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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS LIANA BATISTA PRECARIZAÇÃO NO HOME OFFICE: CONDIÇÕES DE TRABALHO EM UM CALL CENTER NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN EM TEMPOS DE PANDEMIA NATAL – RN 2020 LIANA BATISTA PRECARIZAÇÃO NO HOME OFFICE: CONDIÇÕES DE TRABALHO EM UM CALL CENTER NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN EM TEMPOS DE PANDEMIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio grande do Norte (PPGCS/UFRN), como requisito à obtenção do grau de Mestre. Linha de pesquisa: Dinâmicas e Práticas Sociais. Orientador: Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva NATAL – RN 2020 LIANA BATISTA PRECARIZAÇÃO NO HOME OFFICE: CONDIÇÕES DE TRABALHO EM UM CALL CENTER NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL-RN EM TEMPOS DE PANDEMIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio grande do Norte (PPGCS/UFRN), como requisito à obtenção do grau de Mestre. Linha de pesquisa: Dinâmicas e Práticas Sociais. BANCA EXAMINADORA Apresentada em: ______/______/______ ___________________________________________________________ Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva (Unila / PPGCS-UFRN) ___________________________________________________________ Profª. Drª. Bárbara Geraldo de Castro (Unicamp) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes (PPGAS/UFRN) ___________________________________________________________ Profª. Dr. Jose Antônio Spineli Lindozo (UFRN) https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=6347248 Ao amigo C. que encontrei em uma viagem errante e me deu de presente o caminho certo AGRADECIMENTOS Muito me orgulha demonstrar nessa sessão que o processo de construção do trabalho, por si só, serve de antítese à retórica individualizante, falsamente meritocrática do neoliberalismo. Essa pesquisa não é fruto apenas das horas intermináveis em que li, estudei, refleti e escrevi sobre alguns dos impactos que o mundo do trabalho sofreu com o advento da pandemia de covid-19. Ela é fruto direto das relações sociais em que estou inserida, dos laços de respeito profissional, admiração e afeto que venho construindo desde a minha chegada na graduação do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte no ano de 2015. Essa pesquisa não teria sido desenvolvida sem a atenção, a disponibilidade, a colaboração e a ajuda generosa de pessoas que reservaram algo do seu tempo e dos seus conhecimentos para me iluminar em algum ponto ao longo de todo o caminho do mestrado. Penso que nisso se traduz um dos antídotos para o neoliberalismo: ninguém é self made. Agradeço, imensamente, a Mikelly Gomes da Silva e Ana Patrícia Dias Sales, pessoas com quem travei as primeiras conversas sobre possibilidades para essa pesquisa, suas observações preciosas sobre os caminhos metodológicos que eu precisaria percorrer foram decisivas para o delineamento do trabalho. A Cesar Sanson pelos longos e-mails com sugestões e indicações de leituras e, mais ainda, por sua posterior participação na fase de qualificação dessa dissertação. O ponto de vista mais preciso de um especialista da Sociologia do Trabalho foi importante para que eu adotasse uma visão mais geral sobre os processos trabalhistas ocorridos desde a década de 1970, inclusive corrigindo erros e imprecisões do trabalho. A Paulo Victor Leite Lopes, tão essencial em toda a trajetória dessa pesquisa, pelas conversas e áudios trocados, sugestões de leituras, matérias enviadas, colocações na fase de qualificação, nova participação na banca de defesa e por todas as trocas que não podem ser mensuradas no campo circunscrito das palavras. A todas as trabalhadoras e trabalhadores do call center que se dispuseram a compartilhar experiências comigo, algumas vezes em tom de denúncia e tantas outras em tom de desabafo e desespero sem eco. Uma angústia que revela o clamor por um outro tipo de vida, algo que eu espero ter sido capaz de retratar nessa pesquisa. Aos colegas de mestrado Jaildson Cavalcanti e Alusk Maciel que, de tão abertos e acolhedores, ajudaram a suavizar as agruras que percorri no mestrado. Ao meu orientador Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva que encontrei com o trabalho já iniciado, mas que foi determinante na correção da rota ainda claudicante da pesquisa. Sua paciência comigo e compromisso profissional foram, em grande medida, responsáveis por me oferecer a segurança necessária ao desenvolvimento e conclusão desse estudo. Esse trabalho não teria sido realizado sem o empenho e a generosidade da pessoa aqui nomeada “Cazé”, responsável pela construção da ponte que me levou ao objeto maior desta pesquisa. Pela parceria que me garantiu não só concluir o mestrado, mas também adentrar uma nova etapa no meu processo de desenvolvimento intelectual e humano, profundamente agradeço. À Prof. Drª. Bárbara Geraldo de Castro e ao Profª. Dr. Jose Antônio Spineli Lindozo pela pronta disponibilidade em aceitarem o convite para avaliar esta pesquisa na etapa final de defesa da dissertação. Finalmente, presto reconhecimento ao papel que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) exerceu financiando esse estudo. Sem esse investimento, eu não poderia ter me dedicado exclusivamente ao projeto. Ressalto a importância da continuidade do financiamento de pesquisas em ciências humanas para que seja possível conhecer as especificidades da realidade brasileira e, quem sabe, avançar na construção de um outro projeto de país. https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=6347248 Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos. Ideias para adiar o fim do mundo Ailton Krenak RESUMO A emergência da Covid-19 declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em março de 2020, alterou as dinâmicas sociais pelo mundo e, em especial, àquelas relacionadas ao trabalho. A adoção do trabalho remoto (conhecido como home office no Brasil) surgiu como uma saída para a crise, embora trate-se de um modelo de trabalho construído a partir do ethos das classes dominantes. Na região metropolitana de Natal-RN, funcionárias de uma empresa de call center passaram a trabalhar em casa, o que proporcionou a proteção da sua saúde, mas também a entrada de sistemas de controle de produtividade e vigilância da empregadora nos espaços íntimos das funcionárias. Esses sistemas são fundados em bases tayloristas e panópticas, expressões da racionalidade neoliberal que pretende colonizar as subjetividades das trabalhadoras. Pensada a partir da categoria precarização do trabalho, a pesquisa se propõe a investigar as experiências das trabalhadoras frente às disparidades dos ethos das classes envolvidas na construção imagética e adoção do home office e a tentativa de colonização de suas subjetividades, desde a fase anterior à pandemia até a implantação do home office. Trata-se de um estudo de caso feito com abordagem qualitativa, realizado por meio de entrevistas semi estruturadas com 9 mulheres e 4 homens que trabalham nesse call center. Esse processo será investigado com a interlocução teórica de Ricardo Antunes e Ruy Braga (2009), Michel Foulcault (1987), Antonio Gramsci (1999, 2001, 2002, 2007a, 2007b), Ursula Huws (2017), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Suely Rolnik (2018), Ailton Krenak (2019), Kethleen Millar (2017), Judith Butler (2018), Bárbara Castro (2013), Veronica Gago (2018), María Alejandra Ciuffolini (2016), entre outrosautores. Palavras-chave: Precarização - home office - call center - pandemia - trabalho remoto - Covid-19 ABSTRACT The emergence of Covid-19, declared a pandemic by the World Health Organization (WHO) in March 2020, has altered the social dynamics around the world and, in particular, those related to labor. The implementation of remote working (known as “home office” in Brazil) emerged as a way out of the crisis, although it is a labor model built on the ethos of the ruling classes. In the metropolitan region of Natal-RN, employees of a call center company started working from home, which provided the protection of their health, but also allowed the entry of productivity and surveillance control systems from the employer in the intimate spaces of the employees. These systems are founded on taylorist and panoptic bases, expression of the neoliberal rationality that intends to colonize workers subjectivities. Designed from the precarious work category, this research proposes to study workers experiences in the face of ethos disparities of the classes involved in the “home office” imagery building and implementation as well as the attempt to colonize their subjectivities, from the pre-pandemic phase to remote working. This is a case study carried out with a qualitative approach, performed through semi-structured interviews with 9 women and 4 men who work in this call center. This process will be studied seeking a theoretical dialogue with Ricardo Antunes and Ruy Braga (2009), Michel Foulcault (1987), Antonio Gramsci (1999, 2001, 2002, 2007a, 2007b), Ursula Huws (2017), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Suely Rolnik (2018), Ailton Krenak (2019), Kethleen Millar (2017), Judith Butler (2018), Bárbara Castro (2013), Veronica Gago (2018), María Alejandra Ciuffolini (2016), among other authors. Keywords: Precariousness - home office - call center - pandemic - remote work - Covid-19 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................12 1 – A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA.................................................................................. 22 2 – REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, TECNOLOGIA E HOME OFFICE: A PRECARIZAÇÃO A CAMINHO DE CASA. .........................................................................32 2.1 – O PANORAMA TEÓRICO DA PRECARIZAÇÃO................................................32 2.2 – O HOME OFFICE NA PANDEMIA: A PRECARIZAÇÃO A CAMINHO DE CASA. .......................................................................................................................................42 3 – O CENÁRIO LABORAL DO CALL CENTER: O ENCONTRO COM OS SUJEITOS .. 51 3.1 – A CENA LABORAL DO CALL CENTER ............................................................... 51 3.2 – SISTEMAS DE VIGILÂNCIA E CONTROLE DA PRODUÇÃO: OS INSTRUMENTOS DE COLONIZAÇÃO DAS SUBJETIVIDADES ....................................74 Sistemas de vigilância .............................................................................................. 74 Sistemas de controle da produção ............................................................................ 88 3.3 – AS REPERCUSSÕES DA PANDEMIA .................................................................. 93 4 – A CASA VIRA CENÁRIO: APONTAMENTOS SOBRE A EXPERIÊNCIA DO HOME OFFICE E A TENTATIVA DE COLONIZAÇÃO DE SUBJETIVIDADES EM SISTEMAS DE PRODUÇÃO E VIGILÂNCIA ........................................................................................105 4.1 – UM OUTRO ETHOS PARA O HOME OFFICE ................................................... 105 4.2 – HOME OFFICE COMO AVANÇO DE UMA NOVA ETAPA DE EXPLORAÇÃO NEOLIBERAL....................................................................................................................... 123 5 – A CENTRALIDADE DO PAPEL DA SUBJETIVIDADE NA DISPUTA POLÍTICA: DESCOLONIZAR, RESSIGNIFICAR, RECONSTRUIR ....................................................170 5. 1 – A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO É O SINTOMA DA VIDA PRECÁRIA............................................................................................................................ 170 5.2 – DESCOLONIZAR A SUBJETIVIDADE PARA CONSTRUIR A COMUNIDADE POLÍTICA ..............................................................................................................................180 Sentidos da subversão .............................................................................................185 Um outro fazer coletivo ..........................................................................................193 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 208 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................. 217 12 INTRODUÇÃO O advento da pandemia de Covid-19 que foi decretada pela Organização Mundial de saúde (OMS) no dia 11 de março e oficializada no Brasil em 20 de março de 2020, instaura uma situação de calamidade de origem sanitária, que, gradativamente, vai revelando todos os aspectos das brutais desigualdades sociais e econômicas fundantes da sociedade brasileira e em que ainda vivem milhares de indivíduos. Inicialmente encapsulada nos segmentos sociais economicamente elevados que se infectaram em viagens internacionais, a Covid-19 logo se espalhou pelas cidades e acabou por atingir todas as classes, sem distinção. Ato contínuo, a doença foi se alastrando até atingir regiões em situação de maior vulnerabilidade, indefesas à exposição da doença porque completamente desassistidas por políticas públicas: favelas, periferias, populações ribeirinhas, comunidades quilombolas, populações em situação de rua, cidades interioranas e territórios indígenas tem sido, desde então, desproporcionalmente atingidos pela pandemia. Os maiores exemplos das fragilidades das populações subalternizadas e economicamente vulneráveis expostas pela pandemia são a falta de saneamento básico dos lugares onde moram, as restrições de acesso ao sistema de saúde, de serviços e de emprego aos quais estão submetidas, as condições precárias de moradia e transporte e falta de acesso a produtos básicos de higiene. As famílias de trabalhadoras e trabalhadores assalariados ou na via da informalidade que já sofriam com as agruras da luta diária pela sobrevivência têm conhecido novos níveis de penúria e se defrontado com adversidades, até então inéditas, apresentadas de maneira lancinante pela pandemia. Sem nenhuma proibição às demissões no período, muitas trabalhadoras e trabalhadores perderam seus empregos em um momento de recessão em que a oferta de vagas de trabalho é restrita. Para agravar esse quadro, as pessoas demitidas durante a pandemia são privadas da alternativa contingente do mercado de trabalho informal, haja vista o fechamento de centros comerciais, bares, restaurantes e serviços não essenciais. E mesmo que se arrisquem buscando trabalho no mercado informal, a própria diminuição de circulação de pessoas e de renda provocou um recrudescimento do mercado consumidor de rua. Consequentemente, o setor de serviços, que é o maior empregador do país, foi o mais afetado pela pandemia. Aqueles que conseguiram manter seus empregos não se livraram do seu próprio quinhão de atribulações. São trabalhadoras e trabalhadores que convivem com as costumeiras 13 inseguranças e incertezas da instabilidade profissional, mas que, com a pandemia, se defrontam com uma maior probabilidade de perderem suas fontes de renda. Isso se deve ao fato de que não somente postos de trabalho estão sendo encerrados, mas inúmeras empresas estão sendo precocemente fechadas, além de setores inteiros estarem sendo golpeados pela Covid-19, a exemplo do setor de turismo e aqueles ligados a atividades culturais. Devido à natureza do setor em que trabalham ou da imprescindibilidade do tipo do serviço queprestam, muitas trabalhadoras e trabalhadores não chegaram a ter seus empregos ameaçados pela pandemia. Mesmo assim, não necessariamente se encontram em situação confortável: se já era penoso e estressante enfrentar todos os dias a desagradável tarefa de lidar com a demora, o desconforto, a aglomeração e o desgaste de pegar transporte público para ir ao trabalho, em tempos de pandemia, esse dissabor transformou-se em risco real de comprometimento da saúde. Há, ainda, velhas aflições experimentadas no próprio local de trabalho que vem sendo atualizadas e acumuladas com as angústias causadas pela pandemia. A insalubridade, a periculosidade e as parcas condições sanitárias do ambiente de trabalho foram alçadas a um outro patamar de perigo por empresas que não adotaram protocolos eficazes de biossegurança e que não se comprometeram com a manutenção da saúde de suas funcionárias e funcionários. Neste cenário, o desafio à conservação da saúde física, bem como a da saúde mental das trabalhadoras e trabalhadores está posto: ir ao trabalho e permanecer durante horas no mesmo ambiente com outras funcionárias e funcionários, compartilhar equipamentos laborais que não estão sendo devidamente esterilizados, além de conviver com colegas de trabalho suspeitos de ter contraído o coronavírus. Diante da escassez de testes que detectem a presença do vírus em questão, trabalhadoras e trabalhadores têm sido obrigados a permanecer cumprindo a carga horária laboral em empresas onde eles mesmos ou colegas de trabalho apresentam sintomas da doença, sem saber se estão infectados ou não. Sem dispensa imediata de suas funções após a aparição de sintomas, trabalhadoras e trabalhadores desassistidos de planos de saúde passam a perambular, por conta própria, em busca de um atestado médico que assegure o afastamento sem prejuízo de vencimentos. Aqueles que não conseguem o atestado, são obrigados a continuar trabalhando ou pedir demissão para assegurar os cuidados com a própria saúde. É um campo aberto para o assédio moral, pressões desmedidas, perseguições e diligências arbitrárias vividas por trabalhadoras e trabalhadores que já se deparavam com uma escalada 14 de dilapidação de direitos desde a Lei nº 13.467/2017 conhecida como Reforma Trabalhista. Essa é a realidade atual da maioria das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Sair para o trabalho em tempos de Covid-19, transformou-se – mais que nunca –, num campo de incertezas para a “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2006), seja ela assalariada ou na informalidade. Uma loteria em que se joga com a própria vida. Nessas circunstâncias, uma alternativa surge como uma solução imediata para esses sujeitos continuarem exercendo suas funções de forma mais asséptica, segura e humanizada: o home office. Expressão equivalente ao regime de trabalho remoto ou teletrabalho (distinções ainda em disputa) trata-se de uma modalidade de trabalho em que funcionárias e funcionários realizam suas funções laborais em casa, sem a necessidade de cumprir expediente no espaço físico da empresa em que trabalham. O primeiro registro que se tem notícia de uma atividade laboral realizada à distância por meio de sistemas de informação refere-se ao uso que J. Edgard Thompson fez do telégrafo para monitorar as unidades remotas de sua empresa de estradas de ferro, a Pennsylvania Railroad, inaugurada na década de 1830. Algumas décadas depois, já surgiam críticas ao modelo de trabalho remoto que se seguiu, a primeira delas foi direcionada ao conto de ficção científica escrito por Rudyard Kipling, With the Night Mail. A crítica é feita pelo matemático conhecido como “pai da Cibernética”, Norbert Wiener, em seu livro The human use of human beings – Cybernetics and society publicado em Londres, em 1950. Quarenta anos antes, Kipling ficou fascinado pelas conquistas dos irmãos Wright e imaginou um futuro em que a tecnologia de aviação teria transformado o Atlântico em um lago passível de ser atravessado de ponta a ponta em uma só noite. O uso dessa tecnologia conectaria nações de todo o mundo, tornando as guerras completamente obsoletas. Nessa realidade, o Conselho de Controle Aéreo teria poder decisório sobre todas as questões importantes do mundo porque todas as autoridades locais renunciariam a seus poderes em favor desse conselho. Essa visão apologética da tecnologia é criticada duramente por Wiener (1989, p. 96), pois ele identifica na história de Kipling uma ingenuidade quase infantil, que por se encantar pela evolução do maquinário, vislumbra o transporte físico do homem, mas nunca de sua linguagem e ideias. Segundo Wiener, Kipling “não parece perceber que, aonde a palavra do homem vai e aonde o seu poder de percepção vai, até aquele ponto o seu controle e, num certo sentido, a sua existência física é estendida.” (WIENER, 1989, p. 96, tradução nossa1). 1 “He does not seem to realize that where a man's word goes, and where his power of perception goes, to that point his control and in a sense his physical existence is extended.” 15 A partir dessa convicção, Wiener nos propõe um exercício imaginativo para demonstrar a ainda maior importância do transporte de informação de um lugar a outro quando comparada ao mero transporte físico de alguém: um arquiteto na Europa supervisiona a construção de um edifício nos Estados Unidos. Deixando claro que no canteiro de obras há todo o material, assim como toda a equipe necessária para a construção do prédio, Wiener passa a argumentar que o arquiteto terá um papel crucial na construção do edifício, ainda que não esteja transmitindo ou recebendo nenhum tipo de material físico, a única coisa transmitida por ele é o seu conhecimento. Para isso, ele fará uso do Ultrafax (Tecnologia da época que combinava características da televisão e da fotografia, depois conhecida simplesmente como fax) fotografias, telefone e também do teletipo. Ou seja, a presença física do arquiteto poderia ser substituída pela transmissão eficiente dos seus conhecimentos. Isso garantiria a qualidade de um trabalho que não deveria nada àquele feito sob a supervisão física do profissional. Mas ao final do argumento, Norbert Wiener nos alerta: essa distinção entre o transporte material e o transporte de uma mensagem não é permanente, nem tão pouco intransponível. Mais importante: ela finda por impor um questionamento profundo sobre a individualidade humana. Esta pesquisa se debruça sobre o fenômeno do home office adotado em razão da pandemia de Covid-19 possibilitada pelos avanços tecnológicos informacionais recentes, uma vez que desconfia, assim como Norbert Wiener, que a transposição das atividades laborais de um lugar para outro não implica no simples deslocamento frio da tecnologia que permite essa execução remotamente. O momento de mudança do modelo de trabalho por razões sanitárias pode, inadvertidamente, ter trazido implicações para a coletividade urbana, para o seio das famílias e, finalmente, para a individualidade das próprias trabalhadoras e trabalhadores que se deparam com uma etapa mais profunda da tentativa de colonização neoliberal dos seus espaços privados. Localizada na região metropolitana de Natal-RN, a empresa2 cujas funcionárias3 se dispuseram a colaborar com este estudo, adotou o sistema de home office para algumas de 2 A empresa não terá sua razão social mencionada no trabalho para que as possibilidades de identificação das interlocutoras do estudo sejam minimizadas, mas trata-se – de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE) – de empresa com um dos maiores índices de assédio moral do país. A página do DIEESE em que consta essa informação não será mencionada pelos mesmos motivos. 3 Como demonstrado por Ruy Braga (2014, p. 37), o setor de call center tem “uma taxa de participação feminina na força de trabalho gravitando em torno de 70%, além de uma alta ocorrência de afrodescendentes, é possível dizer que o grupo brasileiro de teleoperadoresé formado em sua maioria por jovens mulheres não brancas recém- saídas da informalidade.”. Portanto, por se tratar de um setor marcadamente feminilizado e também devido ao contigente dessa pesquisa ser composto por 9 mulheres e 4 homens, todas as generalizações do texto que se referirem ao call center serão feitas no feminino. Com exceção dos cargos de comando que, historicamente, são ocupados majoritariamente por homens. 16 suas trabalhadoras. A pesquisa Precarização no home office: condições de trabalho em um call center na região metropolitana de Natal-RN em tempos de pandemia foi impulsionada pela seguinte questão: “Como a introdução do regime de home office a partir da pandemia de Covid-19 impacta a vida das trabalhadoras do setor de call center4 da região metropolitana de Natal-RN?”. Esta questão geral engloba outras questões motivadoras e acessórias: Por quais vivências elas têm passado e que ainda não foram visibilizadas devido ao ineditismo desses eventos? Como o trabalho em casa afetou a dinâmica da vida pessoal e familiar das trabalhadoras? / Como essas trabalhadoras passaram a perceber a relação com o trabalho? Que estratégias foram adotadas pelas empresas para manter a produção e o controle das trabalhadoras e o que elas dizem sobre as novas possibilidades que se apresentam ao mundo do trabalho? O estudo aqui desenvolvido, portanto, tem como objetivo geral investigar as implicações sociais enfrentadas pelas trabalhadoras em razão da mudança do trabalho presencial para o home office devido à pandemia de Covid-19 na região metropolitana de Natal. Ele foi assim direcionado porque todo o processo desencadeado para a execução do trabalho em casa resultou numa série de repercussões na esfera social e é relevante para entendermos esse novo momento das atividades trabalhistas com o uso de um modelo de trabalho que já existia, mas que só começou a ser massivamente implantado a partir da chegada da pandemia. No que tange aos objetivos específicos, são eles: 1) Investigar o fenômeno home office à luz da precarização do trabalho no contexto do avanço de uma agenda neoliberal; 2) Analisar as dificuldades e vantagens oferecidas às trabalhadoras com a adoção do home office no contexto da pandemia de Covid-19 em que foi implantado, identificando as singularidades, assim como as experiências comuns de quem foi posto neste regime. Esses apontamentos serão feitos sempre à luz das disparidades entre o ethos de classe do qual o conceito é oriundo e aquele para o qual foi implantado; 3) Conhecer os mecanismos de controle de produtividade e vigilância adotados pela empresa para monitorar essas trabalhadoras e a forma como atuam sobre suas subjetividades. A partir desses questionamentos, uma possível resposta foi formulada para nortear o caminho para onde a pesquisa será dirigida: Hipótese: “A adoção do regime de home office desde a pandemia de covid-19 em um call center na região metropolitana de Natal-RN aprofundou a precarização do trabalho realizado no setor”. 4 Mesmo ciente das especificidades dos diferentes termos usados para o setor aqui referido como “call center”, julguei que essa discussão seria improfícua para a pesquisa. A expressão, portanto, será usada como sinônimo de teleatendimento, telesserviços, centrais de atendimento, telemarketing e contact center. 17 A pesquisa justifica-se, pois, a implantação do regime de trabalho em casa para operadoras de empresas de call center na região metropolitana de Natal acabou por ter consequências significativas. Apesar de a implantação do trabalho remoto ter atendido à urgência de se proteger as profissionais da área, o trabalho em casa acabou por alterar, não só a dinâmica de trabalho desses indivíduos, mas também resultou em impactos significativos nas dinâmicas sociais em que estão envolvidos. Além disso, novas fronteiras são borradas quando o trabalho invade o espaço doméstico. O caráter emergencial em que a medida foi adotada, sem planejamento e discussões legais prévias que determinassem as condições mínimas para que o trabalho fosse juridicamente amparado abriu espaço para questionamentos sobre a atualização de regras que contemplem essa nova realidade de atividade: como serão definidos os acidentes de trabalho a partir de agora?; as câmeras instaladas por algumas empresas do setor para assegurar o cumprimento das jornadas de trabalho serão legalizadas?; se o instrumento de trabalho da funcionária é o próprio computador pessoal, quais os limites de interação entre o software patronal necessário à atividade laboral com os dados pessoais da funcionária?; quem determina o tipo de informação capturada pelo sistema de vigilância da empresa para monitorar as funcionárias?; que consequências essas medidas trarão para as relações de trabalho no futuro? Todas essas novas dinâmicas estão sendo geradas a partir do advento da Covid-19 e nos instigam a pensar no que acontece quando o modelo de trabalho em home office é aplicado em distintos segmentos das classes que vivem do trabalho. O home office e as consequentes complicações do exercício de uma modalidade laboral relativamente nova em um momento de instabilidade jurídica trabalhista são situações relevantes para entendermos esse novo momento do mundo do trabalho. Estamos testemunhando, talvez, a implementação de uma modalidade de trabalho que perdure além da pandemia, trazendo inúmeras implicações para as dinâmicas sociais das quais participamos. Um novo campo sociológico para uma nova sociedade em quarentena. Esta pesquisa espera contribuir para as discussões da Sociologia do Trabalho na medida em que tenta interpretar a adoção de uma prática laboral que extrapola os limites das instalações de uma empresa e acaba por reverberar nos espaços mais íntimos da vida das trabalhadoras. Em relação aos procedimentos, métodos, instrumentos e técnicas de pesquisa, trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada por meio de um estudo de caso, num esforço interpretativo sobre a situação dos sujeitos que trabalham nesse call center em regime de home office e o processo pelos quais eles vêm passando no contexto da Covid-19. 18 A opção por uma pesquisa qualitativa responde à tentativa de compreensão desse fenômeno, ao modo como ele afeta a vida dos sujeitos e como estes interpretam essa experiência. Este movimento compreensivo é fruto de um esforço científico defendido por Norman K. Denzin e Yvonna S. Lincoln (2006, p. 23) quando definem do que se trata uma pesquisa qualitativa: Os pesquisadores qualitativos ressaltam a natureza socialmente construída da realidade, a íntima relação entre o pesquisador e o que é estudado, e as limitações situacionais que influenciam a investigação. Esses pesquisadores enfatizam a natureza repleta de valores da investigação. Buscam soluções para as questões que realçam o modo como a experiência social é criada e adquire significado. Já a escolha pelo estudo de caso se deu em razão da excepcionalidade das circunstâncias em que o home office passou a ser implantado: a partir da pandemia de Covid-19 em março de 2020, além do fato de que as interlocutoras da pesquisa se vinculam à mesma empresa de call center. As indagações que surgem acerca do fenômeno são as mesmas apontadas por Robert K. Yin (2001, p. 28) como requisitos do método: “Faz-se uma questão do tipo ‘como’ ou ‘por que’ sobre um conjunto contemporâneo de acontecimentos sobre o qual o pesquisador tem pouco ou nenhum controle.”. É um método de abordagem que permite entender o contexto laboral durante toda a pandemia: A essência de um estudo de caso, a principal tendência em todos os tipos de estudo de caso, é que ela tenta esclarecer uma decisão ou um conjunto de decisões: o motivo pelo qual foram tomadas, como foram implementadas e com quais resultados. (SCHRAMM apud YIN, 2001, p. 31) A coleta de dados foi desenvolvida em duas fases: a primeira de caráter exploratório foi finalizada no mês de agosto de 2020 e consistiu no rastreamento do perfilsocioeconômico das interlocutoras por meio de um questionário enviado por aplicativos de mensagens. À luz das questões da pesquisa e com estes dados em mãos, foram elaborados os roteiros gerais para os três grupos de interlocutores e aqueles destinados a seus respectivos sujeitos individualmente, segundo as orientações metodológicas de Verena Alberti (2004). A segunda fase foi finalizada no mês de fevereiro de 2021 e consistiu de entrevistas temáticas semi-estruturadas que serão tratadas como fonte oral desse trabalho. Ainda segundo Alberti (2004, p. 37): “As entrevistas temáticas são aquelas que versam prioritariamente sobre a participação do entrevistado no tema escolhido.”. Devido às impossibilidades de entrevistas presenciais ante a necessidade de isolamento social recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na tentativa de conter a 19 propagação do vírus da Covid-19 e acolhido pelo governo do Rio Grande do Norte no Decreto nº 29.742 de 04 de junho de 2020, todos os dados foram coletados por meio de 1 (uma) entrevista realizada pela plataforma Google Meets e gravada pelo programa OBS Studio. Esses dados foram coletados nos termos de Sampieri, Collado e Lucio (2006) que apontam a entrevista como modalidade de pesquisa que pode ser capturada por diversas ferramentas, entre elas, gravações de áudio e vídeo. Para tanto, foi construída a seguinte rede de interlocutores e corpus empírico da pesquisa: a investigação selecionou 13 interlocutoras, sendo 9 mulheres e 4 homens que foram divididas em dois grupos: o primeiro formado por pessoas que já trabalharam na empresa e hoje já se encontram fora do setor de call centers e o segundo formado por aquelas que continuam trabalhando na empresa. A configuração dos grupos de entrevistadas e as razões para sua organização serão melhor detalhadas no capítulo 1. Este estudo será feito por meio de uma perspectiva marxista centrada nos instrumentos teórico metodológicos do materialismo histórico-dialético que entende as trabalhadoras e trabalhadores como pertencentes à classe proletária situada em um mundo em que “As classes sociais, o conflito de classes e a consciência de classe existem e desempenham um papel na história.” (HOBSBAWM, p. 33, 2015). Além disso, a pesquisa também encara a agenda neoliberal como derrogatória das condições mínimas para a sobrevivência digna da “classe-que-vive-do-trabalho”, será usado o conceito de precarização do trabalho como categoria de análise para a compreensão do fenômeno home office no setor de call center na região metropolitana de Natal-RN. Esse conceito chave percorrerá todo o estudo e será utilizado nos termos de Ricardo Antunes (2011, p. 416) quando define um visível processo com base tayloriana/fordista de precarização estrutural do trabalho: “...mais acentuadamente despótica, embora mais regulamentada e contratualista. O trabalho é mais coisificado e reificado, maquinal, embora provido de direitos e de regulamentação social. É uma modalidade de trabalho coisificado de tipo regulamentado.”. Posteriormente, o conceito será ampliado para abarcar as considerações de Judith Butler (2018) sobre precariedade como atributo de um tipo de existência. Esta discussão será distribuída em cinco capítulos que tentarão responder aos objetivos específicos anteriormente expostos e que, devido aos questionamentos próprios de cada um deles, dialogarão com diversos autores que ajudarão a compreender melhor as especificidades do fenômeno. 20 No Capítulo 1: A construção da pesquisa e a descoberta dos sujeitos, são expostos o percurso traçado em busca do objeto, as dificuldades e insucessos da construção metodológica da pesquisa e os interlocutores dos grupos 1 e 2. Em seguida, no Capítulo 2, intitulado Reestruturação produtiva, tecnologia e home office: a precarização a caminho de casa, é feita uma discussão teórica sobre os conceitos de precarização, assim como os conceitos de trabalho domiciliar, trabalho remoto e teletrabalho que são aglutinados na noção de home office para estabelecer que sentidos dessas categorias de análise serão estabelecidas na investigação. Fundamentarão esse caminho, os estudos de Karl Marx (1986), Eric Hobsbawn (1995), David Harvey (2008), Ricardo Antunes e Ruy Braga (2009) e Ursula Huws (2017), Daniela Oliveira (2017), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Giovanni Alves (2006, 2011, 2013) entre outras autoras e autores. No Capítulo 3: O cenário laboral do call center: o encontro com os sujeitos, serão apresentadas as vivências das trabalhadoras da empresa, no intuito de estabelecer o que significa ser uma trabalhadora de call center e como essa realidade foi afetada pela pandemia. Também será traçado um mapeamento dos mecanismos de controle de vigilância e produtividade adotados pela empresa para monitorar as trabalhadoras, examinando seus efeitos sobre suas subjetividades. Para isso, serão acionadas as discussões de Michel Foulcault (1987) sobre o conceito de panóptico para discutir a instrumentalização que a empresa faz do medo e da vigilância entre as funcionárias. Fechando o capítulo, o cenário de chegada da pandemia e o modo como afetou as dinâmicas laborais irão catapultar as discussões sobre home office. No Capítulo 4: A casa vira cenário: apontamentos sobre a experiência do home office e a tentativa de colonização de subjetividades em sistemas de produção e vigilância, serão expostos os diferentes ethos de classe envolvidos na adoção do home office nos diferentes contextos pré e pós pandemia e a forma como as imagens construídas em torno desse modelo de trabalho foram essenciais para a aceitação inquestionada do modelo. Ao percorrer a experiência das trabalhadoras que passaram a trabalhar em casa, serão investigadas as intensidades, permanências ou descontinuidades das políticas da empresa em relação ao trabalho presencial. As políticas de controle de produção e vigilância também serão consideradas, além das estratégias de resistência dos sujeitos à invasão do trabalho em seus espaços íntimos. A interlocução teórica será feita por Ursula Huws (2017), Antonio Gramsci (1999, 2001, 2002, 2007a, 2007b), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Christian Dunker, Vladimir Safatle e Nelson da Silva Júnior (2020). No Capítulo 5: A centralidade da subjetividade na disputa política: descolonizar, ressignificar, reconstruir, o estudo tentará demonstrar a localidade da discussão no momento atual da hegemonia neoliberal, apresentando experiências que podem dar fôlego 21 à busca de brechas capazes de fraturar o sistema. As discussões serão sustentadas com as análises de Suely Rolnik (2018), Ailton Krenak (2019), Kethleen Millar (2017), Judith Butler (2018), Bárbara Castro (2013), Veronica Gago (2018), María Alejandra Ciuffolini (2016), entre outras autoras e autores. Nas considerações finais, discutirei a análise dos dados, os percalços e limitações da pesquisa, o apanhado da visão das interlocutoras sobre o trabalho em call center na modalidade home office e, finalmente, as conclusões obtidas em relação aos objetivos iniciais do estudo. Como demonstrado, esta pesquisa se propõe a investigar os processos recentes que modificaram o ambiente de trabalho do call center. Um setor completamente dependente do uso e do avanço das tecnologias computacionais que acabaram por permitir a transferência das tarefas das trabalhadoras às suas casas, onde podem melhor proteger-se das ameaças de um vírus potencialmente letal. No entanto, o reconhecimento de que se trata de um setor com práticas trabalhistas frequentemente abusivas, nos alerta a evitar a ingenuidade portentosa de Rudyard Kipling e entrever, assim como Norbert Wiener, as implicações de se transpor a mentalidade neoliberal de trabalho à individualidade dos lares de trabalhadoras já precarizadas. 22 1 – A CONSTRUÇÃO DA PESQUISA A pandemia de Covid-19 me obrigou a abandonar o objeto inicial de minha pesquisa de mestrado, pois ela seria realizada em um hospitalpsiquiátrico. Ela também afetou a realidade laboral das trabalhadoras de um call center da cidade de Natal-RN e por ter contato com um grupo delas, passei a participar de conversas sobre o assunto em um aplicativo de mensagens. À medida que a pandemia avançava, eu me informava sobre as novas dinâmicas de trabalho às quais essas trabalhadoras estavam sendo submetidas e, finalmente, decidi estudar esse processo em junho de 2020. Depois de um período de sondagem acerca da viabilidade do projeto, passei a convidar as pessoas que eu conhecia para serem minhas interlocutoras na pesquisa. Consolidada a formalização desse grupo, um desses conhecidos, aqui chamado “Cazé”, construiu uma ponte para as possíveis interlocutoras que eu não conhecia. Ele anunciou a pesquisa nos grupos pessoais dos aplicativos de mensagens de diferentes equipes da empresa, coletando os contatos das pessoas que se interessaram em participar. Em busca dos significados dessa experiência, conseguimos chegar ao número de 13 interessadas, seus nomes serão protegidos em pseudônimos: Quadro 1: Rede de interlocutoras 23 Na tentativa de cercar melhor o objeto de pesquisa por se tratar de um universo desconhecido para mim, separei as trabalhadoras entre aquelas que já saíram da empresa, aquelas que, mesmo com a pandemia, continuam trabalhando em regime presencial e aquelas que passaram a trabalhar em regime de home office. Quadro 2: Grupos da pesquisa5 O diálogo com o primeiro grupo contribui para estabelecer o cenário laboral de antes da pandemia. São trabalhadoras que abandonaram o setor por serem críticas do modelo de trabalho ao qual estiveram submetidas, justamente devido à enorme pressão que sofriam. Todas elas ainda mantêm contato com colegas que continuam a trabalhar na empresa. Estão, consequentemente, muito bem informadas sobre as mudanças e permanências da realidade do setor estabelecidas em face da Covid-19. Desse modo, se configuram como testemunhas privilegiadas nos termos de Raymond Quivy e LucVan Campenhouldt (1998, p. 71): “Pessoas que, pela sua posição, acção ou responsabilidades tem um bom conhecimento do problema. Essas testemunhas podem pertencer ao público sobre que incide o estudo ou ser- lhe exteriores, mas muito relacionado com esse público.”. A importância de se estabelecer o estado de coisas de antes da pandemia acessando as memórias desse grupo de pessoas coaduna com o que defende Antonio Cesar de Almeida Santos (2000, p. 5): “As lembranças, além de oferecerem uma descrição de acontecimentos vividos, trazem também uma análise daqueles mesmos acontecimentos, dada a distância em que o entrevistado se encontra deles, e sua disposição em avaliar as transformações que vivenciou.”. A distância espaço-temporal daquela experiência pode, portanto, fornecer insights valiosos sobre a lógica que opera no call center. 5 As interlocutoras Laís e Karina enfrentaram o começo da pandemia trabalhando em regime presencial, até serem transferidas para o regime de home office, por isso, suas experiências serão consideradas tanto em um caso quanto no outro. 24 Embora o foco dessa pesquisa seja entender as experiências do fenômeno do home office que só foi implantado a partir da pandemia, decidi entrevistar esse grupo de pessoas como forma de amenizar o temor que as funcionárias ativas sentem de serem punidas por revelar qualquer tipo de informação sobre suas atividades. Por lidarem com dados sensíveis de clientes, as funcionárias assinam um “termo de confidencialidade” que as proíbe de tecer comentários sobre suas condições de trabalho por até três anos depois de deixar a empresa. Com esse grupo consegui acesso aos contratos de trabalho. Apenas ao entrevistar as ex- funcionárias foi possível estabelecer melhor qual era o cenário laboral de antes da pandemia para compreender o que mudou no setor. O segundo grupo é composto por funcionárias ativas da empresa. No entanto, não constitui um grupo homogêneo. Para estabelecer o cenário que se instaurou na empresa desde a pandemia, nos oferece duas diferentes perspectivas: a de quem continuou exercendo a sua função em regime presencial, ou seja, desde a pandemia continua trabalhando nos estabelecimentos da empresa, deslocando-se diariamente para o trabalho, expostas a todos os riscos de contágio e aquelas que foram beneficiadas com o trabalho remoto, podendo exercer suas funções sem estar tão expostas ao vírus. O grupo de trabalhadoras que continua trabalhando de forma presencial contribui para estabelecer os processos desencadeados no setor pela pandemia, pois testemunharam todas as dificuldades que aconteciam nos locais de trabalho. Funcionam assim, como um instrumento de comparação com as funcionárias que foram postas em trabalho remoto, ilustrando as diferenças entre as duas realidades de trabalho. O último grupo é composto por 8 interlocutoras que nos oferecem uma visão sobre o que significa o home office de um call center na região metropolitana de Natal-RN. E configura o objeto maior dessa pesquisa. Decidi considerar todo o percurso que levou os sujeitos ao trabalho em casa como estratégia de cercamento do objeto de estudo e para investigar se, de fato, a mudança para o trabalho remoto resultou numa espécie de “piora” mais objetiva em relação às condições de trabalho, testando a hipótese dessa pesquisa. Assim, tento entender a precarização, antes de tudo, como um processo para só então considerá-la à luz do que significa viver sob o sistema neoliberal. A primeira fase da pesquisa se deu com a coleta do perfil socioeconômico das interlocutoras por meio de um aplicativo de mensagens. Com esses dados em mão, foram construídos os roteiros das entrevistas. O passo a passo do delineamento do roteiro foi dado pela metodologia estabelecida por Verena Alberti (2004, p. 83) que indica a produção de dois tipos de roteiro: o geral e o específico. 25 O roteiro geral de entrevistas deve ser elaborado com base no projeto e na pesquisa exaustiva sobre o tema. Sua função é dupla: promove a síntese das questões levantadas durante a pesquisa em fontes primárias e secundárias e constituem instrumento fundamental para orientar as atividades subsequentes, especialmente a elaboração dos roteiros individuais. O momento de elaboração do roteiro geral encerra a oportunidade de reunir e estruturar todos os pontos levantados durante a pesquisa, seguindo os objetivos estabelecidos no projeto. Nesse sentido, trata-se de um esforço de sistematizar os dados levantados até então e de articulá-los com as questões que impulsionam a pesquisa. Ainda segundo Alberti (2004, p. 84) é a estruturação do roteiro geral que servirá de base para a elaboração dos roteiros individuais e servirá, em caráter comparativo, como um instrumento de avaliação das conclusões da pesquisa: Como sugere o nome, trata-se de um roteiro amplo e abrangente, que contém todos os tópicos a serem considerados na realização de cada entrevista, garantindo a relativa unidade do acervo produzido. É importante que nas entrevistas realizadas os pesquisadores procurem abarcar as questões que foram definidas como gerais a todos os entrevistados. [...] Suponhamos, por exemplo, que o roteiro geral não seja empregado em determinada pesquisa. Nesse caso, é bem provável que as entrevistas versem sobre assuntos desconexos entre si, difíceis de serem comparados. Determinado entrevistado pode ser solicitado a discorrer apenas sobre certo aspecto do tema, mesmo que sua experiência e sua atuação o autorizem a falar sobre os demais, enquanto outro entrevistado, igualmente capaz, pode ser conduzido a tratar exclusivamente de outro aspecto do tema. Dessa forma, ambas as entrevistas, seguindo direções diversas, dificilmente poderão se prestar a uma análise comparativa, devido à ausência de unidade em sua condução. A unidade dada pelo roteiro geral permite que se identifiquem divergências, recorrências ou ainda concordâncias entre as diferentes versões obtidas ao longo da pesquisa, aprofundando-seas possibilidades de análise do acervo. Estrutura dos roteiros gerais (grupo) e específicos (indivíduos) das entrevistas Seguindo essas indicações, elaborei três tipos diferentes de roteiro para cada um dos grupos a serem entrevistados. Eles partem de um roteiro geral para todas as trabalhadoras e depois são segmentados para a realidade específica de cada grupo. Cada grupo tem um roteiro geral que contempla suas especificidades e em cada segmento, a última etapa do roteiro é um modelo individual para cada uma das trabalhadoras. O que consta no roteiro individual é elaborado com base nas informações já coletadas na primeira fase e no que elas já tinham compartilhado comigo anteriormente em conversas informais. Por esse motivo, só desenvolvi algumas perguntas individuais para um único integrante do grupo em home office pois era o único que eu conhecia. Ainda seguindo Alberti, depois do levantamento dos problemas, as questões a serem inquiridas são levantadas e só então são transformadas em perguntas. A versão final dos roteiros segue abaixo. 26 Versão final dos roteiros gerais e individuais das entrevistas: Roteiro Geral (para todas as trabalhadoras): Contexto social: Qual o seu histórico familiar? Qual o contexto social em que viveu? Trabalho: Como se deu o começo da sua vida profissional? Quais eram as suas expectativas? Que papel o trabalho cumpriu na sua vida? O que significou começar a trabalhar para você? Call center: Como você obteve o emprego no call center? Como se deu o processo seletivo? Qual era a sua função? Como se deu o período de adaptação às funções? Fale um pouco sobre as suas experiências no setor. Como você avalia o ambiente de trabalho no call center? Como você avalia as condições de trabalho na empresa? Quais eram as suas expectativas ao entrar na empresa? Elas foram confirmadas ou mudadas ao longo do tempo em que você trabalhou lá? Você construiu relações pessoais no call center? Você acha que isso é possível? Há alguma possibilidade de organização coletiva? Você testemunhou iniciativas de organização coletiva para resolver algum problema? Quais são os tipos de situações comuns em um call center? Quais são os tipos de discursos produzidos pela empresa? Que tipo de mecanismos de controle de produção a empresa determina? Que tipo de mecanismos de vigilância das funcionárias a empresa estabelece? As funcionárias acatam todas essas determinações? Havia / Há estratégias para escapar/burlar esse sistema? Como se dão os sistemas de avaliações de desempenho e cumprimento de metas? Como você avalia o ritmo das mudanças de função? Como você avalia os treinamentos e cursos de formação oferecidos? Como se dava / dá a relação trabalho x vida pessoal? 27 Era / É possível organizar bem a vida? Quais as maiores dificuldades e vantagens do trabalho no setor? Como você avalia a sua saúde mental no período em que esteve na empresa? Trace uma comparação entre o trabalho no call center e suas outras experiências profissionais. Há algo que considera importante ser informado que não foi abordado na entrevista? Roteiro geral de entrevista para o Grupo 1 (trabalhadoras que já deixaram de atuar na empresa) Por que você saiu da empresa/setor de call center? Que avaliação você faz da sua saúde mental antes, durante e depois de sair da empresa? Que avaliação você faz das experiências profissionais que se seguiram em comparação com a experiência em call center? Roteiros Individuais: Entrevista 1 - Jonas (10-08-20) Quais são as vantagens e desvantagens de se trabalhar no turno noturno? Por que o trabalho no call center afetou o seu relacionamento? Que estratégias você e os seus colegas criavam para aguentar o sono? Por que você acha que todas as relações das funcionárias ficam resumidas àqueles que participam do mesmo universo do call center? Entrevista 2 - Glória (13-08-20) Que reflexos o trabalho no call center teve em sua vida pessoal? Ele afetou o seu casamento? Por que você foi afastada das suas funções? Como você foi vista na empresa por tirar licença médica? Entrevista 3 - Hannah (17-08-20) Como você compara as duas empresas de call center nas quais você trabalhou? Você acha que uma se sobrepõe à outra em relação às condições de trabalho que oferece? Quais as melhores e piores coisas de uma em relação à outra? Por que você atribui a piora da sua saúde diretamente ao trabalho no call center? Entrevista 4 - Rute (20-08-20) Qual foi o papel das relações que você travou no lugar? 28 De que forma elas contribuíram para a suas experiências no setor? Por que você afirma que as trabalhadoras são manipuladas no setor? Por que você considera que as promoções de cargo são “pura enganação”? Roteiro geral de entrevista para todas as trabalhadoras que atuam na empresa atualmente Pandemia Que tipo de mudanças ocorreram na empresa em decorrência da pandemia? A pandemia afetou as demandas do trabalho? Quais foram os processos desencadeados pela pandemia na empresa? Que tipos de medidas a administração da empresa tomou com a decretação da pandemia? A configuração do local de trabalho sofreu alguma alteração? O que foi feito dos equipamentos de trabalho? Como você percebe a maneira que a Covid-19 atingiu as funcionárias da empresa? Que tipo de discursos foram adotados pela empresa desde a pandemia? Como a Covid-19 atingiu a sua vida e o seu trabalho? Quais os sentimentos afloraram no período? Esses sentimentos interferiram no seu trabalho? Como você lidava com esses sentimentos e a execução de suas funções? Como você avalia a sua saúde mental no período? Roteiro geral de entrevista para o Grupo 2 (trabalhadoras em regime de trabalho presencial na pandemia) Sobre o trabalho no contexto da pandemia: Como ficaram as condições de trabalho nos estabelecimentos da empresa? A decretação da pandemia mudou sua rotina de trabalho? Como a chegada da Covid-19 afetou sua vida? Como avalia a atuação da empresa em relação à pandemia? Como as decisões da empresa neste período afetaram o seu trabalho? Houve alguma alteração quanto aos equipamentos de trabalho? Houve casos de funcionárias infectadas nas instalações da empresa? Como elas foram tratadas pela empresa? Quais foram as atitudes da empresa em relação à proteção das funcionárias? 29 Que razões determinaram a continuidade do trabalho presencial? Por que algumas funcionárias continuaram a trabalhar presencialmente e outras foram postas em trabalho remoto? Que tipos de impacto a chegada da pandemia teve sobre as funcionárias da empresa? Que efeitos o trabalho presencial no contexto da pandemia trouxe para você e seus coabitantes? Que tipos de discursos a empresa adotou em relação ao trabalho presencial durante o período de pandemia? Você testemunhou iniciativas de organização coletiva para resolver algum problema? Como se dava o processo para sair para o trabalho e para voltar para casa? Que avaliação você faz da sua saúde mental antes, durante e depois do expediente? Quais eram os sentimentos antes da saída para o trabalho e após a chegada em casa? Roteiros específicos Entrevista 5 - Larissa (16-09-20) Como o trabalho no call center afeta o seu relacionamento? Por que você identifica que esse é o pior tipo de trabalho que você já teve? Entrevista 6 - Laís (20-08-20) Por que você considera ser esse um “trabalho provisório”? Por que você acha que o call center é um laboratório para questões trabalhistas? Roteiro geral de entrevista para trabalhadoras do Grupo 3 (em home office) Como se deu o processo de passagem do trabalho presencial para o trabalho em casa? Por que você passou a trabalhar em casa e não permaneceu no trabalho presencial? Quais foram as condições necessárias que permitiram o seu trabalho em casa? De quem são os instrumentos de trabalho que permitiram o trabalho em casa? O que mudou na sua rotina desde que você começou a trabalhar em casa? Você fez alguma alteração no ambiente em função do trabalho? Qual é a sua visãodo home office? Que avaliação você faz desse modelo de trabalho? Que avaliação você faz dessa transferência do ponto de vista da atuação da empresa? Que avaliação você faz dessa transferência do ponto de vista pessoal? Como você lida com o trabalho em casa? Você faz alguma diferenciação entre tempo para trabalhar e tempo para a vida pessoal? Que estratégias a empresa adotou para controlar a produção das funcionárias e o cumprimento de metas? 30 Que estratégias a empresa adotou para manter a vigilância das funcionárias? São as mesmas estratégias adotadas no modelo presencial? Você acata todas as determinações? O que você faz quando não concorda com certas determinações? Você percebe que outras funcionárias lidam com as mesmas questões que você tem lidado com o trabalho remoto? Você avalia que tem um ambiente ideal para exercer o trabalho remoto? Em que espaço você trabalha? Em que condições você trabalha? Que medidas a empresa adotou em relação à segurança da informação de clientes? Que avaliação você faz da sua saúde mental desde que passou ao trabalho remoto? O que você considera que são pontos positivos e negativos de trabalhar em casa? Se você pudesse escolher entre as duas formas de trabalho, qual escolheria? Roteiros específicos Entrevista 7 - Cazé (27-08-20) Como você avalia a realização do trabalho em um ambiente compartilhado com amigos? Como você enxerga as expectativas que tinha em relação ao mundo / mercado do trabalho e a realidade em que você se encontra agora? Por que você começou a desenvolver atividades estranhas à sua rotina anterior com a adoção do trabalho remoto? Finalizados os roteiros, iniciei a realização das primeiras entrevistas no mês de agosto de 2020 e o processo foi encerrado em fevereiro de 2021. É necessário pontuar que concomitante à elaboração dos roteiros, passei a tentar coletar documentos dos órgãos responsáveis por questões trabalhistas como o Ministério Público do Trabalho, especificamente na Procuradoria Geral do Trabalho e os sindicatos da categoria, tanto em âmbito estadual quanto nacional. No caso do sindicato da categoria no estado – Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações (SINTTEL) –, depois de 31 dias consecutivos de ligações frustradas e inúmeros e-mails não respondidos, apelei para os números pessoais de alguns membros da diretoria executiva. A primeira tentativa de contato se deu com a presidenta do sindicato, Sra. Iara Martins e, em seguida, com o diretor de administração e finanças Sr. Gilberto Pirajá Martins Júnior na primeira semana de agosto. No primeiro caso, nenhuma resposta. No segundo, após uma resposta momentânea, o contato não voltou a ser estabelecido. 31 Já o contato com a Procuradoria Geral do Trabalho foi mais profícuo e após contatos telefônicos e ofícios enviados, eu recebi um Relatório Processual de Denúncias à Procuradoria Regional do Trabalho. O documento atesta o número de 91 denúncias de violação de direitos trabalhistas em empresas de call center no Rio Grande do Norte desde o início da pandemia, até o dia 27 de julho, data do relatório. No entanto, diante das impossibilidades de coleta de dados mais gerais sobre a situação do setor em nível nacional, decidi me centrar exclusivamente nas experiências dos sujeitos da pesquisa. O próximo capítulo recupera os antecedentes históricos que permitiram a hegemonia das políticas neoliberais. Será apresentado o percurso de reestruturação produtiva do sistema capitalista do pós-guerra, responsável por promover as inovações tecnológicas criadoras da indústria do call center, ao mesmo tempo que impôs ao mundo do trabalho um crescente processo de deterioração de garantias sociais definidas por diversos autores como precarização do trabalho. Serão demonstradas a produção de alguns autores sobre o tema, assim como os diversos conceitos que a categoria home office engloba nesse trabalho. 32 2 – REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, TECNOLOGIA E HOME OFFICE: A PRECARIZAÇÃO A CAMINHO DE CASA. “Jesse – Sabe uma coisa que me deixa furioso? Tem sempre alguém dizendo como a tecnologia é maravilhosa, E como ela nos faz poupar tempo. Mas de que adianta esse tempo poupado, se ninguém usufrui dele? Ele só é utilizado para se trabalhar mais. Quer dizer... Ninguém fala: ‘Com o tempo que ganhei usando o meu editor de texto, eu vou para um monastério Zen e curtir’. Você não ouve isso. Celine – O tempo é um conceito abstrato.” Antes do Amanhecer 2.1 – O PANORAMA TEÓRICO DA PRECARIZAÇÃO A crença na potencialidade que as revoluções tecnológicas, o desenvolvimento de maquinários cada vez mais complexos e os avanços científicos apresentam de melhorar a vida das pessoas, alicerçando o caminho para que a humanidade se torne, finalmente, "senhora do seu próprio tempo" é antiga e parece renovada a cada novo ciclo de adventos técnicos. O encurtamento das distâncias possibilitado a partir do século XVIII com a chegada da locomotiva, do automóvel, do metrô e do primeiro aeroplano, já no século XX, foi complementado pela revolução digital do pós-segunda guerra que permitiu a conexão virtual entre continentes com seus cabos submarinos, comunicação via-satélite e uma consequente “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista nos termos de David Harvey (2008, p. 140): Os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado. Esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade permitem que os empregadores exerçam pressões mais fortes de controle do trabalho sobre uma força de trabalho de qualquer maneira enfraquecido por dois surtos selvagens de deflação. 33 À medida em que as tecnologias da informação, microeletrônica e telecomunicações foram ampliando o seu raio de atuação e se tornando centrais para os mais variados setores econômicos, para a vida de pessoas comuns e, em última instância, para o debate público, foram surgindo numerosos entusiastas desses avanços que identificaram na Terceira Revolução Industrial o germe de um novo zeitgeist. A tecnoutopia de Douglas Rushkoff, expressa em Cyberia de 1994, traduz essa projeção de um futuro promissor trazido pelo avanço tecnológico em que se casariam “as mais recentes tecnologias computacionais com os sonhos mais íntimos e as mais antigas verdades espirituais.” (RUSHKOFF, 1994, p. 4, tradução nossa6). O livro, segundo Rushkoff, retratava “um momento muito especial na nossa história recente – um momento em que qualquer coisa parecia possível”. A partir da chamada cybercultura do século XXI, surgiu a tecnoutopia do conhecimento com a defesa do “livre fluxo de informação” e a possibilidade ilimitada de compartilhamento de saberes e experiências via software livres, códigos abertos e redes sociais. A promessa de emancipação humana pela via tecnológica em que qualquer um pudesse ter acesso a um mundo sem fronteiras, em que a evolução técnica seria posta a favor das liberdades, da ciência e do bem-estar das pessoas vem sendo, entretanto, despeçada nas últimas décadas. Uma decepção materializada no destino trágico de Aaron Swartz7; na captura de produtos culturais e produção científica encapsulada em sites pagos; na indenização de 15 milhões de dólares em favor da empresa Elsevier que Alexandra Asanovna Elbakyan8 foi condenada a pagar pela divulgação de artigos científicos de graça no site Sci-Hub; nos efeitos nefastos da manipulação da opinião pública com as chamadas fake news divulgadas em redes sociais e aplicativos de mensagens. Essa espécie de "solucionismo" tecnológico já foi amplamente combatido por quem entende que toda e qualquer tecnologia é fruto das relações sociais e políticas de um dado espaço-tempo e, como tal, contém em si mesma tanto potências benéficas quanto deletérias. 6 “Cyberia is about a very special moment in our recent history -- a moment whenanything seemed possible. When an entire subculture – like a kid at a rave trying virtual reality for the first time – saw the wild potentials of marrying the latest computer technologies with the most intimately held dreams and the most ancient spiritual truths.” 7 Aaron Swartz foi um programador, escritor, ativista político, pesquisador e hackativista estadunidense que militou por uma internet livre e acesso público a artigos científicos. Depois de hackear o repositório do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT) e ser preso sob acusação de fraude, ter seus bens confiscados e enfrentar um processo que, caso perdesse, o sujeitaria a multas de até 1 milhão de dólares e 35 anos de prisão, se matou em 2013. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Aaron_Swartz>. Acessado em 15 de out, 2020. 8 Alexandra Asanovna Elbakyan é uma programadora de computadores do Cazaquistão e ativista do acesso gratuito à pesquisas científicas. Em 2011 criou o site Sci-Hub que disponibiliza gratuitamente artigos científicos pirateados da editora Elsevier. A revista Nature listou-a em 2016 como uma das dez pessoas mais relevantes para a ciência. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandra_Elbakyan>. Acessado em 15 de out, 2020. https://pt.wikipedia.org/wiki/Escritor https://pt.wikipedia.org/wiki/Ativista_pol%C3%ADtico https://pt.wikipedia.org/wiki/Hackativista https://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_Tecnologia_do_Massachusetts https://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_Tecnologia_do_Massachusetts https://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_de_Tecnologia_de_Massachusetts https://pt.wikipedia.org/wiki/Cazaquist%C3%A3o https://pt.wikipedia.org/wiki/Cazaquist%C3%A3o https://pt.wikipedia.org/wiki/Sci-Hub 34 Estudioso dessas implicações, Evgeny Morozov (2018, p. 13) relata que a chegada da TV a cabo nos anos 1960 foi um desses momentos. Alguns grupos ativistas “equipados com câmeras portáteis e entusiasmados com o potencial da TV a cabo” começaram a produzir documentos fílmicos para “denunciar injustiças e contestar os poderes constituídos”. Essa autonomia de conteúdo inédita é, segundo ele, vista como “revolucionária” por aquela geração. No entanto, aponta: Quem lê os artigos daquela época – nos Estados Unidos, muitos deles eram publicados numa revista de contracultura, a Radical Software – fica assombrado com a ingenuidade absoluta da crença então demonstrada na força política dessas tecnologias. Inspirados nas obras de Marshall McLuhan e Buckminster Fuller, esses ávidos intelectuais do vídeo imaginavam que a aldeia global pós-política e pós-capitalista estava prestes a ser alcançada. Essa dita “ingenuidade” denunciada por Morozov – a mesma de Rudyard Kipling – é sintomática de uma certa tranquilidade fatalista que conta com a inevitabilidade do progresso, como se a única possibilidade de mudança no estado de coisas fosse, irremediavelmente, para melhor. Contudo, a despeito de todas as inovações técnicas estabelecidas a partir da segunda metade do século XX, também testemunhamos, em razão inversamente proporcional, o declínio dos direitos sociais de trabalhadoras e trabalhadores assalariados e, a partir disso, surge a pergunta: a que propósitos servem todos os avanços tecnológicos quando são produzidos dentro do sistema capitalista? Fruto direto da Terceira Revolução Industrial, o setor de call center reflete o dinamismo típico dos segmentos econômicos criados a partir do desenvolvimento de tecnologias informacionais. Com a chegada da pandemia de Covid-19 essas características foram facilitadoras da manutenção de suas atividades, especialmente, pela possibilidade da realização via remota, algo impensável para áreas do setor produtivo primário e secundário. A análise de Ruy Braga (2014, p. 26) de que a indústria do call center é um campo que “sintetiza as principais transformações recentes do mundo do trabalho no Brasil, tornando- se um ponto de observação privilegiado” se reflete neste estudo. Tal como ele o faz, o call center é aqui encarado como uma espécie de epítome contemporânea da realidade do trabalho, de onde podemos extrair uma questão central consequente para diversas outras áreas econômicas: Qual o papel do trabalho na sociedade urbana informacional do século XXI? Esse debate é demarcado a partir da Guerra do Yom-Kipur em 1973 e da decorrente crise do primeiro choque do petróleo quando os membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), maiores exportadores do mundo, partiram para uma ofensiva contra as https://www.infoescola.com/geografia/opep-organizacao-dos-paises-exportadores-de-petroleo/ https://www.infoescola.com/geografia/opep-organizacao-dos-paises-exportadores-de-petroleo/ 35 petroleiras concorrentes conhecidas como “sete irmãs”. A organização diminuiu a produção para elevar o preço do barril, aumentou a taxação de royalties e embargou os países apoiadores de Israel. Outro fator decisivo para a crise, explica Eric Hobsbawm (1995, p. 190), foi a transferência do “peso econômico” que, anteriormente ancorado nos EUA passa no pós- guerra para Europa e Japão. A fuga de dólares que se intensifica na década de 1960, resultado do déficit causado pelas empreitadas militares do país, enfraqueceu e desvalorizou a moeda. Essa flutuação foi agravada pelo desequilíbrio da estabilidade da moeda garantida pelas reservas de ouro do país que somavam à época 75% das reservas mundiais. Com o dólar enfraquecido, os europeus preferiram a garantia do ouro, o que fez disparar o preço do metal. Diante disso, o “sistema de pagamento internacional” acabou sendo transferido dos EUA para os bancos centrais europeus. A pressão americana para que os europeus voltassem a comprar dólares ao invés de ouro não surtiu efeito e a conversibilidade do dólar acabou, ocasionando o fim da estabilidade do sistema de pagamentos internacional que saiu do controle americano. Nenhuma outra nação ocupou esse espaço. Em vista disso, a “internacionalização” e consequente descentralização do sistema foi consumada. A profunda recessão que se seguiu acabou com a expansão econômica e a estabilidade conquistada pelo welfare state dos países desenvolvidos do capitalismo industrial, assim caracterizados por Eric Hobsbawm (1995, p. 222): Estados em que os gastos com a seguridade social — manutenção de renda, assistência, educação — se tornaram a maior parte dos gastos públicos totais, e as pessoas envolvidas em atividades de seguridade social formavam o maior corpo de todo o funcionalismo público. Ainda segundo Hobsbawm, todos os países avançados que compunham o centro do sistema capitalista já eram “Estados de bem-estar” na década de 1970. Seis deles – Austrália, Bélgica, França, Alemanha Ocidental, Itália e Países Baixos – gastavam mais de 60% de seus orçamentos na seguridade social. Depois do período chamado pelo historiador de “Era da Catástrofe” que compreende o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 e se estende até depois do final da Segunda Guerra Mundial, houve “uma espécie de Era de Ouro” compreendida entre 1947-73, em que “seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinário crescimento econômico e transformação social, anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável.” (HOBSBAWN, 1995, p. 14). Um período cuja escala de impactos econômicos, sociais e culturais foram “a 36 maior, mais rápida e mais fundamental da história registrada” e em que, pela primeira vez, a humanidade assistiu ao funcionamento de “uma economia mundial única, cada vez mais integrada e universal, operando em grande medida por sobre as fronteiras de Estado (‘transnacionalmente’)” (HOBSBAWN, 1995, p. 16). A depressão geral causada pelo choque do petróleo de 1973 gerou uma onda de desestabilização social e política tão significativas que inicia a derrocada do welfare state: Em alguns países desavisados, a crise produziu um verdadeiro holocausto industrial. A Grã-Bretanha perdeu 25% desua indústria manufatureira em 1980-4. Entre 1973 e fins da década de 1980, o número total de pessoas empregadas na manufatura nos seis velhos países industriais da Europa caiu 7 milhões, ou cerca de um quarto, mais ou menos metade dos quais entre 1979 e 1983. (HOBSBAWN, 1995, p. 238). Já segundo David Harvey (2008), essa crise se constitui no golpe que solapa de vez o fordismo e a sua “rigidez” característica, dando início a um período em que o sistema predominante é o da acumulação flexível. As décadas de 70 e 80 são caracterizadas por Harvey (2008, p. 140) como de delineamento e consolidação de “uma série de novas experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política” intensamente apoiada na “flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo”, assim como na permanência do desemprego estrutural e no retrocesso do poder sindical. A ruptura com antigos processos e a inovação técnica são tão determinantes que permitem o “surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente identificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”. Por um lado, o processo solapa o engessamento fordista e, por outro, elimina as garantias mínimas que o keynesianismo assegurava: A profunda recessão de 1973, exacerbada pelo choque do petróleo, evidentemente retirou o mundo capitalista do sufocante torpor da "estagflação” (estagnação da produção de bens e alta inflação de preços) e pôs em movimento um conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista. Em conseqüência, as décadas de 70 e 80 foram um conturbado período de reestruturação econômica e de reajustamento social e político. No espaço social criado por todas essas oscilações e incertezas, uma série de novas experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política começou a tomar forma. Essas experiências podem representar os primeiros ímpetos da passagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta. (HARVEY, 2008, p. 140) A produção em massa do modelo fordista foi substituída pela produção por demanda “just- in-time” diversificada em pequenos lotes do toyotismo, a preços menores, reposição de produtos somente depois da venda dos lotes disponíveis, trabalhadores multifuncionais, 37 implantação de subcontratação e uma prática, ainda mais agressiva, de obsolescência programada. Esse processo crescente de desindustrialização, aliado ao avanço da automação de sistemas produtivos e a sequente redução de postos formais de trabalho causou a migração de uma massa desempregada e desassalariada para o setor de serviços, o subemprego e a informalidade. A classe trabalhadora, definida por Ricardo Antunes (2006, p. 235) como aquela que “compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho, a ‘classe-que-vive-do-trabalho’ e que são despossuídos dos meios de produção.”, se encontrava desarticulada e experimentou uma crescente perda de força no jogo decisório. Sua incapacidade de resposta à investida do capital é percebida por Eric Hobsbawm (1995, p. 234), que atribui o fracasso da geração de maio de 1968 em estabelecer a “Revolução Proletária”, ao fato de que “após vinte anos de melhoria sem paralelos para os assalariados em economias de pleno emprego, revolução era a última coisa em que as massas proletárias pensavam”. Por isso ele demarca o campo de influência desse movimento muito mais na esfera cultural que política. Apesar de se constituírem como duas racionalidades distintas, o toyotismo herda do fordismo a intenção precursora de modelação de um sujeito moral. Uma preocupação que passa a atravessar todo e qualquer esforço das políticas neoliberais: O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista. O líder comunista italiano Antonio Gramsci, jogado numa das prisões de Mussolini umas duas décadas mais tarde, extraiu exatamente essa implicação. O americanismo e o fordismo, observou ele em seus Cadernos do Cárcere, equivaliam ao "maior esforço coletivo até para criar, com velocidade sem precedentes, e com uma consciência de propósito sem igual na história, um novo tipo de trabalhador e um novo tipo de homem”. Os novos métodos de trabalho" são inseparáveis de um modo específico de viver e de pensar e sentir a vida”. Questões de sexualidade, de família, de formas de coerção moral, de consumismo e de ação do Estado estavam vinculadas, ao ver de Gramsci, ao esforço de forjar um tipo particular de trabalhador "adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo". (HOBSBAWN, 1995, p. 121) A imposição das racionalidades instrumentalizadas para a exploração da força de trabalho aliada às implicações da reestruturação produtiva que resultam na acumulação flexível não trouxe apenas consequências macroeconômicas e/ou materiais, trata-se de processos que reverberam nas instâncias mais íntimas dos indivíduos: 38 A década de 1980 presenciou, nos países de capitalismo avançado, profundas transformações no mundo do trabalho, nas suas formas de inserção na estrutura produtiva, nas formas de representação sindical e política. Foram tão intensas as modificações, que se pode mesmo afirmar que a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser. (ANTUNES, 2006, p. 23) Segundo Antunes, as vagas de emprego no setor secundário foram diminuindo a partir da década de 1980, à medida que um processo de subproletarização ia acontecendo. O velho proletariado protegido por direitos trabalhistas, delimitação de horas à disposição do empregador, pagamento de horas extras, seguridade social e sindicatos fortes e combativos foi sendo substituído por trabalhadores submetidos a contratos de trabalho flexíveis para vagas temporárias, tempo parcial, até a adoção do trabalho intermitente atual. Essa classe é denominada por ele como “subproletariado moderno”. Ela vem lidando, ao longo do tempo, com uma crescente deterioração das condições de trabalho e, consequentemente, das suas condições de vida. Entre as distintas formas de flexibilização – em verdade, precarização – podemos destacar, por exemplo, a salarial, de horário, funcional ou organizativa. A flexibilização pode ser entendida como “liberdade da empresa” para desempregar trabalhadores; sem penalidades, quando a produção e as vendas diminuem; liberdade, sempre para a empresa, para reduzir o horário de trabalho ou de recorrer a mais horas de trabalho; possibilidade de pagar salários reais mais baixos do que a paridade de trabalho exige; possibilidade de subdividir a jornada de trabalho em dia e semana segundo as conveniências das empresas, mudando os horários e as características do trabalho (por turno, por escala, em tempo parcial, horário flexível etc.); dentre tantas outras formas de precarização da força de trabalho. (ANTUNES, 2009, p. 234) É a degradação das garantias trabalhistas e a consequente piora das condições de vida e de trabalho do proletariado que a presente pesquisa entende como “precarização do trabalho”, conceito que irá servir de eixo analítico para o estudo do fenômeno home office. Um processo diagnosticado por Antunes (2001, p.36) como “paralelo à globalização produtiva” em que a lógica da produção capitalista “vem convertendo a concorrência e a busca da produtividade num processo
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