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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE TECNOLOGIA DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO MOUHAMADOU MANSOUR CABA GAKOU KEUR QUIRAAM (CASA DO FEIXE DE LUZ) Uma proposta de habitação coletiva multifamiliar de baixo custo e impacto ambiental para população de baixa renda no Senegal Natal – RN 2019 MOUHAMADOU MANSOUR CABA GAKOU KEUR QUIRAAM (CASA DO FEIXE DE LUZ) Uma proposta de habitação de baixo custo e impacto ambiental para população de baixa renda no Senegal Trabalho final, apresentado a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte das exigências para a obtenção do título de bacharelado em Arquitetura e Urbanismo. Natal, 12 de novembro de 2019. BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Dr. Rubenilson Brazão Teixeira Orientador – Morfologia e Usos da Arquitetura (MUsA) UFRN ________________________________________ Prof. Ms. Marizo Vitor Pereira Avaliador Interno – Departamento de Arqueitetura UFRN ________________________________________ Arq. Viviane Teles Avaliadora Externa – Viviane Teles Arquitetos Gakou, Mouhamadou Mansour Caba. Keur quiraam: uma proposta de habitação de baixo custo e impacto ambiental para população de baixa renda no Senegal / Mouhamadou Mansour Caba Gakou. - Natal, RN, 2019. 141f.: il. Monografia (Graduação) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Tecnologia. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Rubenilson Brazão Teixeira. 1. Habitação de interesse social - Monografia. 2. Arquitetura bioclimática - Monografia. 3. Ecotectura - Monografia. 4. Arquitetura na áfrica - Monografia. I. Teixeira, Rubenilson Brazão. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/BSE15 CDU 728.1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Dr. Marcelo Bezerra de Melo Tinôco - DARQ - -CT Elaborado por Ericka Luana Gomes da Costa Cortez - CRB-15/344 Aos meus pais, Chérif, Nicole e Malick Dia. Pelo sol e pelo seu esplendor Pela lua, que o segue Pelo dia, que o revela Pela noite, que o encobre(...) (Surata As-Xams (n°97)/O sol – O Alcorão) RESUMO O anteprojeto arquitetônico de uma casa ambientalmente sustentável para a cidade de Thiès, região do Senegal, com ênfase nas propriedades bioclimáticas e socioeconômicas e culturais dessa região, consiste no objeto de estudo deste TFG. A motivação principal para a realização de um projeto dessa natureza se baseia na relação da problemática contemporânea sobre a degradação do meio ambiente com a produção arquitetônica deficitária de edifícios adequados nos seus contextos bioclimáticos, tornando-os com custo alto e difíceis de aquisição pela população de baixa renda. Além disso, este trabalho tem por objetivo elaborar um Projeto de arquitetura de habitação de interesse social seguindo os princípios da Ecotectura (Ecohouse) de modo a que essa habitação seja adequada à realidade senegalesa tanto em termos de sustentabilidade ambiental quanto econômica e cultural, para a população de baixa renda. Sendo assim, desenvolver este trabalho se caracteriza em reiterar a importância da discussão sobre a questão da produção de habitação sustentável, bem como de incentivo à eficiência energética para baratear o custo das habitações. Para tal, propõe-se (em dois volumes) a KEUR QUIRAAM ou Casa de Feixe de Luz, uma habitação que, baseando-se em 3 eixos de estudo (ambiental, socioeconômica e cultural), é ambientalmente sustentável, culturalmente adequada e acessível à população de baixa renda em Tivaouane, município de Thiès. Por fim, abre-se um leque de novas referências sobre ecotectura e arquitetura bioclimática na África. Palavras-Chave: arquitetura bioclimática, ecotectura, arquitetura na áfrica, habitação de interesse social. ABSTRACT The architectural design of an environmentally sustainable house for the city of Thiès, Senegal, with an emphasis on the bioclimatic and socioeconomic properties of this region, is the object of this present study. The main motivation for carrying out such a project is based on the relationship of contemporary problematics on environmental degradation caused by the production of buildings in their bioclimatic contexts, making them costly and difficult to acquisition by the low- income population. In addition, this work aims to elaborate a Project of housing architecture of social interest following the principles of Ecotectura (Ecohouse) so that this housing is suitable for Senegalese reality both in terms of environmental and cultural sustainability and low-income population. Thus, developing this work is characterized by reiterating the importance of the discussion on the issue of sustainable housing production as well as encouraging energy efficiency to lower the cost of of dwellings. To attend such purpose, we proposed the KEUR QUIRAAM or House of Light Beam which is a social housing, based on 3 axes (environmental, socioeconomic and cultural), environmentally sustainable, culturally adequate and accessible to low-income population of Tivaouane, district of Thiès. Finally, this work provides a range of new references on ecotecture and on african bioclimatic architecture. Key words: bioclimatic architecture, ecotecture (ecological architecture), african architecture, low-cost housing, sustainable housing. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Localização do Senegal no continente africano. Editado pelo autor. ..... 21 Figura 2: Localização da faixa do Sahel em relação às suas vizinhas. Fonte: https://eros.usgs.gov/westafrica/node/147 ............................................. 23 Figura 3. Zonas bioclimáticas do Senegal. ................................................ 23 Figura 4. Mapa de Ecossistemas do Senegal. Fonte: http://eros.usgs.gov/westafrica/ecoregions-and-topography/ecoregions-and- topography-senegal ........................................................................... 24 Figura 5. Mapas dos níveis de topografia do Senegal. Fonte: PNUD, Senegal, 2018. 26 Figura 6. Gráficos das variações regionais de temperatura e pluviometria no Senegal. Fonte: PNUD, Senegal, 2018. .................................................... 27 Figura 7. Distribuição da população Senegalesa por gênero. ANSD, Senegal, 2013. 28 Figura 8. População do Senegal em 2013. Fonte: ANSD, Senegal, 2013. ............. 29 Figura 9. Grupos étnicos do Senegal. Fonte: https://www.au-senegal.com/cartes- thematiques-du -senegal,358.html ......................................................... 31 Figura 10. Quadro de critérios para análise de governança e liderança em países africanos e as notas (sobre 10) dadas para o Senegal. Fonte: https://mo.ibrahim.foundation/ ........................................................... 33 Figura 11. Casa de palha. Fonte: Acervo do CRAterre, 2014. .......................... 38 Figura 12. Habitação tradicional senegalesa. fonte: https://www.planete- senegal.com/senegal/habitat_traditionnel_senegal.php ............................... 40 Figura 13. Exemplar de arquitetura colonial senegalesa. Fonte: https://www.club- des-voyages.com/senegal/photos/architecture-coloniale-(3)-19043-3237.html .... 41 Figura 14. Exemplar de arquitetura colonial senegalesa. Fonte: https://maison- monde.com/maison-coloniale-au-senegal/ ............................................... 41 Figura 15. Exemplarde arquitetura colonial senegalesa. Fonte: http://notesditinerance.canalblog.com/archives/2014/02/13/29201036.html .... 42 Figura 16. Exemplar de arquitetura colonial senegalesa. Fonte: https://i.pinimg.com/736x/a2/6f/10/a26f10b84d1cd1a4e3f0c602888c0b25.jpg .. 42 Figura 17. Igreja católica de Nianing, exemplar de arquitetura contemporânea senegalesa. Fonte: https://www.mains-ouvertes-senegal.com/agir/eglise-de- nianing/ ........................................................................................ 43 Figura 18. Banco da África, exemplar de arquitetura contemporânea senegalesa. Fonte: Acervo do CRAterre, 2014. ......................................................... 44 Figura 19. Montagem de exemplares de conjuntos habitacionais senegaleses. ..... 45 Figura 20. Montagem com exemplares de habitat popular regular. ................... 46 Figura 21. Exemplar de habitat popular irregular. Fonte: Acervo do CRAterre, 2014. .................................................................................................. 47 Figura 22. Exemplar de habitat espontâneo. Fonte: ONU, 2013. ...................... 49 Figura 23. Exemplar de habitat espontâneo. Fonte: ONU, 2013. ...................... 49 Figura 26. Programa de habitação. SICAP SA, 2017. ..................................... 78 Figura 32. Mapa do Senegal com sentidos de crescimento econômico. .............. 96 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Distribuição de tipologias de edificações por região. Fonte: ANSD, Senegal, 2013. ................................................................................. 37 Tabela 2. Natureza de envoltória e revestimento das edificações senegalesas. ANSD, Senegal, 2013. ........................................................................ 39 Tabela 3. Informações do programa ZAC. Fonte: ZAC, 2000, modificado pelo autor, 2019. ............................................................................................ 54 Tabela 4. Dados da aplicação da política de reestruturação e regulação dos assentamentos “espontâneos”. ONU Habitat, 2012. .................................... 55 Tabela 5. Atuação do setor habitacional. Fall, 2009. ................................... 64 Tabela 6.Síntese dos eixos abordados. Elaborado pelo autor. ......................... 68 Tabela 7. Tabela orçamentária de custos. SICAP SA, 2017. ............................ 79 Tabela 8. Tabela de síntese de eixos estruturantes. .................................... 80 Tabela 9. Eixos Norteadores. Fonte: Elaborado pelo autor, 2019. .................. 111 Tabela 10. Pré-dimensionamento. Fonte: Elaborado pelo autor, 2019. ............ 113 Tabela 11. Pré-dimensionamento. Fonte: Elaborado pelo autor, 2019. ............ 114 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................... 14 2. O SENEGAL E QUESTÃO DA HABITAÇÃO PARA POPULAÇÕES DE BAIXA RENDA ........ 20 2.1. Uma visão geral do país ........................................................................................................ 20 2.1.1 História .............................................................................................................................. 21 2.1.2 Geografia e Bioclima ....................................................................................................... 22 2.1.3 Aspectos demográficos .................................................................................................... 27 2.1.4 Aspectos econômicos e culturais ................................................................................... 29 2.1.5 Aspectos políticos ............................................................................................................ 32 2.2. Os programas de governo para a habitação de interesse social .................................... 34 2.2.1 Características das habitações no Senegal .................................................................. 35 2.2.2 Tipologias das habitações no Senegal .......................................................................... 39 2.2.3 Contextualização política e institucional .................................................................... 49 3. OS REFERENCIAIS EMPÍRICOS .................................................................... 71 3.1 Hotel Djoloff - Extensão (por David Guyot) ........................................................................ 72 3.2. Casa padrão SICAP SA (Société Immobilière du Cap Vert) .............................................. 77 4. OS FUNDAMENTOS PARA A PROPOSTA ........................................................ 82 4.1. A Ecotectura: definição e princípios de aplicação para o Senegal ............................... 82 4.1.1 Sobre a Arquitetura vernacular ..................................................................................... 83 4.2. O universo de estudo - eixos de análise: a região de Thiès e o povo Wolof ................ 86 4.2.1. O eixo ambiental ............................................................................................................ 87 4.2.2. O eixo socioeconômico .................................................................................................. 89 4.2.3. O eixo cultural: modos de viver/morar e de construir do povo Wolof ................. 90 4.3 A escolha do terreno ............................................................................................................... 96 4.3.1 Localização e Justificativa ............................................................................................. 97 4.4. Condicionantes ambientais................................................................................................. 100 4.5. Condicionantes legais .......................................................................................................... 103 4.5.1 O Código de urbanismo e de construção .................................................................... 103 5. PROPOSTA ......................................................................................... 106 5.1 O PROCESSO DE CONCEPÇÃO ............................................................................................... 106 5.1.1 Conceito ........................................................................................................................... 107 5.1.2. Partido Arquitetônico .................................................................................................. 109 5.1.4 A evolução formal e espacial ....................................................................................... 114 5.1.5. Implantação, acessos e zonas de ocupação ............................................................. 117 5.1.6. Zoneamento e Layout .................................................................................................. 121 5.2. O PRODUTO ........................................................................................................................... 125 5.2.1 Fundações ........................................................................................................................ 127 5.2.2 Materiais construtivos .................................................................................................... 128 5.2.3 Abastecimento de água ................................................................................................. 129 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 132 ANEXOS.................................................................................................136 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 138 13 14 1. INTRODUÇÃO A partir do ano 2000, algunsestudos (Revista Guardian, BARTSH e MULLER, 2000) apontaram certas previsões ambientais alarmantes sobre os riscos nos quais o nosso século se colocará. Entre elas, o aquecimento climático global devido, entre outros motivos, a um “superconsumo” de recursos naturais ou combustíveis tais como o petróleo e o gás cuja combustão e transformação gera poluentes nocivos, causando a redução da camada do ozônio. Com a crise de petróleo de 1973 e com o aumento da população nos centros urbanos na década de 1980 a situação agravou- se quando começaram a surgir verdadeiros colossos arquitetônicos – edifícios de grande porte –, submetidos a uma hemorragia energética e econômica. Sistemas de iluminação e de climatização artificiais passaram a ser largamente utilizados, dando ao projetista uma posição bastante cômoda perante os problemas de adequação do edifício ao clima (LAMBERTS et al. 2014, p. 15). Dessa forma, iniciou-se também um processo de diminuição progressiva das reservas mundiais daqueles recursos naturais dos quais a sociedade humana depende. Um dos maiores responsáveis por esse consumo astronômico são as edificações. Por meio delas, emite-se mais da metade de todos os gases que vêm modificando o clima, como, por exemplo, uma casa (de estilo padrão residencial da Inglaterra) que pode liberar cerca de 6500 kg de CO₂ por ano (ROAF, 2009, p. 19). O impacto dos edifícios no meio ambiente tem sido avaliado em várias ocasiões, especialmente em 2018. A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou alguns dados a respeito da situação da poluição mundial do ar e seus efeitos nas habitações. Por ano, 3,8 milhões de pessoas morrem prematuramente de doenças tais como pneumonia (27%); cardiopatias isquêmicas (27%); broncopneumopatias crônicas obstrutivas (BPCO-20%); AVC (18%); e câncer do pulmão (8%). A presença dessas doenças está diretamente ligada ao aumento da emissão de carbono na atmosfera e mais de 50% dessa emissão provém dos edifícios de maneira geral. No contexto de países desenvolvidos existem edificações que usam sistemas mecânicos de climatização, a fim de oferecer “um melhor abrigo contra as mudanças climáticas”. No entanto, nos Estados Unidos – país que, por si só, emite 15 mais de 25% do CO₂ global anual – são esses sistemas de ar-condicionado que representam mais de 40% da energia gerada e utilizada. No contexto dos países em desenvolvimento, observa-se ainda outro fenômeno de uso de combustíveis sólidos – no caso madeira, resíduos agrícolas, dejetos animais e orgânicos, o carvão e a lenha (WHO, 2014). Consequentemente, este último contexto é comum ao de muitos países africanos que, juntamente com os demais países em desenvolvimento, representam aproximadamente 3 bilhões de pessoas recorrendo a essas soluções pela ausência de sistemas de combustíveis mais “limpos” e pela falta de recursos, pois não têm acesso a fontes de energias menos agressivas ao meio ambiente. Um desses países é o Senegal, conhecido como um dos 25 mais pobres do planeta, com um dos IDH1 mais baixos - 164° do mundo – (PNUD, 2018), porém, com uma situação macroeconômica estável segundo o Fundo Monetário Internacional (2016). Apesar desse quadro, o Senegal é um dos países onde a questão da habitação, principalmente a sustentável, é pouco estudada, em detrimento da casa construída com materiais convencionais e com alto impacto ambiental, destinada apenas para pessoas com situação socioeconômica estável. Assim, urge-se pensar a habitação no país, levando em conta essa situação cada vez mais grave no país e no cenário mundial. Nas pesquisas acerca da habitação sustentável no Senegal, encontramos alguns trabalhos científicos e propostas arquitetônicas de habitação ambientalmente sustentável. Uma delas é a obra da Sue Roaf (2009), Ecohouse: a casa ambientalmente sustentável, importante por ter sido vanguardista sobre o assunto da ecotectura ou eco-home cujo conceito se constrói em cima de propriedades de baixo impacto ambiental, de uma casa que usa materiais e tecnologias de baixa energia incorporada e/ou materiais locais. Nesse conceito faz-se presente também o uso de artifícios e estratégias como painéis fotovoltaicos, grandes aberturas para ventilação e materiais de grande ou baixa inércia térmica2, segundo a necessidade do projetista, e 1 Índice de Desenvolvimento Humano. 2 Definida por Lamberts et al. (2014) como sendo a capacidade de um material em permitir a uma edificação armazenar o calor na sua estrutura térmica durante o dia, e devolvê-lo ao ambiente à noite, quando as temperaturas externas diminuem. Além disso, segundo Pedrini (2009), a inércia 16 reaproveitamento de águas usadas e/ou servidas, etc. A obra da Roaf, junto com várias outras referências bibliográficas sobre ecotectura, influenciaram as primeiras formulações com base no assunto para o desenvolvimento deste trabalho. Além das questões socioeconômicas do Senegal considerado como pais pobre, a importância da problemática acerca do desequilíbrio ambiental, das mudanças climáticas e da grande parte de responsabilidade das edificações sobre o fenômeno do aquecimento global, traz a reflexão a partir do seguinte questionamento: Como desenvolver uma proposta arquitetônica de habitação de baixo custo que seja ambientalmente sustentável, de modo a se adequar à realidade bioclimática, socioeconômica e cultural do Senegal? Diante deste contexto, foi considerado como objeto de estudo a Proposta de uma habitação ambientalmente sustentável (ou Ecotectura) culturalmente adequada e acessível à população de baixa renda no Senegal. O estudo desta temática torna-se justificável na medida em que se encontra desenvolvido no contexto atual de degradação climática do meio ambiente, envolvendo aquecimento global, aumento do nível do mar, redução da camada do ozônio, recorrência de furacões e outros desastres naturais. No Senegal, a partir dos grandes movimentos migratórios para constituir os grandes núcleos urbanos inseridos desde o início do século XX, o processo de expansão urbana acarretou, por sua vez, um conjunto de problemas ligados à qualidade de vida e habitacional, tanto no meio urbano como nas zonas rurais menos favorecidas. Assim, a presença da pobreza e o baixo crescimento econômico dos países africanos, de forma geral, faz com que a infraestrutura e os recursos tecnológicos e energéticos não sejam oferecidos de maneira sustentável em grande parte do território, inclusive senegalês – situação que atinge notadamente as condições de habitação de boa parcela da população. Finalmente – e mais importante ainda –, além da contribuição científica, este trabalho pode se tornar uma contribuição pessoal para o Senegal, servindo de espelho para mais projetos adequados à cidade e aos seus habitantes. térmica é uma estratégia usada para fazer com que o clima externo e o clima interno de determinada edificação se mantenham diferentes. 17 O objetivo do presente projeto consiste em elaborar uma Proposta arquitetônica de habitação (multifamiliar) de interesse social seguindo os princípios da Ecotectura, de modo que essa habitação seja adequada à realidade senegalesa em termos de cultura, de sustentabilidade ambiental, além de ser acessível para a população de baixa renda. Este trabalho se divide, no seu processo natural de construção, em 6 capítulos e as referências bibliográficas, sendo eles, primeiro, a introdução do volume escrito, depois a apresentação do Senegal e descrição da questão habitacional local, parte onde far-se-á uma introdução geral do país e dos seus programas de governos de Habitação de Interesse Social (HIS).Em seguida, o terceiro capitulo tratará dos Referenciais Empíricos, sendo duas referências projetuais, analisados também a partir dos eixos de análise anteriormente introduzidos. O quarto capítulo consiste no processo projetual, ou seja, os fundamentos da proposta do estudo preliminar no qual serão tratados, tanto a fundamentação teórica baseada nos princípios da Ecotectura, como a contextualização do universo de estudo da região de Thiès e da sua cultura de acordo com os eixos de análise escolhidos para o trabalho. Também neste capítulo, em seguida, justificar-se-á a escolha do terreno por meio da descrição das condicionantes ambientais e legislativas para assim introduzir o conceito e partido arquitetônico adotados, o programa de necessidades x pré-dimensionamento e de outras ferramentas do processo projetual. Dando prosseguimento, no quinto capítulo contempla-se o memorial descritivo das soluções adotadas para a proposta. No último capítulo, elencam-se, após o desenvolvimento do trabalho como pesquisa e projeto, as considerações finais que antecedem as referências bibliográficas. Ao lado deste volume escrito, o segue um segundo caderno que também compõe este trabalho, com as pranchas da representação gráfica dos desenhos técnicos, como se exige de qualquer proposta arquitetônica. Vale salientar, no final desta introdução, que o desenvolvimento dos 6 capítulos mencionados anteriormente, segue uma mesma lógica estruturada em cima dos três (3) eixos de análise - cuja definição de cada um deles será mais detalhada no corpo deste documento -: o eixo ambiental (as características bioclimaticas e materiais locais), o eixo socioeconômico (as características 18 socioeconômicas da população do Senegal com ênfase na de baixa e a questão da poligamia) e o eixo cultural (as propriedades culturais wolof com ênfase nos seus modos de morar e de construir). Em caráter introdutório, a definição dos 3 eixos é: Eixo ambiental: Adequação às características bioclimáticas, uso de materiais e técnicas construtivos locais; Eixo socioeconômico: Adequação às condições socioeconômicas da população de baixa renda; Eixo cultural: Preservação das propriedades culturais, a partir da leitura dos hábitos de viver e de morar das culturas locais (neste trabalho sendo escolhida a cultura Wolof) Esses eixos e os seus termos de definição relacionam-se à arquitetura na preocupação do projetista em assegurar ao usuário conforto térmico, acessibilidade econômica e apropriação cultural além de promover a sustentabilidade nesses aspectos citados. De fato, são a partir deles que serão desenvolvidas todas as análises, assim como as ideias e estratégias adotadas na proposta deste trabalho. O projeto proposto se volta para um terreno localizado em Tivaouane, município da região de Thiès, Senegal. O nome do projeto - KEUR QUIRAM - sendo uma habitação coletiva multifamiliar de baixo impacto ambiental, cujo propósito é se adequar à realidade bioclimática, socioeconômica e cultural do Senegal, é o resultado da mistura de duas palavras, uma na língua wolof e a outra em árabe, cujo significado conjunto é Casa do Feixe de Luz3, fazendo alusão ao sentido que se procurou dar a habitação – ou seja, um lugar que recebe luz. 3 Quiraam vindo do árabe ِ significando Luz da Honra, da Nobreza e da Dignidade كَرأمْ 19 20 2. O SENEGAL E QUESTÃO DA HABITAÇÃO PARA POPULAÇÕES DE BAIXA RENDA Apesar da problemática da habitação social ser objeto de estudo de muitos trabalhos acadêmicos, aqui ela detém uma certa particularidade do universo de estudo sobre o qual se discute: Thiès, região do Senegal. Devido a essa região e país serem pouco conhecidos, propõe-se reservar este capítulo para fazer uma introdução geral do Senegal e um panorama da questão habitacional. No final deste capítulo, adentra-se no universo de estudo mencionado anteriormente para analisá- lo com base nos três eixos deste estudo, cuja definição será detalhada, assim como o escopo de parâmetros que os compõem. 2.1. Uma visão geral do país Tendo como capital Dacar, o Senegal é um país da África ocidental, com uma superfície de 196 722 km², tendo como limites o Oceano Atlântico a Oeste, ao Norte, o rio Senegal e a Mauritânia, no Leste o Mali, a Guiné Conacri no Sudeste, e finalmente no Sul ou Sudoeste a Guiné-Bissau. Ainda dentro do seu território, o Senegal tem um enclave, isto é a Gâmbia, país soberano, que tem 740 km de fronteiras com o primeiro. 21 Figura 1. Localização do Senegal no continente africano. Editado pelo autor. A etimologia do nome Senegal, a partir de um cruzamento das considerações culturais (tradição histórica oral) e lendas locais junto com a literatura estrangeira4 (dos colonizadores) pode ser – dentro de várias outras definições –, da deformação da expressão da língua wolof suñu gaal que significa “nossa canoa”, mostrando assim todo senso de comunidade que reside nela e é, portanto, popularmente usada entre os conterrâneos para reiterar a solidariedade nacional. 2.1.1 História As primeiras povoações começaram a se consolidar pela formação, a partir do século VII, de reinados tais como: Tekrour, Djolof, Mandingues, Kaabu, etc. Dentro deles, o que progressivamente foi se tornando mais poderoso até o século XIV era o Império Djolof, cujo povo chamado povo wolof, agrupava subdivisões como o Cayor, Baol, os reinados sereer Sine e Saloum, o Waalo e o Fouta-Toro. A importância desses reinados para a história da soberania do país tem sido representada por meio da resistência manifestada contra a instalação e dominação no país inteiro do império colonial francês. 4 David Boilat, Esquisses sénégalaises, 1850. 22 Do século XVIII ao XIX, muitos dos comptoirs5 fundados desde os séculos XV e XVI foram assistindo a instalação do processo de escravidão e de colonização com o apoio, desde o século XIV, do comércio triangular (Europa, África e as Américas). Neste contexto a França reforça, depois de 1848 a sua dominação no território senegalês: Saint-Louis, Gorée, Dacar et Rufisque em municípios francesas e em 1895 Dacar, promulgado como capital da Afrique Occidental Française (AOF)6 É apenas em 1960, no dia 20 de agosto que o Senegal, retirando-se da Federação do Mali (fusão com Sudão Francês no dia 4 de abril de 1959), teve proclamada a sua independência e escolhe o dia 4 de abril como dia comemoração da sua soberania. 2.1.2 Geografia e Bioclima Em primeiro lugar, o que é Sahel? O Sahel, ou região Saheliana, é um cinturão semi-árido amplo, que se estende do Oceano Atlântico ao Sudão (e ao Mar Vermelho), com uma média de 350 km de largura (ver figura). O seu clima é caracterizado por uma estação ecologicamente seca de 8 a 9 meses e a outra de precipitações médias anuais entre 150 e 600 mm, com grande variabilidade em termos de quantidade e duração, dependendo dos anos. 5 Pontos de referência utilizados pelos europeus durantes as navegações pela costa africana. 6 África Ocidental Francesa: é parte da região das colônias, que foram controladas pela França. 23 Figura 2: Localização da faixa do Sahel em relação às suas vizinhas. Fonte: https://eros.usgs.gov/westafrica/node/147, acesso em setembro de 2019 Figura 3. Zonas bioclimáticas do Senegal. Fonte: https://www.au-senegal.com/cartes- thematiques-du-senegal,358.html?lang=fr acesso em agosto de 2019 A partir da figura 2 acima constata-se uma área significativa de quase a metade do território senegalês, localizada na zona bioclimática do Sahel e metade https://eros.usgs.gov/westafrica/node/147 https://www.au-senegal.com/cartes-%0bthematiques-du-senegal,358.html?lang=frhttps://www.au-senegal.com/cartes-%0bthematiques-du-senegal,358.html?lang=fr 24 na do Sudão. No entanto, analisando outros mapas, é possível perceber que há uma biodiversidade mais fragmentada no país. De fato, os mapas a seguir mostram uma diversidade considerável de ecossistemas no Senegal (figura 3). A paisagem natural do Senegal oferece, assim, uma grande diversidade de ecossistemas, desde prados sahelianos7 no Norte até os manguezais em Baixa Casamansa8, passando pelas florestas tropicais densas das profundezas da região Sul (USAID, 2005). Figura 4. Mapa de Ecossistemas do Senegal. Fonte: http://eros.usgs.gov/westafrica/ecoregions-and-topography/ ecoregions-and-topography-senegal10. Acesso em agosto de 2019 7 Que é do Sahel. 8 Nomenclatura dada à região Sul do Senegal. 9 Zonas escritas no mapa em francês: FL (zona pastoral ferruginosa); W (vale do Rio Senegal); ZAS- CO (Zona Agrícola do Saloum - Centro Oeste); ZEA (zona de expansão agrícola); ZOT(zona oriental de transição); ZS (zona de suporte ou âncora). 10 Zonas escritas no mapa em francês: FL (zona pastoral ferruginosa); W (vale do Rio Senegal); ZAS- CO (Zona Agrícola do Saloum - Centro Oeste); ZEA (zona de expansão agrícola); ZOT(zona oriental de transição); ZS (zona de suporte ou âncora). http://eros.usgs.gov/westafrica/ecoregions-and-topography/%0becoregions-and-topography-senegal http://eros.usgs.gov/westafrica/ecoregions-and-topography/%0becoregions-and-topography-senegal 25 As regiões semiáridas pastorais do Norte são típicas da zona bioclimática do Sahel, e as mais úmidas do Sul fazem parte da zona bioclimática do Sudão. Outras regiões, como a Zona Agrícola do Centro-Oeste (ZACO - Zona Agrícola Centro- Oeste) – também conhecida como Bacia de Amendoim, ou a Zona Agrícola do Saloum (ZAS - Zona Agrícola de Saloum) –, são áreas densamente povoadas, caracterizadas por alta densidade populacional rural que transformou completamente as savanas arborizadas originais. O Leste e Sudoeste (ZOT - Zona Oriental de Transição e ZS - Zona do Suporte) é dominada por planaltos lateríticos que têm sido poupados em grande parte da expansão agrícola do Oeste, mas que está sendo sujeitada a uma extensa exploração de seus recursos florestais. Finalmente no Sul, a região chamada de Casamance é conhecida por seus bosques, florestas de galeria, pântanos e vales com palmeiras e arrozais. No novo Plano Diretor de Dacar de 2016 - Horizon, 2025 -, o Senegal é definido, por meio de suas características geográficas e climáticas, como sendo um país pertencente à faixa de transição do deserto do Sahara: o Sahel. Do Norte ao Sul, a sua paisagem varia das dunas do “Cabo Verde”11 até Saint-Louis, aos estuários enlameados do Sul. Aí, a região da Casamansa – isolada do resto do Senegal por causa da localização da Gâmbia – é uma zona de baixa altitude, enquanto no Sudeste do país encontram-se os contrafortes de Tamgué, cuja altura máxima é de 581 m. A maior parte da região Noroeste e Norte é semi deserta, enquanto o centro e uma boa parte do Sul do país, com a exceção da Casamansa, são dominados por uma savana dita aberta12. (PDU Dacar Horizon 2025, 2016). 11 Nomenclatura aqui utilizada para a região de Dacar, não confundir com o arquipélago do Cabo Verde. 12 Savana com um pouco mais de vegetação, diferente da seca ou da gramínea, apresentando toda variação da savana tropical. 26 Figura 5. Mapas dos níveis13 de topografia do Senegal. Fonte: PNUD, Senegal, 2018. Além de ter uma topografia bastante plana e dois grandes rios – o Gâmbia e o Senegal –, o país é caracterizado por uma estrutura geológica da bacia sedimentar de arenitos cobertos por sedimentos mais recentes depositados pelo vento e pela água, assim como platôs intermitentes cobertos por uma placa dura laterítica. (RÉPUBLIQUE DU SÉNÉGAL, AJCI, 2016, p.56) Da mesma forma, o clima é geralmente considerado como tropical, com um calor relativamente agradável no ano todo e estações seca e pluvial bem definidas. De fato, a estação seca (novembro a maio) é caracterizada pela presença de um vento quente e seco, características comuns às regiões semiáridas: o Harmatão, que vem do Sahara até a região Noroeste do país. Já estação pluvial (junho a outubro) ou comumente no Senegal é chamada hivernal, resulta de ventos carregados em humidade alta do golfo de Guiné. (RÉPUBLIQUE DU SÉNÉGAL, AJCI, 2016, p.57) 13 Níveis escritos na legenda em francês, cuja tradução é: Élevée (Elevado/a); Faible (Baixo/a). 27 A pluviometria média anual varia entre 300 mm, no Norte, e 1200mm no Sul. Sugeriu-se agrupar as variações regionais de temperatura e pluviometria, conforme a figura a seguir: Figura 6. Gráficos de variações regionais de temperatura e pluviometria no Senegal. Fonte: PNUD, Senegal, 2018.14 2.1.3 Aspectos demográficos O Senegal possui uma população de cerca de 15,8 milhões, com uma densidade demográfica de 82.3 habitantes por km² (estimativas para o ano de 2018, ONU-DESA, 2018). A partir do último Censo nacional (2013) desenvolvido pela Agência Nacional de Estatística e da Demografia (ANSD)15, e junto a outras fontes, levantou-se os seguintes dados: 14 Nos gráficos, as barras azuis representam a pluviometria (em milímetros), as linhas vermelhas (temperatura máxima) e as linhas verdes (temperatura mínima) 15 Agence National de la Statitisque et de la Démographie 28 - A população senegalesa tem uma repartição por género na ordem de 50,1% de mulheres contra 49,9% de homens. Além disso, ela é jovem, com uma taxa de fertilidade alta de quase 4.5 filhos por mulher (CIA, 2018), e com metade da população abaixo de 18 anos (figura 6). Ademais, a expectativa de vida no país é de 67-68 anos (ONU-DESA, 2018) Figura 7. Distribuição da população Senegalesa por gênero. ANSD, Senegal, 2013. - No período de 2002 a 2013 nota-se um crescimento demográfico de 2,5% em nível nacional – e mais especificamente de 3,5% em zonas urbanas e 1,7% em zonas rurais. Embora as zonas urbanas tenham uma taxa de crescimento demográfico maior, a população ainda é em sua maioria rural representando 54,8 %. A densidade demográfica nessas áreas varia de cerca de 77 habitantes por km² na região centro-Oeste a 2 habitantes por km² na parte Leste árida. A proporção da população urbana passou de 39% em 1988 a 45% em 2013. Uma estimativa da ANSD indica que as tendências de urbanização poderão atingir 53% em 2035. 29 - A proporção de “dependência demográfica”16 corresponde a 83,8 pessoas inativas (menos de 15 anos e mais de 65 anos) para 100 potencialmente ativas (entre 15 a 64 anos) - As regiões de Dacar e Thiès são as mais populosas do país, com respectivamente 3 137 196 habitantes (23,7% da população total) e 1 788 864 habitantes (13,51% da população total). Figura 8. População do Senegal em 2013. Fonte: ANSD, Senegal, 2013. 2.1.4 Aspectos econômicos e culturais a. Economia Atualmente, a economia do Senegal é baseada no dinamismo dos setores de mineração – pelas últimas descobertas de petróleo e gás –, construção, turismo, pesca e agricultura – esses dois últimos sendo a principal forma de emprego em áreas rurais. O país exporta matérias primas como fosfato, fertilizantes, produtos agrícolas e da pesca comercial, entre outros. Apesar dos projetos e investimentos promissores na exploração das reservas de petróleo e de gás encontradas desde 2014, o Senegal ainda é dependente da assistência de doadores, “ajudas” internacionais de retorno financeiro pelos imigrantes senegaleses e investimentos 16 Segundo aOrganização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE), a proporção ou razão de dependência demográfica é a relação estatística do número de indivíduos (menos de 20 anos e mais de 65 anos) que supostamente “dependem” cotidianamente das outras pessoas com o número de indivíduos (de 20 a 64 anos) “capazes” em assumir essa carga. 30 diretos estrangeiros. No entanto, nos últimos anos, o Senegal conseguiu manter uma taxa de crescimento acima de 5%, também graças às performances no setor da agricultura (CIA, 2018). Nesse contexto relativamente promissor, ainda há certas estatísticas pouco preocupantes, como o percentual de senegaleses em idade de trabalhar (acima de 15 anos), representado por 58,2% da população total, e do qual 25,7% estão desempregados. A esses dados cruza-se o percentual da “frequência escolar” – termo usado no levantamento estatístico da ANSD (2013) para definir a parte da população que tem uma formação acadêmica qualquer – no qual as maiores taxas de ocupação e de emprego foram observadas entre as pessoas com essa alguma formação. Isso aponta a importância da escolarização para o acesso ao emprego. Todavia, os indivíduos que com alguma formação informal apresentam as maiores taxas de ocupação (75% em nível nacional), daí surge a observação da forte dimensão do setor informal. É necessário apresentar alguns dados econômicos, tais como o PIB real, que era de 21,11 bilhões em 2017, passou para 23,94 bilhões de dólares em 2019. Comparando esses dados, percebe-se uma taxa de crescimento de 6% nesse último ano, equivalente a uma renda per capita de $ 1.430,00 dólares. Segundo os dados levantados no PDU de 2016, o Senegal conhece, de algumas décadas para cá, uma forte urbanização, evoluindo de 23% em 1960 a 45% em 2013, ou seja, a população urbana praticamente dobrou, com a previsão de chegar a 55% em 2035. b. Cultura Segundo Ibrahima Thiaw, no seu artigo História, cultura material e construções identitárias na Senegâmbia (2012), a cultura – principalmente a material – é suscetível de fornecer informações-chave sobre a história social de um determinado povo, tal como sobre as questões ligadas à identidade do mesmo. 31 O autor senegalês acrescenta que, do ponto de vista das identidades, a região da Senegâmbia é um mosaico de espaços e populações, cujas histórias foram configuradas em decorrência de conflitos, negociações e acordos ao longo dos anos. Assim, essa mesma região é culturalmente um conjunto plural. Historicamente o Senegal oferece um dos contrastes mais diversos: os Mouros ligados aos árabes e berberes, os Peuls originários da alta Egípcia – origem muito estudada pelos trabalhos de Dr Cheikh Anta Diop –, os Nigritianos17 (ou os negros) nativos vindos do centro da África e compostos pelas etnias Wolofs, Sereres, Diolas, Bainounkas e Balantes. De fato, todas elas constituem um caleidoscópio de nações étnicas exibindo tantas diferenças no âmbito físico, linguístico, de organização sociopolítico, de modos de morar e de construir. Figura 9. Grupos étnicos do Senegal. Fonte: https://www.au-senegal.com/cartes-thematiques-du -senegal,358.html Acesso em outubro de 2019 17 De Nigrite (tradução de Nigritie), que segundo Bouillet, 1842 é povo dos negros ou do Sudão. https://www.au-senegal.com/cartes-thematiques-du%20-senegal,358.html 32 O último levantamento estimativo da repartição dessas etnias em nível nacional deu seguintes resultados: 37,1% de Wolof, 26,2% de Pular ou Fula ou Peul , 17% de Serer, 5,6% de Mandinka ou Mandigos , 1,4% Soninke e outras na ordem de 8,3%. (CIA, 2017) – o Wolof sendo assim a língua mais falada no Senegal e considerada franca nas transações comerciais entre as comunidades étnicas, como mostra a imagem 8. Não se pode desconsiderar o impacto da presença francesa, tanto na colonização como na imigração contemporânea, influenciando a arquitetura, a cultura urbana e os espaços acadêmicos e administrativos, assim como institucionais. 2.1.5 Aspectos políticos Conhecido pela sua estabilidade política e por ter uma tradição histórica pacificadora de conflitos regionais ou internacionais, o Senegal passou por quatro regimes políticos e hoje está sob a tutela do presidente Macky Sall desde 2012. O país é uma república semipresidencialista. O presidente é eleito, desde 2001, para um mandato de cinco anos – anteriormente de sete anos – por eleitores adultos. (RÉPUBLIQUE DU SENEGAL, 2001) Atualmente o país tem uma cultura política democrática, e uma das transições democráticas pós-coloniais mais bem-sucedidas na África. Os administradores locais são nomeados e responsabilizados pelo presidente. Embora o Senegal seja um estado laico, os marabutos – líderes religiosos das várias irmandades muçulmanas do Senegal – também exerceram uma forte influência política no país. Entretanto, existe tolerância religiosa. As festas cristãs são celebradas e respeitadas pelas diferentes irmandades muçulmanas e por outras comunidades, isto em um contexto de predominância de 92% de muçulmanos sobre 7% de cristãos e 1% de animistas, havendo tolerância. (CIA, 2017) Por fim, a Fundação Mo Ibrahim, desde 2006, especializada, em analisar de modo crítico a governança e liderança dos países africanos a fim de acompanhar a qualidade de vida dos cidadãos africanos, é uma referência conhecida no mundo para servir de ferramenta de avaliação da governança das repúblicas africanas. 33 Todo ano essa fundação publica um relatório de classificação, no qual cada país do continente recebe um índice avaliativo Ibrahim de Governança, no qual o Senegal ocupou a 10ª posição no ano de 2018. A classificação estabelece 4 critérios para avaliar de modo geral a governança de um país: 1) Segurança e Estado de Direito; 2) Participação popular e direitos humanos; 3) Sustentabilidade econômica; 4) Desenvolvimento humano. Cada critério é composto por variáveis pelas quais todo país analisado recebe uma nota sobre 10, como consta no quadro abaixo para o caso do Senegal. Figura 10. Quadro de critérios para análise de governança e liderança em países africanos e as notas (sobre 10) dadas para o Senegal. Fonte: https://mo.ibrahim.foundation/. Acesso em novembro de 2019 https://mo.ibrahim.foundation/ 34 2.2. Os programas de governo para a habitação de interesse social Em referência ao objeto de estudo deste trabalho, depois de fazer uma introdução geral sobre o Senegal, é importante descrever o contexto da produção de habitação de interesse social presente no país. Para tal, tomaram-se como referências o relatório da CRAterre de 2014 sobre a análise do contexto da construção no Senegal, o Censo Geral da População, do Habitat, da Agricultura e da Pecuária de 2013 – realizado pela Agência Nacional de Estatística e Demografia do Senegal –, o “Profil du secteur du logement au Sénégal”, desenvolvida pela ONU Habitat em 2012, que, ao lado de outras usadas neste trabalho, se mostrou bastante detalhada, recente e muito utilizada em muitos outros trabalhos científicos sobre Habitação no Senegal. A partir da introdução geral acerca do Senegal tratado anteriormente, propõe-se fazer uma caracterização das diferentes habitações construídas no Senegal e classificá-las em tipologias, sejam elas de interesse social ou não. No que tem a ver especificamente com a Habitação de Interesse Social (HIS), em um primeiro momento, levando em consideração a evolução histórica do Senegal desde a “sua independência”, far-se-á uma contextualização política e institucional da produção habitacional a fim de desenhar um mapa de todas as instituições e políticas existentes nesse sentido. Em seguida, serão apresentados programas, planos e estratégias adotados pelo governo para a habitação de interesse sociale decorrentes do corpo institucional anteriormente descrito. Na sequência, vale descrever também os atores do setor (na parte da produção) da habitação de interesse social, estabelecendo a relação deles com a atual demanda pela população de baixa renda. Isto é, para avaliar em que medida a produção atende as necessidades do público que interessa a este trabalho ou se as habitações produzidas são destinadas a um outro público. Por fim, esta seção do trabalho se encerra com a análise dos materiais utilizados para a construção de HIS que certamente têm um impacto sobre a viabilidade econômica das habitações tanto para os atores como os beneficiários. Vale salientar que a maioria dos dados coletados concernem a cidade de Dacar, pela dificuldade de levantamento de dados mais detalhados para as outras 35 regiões e cidades do país, situação relatada igualmente pela Agência Nacional de Estatística e da Demografia do Senegal no último Censo Nacional de 2013. Mas, também pelo fato da capital Dacar receber mais investimentos em produção de HIS e, consequentemente, por ser a mais populosa, torna-se a cidade mais problemática em termo de déficit habitacional da sua população. 2.2.1 Características das habitações no Senegal A partir das referências mencionadas acima, junto com o relatório técnico sobre a identificação do contexto, tanto da produção de habitações como do setor da construção no Senegal desenvolvido pelo laboratório francês CRAterre (Grenoble, França) em 2014, elabora-se a seguinte classificação de tipos de habitações no país: casa térrea (maison basse) casa com mais de um andar - sobrado (maison à étages) apartamento (appartement) cabana e barraca (case) Esta classificação, tirada do estudo desenvolvido pela ONU Habitat em 2012 que trata de um relatório sobre o perfil da habitação no Senegal, parte de algumas considerações iniciais sobre a relação entre as condições do habitat e as várias condições socioeconômicas existentes no país. De fato, os múltiplos estados das habitações são marcados pelas desigualdades sociais existentes, isto desde a época da colonização até os dias de hoje. (ONU, 2013). Durante a era colonial, a organização das cidades senegalesas era caracterizada por uma separação entre os franceses e os indígenas negros (ONU, 2013). Separação perpetuada após a independência entre bairros residenciais de estilo europeu com todos os serviços e infraestruturas básicos e bairros populares ou assentamentos precários, sem atendimento pelos serviços e infraestruturas essenciais para um mínimo de qualidade de vida. Até hoje, nota-se em Dacar (a capital), por exemplo, que a partir do desenho urbano da cidade e dos investimentos feitos pelo Poder Público, consegue-se identificar a discriminação 36 social e espacial entre os bairros. Até na literatura a observação tem sido feita pelo escritor Abdoulaye Sadji dentro da descrição passageira de Dacar em sua obra, Maimouna (1958), cuja protagonista do mesmo nome assiste à sua primeira visão da cidade: Nos limites da cidade de pedra, as aglomerações nativas se espalhavam vermelhas e poeirentas: comparadas aos novos bairros, alegres e pitorescos que cresciam no centro, no platô e na rocha, essas aglomerações evocavam, por seus aspectos sórdidos, a miséria e decrepitude que se espalharam por todo o país (SADJI, 1958).18 Falando especificamente em números, relata-se abaixo a evolução do ano de 2002 ao de 2013, a partir dos levantamentos para os Censos nacionais dos respectivos anos pela ANSD, de que em nível nacional, da população vivem (CRAterre, 2014): 56,2% (2002) / 57,2% (2013) em casas térreas; 30,8% (2002) / 21,9% (2013) em cabanas 2,5% (2002) / 23% (2013) em barracas; 8,5% (2002) / 15,9% (2013) em casas de +1 andar; 0,7 % (2002) / 2% (2013) em apartamentos; Esses dados mudam de acordo com a região analisada. Em Dacar, por exemplo, há uma situação particular que se apresenta (Tabela 1) com 48,8% das famílias morando em casas térreas (maisons basses), 41,7 % em sobrados (maisons à étages), e as menores percentagens são notadas nas barracas, apartamentos e cabanas, com respectivamente 2,3%, 5,5% e 1,2%. (ANSD, 2013). Para a região de Thiès (tabela 1), como as demais do país, observa-se que mais da metade das famílias habitam casas térreas, e que as casas de mais de um pavimento junto aos apartamentos não são muito encontradas com taxas menores de 10%. (ANSD, 2013). 18Aux confins de la ville de pierre, les agglomérations indigènes s’étalaient rousses et poussiéreuses : comparées aux quartiers neufs, riants et pittoresques qui champignonnaient dans le centre, sur le plateau et sur le roc, ces agglomérations évoquaient, de par leurs aspects sordides, la misère et la décrépitude qui s’étalaient partout à l’intérieur du pays (SADJI, 1958). 37 Tabela 1. Distribuição de tipologias de edificações por região. Fonte: ANSD, Senegal, 2013. Esses dados são coerentes e evidenciam a conjectura da predominância de casas térreas em nível nacional. Todavia, não se trata aqui da mesma casa térrea com a mesma forma, usando os mesmos materiais construtivos e contendo a mesma quantidade de ambientes. Com efeito, no relatório da CRAterre (2014) constata-se que há uma diversidade de casas térreas, cuja chamada tipologia construtiva vai da simples casa tradicional de um ambiente em fibras e palhas (Figura 11) até da casa em bloco de cimento e estrutura de concreto armado. 38 Figura 11. Casa de palha. Fonte: Acervo do CRAterre, 2014. Entretanto, no Recensement Général de la Population et de l’Habitat, de l’Agriculture et de l’Élevage (RGPHAE)19 de 2013, produzida pela ANSD – apesar dessa diversidade ser confirmada a partir do levantamento dos materiais de construção usados para as habitações20 –, percebe-se que há uma certa predominância do tipo casa térrea, cujas paredes são feitas em bloco de cimento e concreto. De fato, no meio urbano, este tipo de casa representa 85,7% e é ainda forte no meio rural onde 1 em 2 casas é do mesmo material. Em Thiès, a mesma constatação é feita com 85,3% das habitações em cimento, como mostra a tabela 2. 19 Censo Geral da População, do Habitat, da Agricultura e da Pecuária. 20 No RGPHAE, este levantamento trata de analisar a repartição das habitações segundo a natureza da envoltória. 39 Tabela 2. Natureza de envoltória e revestimento das edificações senegalesas. ANSD, Senegal, 2013. 2.2.2 Tipologias das habitações no Senegal Antes de adentrar na listagem dos tipos de habitações, é preciso estabelecer a diferença entre tipologia e características de uma habitação. Considerando que a tipologia existe apenas se houver vários tipos, então faz-se necessário apresentar o conceito do tipo em arquitetura. Introduzido desde 1825 pelo teórico francês Quatremère de Quincy em Encyclopédie Méthodique - Architecture (3° volume), inscreve-se no conceito das preceptivas então em voga e nele se relaciona com as noções de caráter, imitação, decoro e origem da Arquitetura (PEREIRA, 2012). Dentro da variedade de definições ao longo da história, Quincy define assim o tipo como a ideia por trás da aparência individual do edifício como uma forma ideal, geradora de infinitas possibilidades, da qual muitos edifícios dissimilares podem derivar. (QUINCY apud PEREIRA, 2012) Ele adiciona que: Cada um dos principais edifícios deve encontrar em sua destinação fundamental, nos usos que lhe concernem, um tipo que lhe é próprio. A arquitetura deve tender a se conformar, da melhor forma possível, a este tipo se quer imprimir, a cada edifício, uma fisionomia particular. (QUINCY apud PEREIRA, 2012) 40 Assim, para ter uma visualização das diferentestipologias que existem no Senegal, outros estudos juntam-se às definições referenciadas acima. Um deles é o da ONU Habitat (2012) que distingue 3 categorias de habitações: 1) Habitação regular (prédios e casarões); 2) Habitação “espontânea”; e 3) Habitação do tipo vilarejo; No entanto, essa última classificação, além de ter sido feita em aplicação apenas na região de Dacar, é considerada um pouco limitadora para este trabalho, Motivo pelo qual recorreu-se à análise feita de M. Mbacké Niang21 (para a CRAterre) sobre a paisagem do edificado, estabelecendo as seguintes tipologias: a. A arquitetura tradicional, feita principalmente de madeira, palha e/ou de terra crua (banco, adobe), sendo a tradução das técnicas vernaculares junto aos hábitos de morar da cultura correspondente Figura 12. Habitação tradicional senegalesa. Fonte: https://www.planete- senegal.com/senegal/habitat_traditionnel_senegal.php; Acesso em agosto de 2019 b. A arquitetura colonial em pedra, madeira ou aço e de terra cozida (bloco cerâmico), que é o legado deixado pela colonização francesa representativa das instituições de poder e das residências luxuosas de 21 Arquiteto, Pesquisador e Professor Senegalês, ex Presidente do Conselho dos Arquitetos do Senegal. https://www.planete-senegal.com/senegal/habitat_traditionnel_senegal.php https://www.planete-senegal.com/senegal/habitat_traditionnel_senegal.php 41 membros privilegiados da classe social francesa, podendo ser, além dessas, espaços antigamente destinados às atividades comerciais e de prestação de serviços (ferroviária, hotel). Algumas dessas edificações estão preservadas / bem mantidas e outras estão sem conservação e em desuso. Figura 13. Exemplar de arquitetura colonial senegalesa. Fonte: https://www.club-des-voyages.com/senegal/photos/ architecture-coloniale-(3)-19043-3237.html; Acesso em outubro de 2019 Figura 14. Exemplar de arquitetura colonial senegalesa. Fonte: https://maison-monde.com/maison-coloniale-au-senegal/; Acesso em outubro de 2019 https://www.club-des-voyages.com/senegal/photos/%0barchitecture-coloniale-(3)-19043-3237.html https://www.club-des-voyages.com/senegal/photos/%0barchitecture-coloniale-(3)-19043-3237.html https://maison-monde.com/maison-coloniale-au-senegal/ 42 Figura 15. Exemplar de arquitetura colonial senegalesa. Fonte: http://notesditinerance.canalblog.com/archives/2014/02/13/29201036.html; Acesso em outubro de 2019 Figura 16. Exemplar de arquitetura colonial senegalesa. Fonte: https://i.pinimg.com/736x/a2/6f/10/a26f10b84d1cd1a4e3f0c602888c0b25.jpg; http://notesditinerance.canalblog.com/archives/2014/02/13/29201036.html https://i.pinimg.com/736x/a2/6f/10/a26f10b84d1cd1a4e3f0c602888c0b25.jpg 43 Acesso em outubro de 2019 c. A arquitetura contemporânea, tipo de influência “sudano saheliano” ou internacional feita de aglomerados de cimento22, concreto armado e vidro que representa, hoje em dia, toda demonstração de poder simbólico financeiro que a arquitetura colonial representava para a sociedade imperialista da AOF. Figura 17. Igreja católica de Nianing, exemplar de arquitetura contemporânea senegalesa. Fonte: https://www.mains-ouvertes-senegal.com/agir/eglise-de-nianing/; Acesso em outubro de 2019 22 Blocos de cimento com brita e areia, chamado também de bloco de concreto e chamado em francês de parpaing ou bloc de béton manufacturé. https://www.mains-ouvertes-senegal.com/agir/eglise-de-nianing/ 44 Figura 18. Banco da África, exemplar de arquitetura contemporânea senegalesa. Fonte: Acervo do CRAterre, 2014. d. Conjuntos habitacionais com “plantas modelos”, atendendo públicos diversos de tipologia colonial ou modernista e caracterizando a produção habitacional de empresas públicas e privadas como a SICAP23 ou SNHLM24, que apresentaremos melhor na parte do trabalho referente aos programas, planos e estratégias. Geralmente esses conjuntos podem ser de diferentes características, desde de casas térreas e sobrados, como de prédios de até 4 pavimentos com apartamentos 23 Société Immobilière du Cap-Vert 24 Société Nationale d’Habitations À Loyer Modéré 45 Figura 19. Montagem de exemplares de conjuntos habitacionais senegaleses. Fonte: Banco de dados da Societé Nationale d’Habitations à Loyer Modéré. e. O habitat popular regular, tradicional de estilo colonial ou eclético, tanto em bairros planejados como em outros cuja ocupação é irregular, é aquele que é fruto de um cruzamento entre estilos arquitetônicos importados com técnicas tradicionais e vernaculares de construção. Esse tipo de habitat passa pelo processo normal de construção legal, com acompanhamento de pelo menos um técnico da construção cujo projeto tem sido desenvolvido ou apenas assinado por um arquiteto, contudo, usando materiais e técnicas construtivos que não são locais e que não necessariamente se adequam ao clima como afirmado no relatório da CRAterre (2014): No entanto, esta tipologia não é financeiramente acessível à maioria da população e um grande número de construções apresenta uma tipologia constituída de parede em bloco de 46 cimento com estrutura armada de concreto e cobertura de telha metálica de uma ou duas águas. (CRAterre, p. 8, 2014)25 Figura 20. Montagem com exemplares de habitat popular regular. Fonte: Acervo do CRAterre, 2014. f. O habitat popular irregular, “convencional” com todas as tipologias presentes e uso de vários estilos e materiais. Essa tipologia, de natureza informal bem presente nos centros urbanos – ocupando 25%26 da paisagem construída nesses centros –, consta a existência da autoconstrução. De acordo com o relatório da CRAterre (2014), a autoconstrução é realizada por 25 Cette typologie n’est pourtant pas accessible financièrement à la majorité de la population, et un grand nombre de constructions présente une typologie mur bloc de ciment et chaînage béton, toiture en tôle à une ou deux pentes 26 Segundo a ONU Habitat, 2012 47 profissionais da construção. Na maioria dos casos, os proprietários pela edificação contratam os serviços de um mestre de obra ou de muitos operários (de competências diferentes). Figura 21. Exemplar de habitat popular irregular. Fonte: Acervo do CRAterre, 2014. g. O habitat “espontâneo” precário, típico das favelas e ligados a condições insalubres físicas da edificação, difundido em quase todas as regiões, tanto no meio urbano quanto rural. Chamada também no francês de “habitat ou logement informel spontané”. Essa expansão tem como uma das causas, a urbanização galopante, junto ao crescimento demográfico elevado e ao déficit habitacional no país, como analisado na Introdução deste trabalho. A relação entre este tipo de habitat e o contexto urbano no qual ele se inscreve e cresce auxilia a identificação das suas seguintes características, elencadas no estudo da ONU Habitat (2012): A irregularidade fundiária; Ausência de nivelamento prévio topográfico da base das zonas para habitações; Falta de planejamento em termo de loteamento e estreiteza das vias; Inexistência ou insuficiência de equipamentos e infraestruturas (escolas, postos de saúde, abastecimento em água, energia e saneamento, etc.); 48 Vulnerabilidade financeira dos habitantes (ONU, 2013)27 A partir da descrição dada pela CRAterre (2014) sobre um certo tipo de habitat informal cujo modo de produção é denominado de autopromoção28, percebe-se que se trata do habitat espontâneo. A autopromoção é definida então como modo de produção baseado no autofinanciamentodo habitat pelos seus beneficiários. Adiciona-se a esta definição a da publicação feita pela ONU Habitat: Ela consiste no proprietário-financiador contrata um empreiteiro, mestre de obra ou operários independentes, esses chamados segundo a progressão da obra. O proprietário concebe, sozinho ou com a ajuda de um empreiteiro ou técnico de construção, o projeto da sua habitação coordenando diretamente ou por delegação. Ele é responsável, no geral, pela aquisição e encaminhamento dos materiais de construção para a obra. (ONU, 2013)29 Ela constitui 80% do parque urbano construído e, de maneira comum, gerando construções de qualidade medíocre. Entretanto, a autopromoção permanece o mais acessível economicamente para a população de baixa renda. 27 • L’irrégularité foncière • L’absence de nivellement préalable de l’assiette des zones d’habitation • Le manque d’ordonnancement des maisons et l’étroitesse des rues • L’inexistence ou l’insuffisance d’équipements et d’infrastructures (écoles, dispensaires, eau, électricité, assainissement etc.) • L’irrégularité et la faiblesse des revenus des habitants 28 Termo usado pela primeira vez por Michel Coquery (1990): « Autopromotion de l’habitat et modes de production du cadre bâti: L’apport de recherches récentes en Afrique noire francophone ». In AMIS, Philip et LLOYD, Peter (éd.) Housing Africa’s Urban Poor, Manchester University Press, Manchester et New York, pp. 55-70. 29 Elle consiste, chez le propriétaire-bailleur, à recruter un entrepreneur, un maître-maçon ou des ouvriers indépendants appelés tâcherons au fur et à mesure de l’avancement des travaux. Le propriétaire conçoit, lui-même ou à l’aide d’un entrepreneur ou d’un technicien du bâtiment, les plans de son logement en coordonnant son chantier directement ou par délégation. Il assure généralement l’acquisition et l’acheminement des matériaux de construction sur le chantier 49 Figura 22. Exemplar de habitat espontâneo. Fonte: ONU, 2013. Figura 23. Exemplar de habitat espontâneo. Fonte: ONU, 2013. 2.2.3 Contextualização política e institucional O contexto político e institucional do setor da habitação é importante para entender as dinâmicas formais nele presente a partir das ações implementadas pelo governo do Senegal, desde a sua independência. Até aqui, foi questão de 50 analisar as características do setor de produção habitacional de uma forma mais geral, inclusive com uma breve descrição das tipologias edílicas. Porém, esta parte do trabalho tratará de descrever a questão habitacional senegalesa a partir do contexto político e institucional, e seu escopo focará apenas nas habitações de interesse social – pelo menos, a princípio. Para tal, identificam-se em primeiro lugar alguns programas, planos e estratégias desenvolvidos no Senegal, cujo foco maior é na região de Dacar. Depois, apresentar-se-á resumidamente, tanto o quadro legislativo e regulamentar, como os principais atores da produção no setor da habitação (de interesse social). O quadro legislativo e regulamentar é o conjunto de textos, leis e regulamentos que participaram e/ou participam ainda hoje na construção, estruturação e gestão do setor da habitação. Vale salientar que, ainda de forma introdutória – e que será abordada com mais detalhes nesta seção –, a questão habitacional senegalesa, caracterizada por um corpo legal e de regulamentação tediosa e complexa, por vários motivos (ONU, 2013): Pouca acessibilidade econômica para a população de baixa renda Existência de uma panóplia de atores institucionais, que no caso, se constitui de 12 direções centrais em ministérios diferentes, mas todos “ligados” aos processos relacionados à produção do habitat. Logo, essa representação institucional fragmentada afeta o setor pela presença de uma disparidade de procedimentos e lógicas sobre a habitação de interesse social A concorrência e persistência das práticas informais, desde a aquisição mais fácil de glebas ou terrenos, até a construção “mais barata” de habitações. Situação diante da qual o poder público, por falta de aplicação das leis e regulamentos e de fiscalização do setor (dentre outras razões) se torna impotente. Por fim, tratar dos atores do setor habitacional de interesse social é, por sua vez, um acréscimo excepcional, porém importante, e exploratório sobre outras entidades que atuam diretamente na realização de habitações sociais atendendo diretamente a população de baixa renda. Qualificam-se esses atores de “outras entidades” pelo fato de existir várias atuando no setor, em níveis diferentes tanto político, institucional, como social e econômico. 51 a. Programas, planos e Estratégias A questão da habitação no Senegal, principalmente em meio urbano, é caracterizada também por uma abundância de textos jurídicos e regulamentares que favorecem a exclusão de famílias menos instruídas e de baixa renda, moradores de bairros periféricos. Entretanto, as políticas e programas que serão apresentados têm uma orientação social bem marcante. Esta preocupação social é afirmada pelo relatório do perfil do setor da habitação, publicado pela ONU Habitat (2012) da seguinte maneira: Eles (programas) focam em melhorar as condições de acesso dos cidadãos à lotes viabilizados e habitações adequadas e decentes, de modo a cumprir o direito à moradia. Eles baseiam-se, também, sobre uma vontade de melhoria do habitat urbano e periurbano das zonas mais carentes; sobre a criação de fundos destinados à viabilização e reestruturação fundiária dos assentamentos ocupados pela população vulnerável e vivendo em uma precariedade ambiental; e sobre a adoção do novo código da construção. (ONU, 2013, p. 15)30. A Carta da política setorial em termo de habitat De fato, em 2018, o governo do Senegal elaborou uma política para o setor da habitação chamada Carta de Política Setorial de Desenvolvimento31. Nela, o poder público – por meio do Ministério do Urbanismo, do Habitat, da Construção e da Hidráulica32 – estabelece um planejamento estratégico para o período de 2010- 2025. Dentro das problemáticas contextuais em que essa medida se inscreve, há uma outra, de crescimento rápido de construções sem planejamento, e tampouco qualidade, em relação ao respeito às normas vigentes, assim como a falta de 30 Ils sont axés sur des efforts d’amélioration des conditions d’accès des citoyens à des parcelles viabilisées et à des habitations adéquates et décentes, dans le cadre du droit au logement. Ils reposent également sur une volonté d’amélioration de l’habitat urbain et périurbain des zones pauvres, sur la création de fonds destinés à la viabilisation et à la restructuration foncière des sites occupés par les populations vulnérables et vivant dans une précarité environnementale, et sur l’adoption d’un nouveau Code de la construction 31 Lettre de politique sextorielle de développement. 32 Ministère de l'Urbanisme, de l'Habitat, de la Construction et de l'Hydraulique. 52 sinergia e coerência desde a pesquisa, concepção, gerenciamento de obras, financiamentos e formação da mão de obra (MRU, 2018). A mencionada carta tem como objetivo romper, entre outras questões, com as práticas inadequadas de ocupação urbana ilegal e providenciar outra, mais pertinente, por meio do planejamento de paisagens modernas. Para atender tal objetivo, a Carta elenca as seguintes estratégias: Os dois projetos emblemáticos do Plano de Ação Prioritário do PSE: Acelerar o fornecimento de habitação social (em particular através da implementação de centros urbanos e da facilitação do acesso à moradia pelos membros da cooperativa) e o Ecossistema Nacional de construção; Programa de Renovação Urbana - Cidades Verdes intensivas em mão-de-obra (PRO-HIMO)"para melhor se encarregar das dimensões melhoria do ambiente de vida, preservação do meio ambiente e criação de empregos para os jovens; Programa Nacional de Desenvolvimento e Modernização de Cidades Religiosas (MRUHCV, 2018)33. De forma sintética, a carta não representa um código ou manual de instruções que todos os programas / planos / projetos de habitação devam seguir ao pé da letra, mesmo porque, no seu escopo, ela não se estrutura como texto regulamentário. Contudo, ela serve como guia base para elaboração de todas as iniciativas em direção à produção habitacional no Senegal. Operação Parcelles Assainies a ZAC Nos anos 1970 o Governo do Senegal, junto ao Banco Mundial (BM), lançam a operação Lotes Urbanizados34 com o intuito de promover a habitação para população de baixa renda. De fato, graças a um empréstimo financeiro de 8 milhões de dólares US sem juros feito pela BM em 1972 – e cujo prazo de devolução é de 50 anos –, Senegal se comprometeu em sanear e deixar nas condições de 33 Les deux projets phares du Plan d’Actions prioritaires du PSE : Accélération de l’offre en habitat social (notamment par la mise en oeuvre des pôles urbains et la facilitation de l’accès au logement des sociétaires des coopératives) et Ecosystème national de construction; Le Programme de Rénovation urbaine-Villes vertes à Haute intensité de main d’oeuvre (PRO-HIMO) » pour mieux prendre en charge les dimensions amélioration du cadre de vie, préservation de l’environnement et création d’emplois pour les jeunes; Le Programme national d’Aménagement et de Modernisation des Villes religieuses (MRUHCV, 2018). 34 Parcelles Assainies 53 salubridade 14.000 lotes (150m²/lote) em uma gleba de 400 hectares, no bairro de Cambérène, aptos a receber habitações de interesse social. (ONU, 2013) No entanto, apesar de mostrar resultados acima do esperado 30 - 40 anos depois em termo de ocupação e densidade, esse projeto habitacional permitiu o saneamento de apenas 10.500 lotes dos 14.000 previstos sobre 300 hectares, ao invés de 400. Além disso, a operação que, baseada na redução dos custos de produção pela redução do tamanho dos lotes e pela escolha de equipamentos de qualidade inferior aos padrões da época, não atendeu as populações de baixa renda como foi elencado como objetivo inicial. (ONU, 2013). Essa população teve que vender os seus lotes a um público da classe média por causa das dificuldades em financiar a construção de suas habitações, sem contar com a sobrecarga das infraestruturas, devido a um processo de rápida densificação dos lotes da área, o que afetou a sua qualidade por terem sido concebidas para atender um número menor pessoas. (Cohen, 2007 apud ONU, 2013) Seguida da experiência piloto de Parcelles Assainies – hoje um dos bairros mais populoso –, o Governo do Senegal implementa o programa Zone d’aménagement concerté35 (ZAC) para, como operação piloto, promover o habitat de interesse social (HIS). A ZAC é uma disposição da lei sobre o Código de Urbanismo de 20 de agosto de 2008 que trata de um perímetro delimitado, dentro do qual um organismo, ou representação privada ou pública, intervém em nome do governo ou do município para realizar as atividades de: i) terraplanagem; ii) instalação do sistema viário; iii) instalação do sistema de drenagem e de esgoto. Essas que são prévias à entrega da gleba (ONU, 2013). Os objetivos da ZAC são: Aumentar a produção de glebas viabilizadas, com a finalidade de disponibilizar lotes a preços acessíveis; Fornecer serviços urbanos de base; Organizar a crescimento urbano evitando assim, a ocupação “espontânea” e, portanto, ilegal. Do ponto de vista do solicitante, o acesso a um lote por meio do programa ZAC é garantido pelo seu pertencimento a uma cooperativa de habitação social. De fato, é por meio da cooperativa que o beneficiário consegue uma linha de crédito 35 Tradução: Zona de Planejamento Concertado. 54 para a habitação ou, caso tenha recursos próprios para financiar a construção do habitat, participar nos custos de viabilização do seu lote (ONU, 2013). Desde 2000, o programa ZAC apresentou os seguintes resultados e prospecções: Tabela 3. Informações do programa ZAC. Fonte: ZAC, 2000, modificado pelo autor, 2019. ZAC (município) Área da intervenção (ha) Qtde de lotes viabilizadas Mbao (Dacar) 230 10 000 (Diamniado + Thiès + Louga + Kaolack + Saint-Louis + Richard-Toll)* Desconhecido 49 000 previstos Assim, como a operação Parcelles Assainies, o programa ZAC é fruto da (pseudo)vontade política do governo senegalês em implementar programas e planos para produzir e viabilizar lotes equipados que busquem atender a população de baixa renda. Contudo, ainda como no caso de Parcelles Assainies, apesar da ZAC ter conseguido elaborar um sistema de viabilização de lotes, favorecendo as cooperativas de habitações, estas são compostas de membros cuja renda é um pouco mais elevada, que expressam cada vez mais uma forte demanda. A política de reestruturação e regulação dos assentamentos “espontâneos” O decreto 91-748 do 29 julho de 1991 sobre a organização da execução de projetos de reestruturação e regularização fundiária de bairros não loteados permite a implementação: i) de um operador autônomo privado Fundação Direito â à cidade36, que vai ser o prestador de serviços para reestruturação; ii) de um sistema financeiro chamado Fundo de reestruturação e regularização fundiária37; (ONU, 2013) Os objetivos desta política, além da implementação do aparato descrito acima, são: 36 Fondation droit à la ville (FDV) 37 Fonds de restructuration et régularisation foncière (FORREF) 55 Equipar os bairros “espontâneos” de infraestruturas básicas; Prosseguir à regularização fundiária. A partir de um dispositivo de intervenção, progressivamente implantado pelo governo com o apoio de grupos de doação/financiamento (GTZ, AFD, FED), a quantidade de lotes regularizadas é estimada em 6469 (REPUBLIQUE DU SENEGAL, 2010, p. 139). Esta quantidade fraca de realização, após quase 30 anos de atuação, mostra toda a lentidão nas operações de reestruturação e de regularização fundiária. Alguns especialistas explicam que a lentidão se dá devido ao processo complexo da regularização da terra, assim como a pouca disponibilidade de zonas de realocação das habitações danificadas. Preconiza-se, então, priorizar a reestruturação desses bairros alvos, melhorando as suas condições físicas (infraestrutura e equipamentos) e, consequentemente, a qualidade de vida. Tabela 4. Dados da aplicação da política de reestruturação e regulação dos assentamentos “espontâneos”. ONU Habitat, 2012. Promoção das cooperativas de habitação Segundo Serigne Mansour Tall (2009), uma cooperativa de habitação é geralmente um agrupamento de pessoas de renda modesta. O sistema de habitação cooperativo é relativamente antigo: as cooperativas de aquisição de lotes e de autopromoção imobiliária permitiram, por exemplo, a construção em grande escala de dois bairros Castors e Derklé, em Dacar. 56 Expressão mais visível da sociedade civil no setor da habitação do Senegal, as cooperativas habitacionais são, assim como Tall afirmou, agrupamentos sociais e/ou profissionais, organizados em sociedades anônimas sem fim lucrativo, cujo objetivo é de usufruir do direito à propriedade facilitar o acesso a terra aos seus membros. (ONU, 2013) Mais uma vez o governo do Senegal consolida o seu apoio ao setor do habitat social e o seu acompanhamento às cooperativas de habitação por meio da criação do Bureau d’assistance aux collectivités pour l’habitat social38 (BAHSO). Esta subdireção tem por missão a aplicação das
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