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ComissAúoNacionalVerdade-BatistaNeto-2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAIS SOCIAIS 
 
 
 
 
 
 
 
MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA 
CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL-RN 
2017 
MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO 
 
 
 
 
 
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA 
CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada à banca examinadora do 
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – 
PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a 
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. 
 
Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL-RN 
2017 
 
 
 
 
 
 
 
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA 
CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada à banca examinadora do 
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – 
PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a 
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. 
Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa 
 
 
 
 
Aprovada em 22 de junho de 2017. 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa (UFRN) 
Orientador 
 
 
Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso (UFRN) 
Examinador Interno 
 
 
Prof. Dr. Robério Paulino Rodrigues (UFRN) 
Examinador Externo ao Programa 
 
 
Prof. Dr. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva (UFPB) 
Examinador Externo à Instituição 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para Rivair Neto e as futuras gerações, que 
vocês sejam vitoriosos nas batalhas que 
perdemos no nosso tempo histórico. 
Em memória de Jacob Gorender, em nome de 
todos que lutam por uma outra civilização. 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
 Agradeço à minha família, em especial às mulheres. Minha mãe, Maria José, minha tia 
Margarida Maria, minha irmã Ana Guilhermina e minha companheira, Emanuella Palhares. 
São essenciais. Sem essas mulheres, qualquer caminhada seria mais longa, qualquer tarefa 
seria mais dura, qualquer travessia seria mais turbulenta. Apesar de todos os pesares, sem 
raízes profundas, até mesmo as árvores de almas velhas sucumbem nas tempestades cinzas. 
Minha gratidão ao meu orientador, professor Homero de Oliveira Costa, que entendeu 
a relevância deste trabalho e acreditou na minha capacidade, quando eu mesmo duvidei. O seu 
auxílio foi indispensável à conclusão do presente trabalho. Os dois anos de atividades ao seu 
lado, foram um tempo que me enriqueceu sem precedentes, sem comparativos. É impossível 
não registrar que das experiências mais extraordinárias da vida acadêmica, conhecer de perto 
Anita Leocádia Prestes pareceu-me como conhecer um pouco mais a história do Brasil, em 
carne viva e cérebro. Sem Homero Costa, esse encontro não passaria de uma ambição de 
historiador. 
Sou grato aos muitos trabalhadores invisíveis. Sem eles, a universidade jamais 
funcionaria: aos que limpam, constroem, imprimem e servem, meu muito obrigado. Os 
professores da UFRN que tiveram uma contribuição significativa na minha formação 
acadêmica e também pessoal, merecem ser citados. Os professores Robério Paulino, Gabriel 
Vitullo, Lincoln Moraes, Spinelli, César Sanson e Ana Patrícia Dias, tornaram o marxismo 
mais compreensível, ajudaram-me a compreender o mundo do trabalho e suas desigualdades, 
mas, acima de tudo, foram capazes de mostrar que o significado do trabalho do cientista 
social, não deve ser apenas compreender o Brasil e sua sociedade, nas suas facetas mais 
singulares, mas ajudar à mudar a realidade concreta das coisas. 
Quero agradecer os secretários do PPGCS, Otânio Revoredo Costa e Jefferson 
Gustavo Lopes. Ambos são responsáveis por um conjunto de tarefas que são indispensáveis 
ao funcionamento deste departamento de pós-graduação. Apesar de todas os afazeres, sempre 
atenderam de forma solicita as demandas de todos os mestrandos. Registro também um 
agradecimento especial ao meu tio, Ítalo Gonzaga Gê, ele que deu-me reiteradas 
demonstrações de apoio, suporte e estímulo. 
Se os amigos são a família que escolhemos para compartilhar os festejos e dissabores 
da existência humana, é motivo de felicidade poder contar com uma família extensa, o que é 
raro. Os companheiros de Ciências Sociais, tornaram-se bons amigos. Na graduação e no 
mestrado, conheci pessoas que levarei pelo resto da vida. João Vitor Curió, Artur Freire, 
André Machado e Alexandre Souza. Foram com eles que dividi os primeiros dias na 
universidade. Após o ingresso no mestrado em Ciências Sociais, a convivência e as conversas 
com Juliana Magalhães, Ana Lucas, Rômulo Dornelas e Bosco Teixeira só serviram de 
acréscimos para a vida. 
Os bons amigos são como o Sol, não precisamos vê-lo todos os dias para sabermos de 
sua existência. O tempo da terna infância e da juventude, o tempo da luta por uma outra 
sociedade e o tempo presente e imediato, são os tempos que fazem de um indivíduo uma 
criatura indispensável. O biomédico Neto Monteiro, os professores Ângelo Magalhães e 
Magnus Gonzaga, os meus advogados Max Ferreira, Johnata Macêdo, João Paulino e Diogo 
Filho, com esses tive e tenho o inestimável orgulho de ter dividido as trincheiras da militância 
política. Aos amigos e irmãos Anildo Neto, Italo Gonzaga Jr., Fabiano Dreschsler, Wilson 
Filho, Ítalo Luan Barbosa, Stênio Filho, Adriano Gabriel, Raul Basílio, Leonardo Bezerra, 
Leonardo Basílio, Bruno Goulart e Yuan Soares, minha gratidão por compartilhar boa parcela 
dessa existência. 
Por fim, registro um agradecimento especial a professora Jovelina Santos, quadro do 
Departamento de História da UERN em Açu. Sem o seu ímpeto, ousadia e encorajamento, 
talvez não fosse possível ter concluído caminhadas tão importantes. Se todas as construções 
começam pelos alicerces, Jovelina Santos foi um dos pilares que me permitiu erguer-me não 
apenas como historiador ou cientista social, mas como algo muito mais importante, que é 
resistir e erguer-se em cada tropeço, como gente. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Há um quadro de Klee que se chama Angelus 
Novus. Representa um anjo que parece querer 
afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus 
olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas 
asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. 
Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós 
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma 
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína 
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria 
de deter-se para acordar os mortos e juntar os 
fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e 
prende-se em suas asas com tanta força que ele não 
pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele 
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as 
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o 
céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. 
Walter Benjamin 
 
 
 
RESUMO 
 
 
O presente trabalho tem como objetivo analisar o papel da Comissão Nacional da Verdade 
(CNV), instituída através da Lei Nº. 12.528 de 18 de novembro de 2011, pela presidente 
Dilma Rousseff, com o intuito de apurar as graves violações de direitos humanos, afim de 
efetivar o direito a memória e a verdade histórica. Tomamos o seu Relatório Final como 
principal fonte de pesquisa, o documento que contém mais de 4 mil páginas, dividido em três 
volumes. O primeiro traz um panorama da repressão, apresentando o modus operandi da 
ditadura, os agentes responsáveis por violações como tortura, estupro, execuções e ocultação 
de cadáver e recomendações que congregam medidas para o avanço na política de efetivação 
dosdireitos humanos e da democracia no Brasil. O segundo volume traz textos temáticos e 
aborda questões como a repressão contra indígenas, comunidades campesinas, militares, 
igrejas cristãs, dentre outras. O terceiro volume é exclusivamente dedicado às vítimas da 
ditadura, elucidando as circunstâncias da morte e desaparecimento de 434 casos. Analisamos 
a comissão e seu relatório, tendo como principal instrumental teórico o materialismo 
histórico. Neste sentido, foram fundamentais os seguintes autores: Marx (1996, 2009) Walter 
Benjamin (1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike 
Davis (2008), Noberto Bobbio (1986), Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973), 
Florestan n (2015), Weffort (1989), Milton Pinheiro (2014) e Spinelli (2014). A Comissão, 
que trabalhou por dois anos e sete meses, revelou um panorama de continuidade de graves 
violações de direitos humanos, tais como a tortura difusa e contínua e a execução 
extrajudicial, promovidas por agentes dos organismos de segurança do Estado. Partindo do 
objetivo geral do trabalho, que foi o de identificar se a Comissão cumpriu suas metas definas 
em Lei, as principais constatações estabelecidas foram que a comissão logrou êxito na sua 
missão institucional, revelando o atraso do Brasil em matéria de direitos humanos, analisamos 
ainda que o processo de transição democrática e a governabilidade de coalizão no Brasil, em 
especial suas características, implicaram por formar as limitações da própria Comissão 
Nacional da Verdade e do desenvolvimento da democracia brasileira. 
 
Palavras-Chave: Comissão Nacional da Verdade. Democracia. Direitos Humanos. 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
The purpose of this paper is to analyze the role of the National Truth Commission (CNV), 
established through Law no. 12,528 of November 18, 2011, by President Dilma Rousseff, in 
order to investigate serious violations of human rights, in order to realize the right to memory 
and historical truth. We take your Final Report as the main source of research, the document 
containing more than 4000 pages, divided into three volumes. The first presents a panorama 
of repression, presenting the modus operandi of the dictatorship, the agents responsible for 
violations such as torture, rape, executions and concealment of corpses, and recommendations 
that bring together measures for the advancement of the policy of human rights and 
democracy in Brazil . The second volume brings thematic texts and addresses issues such as 
repression against indigenous peoples, peasant communities, military, Christian churches, 
among others. The third volume is exclusively devoted to the victims of the dictatorship, 
elucidating the circumstances of death and disappearance of 434 cases. We analyze the 
commission and its report, having as main theoretical instrument historical materialism. In 
this sense, the following authors were fundamental: Marx (1996, 2009) Walter Benjamin 
(1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike Davis , 
Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973), Florestan (2015), Weffort (1989), Milton 
Pinheiro (2014) and Spinelli (2014). The Commission, which has been working for two years 
and seven months, has shown a continuity of serious human rights violations, such as 
widespread and continuing torture and extrajudicial execution, carried out by agents of State 
security agencies. Based on the overall objective of the work, which was to identify whether 
the Commission met its legal goals, the main findings were that the commission succeeded in 
its institutional mission, revealing Brazil's human rights backlog, That the democratic 
transition process and the governability of coalition in Brazil, especially its characteristics, 
imply for forming the limitations of the National Commission of Truth itself and the 
development of Brazilian democracy. 
 
Keywords: National Truth Commission. Democracy. Human rights. 
 
 
 
 
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS 
 
ABDDH - Associação Brasileira de Defesa 
de Direitos do Homem 
ACNUR - Alto Comissariado das Nações 
Unidas para os Refugiados 
AI -5 – Ato Institucional nº 5 
AL – América Latina 
ALN – Aliança Libertadora Nacional 
ANL – Aliança Nacional Libertadora 
ANPUH – Associação Nacional de 
História 
BG – Batalhão de Guardas 
CEA – Conferências dos Exércitos 
Americanos 
CEDI – Centro Ecumênico de 
Documentação e Informação 
CEMDP - Comissão Especial sobre 
Mortos e Desaparecidos Políticos 
Cenimar – Centro de Informações da 
Marinha 
CIA - Central Intelligence Agency 
CIDH - Comissão Interamericana de 
Direitos Humanos 
CIE – Centro de Informações do Exército 
Ciex – Centro de Informações do Exterior 
CIGS - Centro de Instrução de Guerra na 
Selva 
CISA – Centro de Informações de 
Segurança da Aeronáutica 
CNV – Comissão Nacional da Verdade 
Conadep – Comissão Nacional sobre o 
Desaparecimento de Pessoas 
DEOPS – Delegacia Especializada de 
Ordem Política e Social 
DINA - Dirección Nacional de Inteligencia 
DOI - Destacamento de Operações de 
Informações 
DOI-CODI - Destacamento de Operações 
de Informações do Centro de Operações de 
Defesa Interna 
DOPS – Departamento de Ordem Política 
e Social 
ECA – Estatuto da Criança e do 
Adolescente 
EPU – Exame Periódico Universal 
ESG – Escola Superior de Guerra 
EUA – Estados Unidos da América 
FHC – Fernando Henrique Cardoso 
Funai – Fundação Nacional do Índio 
GPS - Global Positioning System 
HCE – Hospital Central do Exército 
JK - Juscelino Kubitscheck 
LAI – Lei de Acesso à Informação 
LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais e 
Transexuais 
MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de 
outubro 
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil 
ONU – Organização das Nações Unidas 
PCB – Partido Comunista Brasileiro 
PIN – Plano de Integração Nacional 
PNDH – Programa Nacional de Direitos 
Humanos 
PNUD - Programa das Nações Unidas para 
o Desenvolvimento 
POR-T - Partido Operário Revolucionário 
Trotskista 
PPGCS - Programa de Pós-graduação em 
Ciências Sociais 
PSOL – Partido Socialismo e Liberdade 
SIAN - Sistema de Informações do 
Arquivo Nacional 
SIM – Subsistema de Informação sobre 
Mortalidade 
SNI – Serviço Nacional de Informação 
STF – Supremo Tribunal Federal 
STJ - Superior Tribunal de Justiça 
UERN – Universidade do Estado do Rio 
Grande do Norte 
UFRN – Universidade Federal do Rio 
Grande do Norte 
UNE – União Nacional dos Estudantes 
UPP – Unidade de Polícia Pacificadora 
URSS - União das Repúblicas Socialistas 
Soviéticas 
USA – United States of America 
USP – Universidade de São Paulo 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
 
INTRODUÇÃO ...……...………..……….….…...…..……………….......…...…….. 
CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL……........…..………. 
1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA 
AMÉRICA LATINA...............…..………..…………………....….………..…………. 
1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO..………. 
1.3 O RELATÓRIO PARCIAL: PRIMEIROS PASSOS.....................…........……… 
CAPÍTULO II: O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO NACIONAL DA 
VERDADE......…...…………….…………...……………..….….…….……...…….. 
2.1 O RELATÓRIO DA CNV.…...……………..………….…………………..…….. 
2.2 OS EMBATES SOBRE O RELATÓRIO..…...…...……….....………..………… 
CAPÍTULO III: DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: 
DESAFIOS E POSSIBILIDADES....…….…...…........…..……….....……………. 
3.1 BRASIL, O PAÍS DAS VIOLAÇÕES………......……………...……………….. 
3.2 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES DA CNV..……………………………. 
CONSIDERAÇÕES FINAIS.….…..…….…...…..….……………..…………….... 
REFERÊNCIAS……....…..….…....……...……..…...…….….…...………………… 
13 
17 
 
17 
30 
45 
 
55 
55 
79 
 
91 
91 
100 
121 
125 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
13 
INTRODUÇÃO 
 
A democracia e seu futuro, os regimes políticos, os direitos humanose as ações do 
Estado brasileiro são temas atuais que têm a atenção de vários ramos do conhecimento 
científico, a história, a ciência política, a sociologia, dentre outras. Essas temáticas não são 
abordadas apenas pela academia, na imprensa e entre os movimentos sociais. Muito tem se 
discutido sobre a democracia brasileira e inevitavelmente sobre o passado recente do país, 
marcado pela barbárie autoritária da ditadura militar. O cinquentenário do golpe militar de 
1964, festejado por setores conservadores em 2014 e amplamente discutido nas universidades 
e entre organizações sociais, mostra que este é um dos grandes debates nacionais da 
atualidade. 
Para apurar as graves violações aos direitos humanos, identificar seus autores e os 
locais onde as práticas de execução, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de 
cadáveres foram cometidos durante a ditadura (1964-1985), a presidente Dilma Rousseff 
instituiu, por meio da Lei 12.528, a Comissão Nacional da Verdade, que após dois anos e sete 
meses de trabalho, apresentou o seu relatório final, que foi organizado em três volumes e 
contêm 4.328 páginas. 
O objetivo deste trabalho foi o de analisar o relatório da Comissão Nacional da 
Verdade e seu papel para o desenvolvimento da democracia brasileira e suas instituições, o 
cumprimento dos objetivos instituídos para esta organização, seu alcance e limites. Neste 
sentido, usamos o materialismo histórico como principal referencial teórico-metodológico. 
Neste contexto a importância de Walter Benjamin (1987) é essencial, tanto para compreender 
que a construção da história não ocorre sob os pilares de um passado estático e vazio, mas em 
um tempo saturado de “agoras”, assim como o ofício do historiador é o de “escovar a história 
a contrapelo”, observando as contradições do processo histórico, as tensões e interesses que 
cercam à ótica sobre o passado e nosso tempo histórico. 
O trabalho da Comissão Nacional da Verdade teve limitações impostas pela 
governabilidade de coalizão e pelas próprias características da transição democrática no 
Brasil? Esta foi a pergunta de partida que orientou nosso trabalho. Esta hipótese se confirmou 
na nossa análise, abrindo um debate sobre a ausência de aspectos cruciais da reconstrução 
14 
histórica do período investigado pela CNV, como a participação de lideranças civis no golpe e 
na consolidação da ditadura militar, ausentes no relatório. 
As formas como enxergamos nosso próprio passado, nossas práticas e ações e os 
significados que a estes são atribuídos forjam uma cultura hegemônica que legitima o modo 
de vida das sociedades. A cultura e sua própria transmissão não é isenta de ideologias 
autoritárias. Para Walter, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um 
monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1987 p.7). O Brasil, fundado na barbárie genocida, no 
autoritarismo reacionário e no convênio entre as elites que historicamente tornaram o 
princípio da representação política, em seu filho bastardo, não construiu uma cultura de 
democracia e justiça. Essa cultura autoritária tem na ditadura militar, no seu legado e no 
massacre dos povos excluídos, suas principais expressões contemporâneas. 
Henri Lefebre (2013), também nos fornece um aporte teórico, no sentido de rejeitar as 
hierarquias postas em vigor na sociedade e, o mais importante, apresentando o materialismo 
“como uma sociologia cientifica com consequências políticas” (LEFEBRE, 2013, p.18), o que 
significa dizer que o objetivo do nosso trabalho também é ter como efeito uma compreensão 
mais adensada sobre os avanços e retrocessos da democracia no Brasil, tendo como ponto de 
vista o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que revela o tamanho do atraso brasileiro 
em efetivar os direitos humanos e garantir os direitos democráticos mais fundamentais. 
Destacamos a importância do progresso das pautas dos direitos humanos para o Brasil, 
mas entendemos que, apesar do avanço de direitos democráticos, os limites impostos pela 
lógica do capitalismo são claros e bem definidos. Para Ellen Meiksins Wood, 
fundamentalmente, em essência a democracia e o capitalismo são incompatíveis, já que os 
imperativos do lucro, tornam os elementos da democracia em mercadorias. “O capitalismo 
coexiste com a democracia formal e a democracia formal deixa fundamentalmente intacta a 
exploração de classe” (WOOD, 2011, p.173). 
A caracterização que fazemos sobre a democracia contemporânea e o papel que os 
Estados Unidos da América exerceram na América Latina em meados do século XX, em 
especial no contexto da Guerra Fria, patrocinando a campanha ideológica anticomunista, 
arquitetando o surgimento de ditaduras e apoiando governos autoritários para garantir seus 
interesses econômicos, baliza-se em Noam Chomsky (2003), Mike Davis (2008), Celso 
Furtado (1973), Osvaldo Coggiola (2016), Enrique Serra Padrós (2008) e Florestan Fernandes 
15 
(2015), dentre outros. A reação de setores da esquerda e do campo progressista ao avanço 
autoritário ocorreu com a eclosão da luta armada, em maior ou menor grau em diferentes 
países, fenômeno lucidamente analisado por Jacob Gorender (2014). 
O enfraquecimento dos regimes militares e o acordo entre as elites na América Latina, 
mas especificamente no Brasil, possibilitaram a transição à democracia. Neste contexto, 
Francisco Welffort (1989), Milton Pinheiro (2014), Dierter Nohlen (1994), Teresa Schneider 
Marques (2010) e Antonio Spinelli (2014) fornecem os subsídios necessários à compreensão 
do processo de transição e suas consequências, como as iniciativas circunscritas à justiça de 
transição e à luta pelo direito à verdade, memória e justiça, conceitos trabalhados por Renan 
Quinalha (2013) e Simone Pinto (2010), dentre outros. 
Nosso primeiro capítulo tem a preocupação de apresentar um panorama, mesmo que 
limitado, dos processos de transição democrática na América Latina, destacando os 
surgimentos das comissões de verdade como iniciativas circunscritas à justiça de transição e 
instituídas por governos, parlamentos, pela justiça e mesmo por acordos de paz. A cultura da 
impunidade, como define Baltasar Garzón (2005), é um problema que precisa ser enfrentado, 
e para tal, é indispensável responsabilizar os agentes que foram autores de graves violações 
aos direitos humanos. Países como Bolívia, Equador, Uruguai, El Salvador, Chile, Guatemala, 
Panamá, Peru, Paraguai, Honduras e Argentina instituíram suas respectivas comissões e 
obtiveram consequências que resultaram das especificidades do processo de cada país. 
Ainda neste capítulo inicial, buscamos apresentar o percurso histórico da instituição da 
Comissão Nacional da Verdade no Brasil, seus trâmites burocráticos, as tensões que se 
estabeleceram entre movimentos sociais e militares e o seu relatório parcial, apresentado ao 
final de um ano de trabalho, trazendo um balanço deste primeiro ano de atividades da 
comissão, tais como à tomada de depoimentos e audiências públicas. 
O segundo capítulo faz um breve resumo do relatório final da Comissão Nacional da 
Verdade e mostra os embates sobre o relatório protagonizados por setores políticos de matizes 
ideológicas distintas, o que demonstra o quão heterogêneo é a visão destes setores sobre o 
relatório. Destacamos a compreensão que o Clube Militar, organização fundada em 1887, 
formada majoritariamente por oficiais da reserva das Forças Armadas, fez do relatório, assim 
como o de movimentos sociais e entidades vinculadas aos direitos humanos. 
16 
Encerramos nosso trabalho com o terceiro capítulo, que apresenta e discute as 
recomendações da Comissão Nacional da Verdade para o avanço da democracia com a 
efetivação dos direitos humanos, garantias fundamentais e indispensáveis do Estado 
democrático de direito. A transição para a democracia no Brasil, feita sob medida para não 
atingir ou prejudicar os agentes do terrorismo de Estado e as autoridadescivis que 
endossaram esse projeto, repôs as eleições regulares da democracia representativa e um 
conjunto de direitos, mas não foi capaz de abolir praticas autoritárias perpetradas pelos 
organismos de segurança do Estado. O legado da ditadura militar se materializou no entulho 
autoritário que permanece em estruturas e práticas do Estado e seus agentes. É no sentido de 
corrigir aparatos legais e constitucionais, que servem como beneplácito para a continuação 
dessa cultura autoritária, que as recomendações da Comissão Nacional da Verdade se dirigem. 
Vale destacar, ainda sobre as recomendações da CNV, que elas, ao tempo que 
apontam caminhos para reformulações necessárias no sistema jurídico e penal, também 
mostram o atraso que o país atravessa em matéria de direitos humanos. As execuções 
extrajudiciais nas periferias, a tortura como método continuo e difuso dentro das 
penitenciarias, a criminalização dos movimentos sociais e o endurecimento do Estado penal, 
ao longo dos últimos anos, aparecem como componentes deste cenário de atraso. É certo 
também afirmar que as recomendações são indicações que precisam ser encaminhadas pelo 
Estado, através de projetos de leis presentados pelo Governo Federal ao parlamento, assim 
como medidas do próprio Poder Judiciário. As recomendações por si só não se efetivam, caso 
o avanço da pauta dos direitos humanos não ocorra nos mecanismos de aprovação do Estado. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
17 
CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL 
 
1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA AMÉRICA 
LATINA 
 
As rupturas dos regimes autoritários e a transição no caminho da consolidação 
democrática são processos povoados de disputas, tensões e incertezas. Nos países que 
viveram as experiências das ditaduras, é evidente que a superação da cultura do autoritarismo 
não depende apenas de um dispositivo jurídico que restitua direitos e garantias 
constitucionais. As consequências do terrorismo de Estado patrocinada pelas ditaduras não se 
dissipam com rupturas institucionais, mas permanecem vivas como sequelas de uma cultura 
da arbitrariedade que se impregna na burocracia estatal, no funcionamento da máquina 
pública, nas instituições e na sociedade. 
As tendências e forças autoritárias foram expressivas na América Latina do século 
XX. Essa história recente tem sido marcada pela espoliação e pela violência na periferia do 
capitalismo, sob o beneplácito do autoritarismo militar. A América Latina, especialmente a 
partir dos anos 1960, teve várias ditaduras militares, nas quais os princípios da 
autodeterminação dos povos e a soberania nacional foram sistematicamente desrespeitadas. 
Em nenhum continente ou região do mundo, entre os anos de 1960 e 1980, houve o avanço de 
tantos regimes militares quanto na AL. “Na América Latina, mais de dois terços dos países 
que a compõem viviam uma situação de exceção”, esclarece Martin-Chenout (2009, p.225). 
A proliferação dos Estados de exceção mudou profundamente as estruturas dos 
estados nacionais: a vida política, o regime jurídico, o mundo do trabalho, a educação e a 
cultura, o meio ambiente. A imprensa e os artistas passaram a conviver com a regulação da 
censura e operam-se as modificações típicas do processo de militarização da sociedade. A 
sociedade sob controle, cívica, obediente e resignada, passou a ser a aspiração de uma casta 
militar que esteve à frente do Estado em muitos países. A população sofreu um duro golpe 
pela restrição de liberdades e pagou um preço alto pelo declínio econômico, após décadas de 
ditaduras à serviço do capital estrangeiro. 
 De acordo com Weffort (1989, p.21) “os regimes militares nos legaram estruturas 
autoritárias de Estado muito mais consolidadas do que as que existiam antes deles”. Ao 
18 
referir-se a América Latina, Weffort aponta que a ditadura brasileira iniciada em 1964 
inaugurou a fase das ditaduras latino-americanas de padrão moderno, amparados na estrutura 
burocrática e na capacidade da violência legitimada, constituindo instrumento de coerção 
institucional e regular. Após o golpe de 1964 no Brasil, os regimes de caráter burocrático-
autoritário se estenderam à Argentina (1966), ao Chile (1975) e ao Uruguai (1973). 
As ditaduras latino-americanas deflagraram Estados de exceção, na maioria dos casos 
ferindo as exigências do direito internacional dos direitos humanos, suprimindo direitos que 
não poderiam ser derrogados mesmo em situações de crises ou guerras. “Estados de exceção, 
com duração, exorbitante podem ser constatados no Paraguai e na Colômbia, Argentina, 
Brasil, Chile, El Salvador e Uruguai também conheceram Estados de exceção de longa 
duração, afirma Martin-Chenout (2009, p. 232). O resultado dessa política foi a ratificação da 
negação de direitos básicos e a difusão de uma guerra contra opositores e dissidentes dos 
regimes. 
Os índices de repressão política na Argentina, Brasil e Chile, dentre outros países, 
demonstram com clareza que os regimes militares converteram os Estados em draconianas 
máquinas de moer gente e aniquilar opositores. Como diz Eduardo Galeano (2002): 
 
Meio milhão de uruguaios fora do país. Um milhão de paraguaios, meio milhão de 
chilenos. Os barcos zarpam repletos de rapazes que fogem da prisão, do fosso ou da 
fome. Estar vivo é um perigo; pensar, um pecado; comer, um milagre. (...) A 
ditadura é um costume de infâmia; uma máquina que te faz surdo e mudo, incapaz 
de escutar, impotente para dizer e cego para o que está proibido olhar. O primeiro 
morto da tortura desencadeou, no Brasil, em 1964, um escândalo nacional. O morto 
número dez na tortura quase nem apareceu nos diários. O número cinquenta foi 
normal. A máquina ensina a aceitar o horror como se aceita o frio no inverno 
(GALEANO, 2002, p. 84-85). 
 
A repressão galgou uma escalada da violência bárbara, numa região dominada pelo 
militarismo que levou a cabo a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinado de dezenas 
de milhares de pessoas. Meio milhão de argentinos exilados, mais de 60 mil presos políticos 
no Chile e muitas torturas e assassinatos são estatísticas dos países que atravessaram a 
experiência nebulosa das ditaduras. As movimentações militares, os recursos financeiros e 
humanos utilizados, as forças envolvidas para a consolidação de golpes de Estado com a 
19 
tomada do poder e a consequente imposição autoritária foram elementos mobilizados 
ideologicamente por um projeto de poder. Esse projeto histórico de poder, encabeçado pelo 
militarismo, mas pensado pela burguesia, foi vitorioso no sentido da dimensão política e o seu 
caráter fascista e corporativo confessou-se nitidamente antidemocrático e reacionário. 
 
Os militares também teriam formulado o seu próprio “projeto histórico”, em geral de 
sentido neoliberal e modernizador. (...) O projeto histórico dos militares envolve a 
ideia sinistra – alias, de ressonâncias nitidamente totalitárias, em que pesem suas 
origens supostamente liberais – de que eles estariam diante de uma sociedade 
enferma, como tal merecedora de tratamentos de choque e de um empenho de 
regeneração sob direção das Forças Armadas. (...) Na linguagem deles, foi um 
projeto antiestatista, anticomunista, antipopulista, e anti-revolucionário. (...) um 
projeto confessadamente anti-democrático, de cunho fascista ou corporativista. 
Como se sabe, e como é próprio da lógica perversa dos movimentos reacionários, 
eles derrubam a democracia em nome da defesa da democracia (WEFFORT, 1989, 
p. 19-20). 
 
O projeto histórico dos militares, relevado por Weffort (1989), justifica 
ideologicamente o extermínio de milhares de pessoas numa cruzada internacional contra o 
comunismo. Esse projeto pertencia aos militares na medida em que foram estes atores que 
executaram um trabalho prático, na sua dimensão política e armada, mas não foram eles os 
sócios majoritários, nem os principais formuladores deste projeto.O papel que os Estados 
Unidos da América e a burguesia cumpriram neste processo foi fundamental e imprescindível, 
especialmente em um período tomado pelas tensões da Guerra Fria. 
A vitória da Revolução Cubana, em 1959, acendeu o sinal de alerta nos EUA, que 
redobraram a atenção na observação das movimentações políticas dos países latino-
americanos, redirecionando recursos financeiros e humanos para patrocinar golpes de Estado, 
no sentido de manter a América Latina como sua área de influência, impedindo o crescimento 
de tendências políticas de caráter reformista e popular-progressistas naquele momento, 
convenientemente classificadas como socialistas/comunistas. A polarização entre os blocos 
socialista (URSS) e capitalista (EUA) corroborou para forjar as condições ideológicas para 
intervenções estadunidenses, justificando a supressão da democracia em nome da defesa da 
20 
democracia. A estratégia internacional dos EUA operou em uma dimensão continental para 
frear “excessos esquerdistas”, orientando-se pela Doutrina de Segurança Nacional. 
Nestes termos, a “guerra ao comunismo internacional” serviu como discurso oficial 
estadunidense, álibi ideológico para viabilizar ingerências políticas, justificar invasões na 
aplicação da política de segurança hemisférica. Frente a Revolução Cubana e o avanço de 
pautas de esquerda e governos populares, como os de Goulart, no Brasil e Allende, no Chile; 
o conjunto dessas ações serviam a uma estratégia continental. “Para o tio Sam, era preciso 
responder à situação revolucionária continental com uma política contrarrevolucionária de 
dimensão equivalente”, caracteriza José de Queiroz (2015, p.105). Vale destacar que nos 
marcos desta estratégia continental, a burguesia teve um importante papel durante a ditadura. 
O ingresso de grandes empresas nos países da América Latina constituiu “superpoderes” em 
economias frágeis e intermediárias, como esclarece Celso Furtado (1973). 
 
Convocadas para atuar na América Latina com uma série de privilégios, fora do 
controle da legislação antitruste dos Estados Unidos, e com a cobertura político-
militar desse país, as grandes empresas estadunidenses terão necessariamente que 
transformar-se em superpoder em qualquer país da região. Cabendo-lhe grande parte 
das decisões básicas com respeito à orientação dos investimentos, à orientação da 
tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau de integração das econômicas 
regionais, é perfeitamente claro que os centros de decisão representados pelos atuais 
estados nacionais passarão a plano cada vez mais secundário. (...) As grandes 
empresas com sua elevada capitalização, particularmente quando apoiadas por 
muitos privilégios em países subdesenvolvidos como os da América Latina, têm 
efeito semelhantes aos de certas grandes árvores exóticas que são introduzidas em 
determinadas áreas: drenam toda a água e dessecam o terreno, provocando um 
desequilíbrio na flora e na fauna, com o surgimento de pragas e coisas parecidas 
(FURTADO, 1973, p. 41). 
 
Sobre essa relação entre o empresariado e os militares, Wladimir Pomar formula uma 
caracterização sobre o caráter burguês-militar do regime de repressão. Os desdobramentos 
históricos e as parcerias firmadas entre empresas e o núcleo repressivo da ditadura mostram 
que esta caracterização se fundamenta nas classes que, de fato, fizeram parte da direção 
política e econômica do país. 
 
21 
É isso que tem levado muitos estudiosos, mesmo de esquerda, a proclamar que o 
golpe e a ditadura tiveram um caráter cívico-militar. Ou seja, não teria havido uma 
ditadura militar, mas sim uma ditadura civil-militar. Talvez, para serem mais 
precisos nessa linha de raciocínio, devessem falar de uma ditadura burguesa-militar, 
já que a burguesia foi aquela que realmente lucrou com o regime militar, e se 
manteve fiel a ele até seus estertores. (POMAR, 2014, p.71) 
 
A estratégia estadunidense “anti-insurreição” contemplou um conjunto articulado de 
ações cirúrgicas em diferentes áreas. Essas ações se estenderam pelo terreno da política 
diplomática as questões econômicas e militares. Os exércitos nacionais paulatinamente se 
tornaram forças auxiliares dos EUA em seus próprios países e os aparelhos ideológicos e 
materiais se materializou Escola Militar do Caribe, posteriormente School of Americas, que 
permitiu a otimização de investimentos dos EUA e a inserção de sua política de segurança 
para a AL. 
 
A Escola Militar do Caribe na zona do Canal de Panamá, escola que desde 1961 teve 
o centro das suas atividades no treino “anti-insurrecional” (ou “contra-insurgente)” 
dos oficiais latino-americanos nela inscritos. A economia de esforços que este 
investimento militar significava para os EUA está ilustrada por estas cifras, de 1967: 
o custo médio de um soldado norte-americano era de 5.400 dólares, o de um das 
forças armadas “complementares”, 540. O Programa de Assistência Militar (PAM) 
foi o pilar de sustentação das Forças Armadas numa série de países (Bolívia, 
Republicada Dominicana, Equador, Honduras, Guatemala, Panamá, Paraguai, a 
Nicarágua somozista), onde os exércitos se transformavam numa espécie de 
apêndice das Forças Armadas norte americanas (COGGIOLA, 2014, p.55). 
 
A maioria das intervenções e golpes de Estado, na América Latina, tiveram os 
interesses estadunidenses como diapasão e originaram ditaduras e consequente militarização 
dos regimes políticos. “Alguns pontos em comum de todos os regimes militares são evidentes: 
dissolução das instituições representativas, falência ou crise aguda dos regimes e partidos 
políticos tradicionais, militarização da vida política e social em geral”, enumera Coggiola 
(2014, p.61), que aponta que o desenvolvimento dependente das Forças Armadas dos países 
latino-americanos, que viveram seus processos de modernização intermediados por missões 
estrangeiras, assim como a falta de visão estratégica do nacionalismo burguês de base militar 
22 
que, mesmo no seu auge nas décadas de 1940 e 1950, se mostrou incapaz de formular um 
projeto de unidade continental que quebrasse a espinha da dominação imperialista na AL. 
Essas condições, na conjuntura da Guerra Fria, lançaram as bases para o avanço do 
imperialismo estadunidense, que balizou o surgimento de uma onda de ditaduras e abriu o 
ciclo de militarização na AL. 
Os regimes não se originaram nem se tornaram a direção de um movimento de massas, 
não se institucionalizaram no esteio da ideia do “partido único”, mas no domínio de uma casta 
de militares sob o Estado, tendo os EUA como principal articulador internacional. É 
necessário indicar o papel dos EUA na emergência de regimes autoritários na AL, pois o 
autoritarismo latino-americano e a diplomacia dos EUA fazem parte de uma mesma história, 
indivisível. Quase todos os países da América Latina atravessaram períodos de repressão, 
liderada por militares. Na maioria dos países da América Central e do Sul, os anos de 
continuada repressão estabeleceu uma tradição de violência atroz, impunidade e 
esquecimento. A violência foi perpetrada por agentes do Estado que tinham absoluta certeza 
de não serem responsabilizados e, mesmo após a democratização de vários países, a 
impunidade desses agentes continua. 
A maioria dos regimes militares na AL foi resultado de processos específicos em cada 
um dos países, mas a militarização da vida social e as sequelas do autoritarismo são 
semelhanças convergentes em todas as ditaduras. Os processos de transição para a democracia 
possuem suas diferenças e semelhanças, algumas poucas ocorreram por colapso, mas em sua 
maioria, as transições foram viabilizadas por acordos entre as elites, sob o beneplácito da 
casta militar e da burguesia, como indica Nohlen (1994). 
 
Em geral, pode-se dizer que os processos de negociação entre as elites autoritárias e 
seus opositores, assim como no interior dos seus respectivos círculos,tiveram um 
papel muito mais importante nos processos de democratização latino-americanos 
dos anos oitenta que se supôs no início (NOHLEN, 1994, p. 5). 
 
No Brasil, a saída da ditadura ocorreu por uma transição acordada. Spinelli (2014, p. 
49) aponta que “a transição brasileira contou com um importante grau de imposição por parte 
dos militares e incluiu a celebração de um pacto implícito”. As imposições dos militares 
garantiram que o processo de abertura democrática controlada (ou lenta, gradual e segura) 
23 
fosse conduzida pelos militares. O pacto celebrado pelo processo de democratização teve os 
próprios militares como principais signatários e o setor da oposição civil moderada, como 
subscritor, caracterizando-se como a típica transição pactuada. 
As transições têm suas particularidades e é importante esclarecê-las. Santos (2007, p. 
89) classifica três tipos distintos de transições políticas: transação (transição pactuada), 
afastamento voluntário ou colapso. Em linhas gerais a transação ocorre quando o regime 
perde força e opta por conduzir o Estado ao processo de democratização. O afastamento 
voluntário assemelha-se ao primeiro, mas diferencia-se na sua gradação de influência, já o 
colapso diz respeito aos regimes autoritários que são derrotados politicamente, dando espaço a 
emersão de um novo regime, oxigenado e sem grilhões que lhe impeçam de passar sua 
história recente a limpo, reformar instituições e avançar em pautas fundamentalmente 
democráticas. 
 
À medida que os governos militares e seus partidários descobriram, por sua vez, de 
maneira simétrica, que o autoritarismo não era mais viável no contexto da depressão 
econômica dos anos 1980 e da globalização, os dois campos encontraram-se no 
meio do caminho, na América Latina. Já no Leste europeu, os membros das 
nomenklaturas de todo tipo tiveram ou de retratar-se, fantasiando-se de democratas, 
ou de reconverter-se no setor econômico, tomando conta dele, ou, ainda, no caso dos 
mais velhos, retrair-se em exílio interior (HERMET, 2001, p. 29-30). 
 
Hermet (2001) mostra as diferenças entre as transições nos países da América Latina e 
do Leste, apontando os imperativos econômicos conjunturais que constituíram as condições 
para as transições. Grosso modo, as ditaduras latino-americanas gradativamente foram 
perdendo força frente as exigências do mercado, da globalização e dos aspectos da conjuntura 
econômica e política internacional, enfrentando também o crescimento das contestações 
internas e a perda de apoio popular. 
Vale destacar também que as transições políticas da AL não são casos isolados. “Na 
realidade, elas fazem parte de uma grande maré democrática que alcançou proporções 
mundiais no final do século XX”, salienta Schneider Marques (2010, 67). Neste contexto, 
cientes de que uma transição era imperativa, os militares optaram por dirigir o processo 
transitório, inviabilizando qualquer possibilidade de revanchismo e garantindo segurança 
24 
jurídica para os agentes de Estado, através da concessão de anistias. A maioria das transições 
foi feita por cima (envolvendo acordos de paz e acordos extraoficiais entre as elites), distante 
de setores populares, movimentos sociais, organizações de direitos humanos, partidos de 
esquerda e lideranças políticas do campo progressista. 
No Brasil, a Lei de Anistia, de 1979 “estende seus benefícios aos crimes conexos, 
perdoou os que se envolveram nos porões do regime com a prática da tortura e do assassinato 
de opositores políticos” (SPINELLI 2014, p. 54). É importante apontar que o legado da 
estrutura repressiva não se resume a anistia concedida a torturadores, que legitima praticas 
violentas e se fortalece na tradição do esquecimento. Quanto maior o silêncio sobre as 
atrocidades dos regimes autoritários, mais forte se torna as tendências ou as práticas que se 
tributam ao autoritarismo e a repressão. Esquecer o extermínio é parte do próprio extermínio, 
explica Jean Baudrillard (2003). Neste sentido, combater a amnésia política e social é 
fundamental para uma transição política que busque a superação do legado autoritário e o 
encontro do povo de diferentes nações, com sua própria história. 
Uma transição democrática deve garantir eleições periódicas, livres, diretas e 
transparentes, o direito ao sufrágio universal e auto-organização, a liberdade de imprensa e a 
de organização em partidos políticos, além de um conjunto amplo de reformas 
democratizantes das instituições, que, sob a égide de uma ditadura, não seriam possíveis. 
Apesar de todas as mudanças burocráticas necessárias no funcionamento do Estado, estas não 
são suficientes para a consolidação da democracia. É necessário discutir os abusos que foram 
cometidos durante a vigência de regimes truculentos, esclarecer casos, indicar 
responsabilidades, reparar vítimas e impedir que a amnésia política impeça o futuro da 
democratização, dando espaço as tradições autoritárias fundadas no esquecimento e na 
violência. Não existe uma fórmula única para tratar dos abusos e lidar um com um passado 
marcado pelo desrespeito aos direitos humanos, mas quase todos os países se apoiam em 
iniciativas da justiça de transição para auxiliar as transições políticas. 
A justiça de transição ou transicional não significa um tipo especifico de justiça, mas 
um conjunto de iniciativas que servem ao processo de democratização de sociedades que 
passaram por experiências autoritárias e, sobre sua conceituação, trataremos melhor adiante. 
Vale destacar que a transição política democratizante é um processo que tem início, mas não 
deve ser considerada conclusa em muitos casos, por dois motivos: primeiro, porque o entulho 
25 
autoritário não se dissolve das instituições em um curto prazo e segundo porque “para um 
estado democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica”, 
como esclarece Bobbio (1986, p.9). 
A consolidação da democracia em um país é um processo povoado de tensões, 
avanços, retrocessos e reviravoltas. “Nem mesmo no caso mais avançado do Uruguai, onde se 
trata de reconstruir a democracia, poderíamos dizer que estamos diante de uma democracia 
consolidada”, aponta Weffort (1989, p.7), que considera que é próprio da atmosfera das 
transições serem cercadas de incertezas. Contudo, muitas são as iniciativas tomadas na 
América Latina, no sentido da democratização, obtendo-se resultados satisfatórios. A 
instituição de comissões de verdade é um remédio utilizado pelos países que optam por tratar 
sua amnésia política e passar sua história a limpo 
O objetivo de uma comissão de verdade é reconciliar a memória nacional à história. 
Trata-se de promover o encontro de um país com sua história, de levar no banco dos réus 
criminosos impunes. Como diz Baltasar Garzón (2005). 
 
A história da impunidade em todos os povos é a história da covardia dos que 
geraram, mas também dos que a consentiram ou a consentem posteriormente. Em 
todas as hipóteses a história está marcada por grandes discursos de justificação e de 
chamadas à prudência de modo a não romper os frágeis equilíbrios conseguidos em 
troca da não exigência de responsabilidades dos perpetradores ou que a referida 
exigência se realize com moderação. Da mesma forma, abundam discursos 
justificativos (GARZÓN, 2005, p. 172). 
 
A constituição de Comissões de Verdade, que visam a apurar violações e abusos aos 
direitos humanos, tem sido uma iniciativa promovida em vários países que viveram sob 
ditaduras. Desde 1974, mais de vinte comissões de verdade foram criadas na América Latina, 
por iniciativas de Governos e parlamentos ou por acordos de paz. As comissões receberam 
nomenclaturas diferentes, possuem suas especificidades, mas buscam o mesmo objetivo e 
amparam-se na legislação internacional dos Direitos Humanos. São órgãos temporários, 
algumas foram acompanhadas pela ONU e maioria concluiu seus trabalhos com relatórios,deixando as punições para a justiça dos respectivos países. 
26 
Realizamos uma catalogação das Comissões da Verdade na América Latina e as 
classificamos em quatro grupos: 1) as que fracassaram; 2) com trabalhos insatisfatórios; 3) 
com trabalhos satisfatórios e 4) de referência internacional na defesa da verdade, memória e 
justiça. 
As experiências de Comissões da Verdade na Bolívia e Equador, não foram exitosas. 
Na Bolívia, em 1982, foi criada a Comissão Especial de Inquérito sobre Desaparecidos, primeira 
comissão fundada na AL. A comissão coletou testemunhos sobre 155 casos de desaparecimentos 
forçados, mas, sem apoio político e a estrutura de trabalho necessário, se dispersou sem apresentar um 
relatório final. No Equador, a Comissão de Justiça e Verdade foi criada em 1996 com três membros de 
organizações internacionais de direitos humanos e tinha a responsabilidade de encaminhar ao 
Judiciário as evidências nos casos apurados, mas, sem recursos suficientes, ela encerrou suas 
atividades com apenas cinco meses, sem apresentar um documento final e sem encaminhar as 
investigações à justiça. Em ambos os casos, elas sequer conseguiram concluir seus relatórios 
finais, não obtiveram êxito em encaminhar os casos de abusos à justiça e foram dispersadas, 
em virtude da falta de apoio institucional. 
No Uruguai, foi criada a Comissão de Investigação da Situação de Pessoas Desaparecidas e 
Suas Causas, em abril de 1985. No entanto, seu relatório final tratou dos desaparecimentos, 
mas não sobre os casos de tortura e prisões ilegais, em virtude de seus limites legais. O 
relatório, apesar de público, foi pouco divulgado e é pouco conhecido. 
Em El Salvador, A Comissão da Verdade foi criada em 1991 por um acordo de paz entre as 
partes envolvidas na guerra civil e a ONU. O seu primeiro relatório, apresentou doze casos de 
execuções cometidas pelas forças armadas e recomendou a dispensa de todos os militares e civis 
citados pelo documento. O governo e os militares tiveram uma reação negativa, alegaram que a 
comissão havia ultrapassado seus marcos legais e uma anistia foi aprovada poucos dias após a 
divulgação do relatório, impedindo a punição dos envolvidos com as violações de direitos humanos. 
Assim, as comissões de El Salvador e Uruguai elaboraram relatórios, mas não 
conseguiram cumprir a missão que lhes foi confiada, ou seja, a de divulgar amplamente os 
casos e buscar punições. No caso uruguaio, pela fraqueza do alcance do relatório e no caso 
salvadorenho, por um imbróglio político, que impediu que houvessem punições efetivas 
frente todas as evidências coligidas pela comissão. 
 As comissões de verdade instituídas no Chile (1990), Guatemala (1994), Panamá 
(2001), Peru (2001) e Paraguai (2003), tal como o Comissionado para a Proteção de Direitos 
27 
Humanos de Honduras, Leo Valladares, nomeado em 1992, conseguiram, em maior ou menor 
gradação, desemprenhar papéis fundamentais pelo reconhecimento histórico das violações, 
promovendo o direito a verdade, esclarecendo as responsabilidades do Estado frente os abusos 
e propondo recomendações pela reparação as vítimas e seus familiares. O trabalho dessas 
comissões deve ser considerado satisfatório e importante para a reconciliação entre um país e 
sua história. 
Em Honduras, 179 casos de desaparecimentos provocados pelas forças armadas foram 
esclarecidos. No Chile, a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação entregou seu 
trabalhou final e obteve do governo o reconhecimento oficial das violações a direitos 
humanos e um pedido formal de desculpas feito pelo presidente Patrício Aywin, em nome do 
Estado. A reparação financeira e a concessão de benefícios médicos e educacionais as vítimas, 
e seus familiares foi uma recomendação realizada pela comissão que se concretizou com a 
abertura da Corporação Nacional para Reparação e Reconciliação. A Comissão para o 
Esclarecimento Histórico da Guatemala empreendeu enormes esforços para coletar o maior 
volume de depoimentos, resultando na entrega de seu relatório, que registrou mais de 42 mil 
vítimas, contabilizando mais de 23 mil assassinados. O esclarecimento desses casos é 
essencial à memória nacional. 
No Panamá, A Comissão de Verdade contou com a assistência de organizações 
nacionais e internacionais de direitos humanos, que lhe auxiliaram com informações. O seu 
relatório final foi entregue em abril de 2002. 
No Peru, a Comissão de Verdade e Reconciliação apresentou o seu relatório com 69 
mil casos de mortos e desaparecidos, em sua maioria, da comunidade indígena. Este 
esclarecimento não faz parte apenas da história peruana, mas lança uma luz sobre o imenso 
massacre indígena que se operou neste país, um dos maiores da história recente da América 
Latina. 
No Paraguai, a Comissão de Verdade e Justiça teve o volumoso trabalho de esclarecer 
as violações nos 35 anos da ditadura militar de Stroessner, marcada pela repressão e violência. 
Além da Comissão de Verdade e Justiça, a Comissão Nacional de Direitos Humanos 
trabalhou um programa de compensações às vítimas da ditadura. Sobre o desempenho da 
Comissão de Verdade e Justiça, esclarecem Alarcon e Mandelli: 
 
28 
A Comissão teve por objetivo investigar as violações aos direitos humanos 
cometidas por agentes estatais e paraestatais entre 1954 e 2003; seu foco principal 
recaiu sobre os 35 anos de ditadura de Stroessner. O relatório é resultado de uma 
série de audiências públicas temáticas, mais de duas mil entrevistas e testemunhos, e 
da consulta aos arquivos da ditadura paraguaia que já vieram a público. Em seus oito 
tomos, podem ser encontrados dados estatísticos sobre a repressão, descrições dos 
métodos do terror de Estado, listagem de vítimas e detalhes de alguns casos 
paradigmáticos das práticas de prisão, tortura, violência sexual, exílio forçado, 
desaparecimento e execução de opositores e lideranças populares. Pela primeira vez, 
pôde-se ter uma imagem mais precisa do alcance da repressão que vitimou a 
sociedade paraguaia. A Comissão de Verdade e Justiça contou quase 20 mil 
detenções arbitrárias ou ilegais, mais de 18 mil opositores torturados, mais de três 
mil exilados, 336 desaparecidos e 59 executados. Durante o regime de Stroessner, 
um em cada 67 adultos foi torturado. É também notável o número de cidadãos 
paraguaios que desapareceram enquanto estavam exilados em países vizinhos – 102 
na Argentina e sete no Brasil –, em prováveis ações da operação Condor. Mas o 
relatório foi além: a grilagem de terras incentivada pela ditadura e a distribuição 
ilegal de terras públicas a latifundiários e apoiadores do regime, que atingiu 28% das 
terras aráveis do Paraguai, é tema de um dos volumes. Violações contra mulheres, 
crianças e povos indígenas, mesmo quando não apresentavam motivações 
explicitamente políticas, também foram abordadas, entendidas como 
responsabilidade do regime autoritário. Os trabalhos da Comissão resultaram 
também em dez denúncias judiciais contra violadores, bem como em uma lista de 
177 recomendações ao poder público paraguaio. Entre elas, dar continuidade à busca 
pelos restos dos desaparecidos políticos, preservar antigos centros de tortura como 
espaços de memória, alterar nomes de ruas e outros locais públicos que 
homenageiam violadores, e solicitar a outros países que abram seus arquivos 
relacionados à violação de direitos de cidadãos paraguaios (ALARCON e 
MANDELLI, 2011, p. 56). 
 
As comissões citadas acima tiveram um trabalho satisfatório no esclarecimento das 
violações pelos regimes autoritários latino-americanos, Na América Latina, apenas a 
Argentina deve ser apontada como a referência internacional na defesa da verdade, memória e 
justiça, pois foi o único país que levou centenas de envolvidos com torturas e assassinatos ao 
banco dos réus, condenando mais de duzentos militares e civis, alguns a pena perpétua. 
29 
A Comissão Nacional sobre o Desaparecimentode Pessoas (Conadep), em apenas 
nove meses, ouviu mais de sete mil depoimentos e entrevistas. O trabalho da comissão foi 
responsável por reunir informações que serviram para mais de duas mil denúncias contra 
torturadores. Além do julgamento de oficiais e da abertura de processos na Justiça, a comissão 
teve um grande alcance na divulgação de seu trabalho, o relatório “Nunca Más” documento 9 
mil desaparecidos e tornou-se um best-seller, testemunhos de vítimas foram lidos em rede 
nacional de televisão e a defesa dos direitos humanos e a condenação da ditadura se tornou e 
continua, sendo um elemento nacional da vida política argentina. O alcance dos trabalhos da 
Conadep não se restringiu a apuração dos acontecimentos, mas foi capaz de avançar na justiça 
pelas condenações dos algozes da ditadura e pautou nacionalmente o debate sobre verdade, 
memória e justiça. 
Compreendendo que uma comissão de verdade, em maior ou menor grau, obedece a 
três estágios de atuação, o relato de história, a construção moral e as consequências políticas, 
é correto afirmar que apenas a Conadep, na Argentina, conseguiu, na América Latina, um 
efetivo e expressivo resultado nestes três níveis. Ela foi capaz de esclarecer o período de 
repressões na ditadura argentina com base em testemunhos e documentos, conseguindo 
didaticamente a reprovação social da violência cometida pelo arbítrio de um Estado de 
exceção e causando consequências políticas com a punição, com prisão perpétua de oficiais 
que estiveram nos porões e gabinetes da ditadura. A experiência argentina deve ser vista como 
referência e exemplo de transição democrática e trato com a história. 
As comissões de verdade tem um papel importante para a história de um país que 
atravessou períodos autoritários. Elas possuem um papel pedagógico para a democracia. 
Trata-se de esclarecer as circunstâncias da morte de jovens que foram executados sem o 
direito a um tribunal e deixaram pais aflitos que não puderam sepultá-lo. Essas histórias foram 
silenciadas por muito tempo, porque incomodam, mas contá-las, reconhecendo as 
responsabilidades do Estado e seus agentes, entendendo que mesmo a reparação justa é 
insuficiente para os parentes e amigos que perderam um íntimo, é um antídoto forte contra 
uma amnésia que tem como principal sintoma uma profunda incompreensão do presente, 
fatalmente originada na incompreensão do passado. É neste sentido que apresentamos 
panoramicamente as experiências das comissões verdade na América Latina, para tratar do 
30 
percurso histórico que antecede a criação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil e seu 
respectivo trabalho. 
 
1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO 
 
 No ano de 2014, registrou-se o cinquentenário do golpe militar no Brasil. Neste 
período, muitas universidades, movimentos sociais, entidades e organizações de direitos 
humanos, associações de familiares de presos e desparecidos políticos retomaram, com mais 
vigor, o debate sobre democracia e ditadura. O tema ganhou a atenção de editoras que 
anunciaram novas publicações e relançamentos de livros vinculados ao tema. Eventos 
acadêmicos e debates foram promovidos por professores e coletivos de militância de várias 
matizes ideológicas, atingindo uma parcela da população escolarizada em instituições de 
ensino básico e superior, em círculos de militância política e ativismo social. 
Em Brasília, no aniversário do cinquentenário do golpe, a presidente Dilma Rousseff 
fez um pronunciamento no Palácio do Planalto, onde enfatizou a importância das conquistas 
democráticas. Na Sede da OAB, o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, 
participou de solenidade onde em ato simbólico pediu perdão em nome do Governo brasileiro 
as vítimas da Ditadura. No Senado, parlamentares pediram revisão da Lei de Anistia na sessão 
especial que lembrou o golpe. Em uma manifestação intitulada de “escracho”, vários cartazes 
foram afixados na frente da casa do ex-chefe do DOI-Codi e coronel reformado do Exército, 
Brilhante Ustra. Vários atos em capitais e grandes cidades, como Brasília, São Paulo, Porto 
Alegre, Belo Horizonte e Salvador repudiaram o golpe, homenagearam os mortos e 
desparecidos políticos. 
Contudo, o golpe civil-militar também foi comemorado por parte da sociedade no ano 
de seu cinquentenário, naquele momento em proporções menores as manifestações de repúdio 
à ditadura. Um ano depois, em 2015, houve um robusto crescimento de manifestações que 
pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff e multiplicaram-se atos por uma 
intervenção militar no Brasil. Uma parcela da sociedade brasileira idealiza a ditadura como 
um regime a-corrupto de paz social e o autoritarismo brasileiro como parte de uma ideologia 
conservadora mostra-se vivo e presente. “O fascismo não perdeu, como realidade histórica, 
nem seu significado político nem sua influência ativa. O fascismo, como ideologia e utopia, 
31 
persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma poderosa força política 
organizada”, esclarece Florestan Fernandes (2015, p.33). 
Análogo ao fascismo analisado por Florestan, o mesmo pode-se dizer as tendências 
autoritárias no Brasil. 
 A intervenção militar de 1964 fez parte de uma estratégia continental, que tinha os 
EUA como fiador e a burguesia brasileira e os militares como parceiros do consórcio 
imperialista que atuou pela substituição de presidentes eleitos por sócios dos interesses 
estadunidenses nos países latino-americanos, como Brasil e Chile. 
 O resultado do golpe foi uma ditadura, de caráter burgo-militar, como define Milton 
Pinheiro (2014), que perdurou por 21 anos. O golpe de 1964 é caracterizado pela “tomada do 
poder e o estabelecimento de uma ditadura de classe comandada pelo grande capital”, como 
afirma Monteleone (2016, p.10). “Washington garantiu apoio aos seus tradicionais aliados 
militares e lhes forneceu ajuda, porque os militares eram essenciais a estratégia para conter 
excessos esquerdistas do Goulart, presidente eleito”, esclarece Chomsky (2003, p.289). A 
histérica bandeira do combate ao comunismo internacional serviu como álibi ideológico para 
os EUA e seus parceiros, avançando contra princípios democráticos básicos como a imprensa 
livre, a autodeterminação dos povos e a liberdade de expressão e auto-organização, 
falsificando a realidade e posteriormente a história. Desmistificar os papéis dos principais 
atores da trama da Ditadura: os EUA, a burguesia brasileira e os militares, é acertar contas 
com o passado e promover a reconciliação do Brasil com sua própria história. 
Quase 30 anos após o fim do regime, interregno temporal suficiente para um balanço 
honesto sobre a ação terrorista do Estado brasileiro durante a ditadura, foi instalada a 
Comissão Nacional da Verdade, através da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Os 
movimentos sociais pelo direito à verdade, memória e justiça, que têm empreendido uma luta 
histórica pela apuração das graves violações aos direitos humanos e pela responsabilização e 
punição dos autores de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados, conquistaram um 
importante avanço com a instituição da CNV. 
 A ditadura brasileira, iniciada com o golpe de 31 de março de 1964, converteu o país 
em um Estado de Exceção. Um conjunto de direitos e liberdades civis e individuais foram 
desrespeitadas e a ditadura se tornou responsável direta pela morte de centena de pessoas, 
estudantes, trabalhadores, religiosos, jornalistas, artistas e setores médios que se bateram 
32 
contra as atrocidades protagonizadas pelos militares. Além das mortes, mais de 20 mil presos 
políticos e um lastro de torturas e desaparecimentos forçados são registros das nebulosas 
práticas da ditadura e da história contemporânea brasileira. As graves violações humanitárias 
não foram registradas apenas do Brasil. É importante pontuar que a ascensão do autoritarismo 
foi um fenômenocontinental na América Latina. 
 Várias ditaduras militares, entre as décadas de 1960 e 1970, foram apoiadas pelos 
Estados Unidos, inclusive a ditadura militar brasileira. O contexto da Guerra Fria que 
polarizou o mundo entre os blocos dos EUA e do chamado Free World e o da União 
Soviética, respectivamente socialista, torna-se um aspecto essencial para entender a ação 
binária que os parceiros estadunidenses adotaram frente os agrupamentos de esquerda na 
América Latina. 
No Brasil, ainda durante a ditadura militar, teve início a luta pelo esclarecimento das 
versões oficiais de desaparecimentos e assassinatos por motivação política. A conhecida 
história da estilista Zuleika Angel Jones, conhecida também como Zuzu Angel, que 
empreendeu inúmeros esforços para encontrar seu filho, Edgar Angel Jones, estudante de 
Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e militante do Movimento 
Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que foi preso 14 de junho de 1971 por agentes do 
Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica e dado como desaparecido, é um exemplo 
da luta de familiares de presos e desaparecidos políticos pelo direito à verdade histórica, 
memória e justiça. Zuzu Angel, tal como muitas outras mães, não conheceu, através do Estado 
e da justiça, a verdade sobre o destino dado ao seu filho. Ela fez da moda uma ferramenta de 
denúncia, mas em 1976, foi vítima de um atentado que culminou com sua morte. 
O relatório final da CNV, ao versar sobre o mandato legal da comissão, que tem o 
direito internacional como diapasão e exemplo, aponta o primeiro marco legal sobre o direito 
à verdade. 
 
Coube ao direito internacional humanitário, destinado a regular situações de conflito 
armado, a primeira referência normativa ao direito à verdade. Em 1949, as 
Convenções de Genebra já fixaram regras a respeito de registro e fornecimento de 
informações sobre as vítimas de conflitos armados, bem como sobre a obrigação das 
partes em facilitar as investigações feitas pelos membros das famílias dispersadas 
pela guerra. Contudo, o reconhecimento explícito do direito das famílias a saber 
33 
sobre o ocorrido com seus entes deve ser atribuído ao Protocolo Adicional I às 
Convenções de Genebra, de 1977. Seus artigos 32 e 33 tratam do direito das famílias 
de conhecer o destino de seus membros, ao término dos períodos marcados por 
hostilidades, bem como da obrigação das partes envolvidas no conflito de localizar 
as vítimas, ou os despojos das vítimas cujo paradeiro permaneça ignorado (CNV, 
2014, p. 34). 
 
Um ano após a morte de Zuzu Angel, em 1977, o Protocolo Adicional I às 
Convenções de Genebra, em seus artigos 32 e 33, estabeleceu a responsabilidade dos estados 
em localizar o paradeiro e despojos de vítimas que sofreram graves violações de direitos 
humanos marcadas pela hostilidade de conflitos armados e outras intempéries da história 
recente. 
 O avanço da legislação que tratava das questões humanitárias teve um novo capítulo 
escrito no Brasil em 1979. A criação dos Comitês Brasileiros de Anistia, em 1978, 
impulsionou manifestações públicas pelo retorno dos exilados e o lançamento de um conjunto 
de ações: debates, panfletos, abaixo-assinados e a edição de livros que tiram do isolamento os 
presos políticos. As mobilizações ganham as ruas e simpatizantes no Congresso, como o 
senador Teotônio Vilela. O Governo se mostrava reticente a conceder anistia, mas o avanço 
da campanha e uma greve de fome de 32 dias dos presos políticos levaram o presidente João 
Baptista de Oliveira Figueiredo a girar a tática governamental sobre o tema. Costa (2001, p. 
86), com base no Projeto Brasil Nunca Mais, aponta que “naquele momento, havia no Brasil 
cerca de 200 presos políticos, 128 banidos, 4.877 punidos por Atos de Exceção, 263 
estudantes atingidos pelo artigo 477 e cerca de 10 mil exilados”. 
A campanha teve como palavra de ordem “Anistia ampla, geral e irrestrita” e o general 
presidente João Batista Figueiredo sancionou a Lei Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Em 
linhas gerais, a anistia concedida não foi a projetada pelos comitês e serviu também para que 
os militares se auto anistiassem, com a extensão do perdão a torturadores. Mas também 
simbolizava um processo de abertura dentro da institucionalidade, que serviu para fortalecer 
as condições para outras movimentações políticas, como as “Diretas Já” de 1985. 
 A Anistia de 1979 e a derrota da emenda constitucional que previa Eleições Gerais em 
1985, impulsionada pela campanha das “Diretas Já”, segundo Spinelli (2014, p. 61) “protegia 
os militares contra pretensões revanchistas e permitiria que eles exercessem uma discreta 
34 
tutela sobre o governo civil, adiantando a competição real com a oposição, em reeleição 
direta, para 1991”. 
A sucessiva queda de regimes autoritários na América Latina, a perda de legitimidade 
da ditadura brasileira, o avanço de mobilizações, como as pela liberdade dos presos políticos 
com o processo de anistia e o pedido de eleições gerais para 1985, forjaram as condições para 
um processo de abertura. 
 A distensão “lenta, gradual e segura”, publicamente iniciada com o general e 
presidente Ernesto Geisel, em 19741, avançou sob o comando de Figueiredo e teve importante 
marco com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em 1985, o primeiro presidente 
civil desde 1964. Em decorrência de sérios problemas de saúde, Tancredo veio a falecer em 
21 de abril de 1985. 
José Sarney, que havia tomado posse interinamente como presidente desde 15 de 
março daquele ano, passou à titularidade da Presidência da República. Neste sentido, é 
importante destacar que ele foi um aliado dos militares e gozava de confiança das cúpulas do 
poder militar, um agende político sob o controle do diapasão autoritário. 
 Após a ascensão de um civil à Presidência, a Constituição de 1988, que ensejou ampla 
mobilização da sociedade, teve papel fundamental como novo marco constitucional que 
fundamenta o Estado democrático de direito e restitui uma série de direitos e garantias civis. 
O processo de abertura possibilitou maior organização e várias associações de familiares de 
presos e desaparecidos políticos, a exemplo das Madres de Plaza de Mayo, na Argentina, 
assim como entidades de direitos humanos, foram fundadas, em um contexto favorável a 
organização e à luta pelo direito à verdade, que tomou novos contornos pós-ditadura. A 
abertura dos arquivos da Ditadura, a punição de torturadores com a revisão da Lei de Anistia e 
a indenização e reparação histórica se tornaram bandeiras importantes, assim como a 
instituição de uma comissão da verdade. 
 A luta pela democracia e pela verdade histórica tem uma dimensão não apenas 
humanitária, mas também política. O Relatório da IV Reunião Anual do Comitê de 
Solidariedade aos Revolucionários do Brasil, documento datado de fevereiro de 1976, 
 
1 É importante citar que o presidente Ernesto Geisel aprovou uma série de medidas autoritárias como o 
fechamento do Congresso em 1º de abril de 1977, além de reformas que permitiam e reforçava uma confortável 
predomínio do Governo nas esferas legislativas. Essas medidas fizeram parte de um arsenal judicial que 
reforçava o poder do Governo em conduzir um processo de abertura tutelada. 
35 
encontrado no acervo pessoal do ex-senador e líder comunista Luiz Carlos Prestes, apresenta 
uma lista de 233 torturadores da cidade de São Paulo. A historiadora Vivi Fernandes de Lima 
(2012) relata, em um dossiê sobre Prestes, o significado deste documento que registrou os 
nomes de algozes do regime e buscou preservar essa memória, uma ação política de combate 
ao esquecimento e de denúncia ao autoritarismo. 
 Este não foi o único dossiê produzido por militantes políticos e ativistas de direitos 
humanos durante a ditadura. O certo é que eles têm um sentido muito claro: reivindicaruma 
história onde as memórias dos que foram vítimas não desapareça ou seja enterrada. Calveiro 
(2013) afirma que nos campos de concentração/extermínio na Argentina, havia-se quase uma 
obsessão: alguém deveria sobreviver para contar fora da prisão o que aconteceu com os que 
foram presos. 
 Para o filósofo Walter Benjamin (1987, pp 3, 14) “somente a humanidade redimida 
poderá apropriar-se totalmente do seu passado” e a “história é objeto de uma construção cujo 
lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Ela é um salto 
de tigre em direção ao passado”. 
A promulgação da Constituição Cidadã de 1988 restituiu uma série de garantias 
fundamentais suspensas pela ditadura brasileira. No cenário internacional as obrigações dos 
Estados com as vítimas de graves violações de direitos humanos, também foram ratificadas 
em 1988, em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como 
apresenta Simone Pinto (2010): 
 
Em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao 
caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, em que ficou definido que todos os 
Estados, estão sujeitos a quatro obrigações: a) tomar medidas para prevenir 
violações aos direitos humanos; b) conduzir investigações quando as violações 
ocorrem; c) impor sanções aos responsáveis pelas violações e d) garantir reparação 
para as vítimas. Estes princípios foram reafirmados em decisões subsequentes e 
adotadas também por decisões da Corte Européia de Direitos Humanos e por 
tratados e resoluções da ONU (PINTO, 2010, p. 129). 
 
No Brasil, o que pode ser apontado como o episódio de maior importância no percurso 
das reivindicações por verdade, memória e justiça, pós-Constituição de 1988, foi a instalação 
da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a CEMDP. O presidente 
36 
Fernando Henrique Cardoso (FHC), que sofreu pressão política de grupos de familiares de 
presos e desaparecidos políticos, tomou a iniciativa de abrir diálogo. O Ministério da Justiça, 
através do Ministro Nelson Jobim, recebeu pela primeira vez, em 1995, representantes da 
Comissão de Familiares de Presos Políticos, Mortos e Desaparecidos e do grupo Tortura 
Nunca Mais. O resultado dessa interlocução foi a aprovação e a sanção presidencial de Lei nº 
9.140, de 4 de dezembro de 1995, que afirmou a responsabilidade do Estado sobre os crimes 
praticados por agentes estatais durante a ditadura e criou a CEMDP. A própria comissão faz 
referência à importância da lei. 
 
Ela afirmou a responsabilidade do Estado pelas mortes, garantiu reparação 
indenizatório e, principalmente, oficializou o reconhecimento histórico de 
que esses brasileiros não podiam ser considerados terroristas ou agentes de 
potências estrangeiras, como sempre martelaram os órgãos de segurança. Na 
verdade, morrera lutando como opositores políticos de um regime que havia 
nascido violando a constitucionalidade democrática erguida em 1946 
(BRASIL, 2007, p. 30). 
 
A CEMDP, instituída em 1995 pelo presidente FHC, concluiu seu trabalho com a 
publicação do seu relatório final “Direito à Verdade e à Memória” em 2007, já sob o mandato 
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É importante ressaltar que antes da conclusão dos 
trabalhos da CEMDP, em 2005, por determinação presidencial, foram retirados mais de 20 
milhões de páginas sobre a ditadura do extinto Serviço Nacional de Informação, o SNI e 
recolhido ao Arquivo Nacional. 
Registre-se ainda que essas iniciativas estavam ancoradas nas determinações da ONU, 
em especial da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o 
Desaparecimento Forçado, que ocorreu em 2006 e diz que “toda vítima tem o direito de 
conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino da 
pessoa desaparecida, bem como o direito à liberdade de buscar, receber e difundir 
informações com esse fim”. Essa discussão é apresentada por Rafael Neves (2012, p.156), que 
ressalta que “os direitos humanos não podem ser entendidos desvinculados do exercício do 
poder político”. No que diz respeito ao direito à verdade, a CNV destaca a atuação do Alto 
37 
Comissário para Direitos Humanos e a publicação de O Estado sobre o direito à verdade que 
define as dimensões individuais e coletivas sobre o direito à verdade. 
 
O direito à verdade recebeu atenção, ainda, do Alto Comissariado para Direitos 
Humanos a partir de 2006, quando foi publicado o Estudo sobre o direito à verdade, 
que define o direito de saber a “íntegra e completa verdade” sobre as causas que 
levaram à vitimização, as causas e condições para as graves violações de direitos 
humanos e de direito humanitário, o progresso e os resultados de investigações, as 
circunstâncias e razões para o cometimento de crimes internacionais, as 
circunstâncias em que as violações ocorreram e, finalmente, a identidade dos 
perpetradores. O direito à verdade assume duas dimensões: 1) individual: o direito à 
verdade impõe a obrigação do Estado de apresentar informações específicas sobre as 
circunstâncias das graves violações, inclusive a identidade dos autores e no caso de 
morte e desaparecimento, sobre a localização dos restos mortais; e 2) coletiva: o 
Estado está obrigado a fornecer informações acerca das circunstâncias e razões do 
ocorrido (CNV, 2014, p. 35). 
 
 Importantes avanços na legislação internacional que trata das violações aos direitos 
humanos foram registrados no começo do século XXI e quando esse anteparo jurídico versa 
sobre as violações que ocorreram em decorrência de rupturas institucionais e a consequente 
emergência de ditaduras, uma demanda por reparações da justiça e por transição à democracia 
surge. Para atender esta demanda por justiça e democracia, surge o conceito de justiça de 
transição ou justiça transicional que visa a transição democracia com consolidação do Estado 
democrático de direito e reparação as vítimas de regimes autoritários. Este conceito é 
explicado nos seus pormenores por Simone Pinto (2010) e Honório Quinalha (2013), que 
apontam a emergência dessa temática na agenda política latino-americana. 
 
O conceito de justiça de transição surgiu no final da década de oitenta e início da 
década de noventa principalmente em resposta às mudanças políticas ocorridas na 
América Latina e no Leste Europeu. Da junção de demandas por justiça e por 
transição democrática, o termo justiça transicional foi cunhado para expressar 
métodos e formas de responder a sistemáticas e amplas violações aos direitos 
humanos. Assim, justiça transicional não expressa nenhuma forma especial de 
justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o direito das vítimas, 
38 
promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia 
(PINTO, 2010, p. 129). 
 
 Para Quinalha: 
 
O tema justiça de transição ingressou, com posição de destaque, na agenda política 
latino-americana. As discussões relativas ao legado do passado autoritário nessas 
democracias recentes sempre estiveram em pauta pela persistente atuação de 
movimentos sociais de ex-presos e de familiares de desaparecidos políticos. Mas 
essas pautas adquiriram excepcional visibilidade e receberam maior atenção dos 
governos na região apenas durante a primeira década do séc. XXI, em especial nos 
últimos cinco anos. No caso brasileiro, demonstrações contundentes disso podem ser 
verificadas, especialmente, a partir do ano de 2007. Uma série de iniciativas e 
respostas recentes por parte do Estado atesta que esse tema começou a ocupar um 
espaço público relevante e passou a ser objeto de intensas polemicas na sociedade e 
no interior do próprio governo (QUINALHA, 2013, p. 22-23). 
 
Os avanços de 2005, 2006 e 2007 foram importantes para basilar as discussões em 
torno da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos que ocorreu em 2009 e recomendou 
a criação de uma Comissão de

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