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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia MULHERES E AGROECOLOGIA NO RIO DE JANEIRO: CONSTRUINDO UMA POLÍTICA FEMINISTA A PARTIR DAS MARGENS Maria da Graça Silveira Gomes da Costa Natal 2019 i Maria da Graça Silveira Gomes da Costa MULHERES E AGROECOLOGIA NO RIO DE JANEIRO: CONSTRUINDO UMA POLÍTICA FEMINISTA A PARTIR DAS MARGENS Tese elaborada sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Magda Diniz Bezerra Dimenstein e co-orientação do Prof. Dr. Jáder Ferreira Leite e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Psicologia. Natal 2019 ii Capa: Helena Nehme Yung Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Costa, Maria da Graça Silveira Gomes da. Mulheres e agroecologia no Rio de Janeiro: construindo uma política feminista a partir das margens / Maria da Graça Silveira Gomes da Costa. - Natal, 2019. 252f.: il. color. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2019. Orientadora: Profa. Dra. Magda Diniz Bezerra Dimenstein. Coorientador: Prof. Dr. Jáder Ferreira Leite. 1. Agroecologia - Tese. 2. Gênero - Tese. 3. Epistemologias feministas - Tese. 4. Direito à cidade - Tese. I. Dimenstein, Magda Diniz Bezerra. II. Leite, Jáder Ferreira. III. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 631.95:141.72(815.3) Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 iii Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia A tese Mulheres e Agroecologia no Rio de Janeiro: construindo uma política feminista a partir das margens, elaborada por Maria da Graça Silveira Gomes da Costa, foi considerada aprovada por todos(as) os(as) membros(as) da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de doutora em Psicologia. Natal, RN, 28 de março de 2019. BANCA EXAMINADORA: ________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Magda Diniz Bezerra Dimenstein (UFRN, Orientadora) ________________________________________________ Prof. Dr. Jáder Ferreira Leite (UFRN, Co-orientador) ________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Juracy Filgueiras Toneli (UFSC) ________________________________________________ Prof. Dr. João Paulo Sales Macedo (UFPI) iv ________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Elisete Schwade (UFRN) ________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Raquel Farias Diniz (UFRN) v Às Marielles, Bertas, Juanas e a todas as mulheres que, ao se movimentarem, mudam as estruturas da sociedade. À minha avó Terezinha Pereira da Silva (in memorian). Escrevo para nos escrever. Para que tu existas. Para que nenhuma memória-mulher-cabocla seja apagada novamente. vi Agradecimentos Os anos de escrita da tese foram embalados por particular angustia, diante do cenário político de incertezas que se desenhou nos últimos quatro anos no país. A construção de redes de suporte e trocas políticas e acadêmicas foram essenciais para mim e também explicam a diversidade dos caminhos pelos quais circulei nesse processo. Tenho, portanto, que agradecer a muitos grupos e pessoas que de uma forma ou de outra ressoam política, teórica e afetivamente neste trabalho. Antes de tudo, gostaria de agradecer a minha orientadora Magda Dimenstein e ao meu co-orientador Jáder Leite pela parceria de longa data, por confiarem em meu trabalho, pelo aprendizado, por me permitir voar mantendo os pés no chão. Agradeço aos professores Maria Juracy Toneli, Raquel Diniz, João Paulo Macedo e Elisete Schwade por aceitarem participar da banca e realizar a leitura deste trabalho. Sou grata especialmente à Profª. Elisete, minha primeira orientadora de iniciação científica ainda na Antropologia e com quem iniciei meus estudos feministas. Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de estudos que me permitiu a realização da pesquisa e o estágio de aperfeiçoamento na Espanha. Ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGPsi/UFRN) e todos os seus funcionários, particularmente Cilene e Lizi, que com tanta paciência me ajudaram a solucionar minhas dúvidas e abacaxis ao longo do caminho. Às inúmeras amigas potiguares que entenderam minhas ausências em especial Rayssa, Carol, Tati, Valéria, obrigada por não desistirem de mim. À minha irmã de alma Kamila por me salvar a vida tantas vezes nesses 10 anos de amizade. À Fábio, Adriana e Carolina por me ensinarem a levar com leveza tantos momentos de desespero quando estive em Natal. A todos os colegas de PpgPsi, em especial aos do Grupo “Modos de Subjetivação, Políticas Públicas e vii Contextos de Vulnerabilidades”. À Ana Helena, Leda, Martha, Ana Izabel por compartilharem comigo as dores e as delícias do doutorado. À Maria Laís pela revisão cuidadosa do texto da tese. À cidade do Rio de Janeiro que em sua beleza, feiura e contradições me ajudou a ver o mundo de forma muito mais complexa. Aos companheiros e companheiras da agroecologia no Rio de Janeiro, da Rede Carioca de Agricultura Urbana, da Militiva, Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste e Coletiva Hortelã por se abrirem com tanta generosidade para mim. Em especial para minhas interlocutoras diretas e indiretas na pesquisa, Ana Santos, Aninha, Silvia, Mariana, Francis, Mara, Maria, Renata, Elô, Camila, Selma, Maraci, Saney, Jenifer. Para além de companheiras de luta e “participantes”, vocês são coautoras deste texto que eu espero que possa contribuir com as lutas no território Zona Oeste, e em outros territórios que resistem e enfrentam ameaças diariamente. Ao bairro de Vargem Grande e seus moradores, esse ninho de acolhimento em meio ao caos da cidade. Às companheiras do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Instituto PACS), sobretudo Aline, Marina e Joana com quem pude dialogar diretamente sobre minhas ideias e contribuíram bastante com a leitura do texto, com os conteúdos, além de facilitarem de diversas formas os encontros e conversas amplas junto ao grupo de mulheres da Zona Oeste. Agradeço também aos companheiros do Arranjos Locais Penha, com quem aprendi e sonhei junto. Ana, Diego, Marcelo, Patrícia, Mari Portilho, Suzana, Cíntia e as equipes de trabalho que acreditaram nas nossas ideias, muito obrigada. Agradeço também aos moradores do Complexo da Penha por construírem junto conosco. Às companheiras do projeto de extensão Diálogos Feministas e Práticas em Psicologia e Direito, Heloisa, Maria Luiza, Marina, Laisa e Josi por embarcar nessa loucura de construir ao longo de um ano uma proposta ética e pedagógica feminista para nossas práticas. viii Ao grupo de estudos coordenado pelo Prof. Pedro Paulo Bicalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ao grupo PesquisarCOM coordenado pela Prof.ª Márcia Moraes da Universidade Federal Fluminense (UFF) por me receber e permitir participar das discussões e leitura do meu trabalho ainda no início. A Fábio Oliveira e todos integrantes do Laboratório de Ética Animal e Ambiental (LEA- UFF/UFRJ) pelos instigantes debatese a corajosa atuação pela causa animal e agroecológica dentro da academia. Agradeço ainda à pequena família que construí no Rio ao longo desses anos, o pessoal do Pereirão e agregados, em especial minhas queridas amigas Leticia, Iara e Luana. Agradeço a Lara Abib pela leitura atenciosa, os puxões de orelha, as levantadas na autoestima, as risadas, os choros, os carnavais e a parceria que construímos mesmo com todas as nossas loucuras e complexidades. Fechando o bonde carioca/potiguar, agradeço a Felipe, um grande amigo e encontro de vida que esteve ao meu lado em boa parte desse processo. Aos colegas do grupo LAICOS da Universidade Autônoma de Barcelona pelas contribuições ao meu trabalho e ao Prof. Lupicínio Iñiguez-Rueda por me receber no grupo. Às amigas Renata, Joyce, Jacqueline e Fang pela acolhida e pelas cervejas e vermuts compartilhados. Agradeço também ao grupo Brasileirxs Contra o Fascismo por ter me ajudado a sobreviver a uma eleição difícil estando tão longe de casa, com destaque para as queridas Paola, Dani e Mariana que foram meu porto seguro em Barcelona. Agradeço a Red Ecofeminista da Espanha com quem pude dialogar e repensar outros mundos e teorias possíveis a partir de uma ética feminista e ecológica, em particular às professoras Alicia Puleo e Aimé Tapia Gonzalez. Agradeço especialmente a artista libanesa Helena Nehme, autora da maravilhosa arte da capa. Ela que me faz navegadora e tanto me ensina sobre amor, resistência e liberdade. Que ix juntas possamos fortalecer ainda mais os laços de solidariedade entre as mulheres do Oriente Médio e América Latina. Agradeço a minha família e aos meus ancestrais, principalmente meus pais, Iris e Moacyr, que com muito sacrifício e, a despeito de nossas diferenças, foram os maiores responsáveis por eu conseguir acessar esse lugar de privilégio que é a educação formal. É uma honra poder doutorar-me em universidade pública brasileira! As minhas companheiras não-humanas, Nina e Estelita, pelo companheirismo nas madrugadas de escrita e o carinho de sempre. Por fim, agradeço a todas as mulheres, negras, brancas, mestiças, lésbicas, indígenas, trans, cis, pobres, afrontosas, putas, destemidas que lutaram antes de mim para que eu estivesse aqui. Parafraseando Audre Lorde, que continuemos a ser poderosas e perigosas! x Sumário Agradecimentos ...................................................................................................................................... vi Sumário ................................................................................................................................................... x Lista de tabelas ...................................................................................................................................... xii Lista de figuras ..................................................................................................................................... xiii Lista de abreviações e siglas ................................................................................................................ xiv Resumo ................................................................................................................................................. xvi Abstract ............................................................................................................................................... xvii Resumen ............................................................................................................................................. xviii Prólogo .................................................................................................................................................. 20 Introdução: apresentando o campo-tema ........................................................................................... 23 Habitando paisagens .......................................................................................................................... 33 Capítulo 1: Gênero, feminismo(s) e as políticas de subjetivação .......................................................... 42 Identidade, subjetividade e políticas de subjetivação ............................................................ 49 Diálogos a partir dos feminismos pós coloniais .................................................................... 51 Capítulo 2: Percurso metodológico ...................................................................................................... 59 Uma construção a partir do olhar feminista .......................................................................... 59 O aporte da etnografia feminista ........................................................................................... 61 O aporte da Psicologia Social Discursiva .............................................................................. 64 Movimentos da pesquisa ....................................................................................................... 65 1º Mo(vi)mento: Pesquisa documental .......................................................................... 67 2º Mo(vi)mento: aproximação das redes, eventos e encontros da Agroecologia ......... 77 3º Mo(vi)mento: entrevistas com as militantes ............................................................ 79 Capítulo 3: Feminismos e agroecologia: discursos, políticas e movimentações ................................... 84 Eixo I – Organismos internacionais: Gênero, agroecologia e o debate da ONU .................. 88 Eixo II – Movimento agroecológico, gênero e identidade política ..................................... 101 3.2.1. Matrizes teóricas e discursivas ......................................................................................... 104 3.2.2. Movimentos e construção das políticas de agroecologia e gênero ................................... 109 Capítulo 4: A agroecologia urbana e a ocupação das cidades ............................................................. 117 A emergência do movimento agroecológico no Brasil ....................................................... 117 Os caminhos da agricultura familiar de base agroecológica nas cidades ............................ 123 Novas urbanidades: agroecologia e direito a cidade ........................................................... 131 A agricultura urbana no Rio de Janeiro: agroecologia e defesa do território ...................... 137 xi Capítulo 5: Reflexões sobre luta feminista e agroecológica (urbana) ................................................. 149 Eixo I - Lutas feministas pelo direito a cidade na Zona Oeste ........................................... 151 As cidades-empresa e o Estado de Exceção como regra: o caso do Rio de Janeiro .. 154 Cenas de um “legado olímpico” e o urbanismo insurgente de Vila Autódromo ........ 157 Plano Popular das Vargens: a construção de um projeto urbanístico feminista, anti- racista e agroecológico ............................................................................................................... 167 Eixo II - “Meu corpo é meu território” ................................................................................ 173 Eixo III - Feminismo periférico: a construção de uma política a partir das margens .......... 182 5.4. Eixo IV -Produção de conhecimento e luta política das mulheres no movimento agroecológico ................................................................................................................................. 192 Disputas narrativas e memória da agroecologia ........................................................ 194 Feminismos em disputa ............................................................................................... 204 Domesticar a política ..................................................................................................207 Últimas considerações ......................................................................................................................... 212 Referências .......................................................................................................................................... 215 Apêndices ............................................................................................................................................ 237 Apêndice A – Convite participação em pesquisa ............................................................................ 237 Apêndice B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................................................... 241 xii Lista de tabelas Tabela 1 Objetivos e ferramentas ............................................................................................. 66 Tabela 2 Documentos de referência ......................................................................................... 69 Tabela 3 Redes que compõem a ANA ....................................................................................... 72 Tabela 4 Observação participante em eventos e atividades ..................................................... 78 Tabela 5 Roteiro de entrevista semiestruturada ....................................................................... 80 Tabela 6 Lista de participantes entrevistadas .......................................................................... 83 Tabela 7 Apresentação dos eixos de análise dos documentos ................................................. 86 Tabela 8 Descrição dos eixos de análise ................................................................................ 150 xiii Lista de figuras Figura 1. Painel sobre gênero e agroecologia ........................................................................ 114 Figura 2. Vista aérea do Maciço da Pedra Branca (Fonte:Atlas das Unidades de Conservação do Estado do Rio de Janeiro, 2015). ....................................................................................... 138 Figura 3. Exemplo de quintal produtivo em Vargem Grande, Rio de Janeiro, 2017............. 140 Figura 4. Exemplo de tecnologia de produção em quintal. Vargem Grande, Rio de Janeiro, 2018. ....................................................................................................................................... 140 Figura 5. Territórios da agricultura familiar agroecológica na cidade do Rio de Janeiro - Ilustração por Raissa Theberge............................................................................................... 142 Figura 6. Barraca na Feira Orgânica do Rio da Prata, Campo Grande – Rio de Janeiro, 2016. ................................................................................................................................................ 145 Figura 7. Festa de São João durante a Feira da Roça de Vargem Grande – Rio de Janeiro, 2016. ....................................................................................................................................... 146 Figura 8. Bandeira que trata da agroecologia como forma de combater a especulação imobiliária nas cidades. .......................................................................................................... 148 Figura 9. Vila Autódromo, 2015. ........................................................................................... 157 Figura 10. Quintal Vila Autódromo, 2015. ............................................................................ 160 Figura 11. Ato feminista 08 de março de 2016. ..................................................................... 161 Figura 12. Projeção de edifícios a serem construídos de acordo com o PEU. Vista da Praça Central de Vargem Grande. Desenho: Canagé Vilhena. ........................................................ 168 Figura 13. Roda de abertura do primeiro encontro da Articulação Plano Popular das Vargens, 2016. ....................................................................................................................................... 170 Figura 14. Mapa território afetivo “corpo-território” Vargem Grande .................................. 175 Figura 15. Oficina “Morar e plantar” em Taboinhas, Vargem Grande. ................................ 186 Figura 16. Panela de moqueca de banana quase vazia na oficina Morar e Plantar................ 187 Figura 17. Mística de abertura da Plenária das Mulheres IV ENA, 2018. ............................ 198 Figura 18. Mística de abertura da Plenária das Mulheres IV ENA, 2018. ............................ 199 Figura 19. Cartaz LGBT no IV ENA ..................................................................................... 211 Figura 20. Cartaz representando as mulheres camponesas, indígenas e negras como guardiãs dos saberes tradicionais .......................................................................................................... 211 file:///C:/Users/UFCA/OneDrive/Documentos/TeseMaria_v090319-apenas%20comentários.docx%23_Toc3077530 xiv Lista de abreviações e siglas AARJ Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro ANA Articulação Nacional de Agroecologia APP Articulação Plano Popular das Vargens AU Agricultura Urbana CNAU Conselho Nacional de Agricultura Urbana CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar CPMZO Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste CPT Comissão Pastoral da Terra DAP Declaração de Aptidão ao Pronaf - Programa Nacional de Fortalecimento a Agricultura Familiar ENAU Encontro Nacional de Agricultura Urbana FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário Militiva Pesquisa Militante Vargem Grande MMC Movimento de Mulheres Camponesas MPA Movimento de Pequenos Agricultores MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ONU Organização das Nações Unidas PACS Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul PANCs Plantas alimentícias não convencionais Peapo Políticas Estaduais de Agroecologia e Produção Orgânica PEU Projeto de Estruturação Urbana Planapo Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar Pnapo Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento xv Pronaf Programa Nacional de Fortalecimento a Agricultura Familiar Rede CAU Rede Carioca de Agricultura Urbana SPG Sistema Participativo de Garantia xvi Resumo Este estudo tem o objetivo de compreender o protagonismo das mulheres no movimento agroecológico através de suas concepções e práticas. Tomamos a epistemologia feminista enquanto base teórico-metodológica, buscando considerar os diversos atravessamentos que caracterizam esses contextos, ao olhar sobre os modos de subjetivação das militantes dentro do movimento da agroecologia, tanto na esfera nacional, quanto na esfera local ao acompanhar o movimento popular de mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Como ferramentas metodológicas, utilizamos a análise de documentos dos movimentos sociais e das políticas de fomento à agroecologia, entrevistas com as mulheres integrantes do movimento e da observação participante de eventos, reuniões e do cotidiano das interlocutoras. Os resultados apontam que: ainda que os movimentos venham construindo narrativas baseadas na importância da construção dos feminismos e da agroecologia enquanto projetos de transformação social que se constituem mutuamente, ainda não há um total reconhecimento do protagonismo e dos saberes aportados pelas mulheres; ao mesmo tempo, políticas e programas internacionais ligados à Organização das Nações Unidas - ONU mobilizam um discurso institucionaldo empoderamento que se refere ao ideário neoliberal considerando o aumento da produção como caminho para a “igualdade” entre gêneros. Os resultados também mostram que diante do cenário de crise, militarização e precarização do Estado no Rio de Janeiro, as mulheres constroem uma política feminista popular desde às margens, ressignificando lugares subalternizados ao apontarem outras formas de fazer política, produzir conhecimento e ocupar as cidades. Com isso vemos que a agroecologia se compõe em um plano de saber-poder que, se de um lado pode ser capturada por discursos que tentam minar seu potencial insurgente, por outro lado, com as estratégias que vêm sendo construídas especialmente pelas mulheres, constituem-se como um importante vetor de subjetivação política em meio aos movimentos sociais da cidade e do campo. Palavras-chaves: agricultura urbana; epistemologia feminista; agroecologia; direito à cidade, etnografia. xvii Abstract This study aims to understand the protagonism of women in the agroecological movement through their conceptions and practices. We take the feminist epistemology as theoretical- methodological base, seeking to consider the various crossings that characterize these contexts, to look at the modes of subjectivation of activists within the movement of Agroecology, both in national sphere, and in the local sphere to following the women’s movement from Rio de Janeiro’s West Zone. As methodological tools, we use the analysis of documents of social movements and of the policies of promotion for Agroecology, interviews with activists and the participant observation of events, meetings and the daily lives of our speakers. The results indicate that: although the movements are building narratives based on the importance of the construction of feminisms and agroecology as social transformation projects that constitute each other, there still isn't a full recognition of the role and knowledge contributed by women; at the same time, international policies and programmes linked to The United Nations- U.N. mobilized an institutional discourse of empowerment that refers to neoliberal ideas considering the increase in production as a way to "equality" between genres. The results also show that in the scenario of crisis, militarization and precarious State in Rio de Janeiro, women are building a popular feminist politics from the margins, wich re-significating subalternized places to indicate other ways of politics, producing knowledge and occupy the cities. With this we see that agroecology is composed on a know-power that, if on one hand can be captured by speeches that try to undermine your potential insurgents, on the other hand, with the strategies that are being built especially from women, as an important vector of political subjectivation amidst urbans and rural social movements. Keywords: urban agriculture; feminist epistemology; agroecology; right to the city; ethnography. xviii Resumen Este estudio pretende comprender el protagonismo de las mujeres en el movimiento agroecológico a través de sus concepciones y prácticas. Tomamos la epistemología feminista como base teórica-metodológica, buscando considerar los diversos cruces que caracterizan a estos contextos, a mirar las formas de subjetivación de militantes del movimiento de la agroecología, tanto en ámbito nacional y en el ámbito local al acompañar el movimiento popular de las mujeres de la Zona Oeste de Río de Janeiro. Como herramientas metodológicas, utilizamos el análisis de los documentos de los movimientos sociales y de las políticas de promoción de la agroecología, entrevistas con mujeres activistas del movimiento y la observación participante de eventos, reuniones y la vida cotidiana de las interlocutoras. Los resultados indican que: aunque los movimientos vienen construyendo narrativas basadas en la importancia de la construcción de los feminismos y agroecología como proyectos de transformación complementares, aún no hay un reconocimiento total del papel y el conocimiento aportado por las mujeres; al mismo tiempo, las políticas internacionales y programas vinculados a las Naciones Unidas-ONU movilizan un discurso institucional del empoderamiento que se refiere a las ideas neoliberales, teniendo en cuenta el aumento en la producción como una manera de generar la "igualdad" entre géneros. Los resultados también muestran que ante el escenario de crisis, la militarización y la precarización del Estado en Río de Janeiro, las mujeres construyen una política feminista popular desde los márgenes, dándoles nuevos sentidos a los lugares que tienen una posición subalterna para indicar otras formas de política, producir conocimiento y ocupar las ciudades. Con esto vemos que la agroecología está compuesta en un plan de saber-poder que, si por un lado puede ser capturado por discursos que intentan socavar su potencial insurgente, por el otro lado, con las estrategias que se van construyendo especialmente por las mujeres, se constituye como un importante vector de subjetivación política en medio a los movimientos sociales urbanos y campesinos. Palabras claves: agricultura urbana; epistemología feminista; agroecología; derecho a la ciudad; etnografía. xix “Não podemos criar o que não podemos imaginar” (Movimento Believe.Earth) “¡Ni la tierra ni las mujeres somos territorios de conquista!” (Feministas Comunitárias da Bolívia). 20 Prólogo Gostaria1 de começar este texto contando uma história sobre encontros disparadores que foram fundamentais na construção das reflexões desta tese. O primeiro encontro se dá no início do ano de 2012. Nessa época eu estava iniciando a escrita da minha dissertação em Psicologia na qual eu investigava a relação entre as condições de vida, trabalho e a saúde mental de mulheres assentadas2 e vinha de um percurso de trabalho em assentamentos rurais no Rio Grande do Norte, em territórios de vulnerabilidade socioambiental agravada devido a um longo período de seca no estado, com grandes dificuldades de produção de alimentos, falta de serviços públicos básicos, o uso indiscriminado de agrotóxicos que faziam com que os agricultores e agricultoras adoecessem constantemente e outras questões que traziam ainda mais dificuldade para as populações assentadas, em particular às mulheres devido às desigualdades de gênero que enfrentavam. Essas questões me traziam muita angustia sobre quais os caminhos na construção de outras realidades possíveis à sobrevivência da agricultura familiar no estado. A primeira personagem dessa história é Dona Chagas, moradora do assentamento Milagres na região da Chapada do Apodi, interior do estado do Rio Grande do Norte. Em um final de tarde, depois de um café com tapioca e um dedo de prosa na beira do fogão, Chaguinha, como era conhecida, me mostra com muito orgulho um pé de milho que crescia forte em seu 1 Ao longo da tese utilizamos a 1ª pessoa do singular e do plural. Trata-se de uma escolha deliberada. Buscamos ressaltar os momentos de reflexão mais coletiva e outros da vivência empírica do campo mais individuais com o uso da primeira pessoa. Nos inspiramos aqui na escrevivência da escritora Conceição Evaristo, como prática política e afetiva de escrita de si, a partir das experiências vividas. Sobre escrevivência ver: http://nossaescrevivencia.blogspot.com/. 2 Dissertação defendida em 2014 no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN orientada pela Prof.ª Dr.ª Magda Dimenstein e co-orientada pelo Prof. Dr. Jáder Leite sob o título de Gênero, trabalho e saúde mental entre trabalhadoras rurais assentadas na região do Mato Grande Potiguar.Disponível em http://www.repositorio.ufrn.br:8080/jspui/bitstream/123456789/17566/1/MariaGSGC_DISSERT.pdf. http://nossaescrevivencia.blogspot.com/ http://www.repositorio.ufrn.br:8080/jspui/bitstream/123456789/17566/1/MariaGSGC_DISSERT.pdf 21 quintal. A semente do milho, que anos depois fui entender que era uma semente criola, tinha sido trazida para ela por sua irmã que morava em um assentamento na cidade vizinha. Apesar da distância, as duas irmãs percorriam de bicicleta a estrada de barro no intuito de trocar sementes, fofocas, receitas e, assim, iam tecendo uma rede de relações entre os vizinhos e as duas comunidades em um território que há anos era (e ainda é) ameaçado pelo projeto de Perímetro Irrigado que o governo federal, através do Ministério da Integração e do Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS) pretende implantar na região, projeto esse que vem sendo denunciado pelos moradores devido ao perigo que oferece à manutenção de centenas de famílias que ali vivem e tiram seu sustento da agricultura familiar. Foi naquele momento que tive meu primeiro encontro com a agroecologia, embora nem eu e nem Chaguinha soubéssemos que essa palavra existia. Nesse mesmo ano, meses depois, conheci o conceito de agroecologia em diálogos com militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com a participação na Cúpula dos Povos, encontro puxado pelos movimentos sociais que aconteceu em paralelo às discussões da Rio+20 na cidade do Rio de Janeiro-RJ. A segunda personagem desses encontros foi Dona Adelina. Dona Adelina é moradora do Parque Proletário no Rio de Janeiro. Ao migrar ainda jovem do interior da Bahia rumo ao Rio de Janeiro, ela trouxe consigo os conhecimentos que sua mãe havia lhe ensinado, nos tempos em que viviam na roça, sobre os chás, garrafadas, xaropes e ervas medicinais. Nas caminhadas que faz pelo morro, Dona Adelina colhe as plantas que ela reconhece na rua. Aquilo que para a maioria das pessoas é mato, ela considera remédio e comida. De tanto produzir seus remédios, ela criou uma espécie de farmácia dentro de casa e começou a distribui- los pela comunidade, virando uma referência local na promoção de saúde: a “vó das ervas”, a chamam os meninos que brincam e empinam pipa em frente a calçada da sua casa. 22 Disse-me ela: “Tome esse xarope aqui para sua garganta, minha filha, que esse tempo está muito seco”. Tomei o xarope, que me lembrou os lambedores que minha mãe fazia quando eu era criança, e continuei a escutar com admiração as histórias que Dona Adelina compartilhava comigo. Em um território que sofre violências de vários tipos como a militarização, tráfico de drogas, racismos e intolerância religiosa, aliadas as violências institucionais e a ausência de serviços básicos por parte do Estado, Adelina conseguiu promover, em torno da sua pequena casa, um diálogo considerado quase impossível entre moradores de diferentes crenças, grupos, ocupações e idades. Nesse encontro eu já conhecia a agroecologia e já participava do movimento agroecológico, mas o reconhecimento da potência desse afeto, em um território tão urbanizado e tão distinto de todas as experiências que eu havia conhecido até então, fizeram-me refletir sobre uma ética do cuidado que se construía nesses contextos a partir de suas adversidades e resistências. Esses dois encontros, tão particulares, ambos protagonizados por mulheres em contextos muito distintos – mas que compartilham um histórico de conflitos e injustiças socioambientais – apontaram para mim possibilidades de uma construção de relações e visões de mundo que não passavam necessariamente por aquilo que estava dado de forma massiva no projeto individualista da sociedade ocidental capitalista. Produziam singularidade, diferenças e possibilidades de existência de formas outras de sensibilidade e de relação consigo mesmo e com o outro (Maria Juracy Toneli, Karla Galvão Adrião & Arthur Grimm Cabral, 2012). Esses encontros, é verdade, vieram na esteira de outros que fui tendo ao longo da vida com a Pedagogia da Libertação, com movimentos de luta pela terra, com autoras feministas negras, não-brancas e da América Latina. Dessa forma, fui reconhecendo na articulação dos movimentos populares de mulheres e do movimento agroecológico, um projeto possível de construção de outras formas de se relacionar com o mundo e produzir afetos, experiências, conhecimentos e práticas. 23 É a partir desses encontros, nesse emaranhado que relaciona feminismos, militância, agroecologia e espaços urbanos, que inicio minha pesquisa de doutorado e me aproximo do movimento popular de mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro e da Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), movimento social organizado que busca fortalecer a agricultura e agroecologia urbana na cidade do Rio de Janeiro. Essa rede é constituída por mulheres organizadas em grupos populares, institutos de pesquisa, organizações não governamentais, agricultoras urbanas, moradoras de periferias e favelas do Rio de Janeiro. Elas vêm tecendo redes autônomas e feministas de produção, comercialização e comunicação agroecológica na cidade. A pluralidade dos atravessamentos que compõem esse cenário apontam para a complexidade do nosso campo-tema, conceito elaborado por Peter Spink (2003) que nos ajuda a enxergar o campo não como um lugar específico, mas enquanto uma processualidade de temas situados. No emarenhado desses temas, busco contar algumas das histórias que pude acompanhar ao longo da pesquisa, trazendo uma reflexão sobre as lutas feministas e agroecológicas nas cidades e os discursos que se constroem em torno dessas práticas. Introdução: apresentando o campo-tema A partir de uma racionalidade de reestruturação urbana de princípios neoliberais, a Zona Oeste carioca, particularmente os bairros que compreendem a região administrativa da Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá, vem se tornando o novo centro financeiro e imobiliário – situado historicamente nas regiões do Centro e Zona Sul – do Rio de Janeiro, aumentando exponencialmente o valor dessa área no mercado da especulação imobiliária (Renato Consentino, 2015). 24 A realização de megaeventos como a Copa do Mundo de Futebol da FIFA e os Jogos Olímpicos e os processos de remoções decorrentes de tais eventos, por exemplo, o caso de Vila Autódromo3, são talvez a parte mais emblemática desse processo. Nessa região, antigamente conhecida como Sertão Carioca devido a sua histórica ocupação quilombola e agricultura familiar, a disputa por território aponta para uma contenda pelos usos e sentidos de ocupação de uma cidade voltada à produção industrial e o turismo. Em um cenário marcado por problemas socioambientais e disputas territoriais, agricultoras e agricultores e movimentos sociais da região vêm se organizando politicamente reivindicando reconhecimento e políticas de fomento à agricultura familiar e à produção orgânica no município como uma forma de defesa e ocupação sustentável desse território a partir do modelo da agroecologia. A agroecologia representa um paradigma de produção agrícola que visa a reduzir o impacto socioambiental da produção de alimentos, valorizando os conhecimentos tradicionais e o campesinato enquanto sujeito e forma de organização social, representando um campo de saberes e práticas integradas que se constitui tanto em uma tecnologia, quanto um movimento social (Valéria de Marcos, 2007). No Rio de Janeiro, através da formação da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste (CPMZO), da roda de mulheres da Rede Carioca de Agricultura Urbana - Rede CAU e suas diversas interlocuções, as mulheres vêm assumindo o protagonismo no movimento agroecológico, à medida em que vão incorporar a pauta da agroecologia entre suas bandeiras, apontando não só para a importância da participação das mulheresnesse modelo produtivo, mas para a inter-relação da agroecologia com outras lutas no contexto urbano, como a luta pelo 3 Comunidade que teve a maior parte das suas famílias removidas para dar lugar a construção do Parque Olímpico na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A resistência dos seus moradores que construíram um projeto popular e autônomo de urbanização para o território tem grande importância na história da luta pela moradia no Brasil. 25 direito à moradia, de forma que a agroecologia tem sido utilizada enquanto uma estratégia de mobilização comunitária, articulando diversos grupos e ações em torno desse debate. Assim como no Rio de Janeiro, chama-se atenção para o protagonismo das mulheres no debate agroecológico em todo o Brasil. Se durante as décadas de 1980 e 1990, as organizações não governamentais e as comunidades de agricultura alternativa foram as principais disseminadoras da agroecologia no país, com a predominância de homens - em geral técnicos agrícolas – nos espaços decisórios e de lideranças, esse cenário muda drasticamente nos anos 2000, quando os movimentos sociais do campo, principalmente os movimentos sociais articulados à Via Campesina4, incorporaram a agroecologia como uma de suas principais bandeiras de luta, trazendo-a àesfera do debate não só sociotécnico, mas também político. Na construção desse projeto dá-se a emergência das mulheres enquanto sujeitas políticas5 através do desenvolvimento de tecnologias de cultivo de alimentos e cuidado da terra que causam menos impacto ambiental; na tessitura de redes de economia local que se baseiam em relações de confiança, solidariedade e reciprocidade; e fortalecimento de estratégias de suporte comunitário e defesa de seus territórios. Tal protagonismo aponta não só para a necessidade do reconhecimento dos saberes das mulheres na construção de sistemas de produção agroalimentares e de economia alternativos, como traz à tona o debate sobre de que maneira as desigualdades sociais se relacionam ao modelo de desenvolvimento capitalista e às formas de exploração do meio ambiente. Através da insígnia “Sem feminismo, não há 4 Movimento internacional de camponeses e povos tradicionais que engloba diversas organizações e movimentos sociais de todo o mundo e luta por justiça social no campo. 5Ao adotar uma concepção política da linguagem e da escrita, baseio-me no trabalho) de Letícia Barreto (2015) para o uso de “sujeitas” nessa concepção, no feminino, ao referir-me às minhas interlocutoras. Da mesma forma, ao tratar de conjuntos de pessoas onde a maioria forem mulheres, utilizarei a forma feminina para me referir. 26 agroecologia6”, movimentos sociais como a Marcha das Margaridas, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e o grupo de trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), têm encabeçado a mobilização por alternativas de desenvolvimento no Brasil, promovendo as agendas feministas em espaços importantes de negociação de políticas públicas e de diálogo com a sociedade. Várias pesquisas apontam que a inserção das mulheres no modo de produção agroecológico pode ter grande impacto na redução das desigualdades de gênero. Para além da produção, os debates construídos através do movimento consideram a importância da valorização do trabalho que é historicamente e majoritariamente desempenhado pelas mulheres (a agricultura de subsistência, o trabalho do cuidado, o trabalho doméstico), o qual é, muitas vezes, “invisibilizado”; para a maior participação política das mulheres em movimentos sociais organizados; além de haver um incentivo, na esfera da organização produtiva, do compartilhamento de tarefas, de insumos e dos recursos financeiros entre homens e mulheres de maneira mais equânime (Laetícia Jalil, 2009; Emma Siliprandi, 2015). É preciso, por outro lado, ter cuidado para não enxergarmos esse processo acriticamente. Como observa Flávia Ramos (2017), desde os anos de 1990, quando começam os primeiros estudos no Brasil sobre a participação de mulheres em sistemas agroecológicos, a maior parte das investigações sobre esse tema toma como incontestáveis o ganho de autonomia e a representatividade das mulheres que participam no sistema de produção e no movimento agroecológico. Contudo, muitas das tensões que se desenham dentro dos movimentos e coletivos aparecem de maneira mais branda em discursos políticos “oficiais” e de lideranças 6 Título da carta política das mulheres da ANA durante o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) em 2014. Recuperado de https://marchamulheres.wordpress.com/2014/05/19/sem-feminismo-nao-ha-agroecologia-carta- das-mulheres-no-ena/. Acesso em 23/03/2017. https://marchamulheres.wordpress.com/2014/05/19/sem-feminismo-nao-ha-agroecologia-carta-das-mulheres-no-ena/ https://marchamulheres.wordpress.com/2014/05/19/sem-feminismo-nao-ha-agroecologia-carta-das-mulheres-no-ena/ 27 ligadas a movimentos sociais mistos. Nesse sentido, é importante se questionar a quem serve o apagamento desses conflitos. Para a artivista7 potiguar Jota Mombaça (2016), o apagamento de conflitos e desigualdades, seja no âmbito da produção de conhecimento, seja dos movimentos políticos/sociais, produzem efeitos de silenciamento dos sujeitos subalternizados. Esses conflitos não deixam de existir, pelo contrário, eles tornam o campo de forças ainda mais tenso e expõem suas rachaduras. Segundo a teórica indiana Gayatri Spivak (2010), o sujeito subalterno é aquele que não tem voz política, ou seja, não pode falar nos espaços de poder instituído, tais como a ciência e instâncias de decisões políticas, tendo a sua voz permanentemente eclipsada pelos discursos construídos sobre ele. Sabemos que o fortalecimento das mulheres dentro do movimento não se dá sem embates no âmbito público e privado e que a produção agroecológica, por si só, não garante a transformação das relações desiguais de gênero. Além disso, é essencial não homogeneizar as diferentes formas e experiências das mulheres, mas sim evidenciar a pluralidade e as diferentes posições de onde partem e vivenciam as relações de poder. Na esteira do debate sobre gênero e classe que, ainda que com alguma dificuldade, há décadas vem sendo travado em movimentos progressistas, o acento sobre a interseccionalidade das opressões, ou seja, a forma como as desigualdades operam a partir dos diferentes atravessamentos que constituem as sujeitas e os sujeitos, pela raça, pela sexualidade, pela classe, pela capacidade física, entre outros, vem se institucionalizando e ganhando força dentro do movimento agroecológico apenas na última década, evidenciando as desigualdades e os racismos dentro dos próprios movimentos. 7Artista que faz da sua arte uma forma de ativismo. 28 Diante dessas questões inspiro-me na feminista zimbabuana Anne McClintock (2010) para reivindicar a importância de enxergar nas encruzilhadas das contradições as estratégias de mudança que delas podem emergir. São nas contradições que somos convocados a encarar as desigualdades, incômodos e conflitos, e ressaltar, nos termos colocados pela cientista política Chantal Mouffe (2005), o caráter agonístico e plural do fazer político. Diversas correntes teórico-políticas vão chamar atenção para o impacto do modelo de desenvolvimento capitalista em curso na vida das mulheres e a inter-relação entre o fenômeno da degradação do meio ambiente e o capitalismo patriarcal: o feminismo liberal por parte das agências e programas internacionais de fomento, políticas de Estado e o mercado capitalista; o feminismo marxista e o ecofeminismo por parte dos movimentos sociais se destacamnesse cenário como matrizes teóricas que vão balizar muitas das discussões. Diferentes autoras feministas, porém, vão criticar essas correntes teóricas por seus caracteres supostamente essencialistas, uma vez que, a depender da abordagem, algumas dessas teorias não problematizam o binarismo de gênero, tampouco questionam o determinismo biológico dos sexos aceito como algo “natural” (Érika Carcaño Valencia, 2008). Outra importante crítica, empreendida especialmente pelas feministas pós-coloniais, transfeministas, negras e de povos originários, refere-se à categoria “mulher” tomada como um conceito universal que desconsidera as experiências das mulheres não brancas e não cisgêneras e as complexas relações de opressão a que estão submetidas. Nessa acepção, é fundamental discutir até que ponto os princípios subjacentes a tais leituras – do feminismo liberal, do feminismo marxista e do ecofeminismo – ao invés de promoverem o empoderamento das mulheres, não as mantém presas a um sistema rígido de gênero, ao naturalizar o cuidado das mulheres com o meio ambiente, mesmo considerando o caráter contingencial dessas construções. 29 Uma segunda questão refere-se à construção do feminismo e do conceito de gênero no contexto do movimento ambientalista, agroecológico e das políticas públicas de fomento à agricultura familiar e orgânica. A apropriação do feminismo – movimento político e teórico identificado historicamente às mulheres das classes médias urbanas intelectualizadas – pelos movimentos populares do campo e de mulheres da periferia, por exemplo, mostra como tais conceitos são formulados dentro de cada contexto específico. Diante desses impasses, autoras pós-coloniais como Glória Anzaldúa (2005) e María Lugones (2008) entre outras vão propor outra política feminista que não se apoia na ideia de natureza dos sexos, mas antes a problematiza, evidenciando que as fronteiras entre natureza/cultura são arbitrárias, especialmente na contemporaneidade, onde temos a centralidade do hibridismos e das tecnologias na constituição dos corpos e da nossa subjetividade. Questiono-me, dessa maneira, como pensar feminismos que considerem as construções identitárias nômades, parciais, contraditórias e heterogêneas: é possível prescindir da identidade no fazer político? Como desenvolver outras narrativas para a construção de um mundo comum tomando o contexto das mulheres vinculadas à agroecologia? Partindo do entendimento com Foucault (1986), de que os discursos se estabelecem enquanto práticas que incidem na construção das subjetividades dos indivíduos e coletivos, faz-se necessário problematizar de que maneira se dá a constituição dessas sujeitas políticas. Nesse ponto de vista, creio que mais importante do que discutir a pertinência das relações entre os conceitos natureza/mulher, é pensar como eles são operados, a partir de racionalidades específicas que incidem nos modos de subjetivação dos sujeitos. Sendo o movimento da agroecologia composto por diferentes atores e atrizes, que manipulam constantemente tais conceitos a partir de suas pautas, quais são, afinal, os discursos sobre mulheres, gênero e feminismos que estão sendo construídos em torno desse movimento? Como, 30 por outro lado, os feminismos vão se apropriar da pauta agroecológica em suas agendas de luta? Quais são os efeitos dessas práticas discursivas na vida das mulheres envolvidas no movimento agroecológico? Até que ponto, as propostas de mudanças nos modelos produtivos conseguem romper com o modelo tradicional de família e de gênero? Em que medida os territórios são impactados e modificados através da ação dessas agentes? Acredito que, ao propor não só a transformação de todo o processo de produção agrícola, mas reconfigurações das relações capitalistas, racistas, antropocêntricas e patriarcais que estruturam as ciências, as tecnologias e o socius de maneira geral, o movimento agroecológico nos dá pistas sobre formas de articulação combativas à tentativa massificadora do projeto neoliberal ao mesmo tempo em que traz mudanças nas formas de participação política. A tese aqui sugerida é que as rupturas propostas pela agroecologia podem se constituir enquanto linhas de fuga ao poder da máquina capitalista de produção de subjetividade – uma recusa que visa construir novos modos de sensibilidade e criatividade, produtores de uma subjetividade singular que vão ao encontro da radicalidade das propostas epistemológicas feministas e pós-coloniais em direção à ética do comum e da pluralidade. Partindo de tais reflexões, o presente estudo tem como objetivo central compreender o protagonismo das mulheres no movimento agroecológico em suas concepções e práticas. Definimos enquanto objetivos específicos: i. refletir sobre a relação entre feminismos e agroecologia na cidade do Rio de Janeiro, a partir da emergência das mulheres como sujeitas políticas no movimento agroecológico; ii. identificar os discursos em torno dos conceitos de feminismos e gênero dentro do campo da agroecologia; iii. analisar as contribuições que vêm sendo construídas pelas mulheres no movimento da agroecologia; 31 iv. identificar os efeitos da participação política na vida das mulheres; v. compreender em que medida a agroecologia constitui-se como um processo de subjetivação política na cidade. Para tanto, foram acompanhados encontros e mobilizações em torno da agenda feminista e agroecológica, em especial do movimento popular construído pelas mulheres na Zona Oeste do Rio de Janeiro por acreditar na representatividade desse grupo em relação às questões em tela no presente estudo. Tomo aqui a epistemologia feminista como base teórico-metodológica, além de aportes da etnografia feminista, da Psicologia Social discursiva, e da perspectiva das teorias pós- coloniais, buscando considerar os diversos atravessamentos e dinâmicas sociais que caracterizam esses contextos, ao olhar sobre os modos de subjetivação das agricultoras urbanas e das militantes dentro do movimento da agroecologia. Com isso, lanço mão de diferentes ferramentas metodológicas, quais sejam, análise de documentos dos movimentos sociais e das políticas de fomento à agroecologia, entrevistas com as mulheres integrantes do movimento e da observação participante de eventos, reuniões e do cotidiano das minhas interlocutoras. Essas diferentes dimensões serão entendidas não enquanto fotografias estáticas de um dado cenário, mas como atores imbricados em uma rede de relações, de uma configuração de elementos, forças e linhas que atuam simultaneamente e de onde podem emergir dispositivos que fazem ver e falar racionalidades específicas que se (re)configuram constantemente. Os dispositivos correspondem a rede que se estabelece entre os elementos que compõem a realidade: instituições, leis, discursos, morais, etc. Eles tencionam, trazem à tona e provocam agenciamentos (Virgínia Kastrup, & Regina Benevides de Barros, 2010). Dessa forma, o foco não são os documentos ou entrevistas em si, mas o que eles produzem como efeitos no agenciamento com outros atores (Bruno Latour, 1994). 32 Assim, não se trata apenas de representação da linguagem, de textos e discursos - segundo Latour (1994) esse é um dos mal entendidos da leitura crítica a partir das teorias pós- modernas e da noção de desconstrução. As redes que busco acompanhar são antes “reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade”. (Latour, 1994, p. 12). A tese está organizada em uma seção introdutória e mais cinco capítulos. Na introdução, traço um panorama do campo-tema a ser estudado, assim como busco construir uma reflexão epistemológica acerca do fazer científico feminista e, mais especificamente, acerca do papel jogado pela subjetividade numa pesquisa na qual assumo minha não neutralidade, visto que a escolha do tema depesquisa, o acesso ao campo-tema e às redes de ativismo são aspectos da investigação influenciados pela minha própria posicionalidade. Também apresento, no tópico “Habitando paisagens”, um pouco do meu percurso da pesquisa que foi se moldando ao longo da minha inserção em campo e diálogo com minhas interlocutoras. No capítulo 1 desenvolvo os conceitos de gênero, feminismos e subjetividade que serão centrais para o desenvolvimento do texto, além de apresentar um debate sobre a articulação entre os conceitos de gênero, raça e colonialidade. No segundo capítulo, sob o título de “Percusos metodológicos” apresento o desenho teórico-metodológico da pesquisa, os instrumentos utilizados e as estratégias de análise. No terceiro capítulo, sob o título “Feminismos e agroecologia: discursos, políticas e movimentações”, construo, a partir dos resultados da pesquisa, uma análise da produção dos sentidos dos feminismos no cenário agroecológico. O quarto capítulo “A agroecologia urbana e a ocupação das cidades” discuto sobre a relação rural-urbano e sobre o desenvolvimento do paradigma agroecológico nos centros urbanos, a relação entre agroecologia, urbanidades e formas de subjetivação, além de apresentar, em seu último tópico, o contexto da cidade do Rio de Janeiro a partir de elementos empíricos da pesquisa. 33 No quinto capítulo, apresento os eixos de discussão da pesquisa de campo, quais sejam: mobilização popular das mulheres em defesa do direito à moradia e à cidade a partir da agroecologia; o corpo-território, os feminismos periféricos e a produção do conhecimento feminista na agroecologia. Por fim, desenvolvo minhas considerações finais com uma síntese das questões discutidas ao longo do trabalho e um balanço sobre a construção do processo de pesquisa. Com isso, busco contribuir não só com o campo dos estudos feministas e da Psicologia, mas também pensar o desenvolvimento da pesquisa a partir do olhar das teóricas críticas que permitam a emergência de outras vozes, especialmente as latino-americanas, para o campo do saber científico. Habitando paisagens Desde o início da construção da tese, um desafio se desenhava no horizonte da pesquisa, o de habitar diferentes campos-temas e paisagens. Acompanhar movimentações tão complexas e rizomáticas, articular diferentes cenários, metodologias e apresentar diálogos e conexões que não estavam dadas a priori, foram processos que se desenharam, por vezes, de forma confusa, me convocando, todo o tempo, analisar meu percurso na pesquisa. Pensar o fazer da pesquisa a partir do paradigma feminista não exige só um posicionamento em campo, mas um certo grau de desprendimento e paciência, pois nem sempre seus interesses enquanto pesquisador/a vão ao encontro das vontades e necessidades dos grupos naquele determinado momento. Dessa forma, foram anos de aproximação com o movimento da agroecologia e, posteriormente, com minhas interlocutoras na cidade do Rio de Janeiro, sendo necessária uma série de negociações no que se refere a quem, como e onde fazer o estudo. Minha inserção no cenário da agroecologia urbana no Rio de Janeiro se deu, como 34 mencionado anteriormente, através do contato com a Rede CAU - rede que articula movimentos e iniciativas de agricultura na cidade do Rio de Janeiro – durante o I ENAU no ano de 2015. Nesse encontro conheci as experiências de Vargem Grande e Campo Grande, dois bairros da região Oeste que representam a maior parte da produção da agricultura familiar na cidade. Através de companheiras do movimento, fui apresentada à Silvia, liderança do movimento de AU, uma das fundadoras da Associação de agricultores e agricultoras de Vargem Grande (Agrovargem) e articuladora comunitária do bairro. Silvia foi a responsável por me introduzir na CPMZO e outros movimentos da região no início de 2016. A CPMZO é resultado de um longo histórico de lutas dos movimentos sociais na região, sendo que muitas mulheres que a compõem já eram militantes feministas e de outros movimentos mistos, entretanto, a organização dessas mulheres enquanto movimento é relativamente recente. Podemos dizer que o movimento popular de mulheres da Zona Oeste funciona como um rizoma, que vai sendo composto e reverberando a partir de vários temas, lugares e engajamentos, sendo articulado por um emaranhado de grupos, agendas políticas e diferentes atuações, que se atravessam e se constituem mutuamente, não sendo um grupo instituído ou fechado, mas, de fato, uma rede em movimento. Retomo aqui o conceito de rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) como um sistema aberto composto por linhas múltiplas que se articulam em nós, princípios de conexão que conformam a realidade a partir de qualquer ponto das redes. Os rizomas são compostos por vetores linguísticos, materiais, afetivos, políticos, econômicos, estéticos, etc. Utilizo o conceito de rizoma como forma de entender as linhas e os agenciamentos que se atravessam e se articulam na conjugação desses movimentos. Considerando a extensão geográfica, a população e a diversidade que caracteriza a região, chama muita atenção essa construção em rede. Ainda que seja a maior região em termos de extensão geográfica e a segunda maior em população, percebe-se as relações de parentesco 35 e de conhecimento em algumas áreas. Também soma-se a essa característica a atuação de algumas organizações na região, em especial o Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Instituto PACS), organização não governamental que estabelece a justiça socioambiental e os feminismos entre suas linhas de atuação prioritárias e desenvolve trabalho de base com as mulheres da Zona Oeste, o que ajuda a mobilização de diferentes mulheres e grupos em torno de pautas comuns do movimento feminista. É bastante complexo nomear todos os coletivos que se inserem nessa articulação e acompanhar de perto todos eles, sendo assim, vou me referir nesse trabalho de forma geral ao movimento popular de mulheres da Zona Oeste, entendendo suas diversas ramificações. Em minha pesquisa acompanhei mais de perto as mulheres de Vargem Grande, mais especificamente três grupos que se inserem nesse movimento e têm como pautas principais a questão da agroecologia e a luta das mulheres: a Feira da Roça de Vargem Grande, a Coletiva Hortelã e a Pesquisa Militante (Militiva), grupos que apresentarei detalhadamente mais à frente. Ao participar de uma roda de conversa com as participantes da Pesquisa Militante, projeto desenvolvido pelo PACS com as mulheres da Zona Oeste, expus ao grupo, formado em sua maioria por lideranças comunitárias da região, meus objetivos de pesquisa que iam ao encontro de muitas das ações que seriam desenvolvidas pelas militantes. Assim, fui inserida no grupo da Pesquisa Militante de Vargem Grande - a Militiva VG, passando a contribuir com as ações do grupos, organizando eventos, realizando oficinas com as mulheres das comunidades da região e captando imagens que ajudaram posteriormente no processo de mobilização comunitária em Vargem Grande. Também me aproximei da Coletiva Hortelã a convite de Silvia, contribuindo na manutenção da horta comunitária que vem sendo desenvolvida pelo grupo e com os encontros para discussão de temas como alimentação natural, plantas medicinais, troca de sementes, entre outros. Também em Vargem Grande conheci muitas agricultoras e agricultores que 36 comercializam a sua produção na Feira da Roça de Vargem Grande, feira agroecológica auto organizada na região e que funciona à parte do circuito de feiras orgânicas promovidas pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Essa feira tem um papel central para todas as pessoas envolvidas direta e indiretamente com a agricultura familiar, para a luta pela defesa do território em Vargem Grande e ainda para o movimento agroecológico na cidade. A feira não é só um lugarde comercialização, mas também um símbolo de resistência, um ponto de encontro, de circulação, palco de importantes debates políticos e de visibilização da agricultura na cidade. A escolha do nome da feira já marca essa diferenciação, uma vez que “a roça” é reinvindicada de forma a visibilizar as ruralidades na cidade e apontar que não se trata de uma feira onde os alimentos orgânicos são o foco, mas sim as relações entre as pessoas e o pertencimento ao bairro. Foi a partir da feira que comecei minhas observações de campo no território, dialogando com as feirantes, conhecendo suas histórias e buscando entender os espaços por elas habitados. Paralelamente, passei a acompanhar as reuniões da CPMZO e, dos diálogos com esses grupos surgiram algumas demandas para que eu acompanhasse e contribuísse com o processo de mobilização comunitária em parceria com as mulheres de Vargem Grande, que eu acatei compreendendo a importância dessas ações no contexto em questão e também a importância do meu engajamento como forma de fortalecer meu vínculo com as mulheres da região. Com o meu engajamento na Coletiva Hortelã e na Militiva, todo o processo da pesquisa passou a ser construído coletivamente com as mulheres envolvidas nesses grupos, a partir de uma série de problematizações trazidas por elas mesmas no que se refere às formas tradicionais de produção de conhecimento que, muitas vezes, reforçam estruturas assimétricas de poder preponderantes na sociedade capitalista, como o racismo e o sexismo, invisibilizando e expropriando saberes e práticas transformadoras de grupos, segmentos e classes sociais marginalizadas. Não só alguns objetivos e estratégias metodológicas foram repensadas e 37 sugeridas pelas minhas interlocutoras, como alguns dos meus pressupostos foram também questionados em alguns momentos. Esse processo exigiu-me, por vezes, uma reconfiguração do meu campo de pesquisa e criou muito desconforto, na medida em que a pesquisa parecia “não mais me pertencer” e muitas vezes parecia não caminhar, ao mesmo tempo em que eu me via com muitas demandas enquanto militante, não conseguia um certo distanciamento que julgava necessário para desenvolver meus objetivos de pesquisa enquanto pesquisadora. Também percebi que nem sempre meu papel enquanto pesquisadora ficava evidente para as mulheres que iam se juntando aos grupos. Algumas acreditavam que eu trabalhava numa organização não governamental, outras achavam que eu trabalhava com alimentos, pois em muitas das ações coletivas era comum que eu ficasse encarregada de fazer a alimentação. Era evidente, entretanto, que minha presença não passava despercebida nos espaços. Algumas dessas angustias foram sendo apaziguadas com o meu engajamento no grupo e com apresentação de meu projeto de pesquisa às minhas interlocutoras que puderam dar sugestões, fazer críticas e, principalmente, puderam se colocar em uma construção coletiva do saber acadêmico. Além disso, as mudanças que ocorreram em torno do meu campo-tema, com a progressiva diminuição de subsídios para a agricultura familiar e para a produção orgânica e agroecológica de alimentos (Portal da Transparência, 2019); a extinção no ano de 2016 do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), órgão destinado à promoção do desenvolvimento da agricultura familiar; o impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousself em 2016, o assassinato da vereadora Marielle Franco em 2018 e as eleições presidenciais de 2018 impactaram sobremaneira minhas interlocutoras, a cidade do Rio de Janeiro e a mim mesma. Foram anos de muito atos na rua, ansiedade, medo e, por vezes, desesperança. 38 Os agricultores e agricultoras familiares e as mulheres, especificamente, vem sendo particularmente prejudicadas nessa conjuntura e muitos dos documentos e políticas públicas usados como referência nesse estudo foram perdendo sua efetividade no âmbito institucional ou mesmo sendo diretamente ameçadas. Um exemplo disso foi o decreto do presidente Jair Bolsonaro que em janeiro de 2018 acabou com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), um dos principais componentes das políticas voltadas para a agricultura familiar, agroecologia e segurança alimentar no Brasil. Nessa conjuntura, a construção de redes políticas e feministas me ajudaram a seguir na tessitura da tese. Destaco, em especial, três experiências que apesar de não comporem diretamente os dados e as análises desta tese, foram essenciais para as reflexões que foram aqui desenvolvidas. A primeira foi a experiência do projeto de extensão Diálogos Feministas e práticas em Psicologia e Direito onde, sob orientação do Prof. Pedro Paulo Bicalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tive a oportunidade de construir com minhas companheiras, uma proposta de curso voltado para profissionais do Direito e Psicologia a partir das suas práticas com uma bibliografia quase inteiramente composta de autoras negras, indígenas, latino-americanas, travestis e transexuais. A segunda experiência diz respeito ao projeto Arranjos Locais da Penha que tem como objetivo a promoção da agricultura urbana no Complexo de favelas da Penha no Rio de Janeiro, onde pude contribuir como proponente das ações e articuladora, percorrendo quintais e aprendendo com as moradoras da comunidade suas estratégias de sobrevivência em um cenário de enorme vulnerabilidade. A terceira, foi a experiência do grupo Mulheres de Aroeira, onde junto a algumas companheiras da agroecologia buscamos construir um espaço feminista popular através da culinária quilombola, da agricultura e da arte. Ser convidada a participar desse grupo e poder cozinhar ao lado de militantes históricas da luta pela moradia e de defesa do território na Zona 39 Oeste do Rio de Janeiro foi uma espécie de validação do meu trabalho enquanto pesquisadora- militante e, sobretudo, foi essencial no sentido de descortinar os racismos que me constituíam sem que eu me desse conta. É inegável que enquanto mulher branca e acadêmica meu corpo carrega os sinais que no Brasil me permitem acessar lugares de poder e a possibilidade de ter minha voz ouvida. Por outro lado, isso também gera uma compreensível desconfiança por parte de pessoas que historicamente foram colocadas à margem, pessoas negras e pobres, que são simbolicamente e materialmente oprimidas pela branquitude como um sistema de organização social, como discutirei no primeiro capítulo da tese. Isso mostra que a pesquisa junto a movimentos sociais apresenta uma série de desafios éticos e políticos. A ideia de que pesquisadores vão “dar voz” aos sujeitos subalternizados é uma constante no campo de estudos sobre Direitos Humanos e movimentos sociais. Spivak (2010), que discute de forma contundente o papel do pesquisador na produção do discurso contra hegemônico, alerta para o perigo recorrente de se “tirar” a voz dos sujeitos subalternos, ao tentar falar “sobre” eles. Compreendi que meu papel, enquanto pesquisadora e militante, é de debater a norma, as racionalidades que sustentam as desigualdades mesmo nas esquerdas e nos movimentos sociais, de buscar descortinar as estruturas que subjazem tais apagamentos, apropriações e violências, e dialogar sobre possibilidades de resistência e de recriação de mundos que vêm sendo tecidas a partir de diferentes estratégias, forças e lugares. Assim, entendendo que a articulação entre agroecologia e os feminismos populares em torno da pauta ambiental traz interpelações urgentes para pensar a construção de uma sociedade mais democrática, sustentável, plural e livre de opressões, busco nesta tese contribuir com esse debate trazendo à tona o ponto de vista das mulheres envolvidas no movimento agroecológico urbano. 40 Importante ressaltar que este texto passou por uma banca popular no qual ele foi lido por minhas interlocutoras que trouxeramsuas críticas e considerações. A banca popular é um dispositivo usado em pesquisas junto a movimentos sociais como forma de produzir conhecimento que retorne e sirva para os movimentos ou população local. No caso desta tese, para além da banca propriamente, ou seja, a apresentação do projeto e dos resultados ao grupo, posso dizer que de fato trata-se de uma produção coletiva de conhecimento, visto que as contribuições das participantes, escolhas metodológicas e criação de conceitos foram trazidos por elas. Algumas das interpelações feitas diziam respeito às contribuições e ao retorno da pesquisa ao movimento; sobre a importância de desenvolver estratégias de dialogo direto com o movimento tais como a própria realização de banca popular e publicação de trabalhos de autoria coletiva e; a importância de trazer à tona os conflitos que surgiam em relação aos movimentos mistos, ou seja, aqueles construídos ao lado dos homens. Esse processo, apesar de riquíssimo, foi bastante desafiador e em muitos momentos me fez refletir sobre como é difícil inclusive apartar a vida pessoal daquele que se propõe a pensar uma determinada realidade e suas questões de pesquisa. Parece-me afinal, que somos movidos por angustias, mais do que por certezas. Estando agora há quatro anos mergulhada no processo de escrita deste texto, enxergo com maior clareza o caráter mutante da minha escrita. Consciente da não neutralidade e não universalidade da produção de conhecimento, venho esforçando-me para dar conta de uma série de questões trazidas pelas minhas interlocutoras, pelo campo da agroecologia/feminismo e pelo contexto sócio-político que permeia a atual conjuntura brasileira e carioca entendendo que muitas questões necessariamente ficam de fora, de acordo com meus interesses de estudos, das minhas escolhas teóricas e políticas e do meu fôlego em dar ou não conta de certas discussões. Por outro lado, minha busca por contribuir no processo de organização das mulheres, não só enquanto pesquisadora, também 41 me traz desafios e insere-me no contexto de conflitos que o grupo tem de lidar. Tenho buscado pensar as questões de pesquisa a partir das categorias mobilizadas por minhas interlocutoras, tendo a cautela de compreender quais problemas de pesquisa o campo-tema me coloca e não o contrário. Feita essa apresentação geral, desenvolverei no próximo capítulo alguns conceitos centrais para a construção desta tese e uma discussão a partir do meu posicionamento enquanto pesquisadora feminista. 42 Capítulo 1: Gênero, feminismo(s) e as políticas de subjetivação Neste capítulo teórico, discorro sobre o conceito de gênero, subjetividade e políticas de subjetivação buscando construir uma ponte entre tais debates e linhas argumentativas que vêm sendo construídas desde os feminismos pós-coloniais. Uma das motivações deste estudo é problematizar as condições de existência social das mulheres e para isso é necessário desprender-se de uma série de concepções universais e naturalizadas acerca dos fenômenos e estruturas sociais que são forjados ao longo da história. As ciências humanas têm cultivado, desde muito cedo, o interesse por questões que envolvem a relação entre homens e mulheres, os papéis sociais atribuídos aos sexos, divisão sexual do trabalho, status, bem como sobre a sexualidade e as práticas sexuais em diferentes contextos culturais ao redor do mundo. A título de exemplo, podemos mencionar o trabalho, já no século XVIII, da escritora e filósofa de Mary Wollstonecraft (2006) que escreveu em 1792 a obra Uma reindicação pelos Direitos da Mulher inaugurando o que viria a ser considerado o campo da filosofia feminista; os estudos de Sigmund Freud ([1905] 2006) e de seus seguidores sobre a sexualidade infantil, a libido e a formação do inconsciente no início do século XX; as contribuições de Simone de Beauvoir (2008) que em 1949 lançou O Segundo Sexo, obra fundamental para compreensão da formação da subjetividade e da cultura a partir da análise das relações entre homens e mulheres na sociedade ocidental; o trabalho da antropológa Margaret Mead (1998) que em 1928, ao analisar sexo e temperamento em três sociedades distintas, mostrou que o comportamento de homens e mulheres não são dados, naturais e universais, e sobretudo, não está relacionado ao sexo biológico; entre tantos outros autores e autoras. 43 O que confere o estatuto de inovação na abordagem dessas temáticas é a incorporação do conceito de gênero enquanto estruturante das relações e diferenças entre os sexos, e, sobretudo, na maneira tal qual essas diferenças são transformadas em desigualdades (Mirian Grossi, 2010). Embora as reflexões sobre as atribuições sociais, culturais e psicológicas atribuídas aos sexos tenha um longo histórico de desenvolvimento, o conceito propriamente dito de papéis sociais de gênero e identidade de gênero foi formulado nos anos de 1950 pelo psicólogo e sexólogo John Money que fazia uma distinção entre sexo enquanto aspectos anatômicos, morfológicos e fisiológicos da espécie humana e o gênero enquanto atribuições sociais e culturais que moldam o comportamento e a identidade dos sujeitos. Este conceito emerge a partir dos estudos de Money sobre as identidades psicológicas de pessoas intersexo. É importante situar o contexto do seu desenvolvimento em um cenário dos Estados Unidos da América pós-guerra de conservadorismo exacerbado com a perseguição a comunistas e outros “desviantes” (incluindo, claro, homossexuais) em pleno princípio da Guerra Fria. Nesse cenário predominavam as ideias derivadas das ciências comportamentais com as quais acreditava-se ser possível incentivar ou eliminar comportamentos através das técnicas do condicionamento introduzidas com o objetivo de fomentar a aprendizagem de certos comportamentos em detrimento de outros (João de Oliveira, 2012). O projeto de Money, portanto, não era o da elaboração de um conceito que contribuísse com uma abordagem emancipatória em relação às determinações e relações de poder entre os sexos. Ao contrário, seu estudo levou-o, através de uma série de experimentos feitos a partir de uma ética e metodologia anti-éticas8, a recomendar práticas de educação dimórficas do ponto 8 O trabalho mais celebre de John refere-se ao caso da “mudança de sexo” de David Remer, garoto que perdeu seu pênis quando criança e foi criado como menina até a adolescência, nunca tendo se adaptado completamente e vindo a cometer sucídio. Para ver com profundidade tal caso recomendo a leitura do artigo “Doing Justice to Someone: Sex Reassignment and Allegories of Transsexuality” de Judith Butler (2001), disponível em: https://muse.jhu.edu/article/12181. https://muse.jhu.edu/article/12181 44 de vista de gênero, aconselhando que crianças intersexo fossem educadas dentro do gênero que lhes fora atribuído medicamente (Oliveira, 2012). Décadas depois, a categoria gênero vai ser apropriada pelos estudos de mulheres, pelos movimentos LGBT+ e, sobretudo, pelos movimentos feministas para se referirem a organização social das relações entre os sexos (Joan Scott, 1995): “O termo gênero faz parte das tentativas levadas pela feministas contemporâneas de reivindicar certo campo de definição, para insistir sobre o caráter inadequado das teorias existentes em explicar desigualdades persistentes entre homens e mulheres” (Scott, 1995, p. 19). Pensar como o gênero opera nas relações sociais humanas e de que modo dá sentido a essa mesma organização são questões cujas respostas estarão sempre dependentes da perspectiva do gênero enquanto categoria de análise, o que nos remete desde já à pluralidade de tradições e perspectivas nas abordagens sobre o tema. Em seu texto clássico “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, Scott (1995) distingue três
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