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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia COMPREENSÕES FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAIS ACERCA DA EXPERIÊNCIA DO SUICÍDIO NA INFÂNCIA: “E EXISTE?” Manuella Bila de Melo Natal 2022 ii Manuella Bila de Melo COMPREENSÕES FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAIS ACERCA DA EXPERIÊNCIA DO SUICÍDIO NA INFÂNCIA: “E EXISTE?” Dissertação elaborada sob orientação da Profa. Dra. Ana Karina Silva Azevedo e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicolgia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Natal 2022 iii Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Melo, Manuella Bila de. Compreensões fenomenológico-existenciais acerca da experiência suicídio na infância: "E existe?" / Manuella Bila de Melo. - 2022. 165f.: il. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2022. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Karina Silva Azevedo. 1. Suicídio. 2. Infância. 3. Pesquisa Fenomenológica. I. Azevedo, Ana Karina Silva. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9 Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748 iv v A Vida e a Morte O que é a vida e a morte Aquela infernal inimiga A vida é o sorriso E a morte da vida a guarida A morte tem os desgostos A vida tem os felizes A cova tem a tristeza E a vida tem as raízes A vida e a morte são O sorriso lisonjeiro E o amor tem o navio E o navio o marinheiro (Florbela Espanca, 1903, escrito aos oito anos de idade) vi Agradecimentos À Deus, aquele que é responsável por tornar possível o que tantas vezes me pareceu impossível. Aos meus pais, Ana Flávia e Kilter, por sempre terem sido meu maior sustento, suporte e apoio. Aos meus irmãos, Isabelle e Renato, que sempre foram a minha certeza de companhia na vida e de ajuda quando precisei. Aos meus sobrinhos, Letícia e Miguel, também é por vocês que eu me comprometo a sempre fazer o que estiver ao meu alcance para tentar tornar o mundo um lugar mais sensível e acolhedor para as crianças. Aos meus amigos, que durante todo o percurso do mestrado se fizeram presente e me ajudaram das formas que puderam. Vocês foram essenciais! À Laís Maia, minha amiga, pela paciência de ler e reler o meu trabalho, na generosa, cansativa e importante tarefa de me ajudar a revisá-lo. À Tatiane Rocha, amiga da vida, por ter sido uma das pessoas que mais ouviu as minhas angústias ao longo do mestrado e esteve comigo quando precisei, inclusive muito antes da psicologia ter cruzado o meu caminho. À Ana Karina, minha orientadora que se tornou amiga, pela paciência, generosidade e inspiração. Obrigada por ter me apoiado em todos os momentos, por ter sido compreensão e inspiração constante, por ter me dado contornos quando precisei deles, por ter seguido acreditando e me fazendo acreditar! À Symone Melo, leitora-professora-amiga, por ter me acompanhado desde a graduação e ter seguido comigo durante todo o percurso do mestrado, contribuindo de forma tão pertinente e sensível para o meu trabalho. Sou grata pelos nossos caminhos terem se cruzado! O meu modo de olhar a infância e a psicóloga que eu sou hoje tem uma enorme marca sua (que sorte a minha)! À Débora e Vanessa, minhas amigas de mestrado, por terem tornado esse percurso menos solitário, mesmo com ele acontecendo a maior parte do tempo durante uma pandemia, vocês foram suporte e tornaram tudo mais leve. À Carolina Lucena, minha psicóloga da época, que esteve comigo durante o meu processo de refletir sobre a escolha do mestrado, me ajudou a acolher e dar contornos aos meus momentos de angústia, foi essencial para que eu seguisse acreditando. vii À Ana Frota, Vera Cury, Sílvia Morais e Ana Maux, por terem aceitado participar e contribuir nas minhas bancas de qualificação, o olhar de cada uma de vocês foi importante para os caminhos seguidos nesta pesquisa. À Maria Júlia Kovács, por tão gentilmente ter aceitado o convite para compor a banca da minha defesa, compartilhando de forma extremamente generosa os seus conhecimentos sobre morte e o fenômeno do suicídio. Ao GESDH e a todos que compõe esta base de pesquisa, aprendo muito com cada um! À professora doutora Elza Dutra, por ter sido uma grande apoiadora do meu desejo em tentar o mestrado e ser inspiração nos estudos sobre o suicídio. A todos aqueles que cruzaram o meu caminho na clínica: crianças, adolescentes e adultos, tenham certeza de que a Manuella que eu sou hoje, dentro e fora da psicologia e da pesquisa, foi transformada pelo encontro com vocês e carrega um tanto de cada um! À cada uma das crianças participantes da pesquisa, que tão gentilmente me permitiram ser uma escutadora de suas histórias, me entregando aquilo que de mais precioso possuíam: a confiança. Vocês me deram fôlego para seguir no mestrado, ainda mais implicada na certeza de que se faz necessário falarmos, ampliarmos o nosso olhar e acolhermos as experiências, às vezes bastante dolorosas, do ser criança. Espero conseguir sensibilizar outras pessoas para a importância de ouvi-las! Comprometo-me a seguir sempre tentando! viii Sumário Lista de Figuras......................................................................................................................... vii Lista de Tabelas ...................................................................................................................... viii Resumo ..................................................................................................................................... ix Abstract......................................................................................................................................x Introdução ................................................................................................................................ 13 Capítulo 1 – De onde partimos: construções e desconstruções em torno da infância.............. 22 1.1 Contexto histórico da infância ...................................................................................... 22 1.2 Infância na fenomenologia ............................................................................................ 31 Capítulo 2 – Suicídio na infância: “E existe?” ......................................................................... 46 Capítulo 3 – Método: Caminho de desvelamentos .................................................................. 62 3.1 Participantes .................................................................................................................. 68 3.2. Procedimentos e passos metodológicos ....................................................................... 71 Capítulo 4 – Análise dos encontros ......................................................................................... 78 4.1 Conhecendo a primeira participante: momentos com os pais ....................................... 79 4.2 O que nos conta Hermione? .......................................................................................... 87 4.3 Conhecendo a segunda participante: momento com a mãe ......................................... 103 4.4 O que nos conta Wendy? .............................................................................................110 Capítulo 5 – Considerações finais .......................................................................................... 139 Referências ............................................................................................................................. 145 Anexos ................................................................................................................................... 154 ix Lista de Figuras Figura 1 – Círculo hermenêutico heideggeriano adaptado por Azevedo (2013) ..................... 63 Figura 2 – Desenho de Hermione "Insegurança" ..................................................................... 91 Figura 3 – Desenho de Hermione "Comédia" .......................................................................... 92 Figura 4 – Desenho de Hermione "Sad" .................................................................................. 93 x Lista de Tabelas Tabela 1 - Lesões autoprovocadas por faixa etária e por meios mais utilizados..................... 13 xi Resumo O suicídio na infância é um fenômeno invisibilizado e atravessado por diversos tabus, dentre eles o mito da infância feliz, que vê essa fase da vida como marcada apenas por alegria, sonhos, leveza, e isenta de dores e sofrimentos. Na contramão desse entendimento, a presente dissertação de mestrado tem como objetivo compreender a experiência do suicídio infantil, a partir das narrativas de crianças que expressaram ideação ou tentaram suicídio. Metodologicamente, esta pesquisa se ancora na fenomenologia hermenêutica heideggeriana, utilizando como possibilidade interpretativa o Círculo Hermenêutico heideggeriano. Partindo disso, os momentos interpretativos dos encontros com as crianças aconteceram por meio da escrita narrativa do encontro com a criança e do diário de afetação produzido pela pesquisadora a respeito das suas compreensões sobre os encontros. O diário marca o caminho que é o próprio método e é a ele que a pesquisadora retorna para ter como apoio na escrita dos textos analíticos. Assim, no momento posterior aos encontros, iniciou-se a análise do material registrado, que envolveu as anotações da pesquisadora e as produções realizadas pela criança. Diante disso, foi adotado um modo fenomenológico-hermenêutico de fazer pesquisa. Os resultados apresentam trechos dos quatro encontros ocorridos com duas crianças participantes, de 10 e 11 anos, aqui chamadas de Hermione e Wendy. Em seus discursos, as meninas desvelaram histórias que traziam a solidão como marca de um tempo e narrativas atravessadas por violências e conflitos. Frente à inospitalidade de um mundo com muitas convocações em torno dos modos de ser esperados e a dificuldade em encontrar familiaridade e pertencimento, a existência tornava-se fardo e a morte apresentava-se na trama de significados como um caminho na lida com o sofrimento. Palavras-chave: Suicídio; Infância; Morte; Sofrimento; Pesquisa Fenomenológica. xii Abstract Suicide in childhood is an invisible phenomenon crossed by several taboos, among them the myth of happy childhood, which sees this phase of life as marked only by joy, dreams, lightness, and free of pain and suffering. In opposition to this understanding, the present master's thesis aims to understand the experience of childhood suicide, from the narratives of children who have expressed suicidal ideation or attempted suicide. Methodologically, this research is anchored in Heideggerian hermeneutic phenomenology, using as interpretative possibility the Heideggerian Hermeneutic Circle. Based on this, the interpretative moments of the encounters with the children happened through the narrative writing of the encounter with the child and the affect diary produced by the researcher regarding her understandings about the encounters. The diary marks the path that is the method itself and it is to it that the researcher returns to have as support in the writing of the analytical texts. Thus, after the meetings, the analysis of the material recorded began, which involved the researcher's notes and the productions made by the child. In this way, a phenomenological-hermeneutic way of doing research was adopted. The results present excerpts from four meetings with two participating children, ages 10 and 11, referred to here as Hermione and Wendy. In their speeches, the girls revealed stories that brought loneliness as a mark of a time and narratives crossed by violence and conflicts. Facing the inhospitality of a world with many calls around the expected ways of being and the difficulty in finding familiarity and belonging, existence became a burden and death was presented in the weft of meanings as a way to deal with suffering. Keywords: Suicide; Childhood; Death; Suffering; Phenomenological Research 13 Introdução Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem. (Mario Quintana) Ainda criança, reflexões sobre a existência e a finitude me acompanhavam e me inquietavam. Questionava-me sobre o caráter ontológico de ser-para-a-morte quando sequer imaginava que esse termo pudesse existir. O que eu sabia a partir da minha vivência é que não existiam espaços onde as crianças pudessem falar sobre o morrer e, se existiam, eram permeados de ressalvas, havia sempre um limite. Os não ditos eram muitos e me inquietavam. Cresci e segui no caminho de reflexão sobre a existência. Formei-me em Psicologia e, durante quatro dos cinco anos da graduação, cursados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), participei de um projeto de extensão chamado “Acolher”, cuja proposta é oferecer atendimentos psicológicos a crianças e a adolescentes em situação de acolhimento institucional na cidade de Natal/RN. Por meio desse projeto, acompanhei histórias de crianças que vivenciaram as mais diversas situações de violação de direitos e que muito novas experienciaram a inospitalidade do mundo. Dessas, algumas expressavam o seu sofrimento por meio da automutilação e outras encontravam na morte um caminho para tentar apaziguar as dores da existência. Atrelado a essa experiência, nos estágios de quarto e quinto ano da graduação em Psicologia acompanhei pessoas que buscavam plantão psicológico ou psicoterapia trazendo como demanda pensamentos e/ou tentativas prévias de suicídio, ato de pôr fim à própria vida. Em algumas histórias, as narrativas apontam a infância como período em que o desejo de morte havia surgido, no entanto, apenas na idade adulta estava sendo possível falar sobre ele. Ainda 14 assim, eu percebia uma enorme dificuldade nesse falar, por vezes ele só surgia após o avançar do processo terapêutico. Talvez, antes de falar sobre algo tão profundo, fosse preciso certificar- se de que era possível confiar naquele espaço e naquela relação que se apresentava trazendo a possibilidade do falar e ser escutado, sem julgamentos ou restrições. Essa dificuldade também pode sinalizar para o quanto essa temática ainda é um tabu em nossa sociedade. De toda forma, inquietava-me pensar na experiência daquelas pessoas que conviviam com aquele sofrimento há tanto tempo. Um sofrimento calado, mas não menos sentido. A partir da escuta dessas narrativas, voltei-me para compreensão dos dados estatísticos acerca do suicídio no Brasil, principalmente no que se refere a esse fenômeno na infância. A seguir, trarei alguns desses dados de modo a iniciarmos as reflexões sobre o que já sabemos, ou não, a respeito desta temática. Ao lançar o nosso olhar para os dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2019), encontramos que, no mundo, em 2019, ocorreram mais de 700 mil suicídios. No Brasil, foi apontado a taxa de 6,8 suicídios a cada 100 mil habitantes, aumentando para 10,3quando analisados somente os suicídios de homens e caindo para 2,8 ao olhar exclusivamente para as mulheres. No que se refere ao suicídio entre jovens, a OMS (2018) apontou que, no mundo, o suicídio é a segunda maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos e a terceira entre jovens de 15 a 19 anos. No Brasil, foram registradas, entre 2011 e 2016, 48.204 tentativas de suicídio entre jovens de 10 a 19 anos. De acordo com o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014), no que se refere à população jovem (15 a 19 anos) observou-se que entre os anos de 1980 e 2012 houve um crescimento de 62,5% nos suicídios, ocorrendo um aumento nesse ritmo após a virada de século. No entanto, percebe-se que há uma ausência de dados referentes ao suicídio de crianças. A exemplo disso, o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014) distingue seus informes apenas entre jovens, de 15 a 29 anos, e não-jovens, menores de 15 e maiores de 29 anos. Devido a essa divisão, as crianças 15 ficam incluídas no grupo dos não-jovens, o que dificulta uma maior precisão acerca do suicídio na infância. Apesar dessa escassez de dados, Neves (2019) aponta que o Centro de Prevenção e Controle de Doenças estima que ocorra dois suicídios de criança por cada um milhão. Com a Portaria nº 1.271, de 6 de junho de 2014, passou a ser obrigatório que os serviços públicos e privados de saúde realizassem a notificação de casos de suicídio e tentativa de suicídio. Em 17 de fevereiro de 2016, foi lançada uma nova portaria, nº 204, com o objetivo de ampliar a obrigatoriedade dessas notificações para estabelecimentos públicos e privados de educação, cuidado coletivo e instituições de pesquisa, assim como serviços da rede de assistência social e conselhos tutelares. Devido a essas novas medidas, espera-se que nos próximos anos haja um maior acompanhamento dos dados relativos ao suicídio e tentativas de suicídio no Brasil. Já como efeito dessas portarias, a partir dos dados obtidos por meio das notificações compulsórias, o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) divulgou em seu último boletim epidemiológico (Brasil, 2021) os números das lesões autoprovocadas e a faixa etária. Nessa análise, observou-se que apenas no ano de 2021 foram notificados 6.727 casos de lesões autoprovocadas na população de 0 a 14 anos. Na Tabela 1, podemos acompanhar alguns desses números: Tabela 1 Lesões autoprovocadas por faixa etária e por meios mais utilizados 16 Idade Lesão autoprovocada (total) Enforcamento Objetos perfurocortantes Envenenamento Arma de fogo <1 ano 487 30 72 230 5 1-4 anos 505 5 17 215 215 5-9 anos 341 19 99 99 2 10-14 anos 5.394 209 1.522 2.767 25 Fonte: Datasus (Brasil, 2021). O Datasus, no entanto, não especifica quais critérios são utilizados para a realização dessas notificações. É difícil precisar, por exemplo, os significados de lesões autoprovocadas em crianças pequenas, especialmente na faixa etária que vai até os quatro anos. Seria possível existir intenção nessas autolesões? É algo a ser questionado. Contudo, neste momento, o objetivo aqui é refletir quanto à faixa etária que detém os números mais significativos de lesões autoprovocadas, aquela dos 10 aos 14 anos. Questiona-se, pois, a possibilidade desses números apontarem para tentativas de suicídio subnotificadas, uma vez que, segundo o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014), o suicídio na faixa etária dos 10 aos 14 anos cresceu 40% entre os anos de 2002 e 2012. No que se refere aos estudos publicados, apesar das estatísticas indicarem o aumento de lesões autoprovocadas e suicídio entre jovens, ao olhar especificamente para o público infantil percebe-se uma limitação nos trabalhos científicos que contemplem essa temática. A exemplo disso, em um levantamento bibliográfico realizado na base de dados SciELO (Scientific Eletronic Library Online), no primeiro semestre de 2022, utilizou-se os descritores “Suicide AND children” e foram encontrados 118 artigos, destes, apenas 34 tratavam da relação entre suicídio e infância. Nos artigos selecionados, observou-se que todos apresentavam estudos 17 transversais, epidemiológicos e/ou quantitativos, nenhum era qualitativo, assim como não foram encontrados estudos a partir da fenomenologia hermenêutica, o que também justifica a importância da realização de pesquisas que tenham esse olhar compreensivo para o fenômeno do suicídio na infância. De acordo com Lemos e Salles (2015), falta a análise qualitativa dos dados levantados em pesquisas que se propõem a estudar o suicídio infantil. De acordo com Freitas (2015): Na perspectiva histórica, há poucos registros sobre a infância desde o ponto de vista da criança, até mesmo devido ao fato de que esta, durante muito tempo, não foi valorizada a ponto de ter sua produção cuidada e preservada como interessante para compreensão de sua condição (p. 35). Assim, reflete-se que a ausência de trabalhos que tenham como objetivo compreender o sofrimento infantil a partir da narrativa daquele que vive essa experiência, a criança, denuncia, também, a dificuldade que a sociedade tem de escutar o que elas têm a dizer. É válido questionar de onde vem essa dificuldade. Será que nunca soubemos ouvir as crianças ou será que essa habilidade em algum momento foi perdida? É interessante perceber que quando olhamos para o significado etimológico da palavra “infância”, encontramos que no latim fan significa falante e in traz a negação ao verbo, ou seja, infância significa ausência de fala, refere-se aquele que ainda não é capaz de falar (Pagni, 2010). Talvez esse significado ajude a entender a ausência de estudos que se propõem a ouvir as crianças e, assim, a partir delas e com elas, tentar compreender os sentidos que elas atribuem às suas experiências. Para Angerami-Camon (2012) essa dificuldade teria relação com o paradoxo existente na temática do “desespero infantil”, uma vez que socialmente é nessa faixa etária que são depositadas as esperanças em torno de um novo tempo e um novo mundo. Para este autor, há uma descrença na compreensão infantil da morte, que atrelado à baixa letalidade dos meios por elas usados pode corroborar para a dificuldade na crença da intenção do ato suicida por parte das crianças e, consequentemente, no aumento das subnotificações. Além desses 18 atravessamentos, questiona-se: há lugar em nossa sociedade para o sofrimento infantil? O que esse sofrimento pode denunciar? Han (2015) indica que vivemos no que ele denomina de sociedade do cansaço. De acordo com o filósofo, há um excesso de positividade que nos coloca em movimento em busca de desempenho e produtividade. Assim, em meio a correria para dar conta de diversas atividades, nos tornamos cansados, ocupados e ausentes. Han (2021) também reflete que vivemos em uma sociedade “que busca se desonerar de toda forma de negatividade” (p.11), ou seja, segundo o filósofo, evitamos a dor, ainda que para isso seja preciso buscar caminhos de anestesia. Para o autor, “a nossa relação com a dor mostra em que sociedade vivemos. Dores são cifras. Elas contêm a chave para o entendimento de toda a sociedade” (p. 9). Em um mundo que diz que “querer é poder”, que os limites existem para serem ultrapassados, não respeitados, sofrimento é fraqueza e ninguém quer ser fraco. As dores são anestesiadas. O pensamento vigente torna-se o “calculante”, no imperativo do ter para ser, há muito espaço para a racionalização e pouco para o sentir. Busca-se controle e previsibilidade. É nesse horizonte “epocal” que as crianças existem e, portanto, são afetadas. Compreende-se que, em meio a tantos silenciamentos e anestesias, por meio de automutilação e ideação suicida, algumas crianças desvelam sofrimentos. Diante disso, a presente dissertação tem como objetivo compreender o suicídio infantila partir da experiência de crianças que expressaram ideação ou tentaram suicídio. Para isso, parte-se do entendimento: ir ao encontro da experiência daquele que vive tem consonância com o modo de fazer pesquisa na fenomenologia, a qual compreende a importância de lançar luz ao fenômeno de modo que ele possa se desvelar. Assim, realizar pesquisa com criança a partir da fenomenologia tem como premissa a convocação ao “retorno às coisas mesmas”. Voltamos à experiência daquele que a vive, nesse caso as crianças, para, assim, permitir que elas possam nos contar sobre as suas próprias experiências, com os sentidos e afetações que, por serem delas, 19 somente elas poderão de fato compartilhá-las. Neste trabalho, nos inspiramos na hermenêutica proposta pelo filósofo Martin Heidegger (1927/2016) a qual pensa que o ser humano se constitui como tal existindo e, por isso, estará em constante relação com o mundo, consigo mesmo e com os outros (Maux & Dutra, 2017). Para isso, é importante observar que a relação da sociedade com a temática do suicídio é uma questão que vem sofrendo alterações ao longo dos anos e, ainda hoje, é vista como um grande tabu. Por muito tempo, falar sobre suicídio era algo proibido, acreditava-se que o falar sobre este fenômeno provocaria o desencadeamento de novos suicídios. Esse pensamento foi suscitado após a publicação, no ano de 1774, da obra “Os sofrimentos do jovem Werther”, escrita por Goethe. Essa obra traz a história de uma desilusão amorosa vivida pelo personagem principal, culminando na morte dele por suicídio. Nos anos que se sucederam a essa publicação, percebeu-se uma onda de suicídios pela Europa e, de início, não houve confirmação quanto a relação com a história. No entanto, após o suicídio de Marilyn Monroe em 1962, nos Estados Unidos, as taxas de suicídio voltaram a subir no país e, em 1974, em menção à obra de Goethe, criou-se o termo “Efeito Werther”, referindo-se ao suicídio por contágio. Ou seja, quando, após o acontecimento de um suicídio, outros passam a acontecer e por vezes com características semelhantes entre eles. A partir disso, falar sobre a morte autoprovocada tornou-se um assunto proibido. Autores como Fink, Santaella-Tenorio e Keyes (2018) informam que “dependendo da identificação das pessoas com aquele que se matou e da exposição da notícia na mídia, especialmente se envolver uma personalidade conhecida, os suicídios podem aumentar” (p. 9, tradução nossa). Em contrapartida, posteriormente constatou-se o “Efeito Papageno”, inspirado na “Flauta mágica”, obra de Mozart que contava a história de Papageno que também sofre uma desilusão amorosa, cogita o suicídio, mas, diferente de Werther, recebe apoio e, assim, encontra outras possibilidades, desistindo da morte autoprovocada. A partir disso, percebeu-se que se a 20 notificação do suicídio for feita de forma educativa, poderá reverberar na conscientização da população em torno da temática, exercendo um impacto social positivo, possibilitando uma redução nos números de suicídio registrados. Por isso, a abertura para o falar sobre suicídio passou a ser compreendida como uma importante estratégia de prevenção, pois: Como tudo que amedronta, o suicídio é evitado pelas pessoas, mas o efeito provocado pelo silêncio é devastador e se prolonga por uma cadeia de sofrimento: ele impede quem pensa em tirar a própria vida de expressar suas angústias; incapacita amigos e familiares de abordar o assunto diretamente; e, por fim, alimenta a dor dos que perdem alguém para o suicídio (Fontenelle, 2008, n.p.). Essa nova compreensão reverberou na mudança de estratégia utilizada pelas entidades nacionais e internacionais, passando a compreender que falar sobre suicídio poderia ser importante na prevenção de novos casos. Percebe-se, nos últimos séculos, uma progressiva ampliação da compreensão acerca do suicídio, que passa a ser entendido como fenômeno multifatorial, multideterminado e transacional, devendo ser enfrentado também na esfera da saúde pública (Botega, 2015). Ressaltando a importância da fala como medida preventiva, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adotou algumas estratégias, dentre elas a criação de cartilhas educativas, sendo uma dessas criada em 1999 e voltada para a orientação de como abordar o suicídio na mídia. Além disso, a OMS também passou a divulgar as estatísticas a respeito do suicídio, e, desde 2003, o dia 10 de setembro tornou-se o Dia Mundial de Prevenção ao suicídio. Em 2015, foi instituído o “Setembro Amarelo”, cujo objetivo é promover campanhas de prevenção ao suicídio durante todo o mês de setembro. Entretanto, apesar desses incentivos, a temática da morte autoprovocada ainda é considerada um tabu e, a variar de acordo com a cultura da qual se parta, da faixa etária analisada ou do período histórico vivido, a abertura para falar sobre esse fenômeno pode ser maior ou menor. Desse modo, é interessante perceber como o século XXI tem sido marcado pelo surgimento da temática da morte autoprovocada entre o público infantojuvenil, por meio do 21 aparecimento de desafios e jogos que têm como objetivo incitar o suicídio de crianças e adolescentes. Entre eles, tivemos o desafio da Baleia Azul em 2017, da boneca Momo em 2019 e, com menos repercussão, do Pateta em 2020. Em 2017 também houve o lançamento da série Thirteen Reasons Why, na qual foi exposta a cena da morte autoprovocada da personagem principal, Hannah Baker, sobre a qual se teceram críticas acerca da riqueza de detalhes com que a cena da morte por suicídio foi reproduzida e o aspecto causalista envolvido. Devido à repercussão negativa, a cena foi posteriormente retirada da série e mensagens de alerta foram incluídas. Apesar dos aspectos negativos trazidos pela série e pelos desafios, eles também despertaram importantes discussões quanto à temática da morte, especialmente a autoprovocada. No tocante à faixa etária, de acordo com Lima e Kovács (2011), a sociedade tem dificuldade em falar com as crianças sobre morte, parte-se do pressuposto de que elas não entenderão e de que tudo o que for dito será prejudicial a elas. Exemplo disso são situações nas quais é necessário comunicar à criança sobre o falecimento de alguém e, no intuito de protegê- la, o comunicado é feito por meio do uso de metáforas: frequentemente, diz-se que a pessoa que faleceu foi morar no céu ou que virou uma estrelinha. Tais discursos podem dificultar ainda mais o processo de compreensão da morte e gerar sentimentos confusos à criança. Lima e Kovács (2011) apontam ainda: “nos casos em que a comunicação é bloqueada, o indizível tem mais chances de se manifestar por meio de sintomas disfuncionais ou de comportamentos destrutivos” (p. 394). E quando aquilo que é dito pelas crianças refere-se ao seu pensar em não mais viver? Como temos escutado tais manifestações? Será que temos escutado? Assim, de modo a tornar possível refletir sobre as questões trazidas aqui, este trabalho é dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, realiza-se uma discussão sobre o contexto histórico da infância, resgatando, para isso, as contribuições de importantes pensadores da área, 22 como o historiador Ariès (1978); na sequência, o capítulo também apresenta a compreensão de infância(s) à luz da fenomenologia, e contribui para a reflexão sobre esta a partir da ontologia heideggeriana. No segundo capítulo, reflete-se sobre o suicídio na infância, trazendo provocações sobre o que é possível pensar a respeito deste fenômeno na era da técnica, tecendo reflexões sobre como a fenomenologia pode contribuir para a discussão do suicídio na infância a partir dos existenciais propostos por Heidegger (1927/2016). Reflete-se, ainda, a respeito de quais aspectos ele pode se aproximar e se diferenciar do suicídio em outras faixas etárias. No terceiro capítulo, abordamos o método utilizado napesquisa, a fenomenologia hermenêutica. Na sequência, no capítulo quatro temos as entrevistas e interpretações a partir do círculo hermenêutico. E, por fim, apresentamos as considerações finais deste trabalho. Salientamos que esta dissertação foi produzida durante a pandemia de COVID-19, acompanhando os decretos estaduais e municipais que em diferentes momentos viabilizavam ou restringiam as medidas de biossegurança e, consequentemente, de isolamento social. Assim, mesmo em meio ao contexto pandêmico e de desmonte das políticas públicas de educação, seguimos fazendo pesquisa em uma universidade pública de excelência, contando, ainda, com o financiamento da CAPES que foi essencial para prosseguirmos. Capítulo 1 – De onde partimos: construções e desconstruções em torno da infância 1.1 Contexto histórico da infância Neste capítulo, falaremos sobre o processo histórico de criação do sentimento de infância, de modo a buscarmos compreender quais caminhos e descaminhos foram trilhados para que chegássemos à infância como hoje conhecemos. Refletir sobre esse processo é 23 importante para compreendermos de que formas a infância de hoje foi socialmente construída e instituída e de qual compreensão de infância partimos neste trabalho. Será que a infância vivida no século XXI é experienciada da mesma maneira como era em séculos passados? Será que é possível partirmos de uma única noção de infância que dê conta de cada experiência de ser-como-criança? Essas são algumas questões que nos movem neste trabalho e sobre as quais buscaremos tecer possibilidades reflexivas neste capítulo e ao longo de toda dissertação. Para isso, partiremos da compreensão de que a infância é atravessada por aspectos geográficos, sociais, culturais e históricos que afetam diretamente a maneira como esse período da vida será visto. Dito isto, começaremos o nosso resgate do processo histórico da infância olhando para as contribuições trazidas no livro “História social da criança e da família”. O historiador Ariès (1978) voltou-se ao estudo da infância, debruçando-se, mais especificamente, no período entre o século XII e XVII. Segundo este historiador, até o século XII as condições precárias de higienização e saúde pública corroboraram para a alta mortalidade infantil e, como consequência, havia um desinvestimento nos cuidados destinados à infância. Compreendia-se, pois, que não valeria a pena destinar tempo e recursos a um ser que, devido à alta taxa de mortandade, teria pouca chance de sobreviver. Havia, de acordo com Ariès (1978): Contudo, um sentimento superficial da criança – a que chamei de “paparicação” – era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a criança pequena como um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato (p.10). Ou seja, o estabelecimento de vínculos com as crianças se dava de outra maneira, elas eram vistas como seres frágeis, que poderiam morrer com grande facilidade e seriam substituídas caso isso acontecesse. Ariès (1978), aponta que o sentimento de “paparicação” era 24 provocado pelos traços infantis, mas não eram suficientes para modificar a indiferença existente em torno da infância, e esta invisibilização era decorrente da compreensão social de que se tratava de uma fase de transição e, por isso, seria desaconselhado destinar investimentos ou criar vínculos com os pequenos. Segundo Àriès (1978), essa invisibilização poderia ser percebida pela ausência da figura das crianças nas obras de arte. Apenas no século XIII as crianças começaram a ser retratadas, contudo, o seu estereótipo era o de um adulto, diferenciavam-se apenas no tamanho, que era reduzido. De acordo com o historiador, compreender a criança como um adulto em miniatura era algo que também podia ser percebido quando se observava o lugar social ocupado pela criança, o qual pouco se distinguia do adulto. De acordo com Frota (2007), os cuidados diferenciados que a criança recebia, quando os recebia, eram restritos aos primeiros anos de vida. A partir dos três ou quatro anos a criança seria inserida na sociedade tal qual um adulto, não havia uma adaptação, elas poderiam, por exemplo, participar de orgias ou testemunhar enforcamentos. Além disso, as crianças também eram susceptíveis a serem vítimas dos mesmos crimes imputados aos adultos, inclusive os sexuais, não havia aparatos legais que visassem a sua proteção, deixando-as desprotegidas. Ariès (1978) discorria que na Idade Média, se sobrevivessem aos anos iniciais, as crianças permaneciam sob os cuidados de suas famílias ou das amas até os sete ou nove anos. Tão logo deixassem de depender dos cuidados básicos proferidos por outrem, eram encaminhadas às casas de famílias estranhas onde trabalhavam como aprendizes por mais sete ou nove anos. Segundo Mattar (2015), nessa época, o trabalho era visto como importante para aquisição de um ofício ou aprendizagem de boas maneiras, considerava-se o serviço essencial à educação e isso independia da condição financeira daquela família. Entre os séculos XV e XVI, Oliveira (2008) relata que, com o desenvolvimento++ científico, a expansão comercial e as atividades artísticas da época, surgiram novas formas de 25 pensar a infância e a educação, que buscavam o respeito às particularidades da criança. Esse foi um período marcado por guerras e conflitos e, consequentemente, um significativo número de crianças em contextos de pobreza, violências e maus tratos. Compreendeu-se, pois, que a educação poderia ser um caminho para o desenvolvimento das crianças, tendo como alguns dos seus objetivos o desenvolvimento de bons costumes e ensinamentos religiosos. Para as crianças de camadas populares mais baixas, a educação ainda era vista como piedade. Ariès (1978) destaca que, em meados do século XVII, a mudança proporcionada com a institucionalização da educação tornou possível a aproximação do sentimento de infância e do sentimento de família, antes separados. Com essa mudança, a família tornou-se responsável pelo acompanhamento dos estudos dos filhos, escolha da escola e do preceptor. Mattar (2015) acrescenta que a ampliação na quantidade de escolas possibilitou que aos poucos deixasse de ser necessário que as crianças precisassem ir para longe para estudar e, por isso, ficassem mais próximas de suas famílias. Em contraponto às ideias apresentadas acima, outro importante pensador da infância foi o historiador Heywood (2004) que em sua obra, “Uma história da infância”, teceu críticas à compreensão de infância apresentada por Ariès (1978). Para o referido autor, Ariès teria sido simplista ao considerar a presença ou ausência da infância em épocas históricas como a Idade Média, pois, para Heywood (2004), a infância não deveria ser vista de forma enrijecida ou linear, mas sim como fluxo, uma vez que seria possível características observadas em determinadas épocas reaparecerem em momentos posteriores. Além disso, o autor critica o fato de Ariès (1978) ter se restringido à análise da infância a partir da Idade Média e aponta que os meios utilizados pelo historiador, como a iconografia, também foram simplistas. Heywood (2004) coloca que da forma como foi exposto por Ariès (1978) a infância poderia ser lida e compreendida de maneira superficial, o que poderia resultar em interpretações errôneas por leitores desavisados. Para o autor, a infância estava presente na Idade Média, mesmo que a 26 sociedade não tivesse tempo para ela, já se compreendia, por exemplo, que as percepções das crianças eram diferentes das dos adultos. Entre os séculos XVIIe XVIII, por meio de filósofos como John Locke (1632-1704) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778), importantes contribuições à infância foram tecidas. Frota (2007) nos conta que para Locke as crianças eram compreendidas como “folhas em branco”. O referido filósofo discordava da ideia de pecado original como algo inerente à criança e defendia que os pequenos aprendiam de forma passiva, sendo, por isso, possível inscrever neles o que se quisesse. Por outro lado, ainda segundo Frota (2007), Rousseau falava da infância como uma fase de pureza e ingenuidade, apontava que as crianças teriam uma natureza boa, sendo necessário deixá-las livres para seguirem seu curso natural, por isso defendia que a educação deveria ser dada em liberdade, dessa forma o curso natural seria seguido e as crianças se desenvolveriam plenamente. Para este filósofo, ao adulto caberia o papel de mediador entre a criança e a natureza. A partir do século XVIII, com a criação das fábricas, crianças foram exploradas em jornadas de trabalho extenuantes, que as colocavam em risco devido às péssimas condições das fábricas. Aguiar e Vasconcellos (2007) relatam que a relação entre criança e trabalho não era algo novo, no entanto, o contexto de exploração das fábricas trouxe “duas (então novas) perspectivas: a) embasa a necessidade de proteção social da infância mediante, inclusive, a intervenção estatal; e b) evidencia o caráter prejudicial das novas relações, processos, condições e ambientes de trabalho” (p. 278). Tal cenário possibilitou que aos poucos fossem criadas leis que limitassem os trabalhos das crianças, protegendo-as de situações que passaram a ser consideradas crimes, à exemplo das jornadas extensas e insalubres de trabalho e de crimes envolvendo violência sexual. No final do século XVIII e início do século XIX, um importante marco para a infância foi a Revolução Francesa, ocorrida na passagem do sistema de produção feudal para o 27 capitalista (Barbosa, 2013). A partir desta revolução, as Monarquias Absolutistas entraram em decadência com a concomitante perda de poder do clero e da nobreza e ascensão da burguesia. A sociedade passou então a se organizar pautada no liberalismo, que se propunha a delimitar a intervenção e o poder do Estado e possibilitar uma maior liberdade de mercado. Essa mudança reverberou na preocupação dos governos com o estado de bem-estar e com a educação das crianças. Assim, como um dos principais desdobramentos, o liberalismo trouxe a compreensão do sucesso e do fracasso como individuais, isto é, o homem seria responsável por aquilo que lhe aconteceria. Nessa lógica de responsabilização individual também se compreendia as desigualdades sociais entre classes como importantes para o avanço social, pois a competitividade seria necessária para o progresso. Barbosa (2013) nos explica que a partir disso tornou-se preciso a criação de dispositivos sociais que possibilitassem a formação individual, por isso, as escolas estavam inseridas em um modelo que acreditava ser por meio da racionalidade científica que se alcançaria o desenvolvimento da humanidade. Por não ser possível distanciar as crianças desse horizonte “epocal”, elas também foram atravessadas por ele. Esperava-se que os pequenos correspondessem aos ideais de sucesso, tais como bons rendimentos escolares. E, talvez tenha sido nessa época, frente à crença de que o sucesso estaria ao alcance de cada um, que o mito da infância feliz tenha ganhado força, De acordo com Heywood (2004), no século XIX a criança passa a ser estudada a partir do “olhar” romântico da infância. Ariès (1978) complementa que é nesse século que data o sentimento de infância, sendo essa uma invenção da modernidade. Frota (2007) diz que no ocidente o movimento de particularização da infância começou ainda no século XVIII, mas o cuidado com a infância apareceu somente no século XIX. No final do século XIX e início do século XX, a infância foi afetada pelo surgimento do movimento higienista, que trazia como proposta educar e ensinar novos hábitos visando melhorar a saúde individual e coletiva da população, entendendo que parte dos problemas 28 brasileiros eram de cunho social, a exemplo do saneamento básico. Durante esse movimento, devido a aspectos como a alta taxa de mortalidade e abandono infantil, a infância ganhou destaque. O higienismo defendia que o progresso da população dependia de investimentos e cuidados mais específicos às crianças e que por isso seria preciso intervenções por parte do Estado. Em decorrência disso, objetivando-se medidas preventivas que colaborassem para o desenvolvimento da sociedade, houve um maior incentivo na participação das crianças em espaços como escolas e institutos profissionalizantes que visavam retirá-las das ruas e educá- las, inclusive no que se refere às medidas de higiene. O movimento higienista também colaborou para a ampliação da assistência médica às famílias, em especial as gestantes e crianças. Para compreendermos mais sobre os desdobramentos da infância no século XX, é importante entendermos um pouco do cenário econômico e cultural da época. Barbosa (2013) nos conta que a recessão vivida pelo modelo capitalista na década de oitenta e a consequente ascensão do neoliberalismo, impactou em duas instituições responsáveis pela infância: a escola e a família. Em paralelo, observou-se, pois, que o desenvolvimento das tecnologias de informação “viabilizou o que se denomina globalização da cultura, ou seja, da produção, da distribuição e do consumo de bens e serviços voltados para o mercado mundial” (Barbosa, 2013, p. 6). Compreender isso é importante pois a partir dessa mudança as crianças também passaram a ser vistas como indivíduos inseridos na lógica de consumo e aquisição de produtos, sendo alvo, inclusive, dos apelos midiáticos e publicitários. Segundo a autora, esse processo de exposição das crianças ao consumo contribuiu para a sua adultização, uma vez que elas passaram a ser receptoras de informações que outrora eram exclusivas dos adultos. Ainda no século XX, após a recessão do capitalismo, o movimento neoliberal ganhou força. Este movimento compreendia a desigualdade social como importante e criticava a 29 intervenção do Estado na promoção da igualdade social pois defendia que isso retirava a liberdade dos cidadãos e a concorrência, aspectos que acreditava ser importante para a prosperidade. Como seres no mundo, as crianças não estavam alheias a essa lógica de competição e produtividade que com o passar do tempo vem ficando ainda mais forte. Assim, a diferenciação social e protetiva do lugar da criança e, ao mesmo tempo, a necessidade de mão de obra cada vez mais especializada fez nascer e crescer a busca por intervenções que pudessem garantir o desenvolvimento considerado adequado do infante. Foi nesse cenário que se tornou necessário o aparecimento de profissionais capacitados a garantir a normatividade desenvolvimentista da criança, surgindo, então, especialistas voltados para os primeiros anos, tais como pediatras, psicólogos e pedagogos. Esses profissionais visavam mapear o desenvolvimento da criança de modo a mensurar se a mesma estava apresentando as habilidades esperadas para a sua faixa etária e caso fosse percebida alguma incoerência que necessite de uma intervenção profissional, seria buscado caminhos para tal. Dito isso, observa-se que esforços foram concentrados na formação e capacitação de crianças, ainda em tenras idades, uma vez que o objetivo era, e ainda é, torná-las melhor preparadas para enfrentar a competição do mundo capitalista. Assim, o cuidado especializado de profissionais da infância tinha como propósito auxiliá-las a atingir o melhor resultado possível e sanar as atipicidades desenvolvimentistas que pudessem surgir. Nessa sequência, chegando ao século XXI encontramos uma sociedade em busca do controledo tempo, do corpo e da vida. Uma sociedade que continua compreendendo o sucesso e o fracasso como resultados de esforços individuais ou da falta deles. Nesse modo de pensar, acredita-se que para possuir boas condições de disputar o mercado de trabalho, as competências exigidas dos adultos devem começar a ser adquiridas na infância, isto resulta em crianças que cada vez mais cedo são inseridas em contextos de competição e cobrança. Han (2010) refere- se a esta sociedade como a do cansaço, e explica que estamos constantemente correndo em 30 busca de resultados e visando “dar conta”. Há uma briga com o tempo e uma cobrança demasiada por produtividade e resultados, falta lugar para parar e sentir. Bauman (2001), em sua obra Modernidade líquida, reflete sobre a fluidez e descartabilidade existente neste tempo. Por um lado, há uma busca por prazer e satisfação pessoal, por outro há um esvaziamento de sentidos. Como se tudo fosse fluido ou substituível. Dantas (2011) conta que a angústia é vista como patológica, tenta-se resolvê-la pela via da medicalização. À medida em que temos o avanço e maior acessibilidade das tecnologias de informação, essa se torna cada vez mais uma sociedade marcada pela espetacularização da vida. A vida “postável” não é qualquer vida, mas sim aquela marcada por conquistas, exposição da imagem e que parece não encontrar dificuldades em seu existir. Aquele que não corresponde a isto, sofre, sentindo-se desalojado em um mundo com tantos imperativos. Tal contexto também chega às crianças, que vão sendo invadidas por esses aspectos e confrontadas com os impactos das telas e de tantas imposições em torno do seu vir a ser, desde o seu corpo até o seu modo de existir. Paradoxalmente, enquanto espera-se de algumas uma alta performance, outra significativa parcela da população infantil, de condição social mais baixa, depara-se com impactos em sua formação provenientes da precarização da educação pública, do acesso à saúde e segurança. Os impactos oriundos das desigualdades socioeconômicas são diversos e por vezes incalculáveis. Dito isto, o que buscamos dar luz nestas breves reflexões foi no intuito de demonstrar o quanto a vivência da infância pode ser múltipla, complexa e atravessada por diversas questões sociais, econômicas e temporais. Assim, seguiremos neste trabalho na tentativa de lançar algumas possibilidades compreensivas dos modos de ser-como-criança nos tempos atuais. 31 1.2 Infância na fenomenologia Nesta pesquisa, o olhar para a infância se dará a partir da fenomenologia existencial. Aqui, propõe-se a construção de uma compreensão fenomenológica do ser-criança inspirada nas ideias do filósofo Martin Heidegger (1927/2016), mais especificamente da sua ontologia existencial. Assim, a maneira como nos propomos a pensar a infância neste trabalho será de forma plural, isto é, compreendemos que não existe uma única maneira de ser criança ou de vivenciar esse período da vida. Pois, como ser de abertura lançado no mundo, cada criança afeta e é afetada de uma maneira única, dessa forma, falar de infância no singular seria incorrer no erro de reduzi-las e desconsiderar a multiplicidade e complexidade de cada existir. Dito isto, é interessante relembrar que durante muitos anos as concepções acerca da infância se deram de forma engessada. Faz-se necessário, no entanto, pontuar que apesar da proposta deste trabalho ser apresentar outra maneira de pensar a infância, não temos o intuito de ignorar as teorias desenvolvimentistas e as suas contribuições, pois sabemos e reconhecemos a sua importância. Contudo, nos debruçaremos em uma outra possibilidade compreensiva da infância. Para isso, nos afastaremos da visão dos primeiros anos pautada nas fases descritas e marcadas por uma cronologia e indicadores de desenvolvimento que caracterizam certo modo de definir essa etapa da vida. Seguiremos outro caminho, buscando olhar o ser-como-criança, as experiências. Para começarmos, antes de nos determos às reflexões sobre a infância construídas a partir da hermenêutica, realizaremos um breve resgate de importantes contribuições à infância tecidas por fenomenólogos. Como ponto de partida, é válido relembrar que durante muito tempo a criança foi pensada e apresentada à sociedade como ser incompleto, conforme registros feitos por Ariès (1978), ou como folha em branco, como explicado por Rosseau e corroborado por behavioristas como Jonh Broadus Watson. Defendia-se que seria possível moldar a criança em 32 qualquer direção desejada (Feijoo, Gill & Protasio, 2012). Durante anos, os esforços concentravam-se em estabelecer o determinante da infância, mas o que de fato determina a infância? Seria possível predizer? Há quem diga que sim. Os “inativistas”, por exemplo, apontavam a genética como fator determinante, já os ambientalistas apostavam no ambiente e no social. E, em meio a esse embate, existiam os proponentes de um meio termo, a exemplo de Jean Piaget. Para esse importante nome do campo da educação, existiriam dois aspectos inatos fundamentais, seriam eles o estremecer frente ao som e o estremecer frente à falta de apoio (Feijoo, Gill & Protasio, 2012). Husserl (1900/2007), no entanto, discordava de tal afirmação. Para esse fenomenólogo, tanto estremecer quanto chorar e sugar são atos, logo, são intencionais, por fazerem referência a um comportar-se em relação a algo que não necessariamente tem uma finalidade, mas também, não por isso, significa desorientação (Feijoo, 2011). Para Husserl, pensar na intencionalidade dos atos das crianças na mais tenra idade é também pensar na “co- originalidade homem-mundo”. Tal reflexão contrapõe-se, ainda, à visão de que a criança primeiro nasce, para depois existir. Pensar em tempos diferentes para o surgimento do corpo biológico e do psiquismo seria retornar ao pensamento metafísico no qual acredita-se ser possível tal separação. Husserl (1935), escreveu o manuscrito intitulado “A criança, a primeira empatia”, no qual teve como objetivo descrever o primeiro ato dos pequenos no mundo dos homens, voltando-se, mais especificamente, para a empatia. Em seu texto, o filósofo se concentra em três pontos fundamentais no que se refere ao vivido pela criança, sendo eles: a corporeidade (enquanto carne e cinestesia), a relação mãe-bebê (intersubjetividade) e a linguagem. Nesse manuscrito, Husserl (1935) aponta que a criança originária, “dentro da carne materna”, possui uma “primordialidade” originária se formando em estado originário. O filósofo também fala da criança real, o recém-nascido, apontado como eu que produz experiência, e relata que o ponto 33 de partida na diferenciação de si e do outro seria o corpo. Dessa forma, acredita-se que: “o corpo é o ponto de partida da consciência de si para a consciência do outro. O autor discordava da ideia de Tábula rasa proposta por John Locke, na qual a criança era compreendida como “folha em branco”. Para Husserl (1935), a cinestesia e a percepção constituem o horizonte primordial da vida humana tanto no nascimento como antes dele, quando a criança ainda está no ventre materno. Nesse sentido, a criança-primordial seria para Husserl (1935) “um eu de hábitos superiores, mas sem reflexão sobre si, sem temporalidade formada, sem re-lembranças disponíveis, presente fluido entre retenção e protensão” (p. 375). O pensador compreendia a mãe como o elo entre a criança e o mundo, e essa relação se daria de forma desigual pois a mãe estaria voltada a satisfazer as necessidades do filho, inseri-lo no horizonte histórico e em sua comunidade, enquanto a criança buscaria apenas a satisfação de suas necessidades (Freitas, 2015). Somente quando a criança desenvolve a consciência de si é que se torna possível desenvolver a consciência do outro e do mundo. Dessa forma, Husserl (1935) traz que o primeiro ato de empatia da criançasó seria possível quando o outro surgisse em seu horizonte primordial, ou seja, a partir do momento em que a criança consegue se diferenciar da sua mãe, percebê-la como um alter ego, uma carne estrangeira à sua própria carne. Para que essa diferenciação ocorra, o autor aponta a importância da linguagem, e explica que na relação com a mãe, a criança desperta para o mundo dos sentidos, sendo a imitação e o balbucio essenciais para esse processo de despertar. No processo de diferenciar-se da mãe, a criança começa a se tematizar como “eu”. Husserl (1935) não explicita como se daria esse processo de diferenciação, no entanto, na compreensão de Toulemont (1962), esse processo partiria do movimento de aproximação e afastamento corporal da mãe. 34 Para Heidegger (1928/2008), tanto o choro como a agitação são dirigidos para tais atos e se dão em um mundo, de forma “co-originária”. Outro exemplo disto é quando o bebê se assusta devido ao surgimento de algum desconforto que perturba o seu estado de ânimo, assim, a sua reação se dá no intuito de repelir tal desconforto e retornar ao estado anterior (Feijoo, Gill & Protásio). Isto é, há uma intencionalidade nesta ação e a todo momento “o ser” está em “relação homem-mundo”. É no mundo onde a existência acontece. Feijoo, Gill e Protásio (2012) completam: Em nossa visada, acerca do ser-aí da criança, defenderemos um posicionamento fenomenológico, ou seja, iniciaremos com a desconsideração de todas as hipostasias, seja ambientalista ou inativista, para então pensarmos o homem em sua co-originalidade com o mundo. A co-originalidade diz respeito ao fato de que nem é o mundo que posiciona o homem, tese ambientalista, nem é o homem que posiciona o mundo, tese inativista (p. 226). Em seus escritos, Merleau-Ponty (2001/2006) discordava da ideia negativa de criança como adulto em miniatura, ou ser em falta, e da infância tida como uma fase de transição até a chegada da idade adulta, quando a completude seria alcançada. O fenomenólogo discordava de algumas das ideias de Piaget (1964/1972) sobre a aprendizagem de crianças por meio da acomodação e assimilação, pois, nesta lógica, a criança assimilaria um novo comportamento somente quando estivesse pronta para tal, conforme postulado nos estágios de desenvolvimento. Para o fenomenólogo, a criança aprendia ou apreendia por meio da imitação conforme fosse possível para ela, havendo, posteriormente, a compreensão. O autor explica: “a criança imita primeiro o resultado da ação com seus próprios meios e consegue assim produzir os mesmos movimentos do modelo. [...] Imitar não é fazer como outrem, mas chegar ao mesmo resultado” (Merleau‐Ponty, 2001/2006, p. 25). Outra divergência entre o fenomenólogo e Piaget (1964/1972) diz respeito à visão do estudioso do desenvolvimento sobre os infantes como seres egocêntricos, voltados para si mesmos. Para Merleau-Ponty (2001/2006), a criança não é um “ser em-si”, pois se ignora tanto 35 quanto ignora os outros, assim, ao invés de egocêntrica, a criança seria marcada pelo caráter de “mundaneidade”. De acordo com o autor, na relação com a criança é importante que o adulto ocupe o lugar de mediador entre o infante e o mundo, dando os devidos contornos. Igualmente, é preciso que nesta relação o adulto ocupe um lugar de “presença ausente”, isto é, esteja próximo, mas não de forma autoritária, pois é necessário que a criança encontre espaço para realizar a distinção entre si e o outro. Ademais, na compreensão do filósofo, a existência seria marcada pelo seu caráter de indeterminação e possibilidade. Azevedo (2013) nos ajuda na compreensão do pensamento do autor ao explicar que: o desenvolvimento nunca se completa, uma vez que não há abandono da gênese, no sentido de superação de etapas, como se deixássemos algo de nós mesmos para trás quando entramos numa nova fase de vida, ou quando adquirimos um novo hábito ou comportamento (p. 60). Prosseguindo no percurso fenomenológico de pensar a infância, chegamos a Jean-Paul Sartre: considerado precursor do existencialismo moderno, os seus escritos foram importantes para ajudar a pensar esse momento da vida. Segundo Pretto (2013), o filósofo apontava que a criança vive a sua possibilidade de ser a partir dos grupos nos quais está inserida, em especial a família. Para o existencialista, a criança é fruto dessa família por ser ali onde ela aprenderá modos possíveis de “ser” e “existir” no mundo. No entanto, o pensador destaca que essa influência não se restringe à família, por haver um contexto social e cultural no qual ela está inserida e pelo qual é afetada direta ou indiretamente. Além disso, é posto a criança como ativa no processo de constituição de si, ou seja, aquilo que é passado pelo adulto não é simplesmente absorvido, de forma passiva. Ocorre, antes, uma singularização do que está posto, assim, “a criança torna-se esta ou aquela porque vive o universal como particular” (Sartre, 1957/2002, p.56). 36 Dessa forma, o infante, embora não reflita criticamente sobre o conteúdo apreendido do adulto – o que faz lembrar Merleau-Ponty quando discorria sobre a criança pequena (0 a 6 anos) ser mais vivencial do que reflexiva – não é simples receptora do seu contexto, mas é produtora dele e de si, mesmo que de maneira alienada. Para Sartre (1957/2002), ele é um eu de hábitos superiores, mas sem reflexão sobre si, sem temporalidade formada, sem re-lembranças disponíveis, presente fluido entre retenção e protensão momento é um envolvimento recíproco e contraditório do antes pelo depois; somos ainda o que vamos deixar de ser e já somos o que seremos. Vivemos nossa morte, morremos nossa vida” (Sartre, 1957/2002, p.15). Ele completava ao dizer que “nascer é, entre outras características, ocupar seu lugar, ou melhor, recebê-lo” (Sartre, 1943/2001, p.603). Após esse breve apanhado, chegamos a Martin Heidegger, com quem seguiremos daqui em diante. Heidegger, assim como alguns dos pensadores resgatados acima, não se voltou especificamente para o estudo da infância, mas em sua ontologia nos forneceu subsídios para que possamos refletir sobre tal período da vida. Em sua analítica da existência, o filósofo não busca responder o “que é” o ser, mas sim “como” é, ou seja, em suas obras, Heidegger (1927/2016) se interessava em compreender o “Ser” e não o reduzir a possíveis explicações e conceitos que o restringiriam. Resgatamos, ainda, que em sua ontologia Heidegger (1927/2016) se refere ao homem como Dasein (Ser-aí) e o faz por compreender que o termo “homem” traria consigo significados sedimentados. Para o filósofo, o “aí” do “ser-aí” refere-se ao mundo no qual o “ser” está lançado. Dito isto, neste trabalho, buscaremos aprofundar a compreensão do “ser-como-criança” a partir dos escritos heideggerianos e de outros autores que vêm se lançando nesse modo de pensar a infância, junto a eles, seguiremos na construção de possibilidades compreensivas da infância à luz da fenomenologia heideggeriana. Como ponto de partida desta discussão, no livro 37 “Introdução à filosofia”, escrito a partir de conferências e manuscritos produzidos por Heidegger (1982/2009), encontramos: As observações metodológicas que se seguem sobre o papel do ser-aí nas etapas iniciais da existência dos homens e nos primórdios dos povos precisam ser compreendidas a partir da interpretação em princípio ontológico fundamental do ser-aí, e não, por exemplo, como antropologia (p. 129). O filósofo fala sobre já ter sido questionado a respeito do porquê, na investigação do “ser-aí”, se voltar para a temática da morte e não para a do nascimento, ele explica que não considera tais questões como opostas. Heidegger refere-se às etapas iniciais da existência como “um outro ser-aí humano”. Pensar em determinantes biológicos seria seguir em um caminho contrário ao da compreensãodo homem como “ser-aí”, no qual o caráter ontológico é abertura. Gill (2015) reforça que, segundo o filósofo, “este modo de ser nos revela que aquilo que somos não possui em si nenhuma determinação a priori” (p. 97). Alinhado a esse pensamento, quando refletimos a infância à luz da hermenêutica nos desprendemos da ideia de que a criança carrega consigo modos de ser pré-determinados ou tampouco que seria um ser incompleto, cuja completude seria alcançada apenas na idade adulta. Ao nos inspirarmos na fenomenologia como caminho compreensivo, partimos do pressuposto de que a criança já existe em totalidade, constituída em historicidade e permeada de facticidades. Cytrynowicz (2000) nos ajuda na ampliação dessa reflexão quando explica que o desenvolvimento infantil seria como um caminhar que promove o descobrimento e encobrimento de possibilidades. A autora acrescenta que é quando caminhamos que descobrimos o caminho. Esse movimento de caminhar surge ao nascermos e nos acompanha até a morte, faz parte da existência, não se restringindo, por isso, a idade. Se escolhermos olhar para a infância a partir da fenomenologia, principalmente a hermenêutica heideggeriana, buscar determinantes seria retornar ao modo positivista. Buscamos a todo o momento outro caminho. A partir da hermenêutica, almejamos refletir sobre 38 os aspectos que rondam os anos iniciais da existência, não de forma categórica, mas como possibilidade compreensiva que nos aproxime do fenômeno ensejando o seu desvelamento. Um exemplo disso é o que vemos na prática clínica quando a criança atendida realiza um desenho. Se partirmos de outras perspectivas, o desenho provavelmente será interpretado a partir de manuais que trazem interpretações ou possibilidades interpretativas dadas previamente. Se partirmos da fenomenologia, a compreensão daquele desenho se dará junto à criança. Pediremos a ela que nos conte o que desenhou. Testemunhar o processo de produção de um desenho também pode nos indicar alguns caminhos compreensivos, por exemplo, quando observamos que a criança utilizou bastante força ao desenhar, rasgou o desenho ou chorou em um dado momento. Mas, mesmo quando testemunhamos a expressão da criança, não podemos fazer afirmações fechadas do que aquilo significou, para que possamos compreender, precisamos que ela desvele os sentidos daquele desenho. O que nos parece um episódio de raiva ou tristeza pode ter um sentido totalmente diferente para a criança. Estamos falando de algo que é da ordem do vivido, de como o outro experiencia. Assim, na tentativa de compreender a experiência infantil, podemos ser espelhos, refletir para a criança aquilo que estamos vendo e/ou as nossas impressões, de modo que a própria criança possa nos confirmar se estamos no caminho correto ou não. Não devemos partir de compreensões ou afirmações fechadas, pois, ao agirmos assim, incorremos no erro de, mais uma vez, reforçar o lugar de centralidade do adulto como aquele que sabe, detentor do conhecimento, mesmo quando, contraditoriamente, este seja sobre a criança. O “ser-aí” é entendido como um “essencialmente descobridor”, ou seja, na medida em que existe, já traz consigo o seu desvelamento. Como dito anteriormente, para Heidegger (1927/2016), a existência é dada em caráter de abertura, de indeterminação do ser, isto é, o Dasein é marcado pelo caráter de “poder-ser”, somente encerrando com a morte, o fim de todas as possibilidades. Desse modo, compreendemos que a criança é um ser incompleto, não porque 39 essa completude será alcançada na idade adulta, mas sim por ser a incompletude ontológica à existência. Nesta forma de compreensão, tanto as crianças como os adultos nunca atingirão a completude, pois, uma vez existentes, seriam eternos “vir-a-ser”, possibilidade esta somente esgotada diante da morte que, segundo Heidegger (1927/2016), marca a impossibilidade das possibilidades. De acordo com Feijoo e Feijoo (2015) “o filósofo alemão considera que esse caráter indeterminado do ser-aí humano não se altera, seja na criança, no adolescente, no adulto ou no idoso” (p.119), talvez por isso, Heidegger não se deteve a falar especificamente sobre a infância, pois o caráter ontológico característico do Dasein, de abertura, independe de sua idade. Contudo, não podemos partir da existência de crianças e adultos como isenta de diferenças, há modos de ser-como-criança que as distinguem dos modos de “ser-como-adulto”. Dito isto, em sua ontologia, Heidegger (1927/2016) discorre sobre aspectos ontológicos inerentes à existência. Para o autor, o ser só existe em um mundo, e por mundo o filósofo compreende toda trama de significados onde a existência se dá, marcada por facticidades. O mundo não seria compreendido como algo determinado previamente, mas sim como constituído numa relação de proximidade. Para a criança, o mundo “é aquele que, desde sempre e em cada caso, vai sendo apreendido em sua história original” (Cytrynowicz, 2018, p. 89). Assim, além de existir no mundo, o filósofo elencou como outro aspecto ontológico da existência o fato do ser necessariamente estar em relação, sendo, assim, “ser-no-mundo-com- os-outros”. Na vivência infantil, uma importante relação é a que se dá com os adultos. É possível observar que em algumas delas a criança pode ser vista por um aspecto negativo da falta ou incompletude. Isso acontece quando a criança é compreendida como aquela que não tem de querer, não sabe o que quer ou não sabe falar o que está ao seu redor (Cytrynowicz, 2018). Diante disso, questionamos se de fato seria a criança que não teria querer, saber ou fala suficientemente articulada para discorrer acerca do que está ao seu redor, ou o adulto que 40 encontra dificuldades em compreender as particularidades dos seus modos de ser e por isso considera que “falta um já é e sobra um vai ser” (Cytrynowicz, 2018, p. 91). Neste trabalho, dada as diferenças nos seus modos de ser, compreendemos que o mundo da criança é tão completo ou incompleto quanto o do adulto. Avançando na ontologia heideggeriana, o filósofo reflete que o modo do ser se relacionar se dá pela via do cuidado, somos “cuidado”, esta seria a forma de nos relacionarmos conosco e com o outro. O filósofo aponta três modos possíveis de cuidado: o substitutivo, o antepositivo e o indiferente. No cuidado substitutivo há uma tentativa de supressão do peso de ser do outro, numa tentativa de fazer pelo outro aquilo que somente o outro poderia fazer por si. Já no cuidado antepositivo, compreende-se que a responsabilidade de ser quem se é cabe a cada um, e é somente ao retirar-se desse lugar tutelar do outro que é possível a esse outro assumir o peso de ser quem ele é (Casanova, 2017). Além desses, outro modo de cuidado seria o indiferente, que se refere a um modo distanciado de “ser-com”, um “cuidado descuidado”. Ao ser-em-relação e encontrarem-se na peculiaridade existencial em que ainda estão nos primeiros contatos com o mundo, conhecendo-o, as crianças demandam um modo de cuidado tutelar, isto quer dizer que é preciso que haja a participação de responsáveis que tomem para si a responsabilidade por escolhas que a criança ainda não consegue fazer, pelo menos não sozinhas. Disto isto, apesar da autonomia do viver ser mais restrita na infância, espera-se que à medida em que vão crescendo, ganhem gradativamente mais autonomia. O adulto cuida da criança do modo que pode, isso significa dizer que ele não pode tudo, ou qualquer coisa, e não é ele quem decide os limites dos possíveis. Os limites e possibilidades serão atravessados pela história de cada um e também descortinados na própria relação adulto-criança. Dito isto, reflete- se que a segurança e acolhimento encontrada na relação com o adulto possibilitará uma maior segurança da criança e possibilidade de ampliação nos seus modos de estar no mundo e ser- com. Cytrynowicz (2018)comenta: 41 na falta do adulto comprometido, elas perdem a oportunidade de compreender o que ainda não conhecem de modo mais seguro, cabendo a elas se lançarem sem respaldo nas experiências desconhecidas ou evitá-las como ameaças. Desse modo, a falta do adulto pode provocar profundo sofrimento, inseguranças e frustrações, que marcam a percepção de si mesmas e sua compreensão do mundo em torno (p. 137). Refletimos, ainda, que por serem eternos vir-a-ser, assim como os adultos, é no lançar- se ao mundo que a criança explora e conhece o mundo, o outro e a si próprio. Na infância, Cytrynowicz (2018) nos conta que a vida escolar é uma oportunidade “tanto para a ampliação do convívio, como para a descoberta e o desenvolvimento de aptidões” (p. 128) Ao caminhar no mundo, a criança pode descobrir e encobrir possibilidades, “descortiná- las”. Esse caminhar acontece ao longo da vida e por isso não se restringe a uma só idade, nos acompanha durante a existência e perdura até o morrer, podendo ser solitário ou compartilhado. Melo (2021) reflete que no caminhar compartilhado do existir, há uma troca natural e incessante entre os caminhantes, onde cada um carrega consigo um pouco do outro. A autora conta que, como recém-chegada ao mundo, no início da vida a criança é mais dependente, mas, conforme cresce, a dependência diminui, no entanto, a necessidade de companhia perdura por toda a vida. No avançar do tempo da vida é possível que a criança encontre outros caminhantes, deixe alguns pelo caminho, mas siga em companhia, ainda que, como nos disse Melo (2021), a dependência tenda a diminuir. As possibilidades de ser como criança são muitas, falamos de modos de ser-no-mundo cuja existência é atravessada pelo horizonte histórico de sentidos, é “epocal”. Olhando especificamente para o Brasil, vivemos em meio a um contexto de extrema desigualdade, cada vez mais demarcada nos últimos anos devido à vivência de crises políticas, sanitárias e econômicas. Não é possível deslocar a criança do contexto que a circunda, uma vez ser no mundo, elas também são interpeladas pelos sentidos oriundos desse mundo, elas afetam e são 42 afetadas a todo momento. Assim, os próprios sentidos do ser criança são dados no existir, por isso são múltiplos e mutáveis. Cytrynowicz (2018) acrescenta: O entendimento de cada criança envolve o seu mundo e que para falar sobre a infância é necessário partir do sentido e dos significados próprios que se mostram sempre nas relações e não partir de pensamentos pré-concebidos ou de pressupostos teóricos subjetivos (p. 37). Em sua ontologia, Heidegger (1927/2016) explica que o “ser-no-mundo” e “ser-com” do Dasein é atravessado pelo “corporar”, é por ele que o Dasein assume seu caráter de poder ser e de se expressar. Dito isto, pensando, ainda, nos modos de ser-como-criança encontramos o brincar. É importante explicar que o brincar não é exclusivo da infância, ele é inerente à existência humana, sendo este “um modo de relação que descobre um mundo significativo e original e cria histórias pessoais” (Cytrynowicz, 2018, p. 114). Ao brincar pertence tanto a imaginação, referente aquilo que é pensado e criado, como a realidade, que diz do vivido. Assim, é possível encontrar no brincar a liberdade de poder-ser. Na busca por compreender a infância e as distinções no modo de ser-como-criança e ser-como-adulto, Cytrynowicz (2000) lança reflexões acerca da temporalidade. A autora explica que na infância escapa-se ao Cronos, ao tempo marcado por relógios e calendários. Para as crianças, se destaca o Kairós, o tempo do vivido, marcado pela relação com a experiência e que não pode ser apreendido racionalmente. Além destes, Araújo, Costa e Frota (2020) acrescentam mais um tempo à infância: “aión”. seria este o tempo que parece ser da eternidade, daquilo que, na experiência infantil, pode ser compreendido como “sempre” ou “nunca”. Neste último, a criança pode significar as suas experiências como algo que permanecerá eternamente da mesma maneira. Dito isto, qual seria o tempo da infância? Não seria ele algo único e comum a todos? Vamos pensar... Em primeiro lugar, o que é o tempo? Horas, minutos, segundos? Sabemos das suas unidades de medida e da importância de marcá-lo quando precisamos acompanhar o tempo de 43 preparo de algumas comidas ou o tempo necessário para irmos de um lugar a outro. Esse é o tempo Cronos. Enquanto adultos, esse é o tempo que os norteia. Mas será que ao fazermos uma atividade da qual gostamos temos a percepção de que o tempo passa na mesma velocidade de se estivéssemos fazendo algo puramente por obrigação? Araújo, Costa e Frota (2020) acreditam que não, e explicam que a sensação da passagem de tempo é algo atravessado pela experiência e pelos sentidos que ali estão envolvidos, este seria o tempo“aiónico”. De acordo com as autoras, esse é o tempo da infância, ou, pelo menos, o mais característico dela. A infância é o tempo do “já, da presença imediata do agora” (Cytrynowicz, 2000, p. 70). Isso fica ainda mais perceptível quando pensamos na dificuldade de explicar a uma criança quanto tempo falta até a chegada de uma data que ela espera com expectativa, a exemplo do Natal ou do seu aniversário. É possível que, a cada dia, a criança, aguardando aquela data, questione se “já é hoje?” ou “é amanhã?”. Quanto menor a criança, explicar que faltam semanas ou meses dificilmente extinguirá os questionamentos que são motivados pelo desejo de que aquele momento aguardado logo chegue. Por serem períodos de tempo mais longos, ela provavelmente ainda não terá recursos suficientes para compreender. A criança não quer esperar, quer logo a experiência e a satisfação do acontecer. Em Zollikon, Heidegger questiona se existiria relação entre ser e tempo, o autor explica que o “agora tem o caráter do que está presente. Mas acaba de é passado e o logo a seguir é o que chega. Ambos são, pois um não- ser diferente, isto é – um ainda não ser – e um não ser mais” (p. 62). Melo (2021) explica que: O tempo da criança é o agora, ela é imediatista. A cada situação nova, ela tem uma vivência particular do tempo muito diferente daquela do adulto que concebe presente, passado e futuro linearmente. Para a criança, o que está sempre em evidência é o presente. Passado e futuro estão no agora. O sentimento do imediato é que a faz viver com tanta intensidade, pois só há uma possibilidade de viver as coisas do mundo: no tempo presente (pp. 92-93). 44 Frota (2018), na difícil e bonita tarefa de pensar a infância a partir de Heidegger (1927/2016), resgata que o filósofo, em suas obras, refere-se apenas ao homem como Dasein e que esta teria sido uma forma de romper com a temporalidade linear do existir. A autora questiona se é possível a infância ser um momento existencial para além do cronológico. Sobre isso, ela reflete: A infância é estrangeira num mundo da técnica. Como tal, fala uma língua nova; pensa o que não se pensa; transita por onde não se costuma andar; inventa, cria, rompe. A infância vive num tempo que comporta o Kronos e o Aion. Não se regula pelo relógio, somente. Assim, não se esgota em si mesma e sim, no esvaziamento acontecimental e da experiência (p. 86). A partir disso, é válido refletir a que modelo de sociedade serve pensar a infância a partir de etapas da vida encaixotadas em modos de ser já estabelecidos e esperados. Não conseguiremos compreender a infância se continuarmos a olhar para ela em busca de adultos ou do que ainda falta para tornar-se um. Se assim fizermos, encontraremos somente a falta. Falta esta que não se dá pela inferioridade daquele que ainda vai crescer, mas sim por se tratar de um “ser-aí” possuidor de um modo de existir único, e não inferior. Talvez por isso Heidegger (1927/2016) não tenha se detido a esmiuçar o modo de ser criança. Buscar singularizar
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