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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAIS SOCIAIS MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA NATAL-RN 2017 MODESTO CORNÉLIO BATISTA NETO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa NATAL-RN 2017 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: DESAFIOS E LIMITES DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS/CCHLA/UFRN, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa Aprovada em 22 de junho de 2017. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa (UFRN) Orientador Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso (UFRN) Examinador Interno Prof. Dr. Robério Paulino Rodrigues (UFRN) Examinador Externo ao Programa Prof. Dr. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva (UFPB) Examinador Externo à Instituição Para Rivair Neto e as futuras gerações, que vocês sejam vitoriosos nas batalhas que perdemos no nosso tempo histórico. Em memória de Jacob Gorender, em nome de todos que lutam por uma outra civilização. AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família, em especial às mulheres. Minha mãe, Maria José, minha tia Margarida Maria, minha irmã Ana Guilhermina e minha companheira, Emanuella Palhares. São essenciais. Sem essas mulheres, qualquer caminhada seria mais longa, qualquer tarefa seria mais dura, qualquer travessia seria mais turbulenta. Apesar de todos os pesares, sem raízes profundas, até mesmo as árvores de almas velhas sucumbem nas tempestades cinzas. Minha gratidão ao meu orientador, professor Homero de Oliveira Costa, que entendeu a relevância deste trabalho e acreditou na minha capacidade, quando eu mesmo duvidei. O seu auxílio foi indispensável à conclusão do presente trabalho. Os dois anos de atividades ao seu lado, foram um tempo que me enriqueceu sem precedentes, sem comparativos. É impossível não registrar que das experiências mais extraordinárias da vida acadêmica, conhecer de perto Anita Leocádia Prestes pareceu-me como conhecer um pouco mais a história do Brasil, em carne viva e cérebro. Sem Homero Costa, esse encontro não passaria de uma ambição de historiador. Sou grato aos muitos trabalhadores invisíveis. Sem eles, a universidade jamais funcionaria: aos que limpam, constroem, imprimem e servem, meu muito obrigado. Os professores da UFRN que tiveram uma contribuição significativa na minha formação acadêmica e também pessoal, merecem ser citados. Os professores Robério Paulino, Gabriel Vitullo, Lincoln Moraes, Spinelli, César Sanson e Ana Patrícia Dias, tornaram o marxismo mais compreensível, ajudaram-me a compreender o mundo do trabalho e suas desigualdades, mas, acima de tudo, foram capazes de mostrar que o significado do trabalho do cientista social, não deve ser apenas compreender o Brasil e sua sociedade, nas suas facetas mais singulares, mas ajudar à mudar a realidade concreta das coisas. Quero agradecer os secretários do PPGCS, Otânio Revoredo Costa e Jefferson Gustavo Lopes. Ambos são responsáveis por um conjunto de tarefas que são indispensáveis ao funcionamento deste departamento de pós-graduação. Apesar de todas os afazeres, sempre atenderam de forma solicita as demandas de todos os mestrandos. Registro também um agradecimento especial ao meu tio, Ítalo Gonzaga Gê, ele que deu-me reiteradas demonstrações de apoio, suporte e estímulo. Se os amigos são a família que escolhemos para compartilhar os festejos e dissabores da existência humana, é motivo de felicidade poder contar com uma família extensa, o que é raro. Os companheiros de Ciências Sociais, tornaram-se bons amigos. Na graduação e no mestrado, conheci pessoas que levarei pelo resto da vida. João Vitor Curió, Artur Freire, André Machado e Alexandre Souza. Foram com eles que dividi os primeiros dias na universidade. Após o ingresso no mestrado em Ciências Sociais, a convivência e as conversas com Juliana Magalhães, Ana Lucas, Rômulo Dornelas e Bosco Teixeira só serviram de acréscimos para a vida. Os bons amigos são como o Sol, não precisamos vê-lo todos os dias para sabermos de sua existência. O tempo da terna infância e da juventude, o tempo da luta por uma outra sociedade e o tempo presente e imediato, são os tempos que fazem de um indivíduo uma criatura indispensável. O biomédico Neto Monteiro, os professores Ângelo Magalhães e Magnus Gonzaga, os meus advogados Max Ferreira, Johnata Macêdo, João Paulino e Diogo Filho, com esses tive e tenho o inestimável orgulho de ter dividido as trincheiras da militância política. Aos amigos e irmãos Anildo Neto, Italo Gonzaga Jr., Fabiano Dreschsler, Wilson Filho, Ítalo Luan Barbosa, Stênio Filho, Adriano Gabriel, Raul Basílio, Leonardo Bezerra, Leonardo Basílio, Bruno Goulart e Yuan Soares, minha gratidão por compartilhar boa parcela dessa existência. Por fim, registro um agradecimento especial a professora Jovelina Santos, quadro do Departamento de História da UERN em Açu. Sem o seu ímpeto, ousadia e encorajamento, talvez não fosse possível ter concluído caminhadas tão importantes. Se todas as construções começam pelos alicerces, Jovelina Santos foi um dos pilares que me permitiu erguer-me não apenas como historiador ou cientista social, mas como algo muito mais importante, que é resistir e erguer-se em cada tropeço, como gente. Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. Walter Benjamin RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar o papel da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída através da Lei Nº. 12.528 de 18 de novembro de 2011, pela presidente Dilma Rousseff, com o intuito de apurar as graves violações de direitos humanos, afim de efetivar o direito a memória e a verdade histórica. Tomamos o seu Relatório Final como principal fonte de pesquisa, o documento que contém mais de 4 mil páginas, dividido em três volumes. O primeiro traz um panorama da repressão, apresentando o modus operandi da ditadura, os agentes responsáveis por violações como tortura, estupro, execuções e ocultação de cadáver e recomendações que congregam medidas para o avanço na política de efetivação dosdireitos humanos e da democracia no Brasil. O segundo volume traz textos temáticos e aborda questões como a repressão contra indígenas, comunidades campesinas, militares, igrejas cristãs, dentre outras. O terceiro volume é exclusivamente dedicado às vítimas da ditadura, elucidando as circunstâncias da morte e desaparecimento de 434 casos. Analisamos a comissão e seu relatório, tendo como principal instrumental teórico o materialismo histórico. Neste sentido, foram fundamentais os seguintes autores: Marx (1996, 2009) Walter Benjamin (1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike Davis (2008), Noberto Bobbio (1986), Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973), Florestan n (2015), Weffort (1989), Milton Pinheiro (2014) e Spinelli (2014). A Comissão, que trabalhou por dois anos e sete meses, revelou um panorama de continuidade de graves violações de direitos humanos, tais como a tortura difusa e contínua e a execução extrajudicial, promovidas por agentes dos organismos de segurança do Estado. Partindo do objetivo geral do trabalho, que foi o de identificar se a Comissão cumpriu suas metas definas em Lei, as principais constatações estabelecidas foram que a comissão logrou êxito na sua missão institucional, revelando o atraso do Brasil em matéria de direitos humanos, analisamos ainda que o processo de transição democrática e a governabilidade de coalizão no Brasil, em especial suas características, implicaram por formar as limitações da própria Comissão Nacional da Verdade e do desenvolvimento da democracia brasileira. Palavras-Chave: Comissão Nacional da Verdade. Democracia. Direitos Humanos. ABSTRACT The purpose of this paper is to analyze the role of the National Truth Commission (CNV), established through Law no. 12,528 of November 18, 2011, by President Dilma Rousseff, in order to investigate serious violations of human rights, in order to realize the right to memory and historical truth. We take your Final Report as the main source of research, the document containing more than 4000 pages, divided into three volumes. The first presents a panorama of repression, presenting the modus operandi of the dictatorship, the agents responsible for violations such as torture, rape, executions and concealment of corpses, and recommendations that bring together measures for the advancement of the policy of human rights and democracy in Brazil . The second volume brings thematic texts and addresses issues such as repression against indigenous peoples, peasant communities, military, Christian churches, among others. The third volume is exclusively devoted to the victims of the dictatorship, elucidating the circumstances of death and disappearance of 434 cases. We analyze the commission and its report, having as main theoretical instrument historical materialism. In this sense, the following authors were fundamental: Marx (1996, 2009) Walter Benjamin (1987), Henri Lefebvre (2013), Ellen Wood (2011), Noam Chomsky (2003), Mike Davis , Osvaldo Coggiola (2016), Celso Furtado (1973), Florestan (2015), Weffort (1989), Milton Pinheiro (2014) and Spinelli (2014). The Commission, which has been working for two years and seven months, has shown a continuity of serious human rights violations, such as widespread and continuing torture and extrajudicial execution, carried out by agents of State security agencies. Based on the overall objective of the work, which was to identify whether the Commission met its legal goals, the main findings were that the commission succeeded in its institutional mission, revealing Brazil's human rights backlog, That the democratic transition process and the governability of coalition in Brazil, especially its characteristics, imply for forming the limitations of the National Commission of Truth itself and the development of Brazilian democracy. Keywords: National Truth Commission. Democracy. Human rights. LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABDDH - Associação Brasileira de Defesa de Direitos do Homem ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados AI -5 – Ato Institucional nº 5 AL – América Latina ALN – Aliança Libertadora Nacional ANL – Aliança Nacional Libertadora ANPUH – Associação Nacional de História BG – Batalhão de Guardas CEA – Conferências dos Exércitos Americanos CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação CEMDP - Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos Cenimar – Centro de Informações da Marinha CIA - Central Intelligence Agency CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIE – Centro de Informações do Exército Ciex – Centro de Informações do Exterior CIGS - Centro de Instrução de Guerra na Selva CISA – Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica CNV – Comissão Nacional da Verdade Conadep – Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas DEOPS – Delegacia Especializada de Ordem Política e Social DINA - Dirección Nacional de Inteligencia DOI - Destacamento de Operações de Informações DOI-CODI - Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna DOPS – Departamento de Ordem Política e Social ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EPU – Exame Periódico Universal ESG – Escola Superior de Guerra EUA – Estados Unidos da América FHC – Fernando Henrique Cardoso Funai – Fundação Nacional do Índio GPS - Global Positioning System HCE – Hospital Central do Exército JK - Juscelino Kubitscheck LAI – Lei de Acesso à Informação LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de outubro OAB – Ordem dos Advogados do Brasil ONU – Organização das Nações Unidas PCB – Partido Comunista Brasileiro PIN – Plano de Integração Nacional PNDH – Programa Nacional de Direitos Humanos PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento POR-T - Partido Operário Revolucionário Trotskista PPGCS - Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais PSOL – Partido Socialismo e Liberdade SIAN - Sistema de Informações do Arquivo Nacional SIM – Subsistema de Informação sobre Mortalidade SNI – Serviço Nacional de Informação STF – Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UNE – União Nacional dos Estudantes UPP – Unidade de Polícia Pacificadora URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas USA – United States of America USP – Universidade de São Paulo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...……...………..……….….…...…..……………….......…...…….. CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL……........…..………. 1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA AMÉRICA LATINA...............…..………..…………………....….………..…………. 1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO..………. 1.3 O RELATÓRIO PARCIAL: PRIMEIROS PASSOS.....................…........……… CAPÍTULO II: O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE......…...…………….…………...……………..….….…….……...…….. 2.1 O RELATÓRIO DA CNV.…...……………..………….…………………..…….. 2.2 OS EMBATES SOBRE O RELATÓRIO..…...…...……….....………..………… CAPÍTULO III: DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES....…….…...…........…..……….....……………. 3.1 BRASIL, O PAÍS DAS VIOLAÇÕES………......……………...……………….. 3.2 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES DA CNV..……………………………. CONSIDERAÇÕES FINAIS.….…..…….…...…..….……………..…………….... REFERÊNCIAS……....…..….…....……...……..…...…….….…...………………… 13 17 17 30 45 55 55 79 91 91 100 121 125 13 INTRODUÇÃO A democracia e seu futuro, os regimes políticos, os direitos humanose as ações do Estado brasileiro são temas atuais que têm a atenção de vários ramos do conhecimento científico, a história, a ciência política, a sociologia, dentre outras. Essas temáticas não são abordadas apenas pela academia, na imprensa e entre os movimentos sociais. Muito tem se discutido sobre a democracia brasileira e inevitavelmente sobre o passado recente do país, marcado pela barbárie autoritária da ditadura militar. O cinquentenário do golpe militar de 1964, festejado por setores conservadores em 2014 e amplamente discutido nas universidades e entre organizações sociais, mostra que este é um dos grandes debates nacionais da atualidade. Para apurar as graves violações aos direitos humanos, identificar seus autores e os locais onde as práticas de execução, tortura, desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres foram cometidos durante a ditadura (1964-1985), a presidente Dilma Rousseff instituiu, por meio da Lei 12.528, a Comissão Nacional da Verdade, que após dois anos e sete meses de trabalho, apresentou o seu relatório final, que foi organizado em três volumes e contêm 4.328 páginas. O objetivo deste trabalho foi o de analisar o relatório da Comissão Nacional da Verdade e seu papel para o desenvolvimento da democracia brasileira e suas instituições, o cumprimento dos objetivos instituídos para esta organização, seu alcance e limites. Neste sentido, usamos o materialismo histórico como principal referencial teórico-metodológico. Neste contexto a importância de Walter Benjamin (1987) é essencial, tanto para compreender que a construção da história não ocorre sob os pilares de um passado estático e vazio, mas em um tempo saturado de “agoras”, assim como o ofício do historiador é o de “escovar a história a contrapelo”, observando as contradições do processo histórico, as tensões e interesses que cercam à ótica sobre o passado e nosso tempo histórico. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade teve limitações impostas pela governabilidade de coalizão e pelas próprias características da transição democrática no Brasil? Esta foi a pergunta de partida que orientou nosso trabalho. Esta hipótese se confirmou na nossa análise, abrindo um debate sobre a ausência de aspectos cruciais da reconstrução 14 histórica do período investigado pela CNV, como a participação de lideranças civis no golpe e na consolidação da ditadura militar, ausentes no relatório. As formas como enxergamos nosso próprio passado, nossas práticas e ações e os significados que a estes são atribuídos forjam uma cultura hegemônica que legitima o modo de vida das sociedades. A cultura e sua própria transmissão não é isenta de ideologias autoritárias. Para Walter, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1987 p.7). O Brasil, fundado na barbárie genocida, no autoritarismo reacionário e no convênio entre as elites que historicamente tornaram o princípio da representação política, em seu filho bastardo, não construiu uma cultura de democracia e justiça. Essa cultura autoritária tem na ditadura militar, no seu legado e no massacre dos povos excluídos, suas principais expressões contemporâneas. Henri Lefebre (2013), também nos fornece um aporte teórico, no sentido de rejeitar as hierarquias postas em vigor na sociedade e, o mais importante, apresentando o materialismo “como uma sociologia cientifica com consequências políticas” (LEFEBRE, 2013, p.18), o que significa dizer que o objetivo do nosso trabalho também é ter como efeito uma compreensão mais adensada sobre os avanços e retrocessos da democracia no Brasil, tendo como ponto de vista o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que revela o tamanho do atraso brasileiro em efetivar os direitos humanos e garantir os direitos democráticos mais fundamentais. Destacamos a importância do progresso das pautas dos direitos humanos para o Brasil, mas entendemos que, apesar do avanço de direitos democráticos, os limites impostos pela lógica do capitalismo são claros e bem definidos. Para Ellen Meiksins Wood, fundamentalmente, em essência a democracia e o capitalismo são incompatíveis, já que os imperativos do lucro, tornam os elementos da democracia em mercadorias. “O capitalismo coexiste com a democracia formal e a democracia formal deixa fundamentalmente intacta a exploração de classe” (WOOD, 2011, p.173). A caracterização que fazemos sobre a democracia contemporânea e o papel que os Estados Unidos da América exerceram na América Latina em meados do século XX, em especial no contexto da Guerra Fria, patrocinando a campanha ideológica anticomunista, arquitetando o surgimento de ditaduras e apoiando governos autoritários para garantir seus interesses econômicos, baliza-se em Noam Chomsky (2003), Mike Davis (2008), Celso Furtado (1973), Osvaldo Coggiola (2016), Enrique Serra Padrós (2008) e Florestan Fernandes 15 (2015), dentre outros. A reação de setores da esquerda e do campo progressista ao avanço autoritário ocorreu com a eclosão da luta armada, em maior ou menor grau em diferentes países, fenômeno lucidamente analisado por Jacob Gorender (2014). O enfraquecimento dos regimes militares e o acordo entre as elites na América Latina, mas especificamente no Brasil, possibilitaram a transição à democracia. Neste contexto, Francisco Welffort (1989), Milton Pinheiro (2014), Dierter Nohlen (1994), Teresa Schneider Marques (2010) e Antonio Spinelli (2014) fornecem os subsídios necessários à compreensão do processo de transição e suas consequências, como as iniciativas circunscritas à justiça de transição e à luta pelo direito à verdade, memória e justiça, conceitos trabalhados por Renan Quinalha (2013) e Simone Pinto (2010), dentre outros. Nosso primeiro capítulo tem a preocupação de apresentar um panorama, mesmo que limitado, dos processos de transição democrática na América Latina, destacando os surgimentos das comissões de verdade como iniciativas circunscritas à justiça de transição e instituídas por governos, parlamentos, pela justiça e mesmo por acordos de paz. A cultura da impunidade, como define Baltasar Garzón (2005), é um problema que precisa ser enfrentado, e para tal, é indispensável responsabilizar os agentes que foram autores de graves violações aos direitos humanos. Países como Bolívia, Equador, Uruguai, El Salvador, Chile, Guatemala, Panamá, Peru, Paraguai, Honduras e Argentina instituíram suas respectivas comissões e obtiveram consequências que resultaram das especificidades do processo de cada país. Ainda neste capítulo inicial, buscamos apresentar o percurso histórico da instituição da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, seus trâmites burocráticos, as tensões que se estabeleceram entre movimentos sociais e militares e o seu relatório parcial, apresentado ao final de um ano de trabalho, trazendo um balanço deste primeiro ano de atividades da comissão, tais como à tomada de depoimentos e audiências públicas. O segundo capítulo faz um breve resumo do relatório final da Comissão Nacional da Verdade e mostra os embates sobre o relatório protagonizados por setores políticos de matizes ideológicas distintas, o que demonstra o quão heterogêneo é a visão destes setores sobre o relatório. Destacamos a compreensão que o Clube Militar, organização fundada em 1887, formada majoritariamente por oficiais da reserva das Forças Armadas, fez do relatório, assim como o de movimentos sociais e entidades vinculadas aos direitos humanos. 16 Encerramos nosso trabalho com o terceiro capítulo, que apresenta e discute as recomendações da Comissão Nacional da Verdade para o avanço da democracia com a efetivação dos direitos humanos, garantias fundamentais e indispensáveis do Estado democrático de direito. A transição para a democracia no Brasil, feita sob medida para não atingir ou prejudicar os agentes do terrorismo de Estado e as autoridadescivis que endossaram esse projeto, repôs as eleições regulares da democracia representativa e um conjunto de direitos, mas não foi capaz de abolir praticas autoritárias perpetradas pelos organismos de segurança do Estado. O legado da ditadura militar se materializou no entulho autoritário que permanece em estruturas e práticas do Estado e seus agentes. É no sentido de corrigir aparatos legais e constitucionais, que servem como beneplácito para a continuação dessa cultura autoritária, que as recomendações da Comissão Nacional da Verdade se dirigem. Vale destacar, ainda sobre as recomendações da CNV, que elas, ao tempo que apontam caminhos para reformulações necessárias no sistema jurídico e penal, também mostram o atraso que o país atravessa em matéria de direitos humanos. As execuções extrajudiciais nas periferias, a tortura como método continuo e difuso dentro das penitenciarias, a criminalização dos movimentos sociais e o endurecimento do Estado penal, ao longo dos últimos anos, aparecem como componentes deste cenário de atraso. É certo também afirmar que as recomendações são indicações que precisam ser encaminhadas pelo Estado, através de projetos de leis presentados pelo Governo Federal ao parlamento, assim como medidas do próprio Poder Judiciário. As recomendações por si só não se efetivam, caso o avanço da pauta dos direitos humanos não ocorra nos mecanismos de aprovação do Estado. 17 CAPÍTULO I: A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL 1.1 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E COMISSÕES DA VERDADE NA AMÉRICA LATINA As rupturas dos regimes autoritários e a transição no caminho da consolidação democrática são processos povoados de disputas, tensões e incertezas. Nos países que viveram as experiências das ditaduras, é evidente que a superação da cultura do autoritarismo não depende apenas de um dispositivo jurídico que restitua direitos e garantias constitucionais. As consequências do terrorismo de Estado patrocinada pelas ditaduras não se dissipam com rupturas institucionais, mas permanecem vivas como sequelas de uma cultura da arbitrariedade que se impregna na burocracia estatal, no funcionamento da máquina pública, nas instituições e na sociedade. As tendências e forças autoritárias foram expressivas na América Latina do século XX. Essa história recente tem sido marcada pela espoliação e pela violência na periferia do capitalismo, sob o beneplácito do autoritarismo militar. A América Latina, especialmente a partir dos anos 1960, teve várias ditaduras militares, nas quais os princípios da autodeterminação dos povos e a soberania nacional foram sistematicamente desrespeitadas. Em nenhum continente ou região do mundo, entre os anos de 1960 e 1980, houve o avanço de tantos regimes militares quanto na AL. “Na América Latina, mais de dois terços dos países que a compõem viviam uma situação de exceção”, esclarece Martin-Chenout (2009, p.225). A proliferação dos Estados de exceção mudou profundamente as estruturas dos estados nacionais: a vida política, o regime jurídico, o mundo do trabalho, a educação e a cultura, o meio ambiente. A imprensa e os artistas passaram a conviver com a regulação da censura e operam-se as modificações típicas do processo de militarização da sociedade. A sociedade sob controle, cívica, obediente e resignada, passou a ser a aspiração de uma casta militar que esteve à frente do Estado em muitos países. A população sofreu um duro golpe pela restrição de liberdades e pagou um preço alto pelo declínio econômico, após décadas de ditaduras à serviço do capital estrangeiro. De acordo com Weffort (1989, p.21) “os regimes militares nos legaram estruturas autoritárias de Estado muito mais consolidadas do que as que existiam antes deles”. Ao 18 referir-se a América Latina, Weffort aponta que a ditadura brasileira iniciada em 1964 inaugurou a fase das ditaduras latino-americanas de padrão moderno, amparados na estrutura burocrática e na capacidade da violência legitimada, constituindo instrumento de coerção institucional e regular. Após o golpe de 1964 no Brasil, os regimes de caráter burocrático- autoritário se estenderam à Argentina (1966), ao Chile (1975) e ao Uruguai (1973). As ditaduras latino-americanas deflagraram Estados de exceção, na maioria dos casos ferindo as exigências do direito internacional dos direitos humanos, suprimindo direitos que não poderiam ser derrogados mesmo em situações de crises ou guerras. “Estados de exceção, com duração, exorbitante podem ser constatados no Paraguai e na Colômbia, Argentina, Brasil, Chile, El Salvador e Uruguai também conheceram Estados de exceção de longa duração, afirma Martin-Chenout (2009, p. 232). O resultado dessa política foi a ratificação da negação de direitos básicos e a difusão de uma guerra contra opositores e dissidentes dos regimes. Os índices de repressão política na Argentina, Brasil e Chile, dentre outros países, demonstram com clareza que os regimes militares converteram os Estados em draconianas máquinas de moer gente e aniquilar opositores. Como diz Eduardo Galeano (2002): Meio milhão de uruguaios fora do país. Um milhão de paraguaios, meio milhão de chilenos. Os barcos zarpam repletos de rapazes que fogem da prisão, do fosso ou da fome. Estar vivo é um perigo; pensar, um pecado; comer, um milagre. (...) A ditadura é um costume de infâmia; uma máquina que te faz surdo e mudo, incapaz de escutar, impotente para dizer e cego para o que está proibido olhar. O primeiro morto da tortura desencadeou, no Brasil, em 1964, um escândalo nacional. O morto número dez na tortura quase nem apareceu nos diários. O número cinquenta foi normal. A máquina ensina a aceitar o horror como se aceita o frio no inverno (GALEANO, 2002, p. 84-85). A repressão galgou uma escalada da violência bárbara, numa região dominada pelo militarismo que levou a cabo a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinado de dezenas de milhares de pessoas. Meio milhão de argentinos exilados, mais de 60 mil presos políticos no Chile e muitas torturas e assassinatos são estatísticas dos países que atravessaram a experiência nebulosa das ditaduras. As movimentações militares, os recursos financeiros e humanos utilizados, as forças envolvidas para a consolidação de golpes de Estado com a 19 tomada do poder e a consequente imposição autoritária foram elementos mobilizados ideologicamente por um projeto de poder. Esse projeto histórico de poder, encabeçado pelo militarismo, mas pensado pela burguesia, foi vitorioso no sentido da dimensão política e o seu caráter fascista e corporativo confessou-se nitidamente antidemocrático e reacionário. Os militares também teriam formulado o seu próprio “projeto histórico”, em geral de sentido neoliberal e modernizador. (...) O projeto histórico dos militares envolve a ideia sinistra – alias, de ressonâncias nitidamente totalitárias, em que pesem suas origens supostamente liberais – de que eles estariam diante de uma sociedade enferma, como tal merecedora de tratamentos de choque e de um empenho de regeneração sob direção das Forças Armadas. (...) Na linguagem deles, foi um projeto antiestatista, anticomunista, antipopulista, e anti-revolucionário. (...) um projeto confessadamente anti-democrático, de cunho fascista ou corporativista. Como se sabe, e como é próprio da lógica perversa dos movimentos reacionários, eles derrubam a democracia em nome da defesa da democracia (WEFFORT, 1989, p. 19-20). O projeto histórico dos militares, relevado por Weffort (1989), justifica ideologicamente o extermínio de milhares de pessoas numa cruzada internacional contra o comunismo. Esse projeto pertencia aos militares na medida em que foram estes atores que executaram um trabalho prático, na sua dimensão política e armada, mas não foram eles os sócios majoritários, nem os principais formuladores deste projeto.O papel que os Estados Unidos da América e a burguesia cumpriram neste processo foi fundamental e imprescindível, especialmente em um período tomado pelas tensões da Guerra Fria. A vitória da Revolução Cubana, em 1959, acendeu o sinal de alerta nos EUA, que redobraram a atenção na observação das movimentações políticas dos países latino- americanos, redirecionando recursos financeiros e humanos para patrocinar golpes de Estado, no sentido de manter a América Latina como sua área de influência, impedindo o crescimento de tendências políticas de caráter reformista e popular-progressistas naquele momento, convenientemente classificadas como socialistas/comunistas. A polarização entre os blocos socialista (URSS) e capitalista (EUA) corroborou para forjar as condições ideológicas para intervenções estadunidenses, justificando a supressão da democracia em nome da defesa da 20 democracia. A estratégia internacional dos EUA operou em uma dimensão continental para frear “excessos esquerdistas”, orientando-se pela Doutrina de Segurança Nacional. Nestes termos, a “guerra ao comunismo internacional” serviu como discurso oficial estadunidense, álibi ideológico para viabilizar ingerências políticas, justificar invasões na aplicação da política de segurança hemisférica. Frente a Revolução Cubana e o avanço de pautas de esquerda e governos populares, como os de Goulart, no Brasil e Allende, no Chile; o conjunto dessas ações serviam a uma estratégia continental. “Para o tio Sam, era preciso responder à situação revolucionária continental com uma política contrarrevolucionária de dimensão equivalente”, caracteriza José de Queiroz (2015, p.105). Vale destacar que nos marcos desta estratégia continental, a burguesia teve um importante papel durante a ditadura. O ingresso de grandes empresas nos países da América Latina constituiu “superpoderes” em economias frágeis e intermediárias, como esclarece Celso Furtado (1973). Convocadas para atuar na América Latina com uma série de privilégios, fora do controle da legislação antitruste dos Estados Unidos, e com a cobertura político- militar desse país, as grandes empresas estadunidenses terão necessariamente que transformar-se em superpoder em qualquer país da região. Cabendo-lhe grande parte das decisões básicas com respeito à orientação dos investimentos, à orientação da tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau de integração das econômicas regionais, é perfeitamente claro que os centros de decisão representados pelos atuais estados nacionais passarão a plano cada vez mais secundário. (...) As grandes empresas com sua elevada capitalização, particularmente quando apoiadas por muitos privilégios em países subdesenvolvidos como os da América Latina, têm efeito semelhantes aos de certas grandes árvores exóticas que são introduzidas em determinadas áreas: drenam toda a água e dessecam o terreno, provocando um desequilíbrio na flora e na fauna, com o surgimento de pragas e coisas parecidas (FURTADO, 1973, p. 41). Sobre essa relação entre o empresariado e os militares, Wladimir Pomar formula uma caracterização sobre o caráter burguês-militar do regime de repressão. Os desdobramentos históricos e as parcerias firmadas entre empresas e o núcleo repressivo da ditadura mostram que esta caracterização se fundamenta nas classes que, de fato, fizeram parte da direção política e econômica do país. 21 É isso que tem levado muitos estudiosos, mesmo de esquerda, a proclamar que o golpe e a ditadura tiveram um caráter cívico-militar. Ou seja, não teria havido uma ditadura militar, mas sim uma ditadura civil-militar. Talvez, para serem mais precisos nessa linha de raciocínio, devessem falar de uma ditadura burguesa-militar, já que a burguesia foi aquela que realmente lucrou com o regime militar, e se manteve fiel a ele até seus estertores. (POMAR, 2014, p.71) A estratégia estadunidense “anti-insurreição” contemplou um conjunto articulado de ações cirúrgicas em diferentes áreas. Essas ações se estenderam pelo terreno da política diplomática as questões econômicas e militares. Os exércitos nacionais paulatinamente se tornaram forças auxiliares dos EUA em seus próprios países e os aparelhos ideológicos e materiais se materializou Escola Militar do Caribe, posteriormente School of Americas, que permitiu a otimização de investimentos dos EUA e a inserção de sua política de segurança para a AL. A Escola Militar do Caribe na zona do Canal de Panamá, escola que desde 1961 teve o centro das suas atividades no treino “anti-insurrecional” (ou “contra-insurgente)” dos oficiais latino-americanos nela inscritos. A economia de esforços que este investimento militar significava para os EUA está ilustrada por estas cifras, de 1967: o custo médio de um soldado norte-americano era de 5.400 dólares, o de um das forças armadas “complementares”, 540. O Programa de Assistência Militar (PAM) foi o pilar de sustentação das Forças Armadas numa série de países (Bolívia, Republicada Dominicana, Equador, Honduras, Guatemala, Panamá, Paraguai, a Nicarágua somozista), onde os exércitos se transformavam numa espécie de apêndice das Forças Armadas norte americanas (COGGIOLA, 2014, p.55). A maioria das intervenções e golpes de Estado, na América Latina, tiveram os interesses estadunidenses como diapasão e originaram ditaduras e consequente militarização dos regimes políticos. “Alguns pontos em comum de todos os regimes militares são evidentes: dissolução das instituições representativas, falência ou crise aguda dos regimes e partidos políticos tradicionais, militarização da vida política e social em geral”, enumera Coggiola (2014, p.61), que aponta que o desenvolvimento dependente das Forças Armadas dos países latino-americanos, que viveram seus processos de modernização intermediados por missões estrangeiras, assim como a falta de visão estratégica do nacionalismo burguês de base militar 22 que, mesmo no seu auge nas décadas de 1940 e 1950, se mostrou incapaz de formular um projeto de unidade continental que quebrasse a espinha da dominação imperialista na AL. Essas condições, na conjuntura da Guerra Fria, lançaram as bases para o avanço do imperialismo estadunidense, que balizou o surgimento de uma onda de ditaduras e abriu o ciclo de militarização na AL. Os regimes não se originaram nem se tornaram a direção de um movimento de massas, não se institucionalizaram no esteio da ideia do “partido único”, mas no domínio de uma casta de militares sob o Estado, tendo os EUA como principal articulador internacional. É necessário indicar o papel dos EUA na emergência de regimes autoritários na AL, pois o autoritarismo latino-americano e a diplomacia dos EUA fazem parte de uma mesma história, indivisível. Quase todos os países da América Latina atravessaram períodos de repressão, liderada por militares. Na maioria dos países da América Central e do Sul, os anos de continuada repressão estabeleceu uma tradição de violência atroz, impunidade e esquecimento. A violência foi perpetrada por agentes do Estado que tinham absoluta certeza de não serem responsabilizados e, mesmo após a democratização de vários países, a impunidade desses agentes continua. A maioria dos regimes militares na AL foi resultado de processos específicos em cada um dos países, mas a militarização da vida social e as sequelas do autoritarismo são semelhanças convergentes em todas as ditaduras. Os processos de transição para a democracia possuem suas diferenças e semelhanças, algumas poucas ocorreram por colapso, mas em sua maioria, as transições foram viabilizadas por acordos entre as elites, sob o beneplácito da casta militar e da burguesia, como indica Nohlen (1994). Em geral, pode-se dizer que os processos de negociação entre as elites autoritárias e seus opositores, assim como no interior dos seus respectivos círculos,tiveram um papel muito mais importante nos processos de democratização latino-americanos dos anos oitenta que se supôs no início (NOHLEN, 1994, p. 5). No Brasil, a saída da ditadura ocorreu por uma transição acordada. Spinelli (2014, p. 49) aponta que “a transição brasileira contou com um importante grau de imposição por parte dos militares e incluiu a celebração de um pacto implícito”. As imposições dos militares garantiram que o processo de abertura democrática controlada (ou lenta, gradual e segura) 23 fosse conduzida pelos militares. O pacto celebrado pelo processo de democratização teve os próprios militares como principais signatários e o setor da oposição civil moderada, como subscritor, caracterizando-se como a típica transição pactuada. As transições têm suas particularidades e é importante esclarecê-las. Santos (2007, p. 89) classifica três tipos distintos de transições políticas: transação (transição pactuada), afastamento voluntário ou colapso. Em linhas gerais a transação ocorre quando o regime perde força e opta por conduzir o Estado ao processo de democratização. O afastamento voluntário assemelha-se ao primeiro, mas diferencia-se na sua gradação de influência, já o colapso diz respeito aos regimes autoritários que são derrotados politicamente, dando espaço a emersão de um novo regime, oxigenado e sem grilhões que lhe impeçam de passar sua história recente a limpo, reformar instituições e avançar em pautas fundamentalmente democráticas. À medida que os governos militares e seus partidários descobriram, por sua vez, de maneira simétrica, que o autoritarismo não era mais viável no contexto da depressão econômica dos anos 1980 e da globalização, os dois campos encontraram-se no meio do caminho, na América Latina. Já no Leste europeu, os membros das nomenklaturas de todo tipo tiveram ou de retratar-se, fantasiando-se de democratas, ou de reconverter-se no setor econômico, tomando conta dele, ou, ainda, no caso dos mais velhos, retrair-se em exílio interior (HERMET, 2001, p. 29-30). Hermet (2001) mostra as diferenças entre as transições nos países da América Latina e do Leste, apontando os imperativos econômicos conjunturais que constituíram as condições para as transições. Grosso modo, as ditaduras latino-americanas gradativamente foram perdendo força frente as exigências do mercado, da globalização e dos aspectos da conjuntura econômica e política internacional, enfrentando também o crescimento das contestações internas e a perda de apoio popular. Vale destacar também que as transições políticas da AL não são casos isolados. “Na realidade, elas fazem parte de uma grande maré democrática que alcançou proporções mundiais no final do século XX”, salienta Schneider Marques (2010, 67). Neste contexto, cientes de que uma transição era imperativa, os militares optaram por dirigir o processo transitório, inviabilizando qualquer possibilidade de revanchismo e garantindo segurança 24 jurídica para os agentes de Estado, através da concessão de anistias. A maioria das transições foi feita por cima (envolvendo acordos de paz e acordos extraoficiais entre as elites), distante de setores populares, movimentos sociais, organizações de direitos humanos, partidos de esquerda e lideranças políticas do campo progressista. No Brasil, a Lei de Anistia, de 1979 “estende seus benefícios aos crimes conexos, perdoou os que se envolveram nos porões do regime com a prática da tortura e do assassinato de opositores políticos” (SPINELLI 2014, p. 54). É importante apontar que o legado da estrutura repressiva não se resume a anistia concedida a torturadores, que legitima praticas violentas e se fortalece na tradição do esquecimento. Quanto maior o silêncio sobre as atrocidades dos regimes autoritários, mais forte se torna as tendências ou as práticas que se tributam ao autoritarismo e a repressão. Esquecer o extermínio é parte do próprio extermínio, explica Jean Baudrillard (2003). Neste sentido, combater a amnésia política e social é fundamental para uma transição política que busque a superação do legado autoritário e o encontro do povo de diferentes nações, com sua própria história. Uma transição democrática deve garantir eleições periódicas, livres, diretas e transparentes, o direito ao sufrágio universal e auto-organização, a liberdade de imprensa e a de organização em partidos políticos, além de um conjunto amplo de reformas democratizantes das instituições, que, sob a égide de uma ditadura, não seriam possíveis. Apesar de todas as mudanças burocráticas necessárias no funcionamento do Estado, estas não são suficientes para a consolidação da democracia. É necessário discutir os abusos que foram cometidos durante a vigência de regimes truculentos, esclarecer casos, indicar responsabilidades, reparar vítimas e impedir que a amnésia política impeça o futuro da democratização, dando espaço as tradições autoritárias fundadas no esquecimento e na violência. Não existe uma fórmula única para tratar dos abusos e lidar um com um passado marcado pelo desrespeito aos direitos humanos, mas quase todos os países se apoiam em iniciativas da justiça de transição para auxiliar as transições políticas. A justiça de transição ou transicional não significa um tipo especifico de justiça, mas um conjunto de iniciativas que servem ao processo de democratização de sociedades que passaram por experiências autoritárias e, sobre sua conceituação, trataremos melhor adiante. Vale destacar que a transição política democratizante é um processo que tem início, mas não deve ser considerada conclusa em muitos casos, por dois motivos: primeiro, porque o entulho 25 autoritário não se dissolve das instituições em um curto prazo e segundo porque “para um estado democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica”, como esclarece Bobbio (1986, p.9). A consolidação da democracia em um país é um processo povoado de tensões, avanços, retrocessos e reviravoltas. “Nem mesmo no caso mais avançado do Uruguai, onde se trata de reconstruir a democracia, poderíamos dizer que estamos diante de uma democracia consolidada”, aponta Weffort (1989, p.7), que considera que é próprio da atmosfera das transições serem cercadas de incertezas. Contudo, muitas são as iniciativas tomadas na América Latina, no sentido da democratização, obtendo-se resultados satisfatórios. A instituição de comissões de verdade é um remédio utilizado pelos países que optam por tratar sua amnésia política e passar sua história a limpo O objetivo de uma comissão de verdade é reconciliar a memória nacional à história. Trata-se de promover o encontro de um país com sua história, de levar no banco dos réus criminosos impunes. Como diz Baltasar Garzón (2005). A história da impunidade em todos os povos é a história da covardia dos que geraram, mas também dos que a consentiram ou a consentem posteriormente. Em todas as hipóteses a história está marcada por grandes discursos de justificação e de chamadas à prudência de modo a não romper os frágeis equilíbrios conseguidos em troca da não exigência de responsabilidades dos perpetradores ou que a referida exigência se realize com moderação. Da mesma forma, abundam discursos justificativos (GARZÓN, 2005, p. 172). A constituição de Comissões de Verdade, que visam a apurar violações e abusos aos direitos humanos, tem sido uma iniciativa promovida em vários países que viveram sob ditaduras. Desde 1974, mais de vinte comissões de verdade foram criadas na América Latina, por iniciativas de Governos e parlamentos ou por acordos de paz. As comissões receberam nomenclaturas diferentes, possuem suas especificidades, mas buscam o mesmo objetivo e amparam-se na legislação internacional dos Direitos Humanos. São órgãos temporários, algumas foram acompanhadas pela ONU e maioria concluiu seus trabalhos com relatórios,deixando as punições para a justiça dos respectivos países. 26 Realizamos uma catalogação das Comissões da Verdade na América Latina e as classificamos em quatro grupos: 1) as que fracassaram; 2) com trabalhos insatisfatórios; 3) com trabalhos satisfatórios e 4) de referência internacional na defesa da verdade, memória e justiça. As experiências de Comissões da Verdade na Bolívia e Equador, não foram exitosas. Na Bolívia, em 1982, foi criada a Comissão Especial de Inquérito sobre Desaparecidos, primeira comissão fundada na AL. A comissão coletou testemunhos sobre 155 casos de desaparecimentos forçados, mas, sem apoio político e a estrutura de trabalho necessário, se dispersou sem apresentar um relatório final. No Equador, a Comissão de Justiça e Verdade foi criada em 1996 com três membros de organizações internacionais de direitos humanos e tinha a responsabilidade de encaminhar ao Judiciário as evidências nos casos apurados, mas, sem recursos suficientes, ela encerrou suas atividades com apenas cinco meses, sem apresentar um documento final e sem encaminhar as investigações à justiça. Em ambos os casos, elas sequer conseguiram concluir seus relatórios finais, não obtiveram êxito em encaminhar os casos de abusos à justiça e foram dispersadas, em virtude da falta de apoio institucional. No Uruguai, foi criada a Comissão de Investigação da Situação de Pessoas Desaparecidas e Suas Causas, em abril de 1985. No entanto, seu relatório final tratou dos desaparecimentos, mas não sobre os casos de tortura e prisões ilegais, em virtude de seus limites legais. O relatório, apesar de público, foi pouco divulgado e é pouco conhecido. Em El Salvador, A Comissão da Verdade foi criada em 1991 por um acordo de paz entre as partes envolvidas na guerra civil e a ONU. O seu primeiro relatório, apresentou doze casos de execuções cometidas pelas forças armadas e recomendou a dispensa de todos os militares e civis citados pelo documento. O governo e os militares tiveram uma reação negativa, alegaram que a comissão havia ultrapassado seus marcos legais e uma anistia foi aprovada poucos dias após a divulgação do relatório, impedindo a punição dos envolvidos com as violações de direitos humanos. Assim, as comissões de El Salvador e Uruguai elaboraram relatórios, mas não conseguiram cumprir a missão que lhes foi confiada, ou seja, a de divulgar amplamente os casos e buscar punições. No caso uruguaio, pela fraqueza do alcance do relatório e no caso salvadorenho, por um imbróglio político, que impediu que houvessem punições efetivas frente todas as evidências coligidas pela comissão. As comissões de verdade instituídas no Chile (1990), Guatemala (1994), Panamá (2001), Peru (2001) e Paraguai (2003), tal como o Comissionado para a Proteção de Direitos 27 Humanos de Honduras, Leo Valladares, nomeado em 1992, conseguiram, em maior ou menor gradação, desemprenhar papéis fundamentais pelo reconhecimento histórico das violações, promovendo o direito a verdade, esclarecendo as responsabilidades do Estado frente os abusos e propondo recomendações pela reparação as vítimas e seus familiares. O trabalho dessas comissões deve ser considerado satisfatório e importante para a reconciliação entre um país e sua história. Em Honduras, 179 casos de desaparecimentos provocados pelas forças armadas foram esclarecidos. No Chile, a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação entregou seu trabalhou final e obteve do governo o reconhecimento oficial das violações a direitos humanos e um pedido formal de desculpas feito pelo presidente Patrício Aywin, em nome do Estado. A reparação financeira e a concessão de benefícios médicos e educacionais as vítimas, e seus familiares foi uma recomendação realizada pela comissão que se concretizou com a abertura da Corporação Nacional para Reparação e Reconciliação. A Comissão para o Esclarecimento Histórico da Guatemala empreendeu enormes esforços para coletar o maior volume de depoimentos, resultando na entrega de seu relatório, que registrou mais de 42 mil vítimas, contabilizando mais de 23 mil assassinados. O esclarecimento desses casos é essencial à memória nacional. No Panamá, A Comissão de Verdade contou com a assistência de organizações nacionais e internacionais de direitos humanos, que lhe auxiliaram com informações. O seu relatório final foi entregue em abril de 2002. No Peru, a Comissão de Verdade e Reconciliação apresentou o seu relatório com 69 mil casos de mortos e desaparecidos, em sua maioria, da comunidade indígena. Este esclarecimento não faz parte apenas da história peruana, mas lança uma luz sobre o imenso massacre indígena que se operou neste país, um dos maiores da história recente da América Latina. No Paraguai, a Comissão de Verdade e Justiça teve o volumoso trabalho de esclarecer as violações nos 35 anos da ditadura militar de Stroessner, marcada pela repressão e violência. Além da Comissão de Verdade e Justiça, a Comissão Nacional de Direitos Humanos trabalhou um programa de compensações às vítimas da ditadura. Sobre o desempenho da Comissão de Verdade e Justiça, esclarecem Alarcon e Mandelli: 28 A Comissão teve por objetivo investigar as violações aos direitos humanos cometidas por agentes estatais e paraestatais entre 1954 e 2003; seu foco principal recaiu sobre os 35 anos de ditadura de Stroessner. O relatório é resultado de uma série de audiências públicas temáticas, mais de duas mil entrevistas e testemunhos, e da consulta aos arquivos da ditadura paraguaia que já vieram a público. Em seus oito tomos, podem ser encontrados dados estatísticos sobre a repressão, descrições dos métodos do terror de Estado, listagem de vítimas e detalhes de alguns casos paradigmáticos das práticas de prisão, tortura, violência sexual, exílio forçado, desaparecimento e execução de opositores e lideranças populares. Pela primeira vez, pôde-se ter uma imagem mais precisa do alcance da repressão que vitimou a sociedade paraguaia. A Comissão de Verdade e Justiça contou quase 20 mil detenções arbitrárias ou ilegais, mais de 18 mil opositores torturados, mais de três mil exilados, 336 desaparecidos e 59 executados. Durante o regime de Stroessner, um em cada 67 adultos foi torturado. É também notável o número de cidadãos paraguaios que desapareceram enquanto estavam exilados em países vizinhos – 102 na Argentina e sete no Brasil –, em prováveis ações da operação Condor. Mas o relatório foi além: a grilagem de terras incentivada pela ditadura e a distribuição ilegal de terras públicas a latifundiários e apoiadores do regime, que atingiu 28% das terras aráveis do Paraguai, é tema de um dos volumes. Violações contra mulheres, crianças e povos indígenas, mesmo quando não apresentavam motivações explicitamente políticas, também foram abordadas, entendidas como responsabilidade do regime autoritário. Os trabalhos da Comissão resultaram também em dez denúncias judiciais contra violadores, bem como em uma lista de 177 recomendações ao poder público paraguaio. Entre elas, dar continuidade à busca pelos restos dos desaparecidos políticos, preservar antigos centros de tortura como espaços de memória, alterar nomes de ruas e outros locais públicos que homenageiam violadores, e solicitar a outros países que abram seus arquivos relacionados à violação de direitos de cidadãos paraguaios (ALARCON e MANDELLI, 2011, p. 56). As comissões citadas acima tiveram um trabalho satisfatório no esclarecimento das violações pelos regimes autoritários latino-americanos, Na América Latina, apenas a Argentina deve ser apontada como a referência internacional na defesa da verdade, memória e justiça, pois foi o único país que levou centenas de envolvidos com torturas e assassinatos ao banco dos réus, condenando mais de duzentos militares e civis, alguns a pena perpétua. 29 A Comissão Nacional sobre o Desaparecimentode Pessoas (Conadep), em apenas nove meses, ouviu mais de sete mil depoimentos e entrevistas. O trabalho da comissão foi responsável por reunir informações que serviram para mais de duas mil denúncias contra torturadores. Além do julgamento de oficiais e da abertura de processos na Justiça, a comissão teve um grande alcance na divulgação de seu trabalho, o relatório “Nunca Más” documento 9 mil desaparecidos e tornou-se um best-seller, testemunhos de vítimas foram lidos em rede nacional de televisão e a defesa dos direitos humanos e a condenação da ditadura se tornou e continua, sendo um elemento nacional da vida política argentina. O alcance dos trabalhos da Conadep não se restringiu a apuração dos acontecimentos, mas foi capaz de avançar na justiça pelas condenações dos algozes da ditadura e pautou nacionalmente o debate sobre verdade, memória e justiça. Compreendendo que uma comissão de verdade, em maior ou menor grau, obedece a três estágios de atuação, o relato de história, a construção moral e as consequências políticas, é correto afirmar que apenas a Conadep, na Argentina, conseguiu, na América Latina, um efetivo e expressivo resultado nestes três níveis. Ela foi capaz de esclarecer o período de repressões na ditadura argentina com base em testemunhos e documentos, conseguindo didaticamente a reprovação social da violência cometida pelo arbítrio de um Estado de exceção e causando consequências políticas com a punição, com prisão perpétua de oficiais que estiveram nos porões e gabinetes da ditadura. A experiência argentina deve ser vista como referência e exemplo de transição democrática e trato com a história. As comissões de verdade tem um papel importante para a história de um país que atravessou períodos autoritários. Elas possuem um papel pedagógico para a democracia. Trata-se de esclarecer as circunstâncias da morte de jovens que foram executados sem o direito a um tribunal e deixaram pais aflitos que não puderam sepultá-lo. Essas histórias foram silenciadas por muito tempo, porque incomodam, mas contá-las, reconhecendo as responsabilidades do Estado e seus agentes, entendendo que mesmo a reparação justa é insuficiente para os parentes e amigos que perderam um íntimo, é um antídoto forte contra uma amnésia que tem como principal sintoma uma profunda incompreensão do presente, fatalmente originada na incompreensão do passado. É neste sentido que apresentamos panoramicamente as experiências das comissões verdade na América Latina, para tratar do 30 percurso histórico que antecede a criação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil e seu respectivo trabalho. 1.2 COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: PERCURSO HISTÓRICO No ano de 2014, registrou-se o cinquentenário do golpe militar no Brasil. Neste período, muitas universidades, movimentos sociais, entidades e organizações de direitos humanos, associações de familiares de presos e desparecidos políticos retomaram, com mais vigor, o debate sobre democracia e ditadura. O tema ganhou a atenção de editoras que anunciaram novas publicações e relançamentos de livros vinculados ao tema. Eventos acadêmicos e debates foram promovidos por professores e coletivos de militância de várias matizes ideológicas, atingindo uma parcela da população escolarizada em instituições de ensino básico e superior, em círculos de militância política e ativismo social. Em Brasília, no aniversário do cinquentenário do golpe, a presidente Dilma Rousseff fez um pronunciamento no Palácio do Planalto, onde enfatizou a importância das conquistas democráticas. Na Sede da OAB, o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, participou de solenidade onde em ato simbólico pediu perdão em nome do Governo brasileiro as vítimas da Ditadura. No Senado, parlamentares pediram revisão da Lei de Anistia na sessão especial que lembrou o golpe. Em uma manifestação intitulada de “escracho”, vários cartazes foram afixados na frente da casa do ex-chefe do DOI-Codi e coronel reformado do Exército, Brilhante Ustra. Vários atos em capitais e grandes cidades, como Brasília, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador repudiaram o golpe, homenagearam os mortos e desparecidos políticos. Contudo, o golpe civil-militar também foi comemorado por parte da sociedade no ano de seu cinquentenário, naquele momento em proporções menores as manifestações de repúdio à ditadura. Um ano depois, em 2015, houve um robusto crescimento de manifestações que pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff e multiplicaram-se atos por uma intervenção militar no Brasil. Uma parcela da sociedade brasileira idealiza a ditadura como um regime a-corrupto de paz social e o autoritarismo brasileiro como parte de uma ideologia conservadora mostra-se vivo e presente. “O fascismo não perdeu, como realidade histórica, nem seu significado político nem sua influência ativa. O fascismo, como ideologia e utopia, 31 persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma poderosa força política organizada”, esclarece Florestan Fernandes (2015, p.33). Análogo ao fascismo analisado por Florestan, o mesmo pode-se dizer as tendências autoritárias no Brasil. A intervenção militar de 1964 fez parte de uma estratégia continental, que tinha os EUA como fiador e a burguesia brasileira e os militares como parceiros do consórcio imperialista que atuou pela substituição de presidentes eleitos por sócios dos interesses estadunidenses nos países latino-americanos, como Brasil e Chile. O resultado do golpe foi uma ditadura, de caráter burgo-militar, como define Milton Pinheiro (2014), que perdurou por 21 anos. O golpe de 1964 é caracterizado pela “tomada do poder e o estabelecimento de uma ditadura de classe comandada pelo grande capital”, como afirma Monteleone (2016, p.10). “Washington garantiu apoio aos seus tradicionais aliados militares e lhes forneceu ajuda, porque os militares eram essenciais a estratégia para conter excessos esquerdistas do Goulart, presidente eleito”, esclarece Chomsky (2003, p.289). A histérica bandeira do combate ao comunismo internacional serviu como álibi ideológico para os EUA e seus parceiros, avançando contra princípios democráticos básicos como a imprensa livre, a autodeterminação dos povos e a liberdade de expressão e auto-organização, falsificando a realidade e posteriormente a história. Desmistificar os papéis dos principais atores da trama da Ditadura: os EUA, a burguesia brasileira e os militares, é acertar contas com o passado e promover a reconciliação do Brasil com sua própria história. Quase 30 anos após o fim do regime, interregno temporal suficiente para um balanço honesto sobre a ação terrorista do Estado brasileiro durante a ditadura, foi instalada a Comissão Nacional da Verdade, através da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Os movimentos sociais pelo direito à verdade, memória e justiça, que têm empreendido uma luta histórica pela apuração das graves violações aos direitos humanos e pela responsabilização e punição dos autores de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados, conquistaram um importante avanço com a instituição da CNV. A ditadura brasileira, iniciada com o golpe de 31 de março de 1964, converteu o país em um Estado de Exceção. Um conjunto de direitos e liberdades civis e individuais foram desrespeitadas e a ditadura se tornou responsável direta pela morte de centena de pessoas, estudantes, trabalhadores, religiosos, jornalistas, artistas e setores médios que se bateram 32 contra as atrocidades protagonizadas pelos militares. Além das mortes, mais de 20 mil presos políticos e um lastro de torturas e desaparecimentos forçados são registros das nebulosas práticas da ditadura e da história contemporânea brasileira. As graves violações humanitárias não foram registradas apenas do Brasil. É importante pontuar que a ascensão do autoritarismo foi um fenômenocontinental na América Latina. Várias ditaduras militares, entre as décadas de 1960 e 1970, foram apoiadas pelos Estados Unidos, inclusive a ditadura militar brasileira. O contexto da Guerra Fria que polarizou o mundo entre os blocos dos EUA e do chamado Free World e o da União Soviética, respectivamente socialista, torna-se um aspecto essencial para entender a ação binária que os parceiros estadunidenses adotaram frente os agrupamentos de esquerda na América Latina. No Brasil, ainda durante a ditadura militar, teve início a luta pelo esclarecimento das versões oficiais de desaparecimentos e assassinatos por motivação política. A conhecida história da estilista Zuleika Angel Jones, conhecida também como Zuzu Angel, que empreendeu inúmeros esforços para encontrar seu filho, Edgar Angel Jones, estudante de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que foi preso 14 de junho de 1971 por agentes do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica e dado como desaparecido, é um exemplo da luta de familiares de presos e desaparecidos políticos pelo direito à verdade histórica, memória e justiça. Zuzu Angel, tal como muitas outras mães, não conheceu, através do Estado e da justiça, a verdade sobre o destino dado ao seu filho. Ela fez da moda uma ferramenta de denúncia, mas em 1976, foi vítima de um atentado que culminou com sua morte. O relatório final da CNV, ao versar sobre o mandato legal da comissão, que tem o direito internacional como diapasão e exemplo, aponta o primeiro marco legal sobre o direito à verdade. Coube ao direito internacional humanitário, destinado a regular situações de conflito armado, a primeira referência normativa ao direito à verdade. Em 1949, as Convenções de Genebra já fixaram regras a respeito de registro e fornecimento de informações sobre as vítimas de conflitos armados, bem como sobre a obrigação das partes em facilitar as investigações feitas pelos membros das famílias dispersadas pela guerra. Contudo, o reconhecimento explícito do direito das famílias a saber 33 sobre o ocorrido com seus entes deve ser atribuído ao Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra, de 1977. Seus artigos 32 e 33 tratam do direito das famílias de conhecer o destino de seus membros, ao término dos períodos marcados por hostilidades, bem como da obrigação das partes envolvidas no conflito de localizar as vítimas, ou os despojos das vítimas cujo paradeiro permaneça ignorado (CNV, 2014, p. 34). Um ano após a morte de Zuzu Angel, em 1977, o Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra, em seus artigos 32 e 33, estabeleceu a responsabilidade dos estados em localizar o paradeiro e despojos de vítimas que sofreram graves violações de direitos humanos marcadas pela hostilidade de conflitos armados e outras intempéries da história recente. O avanço da legislação que tratava das questões humanitárias teve um novo capítulo escrito no Brasil em 1979. A criação dos Comitês Brasileiros de Anistia, em 1978, impulsionou manifestações públicas pelo retorno dos exilados e o lançamento de um conjunto de ações: debates, panfletos, abaixo-assinados e a edição de livros que tiram do isolamento os presos políticos. As mobilizações ganham as ruas e simpatizantes no Congresso, como o senador Teotônio Vilela. O Governo se mostrava reticente a conceder anistia, mas o avanço da campanha e uma greve de fome de 32 dias dos presos políticos levaram o presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo a girar a tática governamental sobre o tema. Costa (2001, p. 86), com base no Projeto Brasil Nunca Mais, aponta que “naquele momento, havia no Brasil cerca de 200 presos políticos, 128 banidos, 4.877 punidos por Atos de Exceção, 263 estudantes atingidos pelo artigo 477 e cerca de 10 mil exilados”. A campanha teve como palavra de ordem “Anistia ampla, geral e irrestrita” e o general presidente João Batista Figueiredo sancionou a Lei Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Em linhas gerais, a anistia concedida não foi a projetada pelos comitês e serviu também para que os militares se auto anistiassem, com a extensão do perdão a torturadores. Mas também simbolizava um processo de abertura dentro da institucionalidade, que serviu para fortalecer as condições para outras movimentações políticas, como as “Diretas Já” de 1985. A Anistia de 1979 e a derrota da emenda constitucional que previa Eleições Gerais em 1985, impulsionada pela campanha das “Diretas Já”, segundo Spinelli (2014, p. 61) “protegia os militares contra pretensões revanchistas e permitiria que eles exercessem uma discreta 34 tutela sobre o governo civil, adiantando a competição real com a oposição, em reeleição direta, para 1991”. A sucessiva queda de regimes autoritários na América Latina, a perda de legitimidade da ditadura brasileira, o avanço de mobilizações, como as pela liberdade dos presos políticos com o processo de anistia e o pedido de eleições gerais para 1985, forjaram as condições para um processo de abertura. A distensão “lenta, gradual e segura”, publicamente iniciada com o general e presidente Ernesto Geisel, em 19741, avançou sob o comando de Figueiredo e teve importante marco com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em 1985, o primeiro presidente civil desde 1964. Em decorrência de sérios problemas de saúde, Tancredo veio a falecer em 21 de abril de 1985. José Sarney, que havia tomado posse interinamente como presidente desde 15 de março daquele ano, passou à titularidade da Presidência da República. Neste sentido, é importante destacar que ele foi um aliado dos militares e gozava de confiança das cúpulas do poder militar, um agende político sob o controle do diapasão autoritário. Após a ascensão de um civil à Presidência, a Constituição de 1988, que ensejou ampla mobilização da sociedade, teve papel fundamental como novo marco constitucional que fundamenta o Estado democrático de direito e restitui uma série de direitos e garantias civis. O processo de abertura possibilitou maior organização e várias associações de familiares de presos e desaparecidos políticos, a exemplo das Madres de Plaza de Mayo, na Argentina, assim como entidades de direitos humanos, foram fundadas, em um contexto favorável a organização e à luta pelo direito à verdade, que tomou novos contornos pós-ditadura. A abertura dos arquivos da Ditadura, a punição de torturadores com a revisão da Lei de Anistia e a indenização e reparação histórica se tornaram bandeiras importantes, assim como a instituição de uma comissão da verdade. A luta pela democracia e pela verdade histórica tem uma dimensão não apenas humanitária, mas também política. O Relatório da IV Reunião Anual do Comitê de Solidariedade aos Revolucionários do Brasil, documento datado de fevereiro de 1976, 1 É importante citar que o presidente Ernesto Geisel aprovou uma série de medidas autoritárias como o fechamento do Congresso em 1º de abril de 1977, além de reformas que permitiam e reforçava uma confortável predomínio do Governo nas esferas legislativas. Essas medidas fizeram parte de um arsenal judicial que reforçava o poder do Governo em conduzir um processo de abertura tutelada. 35 encontrado no acervo pessoal do ex-senador e líder comunista Luiz Carlos Prestes, apresenta uma lista de 233 torturadores da cidade de São Paulo. A historiadora Vivi Fernandes de Lima (2012) relata, em um dossiê sobre Prestes, o significado deste documento que registrou os nomes de algozes do regime e buscou preservar essa memória, uma ação política de combate ao esquecimento e de denúncia ao autoritarismo. Este não foi o único dossiê produzido por militantes políticos e ativistas de direitos humanos durante a ditadura. O certo é que eles têm um sentido muito claro: reivindicaruma história onde as memórias dos que foram vítimas não desapareça ou seja enterrada. Calveiro (2013) afirma que nos campos de concentração/extermínio na Argentina, havia-se quase uma obsessão: alguém deveria sobreviver para contar fora da prisão o que aconteceu com os que foram presos. Para o filósofo Walter Benjamin (1987, pp 3, 14) “somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado” e a “história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Ela é um salto de tigre em direção ao passado”. A promulgação da Constituição Cidadã de 1988 restituiu uma série de garantias fundamentais suspensas pela ditadura brasileira. No cenário internacional as obrigações dos Estados com as vítimas de graves violações de direitos humanos, também foram ratificadas em 1988, em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como apresenta Simone Pinto (2010): Em função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, em que ficou definido que todos os Estados, estão sujeitos a quatro obrigações: a) tomar medidas para prevenir violações aos direitos humanos; b) conduzir investigações quando as violações ocorrem; c) impor sanções aos responsáveis pelas violações e d) garantir reparação para as vítimas. Estes princípios foram reafirmados em decisões subsequentes e adotadas também por decisões da Corte Européia de Direitos Humanos e por tratados e resoluções da ONU (PINTO, 2010, p. 129). No Brasil, o que pode ser apontado como o episódio de maior importância no percurso das reivindicações por verdade, memória e justiça, pós-Constituição de 1988, foi a instalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a CEMDP. O presidente 36 Fernando Henrique Cardoso (FHC), que sofreu pressão política de grupos de familiares de presos e desaparecidos políticos, tomou a iniciativa de abrir diálogo. O Ministério da Justiça, através do Ministro Nelson Jobim, recebeu pela primeira vez, em 1995, representantes da Comissão de Familiares de Presos Políticos, Mortos e Desaparecidos e do grupo Tortura Nunca Mais. O resultado dessa interlocução foi a aprovação e a sanção presidencial de Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, que afirmou a responsabilidade do Estado sobre os crimes praticados por agentes estatais durante a ditadura e criou a CEMDP. A própria comissão faz referência à importância da lei. Ela afirmou a responsabilidade do Estado pelas mortes, garantiu reparação indenizatório e, principalmente, oficializou o reconhecimento histórico de que esses brasileiros não podiam ser considerados terroristas ou agentes de potências estrangeiras, como sempre martelaram os órgãos de segurança. Na verdade, morrera lutando como opositores políticos de um regime que havia nascido violando a constitucionalidade democrática erguida em 1946 (BRASIL, 2007, p. 30). A CEMDP, instituída em 1995 pelo presidente FHC, concluiu seu trabalho com a publicação do seu relatório final “Direito à Verdade e à Memória” em 2007, já sob o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É importante ressaltar que antes da conclusão dos trabalhos da CEMDP, em 2005, por determinação presidencial, foram retirados mais de 20 milhões de páginas sobre a ditadura do extinto Serviço Nacional de Informação, o SNI e recolhido ao Arquivo Nacional. Registre-se ainda que essas iniciativas estavam ancoradas nas determinações da ONU, em especial da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado, que ocorreu em 2006 e diz que “toda vítima tem o direito de conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino da pessoa desaparecida, bem como o direito à liberdade de buscar, receber e difundir informações com esse fim”. Essa discussão é apresentada por Rafael Neves (2012, p.156), que ressalta que “os direitos humanos não podem ser entendidos desvinculados do exercício do poder político”. No que diz respeito ao direito à verdade, a CNV destaca a atuação do Alto 37 Comissário para Direitos Humanos e a publicação de O Estado sobre o direito à verdade que define as dimensões individuais e coletivas sobre o direito à verdade. O direito à verdade recebeu atenção, ainda, do Alto Comissariado para Direitos Humanos a partir de 2006, quando foi publicado o Estudo sobre o direito à verdade, que define o direito de saber a “íntegra e completa verdade” sobre as causas que levaram à vitimização, as causas e condições para as graves violações de direitos humanos e de direito humanitário, o progresso e os resultados de investigações, as circunstâncias e razões para o cometimento de crimes internacionais, as circunstâncias em que as violações ocorreram e, finalmente, a identidade dos perpetradores. O direito à verdade assume duas dimensões: 1) individual: o direito à verdade impõe a obrigação do Estado de apresentar informações específicas sobre as circunstâncias das graves violações, inclusive a identidade dos autores e no caso de morte e desaparecimento, sobre a localização dos restos mortais; e 2) coletiva: o Estado está obrigado a fornecer informações acerca das circunstâncias e razões do ocorrido (CNV, 2014, p. 35). Importantes avanços na legislação internacional que trata das violações aos direitos humanos foram registrados no começo do século XXI e quando esse anteparo jurídico versa sobre as violações que ocorreram em decorrência de rupturas institucionais e a consequente emergência de ditaduras, uma demanda por reparações da justiça e por transição à democracia surge. Para atender esta demanda por justiça e democracia, surge o conceito de justiça de transição ou justiça transicional que visa a transição democracia com consolidação do Estado democrático de direito e reparação as vítimas de regimes autoritários. Este conceito é explicado nos seus pormenores por Simone Pinto (2010) e Honório Quinalha (2013), que apontam a emergência dessa temática na agenda política latino-americana. O conceito de justiça de transição surgiu no final da década de oitenta e início da década de noventa principalmente em resposta às mudanças políticas ocorridas na América Latina e no Leste Europeu. Da junção de demandas por justiça e por transição democrática, o termo justiça transicional foi cunhado para expressar métodos e formas de responder a sistemáticas e amplas violações aos direitos humanos. Assim, justiça transicional não expressa nenhuma forma especial de justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o direito das vítimas, 38 promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia (PINTO, 2010, p. 129). Para Quinalha: O tema justiça de transição ingressou, com posição de destaque, na agenda política latino-americana. As discussões relativas ao legado do passado autoritário nessas democracias recentes sempre estiveram em pauta pela persistente atuação de movimentos sociais de ex-presos e de familiares de desaparecidos políticos. Mas essas pautas adquiriram excepcional visibilidade e receberam maior atenção dos governos na região apenas durante a primeira década do séc. XXI, em especial nos últimos cinco anos. No caso brasileiro, demonstrações contundentes disso podem ser verificadas, especialmente, a partir do ano de 2007. Uma série de iniciativas e respostas recentes por parte do Estado atesta que esse tema começou a ocupar um espaço público relevante e passou a ser objeto de intensas polemicas na sociedade e no interior do próprio governo (QUINALHA, 2013, p. 22-23). Os avanços de 2005, 2006 e 2007 foram importantes para basilar as discussões em torno da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos que ocorreu em 2009 e recomendou a criação de uma Comissão de
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