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LETÍCIA NUNES AZEVEDOoooo O MUNDO INTEIRO É UM PALCO A APROPRIAÇÃO DO MEIO URBANO COMO CENÁRIO TEATRAL Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, semestre de 2020.2, como requisito para a obtenção do grau de arquiteta e urbanista. Hélio Takashi Maciel De Farias Orientador Natal, 2021 Aprovado em 27 de abril de 2021 BANCA EXAMINADORA Professor Dr. Hélio Takashi Maciel De Farias Orientador Professora Drª. Ruth Maria Da Costa Ataíde Examinadora interna Arquiteta eUrbanista Me. Lorena Gomes Torres de Oliveira Examinadora externa AGRADECIMENTOS Sempre fui boa com as palavras. Aliás, sempre fui boa escrevendo as palavras, muito melhor, infinitas vezes melhor do que tentando dizê-las em alto e bom som. Desde que comecei a escrever este trabalho eu busco as palavras certas, me passa pela cabeça um dicionário inteiro e ainda assim não consigo encontrá-las. Há tanto a dizer que tenho medo de não dizer nada ou de não dizer nada certo ou falar tudo de mais, como quando se puxa um fio solto na barra de uma camiseta e, quanto mais você puxa, mais o fio aparece. Espero encontrar no novelo do meu peito, formado com esse fio de palavras que venho puxando a meses sem que se encontre o fim, as melhores palavras que houver agora, pois há tanto a ser dito que, se preciso, inventarei algumas. Ao meu núcleo Aos meus pais e irmão, Ceiça, Lucimedici e Arthur, quero agradecer com todos os clichês possíveis, pois se não tivessem valor, não teriam sido repetidos tantas e tantas vezes pelos agradecidos embalados de emoções. Sou grata pelos valores que me passaram, pelo investimento, dedicação e insistência em acreditar e me mostrar que só a educação poderia fazer a diferença em minha vida. Nós sabemos o que passamos. Só nós sabemos das caminhadas, sob sol e chuva, que fizemos rumo à escola, ao médico, ao mercado... Tantas foram as caminhadas que uma das poucas coisas que consigo pensar agora é: como é grande a estrada que ainda temos pela frente. A vida não tem sido fácil, se é que já foi em algum momento, mas seu amor e apoio tem mantido vivos em mim os sonhos, a esperança e a certeza de que ser alguém na vida tem muito mais a ver com o coração do que com diplomas e cargos. Espero um dia ser capaz de retribuir a vocês com bondade e sabedoria tanto quanto desejo. Ainda há muito a ser dito, mas também a ser feito. Aos mestres Até aqui, minha formação acadêmica teve um papel fundamental na construção da Letícia de hoje, não só como estudante, mas também como pessoa. Estudei a vida inteira em instituições de ensino público e, por isso, aprendi a reconhecer e respeitar profundamente os educadores apaixonados pelo ensino, sobretudo porque os desafios de educar neste país são tantos quanto se é possível imaginar. Tive o privilégio de estudar no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) Campus Parnamirim, minha segunda casa durante quatro incríveis anos e lugar onde fiz amigos para toda a vida. Aos mestres desta instituição - em especial Andréa, Alison, Álvaro, Gilmara, Valdemiro Severiano aka Jr. Negão e professora Luci, vocês me cativaram para além da sala de aula e estarão sempre em meu coração. Agora, na instituição onde me formo arquiteta e urbanista, mais uma vez tive uma jornada rica de aprendizado e convivência, porque aprendemos também sentados no átrio do galinheiro. Agradeço a todos, sem exceção, pelo comprometimento com o ensino superior público, gratuito e de qualidade. Deixo também explicita a minha gratidão a Ruth, que me puxa as orelhas e alimenta os sonhos; a Eugênio pelos conselhos, cafés, fofocas e balinhas, mas sobretudo pelo seu carinho comigo; a Glauce, por não ter me deixado desistir quando cedo senti este impulso, o caminho valeu a pena; a Gleice e Renato, por sua doçura e também por me lembrarem que é divertido projetar, mesmo que às vezes seja estressante; a professora Eunádia, por me dar a oportunidade de experienciar a pesquisa acadêmica; e a professora Angela, que me devolveu o gosto pela escrita e com quem aprendi muito mais do que a disciplina de PPUR VI se propõe. Agradeço ainda à professora Laura Figueiredo, do Departamento de Artes da UFRN, que gentilmente se dispôs a me ajudar na busca por referências e na organização de minhas primeiras ideias que diziam respeito ao universo do teatro. Por fim, agradeço especialmente ao meu orientador, Profº Dr. Hélio Farias, cuja serenidade é quase capaz de me deixar menos ansiosa. Suas orientações e paciência tornaram possível a construção deste trabalho, obrigada por todos os ensinamentos, risadinhas e apoio. Ao AM Arquitetura André e Mariana, a vocês agradeço por cada experiência no mundo da arquitetura, pela paciência e sobretudo por sua humildade em compartilhar o conhecimento e as histórias divertidas. Sou grata por cada conselho dado ao longo desses quase dois anos de estágio, trabalhar com vocês foi uma gostosa troca sobre arquitetura e sobre a vida. Sr. Ailton, Gabi e Mara, vocês tornaram cada manhã mais leve e jamais terei palavras suficientes para descrever e agradecer pela alegria que trabalhar conversando, rindo e compartilhando músicas costumava ser. Cada um de vocês foi também um professor nessa jornada. Mais uma vez, obrigada. Aos artistas (sim, todos) Aqui quero deixar por escrito o meu agradecimento aos artistas, sem distinção. É assim, genericamente, que quero agradecer a todos os profissionais que se dedicam a fazer arte neste país. Agradeço aos poetas, atores, pintores, músicos, escritores, desenhistas, fotógrafos, dramaturgos, cineastas e a quem mais minhas palavras consigam contemplar. O mundo sem a produção artística perderia metade da graça. Em especial, quero agradecer aos artistas que colaboraram com este trabalho: Camila Custódio, Caju Dantas, Deborah Custódio e Leo Ravir, do Grupo Asavessa, meus primeiros entrevistados, obrigada por serem tão amáveis, por disporem o seu tempo para batermos um papo e sobretudo por me ajudarem com as pequenas dúvidas ao longo do caminho; meu muito obrigada também à Alice Carvalho, pelas tentativas de encaixar nossos horários e disponibilizar seu tempo para me ajudar; agradeço muitíssimo à Henrique Fontes, do Grupo Casa da Ribeira, que honra poder contar com a sua colaboração! Agradeço muitíssimo não apenas pela ajuda, mas pela dedicação à Casa da Ribeira e por tantos espetáculos incríveis; por fim, agradeço ao Eduardo Moreira, diretor artístico do Grupo Galpão, que maravilha ter a oportunidade de conversar com você! Não consigo pôr em palavras a minha gratidão pela sua ajuda e, enquanto fã, agradeço pela trajetória do Galpão e por tudo que têm feito nesses quase 40 anos de história. Espero que a vida, em tempos mais saudáveis, ainda me dê a oportunidade de assisti-los em cena muitas vezes mais. À Patotíssima ™ Quase dez anos depois nós ainda estamos aqui, uns pelos outros. Cinco anos depois, aqui estão vocês novamente, nos agradecimentos do trabalho que encerra mais uma etapa da minha vida acadêmica. Diferente da última vez que escrevi para vocês ao fim de uma caminhada estudantil, agora agradeço por sua companhia não mais diária, mas em todas as vezes em que eu precisava escapar e nem mesmo sabia. Obrigada por serem um pedacinho do mundo onde até picar cebolas é divertido, adolecer e adultar com vocês foi e tem sido uma bonita e engraçada jornada. Miguel, Barbosa, Arthur, Vinicius, Brenda, Keillany, Juliane, Sylvia e Raquel, estar com vocês nesses anos em que não nos vemos com a frequência de antes tem sido como uma fagulha se tornando uma chama que aquece e ilumina tudo ao seuredor, sinto que sou tudo e todos nós. É quando rimos até chorar que trinta segundos parecem trinta anos e os últimos dez anos parecem dez vidas. Há tanto a ser dito que “obrigada” e “eu os amo'' parece pouco, mas espero que seja o suficiente por agora. Ao Quartinho Nada seria igual sem vocês. Quando, numa curva do destino, eu fui remanejada de 2016.2 para 2016.1, foi porque ele - o destino, o cosmo, os astros, Deus, a força superior - sabia que dividir as dores e delícias, as noites viradas e as risadas bobas teriam outro valor quando ao seu lado. “Somethings are meant to be” diz um verso de uma das minhas canções preferidas. Algumas coisas estão destinadas a acontecer. Juliana, Laryssa e Mara, obrigada por acharem que sou inteligente quando me sinto medíocre, por gostarem de mim mesmo que às vezes eu seja insuportável. Sem saber, vocês salvaram meus dias incontáveis vezes e eu serei sempre grata por isso. Projetamos muitas coisas bonitas durante esses anos de faculdade, mas nenhuma delas consegue ser tão bonita quanto a morada que construímos no peito uma da outra. Ainda há tanto a ser dito, mas acredito que o destino nos dará muito mais tempo e espaço para dizer. Amo vocês. Às luzinhas no meu caminho Anne, Júlia, Lino, Miró, Piel, Reinaldo, Renata e Targino, que sorte a minha encontrar vocês pelo caminho. Passar o tempo com vocês tinha sempre a sensação de que havia mais. Mais tempo para resolver as questões de estruturas, mais tempo para fofocar, mais tempo e vontade de descobrir o amanhã. Nestes dias, ou melhor, neste ano em isolamento sinto tanta falta de pensar e estar em grupo que, se fecho os olhos, sinto com clareza o vento que corre no alto do Terrasso, o gosto do café de seu Mário e o cheiro de grama molhada no Setor IV. Aqui de onde estou, torço para que sintam daí minha gratidão por termos construído tantas memórias juntos, por fazerem os dias brilharem de uma forma diferente quando estão por perto. Sempre que as palavras parecem me escapar, gosto de usar as de Markus Zusak, que uma vez escreveu: "Não se trata de palavras. O negócio aqui é outro: luzinhas brilhantes e pequenas coisas que são grandes". E eu concordo. Espero que essas palavras, minhas e de Markus, tenham sido o bastante, pelo menos por agora. Ao Maré EMAU 🐟 Agradeço a todos os peixinhos desse mar de experiências que é o Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo por dividirem comigo o saber, as energias e a vontade de fazer acontecer. Obrigada por terem me acolhido e me deixado fazer parte dessa trajetória linda que vem sendo construída em busca de uma arquitetura acessível e igualitária, sonhar é bom, sonhar junto é incrível, mas colocar em prática é melhor ainda. O mundo com vocês é um lugar de mais esperança. Obrigada por tudo! À Zafón e sua Barcelona de papel Só agora entendo o que quis dizer quando escreveu que “a gente só se lembra do que nunca aconteceu”. Nunca fui a Barcelona, mas tenho na memória cada centímetro das ruas dessa cidade, o cheiro do mar na beira do porto, as nuvens no céu púrpura e o vento no alto do Tibidabo. A Barcelona de Zafón, meu refúgio imaginário, porque sei que a cidade por ele descrita, assim como o cemitério dos livros esquecidos, só existe na minha memória. Depois que passei a sonhar coisas de adulto, sonhar com Barcelona é como sonhar sendo criança de novo, enche a alma de brilho. Há muito a ser dito, mas todas as palavras bonitas já foram usadas por você e gosto delas assim. Sei que há muito a dizer ainda, talvez sejam necessários mais outros tantos trabalhos de conclusão de algo para deixar por escrito o que precisa ser dito, mas na verdade espero poder dizer em palavras faladas e nas coisas que não são ditas. Encerro meus agradecimentos com a esperança de ter escolhido bem as palavras e citando Zusak novamente - porque gosto de lembrar dos livros que li em momentos mais serenos - “Odiei as palavras e as amei, e espero tê-las usado direito.” UM AVISO IMPORTANTE Opa, oi leitor! Antes de você seguir com a sua leitura, deixa eu te dar um aviso? Eu não sei em que ano você está lendo este documento, se você está num futuro recente, provavelmente se lembrará da situação em que nos encontramos agora, mas se você é um universitário de 2045 (ou depois disso) é preciso que tome conhecimento de como anda o mundo aqui entre 2020 e 2021. Primeiro: estamos vivendo uma pandemia de Sars-Cov-19, trabalhando, estudando e socializando virtualmente desde março de 2020. A esta altura, em abril de 2021 – enquanto escrevo este aviso – somente no Brasil mais de 350 mil pessoas perderam suas vidas devido à esta doença. Segundo: como você pode imaginar, se estamos estudando virtualmente, deve saber que todas as atividades necessárias para a execução dos trabalhos finais de graduação até agora têm se dado de maneira virtual, o que implica em limitações de acesso à bibliografia, aos nossos orientadores, à um espaço adequado ao estudo e pouquíssima ou nenhuma oportunidade de levantamento in loco. Os trabalhos que você encontrará de autoria dos graduandos da turma 2020.2 podem não ser o que alguns de nós havíamos sonhado quando matutamos as primeiras ideias sobre nossos trabalhos, o que não implica em menos qualidade, mas em um desafio ainda maior. O conteúdo que está por vir é fruto de muita persistência, acredite leitor, são tempos difíceis por aqui. Dito isto, espero que aí no futuro o mundo seja um pouco mais tranquilo. Desejo a você uma boa leitura! Letícia Azevedo e Mara Raquel em nome da turma 2020.2. RESUMO Diante da transformação da cidade em setores de valores comerciais diferentes, é possível notar um distanciamento entre usuários e o meio urbano onde se inserem, tornando certas frações da cidade espaços pobres em memória e pouco quistos para a comunidade que o cerca. Todavia, há uma série de tensões que resistem sobre micro espaços da urbe contemporânea, são interferências artísticas, arquitetônicas, políticas, festividades e de finalidades diversas que, tem em sua prática a intrínseca característica de romper com a lógica do cotidiano. O teatro que acontece na rua de forma secular, pode ser considerado um potencial disseminador de novas narrativas urbanas, sua capacidade subversiva ameniza tensões, desperta novos olhares, fomenta o desenvolvimento de uma nova imagem da cidade. Isto posto, este trabalho apresenta aspectos dos espaços livres públicos e suas possibilidades de apropriação como cenário de espetáculos teatrais, tendo como objetivo propor um equipamento portátil para a realização de espetáculos ao ar livre que fomente a apropriação dos espaços livres públicos. A pesquisa se deu inicialmente com o subsídio teórico de autores como André Carreira (2019), Kevin Lynch (1980), Marc Augé (2012) e Michel de Certeau (1998). Posteriormente, partindo dos conceitos de lugar, cotidiano, imagem da cidade e teatro de invasão, trabalhados por estes autores, foi realizada uma aproximação entre a realidade do centro urbano de Natal/RN e a prática do teatro de rua a partir das declarações obtidas em entrevistas online com atores e diretores potiguares e de outras regiões do Brasil, de modo a subsidiar o projeto de um equipamento modular de arquitetura portátil, concebido como suporte físico para as diversas atividades teatrais e intervenções espontâneas que ocorrem em espaços públicos urbanos. Por fim, ressalta-se a articulação social e as intervenções espontâneas como instrumentos fundamentais para a ressignificação dos espaços livres públicos da cidade e da aproximação e reconhecimento entre usuários e ambiente. Palavras-Chave: Imagem da cidade; paisagem urbana; teatro de rua; arquitetura efêmera; estrutura portátil. ABSCTRACT In view of the transformation of the city into sectors ofdifferente commercial values, it is notable the distance betweent users and the urban spaces in wich they operate, making certains fractions of the city into places with poor space memory and unnappealing to the surrounding community. However, there are a series of tensions resisting in micro spaces in the contemporary city, they are artistic, architectura and political interferences, as long festivities and more others different purposes that have in their practice the intrisic characteristic of breaking the everyday life logic. The theater that takes place on the street in a secular way, can be considered a potential disseminator of new urban narratives, its subversive capacity eases tensions, awakens new perspectives, fosters the development of a new image of the city. That said, this work presents aspects of public free spaces and their possibilities of appropriation as a stage for theatrical shows, with the objective of proposing a portable equipment for the realization of outdoor shows that promotes the appropriation of public free spaces. The research initially took place with the theoretical support of authors such as André Carreira (2019), Kevin Lynch (1980), Marc Augé (2012) and Michel de Certeau (1998). Subsequently, starting from the concepts of place, daily life, image of the city and invasion theater, worked on by these authors, an approximation was made between the reality of the urban center of Natal / RN and the practice of street theater based on the statements obtained in online interviews with actors and directors from Rio Grande do Norte and other regions of Brazil, in order to subsidize the design of a modular equipment with portable architecture, designed as physical support for the various theatrical activities and spontaneous interventions that take place in urban public spaces. Finally, social articulation and spontaneous interventions are highlighted as fundamental instruments for the redefinition of public free spaces in the city and for the approximation and recognition between users and the environment. Key-words: City image; urban landscape; Street Theater; ephemeral architecture; portable structure. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Jovens em parque da cidade de Nova York em meados dos anos 1950. ...................................................................................................................................................................... 36 Figura 2 - Cenas de enfrentamento entre estudantes e policiais. ................. 38 Figura 3 - Pichações pela cidade de Paris em 1968. Da esquerda para a direita, de cima para baixo estão os dizeres “Sejam realistas, exijam o impossível”, “É proibido proibir!”, “Debaixo do calçamento, a praia” e “Adeus, de Gaulle, adeus”. .................................................................................................................. 39 Figura 4 - Multidão de espectadores no Festival de Woodstock, 1969..... 40 Figura 5 - Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, no Rio de Janeiro. ................................................................................................................................................................ 42 Figura 6 - Vista da Praça Sete de Setembro, Natal/RN............................................. 51 Figura 7 - Manifestação de profissionais da educação em frente à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. ........................................................... 51 Figura 8 - Intervenção artístico-urbana “Cegos” nas imediações - e dentro - de um shopping de Natal/RN. ................................................................................................... 53 Figura 9 - Espaço atrativo. .................................................................................................................58 Figura 10 - Apresentação do grupo Boi Calemba Pintadinho, de São Gonçalo do Amarante, em apresentação durante o Eco Praça Reconecta na Praça Augusto Severo, no bairro da Ribeira, Natal/RN. .................................... 61 Figura 11 - Ocupação da Via Costeira durante o projeto Cidade Viva: Via Costeira em Natal/RN. ........................................................................................................................... 62 Figura 12 - Largo da Batata em meados do século XX............................................. 64 Figura 13 - Jardim Pop Up no Largo da Batata, 2014. ................................................65 Figura 14 - Quadro resumo com os principais conceitos abordados ao longo do capítulo. .................................................................................................................................... 66 Figura 15 - Chamada para o desfile de carnaval da Banda Independe da Ribeira em 2019.......................................................................................................................................... 72 Figura 16 - Concentração da Banda Independe da Ribeira no Bar do Zé Reeira, Cidade Alta, 2019. ................................................................................................................... 73 Figura 17 - Procissão de dia de Santos Reis em Natal/RN. .................................... 74 Figura 18 - Protesto contra o aumento da tarifa do transporte público coletivo em Natal/RN. ........................................................................................................................... 76 Figura 19 - Ensaio aberto do espetáculo “Julieta Mais Romeu” do Grupo Asavessa de teatro durante a realização do Circuito Cultural Ribeira em via pública no bairro da Ribeira, Natal/RN em 2018. ................................................ 80 Figura 20 - Apresentação do espetáculo “Meu Seridó” da companhia teatral Casa de Zoé durante a realização do evento Eco Praça, na Praça André de Albuquerque, Natal/RN em 2017. ...................................................................... 82 Figura 21 - Apresentação do espetáculo “INKUBUS” durante a realização de uma mesa redonda sobre violência contra a mulher, na Praça Padre João Maria, Natal/RN em 2019. ..................................................................................................... 84 Figura 22 - Tipologias do teatro grego. ................................................................................... 93 Figura 23 - Tipologias do teatro Elisabetano..................................................................... 94 Figura 24 - Tipologias do teatro italiano................................................................................95 Figura 25 - Tipologias do teatro circundante. ................................................................. 96 Figura 26 - Tipologias do teatro múltiplo. ........................................................................... 97 Figura 27 - Palco treliçado de médio porte. ..................................................................... 98 Figura 28 - Módulo de palco e treliça espacial. ............................................................. 99 Figura 29 - Módulo de palco em treliça plana. ............................................................ 100 Figura 30 - Montagem de palco em treliça plana. ....................................................101 Figura 31 - Módulo de palco simples. ...................................................................................101 Figura 32 - Quadro resumo dos modelos de palco remontável mais comuns no mercado. ......................................................................................................................... 104 Figura 33 - Cena do espetáculo Destrilhados, do grupo Teatro do Concreto, no bairro da Ribeira, Natal/RN.......................................................................... 107 Figura 34 - Foto de divulgação do espetáculo Romeu e Julieta, do Grupo Galpão. .............................................................................................................................................................108 Figura 35 - Apresentação do espetáculo Julieta Mais Romeu, do Grupo Asavessa. ......................................................................................................................................................... 109 Figura 36 - Apresentação do espetáculo INKUBUS na Praça Padre João Maria, Cidade Alta, Natal. ..................................................................................................................110 Figura 37 - Apresentação do espetáculo BARAFONDA, 2012........................... 114 file:///C:/Users/letic/Desktop/TFG_LETICIA%20AZEVEDO.docx%23_Toc71123193 file:///C:/Users/letic/Desktop/TFG_LETICIA%20AZEVEDO.docx%23_Toc71123193 Figura 38 - Da esquerda para a direita, de baixo para cima: O Segredo da Arca de Trancoso, do Grupo Vilavox (2014); Júlia - Amor por Anexins, do Grupo de Teatro Cirquinho do Revirado (2013); e Besouro Cordão de Ouro, de João das Neves (2008). ............................................................................................................... 116 Figura 39 - Intervenção Centro pra quem?, 2016. ........................................................ 119 Figura 40 - Intervenção Espaço, 2018. ................................................................................. 120 Figura 41 - Proposições de uso para o prisma modular. ........................................ 121 Figura 42 - Intervenção Zighizaghi, 2016............................................................................ 122 Figura 43 - Detalhamento técnico do projeto Zighizaghi. ................................. 123 Figura 44 - Esquema de movimento da estrutura mecânica. ........................ 124 Figura 45 - Modelos de estruturas desenvolvidas. .................................................... 125 Figura 46 - Quadro resumo dos estudos de referência. ........................................ 126 Figura 47 - Veículo de passeio equipado com reboque. ....................................... 131 Figura 48 - Esquema de chassi e dimensão de reboque. .................................... 131 Figura 49 - Localização do universo de estudo. ........................................................... 133 Figura 50 - Demarcação dos pontos de intervenção. ............................................ 133 Figura 51 - Estudos de arranjos com módulos de diferentes formatos e sua relação palco-plateia. .......................................................................................................................... 135 Figura 52 - Espetáculo Romeu e Julieta, do Grupo Galpão. ............................. 138 Figura 53 - Croquis iniciais sobre a forma e articulação do módulo palco. ................................................................................................................................................................................ 140 Figura 54 - Estudos tridimensionais da estrutura inferior. ................................... 141 Figura 55 - Croquis esquemáticos sobre o movimento realizado pelas barras. ................................................................................................................................................................ 142 Figura 56 - Croqui esquemático de junção do módulo palco e equipamento de iluminação........................................................................................................ 143 Figura 57 - Estudo de locação do equipamento de iluminação. ................. 143 Figura 58 - Estudo de encaixe de peças no coroamento. .................................. 144 Figura 59 - Estudo de aplicação das anilhas de concreto. ................................. 145 Figura 60 - Estudos em croqui e maquete eletrônica do movimento de rotação da escada dobrável. ......................................................................................................... 146 Figura 61 - Croqui esquemático da reflexão do som projetado. ................... 147 Figura 62 - Indicação dos componentes do módulo palco. ............................. 148 Figura 63 - Componentes do módulo palco em vista. .......................................... 149 Figura 64 - Vista de topo e isometrias do módulo palco em suas tipologias 01 e 02. .............................................................................................................................................................. 149 Figura 65 - Tabela de pesos e medidas dos tubos de metalon em formato retangular....................................................................................................................................................... 152 Figura 66 - Tabela de pesos e medidas dos tubos de metalon em formato quadrado. ....................................................................................................................................................... 152 Figura 67 - Perspectiva explodida e materiais utilizados no módulo palco. ................................................................................................................................................................................. 154 Figura 68 - Exemplo de módulo em acabamento com cor. ........................... 155 Figura 69 - Perspectiva da escada dobrável. .................................................................. 155 Figura 70 - Esquema do movimento de dobra da escada em vista frontal. ................................................................................................................................................................................. 156 Figura 71 - Perspectiva dos acessórios de iluminação tipo simples e articulado. ...................................................................................................................................................... 157 Figura 72 - Esquema do movimento de recolhimento das barras - poste articulado. ...................................................................................................................................................... 158 Figura 73 - Vista frontal e em perspectiva da placa de compensado naval usada para reflexão sonora. .......................................................................................................... 160 Figura 74 - Arranjos possíveis a partir do agrupamento da unidade modular. ........................................................................................................................................................... 161 Figura 75 - Vista de topo da inserção da unidade modular na Rua Vaz Gondim. ........................................................................................................................................................... 162 Figura 76 - Inserção do módulo palco na Rua Vaz Gondim. ........................... 163 Figura 77 - Vista de topo da inserção da unidade modular na Rua João Pessoa. ............................................................................................................................................................... 164 Figura 78 - Inserção do módulo palco na Rua João Pessoa nas proximidades da Av. Rio Branco. .............................................................................................. 164 Figura 79 - Inserção do módulo palco na Rua João Pessoa nas proximidades da Av. Deodoro da Fonseca...................................................................... 166 Figura 80 - Vista de topo da inserção da unidade modular na Rua João Pessoa. ............................................................................................................................................................... 167 Figura 81 - Inserção do módulo palco na praça André de Albuquerque. ................................................................................................................................................................................168 Figura 82 - Inserção do módulo palco na praça André de Albuquerque. ................................................................................................................................................................................ 168 LISTA DE SIGLAS CONTRAN - Conselho Nacional de Trânsito DAEE - Design e Arquitetura de Espaços Efêmeros DETRAN - Departamento Estadual de Trânsito IED - Instituto Europeu de Design IESP - Instituto de Educação Superior da Paraíba INMETRO - Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional LGBTQIA+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais e outros grupos e variações de sexualidade e gênero SESC - Serviço Social do Comércio SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 25 1. ABRAM-SE AS CORTINAS: CIDADE E CULTURA ................................................ 32 1.1 A CIDADE E A [CONTRA]CULTURA ................................................................... 37 1.2 AS INTERVENÇÕES CONTEMPORÂNEAS NA CIDADE ................... 45 1.2.1 A paisagem urbana e a imagem da cidade ......................................... 48 1.2.2 Notas sobre as intervenções temporárias ..............................................56 1.2.2.1 Intervenções na prática: o espaço livre público como palco de atividades diversas ........................................................................................................................ 60 2. PALCO NA RUA: A PAISAGEM URBANA COMO CENÁRIO ...................... 70 2.1 AS PERFORMANCES DE RUA EM NATAL .................................................... 71 2.2 VIVÊNCIAS DE GRUPOS LOCAIS ......................................................................... 77 3. BASTIDORES: COMPREENDENDO O LUGAR TEATRAL ............................... 91 3.1 O LUGAR TEATRAL: UM BREVE HISTÓRICO DAS TIPOLOGIAS DO PALCO CONVENCIONAL ................................................................................................ 92 3.2.1 Palcos desmontáveis: principais modelos no mercado e suas características ................................................................................................................................... 98 3.2.2 A prática do teatro de rua e suas necessidades físicas ............ 105 3.3.1 BARANFONDA ............................................................................................................... 113 3.3.2 Palco Giratório SESC ................................................................................................. 115 3.3.3 Centro Pra Quem? ...................................................................................................... 117 3.3.4 Espaço ................................................................................................................................... 119 3.3.5 Zighizaghi ......................................................................................................................... 122 3.3.6 Ten Fold Engineering ............................................................................................. 124 4. O PROJETO ....................................................................................................................................... 130 4.1 CONDICIONANTES PROJETUAIS ..................................................................... 130 4.1.1 O sistema de transporte ...................................................................................... 130 4.1.2 O local de implantação ........................................................................................ 132 4.1.3 Programa de necessidades e pré-dimensionamento ............... 135 4.2 SOLUÇÃO PROJETUAL ............................................................................................... 137 4.2.1 O conceito ........................................................................................................................ 137 4.2.2 Partido arquitetônico e evolução da proposta ................................ 138 4.2.3 Solução final ................................................................................................................... 148 4.2.4 Exemplos de inserção urbana ......................................................................... 161 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 173 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 177 APÊNDICE ............................................................................................................................................... 189 25 INTRODUÇÃO Ao percorremos as diferentes áreas de Natal/RN, e de qualquer outra cidade, nos deparamos com diferentes ambientes e formas de experienciar os lugares. A capital potiguar tem uma notável carência de apropriação e diversidade em seus espaços livres públicos, sobretudo aqueles mais próximos e de fácil acesso para a população, como as praças, por exemplo. Por outro lado, há outros tantos locais onde a ocupação poderia se dar de diferentes formas ou mesmo com mais intensidade. Na mesma proporção que encontramos ruas lotadas, nos deparamos também com praças vazias e até desfiguradas. São, muitas vezes, lugares da cidade onde não há interesse em estar por motivos variados, seja por insegurança, desconforto, falta de estrutura e manutenção ou simplesmente pela falta de algo atraente. Ao nos limitarmos ao bairro da Cidade Alta1, percebemos que apesar do intenso fluxo de pessoas em virtude do comércio e órgãos institucionais ali existentes, além da população residente, grande parte dos espaços livres públicos são subutilizados, principalmente aos finais de semana, quando o comércio é reduzido ou fechado. A cena urbana da Cidade Alta nos desperta variadas sensações, seus muitos significados e histórias se apresentam de diferentes formas, a partir do entendimento de cada usuário. Sendo a arte em sua totalidade um meio de promover cultura e educação, o teatro ao ar livre destaca-se como um modo de cativar e reafirmar as relações pessoa-pessoa e pessoa-ambiente. 1 O sítio histórico do bairro da Cidade Alta foi a primeira ocupação da capital potiguar, estabelecendo-se em torno de um platô elevado onde hoje existe a Praça André de Albuquerque. O local abriga um relevante conjunto edificado composto por construções que marcam a passagem do tempo através da arquitetura, com edificações que vão do colonial ao moderno, bem como registra os eixos de crescimento e o processo de expansão de parte dos mais de quatrocentos anos de Natal. Hoje, a Cidade Alta é, além de parte do sítio histórico, um dos maiores centros de comércio popular natalense, bem como recinto de atividades institucionais da esfera pública. 26 Performances de rua são quase uma vocação natural do bairro ao longo dos anos, consolidando o espaço público como importante palco de manifestações políticas, serestas, carnavais e das próprias performances teatrais, que ajudam a compor costumes e moldar a cultura de um povo e seu lugar. As atividades momentâneas despertam novos olhares do usuário sobre a cidade, ainda que por pouco tempo. Kevin Lynch (1980) apresenta a noção de lugar como espaços apropriados de acordo com seus usos, propondo também pensar na cidade de acordo com a imagem que construímos dela. Locais como a Travessa Pax, a praça Pe. João Maria e praça Augusto Severo são lugares importantes inseridos no perímetro do sítio histórico, mas que vem se deteriorando ano após ano, não somente pela falta de manutenção, mas tambémpela não oferta de possibilidades para usufruir desses espaços de outras formas, com outras atividades. Analisando-se trechos do bairro da Cidade Alta sob a luz dos fatos descritos anteriormente, questiona-se, neste trabalho, de que forma a cena urbana e sua relação com as apresentações de rua podem despertar nas pessoas novas maneiras de usufruir das praças e vias públicas. Dentro do contexto atual, com teatros e cinemas de portas fechadas dada a pandemia do novo coronavírus, os espaços livres públicos voltaram a receber os olhares da sociedade, justamente para aquilo que é sua vocação natural: um respiro em meio à turbulência. É preciso também compreender a cidade, como posto por Carreira (2019, p.30) “como um sistema sociocultural dinâmico no qual se operam múltiplas tensões, entre as quais temos as práticas artísticas”. Quando tratamos da força dos objetos urbanos como imagem emanada ao observador, Lynch (1980) discorre sobre o conceito de imaginabilidade, abordando justamente os sentidos e a percepção da cidade através da paisagem, dos usos dos espaços e da interação entre usuários e meio. Alinhando estes pensamentos, de Lynch e Carreira, é possível inferir que 27 somos capazes de transformar a percepção dos ambientes, ressignificando e revalorizando aquilo que se está disponibilizado no meio urbano também através das performances artísticas. Com a interrupção das atividades das telas e dos palcos, o teatro de rua aparece como alternativa mais segura de se manter estas atividades além de ser um chamariz para os usuários - apresentando-se como alternativa para a prática artística durante e após a pandemia - a ocupação de diversas áreas em locais variados da cidade. Posta a demanda acima, este trabalho se propõe a demonstrar a relação entre as apresentações em locais abertos - considerando sempre sua capacidade de transformar o meio - e o espaço urbano, também fomentando debate e embasando projetos de arquitetura portátil. É nesse sentido que a portabilidade das estruturas arquitetônicas entra em questão, a articulação e modulação de equipamentos podem facilitar a adequação de espaços públicos a estas intervenções passageiras, que carregam grande potencial de propagação da cultura e teatro local, assim como podem ser um impulso inicial de novas formas de ocupar os espaços que são de todos. Sendo diversas as formas pelas quais se pode tratar das intervenções no espaço urbano através das performances do teatro de rua, no recorte deste trabalho, pretende-se sobretudo observar como essas práticas se apropriam ou não do desenho da cidade. A partir do apresentado, o presente trabalho trata do desenvolvimento de um estudo preliminar de um palco portátil e modular, capaz de ser transportado para áreas diversas da cidade ou mesmo do país. Sendo assim, o objetivo deste estudo é propor um equipamento portátil para a realização de espetáculos ao ar livre de maneira contribua e fomente a apropriação dos espaços livres públicos. Para tal, é necessário primeiramente compreender a cidade como campo de construção de cultura, analisar a paisagem urbana enquanto cenário teatral para espetáculos ao ar livre, bem como estudar a 28 relação entre o público, o espetáculo e a cenografia da cidade e, só então, aplicar em projeto a arquitetura remontável e a portabilidade de estruturas de pequeno e médio porte para a realização de exibições teatrais. A fim de responder à questão anteriormente mencionada, foram estabelecidas como pilares para a compreensão do espaço urbano e as manifestações teatrais na rua as seguintes vertentes: o conceito de cultura (WILLIAMS, 2000), a imagem da cidade e o conceito de imaginabilidade (LYNCH, 1980), a ideia de cotidiano (CERTEAU, 1998), o teatro de rua (CARREIRA, 2019) e a portabilidade de estruturas (ALBUQUERQUE, 2013). Assim, a metodologia utilizada envolve principalmente a compreensão teórica e social do cenário cultural e contracultural nacional, adaptação dos métodos utilizados por Lynch para caracterizar a imagem da cidade, além do conhecimento técnico para a implementação de elementos arquitetônicos remontáveis. Por fim, este trabalho estrutura-se em dois diferentes volumes, sendo o primeiro correspondente ao volume escrito, e o segundo o material anexo contendo pranchas técnicas e perspectivas do projeto arquitetônico. O produto teórico estará dividido em quatro capítulos, o primeiro trata da ideia de cultura, cotidiano e subversão na ocupação dos espaços livres públicos da cidade e o segundo se refere a paisagem urbana enquanto cenário, discorrendo também sobre o teatro de rua e a apropriação do lugar, as vivências de grupos teatrais entrevistados e considerações sobre intervenções temporárias locais. Já o terceiro e quarto capítulos abordam os estudos de referência projetual e desenvolvimento da proposta, de seu conceito ao seu estudo preliminar, fazendo por fim alguns apontamentos e considerações sobre o trabalho desenvolvido. 29 30 31 32 1. ABRAM-SE AS CORTINAS: CIDADE E CULTURA Todas as cidades transformam-se e refletem a cultura de seus habitantes, isto é fato. Apesar desta informação poder ser considerada até intuitiva, é necessário apresentar os fatos com clareza e isto significa reafirmar que as cidades adquirem características próprias ao longo de sua história de ocupação - política, econômica e todas as esferas que tocam suas fundações - e é a partir de tais particularidades que se entende a origem de suas dinâmicas socioculturais e espaciais. Esta etapa inicial diz respeito às relações entre cultura e meio urbano, com ênfase nas ocupações espontâneas do espaço público, como os protestos, festivais e o próprio teatro de rua, que é também uma forma de uso espontânea e subversiva de praticar a apropriação da cidade. Além de introduzir a discussão sobre as modificações temporárias da urbe através dos movimentos de contracultura que, posteriormente, se tornaram símbolo de luta e contestação da sociedade contemporânea, dispõe-se aqui o entendimento de conceitos que permitam a compreensão dos processos de conformação de relações histórico-sociais que estão atreladas às transformações políticas, socioespaciais e culturais, pretende-se compreender a cidade como ambiente produtor de cultura. Raquel Rolnik (1995) ao discorrer sobre a definição de cidade, acaba por dividi-la em quatro diferentes categorias: a cidade como um ímã, sendo esta o espaço com condições favoráveis ao agrupamento e formação de comunidades, como rios, lagos e terras férteis; a cidade como escrita, sendo então um lugar onde através da escrita pode-se registrar os bens, as memórias e a própria arquitetura; a cidade como política, que se define pela formação do conjunto, pelo pensamento coletivo e pela organização dos espaços; e pôr fim a cidade como mercado, que se caracteriza sobretudo por potencializar sua capacidade produtiva e estabelecer relações de trocas de produtos. Para Rolnik (1995, p.16) a cidade, enquanto local permanente de moradia e 33 trabalho, se implanta quando a produção gera um excedente, uma quantidade de produtos para além das necessidades de consumo imediato, a urbe moderna portanto, é a somatória de todas as condições oferecidas nas categorias mencionadas. Além de suas delimitações territoriais, este aglomerado de pessoas realizando constantes trocas de produtos, serviços e saberes acaba tornando parte do grupo um conjunto de práticas, ou seja, o cotidiano. Definido pelo historiador francês Michel de Certeau (1998) como operações singulares que dizem muito sobre a identidade de uma sociedade ou indivíduo, o cotidiano está diretamente relacionado aos modos de relacionar-se e agir para com o outro e para com o ambiente onde está inserido. Com isto, Certeau parte do princípio de que são as relações sociaisque determinam as características dos indivíduos e não o contrário, por isso, é possível também compreender o local, seja ele o meio urbano ou rural, onde se ordena determinada sociedade. A partir das ideias de Certeau e Rolnik, podemos compreender que as relações entre grupos de indivíduos e seus costumes estão diretamente relacionados à conformação da cidade, sendo esta o objeto palpável do registro das atividades sociais que conferem significado ao lugar, como infere Raquel Rolnik (1995): A arquitetura da cidade é ao mesmo tempo continente e registro da vida social: quando os cortiçados transformam o palacete em maloca estão, ao mesmo tempo, ocupando e conferindo um novo significado para um território; estão escrevendo um novo texto. É como se a cidade fosse um imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras e frases. É esta dimensão que permite que o próprio espaço da cidade se encarregue de contar sua história. (ROLNIK, 1995, p.18) As bases da cidade que modifica e é modificada pelo cidadão necessitam de uma plena interação pessoa-ambiente para seu desenvolvimento, não no sentido numérico que faz crescer o Produto Interno Bruto, o adensamento populacional ou quão distante consegue ficar a 34 periferia. Neste caso, tratamos da evolução desta urbe enquanto criador e criatura, em constante mudança. São estas modificações e vivências que marcam a memória de um povo ou que se firmam como parte dos costumes, que podem ser entendidas como parte daquela cultura. Originalmente, o termo cultura vem do latim culturae, que significa “cultivar”, “cultivar conhecimentos” ou mesmo “ação de tratar”. Atrelado inicialmente à agricultura, este cultivo de vegetais se expande para objetos e costumes, dando mais complexidade ao termo que, na sociologia, ainda pode ser objeto de estudo sob diversas perspectivas, como afirma o pensador britânico Raymond Williams: Começando como nome de um processo - cultura (cultivo) de vegetais ou (criação e reprodução) de animais e, por extensão, cultura (culto ativo) da mente humana - ele se tornou, em fins do século XVIII, particularmente no alemão e no inglês, um nome para a configuração ou generalização do "espírito" que informava o "modo de vida global" de determinado povo. (WILLIAMS, 2000, p. 10) Desta forma, se a cidade é, pelo menos em parte, a representação física das manifestações e costumes de seus habitantes, tudo aquilo que nos cerca, faz parte da cultura do meio onde estamos inseridos. Na arquitetura e no urbanismo, esses costumes que atravessam o tempo se rebatem, por exemplo, no traçado das cidades, nas conformações dos lotes, nas relações entre as pessoas e os espaços livres públicos da cidade e até mesmo na disposição dos cômodos das residências. Estes exemplos singelos são formas palpáveis de indicar que, ao nosso redor, tudo é cultivo de ações. Williams (2000) afirma que, por exemplo, é comum que um certo tipo de moradia se desenvolva dentro de determinada cultura, em perfeita relação com o seu meio ambiente físico específico, mas também com seu sistema familiar, que gera costumes em seu núcleo e assim, passa a expressar as características de seus residentes. Para abordarmos então a cidade contemporânea, isto é, a cidade que vem se conformando ao longo das últimas décadas enquanto instituição política e mercadológica, assim como sua relação e reflexão a partir da 35 perpetuação ou mudanças das ações dos habitantes - seus comportamentos culturais - é preciso regressar no tempo e compreender de que forma estão interligados estes agrupamentos de pessoas e a criação de seus cotidianos diante da conformação socioespacial. Ao redor do globo, as características que se tornam comuns entre povos de um mesmo país, município ou mesmo de um bairro, firmam-se diante de uma nova sociedade, cuja cultura não mais diz respeito a cultivar os alimentos, mas se reflete em sua música, comida, língua e na conformação de suas urbes. A cidade neoliberal urbanizada se expandia a todo vapor principalmente ao longo da segunda metade do século XX, com o avanço da tecnologia e o desenvolvimento de uma sociedade conservadora disposta a ir cada vez mais fundo na busca pela produção e consumo de bens materiais. Esta ânsia pelo consumo durante os anos 1950 era conduzida pela recuperação da economia estadunidense após a grande crise econômica de 1929 e a retomada das indústrias à produção de bens de consumo após a Segunda Guerra Mundial. Nos grandes centros urbanos, a crescente valorização do automóvel - um dos principais sonhos de consumo da população - atrelada a priorização do transporte rodoviário refletia em diversas implicações no contexto das cidades, o crescimento exacerbado e conformação das grandes metrópoles que negligenciam a escala humana dentro do contexto da cidade são alvos de inúmeras pesquisas sobre o urbanismo que ganharam notoriedade a partir de estudiosos como Jane Jacobs2 e Christopher Alexander3. 2 Ativista social e escritora cuja obra é dedicada ao estudo da cidade, lutou contra a globalização empresarial e incitou urbanistas e empreendedores a lembrar da importância das comunidades e da escala humana na confirmação dos centros urbanos. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/601385/feliz-aniversario-jane-jacobs>. Acesso em 02 de março de 2021. 3 Arquiteto e urbanista austríaco que teve a obra amplamente discutida por levantar questionamentos acerca do planejamento urbano disseminado durante o modernismo, corroborando muitas das ideias de Jane Jacobs. Disponível em: <https: //urbanidades.arq.br/2009/07/27/christopher-alexander-a-cidade-nao-e-uma-arvore/>. Acesso em 02 de março de 2021. 36 Este molde capitalista de cidade tende, ainda hoje, a afastar as pessoas dos espaços públicos como a rua, a praça e as feiras livres, constantemente induzindo o usuário a inserir-se em ambientes fechados cujo foco está em consumir, influenciando no esquecimento do espaço urbano enquanto experiência. Jane Jacobs (1961), em sua obra Morte e Vida de Grandes Cidades, diz que as ruas e calçadas são os órgãos vitais de uma cidade, pois são nelas que se percebem a diversidade e a intensidade de usos, são o espaço onde se convive e se integram as pessoas e, por isso mesmo, são o palco dos verdadeiros protagonistas da cidade: os usuários. Figura 1 - Jovens em parque da cidade de Nova York em meados dos anos 1950. Fonte: fabiosa.com.br/rsmab-augic-fotografias-nostalgicas-que-mostram-a-vida-na-decada- de-40-50-e-60/. O entendimento dos espaços públicos, sobretudo os que propunham algum lazer e cultura, passam a ser vistos como pontos estratégicos de fortalecimento desta cidade cada vez mais inóspita voltada para o consumo. Certeau (1998) afirma que a vida urbana se encarrega de remontar no território tudo aquilo que o projeto urbanístico exclui. Assim, tudo aquilo que fica aquém das reais necessidades da população, acabam sendo ressignificadas através das dinâmicas sociais, seja através da reinterpretação dos usos de tais 37 espaços ou através do abandono através do não reconhecimento deles. Sobre estas ressignificações dos espaços públicos, o sociólogo Rogério Proença Leite (2002) reflete que quando estas ações - de apropriar-se ou não dos espaços da cidade - atribuem sentidos de lugar e sobretudo pertencimento diante a cultura de uma determinada comunidade, essas espacialidades incidem da mesma maneira na construção de sentidos para as ações do cotidiano, dotando publicamente os espaços urbanos de tensões socioespaciais. 1.1 A CIDADE E A [CONTRA]CULTURA A atmosfera cultural predominante principalmente de grandes cidades dos Estados Unidos da América e países do continente europeu como Inglaterra e França na década de 1950 originou a chamada "juventude transviada", caracterizada por uma forte oposição aos valores estabelecidos dasociedade (PEREIRA, 2016). Durante a década de 1960 o mundo estava envolto em uma forte tensão política e foi da juventude e das minorias que partiram os principais movimentos que vieram a modificar em diversos momentos as dinâmicas espaciais e culturais em diversos lugares ao redor do globo. As comunas estudantis, os sindicatos de trabalhadores, além dos movimentos antirracistas e em defesa da liberdade sexual traziam de volta a ideia de comunidade que vinha se perdendo diante do crescimento das metrópoles e o incentivo da noção individualista do cidadão. Segundo Michel Maffesoli, Agora, cada vez mais, nos damos conta de que mais vale considerar a sincronia ou a sinergia das forças que agem na vida social. Isso posto, redescobrimos que o indivíduo não pode existir isolado, mas que ele está ligado, pela cultura, pela comunicação, pelo lazer, e pela moda, a uma comunidade, que pode não ter as mesmas qualidades daquelas da Idade Média, mas que nem por isso deixa de ser comunidade (MAFFESOLI, 2000, p. 114). Desta forma, entende-se que o estar em comunidade é essencial para garantir a solidez de um movimento cultural. Foi diante do ambiente coletivo 38 destes grupos que se propagaram as ideias da época, buscando dar repercussão às experiências que vão em oposição aos costumes da época. Neste cenário em que estão inseridos os principais movimentos de contracultura como o movimento hippie, o punk, a rebelião de Stonewall e os levantes estudantis, esta ideia de comunidade difundida entre a juventude daquela geração teve extrema importância para os anos 1960 enquanto ponto de partida para a sequência de acontecimentos que se daria dali por diante. O “Maio de 1968” é considerado por muitos estudiosos como este ponto de partida, o movimento iniciado nas ruas de Paris por estudantes e trabalhadores reivindicavam, como aponta o pesquisador Tiago Vieira (2008), uma mudança radical nos padrões da sociedade ocidental e lutavam sobretudo pelos direitos das minorias, como as liberdades civis democráticas e a igualdade de gênero, raça e orientação sexual. Tais reivindicações, comuns aos levantes existentes espalhados pelo ocidente, se tornaram símbolos de uma cultura jovem que provinha da rua, já a natureza anárquica destes acontecimentos se refletia também na cidade, mesmo que temporariamente. Figura 2 - Cenas de enfrentamento entre estudantes e policiais. Fonte: www.hypeness.com.br/2018/05/e-proibido-proibir-como-o-maio-de-1968-mudou- para-sempre-os-limites-do-possivel/. 39 Neste contexto, é importante também ressaltar o papel de elementos fundamentais para a construção do movimento social: a rua e o pixo. Enquanto lugar de contestação social, reivindicações e ressignificação de um conjunto de imposições institucionalizadas pelo mercado financeiro, pelo estado e pelos padrões sociais, a rua se manifesta como palco das grandes passeatas e paralisações, mas também redefine a lógica dos objetos que compõem a cidade. O então popular dizer “A barricada fecha a rua, mas abre a via” reforça o caráter contestatório de uma alteração temporária, a barricada modifica a rua ao impedir o fluxo de automóveis, mas abre espaço para a reinvenção de tal ambiente. O pixo, por sua vez, aparece como ferramenta de demarcação do espaço, espalhar as demandas nas paredes da cidade faz parte da ideia transgressora de tomar posse da urbe é territorializar a cidade de tal forma que se faz ocupar a rua ainda que não se esteja nela. Figura 3 - Pichações pela cidade de Paris em 1968. Da esquerda para a direita, de cima para baixo estão os dizeres “Sejam realistas, exijam o impossível”, “É proibido proibir!”, “Debaixo do calçamento, a praia” e “Adeus, de Gaulle, adeus”. Fonte:www.hypeness.com.br/2018/05/e-proibido-proibir-como-o-maio-de-1968-mudou- para-sempre-os-limites-do-possivel/. Adaptado pela autora. 40 O ano de 1969 foi marcado pelo auge do movimento hippie, tendo como principal acontecimento o Festival de Woodstock, realizado em Bethel, uma pequena cidade do estado de Nova York onde se reuniram cerca de 500 mil pessoas durante os três dias de evento. A ideologia hippie tinha seus valores pautados no amor e na liberdade, sendo suas demandas de luta bastante similares às dos levantes estudantis, como o negacionismo dos padrões sociais, a igualdade racial e a liberdade sexual. Figura 4 - Multidão de espectadores no Festival de Woodstock, 1969. Fonte: http://hid0141.blogspot.com/2017/03/22-belas-fotos-de-woodstock-que-fazem.html. Embora não tenha um impacto direto na dinâmica da cidade, como as barricadas e as pichações dos estudantes franceses, a série de festivais de mesma natureza de Woodstock foram fundamentais para a disseminação de uma nova cultura e valores, que se manifestaram - segundo Carolina Pereira (2016) - nas artes, moda, economia, bem como nas dinâmicas sociais que se 41 refletem também nas interações pessoa-ambiente, onde há uma nova cultura de ser e estar. Para Raymond Williams (2000, p. 208), a organização social da cultura, como um sistema de significações realizado, está embutida em uma série completa de atividades, relações e instituições, das quais apenas algumas são manifestamente "culturais". Assim, entende-se que tudo aquilo que ganha um novo significado para um povo, passa a afetar direta ou indiretamente os diversos “componentes” que formam sua cultura. Toda esta efervescência sociocultural transcendeu as fronteiras de seus países de origem, a agitação causada pelos levantes franceses e estadunidenses respingou também países como Brasil, Itália, Rússia e Alemanha. A partir de 1964 o Brasil enfrentou um regime ditatorial, momento em que se intensificaram as relações entre os movimentos estudantis e as atividades do setor cultural, em muitas ocasiões compartilhando entre si os questionamentos ideológicos e dando vazão aos ideais políticos da contracultura local naquela época. De acordo com Pereira (2016, p. 22) somente em 1968 essa repressão da polícia gerou repercussão, quando em 28 de março, um incidente com polícia e estudantes da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço derivou na morte de Edson Luís, estudante de um curso secundário. Tal incidente foi decisivo para o início de uma série de negociações infrutíferas com o governo, que por sua vez desencadearam ocupações de prédios universitários e uma sequência de manifestações que ganharam a adesão de diversas camadas sociais, sendo seu ponto mais alto a “Passeata dos Cem Mil” liderada pelo movimento estudantil. De acordo com André Carreira (2019, p. 44), esta lógica ordenadora classicista e autoritária esvazia a silhueta urbana de seus sentidos mais autônomos, e pouco dialoga com as necessidades diversas da cidadania. Ao 42 referir-se a isso, o autor não trata da repressão militar em específico, mas de toda a tentativa de higienizar a cidade produzindo um simulacro de urbe onde se limita a espontaneidade dos acontecimentos na cidade. Figura 5 - Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, no Rio de Janeiro. Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-ha-51-anos- passeata-dos-cem-mil-grande-ato-contra-ditadura-militar.phtml. Assim como fora do país, a esfera artístico cultural era influenciada pelo cenário sociopolítico, culminando em movimentos como o hippie e o punk, no Brasil floresceu a Tropicália, que assim como os exemplos citados anteriormente, passo a influenciar a moda, a política, as artes em todos os segmentos e as dinâmicas culturais, incluindo o próprio carnaval. Apesar de ter sido um período marcado pela repressão, foi através dos protestos e da arte, que se fez possível habitar e construir a cidade, como posto por Leite (2002, p. 120) ao afirmar que como produto cultural, a cidade é sempre o resultado convergente de distintas influências formais e cotidianas.Diante do contexto de regime militar vigente no Brasil, o teatro de rua passou por sérias limitações - embora a classe teatral tenha firmado célebres 43 nomes no meio artístico nacional, como José Celso Martinez Corrêa e Augusto Boal - posto que o teatro em si, como meio de expressão artística, foi duramente reprimido desde os primeiros momentos da ditadura instaurada. Apesar disto, foi fundamental na integração de movimentos político-culturais, uma vez que propiciou o encontro físico com a plateia, foi utilizado como ferramenta de conscientização e propagação de ideias. Visando juntar cultura e consciência popular para fomentar a luta contra o regime de direita, grupos como o Teatro Arena levavam seus espetáculos de teatro para as favelas e para as portas de fábricas (FIGUEIREDO, 2015). Postos os apontamentos acima, entende-se que estes movimentos foram, do ponto de vista social, político e cultural, os precursores de uma série de outros acontecimentos de engajamento civil similares que vieram a ocorrer nos anos posteriores. O punk, que se popularizou já na década de 1970, influenciou a música, os costumes da população mais jovem e o pensamento político destes, assim como ocorrera anteriormente com o movimento hippie. No Brasil dos anos 1980, as manifestações do “Diretas Já” que davam seguimento à luta contra o regime ditatorial ao qual estava submetido o país. Ao redor do mundo, muitos outros levantes, marchas e movimentos populares continuaram a acontecer e se ressignificar, a rebelião de Stonewall tornou-se símbolo do Orgulho LGBTQIA+4, os levantes da juventude que ressoam ainda hoje em movimentos como as Jornadas de Junho em 2013 no Brasil, as revoltas chilenas em 2019 e tantas outras. Assim sendo, o que se compreende diante do exposto é que, a partir da significação atribuída aos movimentos das décadas de 1950, 60 e 70, estes continuam a influenciar culturalmente as relações sociopolíticas de hoje, uma vez que foram o ponto de partida para 4 LGBTQIA+ é um movimento político e social que defende a diversidade e busca mais representatividade e direitos para a comunidade. O seu nome demonstra a sua luta por mais igualdade e respeito à diversidade. A sigla abrevia as palavras Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais e Assexuais. O símbolo “+” é utilizado para representar outros grupos e variações de sexualidade e gênero. Informação disponível em: <https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/dicas/qual-o-significado-da-sigla-lgbtqia>. Acesso em: 30 de março de 2021. 44 que a sociedade civil estabelecesse novas relações com a cidade, reverberando certas ações, falas e ideais ainda na atualidade, fazendo, portanto, parte da cultura, pois como aponta Raymond Williams (2000) ao aprofundar-se na discussão sobre cultura, considerando-a um sistema de significação mediante o qual necessariamente uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada. Onde se pretende chegar, afinal, é no entendimento destes contra-usos da cidade como forma de modificação das dinâmicas cotidianas. Se a cidade se propõe a ser uma instituição que setoriza seus espaços de acordo com a sua capacidade de gerar valor de mercado - como o faz ao priorizar a rua para os automóveis, os shoppings centers para o lazer e consumo - se ofusca suas praças e parques, são as ocupações que contrariam estas expectativas capitalizadas que dão a estes espaços novos significados e que conferem a eles o caráter público. Embora o espaço público se constitua, na maioria das vezes, no espaço urbano, devemos entendê-lo como algo que ultrapassa a rua; como uma dimensão socioespacial da vida urbana, caracterizada fundamentalmente pelas ações que atribuem sentidos a certos espaços da cidade e são por eles influenciadas. (LEITE, 2002, p. 116) Todas estas manifestações mencionadas acima tratam de mudanças que alteraram as dinâmicas das cidades, não apenas no sentido físico-espacial, mas também culturalmente, interferindo em suas memórias, costumes e relações pessoa-pessoa e pessoa-ambiente. A prática de subverter a ordem dos espaços públicos é, portanto, o que confere uma nova cultura de cidade. É diante do discutido até agora, que pode-se entender que as dinâmicas que fomentam dentro do ambiente urbano a apropriação subversiva dos espaços livres públicos por parte dos usuários da cidade podem também partir tanto de movimentos radicais, quanto de movimentos artísticos e que a real potência de tais acontecimentos é sua perpetuação na memória do cidadão, cultivada e replicada em pequenas outras ocupações que desafiem 45 o cotidiano, a cultura deve ser eixo fundamental para a busca de soluções criativas para a existência coletiva na cidade. 1.2 AS INTERVENÇÕES CONTEMPORÂNEAS NA CIDADE Muito debatido em campos de estudos diversos, o conceito de paisagem é deveras amplo. Tratado de diferentes formas dentro da própria geografia, a interpretação de tal conceito sofre variações não somente na abordagem, observam-se ainda tendências “nacionais”, mostrando que seu entendimento depende também das questões culturais e discursivas, como aponta Raul Schier (2003, p. 80). No urbanismo, a paisagem urbana é tratada por autores como Gordon Cullen, Kevin Lynch e Juan Luis Mascaró, cujas contribuições são inquestionáveis e influenciam arquitetos e urbanistas ainda nos dias de hoje. Na geografia escolar, aprendemos genericamente que a paisagem se trata da extensão de terra que se pode apreciar a partir de um determinado lugar, ou seja, o que se vê de um determinado campo visual. Do ponto de vista artístico, é tratado por Hernani Mendes (2016, p. 40) como a percepção daquilo que nos cerca, seja o que vemos natureza ou realidade, a forma de ver e também como significamos essa visão. A partir do pensamento de Mendes (2016), podemos atribuir também um caráter metafórico à paisagem: o cenário. Se pretendemos tratar da paisagem enquanto cenário, é necessário compreender do que se trata a cena, a paisagem e como estes dois conceitos se relacionam. No teatro convencional5 - como os de arena, elizabetano ou italiano - a cenografia tem o papel de ambientar o espetáculo, inseri-lo em um meio, uma paisagem, seja ela um ambiente interno ou externo. Já no teatro de rua, foco desta pesquisa, a paisagem aparece como elemento pré-existente 5 Por teatro convencional entende-se como o espaço construído do teatro clássico, enquanto edifício projetado para tal finalidade. 46 à performance, podendo ou não ser considerada pelo performer6 como componente da apresentação, seja a arquitetura, os sons, os cheiros ou as pessoas que interagem durante o ato de encenar. André Carreira (2001, p. 150) disserta que seria mais adequado trabalhar com a ideia de que a rua realmente significa, no caso da expressão “teatro de rua”, todos aqueles espaços públicos que não são salas convencionais para representações teatrais, fazendo toda a cidade, da viela a praça central, um palco para o teatro. Thiago R. F. da Silva (2009), ao tratar da possibilidade de utilizar a paisagem como cenário, aponta que se pretendermos compreender o mundo através de uma perspectiva teatral, é preciso ater-se à ideia de que não há teatro sem espaço cênico. Consequentemente, se há espaço cênico, é possível que haja um certo arranjo das coisas - que pode ser a própria arquitetura ou as dinâmicas sociais ali existentes - neste espaço cuja lógica e significado sejam passíveis de uma interpretação e assim, complementam a encenação. Partindo da origem, no teatro grego, a skènè correspondia à parede ou pano que separava os bastidores do palco. Foi a partir da decoração da skènè 6 Aqui, entende-se, a partir do conceituado por Patrice Pavis em seu “Dicionário do Teatro”, que há uma diferença entre ator e performer, sendo destinado a este segundo o seguinte verbete: 1.Termo inglês usado às vezes para marcar a diferença em relação à palavra ator, considerada muito limitada ao intérprete do teatro falado. O performer, ao contrário, é também cantor, bailarino, mímico, em suma, tudo o que o artista, ocidental ou oriental, é capaz de realizar (to perform) num palco de espetáculo. O performer realiza sempre uma façanha (uma performance) vocal, gestual ou instrumental, por oposição à interpretação e à representação mimética do papel pelo ator. 2. Num sentido mais específico, o performer é aquele que fala e age em seu próprio nome (enquanto artista e pessoa) e como tal se dirige ao público, ao passo que o ator representa sua personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro. O performer realiza uma encenação de seu próprio eu, o ator faz o papel de outro (PAVIS, 1999, p. 284). Assim, a luz desta definição, entende-se que todo aquele que ocupa a rua em ato de representar, a si ou a algo, como um músico, um grupo de militantes ou uma estátua viva e o próprio ator ao tomar a urbe como um espaço além do lugar onde se representa um texto, pode ser considerado um performer da cidade. 47 para complementar a encenação que surgiu a cenografia propriamente dita e, consequentemente, o cenário (SILVA, 2009). Segundo Patrice Pavis: O termo cena conhece, ao longo da história, uma constante expansão de sentidos: cenário, depois área de atuação, depois o local da ação, o segmento temporal no ato e, finalmente, o sentido metafísico de acontecimento brutal e espetacular (“fazer uma cena para alguém") (PAVIS, 2008, p. 42). Apesar dos muitos significados empregados ao termo cena, a ideia de cenário vai muito além do pano de fundo onde a encenação acontece, a cenografia, como posto por Silva (2009), se ocupa também do sentido simbólico do espaço cênico. Desta forma, tratamos não somente de sua composição, mas também de seus significados, assim como acontece com a definição de paisagem. Para Milton Santos a paisagem é: um conjunto de formas que, num dado momento, exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são as formas mais a vida que as anima. (SANTOS, 2002, p.103). Assim, alinhando os pensamentos de Santos e Silva, pode-se afirmar que a paisagem como cenário trata de um espaço repleto de um conjunto de diferentes formas e significados que se somam durante o espetáculo. Além disso, ao considerar a paisagem urbana - sob a compreensão de Roberto Adam (2008, p. 63) fundamentada por Gordon Cullen (1983) - como a arte de tornar coerente e organizado, visualmente, o emaranhado de edifícios, ruas e espaços que constituem o ambiente urbano, entende-se que esta denominação é também uma ferramenta de observação e análise do meio, atentando especialmente para a interpretação das relações entre o ser humano e o meio urbano, não somente do meio natural. Neste ponto, o pensamento de Cullen aproxima-se da ideia de legibilidade tratada pelo urbanista Kevin Lynch (1980, p. 13) para ele descrita como a facilidade com a qual as partes podem ser reconhecidas e organizadas numa estrutura coerente. 48 Estes conceitos, embora muito amplos, quando direcionados às performances de rua, se encontram em diversos pontos, como na qualidade da paisagem urbana - aqui tratando também dos sons, cheiros, fluxos, e visuais - sua facilidade de leitura pelo usuário e sua capacidade de despertar a curiosidade do usuário, seja por suas características positivas ou negativas, possíveis de serem transformadas temporariamente em cenários, como nos carnavais de rua, por exemplo. 1.2.1 A paisagem urbana e a imagem da cidade Apesar da urbanização ser caracterizada pelas intervenções humanas no meio e as cidades sejam criadas a partir de suas necessidades e projetos, é somente com base na leitura e significação de cada sítio - por parte do cidadão - que a cidade ganha significado, isto é, se torna um lugar7. Michel de Certeau (1998) propõe o conceito de lugar praticado, o espaço apropriado de acordo com seu uso, ou seja, onde as pessoas constroem seus próprios significados e que não necessariamente coincidem com os propostos pelas instituições que projetam o espaço urbano. Habitar é viver e experienciar a urbe, não apenas na mera condição de transeunte, como posto por Marc Augé (2012) ao tratar também dos “não lugares”8. A construção da imagem da cidade, por sua vez, dá-se a partir da diversidade das interações, tanto pessoa-pessoa quanto pessoa-ambiente, pois são elas que dão ao usuário a possibilidade de criar sua própria impressão do lugar onde está inserido. Lynch (1980) aponta a cidade não apenas como um objeto perceptível, mas como o produto das inúmeras transformações particulares de cada construtor do ambiente e propõe que tratemos dela com 7 A ideia de Lugar, para Marc Augé, é relacional e histórica. Trata-se de um lugar antropológico, que contém signos e que oferece às pessoas que dele usufruem a possibilidade de incorporá- lo à sua identidade. 8 Seria para Augé o espaço oposto ao lugar antropológico, ou seja, sem identidade ou significado suficiente para ser incorporado ao ser humano. 49 base nessa imagem construída ao longo do cotidiano. André Carreira (2019), partindo do estudo de Lynch e Augé, aponta que as tentativas de fabricação de uma imagem da cidade podem estar relacionadas com a ideia de não lugar, para Carreira, todo acontecimento teatral na rua oferece a possibilidade de estabelecer relações, definindo assim, lugares praticados. Quando uma instituição, como por exemplo uma prefeitura, tenta ‘vender’ ou construir uma “autoimagem” é porque tem intenções de influenciar os cidadãos com esta ideia, criando um significado que possa sedimentar e fixar-se no imaginário popular. Assim posto, entende-se que o teatro que se faz no espaço público aberto tem um caráter de mudança, efêmera ou permanente, mesmo os espaços sem valor antropológico, não-lugares, podem ser reinterpretados a partir de novas práticas disruptivas, cujo impacto seja tal que consiga modificar a percepção dos usuários sobre o recinto. Se uma imagem deve ter um valor para a orientação no espaço vivo, tem de ter diversas qualidades. Tem de ser suficiente, verdadeira num sentido pragmático, permitindo ao indivíduo operar dentro do seu ambiente de acordo com um limite desejável. (LYNCH, 1960, p.19) Para Lynch, há três fatores essenciais para a percepção do ambiente da cidade: a identidade, a estrutura e o significado; todavia, essa assimilação se dá tanto a partir do olhar do usuário para com a paisagem - que necessita de clareza e certo nível de organização, tornando todo o processo bilateral - quanto de sua circulação. Isto implica que o fluir pela urbe é de enorme importância para o desenvolvimento da apreensão do espaço praticado. Caminhar, conhecer e ocupar os lugares são atividades fundamentais para a construção da cidade individual de cada usuário, pois nos incita o olhar atento, o estar imerso. Assim, ao vivenciarmos a cidade, dotamos os elementos de significado, prático ou simbólico, ou seja, o atribuímos identidade, bem como compreendemos a estrutura da urbe e o modo como este meio se organiza através de limites, caminhos, pontos nodais e outros elementos, reforçando ou construindo, portanto, uma imagem própria. 50 À luz do pensamento destes autores, é possível compreender que para que a cidade tenha um significado além do seu aspecto formal, ou seja, se torne um lugar praticado, a imaginação e as ações espontâneas são fundamentais. É necessário ter gente nas ruas, nas praças, nos parques e em todos os cantos da cidade, desempenhando e usufruindo do cotidiano, mas também das práticas lúdicas e espontâneas que acontecem no meio urbano. Nada é vivenciado em si mesmo, mas em relação ao ambiente em que está inserido, aos acontecimentos que se deram
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