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Compreensoesfenomenologicoexistenciais-Melo-2022

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes 
Programa de Pós-Graduação em Psicologia 
 
 
 
 
 
 
 
COMPREENSÕES FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAIS ACERCA DA 
EXPERIÊNCIA DO SUICÍDIO NA INFÂNCIA: “E EXISTE?” 
 
 
 
 
 
Manuella Bila de Melo 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Natal 
2022
ii 
 
Manuella Bila de Melo 
 
 
 
 
 
 
COMPREENSÕES FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAIS ACERCA DA EXPERIÊNCIA 
DO SUICÍDIO NA INFÂNCIA: “E EXISTE?” 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação elaborada sob orientação da Profa. 
Dra. Ana Karina Silva Azevedo e apresentada ao 
Programa de Pós-Graduação em Psicolgia da 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 
como requisito parcial à obtenção do título de 
Mestre em Psicologia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Natal 
2022 
iii 
 
 
 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - 
CCHLA 
 
 Melo, Manuella Bila de. 
 Compreensões fenomenológico-existenciais acerca da experiência suicídio na 
infância: "E existe?" / Manuella Bila de Melo. - 2022. 
 165f.: il. 
 
 Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa 
de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 
Natal, RN, 2022. 
 Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Karina Silva Azevedo. 
 
 
 1. Suicídio. 2. Infância. 3. Pesquisa Fenomenológica. I. Azevedo, Ana Karina 
Silva. II. Título. 
 
RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9 
 
 
 
 
 
Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748 
 
 
iv 
 
 
 
 
 
v 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Vida e a Morte 
 
O que é a vida e a morte 
Aquela infernal inimiga 
A vida é o sorriso 
E a morte da vida a guarida 
 
 
A morte tem os desgostos 
A vida tem os felizes 
A cova tem a tristeza 
E a vida tem as raízes 
 
A vida e a morte são 
O sorriso lisonjeiro 
E o amor tem o navio 
E o navio o marinheiro 
 
 
 
 
(Florbela Espanca, 1903, escrito aos oito anos de idade) 
vi 
 
Agradecimentos 
 
 
À Deus, aquele que é responsável por tornar possível o que tantas vezes me pareceu 
impossível. 
Aos meus pais, Ana Flávia e Kilter, por sempre terem sido meu maior sustento, suporte 
e apoio. 
Aos meus irmãos, Isabelle e Renato, que sempre foram a minha certeza de companhia 
na vida e de ajuda quando precisei. 
Aos meus sobrinhos, Letícia e Miguel, também é por vocês que eu me comprometo a 
sempre fazer o que estiver ao meu alcance para tentar tornar o mundo um lugar mais sensível e 
acolhedor para as crianças. 
Aos meus amigos, que durante todo o percurso do mestrado se fizeram presente e me 
ajudaram das formas que puderam. Vocês foram essenciais! 
À Laís Maia, minha amiga, pela paciência de ler e reler o meu trabalho, na generosa, 
cansativa e importante tarefa de me ajudar a revisá-lo. 
À Tatiane Rocha, amiga da vida, por ter sido uma das pessoas que mais ouviu as minhas 
angústias ao longo do mestrado e esteve comigo quando precisei, inclusive muito antes da 
psicologia ter cruzado o meu caminho. 
À Ana Karina, minha orientadora que se tornou amiga, pela paciência, generosidade e 
inspiração. Obrigada por ter me apoiado em todos os momentos, por ter sido compreensão e 
inspiração constante, por ter me dado contornos quando precisei deles, por ter seguido 
acreditando e me fazendo acreditar! 
À Symone Melo, leitora-professora-amiga, por ter me acompanhado desde a graduação 
e ter seguido comigo durante todo o percurso do mestrado, contribuindo de forma tão pertinente 
e sensível para o meu trabalho. Sou grata pelos nossos caminhos terem se cruzado! O meu modo 
de olhar a infância e a psicóloga que eu sou hoje tem uma enorme marca sua (que sorte a minha)! 
À Débora e Vanessa, minhas amigas de mestrado, por terem tornado esse percurso 
menos solitário, mesmo com ele acontecendo a maior parte do tempo durante uma pandemia, 
vocês foram suporte e tornaram tudo mais leve. 
À Carolina Lucena, minha psicóloga da época, que esteve comigo durante o meu 
processo de refletir sobre a escolha do mestrado, me ajudou a acolher e dar contornos aos meus 
momentos de angústia, foi essencial para que eu seguisse acreditando. 
vii 
 
 
À Ana Frota, Vera Cury, Sílvia Morais e Ana Maux, por terem aceitado participar e 
contribuir nas minhas bancas de qualificação, o olhar de cada uma de vocês foi importante para 
os caminhos seguidos nesta pesquisa. 
À Maria Júlia Kovács, por tão gentilmente ter aceitado o convite para compor a banca 
da minha defesa, compartilhando de forma extremamente generosa os seus conhecimentos 
sobre morte e o fenômeno do suicídio. 
Ao GESDH e a todos que compõe esta base de pesquisa, aprendo muito com cada um! 
À professora doutora Elza Dutra, por ter sido uma grande apoiadora do meu desejo em 
tentar o mestrado e ser inspiração nos estudos sobre o suicídio. 
A todos aqueles que cruzaram o meu caminho na clínica: crianças, adolescentes e 
adultos, tenham certeza de que a Manuella que eu sou hoje, dentro e fora da psicologia e da 
pesquisa, foi transformada pelo encontro com vocês e carrega um tanto de cada um! 
À cada uma das crianças participantes da pesquisa, que tão gentilmente me permitiram 
ser uma escutadora de suas histórias, me entregando aquilo que de mais precioso possuíam: a 
confiança. Vocês me deram fôlego para seguir no mestrado, ainda mais implicada na certeza de 
que se faz necessário falarmos, ampliarmos o nosso olhar e acolhermos as experiências, às vezes 
bastante dolorosas, do ser criança. Espero conseguir sensibilizar outras pessoas para a 
importância de ouvi-las! Comprometo-me a seguir sempre tentando! 
viii 
 
Sumário 
Lista de Figuras......................................................................................................................... vii 
Lista de Tabelas ...................................................................................................................... viii 
Resumo ..................................................................................................................................... ix 
Abstract......................................................................................................................................x 
Introdução ................................................................................................................................ 13 
Capítulo 1 – De onde partimos: construções e desconstruções em torno da infância.............. 22 
1.1 Contexto histórico da infância ...................................................................................... 22 
1.2 Infância na fenomenologia ............................................................................................ 31 
Capítulo 2 – Suicídio na infância: “E existe?” ......................................................................... 46 
Capítulo 3 – Método: Caminho de desvelamentos .................................................................. 62 
3.1 Participantes .................................................................................................................. 68 
3.2. Procedimentos e passos metodológicos ....................................................................... 71 
Capítulo 4 – Análise dos encontros ......................................................................................... 78 
4.1 Conhecendo a primeira participante: momentos com os pais ....................................... 79 
4.2 O que nos conta Hermione? .......................................................................................... 87 
4.3 Conhecendo a segunda participante: momento com a mãe ......................................... 103 
4.4 O que nos conta Wendy? .............................................................................................110 
Capítulo 5 – Considerações finais .......................................................................................... 139 
Referências ............................................................................................................................. 145 
Anexos ................................................................................................................................... 154 
ix 
 
 
 
 
Lista de Figuras 
 
Figura 1 – Círculo hermenêutico heideggeriano adaptado por Azevedo (2013) ..................... 63 
 
Figura 2 – Desenho de Hermione "Insegurança" ..................................................................... 91 
 
Figura 3 – Desenho de Hermione "Comédia" .......................................................................... 92 
 
Figura 4 – Desenho de Hermione "Sad" .................................................................................. 93 
x 
 
 
Lista de Tabelas 
Tabela 1 - Lesões autoprovocadas por faixa etária e por meios mais utilizados..................... 13 
xi 
 
 
Resumo 
 
O suicídio na infância é um fenômeno invisibilizado e atravessado por diversos tabus, dentre 
eles o mito da infância feliz, que vê essa fase da vida como marcada apenas por alegria, sonhos, 
leveza, e isenta de dores e sofrimentos. Na contramão desse entendimento, a presente 
dissertação de mestrado tem como objetivo compreender a experiência do suicídio infantil, a 
partir das narrativas de crianças que expressaram ideação ou tentaram suicídio. 
Metodologicamente, esta pesquisa se ancora na fenomenologia hermenêutica heideggeriana, 
utilizando como possibilidade interpretativa o Círculo Hermenêutico heideggeriano. Partindo 
disso, os momentos interpretativos dos encontros com as crianças aconteceram por meio da 
escrita narrativa do encontro com a criança e do diário de afetação produzido pela pesquisadora 
a respeito das suas compreensões sobre os encontros. O diário marca o caminho que é o próprio 
método e é a ele que a pesquisadora retorna para ter como apoio na escrita dos textos analíticos. 
Assim, no momento posterior aos encontros, iniciou-se a análise do material registrado, que 
envolveu as anotações da pesquisadora e as produções realizadas pela criança. Diante disso, foi 
adotado um modo fenomenológico-hermenêutico de fazer pesquisa. Os resultados apresentam 
trechos dos quatro encontros ocorridos com duas crianças participantes, de 10 e 11 anos, aqui 
chamadas de Hermione e Wendy. Em seus discursos, as meninas desvelaram histórias que 
traziam a solidão como marca de um tempo e narrativas atravessadas por violências e conflitos. 
Frente à inospitalidade de um mundo com muitas convocações em torno dos modos de ser 
esperados e a dificuldade em encontrar familiaridade e pertencimento, a existência tornava-se 
fardo e a morte apresentava-se na trama de significados como um caminho na lida com o 
sofrimento. 
Palavras-chave: Suicídio; Infância; Morte; Sofrimento; Pesquisa Fenomenológica. 
xii 
 
 
Abstract 
 
Suicide in childhood is an invisible phenomenon crossed by several taboos, among them the 
myth of happy childhood, which sees this phase of life as marked only by joy, dreams, lightness, 
and free of pain and suffering. In opposition to this understanding, the present master's thesis 
aims to understand the experience of childhood suicide, from the narratives of children who 
have expressed suicidal ideation or attempted suicide. Methodologically, this research is 
anchored in Heideggerian hermeneutic phenomenology, using as interpretative possibility the 
Heideggerian Hermeneutic Circle. Based on this, the interpretative moments of the encounters 
with the children happened through the narrative writing of the encounter with the child and the 
affect diary produced by the researcher regarding her understandings about the encounters. The 
diary marks the path that is the method itself and it is to it that the researcher returns to have as 
support in the writing of the analytical texts. Thus, after the meetings, the analysis of the 
material recorded began, which involved the researcher's notes and the productions made by 
the child. In this way, a phenomenological-hermeneutic way of doing research was adopted. 
The results present excerpts from four meetings with two participating children, ages 10 and 
11, referred to here as Hermione and Wendy. In their speeches, the girls revealed stories that 
brought loneliness as a mark of a time and narratives crossed by violence and conflicts. Facing 
the inhospitality of a world with many calls around the expected ways of being and the difficulty 
in finding familiarity and belonging, existence became a burden and death was presented in the 
weft of meanings as a way to deal with suffering. 
Keywords: Suicide; Childhood; Death; Suffering; Phenomenological Research 
13 
 
 
Introdução 
 
Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: 
só as pessoas grandes falavam. 
Agora, depois de adulto, 
tenho de ficar calado para as crianças falarem. 
(Mario Quintana) 
 
 
 
Ainda criança, reflexões sobre a existência e a finitude me acompanhavam e me 
inquietavam. Questionava-me sobre o caráter ontológico de ser-para-a-morte quando sequer 
imaginava que esse termo pudesse existir. O que eu sabia a partir da minha vivência é que não 
existiam espaços onde as crianças pudessem falar sobre o morrer e, se existiam, eram 
permeados de ressalvas, havia sempre um limite. Os não ditos eram muitos e me inquietavam. 
Cresci e segui no caminho de reflexão sobre a existência. Formei-me em Psicologia e, 
durante quatro dos cinco anos da graduação, cursados na Universidade Federal do Rio Grande 
do Norte (UFRN), participei de um projeto de extensão chamado “Acolher”, cuja proposta é 
oferecer atendimentos psicológicos a crianças e a adolescentes em situação de acolhimento 
institucional na cidade de Natal/RN. Por meio desse projeto, acompanhei histórias de crianças 
que vivenciaram as mais diversas situações de violação de direitos e que muito novas 
experienciaram a inospitalidade do mundo. Dessas, algumas expressavam o seu sofrimento por 
meio da automutilação e outras encontravam na morte um caminho para tentar apaziguar as 
dores da existência. 
 
Atrelado a essa experiência, nos estágios de quarto e quinto ano da graduação em 
Psicologia acompanhei pessoas que buscavam plantão psicológico ou psicoterapia trazendo 
como demanda pensamentos e/ou tentativas prévias de suicídio, ato de pôr fim à própria vida. 
Em algumas histórias, as narrativas apontam a infância como período em que o desejo de morte 
havia surgido, no entanto, apenas na idade adulta estava sendo possível falar sobre ele. Ainda 
14 
 
 
assim, eu percebia uma enorme dificuldade nesse falar, por vezes ele só surgia após o avançar 
do processo terapêutico. Talvez, antes de falar sobre algo tão profundo, fosse preciso certificar- 
se de que era possível confiar naquele espaço e naquela relação que se apresentava trazendo a 
possibilidade do falar e ser escutado, sem julgamentos ou restrições. Essa dificuldade também 
pode sinalizar para o quanto essa temática ainda é um tabu em nossa sociedade. De toda forma, 
inquietava-me pensar na experiência daquelas pessoas que conviviam com aquele sofrimento 
há tanto tempo. Um sofrimento calado, mas não menos sentido. 
A partir da escuta dessas narrativas, voltei-me para compreensão dos dados estatísticos 
acerca do suicídio no Brasil, principalmente no que se refere a esse fenômeno na infância. A 
seguir, trarei alguns desses dados de modo a iniciarmos as reflexões sobre o que já sabemos, ou 
não, a respeito desta temática. 
Ao lançar o nosso olhar para os dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde 
(WHO, 2019), encontramos que, no mundo, em 2019, ocorreram mais de 700 mil suicídios. No 
Brasil, foi apontado a taxa de 6,8 suicídios a cada 100 mil habitantes, aumentando para 10,3quando analisados somente os suicídios de homens e caindo para 2,8 ao olhar exclusivamente 
para as mulheres. No que se refere ao suicídio entre jovens, a OMS (2018) apontou que, no 
mundo, o suicídio é a segunda maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos e a terceira 
entre jovens de 15 a 19 anos. No Brasil, foram registradas, entre 2011 e 2016, 48.204 tentativas 
de suicídio entre jovens de 10 a 19 anos. 
De acordo com o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014), no que se refere à população 
jovem (15 a 19 anos) observou-se que entre os anos de 1980 e 2012 houve um crescimento de 
62,5% nos suicídios, ocorrendo um aumento nesse ritmo após a virada de século. No entanto, 
percebe-se que há uma ausência de dados referentes ao suicídio de crianças. A exemplo disso, 
o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014) distingue seus informes apenas entre jovens, de 15 a 
29 anos, e não-jovens, menores de 15 e maiores de 29 anos. Devido a essa divisão, as crianças 
15 
 
 
ficam incluídas no grupo dos não-jovens, o que dificulta uma maior precisão acerca do suicídio 
na infância. 
Apesar dessa escassez de dados, Neves (2019) aponta que o Centro de Prevenção e 
Controle de Doenças estima que ocorra dois suicídios de criança por cada um milhão. Com a 
Portaria nº 1.271, de 6 de junho de 2014, passou a ser obrigatório que os serviços públicos e 
privados de saúde realizassem a notificação de casos de suicídio e tentativa de suicídio. Em 17 
de fevereiro de 2016, foi lançada uma nova portaria, nº 204, com o objetivo de ampliar a 
obrigatoriedade dessas notificações para estabelecimentos públicos e privados de educação, 
cuidado coletivo e instituições de pesquisa, assim como serviços da rede de assistência social e 
conselhos tutelares. Devido a essas novas medidas, espera-se que nos próximos anos haja um 
maior acompanhamento dos dados relativos ao suicídio e tentativas de suicídio no Brasil. 
Já como efeito dessas portarias, a partir dos dados obtidos por meio das notificações 
compulsórias, o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) 
divulgou em seu último boletim epidemiológico (Brasil, 2021) os números das lesões 
autoprovocadas e a faixa etária. Nessa análise, observou-se que apenas no ano de 2021 foram 
notificados 6.727 casos de lesões autoprovocadas na população de 0 a 14 anos. Na Tabela 1, 
podemos acompanhar alguns desses números: 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tabela 1 
Lesões autoprovocadas por faixa etária e por meios mais utilizados 
 
16 
 
 
 
Idade 
Lesão 
autoprovocada 
(total) 
 
Enforcamento 
Objetos 
perfurocortantes 
 
Envenenamento 
 
Arma de fogo 
<1 
ano 
487 30 72 230 5 
1-4 
anos 
505 5 17 215 215 
5-9 
anos 
341 19 99 99 2 
10-14 
anos 
5.394 209 1.522 2.767 25 
Fonte: Datasus (Brasil, 2021). 
 
 
O Datasus, no entanto, não especifica quais critérios são utilizados para a realização 
dessas notificações. É difícil precisar, por exemplo, os significados de lesões autoprovocadas 
em crianças pequenas, especialmente na faixa etária que vai até os quatro anos. Seria possível 
existir intenção nessas autolesões? É algo a ser questionado. Contudo, neste momento, o 
objetivo aqui é refletir quanto à faixa etária que detém os números mais significativos de lesões 
autoprovocadas, aquela dos 10 aos 14 anos. Questiona-se, pois, a possibilidade desses números 
apontarem para tentativas de suicídio subnotificadas, uma vez que, segundo o Mapa da 
Violência (Waiselfisz, 2014), o suicídio na faixa etária dos 10 aos 14 anos cresceu 40% entre 
os anos de 2002 e 2012. 
No que se refere aos estudos publicados, apesar das estatísticas indicarem o aumento de 
lesões autoprovocadas e suicídio entre jovens, ao olhar especificamente para o público infantil 
percebe-se uma limitação nos trabalhos científicos que contemplem essa temática. A exemplo 
disso, em um levantamento bibliográfico realizado na base de dados SciELO (Scientific 
Eletronic Library Online), no primeiro semestre de 2022, utilizou-se os descritores “Suicide 
AND children” e foram encontrados 118 artigos, destes, apenas 34 tratavam da relação entre 
suicídio e infância. Nos artigos selecionados, observou-se que todos apresentavam estudos 
17 
 
 
transversais, epidemiológicos e/ou quantitativos, nenhum era qualitativo, assim como não 
foram encontrados estudos a partir da fenomenologia hermenêutica, o que também justifica a 
importância da realização de pesquisas que tenham esse olhar compreensivo para o fenômeno 
do suicídio na infância. De acordo com Lemos e Salles (2015), falta a análise qualitativa dos 
dados levantados em pesquisas que se propõem a estudar o suicídio infantil. De acordo com 
Freitas (2015): 
Na perspectiva histórica, há poucos registros sobre a infância desde o ponto de vista da 
criança, até mesmo devido ao fato de que esta, durante muito tempo, não foi valorizada 
a ponto de ter sua produção cuidada e preservada como interessante para compreensão 
de sua condição (p. 35). 
 
Assim, reflete-se que a ausência de trabalhos que tenham como objetivo compreender 
o sofrimento infantil a partir da narrativa daquele que vive essa experiência, a criança, denuncia, 
também, a dificuldade que a sociedade tem de escutar o que elas têm a dizer. É válido questionar 
de onde vem essa dificuldade. Será que nunca soubemos ouvir as crianças ou será que essa 
habilidade em algum momento foi perdida? É interessante perceber que quando olhamos para 
o significado etimológico da palavra “infância”, encontramos que no latim fan significa falante 
e in traz a negação ao verbo, ou seja, infância significa ausência de fala, refere-se aquele que 
ainda não é capaz de falar (Pagni, 2010). Talvez esse significado ajude a entender a ausência 
de estudos que se propõem a ouvir as crianças e, assim, a partir delas e com elas, tentar 
compreender os sentidos que elas atribuem às suas experiências. 
Para Angerami-Camon (2012) essa dificuldade teria relação com o paradoxo existente 
na temática do “desespero infantil”, uma vez que socialmente é nessa faixa etária que são 
depositadas as esperanças em torno de um novo tempo e um novo mundo. Para este autor, há 
uma descrença na compreensão infantil da morte, que atrelado à baixa letalidade dos meios por 
elas usados pode corroborar para a dificuldade na crença da intenção do ato suicida por parte 
das crianças e, consequentemente, no aumento das subnotificações. Além desses 
18 
 
 
atravessamentos, questiona-se: há lugar em nossa sociedade para o sofrimento infantil? O que 
esse sofrimento pode denunciar? 
Han (2015) indica que vivemos no que ele denomina de sociedade do cansaço. De 
acordo com o filósofo, há um excesso de positividade que nos coloca em movimento em busca 
de desempenho e produtividade. Assim, em meio a correria para dar conta de diversas 
atividades, nos tornamos cansados, ocupados e ausentes. Han (2021) também reflete que 
vivemos em uma sociedade “que busca se desonerar de toda forma de negatividade” (p.11), ou 
seja, segundo o filósofo, evitamos a dor, ainda que para isso seja preciso buscar caminhos de 
anestesia. Para o autor, “a nossa relação com a dor mostra em que sociedade vivemos. Dores 
são cifras. Elas contêm a chave para o entendimento de toda a sociedade” (p. 9). 
Em um mundo que diz que “querer é poder”, que os limites existem para serem 
ultrapassados, não respeitados, sofrimento é fraqueza e ninguém quer ser fraco. As dores são 
anestesiadas. O pensamento vigente torna-se o “calculante”, no imperativo do ter para ser, há 
muito espaço para a racionalização e pouco para o sentir. Busca-se controle e previsibilidade. 
É nesse horizonte “epocal” que as crianças existem e, portanto, são afetadas. Compreende-se 
que, em meio a tantos silenciamentos e anestesias, por meio de automutilação e ideação suicida, 
algumas crianças desvelam sofrimentos. 
Diante disso, a presente dissertação tem como objetivo compreender o suicídio infantila partir da experiência de crianças que expressaram ideação ou tentaram suicídio. Para isso, 
parte-se do entendimento: ir ao encontro da experiência daquele que vive tem consonância com 
o modo de fazer pesquisa na fenomenologia, a qual compreende a importância de lançar luz ao 
fenômeno de modo que ele possa se desvelar. Assim, realizar pesquisa com criança a partir da 
fenomenologia tem como premissa a convocação ao “retorno às coisas mesmas”. Voltamos à 
experiência daquele que a vive, nesse caso as crianças, para, assim, permitir que elas possam 
nos contar sobre as suas próprias experiências, com os sentidos e afetações que, por serem delas, 
19 
 
 
somente elas poderão de fato compartilhá-las. Neste trabalho, nos inspiramos na hermenêutica 
proposta pelo filósofo Martin Heidegger (1927/2016) a qual pensa que o ser humano se constitui 
como tal existindo e, por isso, estará em constante relação com o mundo, consigo mesmo e com 
os outros (Maux & Dutra, 2017). 
Para isso, é importante observar que a relação da sociedade com a temática do suicídio 
é uma questão que vem sofrendo alterações ao longo dos anos e, ainda hoje, é vista como um 
grande tabu. Por muito tempo, falar sobre suicídio era algo proibido, acreditava-se que o falar 
sobre este fenômeno provocaria o desencadeamento de novos suicídios. Esse pensamento foi 
suscitado após a publicação, no ano de 1774, da obra “Os sofrimentos do jovem Werther”, 
escrita por Goethe. Essa obra traz a história de uma desilusão amorosa vivida pelo personagem 
principal, culminando na morte dele por suicídio. Nos anos que se sucederam a essa publicação, 
percebeu-se uma onda de suicídios pela Europa e, de início, não houve confirmação quanto a 
relação com a história. No entanto, após o suicídio de Marilyn Monroe em 1962, nos Estados 
Unidos, as taxas de suicídio voltaram a subir no país e, em 1974, em menção à obra de Goethe, 
criou-se o termo “Efeito Werther”, referindo-se ao suicídio por contágio. Ou seja, quando, após 
o acontecimento de um suicídio, outros passam a acontecer e por vezes com características 
semelhantes entre eles. A partir disso, falar sobre a morte autoprovocada tornou-se um assunto 
proibido. Autores como Fink, Santaella-Tenorio e Keyes (2018) informam que “dependendo 
da identificação das pessoas com aquele que se matou e da exposição da notícia na mídia, 
especialmente se envolver uma personalidade conhecida, os suicídios podem aumentar” (p. 9, 
tradução nossa). 
Em contrapartida, posteriormente constatou-se o “Efeito Papageno”, inspirado na 
“Flauta mágica”, obra de Mozart que contava a história de Papageno que também sofre uma 
desilusão amorosa, cogita o suicídio, mas, diferente de Werther, recebe apoio e, assim, encontra 
outras possibilidades, desistindo da morte autoprovocada. A partir disso, percebeu-se que se a 
20 
 
 
notificação do suicídio for feita de forma educativa, poderá reverberar na conscientização da 
população em torno da temática, exercendo um impacto social positivo, possibilitando uma 
redução nos números de suicídio registrados. Por isso, a abertura para o falar sobre suicídio 
passou a ser compreendida como uma importante estratégia de prevenção, pois: 
Como tudo que amedronta, o suicídio é evitado pelas pessoas, mas o efeito provocado 
pelo silêncio é devastador e se prolonga por uma cadeia de sofrimento: ele impede quem 
pensa em tirar a própria vida de expressar suas angústias; incapacita amigos e familiares 
de abordar o assunto diretamente; e, por fim, alimenta a dor dos que perdem alguém 
para o suicídio (Fontenelle, 2008, n.p.). 
 
Essa nova compreensão reverberou na mudança de estratégia utilizada pelas entidades 
nacionais e internacionais, passando a compreender que falar sobre suicídio poderia ser 
importante na prevenção de novos casos. Percebe-se, nos últimos séculos, uma progressiva 
ampliação da compreensão acerca do suicídio, que passa a ser entendido como fenômeno 
multifatorial, multideterminado e transacional, devendo ser enfrentado também na esfera da 
saúde pública (Botega, 2015). Ressaltando a importância da fala como medida preventiva, a 
Organização Mundial da Saúde (OMS) adotou algumas estratégias, dentre elas a criação de 
cartilhas educativas, sendo uma dessas criada em 1999 e voltada para a orientação de como 
abordar o suicídio na mídia. Além disso, a OMS também passou a divulgar as estatísticas a 
respeito do suicídio, e, desde 2003, o dia 10 de setembro tornou-se o Dia Mundial de Prevenção 
ao suicídio. Em 2015, foi instituído o “Setembro Amarelo”, cujo objetivo é promover 
campanhas de prevenção ao suicídio durante todo o mês de setembro. Entretanto, apesar desses 
incentivos, a temática da morte autoprovocada ainda é considerada um tabu e, a variar de acordo 
com a cultura da qual se parta, da faixa etária analisada ou do período histórico vivido, a 
abertura para falar sobre esse fenômeno pode ser maior ou menor. 
Desse modo, é interessante perceber como o século XXI tem sido marcado pelo 
surgimento da temática da morte autoprovocada entre o público infantojuvenil, por meio do 
21 
 
 
aparecimento de desafios e jogos que têm como objetivo incitar o suicídio de crianças e 
adolescentes. Entre eles, tivemos o desafio da Baleia Azul em 2017, da boneca Momo em 2019 
e, com menos repercussão, do Pateta em 2020. Em 2017 também houve o lançamento da série 
Thirteen Reasons Why, na qual foi exposta a cena da morte autoprovocada da personagem 
principal, Hannah Baker, sobre a qual se teceram críticas acerca da riqueza de detalhes com que 
a cena da morte por suicídio foi reproduzida e o aspecto causalista envolvido. Devido à 
repercussão negativa, a cena foi posteriormente retirada da série e mensagens de alerta foram 
incluídas. Apesar dos aspectos negativos trazidos pela série e pelos desafios, eles também 
despertaram importantes discussões quanto à temática da morte, especialmente a 
autoprovocada. 
No tocante à faixa etária, de acordo com Lima e Kovács (2011), a sociedade tem 
dificuldade em falar com as crianças sobre morte, parte-se do pressuposto de que elas não 
entenderão e de que tudo o que for dito será prejudicial a elas. Exemplo disso são situações nas 
quais é necessário comunicar à criança sobre o falecimento de alguém e, no intuito de protegê- 
la, o comunicado é feito por meio do uso de metáforas: frequentemente, diz-se que a pessoa que 
faleceu foi morar no céu ou que virou uma estrelinha. Tais discursos podem dificultar ainda 
mais o processo de compreensão da morte e gerar sentimentos confusos à criança. Lima e 
Kovács (2011) apontam ainda: “nos casos em que a comunicação é bloqueada, o indizível tem 
mais chances de se manifestar por meio de sintomas disfuncionais ou de comportamentos 
destrutivos” (p. 394). E quando aquilo que é dito pelas crianças refere-se ao seu pensar em não 
mais viver? Como temos escutado tais manifestações? Será que temos escutado? 
Assim, de modo a tornar possível refletir sobre as questões trazidas aqui, este trabalho 
é dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, realiza-se uma discussão sobre o contexto 
histórico da infância, resgatando, para isso, as contribuições de importantes pensadores da área, 
22 
 
 
como o historiador Ariès (1978); na sequência, o capítulo também apresenta a compreensão de 
infância(s) à luz da fenomenologia, e contribui para a reflexão sobre esta a partir da ontologia 
heideggeriana. No segundo capítulo, reflete-se sobre o suicídio na infância, trazendo 
provocações sobre o que é possível pensar a respeito deste fenômeno na era da técnica, tecendo 
reflexões sobre como a fenomenologia pode contribuir para a discussão do suicídio na infância 
a partir dos existenciais propostos por Heidegger (1927/2016). Reflete-se, ainda, a respeito de 
quais aspectos ele pode se aproximar e se diferenciar do suicídio em outras faixas etárias. No 
terceiro capítulo, abordamos o método utilizado napesquisa, a fenomenologia hermenêutica. 
Na sequência, no capítulo quatro temos as entrevistas e interpretações a partir do círculo 
hermenêutico. E, por fim, apresentamos as considerações finais deste trabalho. 
Salientamos que esta dissertação foi produzida durante a pandemia de COVID-19, 
acompanhando os decretos estaduais e municipais que em diferentes momentos viabilizavam 
ou restringiam as medidas de biossegurança e, consequentemente, de isolamento social. Assim, 
mesmo em meio ao contexto pandêmico e de desmonte das políticas públicas de educação, 
seguimos fazendo pesquisa em uma universidade pública de excelência, contando, ainda, com 
o financiamento da CAPES que foi essencial para prosseguirmos. 
 
 
Capítulo 1 – De onde partimos: construções e desconstruções em torno da 
infância 
1.1 Contexto histórico da infância 
 
 
Neste capítulo, falaremos sobre o processo histórico de criação do sentimento de 
infância, de modo a buscarmos compreender quais caminhos e descaminhos foram trilhados 
para que chegássemos à infância como hoje conhecemos. Refletir sobre esse processo é 
23 
 
 
importante para compreendermos de que formas a infância de hoje foi socialmente construída 
e instituída e de qual compreensão de infância partimos neste trabalho. Será que a infância 
vivida no século XXI é experienciada da mesma maneira como era em séculos passados? Será 
que é possível partirmos de uma única noção de infância que dê conta de cada experiência de 
ser-como-criança? Essas são algumas questões que nos movem neste trabalho e sobre as quais 
buscaremos tecer possibilidades reflexivas neste capítulo e ao longo de toda dissertação. Para 
isso, partiremos da compreensão de que a infância é atravessada por aspectos geográficos, 
sociais, culturais e históricos que afetam diretamente a maneira como esse período da vida será 
visto. 
Dito isto, começaremos o nosso resgate do processo histórico da infância olhando para 
as contribuições trazidas no livro “História social da criança e da família”. O historiador Ariès 
(1978) voltou-se ao estudo da infância, debruçando-se, mais especificamente, no período entre 
o século XII e XVII. Segundo este historiador, até o século XII as condições precárias de 
higienização e saúde pública corroboraram para a alta mortalidade infantil e, como 
consequência, havia um desinvestimento nos cuidados destinados à infância. Compreendia-se, 
pois, que não valeria a pena destinar tempo e recursos a um ser que, devido à alta taxa de 
mortandade, teria pouca chance de sobreviver. Havia, de acordo com Ariès (1978): 
Contudo, um sentimento superficial da criança – a que chamei de “paparicação” – era 
reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era uma 
coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a criança pequena como um 
animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes 
acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, 
pois outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de 
anonimato (p.10). 
 
 
Ou seja, o estabelecimento de vínculos com as crianças se dava de outra maneira, elas 
eram vistas como seres frágeis, que poderiam morrer com grande facilidade e seriam 
substituídas caso isso acontecesse. Ariès (1978), aponta que o sentimento de “paparicação” era 
24 
 
 
provocado pelos traços infantis, mas não eram suficientes para modificar a indiferença existente 
em torno da infância, e esta invisibilização era decorrente da compreensão social de que se 
tratava de uma fase de transição e, por isso, seria desaconselhado destinar investimentos ou 
criar vínculos com os pequenos. Segundo Àriès (1978), essa invisibilização poderia ser 
percebida pela ausência da figura das crianças nas obras de arte. Apenas no século XIII as 
crianças começaram a ser retratadas, contudo, o seu estereótipo era o de um adulto, 
diferenciavam-se apenas no tamanho, que era reduzido. 
De acordo com o historiador, compreender a criança como um adulto em miniatura era 
algo que também podia ser percebido quando se observava o lugar social ocupado pela criança, 
o qual pouco se distinguia do adulto. De acordo com Frota (2007), os cuidados diferenciados 
que a criança recebia, quando os recebia, eram restritos aos primeiros anos de vida. A partir dos 
três ou quatro anos a criança seria inserida na sociedade tal qual um adulto, não havia uma 
adaptação, elas poderiam, por exemplo, participar de orgias ou testemunhar enforcamentos. 
Além disso, as crianças também eram susceptíveis a serem vítimas dos mesmos crimes 
imputados aos adultos, inclusive os sexuais, não havia aparatos legais que visassem a sua 
proteção, deixando-as desprotegidas. 
Ariès (1978) discorria que na Idade Média, se sobrevivessem aos anos iniciais, as 
crianças permaneciam sob os cuidados de suas famílias ou das amas até os sete ou nove anos. 
Tão logo deixassem de depender dos cuidados básicos proferidos por outrem, eram 
encaminhadas às casas de famílias estranhas onde trabalhavam como aprendizes por mais sete 
ou nove anos. Segundo Mattar (2015), nessa época, o trabalho era visto como importante para 
aquisição de um ofício ou aprendizagem de boas maneiras, considerava-se o serviço essencial 
à educação e isso independia da condição financeira daquela família. 
Entre os séculos XV e XVI, Oliveira (2008) relata que, com o desenvolvimento++ 
científico, a expansão comercial e as atividades artísticas da época, surgiram novas formas de 
25 
 
 
pensar a infância e a educação, que buscavam o respeito às particularidades da criança. Esse foi 
um período marcado por guerras e conflitos e, consequentemente, um significativo número de 
crianças em contextos de pobreza, violências e maus tratos. Compreendeu-se, pois, que a 
educação poderia ser um caminho para o desenvolvimento das crianças, tendo como alguns dos 
seus objetivos o desenvolvimento de bons costumes e ensinamentos religiosos. Para as crianças 
de camadas populares mais baixas, a educação ainda era vista como piedade. 
Ariès (1978) destaca que, em meados do século XVII, a mudança proporcionada com a 
institucionalização da educação tornou possível a aproximação do sentimento de infância e do 
sentimento de família, antes separados. Com essa mudança, a família tornou-se responsável 
pelo acompanhamento dos estudos dos filhos, escolha da escola e do preceptor. Mattar (2015) 
acrescenta que a ampliação na quantidade de escolas possibilitou que aos poucos deixasse de 
ser necessário que as crianças precisassem ir para longe para estudar e, por isso, ficassem mais 
próximas de suas famílias. 
Em contraponto às ideias apresentadas acima, outro importante pensador da infância foi 
o historiador Heywood (2004) que em sua obra, “Uma história da infância”, teceu críticas à 
compreensão de infância apresentada por Ariès (1978). Para o referido autor, Ariès teria sido 
simplista ao considerar a presença ou ausência da infância em épocas históricas como a Idade 
Média, pois, para Heywood (2004), a infância não deveria ser vista de forma enrijecida ou 
linear, mas sim como fluxo, uma vez que seria possível características observadas em 
determinadas épocas reaparecerem em momentos posteriores. Além disso, o autor critica o fato 
de Ariès (1978) ter se restringido à análise da infância a partir da Idade Média e aponta que os 
meios utilizados pelo historiador, como a iconografia, também foram simplistas. Heywood 
(2004) coloca que da forma como foi exposto por Ariès (1978) a infância poderia ser lida e 
compreendida de maneira superficial, o que poderia resultar em interpretações errôneas por 
leitores desavisados. Para o autor, a infância estava presente na Idade Média, mesmo que a 
26 
 
 
sociedade não tivesse tempo para ela, já se compreendia, por exemplo, que as percepções das 
crianças eram diferentes das dos adultos. 
Entre os séculos XVIIe XVIII, por meio de filósofos como John Locke (1632-1704) e 
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), importantes contribuições à infância foram tecidas. Frota 
(2007) nos conta que para Locke as crianças eram compreendidas como “folhas em branco”. O 
referido filósofo discordava da ideia de pecado original como algo inerente à criança e defendia 
que os pequenos aprendiam de forma passiva, sendo, por isso, possível inscrever neles o que se 
quisesse. Por outro lado, ainda segundo Frota (2007), Rousseau falava da infância como uma 
fase de pureza e ingenuidade, apontava que as crianças teriam uma natureza boa, sendo 
necessário deixá-las livres para seguirem seu curso natural, por isso defendia que a educação 
deveria ser dada em liberdade, dessa forma o curso natural seria seguido e as crianças se 
desenvolveriam plenamente. Para este filósofo, ao adulto caberia o papel de mediador entre a 
criança e a natureza. 
A partir do século XVIII, com a criação das fábricas, crianças foram exploradas em 
jornadas de trabalho extenuantes, que as colocavam em risco devido às péssimas condições das 
fábricas. Aguiar e Vasconcellos (2007) relatam que a relação entre criança e trabalho não era 
algo novo, no entanto, o contexto de exploração das fábricas trouxe “duas (então novas) 
perspectivas: a) embasa a necessidade de proteção social da infância mediante, inclusive, a 
intervenção estatal; e b) evidencia o caráter prejudicial das novas relações, processos, condições 
e ambientes de trabalho” (p. 278). Tal cenário possibilitou que aos poucos fossem criadas leis 
que limitassem os trabalhos das crianças, protegendo-as de situações que passaram a ser 
consideradas crimes, à exemplo das jornadas extensas e insalubres de trabalho e de crimes 
envolvendo violência sexual. 
No final do século XVIII e início do século XIX, um importante marco para a infância 
foi a Revolução Francesa, ocorrida na passagem do sistema de produção feudal para o 
27 
 
 
capitalista (Barbosa, 2013). A partir desta revolução, as Monarquias Absolutistas entraram em 
decadência com a concomitante perda de poder do clero e da nobreza e ascensão da burguesia. 
A sociedade passou então a se organizar pautada no liberalismo, que se propunha a delimitar a 
intervenção e o poder do Estado e possibilitar uma maior liberdade de mercado. 
Essa mudança reverberou na preocupação dos governos com o estado de bem-estar e 
com a educação das crianças. Assim, como um dos principais desdobramentos, o liberalismo 
trouxe a compreensão do sucesso e do fracasso como individuais, isto é, o homem seria 
responsável por aquilo que lhe aconteceria. Nessa lógica de responsabilização individual 
também se compreendia as desigualdades sociais entre classes como importantes para o avanço 
social, pois a competitividade seria necessária para o progresso. Barbosa (2013) nos explica 
que a partir disso tornou-se preciso a criação de dispositivos sociais que possibilitassem a 
formação individual, por isso, as escolas estavam inseridas em um modelo que acreditava ser 
por meio da racionalidade científica que se alcançaria o desenvolvimento da humanidade. Por 
não ser possível distanciar as crianças desse horizonte “epocal”, elas também foram 
atravessadas por ele. Esperava-se que os pequenos correspondessem aos ideais de sucesso, tais 
como bons rendimentos escolares. E, talvez tenha sido nessa época, frente à crença de que o 
sucesso estaria ao alcance de cada um, que o mito da infância feliz tenha ganhado força, 
De acordo com Heywood (2004), no século XIX a criança passa a ser estudada a partir 
do “olhar” romântico da infância. Ariès (1978) complementa que é nesse século que data o 
sentimento de infância, sendo essa uma invenção da modernidade. Frota (2007) diz que no 
ocidente o movimento de particularização da infância começou ainda no século XVIII, mas o 
cuidado com a infância apareceu somente no século XIX. 
No final do século XIX e início do século XX, a infância foi afetada pelo surgimento do 
movimento higienista, que trazia como proposta educar e ensinar novos hábitos visando 
melhorar a saúde individual e coletiva da população, entendendo que parte dos problemas 
28 
 
 
brasileiros eram de cunho social, a exemplo do saneamento básico. Durante esse movimento, 
devido a aspectos como a alta taxa de mortalidade e abandono infantil, a infância ganhou 
destaque. 
O higienismo defendia que o progresso da população dependia de investimentos e 
cuidados mais específicos às crianças e que por isso seria preciso intervenções por parte do 
Estado. Em decorrência disso, objetivando-se medidas preventivas que colaborassem para o 
desenvolvimento da sociedade, houve um maior incentivo na participação das crianças em 
espaços como escolas e institutos profissionalizantes que visavam retirá-las das ruas e educá- 
las, inclusive no que se refere às medidas de higiene. O movimento higienista também 
colaborou para a ampliação da assistência médica às famílias, em especial as gestantes e 
crianças. 
Para compreendermos mais sobre os desdobramentos da infância no século XX, é 
importante entendermos um pouco do cenário econômico e cultural da época. Barbosa (2013) 
nos conta que a recessão vivida pelo modelo capitalista na década de oitenta e a consequente 
ascensão do neoliberalismo, impactou em duas instituições responsáveis pela infância: a escola 
e a família. Em paralelo, observou-se, pois, que o desenvolvimento das tecnologias de 
informação “viabilizou o que se denomina globalização da cultura, ou seja, da produção, da 
distribuição e do consumo de bens e serviços voltados para o mercado mundial” (Barbosa, 2013, 
p. 6). Compreender isso é importante pois a partir dessa mudança as crianças também passaram 
a ser vistas como indivíduos inseridos na lógica de consumo e aquisição de produtos, sendo 
alvo, inclusive, dos apelos midiáticos e publicitários. Segundo a autora, esse processo de 
exposição das crianças ao consumo contribuiu para a sua adultização, uma vez que elas 
passaram a ser receptoras de informações que outrora eram exclusivas dos adultos. 
Ainda no século XX, após a recessão do capitalismo, o movimento neoliberal ganhou 
força. Este movimento compreendia a desigualdade social como importante e criticava a 
29 
 
 
intervenção do Estado na promoção da igualdade social pois defendia que isso retirava a 
liberdade dos cidadãos e a concorrência, aspectos que acreditava ser importante para a 
prosperidade. Como seres no mundo, as crianças não estavam alheias a essa lógica de 
competição e produtividade que com o passar do tempo vem ficando ainda mais forte. 
Assim, a diferenciação social e protetiva do lugar da criança e, ao mesmo tempo, a 
necessidade de mão de obra cada vez mais especializada fez nascer e crescer a busca por 
intervenções que pudessem garantir o desenvolvimento considerado adequado do infante. Foi 
nesse cenário que se tornou necessário o aparecimento de profissionais capacitados a garantir a 
normatividade desenvolvimentista da criança, surgindo, então, especialistas voltados para os 
primeiros anos, tais como pediatras, psicólogos e pedagogos. Esses profissionais visavam 
mapear o desenvolvimento da criança de modo a mensurar se a mesma estava apresentando as 
habilidades esperadas para a sua faixa etária e caso fosse percebida alguma incoerência que 
necessite de uma intervenção profissional, seria buscado caminhos para tal. 
Dito isso, observa-se que esforços foram concentrados na formação e capacitação de 
crianças, ainda em tenras idades, uma vez que o objetivo era, e ainda é, torná-las melhor 
preparadas para enfrentar a competição do mundo capitalista. Assim, o cuidado especializado 
de profissionais da infância tinha como propósito auxiliá-las a atingir o melhor resultado 
possível e sanar as atipicidades desenvolvimentistas que pudessem surgir. 
Nessa sequência, chegando ao século XXI encontramos uma sociedade em busca do 
controledo tempo, do corpo e da vida. Uma sociedade que continua compreendendo o sucesso 
e o fracasso como resultados de esforços individuais ou da falta deles. Nesse modo de pensar, 
acredita-se que para possuir boas condições de disputar o mercado de trabalho, as competências 
exigidas dos adultos devem começar a ser adquiridas na infância, isto resulta em crianças que 
cada vez mais cedo são inseridas em contextos de competição e cobrança. Han (2010) refere- 
se a esta sociedade como a do cansaço, e explica que estamos constantemente correndo em 
30 
 
 
busca de resultados e visando “dar conta”. Há uma briga com o tempo e uma cobrança 
demasiada por produtividade e resultados, falta lugar para parar e sentir. 
Bauman (2001), em sua obra Modernidade líquida, reflete sobre a fluidez e 
descartabilidade existente neste tempo. Por um lado, há uma busca por prazer e satisfação 
pessoal, por outro há um esvaziamento de sentidos. Como se tudo fosse fluido ou substituível. 
Dantas (2011) conta que a angústia é vista como patológica, tenta-se resolvê-la pela via da 
medicalização. À medida em que temos o avanço e maior acessibilidade das tecnologias de 
informação, essa se torna cada vez mais uma sociedade marcada pela espetacularização da vida. 
A vida “postável” não é qualquer vida, mas sim aquela marcada por conquistas, exposição da 
imagem e que parece não encontrar dificuldades em seu existir. Aquele que não corresponde a 
isto, sofre, sentindo-se desalojado em um mundo com tantos imperativos. Tal contexto também 
chega às crianças, que vão sendo invadidas por esses aspectos e confrontadas com os impactos 
das telas e de tantas imposições em torno do seu vir a ser, desde o seu corpo até o seu modo de 
existir. 
Paradoxalmente, enquanto espera-se de algumas uma alta performance, outra 
significativa parcela da população infantil, de condição social mais baixa, depara-se com 
impactos em sua formação provenientes da precarização da educação pública, do acesso à saúde 
e segurança. Os impactos oriundos das desigualdades socioeconômicas são diversos e por vezes 
incalculáveis. Dito isto, o que buscamos dar luz nestas breves reflexões foi no intuito de 
demonstrar o quanto a vivência da infância pode ser múltipla, complexa e atravessada por 
diversas questões sociais, econômicas e temporais. Assim, seguiremos neste trabalho na 
tentativa de lançar algumas possibilidades compreensivas dos modos de ser-como-criança nos 
tempos atuais. 
31 
 
 
1.2 Infância na fenomenologia 
 
 
Nesta pesquisa, o olhar para a infância se dará a partir da fenomenologia existencial. 
Aqui, propõe-se a construção de uma compreensão fenomenológica do ser-criança inspirada 
nas ideias do filósofo Martin Heidegger (1927/2016), mais especificamente da sua ontologia 
existencial. Assim, a maneira como nos propomos a pensar a infância neste trabalho será de 
forma plural, isto é, compreendemos que não existe uma única maneira de ser criança ou de 
vivenciar esse período da vida. Pois, como ser de abertura lançado no mundo, cada criança afeta 
e é afetada de uma maneira única, dessa forma, falar de infância no singular seria incorrer no 
erro de reduzi-las e desconsiderar a multiplicidade e complexidade de cada existir. 
Dito isto, é interessante relembrar que durante muitos anos as concepções acerca da 
infância se deram de forma engessada. Faz-se necessário, no entanto, pontuar que apesar da 
proposta deste trabalho ser apresentar outra maneira de pensar a infância, não temos o intuito 
de ignorar as teorias desenvolvimentistas e as suas contribuições, pois sabemos e reconhecemos 
a sua importância. Contudo, nos debruçaremos em uma outra possibilidade compreensiva da 
infância. Para isso, nos afastaremos da visão dos primeiros anos pautada nas fases descritas e 
marcadas por uma cronologia e indicadores de desenvolvimento que caracterizam certo modo 
de definir essa etapa da vida. Seguiremos outro caminho, buscando olhar o ser-como-criança, 
as experiências. 
Para começarmos, antes de nos determos às reflexões sobre a infância construídas a 
partir da hermenêutica, realizaremos um breve resgate de importantes contribuições à infância 
tecidas por fenomenólogos. Como ponto de partida, é válido relembrar que durante muito tempo 
a criança foi pensada e apresentada à sociedade como ser incompleto, conforme registros feitos 
por Ariès (1978), ou como folha em branco, como explicado por Rosseau e corroborado por 
behavioristas como Jonh Broadus Watson. Defendia-se que seria possível moldar a criança em 
32 
 
 
qualquer direção desejada (Feijoo, Gill & Protasio, 2012). Durante anos, os esforços 
concentravam-se em estabelecer o determinante da infância, mas o que de fato determina a 
infância? Seria possível predizer? Há quem diga que sim. Os “inativistas”, por exemplo, 
apontavam a genética como fator determinante, já os ambientalistas apostavam no ambiente e 
no social. E, em meio a esse embate, existiam os proponentes de um meio termo, a exemplo de 
Jean Piaget. Para esse importante nome do campo da educação, existiriam dois aspectos inatos 
fundamentais, seriam eles o estremecer frente ao som e o estremecer frente à falta de apoio 
(Feijoo, Gill & Protasio, 2012). 
Husserl (1900/2007), no entanto, discordava de tal afirmação. Para esse fenomenólogo, 
tanto estremecer quanto chorar e sugar são atos, logo, são intencionais, por fazerem referência 
a um comportar-se em relação a algo que não necessariamente tem uma finalidade, mas 
também, não por isso, significa desorientação (Feijoo, 2011). Para Husserl, pensar na 
intencionalidade dos atos das crianças na mais tenra idade é também pensar na “co- 
originalidade homem-mundo”. Tal reflexão contrapõe-se, ainda, à visão de que a criança 
primeiro nasce, para depois existir. Pensar em tempos diferentes para o surgimento do corpo 
biológico e do psiquismo seria retornar ao pensamento metafísico no qual acredita-se ser 
possível tal separação. 
Husserl (1935), escreveu o manuscrito intitulado “A criança, a primeira empatia”, no 
qual teve como objetivo descrever o primeiro ato dos pequenos no mundo dos homens, 
voltando-se, mais especificamente, para a empatia. Em seu texto, o filósofo se concentra em 
três pontos fundamentais no que se refere ao vivido pela criança, sendo eles: a corporeidade 
(enquanto carne e cinestesia), a relação mãe-bebê (intersubjetividade) e a linguagem. Nesse 
manuscrito, Husserl (1935) aponta que a criança originária, “dentro da carne materna”, possui 
uma “primordialidade” originária se formando em estado originário. O filósofo também fala da 
criança real, o recém-nascido, apontado como eu que produz experiência, e relata que o ponto 
33 
 
 
de partida na diferenciação de si e do outro seria o corpo. Dessa forma, acredita-se que: “o 
corpo é o ponto de partida da consciência de si para a consciência do outro. O autor discordava 
da ideia de Tábula rasa proposta por John Locke, na qual a criança era compreendida como 
“folha em branco”. Para Husserl (1935), a cinestesia e a percepção constituem o horizonte 
primordial da vida humana tanto no nascimento como antes dele, quando a criança ainda está 
no ventre materno. 
Nesse sentido, a criança-primordial seria para Husserl (1935) “um eu de hábitos 
superiores, mas sem reflexão sobre si, sem temporalidade formada, sem re-lembranças 
disponíveis, presente fluido entre retenção e protensão” (p. 375). O pensador compreendia a 
mãe como o elo entre a criança e o mundo, e essa relação se daria de forma desigual pois a mãe 
estaria voltada a satisfazer as necessidades do filho, inseri-lo no horizonte histórico e em sua 
comunidade, enquanto a criança buscaria apenas a satisfação de suas necessidades (Freitas, 
2015). Somente quando a criança desenvolve a consciência de si é que se torna possível 
desenvolver a consciência do outro e do mundo. 
Dessa forma, Husserl (1935) traz que o primeiro ato de empatia da criançasó seria 
possível quando o outro surgisse em seu horizonte primordial, ou seja, a partir do momento em 
que a criança consegue se diferenciar da sua mãe, percebê-la como um alter ego, uma carne 
estrangeira à sua própria carne. Para que essa diferenciação ocorra, o autor aponta a importância 
da linguagem, e explica que na relação com a mãe, a criança desperta para o mundo dos 
sentidos, sendo a imitação e o balbucio essenciais para esse processo de despertar. No processo 
de diferenciar-se da mãe, a criança começa a se tematizar como “eu”. Husserl (1935) não 
explicita como se daria esse processo de diferenciação, no entanto, na compreensão de 
Toulemont (1962), esse processo partiria do movimento de aproximação e afastamento corporal 
da mãe. 
34 
 
 
Para Heidegger (1928/2008), tanto o choro como a agitação são dirigidos para tais atos 
e se dão em um mundo, de forma “co-originária”. Outro exemplo disto é quando o bebê se 
assusta devido ao surgimento de algum desconforto que perturba o seu estado de ânimo, assim, 
a sua reação se dá no intuito de repelir tal desconforto e retornar ao estado anterior (Feijoo, Gill 
& Protásio). Isto é, há uma intencionalidade nesta ação e a todo momento “o ser” está em 
“relação homem-mundo”. É no mundo onde a existência acontece. Feijoo, Gill e Protásio 
(2012) completam: 
Em nossa visada, acerca do ser-aí da criança, defenderemos um posicionamento 
fenomenológico, ou seja, iniciaremos com a desconsideração de todas as hipostasias, 
seja ambientalista ou inativista, para então pensarmos o homem em sua co-originalidade 
com o mundo. A co-originalidade diz respeito ao fato de que nem é o mundo que 
posiciona o homem, tese ambientalista, nem é o homem que posiciona o mundo, tese 
inativista (p. 226). 
 
 
Em seus escritos, Merleau-Ponty (2001/2006) discordava da ideia negativa de criança 
como adulto em miniatura, ou ser em falta, e da infância tida como uma fase de transição até a 
chegada da idade adulta, quando a completude seria alcançada. O fenomenólogo discordava de 
algumas das ideias de Piaget (1964/1972) sobre a aprendizagem de crianças por meio da 
acomodação e assimilação, pois, nesta lógica, a criança assimilaria um novo comportamento 
somente quando estivesse pronta para tal, conforme postulado nos estágios de desenvolvimento. 
Para o fenomenólogo, a criança aprendia ou apreendia por meio da imitação conforme fosse 
possível para ela, havendo, posteriormente, a compreensão. O autor explica: “a criança imita 
primeiro o resultado da ação com seus próprios meios e consegue assim produzir os mesmos 
movimentos do modelo. [...] Imitar não é fazer como outrem, mas chegar ao mesmo resultado” 
(Merleau‐Ponty, 2001/2006, p. 25). 
Outra divergência entre o fenomenólogo e Piaget (1964/1972) diz respeito à visão do 
estudioso do desenvolvimento sobre os infantes como seres egocêntricos, voltados para si 
mesmos. Para Merleau-Ponty (2001/2006), a criança não é um “ser em-si”, pois se ignora tanto 
35 
 
 
quanto ignora os outros, assim, ao invés de egocêntrica, a criança seria marcada pelo caráter de 
“mundaneidade”. De acordo com o autor, na relação com a criança é importante que o adulto 
ocupe o lugar de mediador entre o infante e o mundo, dando os devidos contornos. Igualmente, 
é preciso que nesta relação o adulto ocupe um lugar de “presença ausente”, isto é, esteja 
próximo, mas não de forma autoritária, pois é necessário que a criança encontre espaço para 
realizar a distinção entre si e o outro. 
Ademais, na compreensão do filósofo, a existência seria marcada pelo seu caráter de 
indeterminação e possibilidade. Azevedo (2013) nos ajuda na compreensão do pensamento do 
autor ao explicar que: 
o desenvolvimento nunca se completa, uma vez que não há abandono da gênese, no 
sentido de superação de etapas, como se deixássemos algo de nós mesmos para trás 
quando entramos numa nova fase de vida, ou quando adquirimos um novo hábito ou 
comportamento (p. 60). 
 
Prosseguindo no percurso fenomenológico de pensar a infância, chegamos a Jean-Paul 
Sartre: considerado precursor do existencialismo moderno, os seus escritos foram importantes 
para ajudar a pensar esse momento da vida. Segundo Pretto (2013), o filósofo apontava que a 
criança vive a sua possibilidade de ser a partir dos grupos nos quais está inserida, em especial 
a família. Para o existencialista, a criança é fruto dessa família por ser ali onde ela aprenderá 
modos possíveis de “ser” e “existir” no mundo. No entanto, o pensador destaca que essa 
influência não se restringe à família, por haver um contexto social e cultural no qual ela está 
inserida e pelo qual é afetada direta ou indiretamente. Além disso, é posto a criança como ativa 
no processo de constituição de si, ou seja, aquilo que é passado pelo adulto não é simplesmente 
absorvido, de forma passiva. Ocorre, antes, uma singularização do que está posto, assim, “a 
criança torna-se esta ou aquela porque vive o universal como particular” (Sartre, 1957/2002, 
p.56). 
36 
 
 
Dessa forma, o infante, embora não reflita criticamente sobre o conteúdo apreendido do 
adulto – o que faz lembrar Merleau-Ponty quando discorria sobre a criança pequena (0 a 6 anos) 
ser mais vivencial do que reflexiva – não é simples receptora do seu contexto, mas é produtora 
dele e de si, mesmo que de maneira alienada. Para Sartre (1957/2002), 
ele é um eu de hábitos superiores, mas sem reflexão sobre si, sem temporalidade 
formada, sem re-lembranças disponíveis, presente fluido entre retenção e protensão 
momento é um envolvimento recíproco e contraditório do antes pelo depois; somos 
ainda o que vamos deixar de ser e já somos o que seremos. Vivemos nossa morte, 
morremos nossa vida” (Sartre, 1957/2002, p.15). 
 
 
Ele completava ao dizer que “nascer é, entre outras características, ocupar seu lugar, ou 
melhor, recebê-lo” (Sartre, 1943/2001, p.603). 
Após esse breve apanhado, chegamos a Martin Heidegger, com quem seguiremos daqui 
em diante. Heidegger, assim como alguns dos pensadores resgatados acima, não se voltou 
especificamente para o estudo da infância, mas em sua ontologia nos forneceu subsídios para 
que possamos refletir sobre tal período da vida. Em sua analítica da existência, o filósofo não 
busca responder o “que é” o ser, mas sim “como” é, ou seja, em suas obras, Heidegger 
(1927/2016) se interessava em compreender o “Ser” e não o reduzir a possíveis explicações e 
conceitos que o restringiriam. Resgatamos, ainda, que em sua ontologia Heidegger (1927/2016) 
se refere ao homem como Dasein (Ser-aí) e o faz por compreender que o termo “homem” traria 
consigo significados sedimentados. Para o filósofo, o “aí” do “ser-aí” refere-se ao mundo no 
qual o “ser” está lançado. 
Dito isto, neste trabalho, buscaremos aprofundar a compreensão do “ser-como-criança” 
a partir dos escritos heideggerianos e de outros autores que vêm se lançando nesse modo de 
pensar a infância, junto a eles, seguiremos na construção de possibilidades compreensivas da 
infância à luz da fenomenologia heideggeriana. Como ponto de partida desta discussão, no livro 
37 
 
 
“Introdução à filosofia”, escrito a partir de conferências e manuscritos produzidos por 
Heidegger (1982/2009), encontramos: 
As observações metodológicas que se seguem sobre o papel do ser-aí nas etapas iniciais 
da existência dos homens e nos primórdios dos povos precisam ser compreendidas a 
partir da interpretação em princípio ontológico fundamental do ser-aí, e não, por 
exemplo, como antropologia (p. 129). 
 
O filósofo fala sobre já ter sido questionado a respeito do porquê, na investigação do 
“ser-aí”, se voltar para a temática da morte e não para a do nascimento, ele explica que não 
considera tais questões como opostas. Heidegger refere-se às etapas iniciais da existência como 
“um outro ser-aí humano”. Pensar em determinantes biológicos seria seguir em um caminho 
contrário ao da compreensãodo homem como “ser-aí”, no qual o caráter ontológico é abertura. 
Gill (2015) reforça que, segundo o filósofo, “este modo de ser nos revela que aquilo que somos 
não possui em si nenhuma determinação a priori” (p. 97). 
Alinhado a esse pensamento, quando refletimos a infância à luz da hermenêutica nos 
desprendemos da ideia de que a criança carrega consigo modos de ser pré-determinados ou 
tampouco que seria um ser incompleto, cuja completude seria alcançada apenas na idade adulta. 
Ao nos inspirarmos na fenomenologia como caminho compreensivo, partimos do pressuposto 
de que a criança já existe em totalidade, constituída em historicidade e permeada de 
facticidades. Cytrynowicz (2000) nos ajuda na ampliação dessa reflexão quando explica que o 
desenvolvimento infantil seria como um caminhar que promove o descobrimento e 
encobrimento de possibilidades. A autora acrescenta que é quando caminhamos que 
descobrimos o caminho. Esse movimento de caminhar surge ao nascermos e nos acompanha 
até a morte, faz parte da existência, não se restringindo, por isso, a idade. 
Se escolhermos olhar para a infância a partir da fenomenologia, principalmente a 
hermenêutica heideggeriana, buscar determinantes seria retornar ao modo positivista. 
Buscamos a todo o momento outro caminho. A partir da hermenêutica, almejamos refletir sobre 
38 
 
 
os aspectos que rondam os anos iniciais da existência, não de forma categórica, mas como 
possibilidade compreensiva que nos aproxime do fenômeno ensejando o seu desvelamento. 
Um exemplo disso é o que vemos na prática clínica quando a criança atendida realiza 
um desenho. Se partirmos de outras perspectivas, o desenho provavelmente será interpretado a 
partir de manuais que trazem interpretações ou possibilidades interpretativas dadas 
previamente. Se partirmos da fenomenologia, a compreensão daquele desenho se dará junto à 
criança. Pediremos a ela que nos conte o que desenhou. Testemunhar o processo de produção 
de um desenho também pode nos indicar alguns caminhos compreensivos, por exemplo, quando 
observamos que a criança utilizou bastante força ao desenhar, rasgou o desenho ou chorou em 
um dado momento. Mas, mesmo quando testemunhamos a expressão da criança, não podemos 
fazer afirmações fechadas do que aquilo significou, para que possamos compreender, 
precisamos que ela desvele os sentidos daquele desenho. 
O que nos parece um episódio de raiva ou tristeza pode ter um sentido totalmente 
diferente para a criança. Estamos falando de algo que é da ordem do vivido, de como o outro 
experiencia. Assim, na tentativa de compreender a experiência infantil, podemos ser espelhos, 
refletir para a criança aquilo que estamos vendo e/ou as nossas impressões, de modo que a 
própria criança possa nos confirmar se estamos no caminho correto ou não. Não devemos partir 
de compreensões ou afirmações fechadas, pois, ao agirmos assim, incorremos no erro de, mais 
uma vez, reforçar o lugar de centralidade do adulto como aquele que sabe, detentor do 
conhecimento, mesmo quando, contraditoriamente, este seja sobre a criança. 
O “ser-aí” é entendido como um “essencialmente descobridor”, ou seja, na medida em 
que existe, já traz consigo o seu desvelamento. Como dito anteriormente, para Heidegger 
(1927/2016), a existência é dada em caráter de abertura, de indeterminação do ser, isto é, o 
Dasein é marcado pelo caráter de “poder-ser”, somente encerrando com a morte, o fim de todas 
as possibilidades. Desse modo, compreendemos que a criança é um ser incompleto, não porque 
39 
 
 
essa completude será alcançada na idade adulta, mas sim por ser a incompletude ontológica à 
existência. Nesta forma de compreensão, tanto as crianças como os adultos nunca atingirão a 
completude, pois, uma vez existentes, seriam eternos “vir-a-ser”, possibilidade esta somente 
esgotada diante da morte que, segundo Heidegger (1927/2016), marca a impossibilidade das 
possibilidades. 
De acordo com Feijoo e Feijoo (2015) “o filósofo alemão considera que esse caráter 
indeterminado do ser-aí humano não se altera, seja na criança, no adolescente, no adulto ou no 
idoso” (p.119), talvez por isso, Heidegger não se deteve a falar especificamente sobre a infância, 
pois o caráter ontológico característico do Dasein, de abertura, independe de sua idade. 
Contudo, não podemos partir da existência de crianças e adultos como isenta de diferenças, há 
modos de ser-como-criança que as distinguem dos modos de “ser-como-adulto”. 
Dito isto, em sua ontologia, Heidegger (1927/2016) discorre sobre aspectos ontológicos 
inerentes à existência. Para o autor, o ser só existe em um mundo, e por mundo o filósofo 
compreende toda trama de significados onde a existência se dá, marcada por facticidades. O 
mundo não seria compreendido como algo determinado previamente, mas sim como constituído 
numa relação de proximidade. Para a criança, o mundo “é aquele que, desde sempre e em cada 
caso, vai sendo apreendido em sua história original” (Cytrynowicz, 2018, p. 89). 
Assim, além de existir no mundo, o filósofo elencou como outro aspecto ontológico da 
existência o fato do ser necessariamente estar em relação, sendo, assim, “ser-no-mundo-com- 
os-outros”. Na vivência infantil, uma importante relação é a que se dá com os adultos. É possível 
observar que em algumas delas a criança pode ser vista por um aspecto negativo da falta ou 
incompletude. Isso acontece quando a criança é compreendida como aquela que não tem de 
querer, não sabe o que quer ou não sabe falar o que está ao seu redor (Cytrynowicz, 2018). 
Diante disso, questionamos se de fato seria a criança que não teria querer, saber ou fala 
suficientemente articulada para discorrer acerca do que está ao seu redor, ou o adulto que 
40 
 
 
encontra dificuldades em compreender as particularidades dos seus modos de ser e por isso 
considera que “falta um já é e sobra um vai ser” (Cytrynowicz, 2018, p. 91). Neste trabalho, 
dada as diferenças nos seus modos de ser, compreendemos que o mundo da criança é tão 
completo ou incompleto quanto o do adulto. 
Avançando na ontologia heideggeriana, o filósofo reflete que o modo do ser se 
relacionar se dá pela via do cuidado, somos “cuidado”, esta seria a forma de nos relacionarmos 
conosco e com o outro. O filósofo aponta três modos possíveis de cuidado: o substitutivo, o 
antepositivo e o indiferente. No cuidado substitutivo há uma tentativa de supressão do peso de 
ser do outro, numa tentativa de fazer pelo outro aquilo que somente o outro poderia fazer por 
si. Já no cuidado antepositivo, compreende-se que a responsabilidade de ser quem se é cabe a 
cada um, e é somente ao retirar-se desse lugar tutelar do outro que é possível a esse outro 
assumir o peso de ser quem ele é (Casanova, 2017). Além desses, outro modo de cuidado seria 
o indiferente, que se refere a um modo distanciado de “ser-com”, um “cuidado descuidado”. 
Ao ser-em-relação e encontrarem-se na peculiaridade existencial em que ainda estão nos 
primeiros contatos com o mundo, conhecendo-o, as crianças demandam um modo de cuidado 
tutelar, isto quer dizer que é preciso que haja a participação de responsáveis que tomem para si 
a responsabilidade por escolhas que a criança ainda não consegue fazer, pelo menos não 
sozinhas. Disto isto, apesar da autonomia do viver ser mais restrita na infância, espera-se que à 
medida em que vão crescendo, ganhem gradativamente mais autonomia. O adulto cuida da 
criança do modo que pode, isso significa dizer que ele não pode tudo, ou qualquer coisa, e não 
é ele quem decide os limites dos possíveis. Os limites e possibilidades serão atravessados pela 
história de cada um e também descortinados na própria relação adulto-criança. Dito isto, reflete- 
se que a segurança e acolhimento encontrada na relação com o adulto possibilitará uma maior 
segurança da criança e possibilidade de ampliação nos seus modos de estar no mundo e ser- 
com. Cytrynowicz (2018)comenta: 
41 
 
 
na falta do adulto comprometido, elas perdem a oportunidade de compreender o que 
ainda não conhecem de modo mais seguro, cabendo a elas se lançarem sem respaldo nas 
experiências desconhecidas ou evitá-las como ameaças. Desse modo, a falta do adulto 
pode provocar profundo sofrimento, inseguranças e frustrações, que marcam a 
percepção de si mesmas e sua compreensão do mundo em torno (p. 137). 
 
 
Refletimos, ainda, que por serem eternos vir-a-ser, assim como os adultos, é no lançar- 
se ao mundo que a criança explora e conhece o mundo, o outro e a si próprio. Na infância, 
Cytrynowicz (2018) nos conta que a vida escolar é uma oportunidade “tanto para a ampliação 
do convívio, como para a descoberta e o desenvolvimento de aptidões” (p. 128) 
Ao caminhar no mundo, a criança pode descobrir e encobrir possibilidades, “descortiná- 
las”. Esse caminhar acontece ao longo da vida e por isso não se restringe a uma só idade, nos 
acompanha durante a existência e perdura até o morrer, podendo ser solitário ou compartilhado. 
Melo (2021) reflete que no caminhar compartilhado do existir, há uma troca natural e incessante 
entre os caminhantes, onde cada um carrega consigo um pouco do outro. A autora conta que, 
como recém-chegada ao mundo, no início da vida a criança é mais dependente, mas, conforme 
cresce, a dependência diminui, no entanto, a necessidade de companhia perdura por toda a vida. 
No avançar do tempo da vida é possível que a criança encontre outros caminhantes, deixe alguns 
pelo caminho, mas siga em companhia, ainda que, como nos disse Melo (2021), a dependência 
tenda a diminuir. 
As possibilidades de ser como criança são muitas, falamos de modos de ser-no-mundo 
cuja existência é atravessada pelo horizonte histórico de sentidos, é “epocal”. Olhando 
especificamente para o Brasil, vivemos em meio a um contexto de extrema desigualdade, cada 
vez mais demarcada nos últimos anos devido à vivência de crises políticas, sanitárias e 
econômicas. Não é possível deslocar a criança do contexto que a circunda, uma vez ser no 
mundo, elas também são interpeladas pelos sentidos oriundos desse mundo, elas afetam e são 
42 
 
 
afetadas a todo momento. Assim, os próprios sentidos do ser criança são dados no existir, por 
isso são múltiplos e mutáveis. Cytrynowicz (2018) acrescenta: 
O entendimento de cada criança envolve o seu mundo e que para falar sobre a infância 
é necessário partir do sentido e dos significados próprios que se mostram sempre nas 
relações e não partir de pensamentos pré-concebidos ou de pressupostos teóricos 
subjetivos (p. 37). 
 
 
Em sua ontologia, Heidegger (1927/2016) explica que o “ser-no-mundo” e “ser-com” 
do Dasein é atravessado pelo “corporar”, é por ele que o Dasein assume seu caráter de poder 
ser e de se expressar. Dito isto, pensando, ainda, nos modos de ser-como-criança encontramos 
o brincar. É importante explicar que o brincar não é exclusivo da infância, ele é inerente à 
existência humana, sendo este “um modo de relação que descobre um mundo significativo e 
original e cria histórias pessoais” (Cytrynowicz, 2018, p. 114). Ao brincar pertence tanto a 
imaginação, referente aquilo que é pensado e criado, como a realidade, que diz do vivido. 
Assim, é possível encontrar no brincar a liberdade de poder-ser. 
Na busca por compreender a infância e as distinções no modo de ser-como-criança e 
ser-como-adulto, Cytrynowicz (2000) lança reflexões acerca da temporalidade. A autora 
explica que na infância escapa-se ao Cronos, ao tempo marcado por relógios e calendários. Para 
as crianças, se destaca o Kairós, o tempo do vivido, marcado pela relação com a experiência e 
que não pode ser apreendido racionalmente. Além destes, Araújo, Costa e Frota (2020) 
acrescentam mais um tempo à infância: “aión”. seria este o tempo que parece ser da eternidade, 
daquilo que, na experiência infantil, pode ser compreendido como “sempre” ou “nunca”. Neste 
último, a criança pode significar as suas experiências como algo que permanecerá eternamente 
da mesma maneira. Dito isto, qual seria o tempo da infância? Não seria ele algo único e comum 
a todos? Vamos pensar... 
Em primeiro lugar, o que é o tempo? Horas, minutos, segundos? Sabemos das suas 
unidades de medida e da importância de marcá-lo quando precisamos acompanhar o tempo de 
43 
 
 
preparo de algumas comidas ou o tempo necessário para irmos de um lugar a outro. Esse é o 
tempo Cronos. Enquanto adultos, esse é o tempo que os norteia. Mas será que ao fazermos uma 
atividade da qual gostamos temos a percepção de que o tempo passa na mesma velocidade de 
se estivéssemos fazendo algo puramente por obrigação? Araújo, Costa e Frota (2020) acreditam 
que não, e explicam que a sensação da passagem de tempo é algo atravessado pela experiência 
e pelos sentidos que ali estão envolvidos, este seria o tempo“aiónico”. De acordo com as 
autoras, esse é o tempo da infância, ou, pelo menos, o mais característico dela. 
A infância é o tempo do “já, da presença imediata do agora” (Cytrynowicz, 2000, p. 
70). Isso fica ainda mais perceptível quando pensamos na dificuldade de explicar a uma criança 
quanto tempo falta até a chegada de uma data que ela espera com expectativa, a exemplo do 
Natal ou do seu aniversário. É possível que, a cada dia, a criança, aguardando aquela data, 
questione se “já é hoje?” ou “é amanhã?”. Quanto menor a criança, explicar que faltam semanas 
ou meses dificilmente extinguirá os questionamentos que são motivados pelo desejo de que 
aquele momento aguardado logo chegue. Por serem períodos de tempo mais longos, ela 
provavelmente ainda não terá recursos suficientes para compreender. A criança não quer 
esperar, quer logo a experiência e a satisfação do acontecer. Em Zollikon, Heidegger questiona 
se existiria relação entre ser e tempo, o autor explica que o “agora tem o caráter do que está 
presente. Mas acaba de é passado e o logo a seguir é o que chega. Ambos são, pois um não- 
ser diferente, isto é – um ainda não ser – e um não ser mais” (p. 62). 
Melo (2021) explica que: 
 
 
O tempo da criança é o agora, ela é imediatista. A cada situação nova, ela tem uma 
vivência particular do tempo muito diferente daquela do adulto que concebe presente, 
passado e futuro linearmente. Para a criança, o que está sempre em evidência é o 
presente. Passado e futuro estão no agora. O sentimento do imediato é que a faz viver 
com tanta intensidade, pois só há uma possibilidade de viver as coisas do mundo: no 
tempo presente (pp. 92-93). 
44 
 
 
Frota (2018), na difícil e bonita tarefa de pensar a infância a partir de Heidegger 
(1927/2016), resgata que o filósofo, em suas obras, refere-se apenas ao homem como Dasein e 
que esta teria sido uma forma de romper com a temporalidade linear do existir. A autora 
questiona se é possível a infância ser um momento existencial para além do cronológico. Sobre 
isso, ela reflete: 
 
A infância é estrangeira num mundo da técnica. Como tal, fala uma língua nova; pensa 
o que não se pensa; transita por onde não se costuma andar; inventa, cria, rompe. A 
infância vive num tempo que comporta o Kronos e o Aion. Não se regula pelo relógio, 
somente. Assim, não se esgota em si mesma e sim, no esvaziamento acontecimental e 
da experiência (p. 86). 
 
 
A partir disso, é válido refletir a que modelo de sociedade serve pensar a infância a partir 
de etapas da vida encaixotadas em modos de ser já estabelecidos e esperados. Não 
conseguiremos compreender a infância se continuarmos a olhar para ela em busca de adultos 
ou do que ainda falta para tornar-se um. Se assim fizermos, encontraremos somente a falta. 
Falta esta que não se dá pela inferioridade daquele que ainda vai crescer, mas sim por se tratar 
de um “ser-aí” possuidor de um modo de existir único, e não inferior. Talvez por isso Heidegger 
(1927/2016) não tenha se detido a esmiuçar o modo de ser criança. Buscar singularizar

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