todo o cuidado com ele, porque o diabo do velho, quando via algum pequeno desacompanhado, punha-se logo a rondá-lo, a cercá-lo de festas e a fazer-lhe ratices para o engabelar, até conseguir furtar-lhe o doce ou o vintenzinho que o pobrezito trazia fechado na mão.” Libório tem algo em comum com João Romão: a “febre” de possuir. Mas enquanto João Romão sabe como multiplicar o dinheiro com trabalho e inteligência, o velho reduz-se à condição de animal que enterra o osso: tem tão pouca noção do que vale realmente o dinheiro que muitas das cédulas que guarda já não tem valor, como descobre João Romão ao contá-las, depois de roubá-las no momento da morte do velho. Bruno – O ferreiro, marido traído de Leocádia, é o típico “corno manso”: sem saber como viver sem a mulher, submete-se à humilhação e pede que ela volte, no que é atendido depois de ser ferido na batalha contra os cabeças-de-gato. Domingos - Jovem caixeiro de João Romão que seduziu e engravidou Florinda. O vendeiro protege-o da fúria da mãe da menina, mas manda-o embora sem lhe pagar nenhum dos seus direitos. Valentim – “(...) Filho de uma escrava que foi de Dona Estela e a quem esta havia alforriado. A mulher do Miranda tinha por este moleque uma afeição sem limites: dava-lhe toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o consigo a passeio, trazia-o bem vestido e muita vez chegou a fazer ciúmes à filha, de tão solicita que se mostrava com ele.” As criadas do sobrado – “Isaura, mulata ainda moça, moleirona e tola, que gastava todo o vintenzinho que pilhava em comprar capilé na venda de João Romão; uma negrinha virgem, chamada Leonor, muito ligeira e viva, lisa e seca como um moleque, conhecendo de orelha, sem lhe faltar um termo, a vasta tecnologia da obscenidade, e dizendo, sempre que os caixeiros ou os fregueses da taverna, só para mexer com ela, lhe davam atracações: “Óia, que eu me queixo ao juiz de orfe!” João da Costa – O noivo e depois esposo de Pombinha era um “moço do comércio, estimado do patrão e dos colegas, com muito futuro, e que a adorava (a Pombinha) e conhecia desde pequenita”. Quando o caráter devasso e as traições da mulher se tornam inegáveis, muda-se para São Paulo. EXERCÍCIOS: 1. (ITA) Leia as proposições acerca de O Cortiço. I. Constantemente, as personagens sofrem zoomorfização, isto é, a animalização do comportamento humano, respeitando os preceitos da literatura naturalista. II. A visão patológica do comportamento sexual é trabalhada por meio do rebaixamento das relações, do adultério, do lesbianismo, da prostituição etc. III. O meio adquire enorme importância no enredo, uma vez que determina o comportamento de todas as personagens, anulando o livre-arbítrio. IV. O estilo de Aluísio Azevedo, dentro de O Cortiço, confirma o que se percebe também no conjunto de sua obra: o talento para retratar agrupamentos humanos. Está(ão) correta(s) a) todas. b) apenas I. c) apenas I e II. d) apenas I, II e III. e) apenas III e IV. 2. (UFV-MG) Leia o texto abaixo, retirado de O Cortiço, e faça o que se pede: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. […]. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e rezingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra. (AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 15. ed. São Paulo: Ática, 1984. p. 28-29.) Assinale a alternativa que NÃO corresponde a uma possível leitura do fragmento citado: a) No texto, o narrador enfatiza a força do coletivo. Todo o cortiço é apresentado como um personagem que, aos poucos, acorda como uma colméia humana. b) O texto apresenta um dinamismo descritivo, ao enfatizar os elementos visuais, olfativos e auditivos. c) O discurso naturalista de Aluísio Azevedo enfatiza nos personagens de O Cortiço o aspecto animalesco, “rasteiro” do ser humano, mas também a sua vitalidade e energia naturais, oriundas do prazer de existir. d) Através da descrição do despertar do cortiço, o narrador apresenta os elementos introspectivos dos personagens, procurando criar correspondências entre o mundo físico e o metafísico. e) Observa-se, no discurso de Aluísio Azevedo, pela constante utilização de metáforas e sinestesias, uma preocupação em apresentar elementos descritivos que comprovem a sua tese determinista. 3. (UNIFESP) A questão a seguir baseia-se no seguinte fragmento do romance O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (1857-1913): O cortiço Fechou-se um entra-e-sai de marimbondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saíam clamores apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou a aparecer água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas. Os sinos da vizinhança começaram a badalar. E tudo era um clamor. A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca. Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão de brasas. (Aluísio Azevedo. O cortiço) Em O cortiço, o caráter naturalista da obra faz com que o narrador se posicione em terceira pessoa, onisciente e onipresente, preocupado em oferecer uma visão crítico-analítica dos fatos. A sugestão de que o narrador é testemunha pessoal e muito próxima dos acontecimentos narrados aparece de modo mais diretoe explícito em: a) Fechou-se um entra-e-sai de marimbondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. b) Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas. c) Da casa do Barão saíam clamores apopléticos... d) A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. e) Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada... Baseando-se no texto da questão anterior, responda às questões 4 e 5: 4. (UNIFESP) O caráter naturalista nessa obra de Aluísio Azevedo oferece, de maneira figurada, um retrato de nosso país, no final do século XIX. Põe em evidência a competição dos mais fortes, entre si, e estes, esmagando as camadas de baixo, compostas de brancos pobres, mestiços e escravos africanos. No ambiente de degradação de um cortiço, o autor expõe um quadro tenso de misérias materiais e humanas. No fragmento, há várias outras características do Naturalismo. Aponte a alternativa em que as duas características apresentadas são corretas: a) Exploração do comportamento anormal e dos instintos baixos; enfoque da vida e dos fatos sociais contemporâneos ao escritor. b) Visão subjetivista dada pelo foco narrativo; tensão conflitiva entre o ser humano e o meio ambiente. c) Preferência pelos temas do passado, propiciando uma visão objetiva dos fatos; crítica aos valores burgueses e predileção pelos mais pobres. d) A onisciência do narrador imprime-lhe o papel de criador, e se confunde com a idéia de Deus; utilização de preciosismos vocabulares, para enfatizar o distanciamento entre a enunciação e os fatos enunciados. e) Exploração de um tema em que o ser humano é aviltado pelo mais forte; predominância de elementos anticientíficos, para ajustar a narração ao ambiente degradante dos personagens. 5. (UNIFESP) Releia o fragmento de O cortiço, com especial atenção aos dois trechos a seguir: Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. (...) E começou a aparecer água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas. No fragmento, rico em efeitos descritivos e soluções literárias que configuram imagens plásticas no espírito do leitor, Aluísio Azevedo apresenta características psicológicas de comportamento comunitário. Aponte a alternativa que explicita o que os dois trechos têm em comum: a) Preocupação de um em relação à tragédia do outro, no primeiro trecho, e preocupação de poucos em relação à tragédia comum, no segundo trecho. b) Desprezo de uns pelos outros, no primeiro trecho, e desprezo de todos por si próprios, no segundo trecho. c) Angústia de um não poder ajudar o outro, no primeiro trecho, e angústia de não se conhecer o outro, por quem se é ajudado, no segundo trecho. d) Desespero que se expressa por murmúrios, no primeiro trecho, e desespero que se expressa por apatia, no segundo trecho. e) Anonimato da confusão e do “salve-se quem puder”, no primeiro trecho, e anonimato da cooperação e do “todos por todos”, no segundo trecho. 6. (ESPM) Dos segmentos abaixo, extraídos de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, marque o que não traduza exemplo de zoomorfismo: a) Zulmira tinha então doze para treze anos e era o tipo acabado de fluminense; pálida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das pálpebras e dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas. b) Leandra...a Machona, portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo. c) Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. d) E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa começou a minhocar,... e multiplicar-se como larvas no esterco. e) Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito... 7. (UEL) A questão refere-se aos trechos a seguir. “Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; e de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado.” “E durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado diante daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes piores e mais grossas do que serpentes miravam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.” (AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 26. ed. São Paulo: Martins, 1974. p. 23; 33.) Com base nos fragmentos citados e nos conhecimentos sobre o romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, considere as afirmações a seguir: I. A descrição do cortiço, feita através de uma linguagem metafórica, indica que, no romance, esse espaço coletivo adquire vida orgânica, revelando-se um “ser” cuja força de crescimento assemelha-se ao poderio de raízes em desenvolvimento constante que ameaçam tudo abalar. II. A inquietação de Miranda quanto ao crescimento do cortiço deve-se ao fato de que sua casa, o sobrado, ainda que fosse uma construção imponente, não possuía uma estrutura capaz de suportar o crescimento desenfreado do vizinho, que ameaçava derrubar sua habitação. III. Não obstante a oposição entre o sobrado e o cortiço em termos de aparência física dos ambientes, os moradores de um e outro espaço não se distinguem totalmente, haja vista que seus comportamentos se assemelham em vários aspectos, como, por exemplo, os de João Romão e Miranda. IV. Os dois ambientes descritos marcam uma oposição entre o coletivo (o cortiço) e o individual (o sobrado) e, por extensão, remetem também à estratificação presente no contexto do Rio de Janeiro do final do século XIX. Estão corretas apenas as afirmativas: a) I e II. b) I e III. c) II e IV. d) I, III e IV. e) II, III e IV. 8. (UFLA) Relacione os trechos da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, às características realistas/naturalistas seguintes que predominam nesses trechos e, a seguir, marque a alternativa CORRETA: 1. Detalhismo. 2. Crítica ao capitalismo selvagem. 3. Força do sexo. ( ) “(...) possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estepe cheio de palha.” ( ) “(...) era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas de fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras.” ( ) “E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer (...) Era um pobre diabo caminhando para os setenta anos, antipático, muito macilento.” a) 2, 1, 3 b) 1, 3, 2 c) 3, 2, 1 d) 2, 3, 1 e) 1, 2, 3 9. (UNIFESP / SP) Em O cortiço, o caráter naturalista da obra faz com que o narrador se posicione em terceira pessoa, onisciente e onipresente, preocupado em oferecer uma visão crítico- analística dos fatos. A sugestão de que o narrador é testemunha pessoal e muito próxima dos acontecimentos narrados aparece de modo mais direto e explícito em: a) Fechou-se um entra-e-sai de marimbondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. b) Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes que se despejavam sobre as chamas. c) Da casa do Barão saíam clamores apopléticos... d) A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. e) Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada... 10. (UEL) Texto 1 De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasseali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! ‘Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!’ mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida. (AZEVEDO, Aluísio, O cortiço. 26. ed. São Paulo: Martins, 1974. p. 139.) Texto 2 O cortiço é um romance de muitas personagens. A intenção evidente é a de mostrar que todas, com suas particularidades, fazem parte de uma grande coletividade, de um grande corpo social que se corrói e se constrói simultaneamente. (FERREIRA, Luiz Antônio. Roteiro de leitura: O cortiço de Aluísio Azevedo. São Paulo: Ática, 1997. p. 42.) Sobre os textos, assinale a alternativa correta. a) No Texto 1, por ser ele uma construção literária realista, há o predomínio da linguagem referencial, direta e objetiva; no Texto 2, por ser ele um estudo analítico do romance, há o predomínio da linguagem estética, permeada de subentendidos. b) A afirmação contida no Texto 2 explicita o modo coletivo de agir do cortiço, algo que também se observa no Texto 1, o que justifica o prevalecimento de um termo coletivo como título do romance. c) Tanto no Texto 1 quanto no Texto 2 há uma visão exacerbada e idealizada do cortiço, sendo este considerado um lugar de harmonia e justiça. d) No Texto 1 prevalece a desagregação e corrosão da grande coletividade a que se refere o Texto 2. e) O que se afirma no Texto 2 vai contra a idéia contida no Texto 1, visto que no cortiço jamais existe união entre os seus moradores. GABARITO: 1. A 2. D 3. E 4. A 5. E 6. A 7. D 8. D 9. E 10. B
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