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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MARIANA MOUSINHO CAVALCANTE MEDEIROS GOMES A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS COMO MANIFESTAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA NATAL/RN 2020 MARIANA MOUSINHO CAVALCANTE MEDEIROS GOMES A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS COMO MANIFESTAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA Monografia apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito (PPGD) como requisito parcial de conclusão do III Curso de Especialização em Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Professora Doutora Mariana de Siqueira. NATAL/RN 2020 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Gomes, Mariana Mousinho Cavalcante Medeiros. A internação involuntária dos usuários de drogas como manifestação do poder de polícia / Mariana Mousinho Cavalcante Medeiros Gomes. - 2020. 82f.: il. Monografia (Especialização em Direito Administrativo) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal, RN, 2020. Orientadora: Profa. Dra. Mariana de Siqueira. 1. Drogas - Monografia. 2. Liberdade Individual - Monografia. 3. Proteção à Saúde - Monografia. 4. Internação Involuntária - Monografia. 5. Poder de Polícia - Monografia. 6. Controle Administrativo - Monografia. I. Siqueira, Mariana de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 351 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família por ser meu alicerce em absolutamente tudo. Obrigada por todo amor e apoio. Às minhas amigas por se fazerem tão presentes na minha vida, me ajudando a superar as dificuldades e me incentivando a ser alguém melhor. À Universidade Federal do Rio Grande do Norte por ter sido uma segunda casa durante os últimos sete anos entre graduação e pós-graduação e à Mariana de Siqueira, pelos apontamentos como orientadora deste trabalho e por, desde as aulas de hermenêutica jurídica, se mostrar um grande exemplo de profissional e de mulher, sendo fonte inspiração durante essa jornada. "O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final." (Daniela Arbex - Holocausto brasileiro) RESUMO Sempre que há uma novidade legislativa se faz necessário o estudo pela ciência jurídica em relação aos seus impactos, a fim de averiguar a sua adequação ao ordenamento legal. Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo geral estudar, sob a ótica do Direito Administrativo, a problemática da internação involuntária dos usuários de drogas no Brasil, legitimada a partir da Lei 13.840/2019 que alterou o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Ao redor do tema conflitam os direitos fundamentais de liberdade individual e autonomia da vontade com o direito de proteção à saúde, todos garantidos pelo Estado brasileiro na Constituição Federal de 1988. Esses conflitos foram analisados, bem como os fundamentos jurídicos que permitiram a edição da referida Lei, autorizando a intervenção do Poder Público na esfera privada. Para tanto, o trabalho se subdividiu entre os seguintes objetivos específicos: a análise dos usuários de drogas sob a perspectiva dos direitos fundamentais envolvidos; a questão da internação involuntária no Brasil e os seus limites; e, a (in)constitucionalidade do art. 23-A, §3, inciso II e §5º, incisos I, II, III, IV, da Lei nº 13.840/19. Ao final, concluiu-se que a internação involuntária dos usuários de drogas é fruto do poder de polícia concedido à Administração Pública, conflitando os interesses público (proteção à saúde) e privado (liberdade individual). Além disso, entendeu-se pela inconstitucionalidade material dos dispositivos mencionados, no entanto, considerando que não há no presente momento ação no Supremo Tribunal Federal que vise debater a temática, defendeu-se que a aplicação da Lei deve respeitar os limites impostos pelo controle administrativo, quais sejam a conciliação entre o interesse social e os direitos fundamentais constitucionais, para que não haja uma excessiva mitigação da liberdade dos indivíduos em questão. Para a compreensão do tema foi utilizado o método científico dedutivo, com a utilização de conceitos conhecidos da dogmática jurídica para a interpretação da lei, resultando em uma pesquisa qualitativa e teórica. Palavras-chave: Drogas. Usuários. Liberdade Individual. Proteção à Saúde. Internação Involuntária. Poder de Polícia. Controle Administrativo. ABSTRACT Whenever there is a new legislation, it is necessary to study how it will impact the legal system. Thus, this paper proposes to study, from the perspective of Administrative Law, the problem of involuntary hospitalization of drug users in Brazil, legitimized by the Law 13.840/2019, that changed the National System of Public Policies on Drugs. Around the theme, the fundamental rights of individual freedom and autonomy of the will conflict with the right to health protection, all guaranteed by the Brazilian State in the Federal Constitution of 1988. These conflicts were analyzed, as well as the legal foundations that allowed the edition of the aforementioned Law, authorizing the intervention of Public Administration in the private sphere. Therefore, the work was subdivided between the following specific objectives: the analysis of drug users from the perspective of the fundamental rights involved; the question of involuntary internment in Brazil and it’s limits; and, the (un) constitutionality of art. 23-A, §3, item II and §5, item I, II, III, IV, of Law nº 13.840/19. In the end, it was concluded that the involuntary hospitalization of drug users is the result of the police power granted to the Public Administration, conflicting public (protection of health) and private (individual freedom) interests. In addition, it was understood by the material unconstitutionality of the aforementioned provisions, however, considering that there is currently no action in the Supreme Federal Court to discuss the issue, it was argued that the application of the Law should respect the limits imposed by administrative control , whatever the conciliation between the social interest and the constitutional fundamental rights, so that there is not an excessive mitigation of the freedom of the individuals in question. In order to understand the theme, the deductive scientific method was used, with the use of known concepts from legal dogmatics to interpretation the law, resulting in a qualitative and theoretical research. Keywords: Drugs. Users. Individual Freedom. Health Protection. Involuntary Hospitalization. Police Power. Administrative Control. LISTA DE ABREVIATURAS ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária CAPS Centros de Atenção Psicossocial CF Constituição Federal FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização dasNações Unidas PNAS Política Nacional de Assistência Social RAPS Rede de Atenção Psicossocial SISNAD Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas STF Supremo Tribunal Federal SUAS Sistema Único de Assistência Social SUS Sistema Único de Saúde TLS Time-Location Sampling UNODC United Nations Office on Drugs and Crime SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10 2 O USO DE DROGAS SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS . 13 2.1. DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE ............................................................. 15 2.2. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE ...................................................................... 21 3 A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS ........................ 26 3.1. A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA NO BRASIL: MANIFESTAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA ......................................................................................................................... 30 3.2. OS LIMITES DO PODER DE POLÍCIA EM VIRTUDE DO CONTROLE ADMINISTRATIVO ............................................................................................................ 36 4 A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 23-A, §3º, II e §5º, incisos I, II, III, IV, DA LEI Nº 13.840/2019 .......................................................................................................... 44 4.1. MODELOS DE TRATAMENTO DOS USUÁRIOS DE DROGAS ALTERNATIVOS À INTERNAÇÃO ................................................................................................................. 47 4.1.1. População mais atingida com a internação ......................................................... 51 4.1.2. Experiências pregressas e a internação como medida privativa de liberdade . 56 4.2. O ART. 23-A, §3º, INCISO II E §5º, INCISOS I, II, III, IV, DA LEI Nº 13.840/19 E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................................................................... 60 5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 68 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 72 10 1 INTRODUÇÃO À época da disseminação da política de guerra às drogas, colocou-se no mesmo patamar o usuário e o traficante, criminalizando ambos de maneira semelhante. Ocorre que o modelo de combate às drogas com a perseguição indistinta entre essas duas figuras, que se irradiou dos Estados Unidos para o mundo a partir da década de 1970, se mostrou falho dando margens para a busca de formas alternativas de se lidar com a problemática. Desse modo, a política mundial hodierna tem se reformulado, alterando notadamente o tratamento destinado aos usuários de substâncias entorpecentes. É nesse contexto de mudanças que se vislumbra a possibilidade de inclusão dos drogo-adictos nas políticas de saúde pública, saindo da esfera exclusiva da criminalidade. Especialmente nos países europeus, como por exemplo em Portugal, onde o consumo de drogas não é criminalizado, se fortaleceu o entendimento de que a questão referente às drogas ultrapassa a seara do Direito Penal, sendo mormente uma questão sanitária que precisa ser analisada em consonância com as demais Ciências. No Brasil, desde o ano de 2006, com a edição da atual legislação sobre drogas (Lei nº 11.343/06), a figura do usuário passou a ser despenalizada, ou seja, a aplicação da pena privativa de liberdade para a conduta do uso foi extinta. É importante destacar, todavia, que esse instituto não se confunde com o da descriminalização, pois a utilização de substâncias entorpecentes continua tutelada pelo Direito Penal, sendo passível de punição com penas restritivas de direitos, penas alternativas e multa. Em que pese continuar criminalizada, a partir dessa nova perspectiva houve uma patologização dos adictos, que embora ainda sejam estigmatizados, foram integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS). É nessa conjuntura que surge a interseção entre a problemática das drogas e o Direito Administrativo, pois a partir do momento em que a situação dos usuários passa a ser encarada como um problema de saúde se torna um dever do Estado, estabelecido na Constituição Federal, a realização de políticas públicas para atender tal demanda. Em junho 2019, com base na mudança de perspectiva apresentada, o então Presidente da República Federativa do Brasil sancionou a Lei nº 13.840/19, estabelecendo a possibilidade de internação involuntária dos toxicomaníacos, com fundamento na garantia da saúde pública desses indivíduos. A internação involuntária, diferentemente da internação compulsória, não é determinada judicialmente, mas sim a pedido de terceiro e formalizada por um médico. É importante frisar que o Estado, por meio do seu poder de polícia, tem a faculdade de limitar ou condicionar o exercício dos direitos individuais, em prol do bem-estar coletivo e do interesse 11 público, podendo, portanto, disciplinar a atuação individual quando necessário para a manutenção da ordem. Diante das mudanças apresentadas se faz necessário um estudo de como o Estado deve se portar diante desses cidadãos, especialmente em relação àqueles que possuem dependência de substâncias químicas e que por esta razão têm sua autonomia mitigada. Questiona-se até que ponto o Poder Público pode interferir na liberdade individual sob a justificativa de proteção à saúde e se é possível, face ao Estado Democrático de Direito garantido no texto constitucional de 1988, que a Administração interne indivíduos involuntariamente, sem que haja consentimento e sem que haja intervenção do judiciário com as garantias do devido processo legal. Conflitam, nessa situação os direitos fundamentais de liberdade individual e de proteção à saúde, sendo indispensável estabelecer quais são os limites da Administração Pública diante desses parâmetros. Com isso, o presente trabalho tem como objetivo geral estudar a internação involuntária dos usuários de drogas pela perspectiva do Direito Administrativo, levando em consideração o conflito entre os direitos fundamentais de liberdade individual e de proteção à saúde, bem como os limites estabelecidos pelo controle administrativo em relação ao uso do poder de polícia. Para tanto, o trabalho será dividido em capítulos correspondentes aos seus objetivos específicos. Primeiro, serão trabalhados os direitos fundamentais que estão envolvidos na problemática, analisando-se o uso de drogas pela ótica dos direitos à liberdade individual e de proteção à saúde. No segundo capítulo, descrever-se-a como se dá a internação involuntária desses indivíduos no Brasil, a partir da ideia de que essa possibilidade se caracteriza como fruto do Poder de Polícia. Na oportunidade, também serão analisados os limites impostos a esse poder pelo controle administrativo. No terceiro capítulo, por fim, será verificada a constitucionalidade ou não do art. 23-A, §3º, II e §5º, incisos I, II, III, IV, da Lei nº 13.840/2019, que prevê tal hipótese de internação, com base nos parâmetros constitucionais que regem a Administração Pública. Até o presente momento, março de 2020, não há ação perante o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade da referida lei, mesmo assim, entendeu-se pela realização da análise constitucional para averiguar se o instituto se coaduna com o odernamento jurídico estabelecido pela Constituição Federal brasileira, para a partir de então estabelecer os seus limites. A escolha do tema tem como justificativa a necessidade de uma abordagem jurídica e crítica acerca da temática, tendo em vista que a novidade legislativa traz reverberações no 12 mundo fático, tratando-se de uma implicação direta no direitoà liberdade, caro à democracia. Sobre o tema, existem inúmeras pesquisas conforme se depreende de busca realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) utilizando as palavras chaves “internação involuntária de usuários de drogas”. Entretanto, as pesquisas são relativas à possibilidade internação com uso da Lei nº 10.216/01, que trata sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, de modo que ainda não há estudos voltados especificamente para os moldes estabelecidos pela Lei nº 13.840/19. Para atingir os objetivos propostos foram utilizados métodos e técnicas científicas capazes de auxiliar o desenvolvimento do tema, de modo que o estudo foi desenvolvido a partir das técnicas de pesquisas bibliográfica e documental sobre os temas de direito administrativo e direito constitucional pertinentes à construção da problemática, sobretudo nas perspectivas dos autores Celso Antônio Bandeira de Mello, Marçal Justen Filho, Maria Sylvia Zanella di Pietro, Paulo Bonavides e José Afonso da Silva. Além da revisão bibliográfica doutrinária também foi realizada a pesquisa documental com base em artigos científicos, dissertações, teses e documentos legais, com enfoque especial na Lei nº 13.840 de 2019. A partir dos procedimentos técnicos utilizados, foi escolhida como metodologia científica o método dedutivo, o qual pressupõe como ponto de partida o uso de argumentos gerais para particulares, de maneira que foi analisado em qual medida os conceitos conhecidos da dogmática jurídica se adequam ao tema. Somado a ele, foi utilizado como método auxiliar o histórico, sendo analisado o contexto do objeto investigado, mais especificamente o de desenvolvimento da Lei nº 13.840/19. 13 2 O USO DE DROGAS SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Em virtude das falhas da política de guerra às drogas, o mundo hodierno busca alternativas para lidar com a questão do tráfico ilícito de entorpecentes e com os adictos. Dentre as mudanças que insurgem há uma tendência pela patologização destes últimos e é nesse contexto que a Lei nº 13.840/2019 apresenta em seu art. 23-A um novo tratamento destinado aos drogo-dependentes no Brasil, permitindo a internação involuntária. Antes de adentrar a temática de maneira mais específica, é preciso inicialmente definir o que é droga, para se estabelecer quais são os sujeitos que se enquadram na aplicação da referida lei. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) “droga é toda substância natural ou sintética que introduzida no organismo vivo, pode modificar uma ou mais de suas funções”1. Observa-se que tal conceito é bastante amplo, englobando todas as substâncias que interfiram no funcionamento do sistema biológico, desde medicamentos que sirvam para regularizar a atividade corporal até às drogas que prejudicam o trabalho normal das células, como por exemplo o álcool, a maconha e a cocaína. A diferença entre estas drogas reside, primordialmente, na questão do proibicionismo que, por sua vez, é uma escolha política, tendo em vista que não há um critério objetivo que as distinga além da previsão legal.2 No Brasil, de acordo com a Lei 11.343/06, são consideradas drogas as “substâncias ou produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”3. A definição apresentada pela Lei de Drogas brasileira reforça o entendimento de que a definição das drogas ilícitas é uma escolha, considerando que existem diversas substâncias capazes de causar dependência e serem potencialmente mais danosas, mas que não estão listadas pelo Poder Executivo como ilícitas. Observa-se, assim, que a palavra droga representa um critério vago. Se for utilizada a definição apresentada pela OMS, tem-se um leque extenso de substâncias, dentre as quais estão 1 LIMA, Eloisa Helena de. Educação em saúde e uso de drogas: um estudo acerca da representação da droga para jovens em cumprimento de medidas educativas. 2013. 246 f. Tese (Doutorado) - Curso de Saúde Coletiva, Fundação Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, 2013. p. 25. Disponível em: <http://www.cpqrr.fiocruz.br/texto- completo/T_53.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2019. 2 TAFFARELLO, Rogério Fernando. DROGAS: FALÊNCIA DO PROIBICIONISMO E ALTERNATIVAS DE POLÍTICA CRIMINAL. 2009. 153 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 13. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde- 17112011-091652/pt-br.php>. Acesso em: 17 dez. 2019. 3 BRASIL. Parágrafo Único do Art. 1ª da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília, 24 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020. 14 inclusas até mesmo as substâncias legalizadas, como medicamentos e álcool, que causam alterações significativas na composição química dos usuários. Porém, se utilizada a definição dada pela Lei nº 11.343/06, serão consideradas drogas apenas as substâncias previstas como tal nas listas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Aqui adotar-se-á a segunda definição, devido ao fato da legislação que prevê a internação voluntária se inserir dentro do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). Portanto, para fins do presente estudo serão considerados sujeitos destinatários da Lei nº 13.840/19 apenas aqueles que possuem vício em substâncias psicoativas classificadas como ilícitas, excluindo-se os que consomem abusivamente as drogas tidas como lícitas. Superada a definição do que são drogas e conforme apresentado no capítulo introdutório, se faz necessária a abordagem prévia dos direitos que conflitam quando tratamos desse assunto, quais sejam a liberdade individual e a proteção à saúde. Ambos podem ser tidos com espécies do gênero Direitos Fundamentais, sendo inerentes à condição humana e, por esta razão, essenciais e indispensáveis à coletividade. Além disso, conforme leciona o jurista português José Gomes Canotilho, alguns direitos são tidos como fundamentais como uma forma de defesa da pessoa perante os arbítrios estatais. Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico- subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).4 Na mesma esteira, encontra-se a definição apresentada por Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins de que os direitos fundamentais são “direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual”5. É possível concluir, então, que os direitos denominados fundamentais são os pilares da vida em sociedade e que é por meio da positivação nas cartas constitucionais que esses direitos, considerados naturais e inalienáveis, são incorporados à ordem jurídica, devendo o Estado protegê-los efetivamente ao colocá-los sob a formade normas. 4 CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª Ed, 9 reimp. São Paulo: Editora Almedina. p. 409. 5 MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 41. 15 2.1. DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE A sociedade ocidental contemporânea é calcada sob o manto da liberdade, sendo esse considerado um direito fundamental basilar que acompanha a evolução humana. Consoante José Afonso da Silva “a História mostra que o conteúdo da liberdade se amplia com a evolução da humanidade. Fortalece-se, estende-se, à medida que a atividade humana se alarga. Liberdade é conquista constante”6. É a partir do seu processo histórico de consolidação como direito fundamental que se pode compreender a importância da garantia da liberdade para o mundo atual. O ocidente, desde a formação das grandes civilizações da Antiguidade Clássica, formula as bases do que viria a ser a democracia conhecida atualmente. Na Grécia e Roma antigas havia a garantia da liberdade individual, da igualdade e da participação política direta, contudo, esses direitos alcançavam apenas determinada parcela da sociedade: os cidadãos, compreendidos apenas como os homens adultos e livres. Este, portanto, não era um sistema universal, pois excluía as mulheres, as crianças e os escravizados.7 Posteriormente, durante o período da Idade Média, tal sistema foi rompido e suplantado pelo feudalismo, baseado nas relações servis, no poder descentralizado, na economia assentada na agricultura e em uma sociedade estática e hierarquizada. A Igreja Católica se consolidou no continente europeu, tornando-se grande proprietária de terras e monopolizando o conhecimento, estabelecendo os valores do homem medieval. Por sua vez, o regime feudal foi sobrepujado pelos Estados Absolutistas, que perduraram na Europa até as Revoluções Liberais do século XVIII. O absolutismo se caracterizava pela centralização do poder na figura do monarca, tido como herdeiro do direito divino de governar e que concentrava em si todas as funções posteriormente dividas entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Sob o pretexto de serem os representantes de Deus na Terra possuíam plenos poderes e governavam de forma arbitraria e despótica, não havendo a concepção de que o homem era um ser livre por natureza, devendo ser, portanto, subordinado à vontade do Rei. Os homens não eram livres, tampouco tinham garantida sua autonomia para a auto realização individual. Durante os séculos XVII e XVIII, porém, ascendeu na Europa uma nova classe social, econômica e política denominada burguesia. Contudo, os desequilíbrios dos governos despóticos prejudicavam o desenvolvimento desse novo estrato social, fomentando a 6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 232. 7 FUNAN, Pedro Paulo. Grécia e Roma. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002. p. 38 e 83. 16 busca por um novo modelo de organização, em que o poder do Estado fosse limitado, cessando com os abusos perpetrados pelo rei. Motivados pelo ideal de que a liberdade favorecia o crescimento econômico, iniciou-se a revolução burguesa, que culminou com a ascensão dos ideais Iluministas e com o fim do absolutismo. Insurgia na sociedade o pensamento de que o homem era, a bem da verdade, livre em sua essência e que o Estado deveria se submeter a sua vontade e não a vontade divina. A partir de então se formulava liberdade conhecida na atualidade. Foram três os principais centros indutores dessas mudanças: a Inglaterra, a França e, para além do continente europeu, os Estados Unidos da América. Na Inglaterra, diversos movimentos durante o século XVII foram responsáveis pela defesa das liberdades individuais frente às arbitrariedades monárquicas, dentre os quais destacam-se a Revolução Inglesa (1640-1648), quando o parlamento apresentou ao Rei Carlos I a Petition of Rights, que instituía a necessidade aprovação parlamentear para criação e alteração de impostos e para o julgamento e prisões, anteriormente discricionários ao monarca; o Habeas Corpus Act (1679), visando a proteção da liberdade do indivíduo; e a Revolução Gloriosa (1688-1689), que pôs fim ao absolutismo inglês, ao garantir por meio do Bill of Rights, a adoção do parlamentarismo, de modo que nenhuma lei poderia ser sancionada sem a aprovação do parlamento, representante do povo. No campo filosófico, não se pode olvidar da importância do filósofo John Locke, considerado pai do Estado Liberal, o qual afirmava que os homens nasciam plenamente livres e eram detentores de direitos naturais, quais sejam direito à vida, à liberdade e à propriedade. Como forma de garantir tais direitos natos instituíam os governos, mas caso os governantes não os respeitassem, era direito dos cidadãos contestá-los e até mesmo destituí-los do poder. No mesmo sentido, do outro lado do oceano Atlântico, motivados pelas mudanças ocorridas na metrópole, as Treze Colônias britânicas tornaram-se independentes, culminando na formação dos Estados Unidos da América no ano de 1776. Esse foi um dos mais importantes passos para o desenvolvimento do liberalismo, pois na Carta de Independência8 o direito à liberdade foi garantido e foi considerado inerente à condição humana. Por último, a França com sua Revolução de 1789 é o maior expoente da ruptura do sistema absolutista e do nascimento de uma nova Era sedimentada nos ideais de liberdade. Motivados pelos pensamentos Iluministas e pelos princípios de Igualdade, Liberdade e 8 United States of America. Declaration Of Independence. Disponível em: http://www.constitution.org/us_doi.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019. 17 Fraternidade, os franceses iniciaram um movimento que viria a derrubar uma das mais importantes monarquias europeias. Dentre os principais filósofos iluministas franceses, destacam-se Montesquieu e Jean- Jacques Rousseau. O primeiro foi responsável por lançar as bases da tripartição dos poderes, a partir da premissa de que existiam leis naturais, ou seja, leis inatas à condição humana, que não poderiam estar centralizadas em uma única figura. Por sua vez, Rousseau defendeu a perspectiva de que os homens nascem essencialmente livres e que em prol da organização social devem abrir mão de parte da liberdade individual para firmaram um contrato social que teria por objetivo a realização do bem geral. O principal marco da Revolução Francesa foi a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tal documento definiu os direitos individuais e coletivos do homem, considerando-os universais e exigíveis a qualquer tempo e em qualquer lugar, preocupando-se em eleger o direito à liberdade como fundamental.9 Foi com base nessas revoluções liberais do século XVIII que o Estado contemporâneo começou a se estruturar. Alguns direitos passaram, então, a ser garantidos como fundamentais para a condição humana e, para fins didáticos, se dividiram em gerações. A primeira corresponde aos direitos ligados às liberdades individuais que se estabeleceram com o objetivo primordial de cessar os arbítrios estatais. Por esta razão se diz que esses direitos têm uma função negativa e/ou de defesa, uma vez que consistem no direito de não fazer do Estado, em contraposição ao absolutismo anteriormente vigente. Inicialmente, o papel do Estado deveria ser tão somente de promover e garantir a liberdade de todos, intervindo minimamente. Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço maiscaracterístico; enfim, são direito de resistência ou de oposição perante o Estado. Entram na categoria do status negativus da classificação de Jellinek e fazem também ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da 9 “Artigo 1º- Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum. Artigo 4º- A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei”. FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos- humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2019. 18 liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico.10 Em que pese o direito fundamental de liberdade ter sido estabelecido inicialmente como uma forma de abstenção do Estado, ele possui múltiplas facetas, não se podendo falar em uma única liberdade, mas sim em liberdades.11 No Brasil, os desdobramentos do direito fundamental à liberdade estão positivados na Constituição de 1988. No caput do seu artigo 5º, o texto constitucional traz a garantia do direito à liberdade de forma objetiva ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Além disso, ao longo dos setenta e oito incisos que compõe tal dispositivo é apresentado um rol extensivo das diversas nuances desse direito. A liberdade, portanto, consiste no direito de cada indivíduo poder se autodeterminar de acordo com as suas próprias escolhas com a finalidade de atingir a realização pessoal. A sociedade ocidental contemporânea se moldou com base na ideia de que o indivíduo é livre, tornando-se essa uma cláusula geral para o desenvolvimento da vida privada. A consagração dos valores liberais fez florescer na cultura ocidental, há mais de duzentos anos, uma especial consideração pela liberdade de autodeterminação dos sujeitos e pelo poder de conduzir a vida de acordo com as normas que o indivíduo haja escolhido para si. Internalizada como decorrência dos modelos socioeconômicos e políticos que se consolidaram na tradição do Ocidente, a autonomia alcança, então, relevo entre os valores acolhidos pela sociedade como fundamentais à sua constituição e manutenção.12 Todavia, com o passar das experiências liberais, começou-se a entender que a liberdade individual pode sofrer determinadas restrições. O Estado deve garantir que os indivíduos sejam livres para se autodeterminarem de acordo com suas concepções, porém esta liberdade tem como limite a autonomia de outrem, de modo que as escolhas pessoais não podem atingir a 10 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 563-564. 11 “(1) liberdade da pessoa física (liberdades de locomoção, de circulação); (2) liberdade pensamento, com todas as suas liberdades (opinião, religião, informação, artística, comunicação do conhecimento); (3) liberdade de expressão coletiva em suas várias formas (de reunião, de associação); (4) liberdade de ação profissional (livre escolha e de exercício de trabalho, ofício e profissão); (5) liberdade de conteúdo econômico e social (liberdade econômica, livre iniciativa, liberdade de comércio, liberdade ou autonomia contratual, liberdade de ensino e liberdade de trabalho)”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 235. 12 BARRETO NETO, H. M. . O princípio constitucional da autonomia e sua implicação no direito penal. In: Nestor Eduardo Araruna Santiago; Paulo César Corrêa Borges; Cláudio José Langroiva Pereira. (Org.). Direito Penal e Criminologia: XXII Congresso Nacional do Conpedi. 1ed.São Paulo: Fundação José Arthur Boiteux, 2013, v. único. p. 2. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=e58be547528b4bf8>. Acesso em: 03 de jan. de 2020. 19 esfera de terceiros. Assim, sempre que houver choque entre liberdades individuais deve o Estado intervir para balizar a situação. A atuação estatal para coibir os abusos de direito deve se guiar no princípio da proporcionalidade, para que não haja intervenções excessivamente restritivas. A questão central passa a ser, então, a escolha do grau de liberdade que os indivíduos devem possuir para não ameaçar o bem-estar dos outros. Destaca-se aqui a perspectiva kantiana apresentada por Barreto Neto: Kant não concebe, entretanto, que a realização do imperativo categórico leve a um estado anárquico, em que cada um só faz o que deseja e apenas se sujeita a seus próprios critérios racionais. O filósofo insere na própria ideia de liberdade a noção de Direito. O Direito é, em si, um instrumento de regulação social que impõe uma série de comportamentos aos indivíduos de forma coercitiva. Descumprir normas jurídicas resulta em consequências sancionadoras aplicadas pelo Estado e este, procurando promover a harmonia social e evitar a instauração da desordem, proíbe prévia e abstratamente que muitas condutas – por vezes simplórias – sejam tomadas pelos sujeitos de direito, sob pena de sofrerem castigos institucionais. Ora, se há uma ameaça constante de sanção por parte do Estado para o caso de descumprimento de suas regras, como conciliar a existência mesma do Direito com as formulações kantianas segundo as quais a verdadeira liberdade é fruto de decisões individuais estremes de ingerências exteriores? [...] Já foi citado anteriormente que a pedra de toque da ligação, em Kant, entre autonomia, liberdade e Direito é o exercício da própria autonomia até onde o permita o exercício da autonomia do outro. Pois bem. Depois deste breve escorço das lições de Kant sobre autonomia, já é possível compreender que o elemento jurídico é resultado de um exercício de autonomia.13 De acordo com a definição acima apresentada, a liberdade estaria, então, ligada à própria concepção do Direito, pois as normas jurídicas limitadoras seriam fruto da liberdade, expressando a vontade geral da sociedade através da participação popular no processo legislativo. Assim, o Estado, por meio do Direito, passa ter a dupla função de se abster para que os indivíduos sejam livres e ao mesmo tempo de estabelecer limites para que todos possam exercer suas liberdades. Um dos princípios existentes e utilizados pelo Estado para guiar sua atuação nesta dupla função é o da legalidade, que pode ser encontrado sob dois vieses. O primeiro deles é o aplicável à Administração Pública e encontrado no ordenamento jurídico pátrio no art. 37, caput, da Constituição Federal, o qual só permite à Administração Pública agir em conformidade com a lei. Já o segundo diz respeito ao princípio da legalidade aplicado no direito penal e previsto no 13 BARRETO NETO, H. M. . O princípio constitucional da autonomia e sua implicação no direito penal. In: Nestor Eduardo Araruna Santiago; Paulo César Corrêa Borges; Cláudio José Langroiva Pereira. (Org.). Direito Penal e Criminologia: XXII Congresso Nacional do Conpedi. 1ed.São Paulo: Fundação José Arthur Boiteux, 2013, v. único. p. 2. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=e58be547528b4bf8>.Acesso em: 03 de jan. de 2020. 20 inciso XXXIX, do art. 5º da CF, o qual preceitua não haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Desse modo, não é permitido que o Estado aja em desconformidade com a lei, nem que ninguém seja punido por uma conduta que não esteja previamente definida como proibida, devendo o Poder Público se ater a esses limites. Com isso, o princípio da legalidade se caracteriza como uma maneira de equalizar a atuação estatal frente às liberdades individuais. O regime democrático estabelecido na Constituição se sustenta com a preservação dos direitos de liberdade, assim as restrições estatais devem se fundamentar em critérios práticos de racionalidade.14 Diante da análise do que é liberdade, questiona-se a possibilidade de intervenção estatal no tocante ao uso de drogas, bem como a possibilidade de cerceamento do direito daqueles que têm sua autonomia mitigada pela dependência química. Se o indivíduo, com fulcro no direito fundamental à liberdade, é soberano acerca de si mesmo, seria possível a intervenção coercitiva estatal devido o consumo de drogas? Cada pessoa não teria o direito de se guiar de acordo com sua liberdade para escolher como dispor do seu próprio corpo? Por que o Estado permite que algumas substâncias, igualmente prejudiciais, sejam utilizadas e outras não? Em estudo sobre o tema, Maurício Fiore apresenta alguns pontos que merecem destaque para reflexão acerca das perguntas apresentadas. Os protocolos de pesquisa de novas drogas com aplicação médica, por exemplo, supõem riscos na forma de efeitos colaterais não previsíveis. Reconhece-se, inclusive legalmente, que eles irão ocorrer, ocasionando complicações graves e até letais. No caso das drogas de uso mais geral, o Estado se limita a regular a produção e a comercialização, não o consumo, sendo responsabilidade dos indivíduos obedecer, ou não, à prescrição médica. E há, ainda, drogas que prescindem de receituário médico, disponíveis nos balcões de farmácia para livre comercialização. Ali se encontram, por exemplo, os analgésicos, que em muitos países, como o Brasil, lideram os investimentos do mercado publicitário e estão, ao mesmo tempo, relacionados a milhares de mortes anuais, seja por reações adversas e efeitos colaterais, seja por consumo abusivo. (...) Há, também, produtos que contêm substâncias psicoativas e não têm aplicação médica oficial. São as drogas mais consumidas do planeta: as bebidas alcoólicas, as bebidas estimulantes (café, chá e energéticos) e o tabaco. Fora das listas da ONU de drogas proscritas, sofrem restrições diferentes em cada país, mas, no geral, seu comércio é legal e a decisão sobre compra e consumo é individual para os adultos. E, finalmente, as drogas psicoativas que, mesmo ilegais, são maciçamente consumidas por milhões de pessoas no mundo. Sobre sua comercialização não há controle do Estado, que se limita a pedir — e, de alguma forma, obrigar — a seus cidadãos que se mantenham distantes para que não coloquem a si e à sociedade em risco. Todas essas drogas psicoativas têm grande potencial de dano, seja fisiológico, seja mental. Além disso, uma parte significativa delas é bastante tóxica, gerando grande número de mortes acidentais todos os anos. E, o que é mais importante, os indivíduos podem consumi-las de maneira abusiva, seja 14 RODRIGUES. Fillipe Azevedo. Análise econômica da expansão do direito penal. Belo Horizonte: DelRey, 2014. p. 35. 21 esporádica, seja frequentemente, o que pode levar tanto a comportamentos perigosos como a quadros graves de dependência. Como se vê, tanto as drogas psicoativas livremente disponíveis como as controladas ou totalmente ilegais são perigosas. Mas, por isso, podem ser consideradas prescindíveis? Definitivamente, não.15 Existem inúmeras substâncias cujo potencial psicoativo é reconhecido como nocivo, todavia, o Estado as libera, garantido apenas a sua regulamentação para que as pessoas optem por realizar ou não uso dentro dos parâmetros estabelecidos. E é exatamente esse o papel cabível à atuação estatal, pois cada indivíduo tem direito de se autodeterminar de acordo com suas convicções, desde que não afete a esfera de terceiros, sendo este um direito constitucionalmente garantido aos brasileiros. Assim, entende-se que o papel do Estado não é de criminalizar a conduta de uso das drogas, tampouco de cercear a liberdade dos indivíduos que optam por realiza-la, mas sim de regulamentar em que medida o uso pode ser feito, oferecendo apoio aos dependentes e informações à sociedade. 2.2. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE O liberalismo puro, conforme preceituado pelas Revoluções do século XVIII, gerou inúmeras desigualdades que culminaram na necessidade da interferência estatal. A liberdade conquistada levou ao domínio econômico e consequentemente a graves situações de arbítrio. A partir de então surgiu a necessidade de se garantir formal e materialmente os direitos ligados à igualdade, como os direitos sociais, econômicos e culturais. Esses direitos, diferentemente dos de primeira geração, se pautam por uma perspectiva positiva, pois necessitam de uma atuação estatal para se concretizarem. Desse modo, sem que uma dimensão suprimisse a outra, mas a ela se acrescesse, estabeleceram-se os direitos fundamentais de segunda geração, ligados ao ideal de igualdade. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Branco fazem a ressalva de que os direitos sociais de segunda geração são chamados de direitos sociais não por serem direitos de coletividade, pois na maioria das vezes esses direitos têm como titulares indivíduos singularizados, mas por serem fruto de reinvindicações de justiça social.16 15 FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estudos - Cebrap, [s.l.], n. 92, p.9-21, mar. 2012. FapUNIFESP (SciELO). p. 12-13. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s0101-33002012000100002>. Acesso em: 20 de fev. 2020. 16 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 206. 22 Conforme é possível extrair das lições de José Afonso da Silva17, os direitos sociais se caracterizam por serem prestações positivas estatais que têm como objetivo possibilitar melhores condições de vida, igualizando situações sociais desiguais. Ainda de acordo com o constitucionalista, os direitos sociais se conexionam com a liberdade, pois é a partir da garantia de uma igualdade material que se torna possível o exercício efetivo da liberdade. Esses direitos, ligados à perspectiva prestacional, ganharam força constitucional a partir do século XX, especialmente com as Constituições do México e de Weimar e com a Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. Sob a inspiração da Constituição Mexicana de 1917, a Constituição de Weimar, de 1919, a Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1918, nasce a denominada segunda geração de direitos fundamentais, que traz proteção aos direitos sociais, econômicos e culturais, onde do Estado não mais se exige uma abstenção, mas, ao contrário, impõe-se a sua intervenção, visto que a liberdade do homem sem a sua participação não é protegida integralmente. Esta necessidade de prestação positiva do Estado corresponderia aos chamados direitos sociais dos cidadãos, direitos que transcendem a individualidade e alcançam um caráter econômico e social, com o objetivo de garantir à sociedade melhores condições de vida. Nesse diapasão, seriam exemplos clássicos desses direitos o direito à saúde, ao trabalho, à assistência social, à educação e o direito de greve.18 Dentre os direitos sociais a seremgarantidos pelo Estado, encontra-se o direito de proteção à saúde, que ganhou destaque no âmbito internacional com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1946. Tal agência internacional especializada em saúde é subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU) e tem como objetivo primordial a melhoria do nível de saúde de todos os povos, tratando-a como direito fundamental inerente à condição humana. Para a OMS o direito à saúde abrange não apenas o tratamento médico, como também toda uma rede de benefícios que possibilitem ao indivíduo uma vida digna.19 Desse modo, nota- se uma conexão entre o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana, de modo que a saúde 17 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 18 MARTINS, Flávia Bahia. O Direito Fundamental à Saúde no Brasil sob a Perspectiva do Pensamento Constitucional Contemporâneo. 2008. 128 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Puc, Rio de Janeiro, 2008. p. 65. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp077034.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2020. 19 “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social”. OMS – Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde, adotada pela Conferência Internacional de Saúde, realizada em Nova Iorque de 19 a 22 de julho de 1946. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da- Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 03 jan. 2020 23 constitui direito fundamental que não pode ser negado e que é condição de existência para todos.20 No ordenamento jurídico brasileiro a proteção constitucional do direito à saúde como direito fundamental foi garantida apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que previu no caput do seu art. 6º o direito à saúde como direito social. Ademais, o direito à saúde também se encontra garantido na seção II do título VIII do mesmo diploma legal, que instituiu, ainda, o Sistema Único de Saúde (SUS), passando a oferecer a todo cidadão brasileiro acesso integral, universal e gratuito aos serviços de saúde. A criação do SUS, bem como a constitucionalização do direito à saúde no Brasil são frutos do movimento de Reforma Sanitária21, especialmente da 8ª Conferência Nacional em Saúde realizada em 1986, em Brasília/DF, que teve início com o discurso do sanitarista Sérgio Arouca, defensor da ideia de que a “saúde é democracia”22. Para ele, a saúde também consiste em muito mais do que a ausência de doença, sendo também o direito de se ter qualidade de vida com foco na prevenção. Sônia Fleury, ao trabalhar a Reforma Sanitária brasileira, complementa a perspectiva de Arouca ao inferir que A relação entre democracia e saúde é proposta por Berlinguer ao postular que ambos são conceitos abstratos e, mais que isto, orientações ético-normativas. Se bem seja necessário reconhecer os conflitos de interesses e a oposição entre as forças conservadoras e as reformadoras, tanto no caso da democracia quanto no da saúde, tais conflitos não podem ser reduzidos a uma polarização classista. Por outro lado, do ponto de vista estratégico, a luta pela universalização da saúde aparece como uma parte intrínseca da luta pela democracia, assim como a institucionalização da democracia aparece como condição para garantia da saúde como direito de cidadania.23 Desse modo, o direito à saúde passa a ser um direito público subjetivo, constitucionalmente tutelado, servindo como um instrumento de democratização ao apresentar 20 MARTINS, Flávia Bahia. O Direito Fundamental à Saúde no Brasil sob a Perspectiva do Pensamento Constitucional Contemporâneo. 2008. 128 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Puc, Rio de Janeiro, 2008. p. 70. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp077034.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2020. 21 “Neste contexto, as opções pelo fortalecimento das políticas públicas e construção das bases de um Estado do Bem-estar Social foram vistas como prioritárias, unificando as demandas dos setores mais progressistas. A construção de um projeto de reforma sanitária foi parte das lutas de resistência à ditadura e ao seu modelo de privatização dos serviços de saúde da Previdência Social e pela construção de um Estado democrático social.” FLEURY, Sonia. Reforma sanitária brasileira: dilemas entre o instituinte e o instituído. Ciência & Saúde Coletiva, [s.l.], v. 14, n. 3, p.743-752, jun. 2009. FapUNIFESP (SciELO). p. 744. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s1413-81232009000300010>. Acesso em: 08. jan. 2020. 22 Democracia é saúde. Brasília: Videosaúde Distribuidora da Fiocruz, 1986. Son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-_HmqWCTEeQ>. Acesso em: 03 jan. 2020. 23 FLEURY, Sonia. Reforma sanitária brasileira: dilemas entre o instituinte e o instituído. Ciência & Saúde Coletiva, [s.l.], v. 14, n. 3, p.743-752, jun. 2009. FapUNIFESP (SciELO). p.747. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s1413-81232009000300010>. Acesso em: 08. jan. 2020. 24 um caráter universal. Consoante o comando dado pelo texto constitucional, foi publicada no ano de 1990 a Lei nº 8.080, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, viabilizando e estruturando o SUS. Esse sistema tem como objetivo atender as necessidades locais da população e de cuidar de questões que influenciam na verificação da saúde, como o meio ambiente, a vigilância sanitária, a fiscalização de alimentos, entre outros24. Em conformidade com a referida Lei, o desenvolvimento das ações pertinentes à saúde passou a ser dever do Poder Público das esferas federal, estadual e municipal, devendo os serviços de saúde serem prestados por todos os três entes. Além disso, o SUS deve se organizar seguindo as diretrizes de descentralização, com uma direção em cada esfera de governo, garantindo o atendimento integral e a participação da comunidade, com igualdade na assistência à saúde e prestando o direito à informação às pessoas assistidas.25 Observa-se que o SUS é formado por uma rede complexa, organizada de forma regionalizada, a fim de garantir uma assistência de qualidade, estando incluídas no seu campo de ação também a execução de aços ligadas à vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, à de saúde do trabalhador e de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica. Desse modo, conforme analisado, a saúde constitui no ordenamento jurídico brasileiro um direito fundamental social, que deve ser garantido a todos indistintamente, com observância das individualidades. Indaga-se, pois, como as drogas se relacionam com a saúde pública no Brasil? A primeira relação decorre da própria Lei de Drogas que aduz em seu art. 1º, parágrafo único que "consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União". Adiante, a lei apresenta em seu art. 66 uma norma penal em branco heterogênea remetendo à Portaria SVS/MS nº 344/1998 a definição de quais são as substâncias consideradas drogas para efeito da referida lei.26 24 BRASIL. Art. 6º da Lei nº 8080, de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 19 set.1990. 25 BRASIL. Art. 198 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 de jan. 2020. 26 “Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998”. BRASIL. Art. 66 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília, 24 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020. 25 Essa Portaria é editada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que é uma agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde. Com isso, observa-se que a escolha política sobre quais drogas serão criminalizadas é uma questão de saúde pública, pois é determinada por uma agência vinculada ao SUS. É, portanto, o poder público executivo, por meio do Ministério da Saúde, o responsável pela lista das substâncias criminalizadas como drogas no país. Além disso, a segunda relação decorre do tratamento atual dispensado aos adictos. Atualmente, fortalece-se o entendimento de que o uso de drogas não é mais um problema a ser tutelado exclusivamente pelo direito penal, constituindo primordialmente um problema de saúde pública. Assim, ao se deslocar o uso de drogas para a seara sanitária é preciso formular políticas públicas que garantam o atendimento mais adequado a estas pessoas, observando as diferentes necessidades e particularidades. Em 2006, a Lei nº 11.340 estabeleceu que o SISNAD deveria atuar em conjunto com o SUS e, em 2019, foi publicada a Lei nº 13.840/19 que possibilita a internação involuntária do usuário ou dependente de droga, fortalecendo a ideia de que essa é uma questão de saúde pública a ser tutelada pelo Sistema Único de Saúde. 26 3 A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS O uso de substâncias psicoativas não é contemporâneo, acompanha o desenvolvimento da humanidade estando presente ao longo de milênios, seja em rituais religiosos ou de forma recreativa fazendo parte das interações sociais.27 Até o final do século XIX e início do século XX, a utilização de entorpecentes conviveu de maneira harmônica com a evolução da sociedade, de modo que a criminalização das drogas, tal como conhecemos, é relativamente recente.28 Conforme analisado no capítulo anterior, a palavra “droga” em sua essência se refere a um número incontável de substâncias, contudo é utilizada no ordenamento jurídico pátrio para definir apenas aquelas que são proibidas pela ANVISA, sendo essa definição importante para estabelecer quem são os sujeitos que se submetem às políticas públicas relacionadas ao uso de drogas. A internação no Brasil tem suas origens legais no início do século XX, com o Decreto nº 1.132/1903 que previa o recolhimento em “estabelecimento de alienados” daqueles que “por moléstia mental, congênita ou adquirida” comprometessem a ordem pública ou a segurança das pessoas.29 No ano de 1934 foi publicado por Getúlio Vargas, então Presidente da República, o Decreto n.º 24.559/34 que possibilitava a internação dos “psicopatas e dos menores anormais” e que pela primeira vez previa a possibilidade de internação de dependentes químicos ao estabelecer no §5º, do art. 3º que poderiam “ser admitidos nos estabelecimentos psiquiátricos os toxicômanos e os intoxicados por substâncias de ação analgésica ou entorpecente por bebidas inebriantes, particularmente as alcoólicas”.30 Posteriormente, em 1938, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 891, conhecido como Lei de Fiscalização de Entorpecentes, que marcou a intensificação da a política proibicionista brasileira. No primeiro artigo foi estabelecido um rol de substâncias proibidas dividido em dois 27 SILVEIRA, 2006, apud BOITEUX, Luciana. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. 2006. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo., São Paulo, 2006, p. 26. 28 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/2006. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 46. 29 BRASIL. Decreto nº 1.132, de 1903. Reorganiza a Assistencia a Alienados. Rio de Janeiro, 22 dez. 1903. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1132-22-dezembro-1903- 585004-publicacaooriginal-107902-pl.html>. Acesso em: 20 jan. 2020. 30 BRASIL. Decreto nº 24.559, de 1934. Dispõe sobre a profilaxia mental, a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências. Rio de Janeiro, 03 jul. 1934. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24559-3-julho-1934-515889- publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 20 jan. 2020. 27 grupos de periculosidade. Além disso, a lei tratou especificamente da produção, do tráfico e do consumo, que passou a ser uma conduta criminalizada per si. O decreto estabeleceu ainda, em seu terceiro capítulo, a possibilidade de internação e interdição civil dos adictos.31 Em 21 de outubro 1976 adveio a Lei nº 6.368, conhecida como Lei de Tóxicos, que reuniu a política criminal de drogas em uma única lei especial e previu a obrigatoriedade do tratamento sob regime de internação hospitalar quando o quadro clínico do dependente ou a natureza de suas manifestações psicopatológicas assim o exigissem.32 No final da década de 1970, concomitantemente ao movimento de Reforma Sanitária, insurgiu no Brasil o movimento da Reforma Psiquiátrica, que tinha como objetivo a mudança do modelo pautado na internação para um modelo baseado na excepcionalidade da internação e na prevalência da assistência extra-hospitalar. Esse movimento culminou na promulgação da Lei nº 10.216, em 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Em que pese a mudança, a referida Lei ainda previu três possibilidades de internação. A primeira delas é a internação voluntária, com livre consentimento do usuário; já as outras duas se dão sem o consentimento do usuário, diferenciando-se por ser a compulsória determinada judicialmente e a involuntária por pedido de terceiro, baseada unicamente em um laudo médico.33 Destaca-se, ainda, que diferentemente dos decretos anteriores, essa lei não fala em internação para dependentes químicos, mas apenas para pessoas acometidas de transtornos mentais. 31 “Artigo 29 – Os toxicômanos ou os intoxicados habituais, por entorpecentes, por inebriantes em geral ou bebidas alcoolicas, são passíveis de internação obrigatória ou facultativa por tempo determinado ou não. § 1º A internação obrigatória se dará, nos casos de toxicomania por entorpecentes ou nos outros casos, quando provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo, ou for conveniente à ordem pública. Essa internação se verificará mediante representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público, só se tornando efetiva após decisão judicial. § 2º A internação obrigatória por determinação do Juiz se dará ainda nos seguintes casos: a) condenação por embriaguez habitual;b) impronúncia ou absolvição, em virtude de derimente do artigo 27, § 4º, da Consolidação das Leis Penais, fundada em doença ou estado mental resultante do abuso de qualquer das substâncias enumeradas nos arts. 1º e 29 desta lei.” BRASIL. Decreto-lei nº 891, de 1938. Aprova a Lei de Fiscalização de Entorpecentes. Rio de Janeiro, 25 nov. 1938. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-891-25-novembro-1938-349873- publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 20 jan. 2020. 32 BRASIL. Art. 10 da Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6368.htmimpressao.htm>. Acesso em: 18 de jan. 2020. 33 “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça”. BRASIL. Art. 6º da Lei nº 10.216, de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.. . Brasília, 06 abr. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020. 28 Em 2003 o Ministério da Saúde, por meio da sua Secretaria Executiva, publicou um documento intitulado “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas”, no qual estabeleceu as diretrizes para uma política de atenção integral aos dependentes químicos, priorizando a intersetorialidade e os modelos de atenção das redes assistenciais e estabelecendo como objetivo imprescindível a formulação de “políticas que possam desconstruir o senso comum de que todo usuário de droga é um doente que requer internação, prisão ou absolvição” 34. Em 2006 foi promulgada a Lei 11.343 que instituiu um novo sistema de controle penal das drogas no Brasil ao revogar e substituir a Lei nº 6.368/76 e ao criar o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). A partir da nova legislação foram feitas alterações consideráveis sobre o modelo legal de incriminação, que passou a prever medidas preventivas e de reinserção social dos usuários e voltou sua atenção quase que exclusivamente para o combate ao tráfico ilícito de entorpecentes. A lei também inovou ao distinguir o tratamento penal dispensado aos usuários e traficantes, porém ainda se pautou no modelo proibicionista, pois mesmo retirando a pena privativa de liberdade dos usuários, havendo uma despenalização desse tipo, os manteve sob a tutela do Direito Penal, sendo possível a punição com penas restritivas de direitos, penas alternativas e multa.35 Destaca-se, ainda, que a atual Lei de Drogas, em seu texto original, não faz menção ao tratamento do drogo-dependente por meio de internações, estabelecendo apenas que o SISNAD atuará em articulação com o SUS e com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com a finalidade de prevenir o uso indevido e de garantir a atenção e reinserção social dos usuários de drogas. Contudo, apesar da não previsão de internação, na última década se fortaleceu o entendimento jurisprudencial de que a internação compulsória de dependentes químicos poderia ser fundamentada na Lei nº 10.216/01, pois os adictos teriam sua capacidade cognitiva mitigada, assemelhando-se a pessoas com transtornos mentais.36 Em relação ao tema, destaca- 34 Ministério da Saúde. A política do ministério da saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. 2003. p. 27. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pns_alcool_drogas.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2020. 35 BRASIL. Art. 28 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília, 24 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020. 36 JUSBRASIL. Jurisprudência internação compulsória usuários de drogas Lei nº 10.216/01. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=interna%C3%A7%C3%A3o+compulsoria+usu%C3%A1 rios+de+drogas+Lei+n%C2%BA+10.216%2F01>. Acesso em: 20 jan. 2020. 29 se a ideia apresentada em texto sobre a relação entre a internação para usuários de drogas e a reforma psiquiátrica: Só em 2002, consoante às recomendações da III Conferência Nacional de Saúde Mental, o Ministério da Saúde implementou o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras drogas, reconhecendo o uso prejudicial de drogas como problema da saúde pública e construindo uma política pública específica para a atenção a essas pessoas, situada no campo da saúde mental e tendo como estratégia a ampliação do acesso ao tratamento, a compreensão integral e dinâmica do problema, a promoção dos direitos e a abordagem de redução de danos. Apesar disso, em oposição aos princípios e práticas que Reforma Psiquiátrica e da Política Nacional de Saúde Mental, assistimos no cenário social do cuidado para pessoas com problemas de abuso de drogas, a retomada da defesa de práticas e concepções semelhantes às usadas na perspectiva asilar, sob a justificativa de que usuários de drogas não têm condições de lidar, em liberdade, com os problemas decorrentes de seu uso. Em tese, esses usuários estariam subjugados ao poder das drogas, seriam "fracos", necessitados de contenção e tutela. Em razão disso, justificar- se-ia interná-los, ainda que contra sua vontade, antes de tentar quaisquer outras abordagens, descaracterizando os princípios do cuidado em saúde mental em suas diferentes dimensões, sobretudo no concernente ao potencial emancipatório e de exercício dos direitos dos usuários.37 A partir do fortalecimento do entendimento de que os usuários de drogas não teriam condições de estar em liberdade e que por isso necessitariam de internação, tramitou no Congresso Nacional um projeto de lei que buscava alterar o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, instituindo a possibilidade da internação voluntária e involuntária dos usuários e dependentes. Tal projeto foi aprovado e, em 05 de junho de 2019, foi sancionada pelo Presidente da República a Lei nº 13.840, que estabeleceu no inciso II, do §3º, do art. 23- A, a possibilidade de internação involuntária, sem o consentimento do dependente e sem a necessidade de decisão judicial, pautada exclusivamente em decisão por médico responsável. Com isso, desde junho de 2019 passou a ser legalmente possível que a Administração Pública, após a formalização da decisão por médico responsável, cerceie a liberdade do indivíduo usuário de drogas, mesmo sem o seu consentimento. Pontua-se que, diferentemente das legislações anteriores que englobavam por exemplo alcoólatras, a Lei atual se limita apenas aos usuários de drogas, ou seja, apenas aos que fazem uso de substâncias tidas como ilícitas, de modo que entendo não ser possível a sua aplicação para adictos de substâncias legais. Por dispensar autorização do judiciário, essa possibilidade de internação se justifica em decorrência do poder de polícia conferido à Administração Pública, conforme será analisado a seguir. 37 ASSIS, Jaqueline Tavares de; BARREIROS, Graziella Barbosa; CONCEIÇÃO, Maria Inês Gandolfo. A internação para usuários de drogas: diálogos com a reforma psiquiátrica. Revista Latinoamericana de PsicopatologiaFundamental, [s.l.], v. 16, n. 4, p.584-596, dez. 2013. FapUNIFESP (SciELO). p. 588-589. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s1415-47142013000400007>. Acesso em 09 jan. 2020. 30 3.1. A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA NO BRASIL: MANIFESTAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA A garantia das liberdades individuais se estabeleceu como um freio aos arbítrios estatais, priorizando-se a autonomia individual. Todavia, essa liberdade não é ilimitada, de modo que, em caráter excepcional, é possível que o Estado interfira na vida privada dos indivíduos para garantir que estes exerçam seus direitos em compatibilidade com o bem-estar social. Nem sempre os limites dos direitos individuais são claros e em determinados casos os interesses particulares se opõem ao interesse público, restando à Administração o poder-dever de intervir para balizar eventuais desequilíbrios.38 Essa atividade estatal limitadora decorre dos poderes administrativos, que constituem o mecanismo pelo qual a Administração irá atuar. Para bem atender ao interesse público, a Administração é dotada de poderes administrativos - distintos dos poderes políticos - consentâneos e proporcionais aos encargos que lhe são atribuídos. Tais poderes são verdadeiros instrumentos de trabalho, adequados à realização das tarefas administrativas. Daí o serem considerados poderes instrumentais, diversamente dos poderes políticos, que são estruturais e orgânicos, porque compõem a estrutura do Estado e integram a organização constitucional. Os poderes administrativos nascem com a Administração e se apresentam diversificados segundo as exigências do serviço público, o interesse da coletividade e os objetivos a que se dirigem. Dentro dessa diversidade, são classificados, consoante a liberdade da Administração para a prática de seus atos, em poder vinculado e poder discricionário; segundo visem ao ordenamento da Administração ou à punição dos que a ela se vinculam, em poder hierárquico e poder disciplinar; diante de sua finalidade normativa, em poder regulamentar; e, tendo em vista seus objetivos de contenção dos direitos individuais, em poder de polícia. 39 Os poderes administrativos conferem aos agentes públicos determinadas prerrogativas que são indispensáveis para a persecução da finalidade pública, disciplinando as relações sociais e garantindo a preservação da ordem pública. Dentre tais poderes, destaca-se o poder de polícia, que se caracteriza por ser uma “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público”40. Quando exerce o poder de polícia, o Estado não desenvolve uma atividade de cunho prestacional para satisfazer as necessidades dos indivíduos, mas sim uma atividade repressiva, com a finalidade de impedir a realização de condutas indesejáveis e garantir o equilíbrio para 38 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 843. 39 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 101. 40 BRASIL. Art. 78 da Lei nº 5.172, de 1966. Código Tributário Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 20 de jan. 2020. 31 que ninguém ultrapasse o limite do direito alheio. Isso, porque, o direito individual tem como limite natural o direito de outrem, cabendo ao Estado garantir o controle da ordem coletiva, impedindo que hajam excessos. Caio Tácito aduz que o poder de polícia nasce implementando o dever geral de não perturbar como limite à liberdade individual.41 De acordo com José dos Santos Carvalho Filho, a expressão poder de polícia possui um sentido amplo e um estrito. O primeiro, corresponde a qualquer ação estatal limitadora de direitos individuais, como a atuação do Poder Legislativo. Já o segundo sentido, que aqui nos interessa, diz respeito ao poder de polícia enquanto atividade administrativa, consubstanciada na prerrogativa conferida aos agentes públicos de poder restringir e condicionar a liberdade e a propriedade.42 Para Hely Lopes Meirelles, a razão de existência do poder de polícia é o interesse coletivo, de modo que esse poder é o mecanismo de frenagem pelo qual o Estado pode condicionar a atuação privada em benefício da coletividade, com fundamento na supremacia do interesse público proveniente dos mandamentos constitucionais. Assim, “por esse mecanismo, que faz parte de toda Administração, o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à segurança nacional”43. Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende que “o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados”44 e que, embora haja uma aparente incompatibilidade entre o exercício dos direitos fundamentais e a limitação imposta pelo Estado, é a própria limitação que garante o exercício desses direitos por todos. Por sua vez, Marçal Justen Filho acrescenta à definição de poder de polícia a ideia de democracia, definindo esse poder como sendo “a competência para disciplinar o exercício da autonomia privada para a realização de direitos fundamentais e da democracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade”45. 41 TÁCITO, Caio. Princípio de legalidade e poder de polícia. Revista Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 2001. p. 17. Disponível em: <http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2001/revdireito2001B/art_poderpolicia.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2020. 42 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 137 – 138. 43 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 115. 44 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 191. 45 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 585. 32 Diz-se, portanto, que a liberdade e a propriedade são direitos condicionados, pois estão subordinados ao interesse da coletividade, devendo o Estado ser o protagonista, por meio do seu poder de polícia, na preservação do interesse público.46 Por restringir direitos tão caros à democracia, a atuação estatal deve estar sempre dentro dos parâmetros estabelecidos em lei e se guiar de acordo com a proporcionalidade, devendo a sua atuação ser adequada e necessária, não se admitindo que as competências de poder de polícia administrativa sejam utilizadas de modo antidemocrático.47 Desse modo, não pode o Estado, sob a justificativa de exercer o poder de polícia, anular ou restringir arbitrariamente os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, de maneira que as intervenções administrativas em prol do bem-estar social devem sempre respeitar aos limites impostos pela Constituição. Além disso, o poder de polícia tem como objetivo a proteção do interesse público no que concerne a vários setores da sociedade, abrangendo, a título de exemplo, a segurança, a higiene, os costumes, o meio ambiente, a defesa do consumidor, dentre outros, conforme demonstra Hely Lopes: A extensão do poder de polícia é hoje muito ampla, abrangendo desde a proteção à moral e aos bons costumes, a preservação da saúde pública, o controle de publicações, a segurança das construções e dos transportes até a segurança nacional em particular. Daí encontrarmos nos Estados modernos a polícia de costumes, a polícia sanitária, a polícia das construções, a polícia das águas, a polícia da atmosfera, a polícia florestal,
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