Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DIREITO INTERNACIONAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Descrever as atribuições dos órgãos do Estado em relações internacionais. > Identificar os agentes diplomáticos e agentes consulares e suas atribuições. > Definir a imunidade de jurisdição do Estado em matéria trabalhista. Introdução As relações entre os Estados se realizam por meio de pessoas, cujas delegações lhes habilitam representar, negociar e proteger seus Estados de origem. São os agentes diplomáticos e consulares, agentes treinados pelos Estados, que têm a missão de realizar missões diplomáticas em outros países ou organismos inter- nacionais em nome de seus Estados de origem. Neste capítulo, você verá como identificar os agentes diplomáticos e agentes consulares, diferenciando as atribuições de ambos. As funções exercidas pelos agentes diplomáticos e consulares vêm previstas nas Convenções de Viena de 1961 e 1963. Você verá, também, que a imunidade de jurisdição, construída ao longo dos anos pela doutrina e jurisprudência internacionais, tem cedido espaço para a matéria trabalhista, cuja competência material no Brasil foi outorgada pela Constituição Federal de 1988. Os órgãos das relações entre os Estados Eduardo Zaffari Os órgãos do Estado em suas relações internacionais Inicialmente é importante compreender que o Estado é um ente criado com a finalidade de representar os interesses de determinada população. O Estado, teoricamente, é composto por três elementos básicos: população, território e governo. O Estado ideal seria composto por uma população homogênea, um território certo e inalienável e um governo independente (MALUF, 2019). Trata-se de uma conceituação ideal em que, por exemplo, o Canadá não poderia ser considerado um Estado, porque seu governo está submetido à commonwealth (comunidade de países ingleses). Uma definição teórica de Estado, dentre as várias possibilidades de conceituação, é a de Sahid Maluf, no seguinte sentido: “O Estado é o órgão executor da soberania nacional”, pois o Estado apenas é um meio de realização dos fins de uma comunidade nacional (MALUF, 2019). Esse conceito vai ao encontro da definição de Francisco Rezek (2018), quando afirma que o Estado não é apenas uma precedência histórica, mas uma realidade física, um espaço territorial em que vive uma comunidade de seres humanos. A organização do Estado é prescrita na Constituição, pelo Poder Constituinte Originário, entidade responsável pela criação, reforma e mutação das Constituições. Essa potência, que representa o povo, é uma teoria desenvolvida pelo Abade Joseph Sieyès, em 1789. Na execução dessa soberania nacional, o Estado divide o exercício de poder entre três diferentes entidades: � Poder Executivo, cuja função típica é a atividade administrativa estatal; � Poder Legislativo, cuja função típica é a fiscalização e a confecção de instrumentos normativos; � Poder Judiciário, cuja função típica é a solução de conflitos jurídicos. Com a tarefa de manterem-se independentes e harmoniosos, cada um desses Poderes exerce funções atípicas, em que desempenham, de forma secundária, as atribuições dos demais Poderes. Compete ao Poder Executivo a representação do Estado brasileiro na esfera nacional e internacional. Os órgãos das relações entre os Estados2 No entanto, Mazzuoli (2019) recorda que o Estado agirá por meio de pes- soas, que agirão em seu nome como órgãos. Afirmando a atuação destes no cenário internacional, refere o jurista: No que tange à ação exterior do Estado, tais pessoas agem como órgãos externos da potência soberana para a qual trabalham, variando sua competência de acordo com a maior (v.ġ., o Presidente da República ou o Ministro das Relações Exteriores) ou menor (v.ġ., os membros de missões junto a organizações internacionais) extensão de seus misteres. Em suma, será por meio de tais pessoas (ou órgãos) que a ação exterior do Estado se materializa na articulação de suas políticas, interesses etc. (MAZZUOLI, 2019, p. 760). Cada Estado ou organismo internacional disciplinará a forma de desig- nação desses representantes, suas atribuições e competências, conforme seu ordenamento jurídico. Usualmente são as Constituições de cada Estado que prescrevem quem representará o Estado em nome de sua população. Na esfera internacional, é o chefe de Estado que representará os interesses ante aos demais Estados — e o chefe de Estado poderá ser o presidente, um imperador, rei, ou, até mesmo, um primeiro-ministro. Os demais Estados, em razão de sua autonomia, não têm competência para opor-se quanto à forma de representação pelos outros Estados. Em outras palavras, é da autonomia de cada Estado, por meio de seu direito interno, escolher como se dará a representação na órbita internacional. A Constituição brasileira prescreve em seu artigo 84, VII, que competirá ao presidente da república “[...] manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos” (BRASIL, 1988, documento on-line). No exercício dessa competência, cuja atribuição constitucional é privativa, exercerá a função na qualidade de chefe de Estado, o que não lhe impede de delegar a representação nos termos prescritos em lei. Ma- zzuoli (2019, p. 760, grifo nosso) observa, entretanto, que “[...] modernamente, as atribuições dos chefes de Estado não são mais tratadas de maneira absoluta, como era no passado, em que o soberano reunia em torno de si todo o poder de representação (jus representationis omnimodae)”. Em regra, se os ordenamentos jurídicos particulares de cada Estado não dispuserem de forma diversa, são os chefes de Estado que representam as suas respectivas entidades nas relações internacionais com outros Estados ou organismos internacionais. A comunidade internacional atribuiu aos chefes de Estado a representação geral nos negócios internacionais. Essa direção política internacional é denominada de jus representatividade omnimodae, o que permite que os chefes de Estado assumam compromissos internacio- Os órgãos das relações entre os Estados 3 nais, ou deleguem legitimamente, sem a comprovação a cada ato. Os chefes de Estado nem sempre serão chefes do Poder Executivo, posto que, nas repúblicas, o presidente costuma reunir em si as funções de chefe de Estado e chefe de governo, como no Brasil, em que o presidente é chefe de governo (realizando funções administrativas) e chefe de Estado, representando o país no exterior. Em outros países, a chefia de Estado é confiada ao monarca (rei ou imperador), como na Holanda e na Inglaterra, e a chefia de governo aos respectivos primeiros-ministros. As atribuições de chefe de Estado e chefe de governo vêm prescritas nos incisos do artigo 84 da Constituição Federal de 1988 e não estão delimitados. Não há delimitação entre as funções de chefe de Estado e de governo. As inúmeras atribuições do chefe de Estado, assim como a especialização de muitos assuntos na esfera internacional, impedem que este participe di- retamente nos negócios internacionais. Para a representação com as demais nações ou entidades, nomeia-se um intermediário para atuar na relação entre o Estado e os organismos internacionais e demais Estados. Esse intermediário é denominado ministro das relações exteriores e agirá em nome do chefe de Estado, representando a política exterior daquele Estado. Mazzuoli afirma que esse importante representante ganha diferentes denominações, a depender conforme é instituído em seu país, exemplificando com: [...] Ministro dos Negócios Estrangeiros (Espanha), Secretário de Estado (EUA), Foreign Office (Grã-Bretanha), Departamento Político (Suíça), Comissário do Povo para As- suntos Estrangeiros (ex-URSS) e Chanceler (América Latina) (MAZZUOLI, 2019, p. 764). Campos e Távora (2018, p. 38) afirmam que “[...] o ministro das relações exteriores é um plenipotenciário, no quadro internacional — desde o momento em que investido pelo chefe de Estado, ou pelo chefe de governo, naquela função especializada”.Ou seja, o Ministro das Relações exteriores terá plenos poderes para agir em nome do Estado por delegação do chefe de Estado, sem a necessidade de comprovar os seus poderes. Os órgãos das relações entre os Estados4 Além da representação realizada pelo chefe de Estado e pelo ministro das relações exteriores, há a necessidade de funcionários que representem o Estado e defendam seus interesses nos demais. Esses funcionários, que são enviados de um Estado para o outro, são denominados agentes diplomáticos e atuarão cuidando de questões políticas em outros países, representando os interesses de seu Estado de origem. Por sua vez, os agentes consulares atuam representando o seu Estado de origem em questões administrativas e comerciais. Como afirma Varella (2019), o rompimento das relações diplomá- ticas não significa, necessariamente, o rompimento das relações consulares. Os agentes diplomáticos e agentes consulares e suas atribuições As relações internacionais se fundamentam pela interação entre agentes cada vez mais especializados técnica e juridicamente. Varella (2019) afirma que a lógica internacional eminentemente política vem cedendo espaço à técnica, econômica e científica. A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 é o principal documento que versa sobre as relações diplomáticas entre Estados. A Convenção, ratificada por quase a totalidade dos países, consolidou o direito costumeiro até então, tornando-se regra de Direito Internacional e se aplicando até mesmo aos países que não aderiram a ela em razão de sua prática. Além da consolidação da prática internacional realizada à época pela Convenção de Viena, os costumes e tratados multilaterais ou bilaterais regram outras disposições aplicáveis às relações diplomáticas. Mazzuoli (2019, p. 766), a respeito dos costumes nas relações diplomáticas, leciona que as “[...] práticas da diplomacia, obedecidas como lei, chamadas de usos diplomáticos, algumas delas já transformadas em verdadeiras normas de conduta, que podem, inclusive, acarretar a responsabilidade internacional do Estado caso violadas”. A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada em 1945, logo após o término da II Guerra Mundial, por 51 países, e tem, atualmente, 193 Estados soberanos em sua composição. A Organização foi criada objetivando a manutenção da paz e da segurança, fomento do relacionamento entre Estados (BRASIL, 2003). Os órgãos das relações entre os Estados 5 Os agentes diplomáticos são os agentes de Estado que têm a função clássica de representar, negociar e de informar-se sobre os assuntos de seu Estado de origem em outros Estados. Essa representação ocorre por meio das missões diplomáticas, em que um conjunto de funcionários representa o Estado de origem, denominado Acreditante (Estado que envia os diplomatas) em organismos internacionais ou em Estados de acolhimento, chamados de Acreditados (Estados que recebem a missão diplomática). As missões diplomáticas serão temporárias quando o grupo de funcionários for enviado para uma negociação específica ou para a realização de um determinado ato administrativo; serão permanentes quando os funcionários enviados pelo Estado de origem se instalarão no Estado de acolhimento. O ato formal e solene, cuja forma dependerá do ordenamento jurídico de cada Estado, para o reconhecimento dos poderes da missão diplomática permanente é o ato de acreditação. É por meio da acreditação que o Estado de acolhimento reconhece a importância e os poderes dos funcionários enviados. Varella (2019, p. 489) explica que poderão existir três diferentes tipos de missões permanentes, como refere: [...] a) embaixadas, responsáveis pela representação política dos Estados; b) consulados e vice-consulados, responsáveis pela representação comercial e administrativa, sobretudo de caráter notarial; c) delegações, missões ou escritórios, responsáveis pela representação política, comercial ou mesmo administrativa perante Organizações Internacionais ou pe- rante Estados. A classificação dos membros de uma missão diplomática é a pactuada no Congresso de Viena, de 19 de março de 1815, com três diferentes classes que se alteraram muito pouco ao longo do tempo, quais sejam: 1. embaixadores, legados ou núncios; 2. os enviados, ministros ou outros agentes, acreditados, como os pri- meiros, junto aos soberanos; 3. os encarregados de negócios, acreditados junto aos ministros das relações exteriores. Posteriormente, a Convenção de Viena de 1961 alterou, basicamente, quanto à acreditação, mantendo as seguintes classes: Os órgãos das relações entre os Estados6 1. embaixadores ou núncios acreditados perante chefes de Estado e outros chefes de missão de categoria equivalente; 2. enviados, ministros ou internúncios, acreditados perante chefes de Estado; 3. encarregados de negócios, acreditados perante ministros das relações exteriores. Os embaixadores são reconhecidos, pelo art. 14 da Convenção de Viena de 1961, como chefes das missões diplomáticas, exercendo o cargo de maior importância na hierarquia diplomática. Em uma missão poderão participar o pessoal oficial, do qual fazem parte os conselheiros, intérpretes, dentre outros; o pessoal não oficial, que são os acompanhantes sem função pública, como familiares do pessoal oficial; e os serviçais dos agentes diplomáticos, que são os servidores do pessoal em missão, como secretários, empregados domésticos, dentre outros. Destes, o pessoal oficial, com função pública delegada, compõe o chamado corpo diplomático. As Convenções de Viena de 1961 e de 1963 foram incorporadas ao direito brasileiro pelos Decretos 56.435, de 08 de junho de 1965, e 61.078, de 26 de julho de 1967, respectivamente, podendo ser considerados direito positivo para fins legais. As atribuições das missões diplomáticas, sejam estas temporárias ou permanentes, vêm prescritas na Convenção de Viena de 1961, tratado este que foi incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto 56.435, de 08 de junho de 1965. O art. 3º prescreve as funções da missão diplomática: [...] funções de uma Missão diplomática consistem, entre outras, em: a) representar o Estado acreditante perante o Estado acreditado; b) proteger no Estado acreditado os interesses do Estado acreditante e de seus nacionais, dentro dos limites permi- tidos pelo direito internacional; c) negociar com o Governo do Estado acreditado; d) inteirar-se por todos os meios lícitos das condições existentes e da evolução dos acontecimentos no Estado acreditado e informar a esse respeito o Governo do Estado acreditante; e) promover relações amistosas e desenvolver as relações econômicas, culturais e científicas entre o Estado acreditante e o Estado acreditado. Observa-se que os membros de uma missão diplomática, assim encarregados pelo seu Estado de origem, têm a função de representação, negociação, observação e proteção, com a natureza eminentemente política de sua atuação (BRASIL, 1965, documento on-line). Os órgãos das relações entre os Estados 7 Por sua vez, os cônsules e funcionários consulares, os quais desempenham as suas funções em consulados em Estados estrangeiros, têm uma função apolítica e a técnica. Nas palavras de Valério de Oliveira Mazzuoli (2019, p. 770): [...] os cônsules não representam o Estado na totalidade de suas relações exte- riores e não se encontram acreditados no país anfitrião. Enquanto os agentes diplomáticos desempenham funções políticas de representação, os cônsules são funcionários administrativos ou agentes oficiais do Estado que os nomeia (mas sem caráter diplomático ou representativo) que trabalham em cidades de outros países, agindo como órgãos da política comercial, tendo, também, a função de proteger os interesses particulares de seus nacionais As funções consulares vêm prescritas na Convenção de Viena de 1963, in- troduzida no Brasil pelo Decreto 61.078, de 26 de julho de 1967, que prescreve as atividades dos cônsules em seu art. 5º (BRASIL, 1967,documento on-line). Dentre diversas tarefas administrativas realizadas pelos cônsules, pode-se destacar a realização de recepções que fazem países com tradição turística para incrementar o turismo para seu país, como o Uruguai, por exemplo; a assistência prestada por autoridades consulares ao médico brasileiro detido no Egito; a realização de registro de nascimentos e óbitos, bem como casa- mentos em sua jurisdição; acompanhamento da situação de crianças de seu Estado que estejam no estrangeiro; coleta de informações comerciais no país de acolhimento, como os cônsules que prestam informações sobre os produtos brasileiros no exterior; expedição de passaportes para os seus nacionais que residam no exterior; dentre diversas outras atividades eminentemente técnicas. Observa-se que as tarefas dos agentes diplomáticos se concentram nos aspectos políticos, enquanto as tarefas consulares são, essencialmente, administrativas e comerciais. A imunidade de jurisdição do Estado em matéria trabalhista Os agentes diplomáticos e consulares gozam de imunidades prescritas nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, para que possam exercer as suas atri- buições com liberdade e segurança. Entretanto, além dessas imunidades, o próprio Estado estrangeiro goza de imunidades no Estado de acolhimento, seja em relação aos seus órgãos, seja em relação aos seus bens. Recordando o caso de “The Schooner Exchange Vs. McFaddon” (famoso caso em que ar- madores norte-americanos reclamaram a propriedade sobre navio francês que aportara nos Estados Unidos, alegando ser sua propriedade), que foi Os órgãos das relações entre os Estados8 julgado pela Suprema Corte Norte Americana em 1812, Mazzuoli explana a imunidade de jurisdição transcrevendo parte do julgado, em que na decisão constou (MAZZUOLI, 2019, p. 710): A jurisdição das cortes é um ramo do que a nação possui como um Poder sobe- rano e independente. A jurisdição da nação dentro do seu próprio território é necessariamente exclusiva e absoluta. Não é susceptível de qualquer limitação, senão imposta por ela mesma. Qualquer restrição a ela, que derive sua validade de uma fonte externa, implicaria numa diminuição de sua soberania, nos limites de tal restrição e uma investidura daquela soberania, nos mesmos limites em que aquele poder que poderia impor tal restrição. A doutrina e a jurisprudência internacional consideram que a imunidade de um Estado de origem em um Estado de acolhimento decorre da impossibilidade de interferência de um Estado sobre a soberania do outro, conforme decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos. Francisco Rezek (2018) recorda que há uma Convenção das Nações Unidas sobre a imunidade de jurisdição do Estado e de seus bens à jurisdição estrangeira que foi adotada pela Assem- bleia Geral em 02 de dezembro de 2004, mas que não entrou em vigor pela ausência do número mínimo de trinta manifestações de vontade aderindo a ela. Inexistindo um tratado que verse expressamente sobre a imunidade de jurisdição entre os Estados, impera a aplicação dos princípios da igualdade de tratamento e reciprocidade, em que os Estados preservam a imunidade dos demais Estados como respeito às suas soberanias e como forma de receber igual tratamento com as suas missões diplomáticas. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendimento de que se deve ob- servar a imunidade de jurisdição dos demais Estados, não os submetendo aos seus Tribunais, o que tem sido seguido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Observe-se que o Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, tem externado o seu entendimento de que não se deve observar a imunidade de jurisdição nos casos em que se constatar a inobservância de direitos humanos pelo Estado de origem. Entretanto, o posicionamento do Ministro Luis Felipe Salomão é minoritário, e os Tribunais superiores brasileiros têm o entendimento de que, mesmo nesses casos, os demais Estados não estão submetidos ao direito brasileiro. Os Estados de origem poderão, se assim o desejarem em certos casos, renunciar à imunidade de jurisdição, hipótese em que se submeterão ao ordenamento jurídico do Estado de acolhimento. Os órgãos das relações entre os Estados 9 Em relação à imunidade de jurisdição trabalhista, a situação é um pouco diversa. Conforme o artigo 114, inciso I, da Constituição Federal de 1988, a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações oriundas das relações de trabalho, prescrevendo expressamente que “[...] compete à Justiça do Trabalho processar e julgar [...] as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Mu- nicípios” (BRASIL, 1988, documento on-line, grifo nosso). A definição de entes de direito público externo pode ser encontrada no artigo 42 do Código Civil, para o qual “[...] são pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público” (BRASIL, 1988, documento on-line). A norma constitucional atribuiu a competência para a Justiça do Trabalho, não referindo expressamente quanto a eventual imunidade de jurisdição, o que leva Mazzuoli a referir que outras regras de imunidade de jurisdição poderiam afastar a jurisdição trabalhista (MAZZUOLI, 2019). Ocorre que muitos países já relativizaram a imunidade de jurisdição trabalhista desde a Convenção Europeia sobre Imunidade do Estado, assinada na Basileia (Suíça) por Áustria, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo, Países Baixos, Suíça e Reino Unido, de 1972. Essa relativização no costume internacional levou o STF ao entendimento pela possibilidade de processamento e julgamento de ações trabalhistas na Justiça do Trabalho, ressaltando-se o voto do Ministro Celso de Mello, de 2002, para quem o Estado estrangeiro “[...] não dispõe de imunidade de jurisdição, perante órgãos do Poder Judiciário brasileiro, quando se tratar de causa de natureza trabalhista [...] [e que] o privilégio resultante da imunidade de execução não inibe a justiça brasileira de exercer jurisdição nos processos de conhecimento instaurados contra Estados estrangeiros” (BRASIL, 2003, documento on-line, acréscimo nosso). Um dos marcos no direito brasileiro foi a apelação cível ACi 9696-SP, julgada pelo STF em 1989, no caso Genny de Oliveira em face da Embaixada da República Democrática Alemã, em que se reconheceu a legitimidade da Justiça do Trabalho para apreciar a reclamação trabalhista, afastando-se a imunidade de jurisdição. Mas se observe que persiste a imunidade de execução, pois os bens do Estado estarão protegidos pelas Convenções de Viena de 1961 e 1963, o que significa que o reclamante poderá ajuizar demanda que tramitará e será julgada, mas a execução apenas poderá recair sobre bens que não estejam afetados pela missão diplomática como imunes. Duas possibilidades existem na execução trabalhista: a) existindo renúncia pelo Estado estrangeiro na Os órgãos das relações entre os Estados10 execução trabalhista, esta poderá recair sobre quaisquer bens do Estado de origem; b) a expropriação de outros bens do Estado de origem, que não este- jam afetados pela imunidade. Observe-se que essa hipótese não é rara, pois os países têm seguidamente bens de empresas públicas em outros Estados, permitindo a expropriação no caso de execução trabalhista. A imunidade de jurisdição permite que os Estados mantenham relações internacionais, enviando missões diplomáticas aos outros países com garantia de seus órgãos e bens. Entretanto, o direito internacional tem evoluído no sentido de admitir a responsabilização do Estado estrangeiro pelos débitos trabalhistas, o que o Brasil tem admitido ao longo dos recentes anos. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm.Acesso em: 20 jun. 2021. BRASIL. Decreto nº 56.435, de 8 de junho de 1965. Promulga a Convenção de Viena sôbre Relações Diplomáticas. Diário Oficial da União, Brasília, 8 jun. 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d56435.htm. Acesso em: 20 jun. 2021. BRASIL. Decreto nº 61.078, de 26 de julho de 1967. Promulga a Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jul. 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D61078.htm. Acesso em: 18 jun. 2021. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 18 jun. 2021. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AG.REG.NO Recurso Extraordinário: 222368 PE. Imunidade de jurisdição - reclamação trabalhista - litígio entre estado estrangeiro e empregado brasileiro - evolução do tema na doutrina, na legislação comparada e na jurisprudência do supremo tribunal federal: da imunidade jurisdicional absoluta à imunidade jurisdicional meramente relativa - recurso extraordinário não conhecido. Relator: Celso de Mello. Diário de Justiça, Recife, 14 fev. 2003. Disponível em: https:// jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/IT/RE_222368_PE_1279099800627.pdf?AWSAc cessKeyId=AKIARMMD5JEAO67SMCVA&Expires=1624227929&Signature=b7pOyi5s8PqS Ghip3NAMEEk6n6I%3D. Acesso em: 20 jun. 2021. CAMPOS, D. de S. A.; TÁVORA, F. Direito internacional: público, privado e comercial. São Paulo: Saraiva, 2018. MALUF, S. Teoria geral do Estado. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. MAZZUOLI, V. de O. Curso de direito internacional público. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. REZEK, J. F. Direito internacional público. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. VARELLA, M. D. Direito internacional público. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. Os órgãos das relações entre os Estados 11 Leituras recomendadas ACCIOLY, H.; SILVA, G. E. N. e; CASELLA, P. B. Manual de direito internacional público. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Sobre o nosso trabalho para alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável no Brasil. c2021. Disponível em: https://brasil.un.org/ pt-br/sdgs. Acesso em: 20 jun. 2021. TEIXEIRA, C. N. Manual de direito internacional público e privado. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Os órgãos das relações entre os Estados12
Compartilhar