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CORREDOR CULTURAL Mulher potiguar UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE TECNOLOGIA CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO CARLIANDRA DE ARAÚJO DANTAS DE MACÊDO CORREDOR CULTURAL MULHER POTIGUAR: Anteprojeto de um Centro de Cultura, Memória e Estudos da Mulher em área de valor histórico-patrimonial em Natal/RN Natal/RN 2019 CARLIANDRA DE ARAÚJO DANTAS DE MACÊDO CORREDOR CULTURAL MULHER POTIGUAR: Anteprojeto de um Centro de Cultura, Memória e Estudos da Mulher em área de valor histórico-patrimonial em Natal/RN Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Arquiteto e Urbanista. Orientador: Prof. Dr. Hélio Takashi Maciel de Farias. Natal/RN 2019 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Dr. Marcelo Bezerra de Melo Tinôco - DARQ - -CT Macedo, Carliandra de Araujo Dantas de. Corredor cultural mulher potiguar: anteprojeto de um centro de cultura, memória e estudos da mulher em área de valor histórico- patrimonial em Natal/RN / Carliandra de Araujo Dantas de Macedo. - Natal, RN, 2019. 125f.: il. Monografia (Graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Tecnologia. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Hélio Takashi Maciel de Farias. 1. Centro cultural - Monografia. 2. Arquitetura de gênero - Monografia. 3. Ribeira - Monografia. I. Farias, Hélio Takashi Maciel de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/BSE15 CDU 725.8 Elaborado por Ericka Luana Gomes da Costa Cortez - CRB-15/344 CARLIANDRA DE ARAÚJO DANTAS DE MACÊDO CORREDOR CULTURAL MULHER POTIGUAR: Anteprojeto de um Centro de Cultura, Memória e Estudos da Mulher em área de valor histórico-patrimonial em Natal/RN Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Arquiteto e Urbanista. Orientador: Prof. Dr. Hélio Takashi Maciel de Farias. Aprovação em 29 de novembro de 2019 BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Hélio Takashi Maciel de Farias Orientador _____________________________________________________ Eunádia Silva Cavalcante Convidado Interno _____________________________________________________ Ana Gabrielle Carvalho Convidado Externo Natal/RN 2019 À minha mãe, minha primeira referência feminista, ao meu pai e meu irmão. Obrigada pelo amor incondicional, apoio e por sempre respeitar as minhas escolhas. À minha bisavó, Maria Emília, a sua história muito me ensina sobre a importância da construção de nossa autonomia. À minha família, ao meu namorado, aos meus amigos, em especial as amizades formadas no curso - Gabriele, Daniel, Nayara, Luiza, Letícia, Camila, Isabel, Beatriz, Louise e Talitha. Aos meus professores, particularmente ao meu professor orientador, Hélio, muito obrigada por tudo. E um agradecimento especial à Gabriele, Daniel, Nayara e Luiza – minhas companheiras de projeto -, vocês tornaram a graduação muito mais leve. LISTA DE FIGURAS Figura 01: Esquema evidenciando a diferença dos padrões de viagem entre homens e mulheres. ................................................................................................. 25 Figura 02: Quadras curtas como condição para diversidade urbana. .............. 29 Figura 03: Exemplo de rua com o conceito CPTED. .............................................. 32 Figura 04: (E) Centro Cultural São Paulo; (D) Centro Cultural do Jabaquara. ... 40 Figura 05: Situação da Biblioteca das Mulheres de Glasgow. ............................. 50 Figura 06: Fachada reformada da Biblioteca das Mulheres de Glasgow .......... 50 Figura 07: Setorização da Biblioteca das Mulheres de Glasgow. ........................ 52 Figura 08: Setorização da área reformada da GWL. ............................................ 52 Figura 09: (E) Ambiente de leitura em grupo; (D) Ambiente de leitura individual. ................................................................................................................................... 53 Figura 10: (E) aberturas das salas de administração; (D) Balcão de informação. ................................................................................................................................... 53 Figura 11: (E) Coreto do bairro de Bridgeton; (D) Carpete da Biblioteca. ......... 54 Figura 12: Situação do Edificio Comercial da Thomas Street e implantação do CFCCA. ..................................................................................................................... 56 Figura 13: Edificio Comercial visto da esquina da Salmon St. com a Thomas St. ................................................................................................................................... 57 Figura 14: Entrada do CFCCA com o anteparo aberto. ...................................... 57 Figura 15: Setorização da planta baixa do pavimento térreo. ............................ 58 Figura 16: (E) Circulação para a Galeria 02; (D) Galeria 02. ................................ 59 Figura 17: Setorização da planta baixa do subsolo. ............................................. 60 Figura 18: Situação do Paseo de La Brecha. ......................................................... 61 Figura 19: (E) Fachada da Rua Virrey Ceballos; (D) Fachada da Rua Rivadavia. ................................................................................................................................... 62 Figura 20: Setorização da planta baixa do pavimento térreo. ............................ 63 Figura 21: (E) Vista do Café com fechamento inclinado; (D) Passagem semipública e recorte na cobertura. ..................................................................... 63 Figura 22: Situação da Plaza del Torico. ................................................................ 64 Figura 23: Vista da Plaza del Torico à noite. .......................................................... 65 Figura 24: Vista da iluminação da praça na cor vermelha. ................................ 66 Figura 25: Localização dos lotes de intervenção. ................................................. 69 Figura 26: Mapa de atividades culturais na Ribeira. ............................................. 71 Figura 27: Fachada Rua Frei Miguelinho. ............................................................... 73 Figura 28: Fachada da Rua Chile. .......................................................................... 74 Figura 29: Mapa de uso do solo do entorno imediato ao terreno. ..................... 75 Figura 30: Mapa de gabarito do entorno imediato ao terreno. .......................... 76 Figura 31: Mapa de gabarito do entorno imediato ao terreno........................... 77 Figura 32: Indicação dos limites da SZ-3 e SZ-4 da ZEPH (1990)............................ 79 Figura 33: Delimitação do tombamento do Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Município de Natal/RN. .............................................................80 Figura 34: Zona Climática 8. ................................................................................... 84 Figura 35: (D) Carta solar sobre o lote de intervenção; (E) Rosa dos ventos sobre o terreno de intervenção. ....................................................................................... 85 Figura 36: Tempestade de ideias que resultaram no conceito. .......................... 89 Figura 37: Fluxograma .............................................................................................. 89 Figura 38: Esquema da circulação que cruza os lotes de intervenção. ............. 90 Figura 39: Esquema das remoções das coberturas existentes. ............................ 90 Figura 40: Primeiro estudo de planta baixa. .......................................................... 91 Figura 41: Segundo estudo de planta baixa. ........................................................ 92 Figura 42: Proposta após as considerações da pré-banca. ................................ 93 Figura 43: Proposta Final .......................................................................................... 94 Figura 44: Esquema da evolução volumétrica da proposta. .............................. 95 Figura 45: Zoneamento da proposta final .............................................................. 95 Figura 46: Planta baixa esquemática do Térreo e 1° Pavimento com os principais fluxos. ......................................................................................................................... 96 Figura 47: Perspectiva e Planta baixa esquemática dos blocos adicionados nos lotes de intervenção. ............................................................................................... 97 Figura 48: Planta baixa esquemática do Térreo e 1° Pavimento......................... 99 Figura 49: Setor de galeria. ...................................................................................... 99 Figura 50: Setor de administração e apoio .......................................................... 100 Figura 51: Mirante e espaço de convivência ...................................................... 101 Figura 52: Setor de biblioteca ............................................................................... 102 Figura 53: Perspectiva do interior da biblioteca .................................................. 102 Figura 54: Instalação de piso tátil em escadas e plataformas e elevadores. .. 103 Figura 55: Comparativo entre o cenário ideal almejado e a proposta. ........... 105 Figura 56: Mapa esquemático da Intervenção urbana proposta. ................... 106 Figura 57: Exemplo da pavimentação adotada na zona de pedestre. .......... 107 Figura 58: Conexão entre a paginação da zona e a circulação da proposta arquitetônica. ......................................................................................................... 107 Figura 59: (E) Pré-dimensionamento da viga metálica da galeria 02; (D) Pré- dimensionamento do pilar metálico da galeria 02; ........................................... 108 Figura 60: (E)Sistema de laje empregado; (D)Cobertura empregada. ............ 109 Figura 61: Planta de cobertura, cortes e perspectiva esquemática. ............... 109 Figura 62: Brise na fachada oeste voltada para a circulação. ......................... 110 Figura 63: Vista da fachada da Rua Frei Miguelinho. ......................................... 112 Figura 64: Vista da circulação ao adentrar o Centro. ........................................ 113 Figura 65: Vista da biblioteca com o mobiliário projetado para este ambiente. ................................................................................................................................. 114 Figura 66: Vista da circulação entre o bloco de apoio e o administrativo. ..... 115 Figura 67: Vista da fachada da Rua Chile com o ritmo das esquadrias recuperado. ............................................................................................................ 116 LISTA DE QUADROS Quadro 01: Princípios para espaços seguros, segundo Jacobs (2000). .............. 28 Quadro 02: Recomendações contidas no Manual Espaços Urbanos Seguros. . 31 Quadro 03: Quadro resumo dos princípios para uma arquitetura de gênero. .. 35 Quadro 04: Quadro resumo dos princípios e diretrizes para centros culturais. .. 42 Quadro 05: Quadro resumo das referências arquitetônicas. .............................. 67 Quadro 06: Prescrições urbanísticas adotadas ..................................................... 81 Quadro 07: Programa de necessidade e pré-dimensionamento ....................... 86 Quadro 08: Prescrições urbanísticas da proposta ................................................ 98 Quadro 09: Decisões projetuais voltadas para a criação de espaços à luz de gênero. .................................................................................................................... 104 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS CAERN Companhia de Águas e Esgoto do Rio Grande do Norte CBTU Companhia Brasileira de Transportes Urbanos CFCCA Centre for Chinese Contemporary Art CPTED Crime Prevention Through Enviromental Design DEAM Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher DGOTDU Direção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano GWL Glasgow Women’s Library IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBRAM Instituto Brasileiro de Museus IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IT Instrução Técnica NBR Normas Brasileiras OUC Operação Urbana Consorciada Centro Histórico de Natal OUR Operação Urbana Ribeira PDN Plano Diretor de Natal PRAC Plano de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania SEMOV Secretaria Municipal de Obras Públicas e Infraestrutura SEMURB Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal SNBP Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura VLT Veículo Leve sobre Trilhos ZEP Zona Especial Portuária ZEPH Zona Especial de Preservação Histórica RESUMO As mulheres representam a maior parcela da sociedade brasileira, porém, devido aos diferentes papéis sociais adotados por homens e mulheres, elas são invisibilizadas no espaço público, tenha ele sentido político ou urbano. A ausência de espaços que materializem e divulguem as lutas, contribuições e avanços das mulheres acaba por reforçar o seu anonimato, enquanto categoria social, na história. Nos projetos contemporâneos de espaços públicos urbanos há uma tentativa de se reverter este quadro e, apesar de ainda não suficiente, a variável "sexo" vem sendo introduzida no campo da arquitetura e urbanismo, possibilitando a criação de ambientes que considerem as particularidades da vivência feminina. Percebendo a carência de espaços dedicados às lutas e conquistas das mulheres, assim como de ambientes projetados levando em consideração as suas necessidades, este trabalho consiste na elaboração do anteprojeto arquitetônico de um equipamento cultural para abrigar o patrimônio sociocultural e histórico das mulheres sob o olhar de gênero. Considerando que o uso cultural geralmente é instalado nos centros das cidades, numa atitude de conservação do patrimônio histórico, e que os centros históricos contam com estrutura urbana relativamente consolidada, optou-se por sua instalação no bairro da Ribeira, Natal/RN. Sendo assim, este trabalho tem como objetivo desenvolver uma proposta de anteprojeto de um Centro de Cultura, Memória e Estudos da Mulher em área de valor histórico-patrimonial à luz da perspectiva de gênero. Para tanto, buscou-se compreender a interferência das relações de gênero no uso doespaço pelas mulheres; reunir os atributos legais e físicos funcionais da Ribeira indutores de vitalidade e diversidade no bairro; e identificar as particularidades do programa de necessidade e condicionantes espaciais de um equipamento cultural. Palavras chaves: Arquitetura de gênero. Centro cultural. Ribeira. ABSTRACT Women represents the largest portion of Brazilian society. However due to the different social roles adopted by men and women they are invisible in the public space, whether it has a political or urban meaning. The absence of spaces that materialize and publicize women's struggles, contributions and advances ultimately reinforces their anonymity as a social category in history. In contemporary projects of urban public spaces, there is an attempt to reverse this situation and, although not yet sufficient, the variable "sex" has been introduced in the field of architecture and urbanism, enabling the creation of environments that consider the particularities of the female experience. Realizing the lack of spaces dedicated to women’s struggles and achievements, as well as a design taking into account their needs, this work consists of creating the developed design of a cultural project to house the socio-cultural and historical heritage of women under a gender perspective. Considering that this type of cultural use is usually installed in the city centers, in a belief in conservation of historical heritage, and the fact that the historical centers have a relatively consolidated urban structure, it was decided to install it in the Ribeira neighborhood, Natal, RN. Thus, this work aims to develop a draft proposal for a Center for Culture, Memory and Women's Studies in an area of historical-heritage value in light of the gender perspective. To this end, we sought to understand the impact of gender relations on the use of space by women; gather the legal and physical functional attributes of Ribeira bringing vitality and diversity to the neighborhood; and identify the particulars of the necessary program and spatial constraints of cultural equipment. Keywords: Gender architecture. Cultural Center. Ribeira. SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................ 16 1.Referencial teórico-conceitual...................................................................... 20 1.1 A PERSPECTIVA DE GÊNERO ............................................................................... 21 1.1.1 Características ambientais do espaço público ........................................... 27 1.1.2 Arquitetura pensada para mulher ................................................................. 32 1.2 LUGARES DE MEMÓRIA ....................................................................................... 36 1.2.1 Centros de cultura: princípios e diretrizes ...................................................... 39 1.2.2 Centros Históricos............................................................................................. 43 1.2.3 A Ribeira ........................................................................................................... 44 1.3. SÍNTESE DA BASE TEÓRICA ................................................................................. 46 2. Estudos de referências projetuais ................................................................ 47 2.1. BIBLIOTECA DAS MULHERES DE GLASGOW ...................................................... 48 2.2 CENTRO PARA ARTE CONTEMPORÂNEA CHINESA – CFCCA .......................... 55 2.3 PASEO DE LA BRECHA – COLONIA DEL SACRAMENTO, URUGUAI .................. 61 2.4 PLAZA DEL TORICO – TERUEL, ESPANHA ............................................................ 64 2.3. QUADRO SÍNTESE DAS REFERÊNCIAS ................................................................ 67 3. CONDICIONANTES projetuais ............................................................................ 68 3.1 UNIVERSO DE ESTUDO ......................................................................................... 69 3.2. LOTES DE INTERVENÇÃO .................................................................................... 73 3.3 CONDICIONANTES LEGAIS ................................................................................. 78 3.3.1 Legislação e Tombamento ............................................................................. 78 3.3.2 Plano Diretor ..................................................................................................... 80 3.3.3 Código de Obras............................................................................................. 81 3.3.4 NBR 9050/2015 e Código de segurança e prevenção contra incêndio e pânico do estado do Rio Grande do Norte .......................................................... 82 3.4. CONDICIONANTES BIOCLIMÁTICAS ................................................................. 83 3.5. PROGRAMA DE NECESSIDADES E PRÉ-DIMENSIONAMENTO .......................... 85 4. proposta projetual ......................................................................................... 87 4.1 CONCEITO E PARTIDO ........................................................................................ 88 4.2 ESTUDOS PRELIMINARES ...................................................................................... 89 4.2.1 Evolução do projeto ....................................................................................... 89 4.2. MEMORIAL DESCRITIVO ..................................................................................... 95 4.2.1 Implantação e Prescrições Urbanísticas ....................................................... 96 4.2.2 Soluções Funcionais e Justificativas ............................................................... 98 4.2.3 Acessibilidade ................................................................................................ 103 4.2.4 Soluções quanto à Perspectiva de Gênero ............................................... 104 4.2.5 Soluções Estruturais e Cobertura .................................................................. 108 4.2.6 Estratégias de conforto ................................................................................. 110 Considerações finais .......................................................................................... 117 Referências ............................................................................................................ 119 Introdução 17 Aqui não é lugar de mulher! É uma frase comum de ser ouvida na tentativa de justificar a ausência feminina em determinados espaços. Embora as mulheres representem a maior parcela da sociedade brasileira, devido aos diferentes papéis sociais adotados por homens e mulheres, elas são invisibilizadas e por vezes não são bem-vindas no espaço público, tenha ele sentido político ou urbano. Durante muito tempo, por conta da divisão sexual do trabalho resultado da combinação entre o sistema capitalista e o patriarcado, as mulheres foram limitadas à sua capacidade reprodutiva e ao papel de cuidadora, naturalizando o ambiente doméstico como o da mulher. Enquanto ao homem coube as atividades profissionais e de estar em contato com a sociedade, sustentando a ideia de homem/espaço público x mulher/espaço privado. A naturalização da domesticidade feminina contribuiu para o silenciamento de sua história enquanto categoria social e para o desconhecimento da verdadeira face da sua vivência em sociedade, uma vez que sua existência real, específica e singular não era reconhecida como interesse público. Como consequência disso, na dimensão física doespaço, os interesses/necessidades particulares da existência feminina foram ignorados, pois ao se planejar os espaços públicos miravam-se em usuários assexuados e universais, criando uma falsa impressão de igualdade de acesso à cidade por elas; enquanto na dimensão sociocultural do espaço público, houve a omissão das suas lutas, contribuições e avanços, tornando-as anônimas. Como reflexo dessa realidade e trazendo a discussão a nível regional, percebe-se, por exemplo, o desconhecimento da maior parte da população quanto ao pioneirismo das mulheres potiguares na luta por igualdade de gênero no Brasil. Mulheres como Nísia Floresta, hoje considerada a primeira feminista brasileira (SOIHET, 2005), entre outras Norte-Rio-Grandenses se colocaram a frente do seu tempo e ocuparam espaços que cabiam somente aos homens em sua época, destacando-se em diferentes áreas como na política, literatura, música e educação. Porém, pouco se encontra espaços que materializem e celebrem estes feitos. 18 Diante deste incômodo e percebendo a carência de espaços dedicados às lutas e conquistas das mulheres, este trabalho consiste na elaboração do anteprojeto arquitetônico de um equipamento cultural para abrigar o patrimônio sociocultural e histórico feminino potiguar projetado sob a perspectiva de gênero. Vale salientar que o olhar de gênero a ser tratado parte do princípio que homens e mulheres vivem os espaços de maneiras diferentes em decorrência do papel social a eles atribuídos, e por isso deve haver uma preocupação em incorporar as necessidades de todos no projeto. Logo, a perspectiva de gênero assume uma responsabilidade para com o usuário, não que arquitetos homens e mulheres tenham, necessariamente, diferenças formais na maneira como criam espaços. Sendo assim, a perspectiva gênero neste trabalho é resultado de uma reflexão crítica sobre como as mulheres ocupam o espaço e a consideração de suas necessidades sociais, políticas e ambientais. Isto posto e considerando, ainda, que edificações com fins culturais geralmente são instaladas nos centros históricos, numa atitude de conservação do patrimônio histórico, além do fato dos centros das cidades contarem com estrutura urbana relativamente consolidada, este trabalho teve por objetivo elaborar o anteprojeto de um centro cultural, instalado em dois lotes conectados fundo-fundo entre si, com uma entrada situada na Rua Frei Miguelinho n° 98 e outra na Rua Chile n° 95, no bairro da Ribeira, em Natal/RN. A fim de concretizar esta proposta tem-se como objetivos específicos: compreender a interferência das relações de gênero no uso do espaço urbano pelas mulheres; reunir os atributos legais e físicos funcionais da Ribeira indutores de vitalidade e diversidade no bairro; e identificar as particularidades do programa de necessidade e condicionantes espaciais de um equipamento cultural. Assim, o desenvolvimento do trabalho foi estruturado em quatro capítulos: o primeiro capítulo trata do corpo teórico da pesquisa, nele é apresentado o entendimento sobre a perspectiva de gênero, lugares de memória e centros culturais; teorias sobre desenho urbano e a vivência da mulher no espaço; e a discussão sobre centros de cultura e patrimônio histórico. Já o segundo capítulo expõe estudos de referências projetuais relacionadas aos 19 conceitos estudados – a Biblioteca das Mulheres de Glasgow, Centro para Arte Contemporânea Chinesa, Paseo de La Brecha e a Plaza del Torico.O terceiro capítulo apresenta as condicionantes físicas, ambientais, legais e técnicas do projeto, assim como o programa de necessidades e o seu pré- dimensionamento. Já o último capítulo se inicia a discussão do conceito que norteou o processo projetual e sua espacialização no projeto, o partido; em seguida apresenta a proposta final, junto com a evolução formal e o memorial descritivo do projeto. 1. Referencial teórico-conceitual 21 A relação entre patrimônio histórico edificado e memória coletiva, assim como o papel dos centros de cultura na preservação desses bens materiais e imateriais, são temas amplamente discutidos na literatura orientada à intervenção patrimonial. Porém, o recorte de gênero no estudo dessas relações é relativamente novo e, por isso, só recentemente a invisibilidade das mulheres na história e nos espaços públicos começou a ser questionada. Logo, as reflexões acerca desse tema têm muito a serem exploradas. Com o propósito de realizar uma proposta de anteprojeto arquitetônico de um centro de cultura em área de interesse histórico patrimonial à luz da perspectiva de gênero que busca abrigar o patrimônio sociocultural e histórico das mulheres, em especial da mulher potiguar, foi necessário construir um entendimento sobre a mulher no espaço público e sobre os centros de cultura e sua importância para a preservação do patrimônio histórico material e imaterial. Esta compreensão se dá em dois momentos: no primeiro apresentam- se conceitos sobre gênero e espaço público, a fim de entender o que seria a perspectiva de gênero; no segundo momento, explora-se o patrimônio cultural, os centros culturais e centros históricos; e por fim, relacionam-se estes dois entendimentos culminando no arcabouço teórico sobre intervenções físico- territoriais sob perspectiva de gênero, a base teórica deste trabalho. 1.1 A PERSPECTIVA DE GÊNERO O sujeito mulher retratado ao longo deste trabalho se reporta ao gênero feminino fruto de uma construção social, não se remetendo somente ao ser biológico1. O gênero, de acordo com Gayle Rubin (2017, p.11) pode ser entendido como “os arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana”, ou seja, o conjunto de regras conforme as quais as sociedades convertem as diferenças biológica dos sexos em normas sociais; esta definição está contida no livro “O tráfico de mulheres, notas sobre a economia política do sexo”2, um dos estudos pioneiros sobre 1 Vale salientar que as mulheres transsexuais podem não estar contempladas neste estudo devido às particularidades de sua vivência e preconceitos enfrentados que não são compartilhados com outros grupos de mulheres, como as mulheres cisgênero. 2 The Traffic in Women: Notes on the "Political Economy" of Sex. 22 gênero e sexualidade que trouxe notoriedade para o conceito. Ainda segundo Rubin (2017) o sistema de sexo/gênero é neutro, podendo ser atribuído tanto ao feminino quanto ao masculino, não presumindo relação hierárquica entre eles. Este conceito com caráter neutro, que não imprime hierarquia ou aponta a direção do vetor da desigualdade, não foi apropriado, no entanto, sendo “gênero” utilizado frequentemente como substituto da palavra mulher. Porém, é importante destacar, que segundo Heleieth Saffioti (2011), Rubin permitiu, ainda que teoricamente, uma alternativa ao patriarcado, regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens, ao admitir que a desigualdade de gênero na relação homem-mulher não é dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência. Somando as colocações de Rubin (2017) às de Adriana Piscitelli (2002), nas quais o ser mulher não tem sentido definido, pois ele se transforma a depender do contexto espacial e temporal, entende-se por gênero a construção social do feminino, podendo o papel social atribuído a elas ser modificado de acordo com o tempo e os costumes de cada sociedade, ampliando o conceito de uma categoria de análise, para também categoria histórica e social, sendo necessário um olhar contextualizado. Esta construção social do feminino prega a superioridade masculina e ultrapassa as relações da vida cotidiana fazendo-sepresente em todas instituições sociais, ou seja: o regime da dominação-exploração das mulheres não abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade como um todo, incidindo diretamente sobre a presença das mulheres nos espaços públicos. Sendo o espaço público supracitado entendido em duas dimensões: a comunicativa ou política, que se refere aos espaços de interação comunicativa, como a comunicação social, a ação política e as expressões culturais, articulados ou não com a segunda dimensão, a física ou territorial, a qual se reporta aos espaços urbanos, abertos e acessíveis a todos, conforme Luise Martins da Silva (2009). Dado a natureza do estudo, sentiu-se a necessidade de incorporar à dimensão física citada acima a conotação jurídica de espaço público, que 23 para este campo de conhecimento nasce da oposição entre o público e o privado e está sob regulamentação estatal, segundo Jordi Borja (1998). Desde una aproximación jurídica, podemos definirlo como un espacio sometido a una regulación específica por parte de la administración pública, propietaria o que posee la facultad de dominio del suelo, que garantiza su accesibilidad a todos y fija las condiciones de su utilización y de instalación de actividades. El espacio público moderno proviene de la separación formal (legal) entre la propiedad privada urbana y la propiedad pública. Tal separación normalmente supone reservar este suelo libre de construcciones (excepto equipamientos colectivos y servicios públicos) y para usos sociales característicos de la vida urbana (esparcimiento, actos colectivos, transporte, actividades culturales y a veces comerciales, etc.)(BORJA, 1998, p. 2). Ainda conforme Borja (1998), atribuir a definição do espaço público apenas ao seu status jurídico, seria reducionista e não contemplaria toda sua complexidade, por isso, se faz necessário introduzir também o aspecto sociocultural, o uso. El espacio público también tiene una dimensión socio-cultural. Es un lugar de relación y de identificación, de contacto entre las gentes, de animación urbana, a veces de expresión comunitaria. La dinámica propia de la ciudad y los comportamientos de sus gentes pueden crear espacios públicos que jurídicamente no lo son, o que no estaban previstos como tales, abiertos o cerrados, de paso o a los que hay que ir. (…) En todos estos casos lo que defina la naturaleza del espacio público es el uso y no el estatuto jurídico (BORJA,1998, p. 3). Embora o espaço público seja conceitualmente o lugar de todos, espaço de natureza plural, de troca e socialização, haja vista o que foi exposto, ele não é neutro, e por isso, exprime as relações sociais e reproduz, espacialmente, as divisões da sociedade na forma de segregação, organizando o espaço e o tempo dos indivíduos; fenômeno agravado pelo capitalismo e que afeta também a cidade sua totalidade. O capitalismo, sistema de dominação econômica, e o patriarcado, sistema de dominação político-ideológica, não são sistemas autônomos entre si, eles se combinam com base em uma divisão sexual do trabalho. Esta divisão se vale de dois princípios: o de divisão e o de hierarquia; o primeiro trata da divisão das atividades masculinas que geralmente são profissionais e públicas, das femininas, atividades domésticas e de cuidado; no segundo momento, atribui-se maior valor às atividades tidas como masculinas, 24 produzindo uma distribuição desigual de poder, autoridade e prestígio (HIRATA; KERGOAT, 2007). Por isso, as mulheres estão condenadas a uma posição inferior na sociedade, sendo limitadas, sob esta perspectiva, à sua capacidade reprodutiva e ao papel de cuidadora, reduzindo suas atividades à esfera privada, sustentando a ideia de homem/espaço público x mulher/espaço privado. Isto posto e considerando que por anos as análises sociais e urbanas tiveram como prioridade questões econômicas, culturais e políticas, negando a esfera do privado e das atividades domésticas - por não as reconhecerem como interesse público -, e sendo estas predominantemente femininas, acabou por resultar numa “invisibilidade” das mulheres no espaço público, seja ele político ou urbano; logo, a negação da divisão sexual do trabalho impossibilita aos estudiosos reconhecer a reprodução da desigualdade entre gêneros. Na espacialização dessa desigualdade, Sonia Alves Calió (1997), acrescenta: A distinção das esferas públicas e privadas, alterando relações sociais entre homens e mulheres, priorizando o mundo público - político e econômico - aos homens e o mundo privado - doméstico e íntimo - às mulheres, sexuou a cidade. E os estudiosos urbanos tiveram dificuldade em fazer essa nova leitura. Isso implicou na negação da esfera do privado, das atividades domésticas, e mesmo das atividades das mulheres. É o que chamamos de "invisibilização" das mulheres na multidão urbana. Elas estão lá, importantes para o cenário, mas insignificantes para a cena (CALIÓ, 1997, p. 04) Estudos como o de Christian Dymén e Vânia Ceccato (2012) relatam que a divisão sexual do trabalho influencia diretamente os deslocamentos feitos pelas mulheres na cidade. Os autores afirmam que as mulheres, com mais frequência que os homens, escolhem as oportunidades de trabalho perto da residência e são propensas à viagem em cadeia, ou seja, quando elas viajam, elas tendem a ter vários propósitos e vários destinos dentro de uma viagem (figura 01). 25 Figura 01: Esquema evidenciando a diferença dos padrões de viagem entre homens e mulheres.3 Fonte: ITDP Brasil, 2018. É importante destacar que ao negar a combinação patriarcado/capitalismo, nega-se também a verdadeira face da vivência das mulheres em sociedade, uma vez que ela é, enquanto grupo social, uma desconhecida - nos dados estatísticos, na história, nos fatos, nas tomadas de decisões - e acaba misturada na multidão, vivendo uma falsa impressão de igualdade, não tendo sua existência real, específica e singular reconhecida. Salientando que a luta das mulheres ao acesso democrático à cidade está profundamente ligada e parcialmente mesclada a luta pelo direito à cidadania; trata-se de esferas distintas, contudo inseparáveis para a compreensão do todo social feminino no espaço urbano. Uma das pautas dessa luta é a segurança, pois entende-se que a falta dela é um obstáculo ao acesso e à livre circulação na cidade, logo, age inibitivamente no direito de ir e vir das mulheres. O medo das mulheres no espaço público não se restringe à violência urbana4, conforme Gill Valentine (1989) em “A geografia do medo das 3 Esta imagem faz parte relatório intitulado “O acesso de mulheres e crianças à cidade” publicado em janeiro de 2018, desenvolvido pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento - ITDP em Recife/PE. 4 Assassinatos e assaltos são algumas das principais formas de violência urbana. 26 mulheres”5, ele está relacionado, na maior parte dos casos, à sensação de vulnerabilidade física em comparação ao homem, temendo, principalmente, a violência de gênero que se apresenta geralmente em forma de violência sexual, como o assédio sexual e estupro. Ainda segundo a autora, ao passo que durante o dia as mulheres identificam lugares isolados específicos como assustadores, elas expressam o medo de todos os espaços durante a noite. Isto não se deve somente ao fato de à noite a visibilidade ser reduzida e, consequentemente, aumentar a possibilidade de ataque, mas devido às mudanças que o espaço público sofre, uma vez que à noite o ambiente passa a ser dominado por homens, não só numericamente, mas através de um comportamento agressivo que intimida as mulheres. Destaca-se ainda que áreas tidas como perigosas nem sempre correspondem às áreas onde ocorrem mais crimes; na verdade, estudos mostram que as mulheres são mais propensas a sofrerem violência noespaço privado e por pessoas conhecidas do que no espaço público com desconhecidos. Este conflito dual foi denominado como a geografia do medo e a geografia do crime (VALENTINE, 1989). No entanto, se por um lado a presença masculina coíbe e se configura como uma ameaça, por outro, ela oferece proteção; por isso, em busca de se manter segura, muitas mulheres, adotando o papel tradicional de gênero, procuram proteção na figura masculina (o pai, irmão, namorado e marido). contribuindo para um subsistema onde a dominação masculina é mantida e perpetuada e validando o entendimento do uso inibido do espaço público pela mulher como uma expressão do patriarcado. De acordo com a pesquisa desenvolvida pelo ITDP Brasil (2018), para além do uso e da presença masculina, aspectos físicos contribuem para a construção do medo pelas mulheres. Isto posto e, considerando o que foi discutido acima, percebe-se que o medo do crime tem impacto não apenas sobre as liberdades individuais e as atividades, mas também, por ser predominante em determinados grupos sociais e em certos lugares, reafirma, frequentemente, a exclusão social desses grupos. Levando isto em conta, nos próximos itens do estudo busca-se explorar quais 5 The geography of women’s fear. 27 características espaço-ambientais influenciam no distanciamento feminino do espaço público, para em seguida abordar aquelas que contribuem para a apropriação desses lugares. 1.1.1 Características ambientais do espaço público Ao comentar sobre a análise de eventos criminais, Thyana Barros (2012), informa que a partir da década de 1960: A localização do crime surge como um elemento de primária importância na avaliação da criminalidade, como também na busca de formas de prevenção do crime, que tem no planejamento urbano, na arquitetura e análise dos espaços, outra maneira de trabalhar (BARROS, 2012, p. 84). Neste sentido, as teorias sobre a manipulação do espaço como forma de prevenir e/ou reduzir a criminalidade e a sensação de insegurança originaram diversos estudos como os que serão discutidos a seguir: os olhos da rua de Jane Jacobs (2000); o espaço defensável, do Oscar Newman (1975); e prevenção do crime através do desenho ambiental, de Ray Jeffery (FERNANDES, 2007). É importante destacar que nos três estudos citados o recorte de gênero não está presente. a) Os olhos da rua, Jane Jacobs O livro “Morte e Vida de Grandes Cidades” de Jane Jacobs publicado na década de 1960, é um marco que influencia diversos estudiosos do tema até os dias atuais. Jacobs (2000) associa a segurança nos espaços públicos à presença de pessoas, independente de horário, e sugere que, por isso, o espaço deve comportar usos variados que favoreçam a utilização da rua em horários distintos do dia, garantindo o tráfego permanente de pessoas. Assim, a autora elenca três princípios para uma rua segura: a existência do que ela denomina de “olhos da rua”, a presença de elementos atrativos e a garantia de diversidade de usos. O quadro 01, elaborado por Barros (2012) em sua tese, sintetiza essas propriedades. 28 Quadro 01: Princípios para espaços seguros, segundo Jacobs (2000). Fonte: Barros (2012, p. 85 e 86). É importante ressaltar que para a autora, a segurança urbana não deve ser determinada pela presença de policiamento, mas sim pela presença dos elementos citados acima junto com a iluminação e a existência de quadras curtas. Segundo Jacobs (2000) a iluminação é importante enquanto elemento proporcionador da “multiplicação dos olhos”, porém as luzes não têm efeito algum caso não exista pessoas trafegando nestes espaços. Já sobre as quadras curtas (figura 02), a autora coloca que o encurtamento das ruas oportunizam a virada frequente de esquinas, o que propicia uma rica articulação entre os usos e usuários do bairro; porém se por um lado, as esquinas possibilitam desviar caminhos, ou até mesmo encurta-los, por outro, é tido como elemento causador do medo, já que cria a possibilidade de haver alguém escondido e atrelado a isso a violência sexual. 29 Figura 02: Quadras curtas como condição para diversidade urbana. Fonte: Jacobs (2000, p. 201). b) O espaço defensável, Oscar Newman O conceito de espaço defensável nasceu do questionamento em relação à sensação de insegurança entre dois conjuntos residenciais na cidade norte-americana de Saint Louis - Missouri, o Pruitt-Igoe (considerado inseguro) e o Carr Square Village (considerado seguro). Com base nas suas observações, Newman (1975) concluiu que o motivo para a sensação de insegurança em Pruitt-Igoe devia-se não somente à ausência do controle dos espaços coletivos pelos moradores, mas somado a isto, ao fato dos residentes só preservarem os espaços que eram percebidos como seus. Aqueles compartilhados com diversas famílias não eram apropriados e, portanto, acabavam sendo depredados. O autor argumenta, também, que ruas abertas, de livre trânsito, eram mais propensas à ocorrência de criminalidade de que as ruas fechadas onde o acesso era mais restrito, isto se devia ao sentimento de vigilância, pois estranhos ao adentrar nessas ruas sentiam que suas ações estavam sendo vigiadas e isso inibia o ato criminoso. Embora o conceito de espaço defensável tenha contribuído para o que hoje é entendido como apropriação do espaço e tenha sido aplicado nos Estados Unidos e nos países da Europa, ele recebeu várias críticas por defender o controle por parte dos moradores o que poderia resultar na segregação e 30 isolamento, além de colocar os estranhos como inimigos em potencial, entendimento que vai contra as ideias da Jane Jacobs exploradas anteriormente. c) A prevenção do crime através do desenho ambiental, Ray Jeffery Em 1971, Ray Jeffery, concebeu a expressão “Prevenção do Crime Através do Desenho Ambiental”6, e esta teoria foi um marco na forma de relacionar o comportamento antissocial e criminoso com o desenho ambiental, embora tenha sido ofuscada por uma década pelo Espaço Defensável de Newman (1975) (FERNANDES, 2007). O CPTED é um conjunto de estratégias de aplicação prática de prevenção contra o crime que busca reduzir as possibilidades do delito de oportunidade, bem como a redução do medo coletivo. O CPTED infere que a ocorrência do ato delitivo está relacionada a análise de custo-benefício feita pelo infrator. Este leva em consideração três variáveis ambientais: a situação favorável, uma vítima vulnerável e sua motivação. Assim como Newman, a teoria de Jeffery também recebeu inúmeras críticas de outros teóricos, o que resultou na sua evolução já na década de 1980 (FERNANDES, 2007). Adicionando as ideias de controle natural dos acessos, vigilância natural, manutenção e reforço territorial, esta segunda geração incorporou os aspectos físicos e sociais do ambiente, possibilitando um diálogo com o legado da Jane Jacobs. Apesar das críticas, o conceito de “Prevenção do crime através do desenho ambiental” vem sendo adotado em planos, projetos e iniciativas governamentais no mundo todo, inclusive no Brasil, com o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) criado pelo governo federal Lei nº 11.530 de 24 de outubro de 2007, além de outras iniciativas a nível estadual. Com recomendações de projetos baseados no CPTED, o Governo do Chile, em 2004, desenvolveu o “Manual Espacios Urbanos Seguros”. O capítulo sobre recomendações de projetos neste documento abrange quatro itens: a edificação (mais precisamente a relação da edificação com o espaço 6 Crime Prevention Through Enviromental Design, o termo se tornou mais conhecido por sua sigla CPTED. 31 público), o espaço de transição (jardins), os limites (referente aos muros dos lotes) e espaços públicos e elementos urbanos. O quadro a seguir, foi também desenvolvido em 2004, mas por autoras brasileiraspara um documento de nome homônimo baseado no chileno que apresenta alguns dos problemas encontrados no espaço público que podem vir a tornar um espaço inseguro; já a figura 03, ilustra uma rua dotada de elementos que favorecem a vigilância natural com áreas de permanência, diversidade de uso e atividades e manutenção adequada, conforme princípios do CPTED. Quadro 02: Recomendações contidas no Manual Espaços Urbanos Seguros. 32 Figura 03: Exemplo de rua com o conceito CPTED. Fonte: Santos et al., 2004. 1.1.2 Arquitetura pensada para mulher Não existe nada neutro em sociedade, por conseguinte, a arquitetura não o é; sua forma e decisões projetuais exprime os anseios e experiência dos seus autores, e por isso, há urgência de maior diversidade entre aqueles que a produzem. Entende-se, pois, que o principal objetivo da arquitetura é conceber ambientes capazes de responder às necessidades daqueles que os habitam. Logo, o fato de a maior parte dos espaços públicos terem sido construídos por um grupo restrito de pessoas, notadamente homem branco de classe média, acabou por gerar uma lacuna quanto aos interesses dos outros grupos sociais. Não que homens e mulheres projetem necessariamente de forma diferente, ou que a classe social e raça do arquiteto (a) repercuta diretamente e sem falta na arquitetura, mas a experiência vivida dos planejadores do espaço certamente reflete no ato de projetar. Porém, deve-se salientar que somente a inclusão de mulheres na arquitetura - como profissionais arquitetas -, embora seja de fundamental importância, não significa a criação de espaços mais igualitários sob o ponto de vista de gênero, deve-se analisar também quais interesses estas mulheres buscam atender; uma vez que a maior parte das arquitetas desejam permanecer neutras sobre a questão de gêneros e aquelas que visam explicitar 33 suas intenções feministas, geralmente abraçam o campo da teoria e história da arquitetura (RENDELL, 2002). Tendo isto em conta, somente as práticas de projeto e planejamento, seja arquitetônico ou urbano, que visam a criação de ambientes considerando as particularidades das mulheres são adjetivados como intervenções com/pela “perspectiva de gênero”, independente do gênero de quem a produziu. É importante relatar ainda a dificuldade de encontrar materiais e estudos que abordam a arquitetura com o olhar de gênero, uma vez que a maior parte das reflexões que relacionam arquitetura e gênero centram no esquecimento das arquitetas como protagonistas da profissão e nos espaços do lar e arquitetura de interiores (ambos espaços privados), fazendo com que muitas das informações sobre as particularidades femininas sejam captadas através de jornais que denunciam situações que atingem em especial a mulher, como grupo social, no espaço arquitetônico. Visto a quantidade limitada de produções acadêmicas sobre a prática da arquitetura de gênero, fica a dúvida se a arquitetura de gênero somente nasce após críticas e queixas da situação atual. Devido à sensação de insegurança e o medo agirem como os maiores limitantes do uso do espaço público pelas mulheres - o que prejudica sua capacidade de trabalhar, estudar, afetando seu empoderamento e direitos - quando se diz arquitetura ou urbanismo de gênero, lê-se, primeiramente, aquelas cuja decisões projetuais promovem mais segurança para as mulheres. Todavia, como o projeto a qual este trabalho se propôs busca atender as necessidades femininas para além da segurança, procurou-se explorar táticas e estratégias arquitetônicas que também caracterizam intervenções sob a perspectiva de gênero. No tocante à plasticidade da arquitetura, encontrou-se no livro “Arquitetura do Espaço de Gênero: Uma introdução interdisciplinar”7 (2002), a seguinte colocação: 7 Gender Space Architecture: An interdisciplinary introduction, organizado por Jane Rendell, Barbara Pener e Iain Borden. 34 Diversos (as) desenhistas feministas extraíram inspiração arquitetônica do corpo feminino, projetando formas semelhantes a ventre e curvilíneas em vez de torres fálicas, espaços que focalizam aspectos do cercado (abrigos e prisões), explorando a relação entre interior e exterior (aberturas, cavidades e lacunas) (RENDELL, 2002, p. 229).8 No entanto, acredita-se que para um edifício ser visto como masculino, não é preciso ter representações fálicas, geralmente este caráter está associado aos edifícios pesados, robustos e rígidos. O que também se repete em termos de materialidade, uma vez que o concreto, madeira e aço são associados ao masculino, enquanto elementos vazados e vidro são femininos, pois remetem a abertura e fluidez. Quanto às instalações reclamadas pelas mulheres para os espaços coletivos, a maioria diz respeito à acessibilidade universal, tais como rampas e plataforma elevatória, pois devido ao papel de cuidadora que lhe é atribuído, às mulheres geralmente são quem acompanha os idosos e/ou pessoas com deficiência da família, vale salientar que entre as mulheres com maior poder aquisitivo, essa reclamação também está atrelada ao uso do carrinho de bebê; ampliação dos fraldários para os banheiros masculinos ou a criação de espaços família, uma vez que a exclusividade dos fraldários nos banheiros femininos reforçam o papel de cuidadora citado ao inferir que somente as mulheres são responsáveis pelos cuidados dos bebês e crianças. Um outro ponto interessante a ser considerado, que recentemente foi pauta de discussões na Inglaterra, é o desenho das escadas e a permeabilidade visual de seus guarda-corpos em locais de uso coletivo (BBC, 2019), uma vez que, a depender também de sua materialidade, as escadas oportunizam o assédio sexual em forma de upskirting, fenômeno que consiste em violar a intimidade de uma mulher com fotos ou vídeos não autorizados de suas partes íntimas, feitos por debaixo da saia ou outra peça de roupa. Por fim, tendo em vista o que foi discutido, percebe-se que há uma lacuna quanto à caracterização das práticas arquitetônicas, ao nível da 8 Texto original: “A number of feminist designers have drawn architectural inspiration from the female body, designing womb-like and curvaceous forms rather than phallic towers, spaces which focus on aspects of enclosure (shelters and prisons), exploring the relationship between inside and outside (openings, hollows and gaps)”. 35 edificação principalmente, que relacionem gênero e espaço. É necessário que o desejo das mulheres de se instituírem como sujeitos no sistema arquitetônico transborde do âmbito privado e que mais estudos, interpretações e produções do espaço público sejam feitos através da sua própria perspectiva. Pois, segundo Lia Antunes (2016), a partir da história do “pessoal” e do “íntimo”, as mulheres podem estabelecer as estruturas da sua resistência e de permanência na construção do espaço de tal forma que acabem por traçar uma outra face da história “oficial” (dos homens). O quadro 03 reúne as diretrizes que serão empregadas no projeto arquitetônico para atender as necessidades de gênero, além das recomendações presentes no quadro 02. Quadro 03: Quadro resumo dos princípios para uma arquitetura de gênero. Fonte: Acervo da autora, 2019. Considerando o que foi exposto acima, nos próximos itens busca-se explorar a ideia de patrimônio cultural e centros históricos tendo em vista que o projeto a qual este trabalho se propôs busca dedicar-se à memória coletiva das mulheres, em especial potiguar, e está localizado em área de valor histórico patrimonial da cidade de Natal, o bairro da Ribeira. 36 1.2 LUGARES DE MEMÓRIA A ideia de patrimônio contida neste estudo remete-se à noção de patrimônio cultural descrita por Carlos Lemos (1981), que se desdobra em três grandes grupos: o primeiro compreende os elementos naturais edo meio ambiente; o segundo engloba os elementos imateriais do patrimônio – o conhecimento, as técnicas e o “saber fazer”; já o terceiro compõe os bens culturais, como objetos, artefatos e edificações (LEMOS, 1981). Somando este conceito às colocações de José Luiz dos Santos (1983), que afirma a cultura como expressão em toda a sua riqueza e multiplicidade de formas de existência de agrupamentos humanos e das características que os unem e diferenciam, entende-se por cultura toda e qualquer manifestação capaz de caracterizar um povo ou um período histórico, contribuindo para a construção de uma identidade. Identidade esta relacionada à necessidade de pertencimento a um determinado centro de referência por um indivíduo, que o permita construir traços comuns com o meio em que vive, estabelecendo uma ligação com sua própria história e preservando a memória do grupo social (CAFÉ, 2007). Ou seja, falar de identidade cultural e/ou coletiva é falar de todo o tipo de patrimônio com que a comunidade se relaciona e pela qual é determinada, sendo estreitamente ligado à noção de memória coletiva, ponto importante neste trabalho e que será explorada a seguir. A memória pode ser entendida como a capacidade humana de reter fatos e experiências do passado e retransmiti-los às novas gerações. De acordo com Olga Simson (2003), a memória pode ser dividida em três categorias: a memória individual, coletiva e subterrânea ou marginal. A memória individual, segundo a autora, é aquela guardada por um indivíduo e se refere às suas próprias vivências e experiências, mas que contém também aspectos da memória do grupo onde ele foi socializado. Já a memória coletiva é formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes que são guardados como memória oficial da sociedade mais ampla (SIMSON, 2003); sobre esse conceito, Maurice Halbwachs (2006) acrescenta: 37 [...] a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes de um grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com os outros ambientes (HALBWACHS, 2006, p.69). Por outro lado, as memórias subterrâneas ou marginais correspondem a versões sobre o passado dos grupos dominados de uma dada sociedade (SIMSON, 2003). Os grupos dominantes, à medida que foram se desenvolvendo e se organizando, materializaram suas memórias nos museus, arquivos, cemitério e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, marcos testemunhas de outra era (NORA, 1993). A materialização dessas memórias permitiu aos grupos dominantes determinar aos demais grupos quais acontecimentos são importantes e merecem ser celebrados, tornando-se detentores da memória e adequando a história a ela (NORA, 1993). A prática de controle da memória e da história deixa clara a tentativa de exclusão e silenciamento dos grupos minoritários, incluindo as mulheres, que geralmente passam suas memórias de geração em geração cuidadosamente por meio da história oral. Trazendo a discussão sobre o silenciamento das mulheres na história a nível regional, percebe-se, por exemplo, que a maior parte da população local desconhece o pioneirismo e importância das mulheres potiguares na luta por igualdade de gênero no Brasil. No campo político, as mulheres norte rio grandenses foram protagonistas no movimento sufragista brasileiro, sendo a Professora Celina Guimarães Viana (1890 – 1972), em 1927, a primeira mulher a votar e Alzira Soriano (1897 – 1963), em 1928, a primeira prefeita do país, fatos que repercutiram mundialmente, por se tratarem não somente da primeira eleitora e primeira prefeita do Brasil, mas também da América Latina - vale salientar que ambos acontecimentos ocorreram antes do voto feminino ser incluído pela primeira vez no código eleitoral brasileiro em 1932. O estado também elegeu a primeira vereadora do país em 1927, Joana Cacilda Bessa (1898 – 1998) e a primeira deputada estadual 38 mulher no Brasil em 1934, Maria do Céu Pereira Fernandes (1910 – 2001). Os mandatos de Alzira e Maria do Céu foram cassados depois de assumirem, e o voto de Celina, assim como de outras eleitoras pioneiras daquele momento, anulados pelo Senado por entender que o termo “cidadãos” compreendia somente os homens (LIMA, 2018). Embora muito se discuta sobre a tradição das mulheres potiguares na política, uma vez formada majoritariamente por mulheres brancas, vindas da elite do estado que ascenderam aos seus cargos através de herança política de seus maridos, pais, irmãos e tios; o protagonismo feminino potiguar não pereceu em décadas passadas, mantêm-se até os dias atuais, tendo como por exemplo as eleições de 2018, nas quais o Rio Grande do Norte foi o único dos 27 estados brasileiros a eleger uma governadora, primeira de origem popular, tornando-se a unidade federativa brasileira que elegeu o maior número de governadoras na história. Saindo do campo da política, o Rio Grande do Norte conta com nomes como Clara Camarão, índia potiguar nascida na metade do século XVII, que lutou contra os holandeses junto ao seu esposo Felipe Camarão em Recife e Olinda - Pernambuco e em Porto Calvo (1634) - Alagoas; a poetisa Auta de Souza (1876 – 1901)(“Conheça 10 mulheres Potiguares que fizeram história”, 2015); a escritora e educadora Nísia Floresta (1810 – 1885), hoje considerada a primeira feminista do Brasil, responsável por publicar textos em jornais na imprensa, rompendo os limites entre os espaços público e privado e se posicionado contra a escravidão e pela igualdade de gêneros (SOIHET, 2005); entre outros ícones da história nacional. Visto o que foi exposto, torna-se evidente a necessidade da materialização das memórias das mulheres, como categoria social, através da criação de espaços de proteção e difusão de suas lutas, contribuições e avanços, que tanto são silenciados. Salienta-se ainda que esses equipamentos voltados para fins de preservação e exposição da história exercem um papel fundamental no empoderamento feminino e na promoção da igualdade cidadã e equidade de gênero. 39 Dessa forma, propôs-se o anteprojeto de um Centro de Cultura, Memória e Estudos da Mulher, espaço que tem não apenas a função de expor e preservar, mas de promover o aprendizado e educação, objetivando o fortalecimento dos laços de pertencimento e noções de identidade da própria população - valorizando o patrimônio potiguar e conservando-o para futuras gerações - tema que será melhor explorado no item a seguir. 1.2.1 Centros de cultura: princípios e diretrizes Centros culturais são espaços que conservam, difundem as artes e expõem testemunhos materiais produzidos pelos seres humanos. No Brasil, há 2.500 centros culturais, entre museus, teatros, galerias, casas de culturas e bibliotecas, que mantêm acervos e exposições; com eles, o cidadão entra em contato com diversas manifestações artísticas e pode desenvolver um olhar mais crítico sobre a cultura e outros aspectos de seu cotidiano (“Centros culturais”, 2009). Os centros de cultura costumam ser e/ou tornam-se um ponto de encontro nas comunidades, lugares onde as pessoas se reúnem para conservar tradições e desenvolver atividades coletivas. De modo geral, as atividades lá desenvolvidas são gratuitas ou são cobrados valores simbólicos, de forma que todos possam usufruir do espaço; por isso os centros culturais frequentemente são propriedades de uma estatal ou cooperativa, já que comumente não se trata de instituiçõescom fins lucrativos (“Conceito de centro cultural”, 2013). De acordo com Renata Neves (2013), as atividades promovidas em um centro cultural podem ser resumidas em três verbos gerais que buscam se espacializar em ambientes, sendo eles: informar, discutir e criar. O verbo informar está relacionado ao acesso à informação pelo público, materializando-se em espaços de biblioteca, centro de multimídias, salas de exposições entre outros; já o verbo discutir busca transbordar a organização passiva das informações, relacionando-se à espaços de discussões, reflexões e críticas, tais como átrios, anfiteatros e auditórios; o terceiro e último verbo, criar, surge da interação entre a informação e a discussão e se espacializam em laboratórios, salas de oficinas, entre outros. https://conceito.de/ponto 40 Isto posto, entende-se centro cultural como um local onde há a concentração de atividades diversas em prol da cultura e que atuam de formas interdependentes, simultâneas e multidisciplinares. No Brasil, embora já houvessem espaços destinados à cultura ainda que sob denominações separadas - como museus, bibliotecas, teatro, entre outros - , foi a construção do Centro George Pompidou na França que impulsionou a construção de edifícios que agora seriam denominados centro culturais, na década de 1980 (MILANESI, 1997). Sendo marcos brasileiros a construção do Centro Cultural do Jabaquara e do Centro Cultural São Paulo, ambos em São Paulo (figura 04). Figura 04: (E) Centro Cultural São Paulo; (D) Centro Cultural do Jabaquara. Fonte: (E) Studio Plano Verde, 2014; (D)Yau; Rocha Filho, 2017. Vale destacar que houve um grande estímulo para a criação e manutenção de centros culturais nos últimos anos, alimentado por leis e investimentos de incentivo à cultura, tal como a criação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), em 2009, entidade responsável por desenvolver ações educativas e de inclusão social nos centros culturais, utilizando o patrimônio cultural como ferramenta de interação. Quanto às características físicas e programação dos centros culturais, essas definições devem ser feitas através da análise do público alvo e das particularidades de onde ele será construído. Além disto, para Neves (2013), os centros devem integrar três campos comuns ao trabalho cultural: a criação, circulação e preservação. O campo de criação atua como o “verbo criar”, 41 anteriormente explicado no texto; já o segundo campo prevê a circulação de bens culturais, evitando a conversão desses espaços em locais de somente lazer, sem a atuação dos três verbos mencionados; já a preservação atua no resguardo do bem cultural e a manutenção da memória da coletividade explicada no item anterior. Ainda segundo a autora, a relação desses campos (criação, circulação e preservação) com os verbos (informar, discutir e criar) citados, contribuem na compreensão da finalidade e funcionamento dos centros de cultura. No que concerne a arquitetura desses espaços, a autora destaca: Para proporcionar um bom funcionamento, um centro cultural deve exercer funções necessárias como espaços de apoio, contendo dependências administrativas, almoxarifado, reservas técnicas, sanitários, espaços que proporcione suporte para a realização dos objetivos principais. Sendo acrescentadas aos espaços “complementares”, estendendo o programa de necessidades, visando atender a demanda relacionada aos interesses econômicos, tais como: as cantinas, restaurantes, lanchonetes, livrarias, lojinhas de artesanatos, dentre outros. Ao propor o programa de necessidades de um centro cultural, o profissional deve ter consciência que enfrentará várias diversidades programáticas existentes, decorrentes das necessidades culturais que são bastante variadas no contexto social e saber ao certo o conceito de cultura (NEVES, 2013, p. 06). Outros atributos físicos também mencionados são: possibilidade de vários acessos, tornando o espaço mais receptivo e diminuindo a inibição do público; acessos em continuidade com espaços públicos, como por exemplo, praças; democratização dos espaços, traduzido na organização dos ambientes em volta de um espaço central de convívio, como pátio. Somado a estes, tem-se ainda: integração das diversas atividades através de visuais livres, objetivando atrair o público e permitir que ele conheça as atividades que lá são desenvolvidas; adequação ambiental, as salas devem apresentar boas dimensões e adaptabilidade aos diferentes tamanhos de público; e integração do público através de áreas de convivência (restaurantes, cafés, entre outros), para a reunião de usuários. Incorporam-se a estas orientações, diretrizes e princípios para bibliotecas públicas desenvolvidos pelo Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas/SNBP e 42 publicado em 2010. Como princípios gerais para o projeto arquitetônico, neste manual tem-se que: a solução arquitetônica deve sempre priorizar a funcionalidade dos espaços; as janelas devem ser posicionadas de modo a evitar o possível extravio de obras e a sua deterioração pela ação do sol, vento e umidade; o piso deve ser de material resistente e de fácil conservação; e os ambientes devem ser sempre que possível amplos e flexíveis. Quanto às recomendações técnicas, tem-se que embora devam ser considerados aspectos de iluminação e ventilação natural é indispensável o uso de iluminação artificial e instalação de aparelhos de ar condicionado; deve-se evitar a instalação de jardins suspensos, especialmente acima do acervo, visto o risco de infiltração de água; o exterior da edificação deve ser destacado e contar com placa indicando o nome da instituição e os horários de funcionamento; a biblioteca deve ter somente uma entrada para público e pessoal para facilitar o controle da circulação e deve contar com guarda- volumes; e que próximo a esta entrada deve estar o balcão de empréstimo e devolução e as salas de exposição. O quadro 04 reúne as diretrizes que serão empregadas na proposta arquitetônica. Quadro 04: Quadro resumo dos princípios e diretrizes para centros culturais. Fonte: Elaborada pela autora, 2019. 43 1.2.2 Centros Históricos Equipamentos com uso cultural geralmente são instalados nos centros das cidades, numa atitude de conservação do patrimônio histórico por meio de novos usos que viabilizem a conservação e sustentabilidade dos antigos edifícios; além dos centros históricos contarem com estrutura urbana relativamente consolidada. Os centros culturais e museus vieram, sob inúmeros pontos de vista, transformar, de novo, o centro da cidade em praça de comércio, sobre isto, acrescenta-se: Nesta praça, o mercado de arte e cultura resgata uma dimensão apenas aparentemente perdida: aquela que, ao estabelecer o constante uso do "espírito", garante a sobrevivência dos artistas ao mesmo tempo em que assegura a ordem futura. De outro lado, é inegável que as mudanças sociais, políticas e econômicas induzindo a dinâmica da cultura e de seus suportes físico-espaciais, encontraram, nas áreas centrais em arruinamento, os lugares ideais para o exercício da construção de novas expressões do dito "quanto mais se muda mais se permanece (GUIMARAENS; IWATA, 2001). Os centros históricos são, via de regra, a área mais antiga das cidades e, segundo a Direção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano – DGOTDU de Portugal, geralmente coincidem: Com o polo de origem do aglomerado, de onde irradiaram outras áreas urbanas sedimentadas pelo tempo, conferindo assim a esta zona uma característica própria cuja delimitação deve implicar todo um conjunto de regras tendentes à sua conservação e valorização (DGOTDU, 2005, p.63). Estas áreas iniciaram um processo de decadência e esvaziamento na segunda metade do século XX, com a expansão dos processos de suburbanização e deslocamentodo emprego para áreas novas da cidade, ação geradora de novas centralidades periféricas e maior diversidade de morfologias urbanas, conforme Ana Sofia Sebastião(2010). Contudo, a partir da década 1970, quando as questões econômicas se agravaram com o fim do boom econômico pós-guerra, ficou evidente a urgência de inverter a tendência de abandono dos núcleos históricos e das áreas centrais da cidade, pois reabilitar um parque habitacional preexistente, à escala de um centro histórico, acarretaria menos gastos do que construir de novo, como explica Eduardo Henriques (2003). 44 À escala de um núcleo histórico o processo de reabilitação é facilitado por já existir todo um conjunto de infraestruturas que não necessitam de ser novamente introduzidas de raiz, tais como canalizações, ligações eléctricas, condutas de gás, entre outras, justificando por vezes apenas alguns melhoramentos. Por outro lado, a própria conservação e reabilitação dos centros históricos das cidades para “as modernas procuras de habitação, ou para funções económicas e sociais”, permite por sua vez “conter o alargamento dos perímetros urbanos e, por esta via, controlar a escalada da procura de transportes” e todos os gastos energéticos a ela associados (HENRIQUES, 2003, p.227). Esta necessidade crescente de reanimar os núcleos históricos traduziu-se na elaboração de documentos, que apresentavam princípios relacionados à preservação, salvaguarda e à intervenção nos núcleos históricos das cidades. Por fim, para além da importância patrimonial mais física - edificada, ainda que tenha perdido parte da sua relevância e acessibilidade, os centros históricos mantiveram sua imagem simbólica como elemento marcante. De fato, centro histórico, para além de ser a área “em que as funções se sobrepõem e sobretudo o lugar em que se desenrolam as atividades vistas como sendo particularmente importantes, aquelas que se situam ao nível hierárquico mais elevado”, também são “o lugar simbólico por excelência, o da história e da memória coletiva”, segundo Jean Rémy e Liliane Voyé (1997, p. 92). O fenômeno descrito acima também pode ser observado no centro histórico da cidade de Natal – RN, especificamente no bairro da Ribeira, local da intervenção arquitetônica a qual este trabalho se propôs; por isso, será descrito no próximo item um breve histórico do bairro e como esse processo se deu. 1.2.3 A Ribeira Em Natal, assim como, a maior parte das cidades brasileiras do período colonial, o centro foi instalado fazendo uso da configuração acidentada do solo, no local de topografia mais elevada – bairro da Cidade Alta -, sendo demarcado pela construção de edifícios representativos de poder da época, como as igrejas e casas de câmara e cadeia. Imediatamente após o surgimento da Cidade Alta, ocorreu a ocupação da região de topografia mais baixa - bairro da Ribeira -, que possuía um outro aspecto comum à estrutura colonial de ocupação do território: a conexão com o oceano e as vias 45 marítimas de transporte (FIGUEIRA et al., 2018). Com o estabelecimento dessa zona portuária, a Ribeira que até então era tida como “zona de sítios para plantação e armazéns” (MIRANDA apud FERRAZ, 2008) se apropriou do título de “centro da cidade” devido a intensidade e a diversidade de atividades que passou a concentrar na época (FERRAZ, 2008). É importante destacar que as construções deste período - século XVII à meados do século XIX – eram em sua maioria em taipa, seguindo conformações “coloniais”. Porém, nas últimas décadas do século XIX as influências estilísticas trazida pela Corte Portuguesa presente nos grandes centros urbanos chegou na região, “modernizando” a cidade através de reformas urbanas que tiveram como objetivo adequar-se aos padrões higienistas da época. Sendo alocado grandes investimentos, entre 1908 e 1913, pelo poder público para “transformar a cidade” introduzindo no cenário urbano um sistema de abastecimento de água, transportes, comunicação e construindo novos edifícios (FIGUEIRA et al., 2018). Estes investimentos atraíram a transferência de várias instituições para o bairro, contribuindo para a multiplicidade de atividades lá instaladas, para além das atividades comerciais e residenciais. Na década de 1940, período em que Natal sediou uma base militar de grande importância para os Aliados no contexto da II Guerra Mundial, a Ribeira se desenvolveu enquanto polo cultural e de espaços de boemia, sendo abertos então grandes bares e hotéis (SEMURB, 2017). No entanto, como o fim da II Guerra Mundial teve-se início o processo gradual de transferência do centro comercial em direção às novas centralidades ocasionando uma perda de status e vitalidade do bairro - processo presente também em outras capitais brasileiras, como discutido no item anterior. Durante este processo de decadência, em 1980 iniciaram-se as discussões sobre o reconhecimento do valor patrimonial da Ribeira e de tombamento do traçado urbano do centro histórico de Natal, buscando reestabelecer as atividades culturais numa tentativa de evitar o esvaziamento noturno, já que há uma alta concentração de atividades predominantemente diurnas na área (comercio e serviço)(SEMURB, 2017). 46 Da década de 1990 a atualidade, os esforços do poder público não mais se concentraram em evitar o esvaziamento urbano, passando a agir na tentativa de reabilitar a área, sendo desenvolvidos diversos programas, ações e trabalhos na região. Salienta-se que os instrumentos legais e urbanísticos desenvolvidos neste período serão discutidos no item de condicionantes legais contido no capítulo 03 deste trabalho. 1.3. SÍNTESE DA BASE TEÓRICA A literatura estudada apresenta dois focos de abordagem, questões ligadas as mulheres no espaço, tanto de ordem social quanto física; e questões relacionadas à memória e espaços históricos. Este trabalho se detém ao aspecto físico do espaço, já que busca a intervenção arquitetônica, porém a compreensão da influência dos elementos sociais na experimentação do construído, arquitetônico e urbano, pelas mulheres se faz fundamental para a construção do programa e dos parâmetros de projeto. Em virtude do que foi discutido, compreende-se que a sensação de insegurança é o maior limitador do uso do espaço público pelas mulheres, tornando-se evidente a necessidade de uma intervenção urbana juntamente com a arquitetônica, que nesta proposta se caracteriza por uma intervenção na escala da rua. Verificou-se ainda uma escassez de diretrizes na escala da edificação, por isso, a proposta arquitetônica buscará rebater as recomendações para os espaços urbanos no edifício, fazendo com que o espaço privado seja uma extensão do espaço público a luz do gênero. No que concerne aos centros históricos, percebe-se a importância da inserção de novos usos na conservação desses sítios, que se dá através da promoção de vitalidade. Estes novos usos, especialmente os culturais, tornam o lugar mais atrativo aos olhos do público, local e turistas, por atrair a instalação de usos secundários diversos que geram copresença de usuários em diferentes horários, causando nos transeuntes e moradores, especialmente do sexo feminino, sensação de mais segurança. 2. Estudos de referências projetuais 48 No processo de concepção arquitetônica, o estudo de referências projetuais cumpre o importante papel de guiar os arquitetos na tomada de decisões, por meio da análise crítica de projetos existentes que solucionaram de forma satisfatória e/ou inovadora as necessidades e elementos projetuais que se assemelham aos da proposta a ser desenvolvida. A fim de explorar soluções relacionadas à escala, forma,
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