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PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES ANATOMIA E FISIOLOGIA PANCREATICA O pâncreas tem duas funções principais: i. Função exócrina → produzir enzimas ii. Função endócrina → Produzir hormônios O pâncreas exócrino é regulado pela interação direta entre os sistemas hormonal e neural. Quando uma pessoa se alimenta, vários fatores geram impulsos nervosos que promovem o funcionamento do pâncreas, tais como o cheiro do alimento, o gosto e a chegada do bolo alimentar no estômago. Já em relação a parte hormonal, a produção do suco pancreático também ocorre graças à ação de dois hormônios: a secretina e a colecistoquinina (CCK) ➔ Secretina: é secretada pelas células S da mucosa duodenal, sendo estimulada pelo ácido gástrico. A secretina é responsável por estimular a secreção de água e eletrólitos pelas células dos ductos pancreáticos ➔ CCK: é secretado pelas células da mucosa duodenal e células de Ito do jejuno proximal, estimuladas pelos ácidos graxos, aminoácidos essenciais e ácido gástrico. Sua função é estimular a secreção de enzimas pelas células acinares do pâncreas O sistema nervoso parassimpático (via nervo vago) exerce controle significativo sobre a secreção pancreática, principalmente para a secreção enzimática, enquanto as secreções de água e bicarbonato são altamente dependentes dos efeitos hormonais da secretina e, em menor grau, da CCK. COMPOSIÇÃO DO LIQUIDO PÂNCREATICO É formado por: Água + eletrólitos + enzimas O bicarbonato é o íon fisiologicamente mais importante da secreção pancreática pois ajuda a neutralizar o ácido gástrico e mantém o pH apropriado para a atividade das enzimas pancreáticas e sais biliares sobre o alimento ingerido Enzimas pancreáticas → todas as enzimas pancreáticas têm pH ideal na faixa alcalina e são elas: 1. Amilolíticas (amilase) → hidrolisam o amido em oligossacarídeos e dissacarídeo maltose. 2. Lipolíticas (lipase, fosfolipase A e colesterol- esterase) 3. Proteolíticas (tripsina, quimiotripsina) → atuam sobre as ligações peptídicas internas das proteínas e dos polipeptídeos As enzimas proteolíticas são secretadas na forma inativa, até que a enterocinase, uma enzima encontrada na mucosa duodenal atua no tripsinogênio para formar tripsina. Em seguida, a tripsina ativa outros zimogênios proteolíticos e a fosfolipase A2 em uma reação em série. AUTOPROTEÇÃO DO PÂNCREAS A autodigestão do pâncreas é evitada pelos seguintes fatores: ▪ Armazenamento das proteases pancreáticas na forma de precursores (pró-enzimas) ▪ Homeostasia do cálcio intracelular (o cálcio intracelular no citosol da célula acinar promove a destruição da tripsina espontaneamente ativada) ▪ Equilíbrio acidobásico ▪ Síntese de inibidores de protease protetores (inibidor da tripsina secretória pancreática [PSTI] ou SPINK1) A perda de qualquer um desses quatro mecanismos protetores leva à ativação prematura das enzimas, autodigestão e pancreatite aguda. PANCREATITE AGUDA É um processo inflamatório agudo decorrente da autodigestão do pâncreas causado pelas próprias enzimas pancreáticas, podendo ou não envolver subsequentemente outros tecidos regionais, órgãos ou tecidos a distância. EPIDEMIOLOGIA: dados sugerem que a pancreatite aguda seja o diagnostico gastrintestinal principal mais comum em pacientes hospitalizados, com uma incidência anual variando de 13-45 casos por 100 mil habitantes e responsável por > 250 mil hospitalizações por ano. As taxas de hospitalização aumentam com a idade, sendo maior nos homens negros. ETIOLOGIA E PATOGÊNESE PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES As causas mais comuns de pancreatite aguda são: 1. Cálculos biliares (litíase biliares > 5 mm para conseguir descer pelos ductos biliares para impactar na papila duodenal) 2. Álcool a. Porém, deve-se levar em consideração que a incidência de pancreatite nos alcoolistas é surpreendentemente baixa, indicando que outros fatores afetam a suscetibilidade individual à lesão pancreática (como o tabagismo). 3. Hipertrigliceridemia a. Principalmente quando triglicerídeos são maiores do que 1000 mg/dL 4. Colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) a. O uso profilático de um stent no ducto pancreático e de AINEs por via retal reduz a pancreatite após CPRE. b. Os fatores de risco para pancreatite pós- CPRE incluem esfincterotomia da papila menor, disfunção do esfíncter de Oddi, história pregressa de pancreatite pós- CPRE, idade < 60 anos, mais de 2 injeções de contraste no ducto pancreático e participação de profissionais em treinamento na endoscopia. 5. Fármacos a. Tais como: azatioprina, 6-mercaptopurina, sulfonamidas, estrogênios, tetraciclina, ácido valproico, fármacos anti-HIV, ácido 5-aminossalicílico [5-ASA]) b. Esses fármacos podem gerar uma reação de hipersensibilidade ou geração de um metabolito tóxico 6. Traumatismo a. Em particular traumatismo abdominal fechado 7. Pós-operatório de cirurgias abdominais e não abdominais Já as causas mais incomuns são: 1. Causas vasculares e vasculite como isquemia- hipoperfusão depois de cirurgia cardíaca 2. Distúrbios do tecido conectivo 3. Câncer de pâncreas 4. Hipercalcemia 5. Divertículo periampular 6. Pâncreas divisum 7. Pancreatite hereditária 8. Fibrose cística 9. Insuficiência renal 10. Infecções (caxumba, Coxsackie, citomegalovírus, ecovírus, parasitas) 11. Autoimune (tipo 1 e tipo 2) Qualquer fator capaz de provocar elevação abrupta dos triglicerídeos séricos pode desencadear um episódio de pancreatite aguda Para explicar a pancreatite, a teoria atual mais aceita é a autodigestão → pancreatite ocorre quando as enzimas proteolíticas (principalmente a tripsina) são ativadas nas células acinares do pâncreas e não no lúmen intestinal. Acredita-se essa ativação seja facilitada por diversos fatores tais como: endotoxinas, exotoxinas, infecções virais, isquemia, estresse oxidativo, cálcio lisossômico e traumatismo direto ou até que ocorra de forma espontânea As enzimas proteolíticas ativadas não apenas digerem os tecidos pancreáticos e peripancreáticos, como também podem ativar outras enzimas, como a elastase e a fosfolipase A2. EVOLUÇÃO DA PANCREATITE Acredita-se que a pancreatite aguda evolua em três fases: 1. Fase inicial → ativação intrapancreática das enzimas digestivas e lesão das células acinares, provocada principalmente pela tripsina 2. Segunda fase → ativação da quimiotaxia e sequestro de neutrófilos e macrófagos no pâncreas, resultando em reação inflamatória intrapancreatica aumentada a. Existe evidência de que os neutrófilos possam ativar o tripsinogênio. Por conseguinte, a ativação intrapancreática do tripsinogênio das células acinares pode ser um processo em duas etapas - uma fase inicial independente dos neutrófilos e uma fase posterior dependente dos neutrófilos 3. Terceira fase → se refere aos efeitos das enzimas proteolíticas ativadas e das citocinas liberadas pelo pâncreas inflamado nos órgãos distantes. a. As enzimas proteolíticas ativadas, em especial a tripsina, não apenas digerem os tecidos pancreáticos e peripancreáticos, mas também ativam outras enzimas que causam proteólise, edema, hemorragia intersticial, dano vascular, necrose por coagulação, necrose gordurosa e necrose das células parenquimatosas. PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES b. A lesão e morte celulares resultam na liberação de peptídeos de bradicinina, substâncias vasoativas e histamina, que podem produzir vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular e edema com profundos efeitos sobre muitos órgãos. Síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) e síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), assim como falência de múltiplos órgãos, podem resultar dessacascata de efeitos locais e distantes. Vale lembrar ainda que vários fatores genéticos podem aumentar a suscetibilidade e/ou modificar a intensidade da lesão pancreática na pancreatite aguda, recorrente e crônica. Foram identificadas cinco variantes genéticas associadas à suscetibilidade à pancreatite e são eles: 1. Gene do tripsinogênio catiônico (PRSS1) 2. Inibidor da tripsina secretória pancreática (SPINK1) 3. Gene regulador da condutância transmembrana da fibrose cística (CFTR) 4. Gene C da quimiotripsina (CTRC) 5. Receptor sensível ao cálcio (CASR). QUADRO CLINICO A dor abdominal é o principal sintoma da pancreatite aguda. As características dessa dor são: ➔ Intensidade: pode variar de um desconforto leve a um sofrimento intenso, constante e incapacidade ➔ Localização: epigástrico e região periumbilical, com frequência irradiando para o dorso, tórax, flancos e parte inferior do abdome ➔ Sintomas associados: náuseas, vômitos e distensão abdominal + peritonite química No exame físico, podemos encontrar: ➔ Paciente angustiado e ansioso ➔ Febre baixa ➔ Taquicardia e hipertensão ➔ Hipersensibilidade abdominal e rigidez muscular + ruídos peristálticos geralmente abolidos ou reduzidos ➔ Choque, resultado de: o Hipovolemia secundária à exsudação de sangue e proteínas plasmáticas para dentro do espaço retroperitoneal o Produção aumentada e liberação de peptídeos de cininas, que causam vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular; o Efeitos sistêmicos das enzimas proteolíticas e lipolíticas liberadas e lançadas na circulação. Raramente, podemos encontrar: a. Icterícia (edema da cabeça do pâncreas com compressão do segmento intrapancreático do colédoco, ou à passagem de um cálculo ou lama biliar) b. Nódulos cutâneos eritematosos devido à necrose de gordura subcutânea c. Anormalidades pulmonares como estertores nas bases, atelectasia e derrame pleural (principalmente no lado esquerdo) Um pâncreas aumentado com coleção repentina de líquidos, necrose encapsulada ou pseudocisto pode ser palpável na parte superior do abdome na fase avançada da doença (4 a 6 semanas). Também pode haver: a. Sinal de Cullen → Coloração azul-pálida ao redor do umbigo em consequência do hemoperitônio b. Sinal de Gray-Turner → Coloração azul-arroxeada ou verde-acastanhada nos flancos reflete o catabolismo tecidual da hemoglobina pela pancreatite necrosante grave com hemorragia. Em relação a alterações laboratoriais, temos que níveis séricos de lipase e amilase 3 ou mais vezes acima da normalidade, sendo a lipase sérica o exame preferido, pois: a. A amilase tende a normalizar depois de 3-7 dias, mesmo com evidências persistentes de pancreatite, enquanto que a lipase permanece elevada por 7-14 dias b. Amilase no soro e na urina pode aumentar em condições diferentes da pancreatite → A dosagem da lipase sérica pode ser útil para diferenciar entre causas pancreáticas e não pancreáticas de hiperamilasemia c. Pacientes em acidose (pH arterial ≤ 7,32) podem ter elevações fictícias dos níveis séricos de amilase. PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES Outro ponto importante é que o aumento da amilase e lipase não indicam gravidade ou prognostico ruim, apenas que tem uma afecção do pâncreas. Além disso, leucocitose (15.000 a 20.000 leucócitos/μL) ocorre com frequência e pacientes com doença mais grave podem apresentar hemoconcentração com valores do hematócrito > 44% e/ou azotemia com nível sanguíneo de ureia > 22 mg/dL devido à perda de plasma no espaço retroperitoneal e na cavidade peritoneal. ➔ Hemoconcentração indica doença mais grave (necrose pancreática, por exemplo) ➔ Azotemia é um significativo fator de risco para mortalidade Por fim, pode-se encontrar ainda: 1. Hiperglicemia a. Secreção diminuída de insulina b. Secreção aumentada de glucagon c. Débito exagerado de glicocorticoides e catecolaminas suprarrenais. 2. Hipocalcemia 3. Hiperbilirrubinemia (bilirrubina sérica > 4,0 mg/dL). a. Porém, a icterícia é transitória e os níveis séricos de bilirrubina normalizam em 4 a 7 dias. 4. Fosfatase alcalina e aspartato-aminotransferase transitoriamente elevados e acompanham os valores séricos da bilirrubina Exames de imagem: recomenda-se uma USG abdominal na emergência como exame diagnostico inicial, principalmente para avaliar a doença biliar e da cabeça do pâncreas → procura de pedras nas vias biliares Se for feita uma TC, os critérios de Atlanta revisados descreveram os aspectos morfológicos da pancreatite aguda em: 1. Pancreatite intersticial A irrigação sanguínea do pâncreas é mantida, geralmente autolimitada. As alterações encontradas nesse tipo de pancreatite são: aumento difuso da glândula, realce homogêneo do contraste e alterações inflamatórias leves ou presença de bandas peripancreáticas. Os sintomas geralmente melhoram em 1 semana de hospitalização 2. Pancreatite necrosante Irrigação sanguínea do pâncreas interrompida, com ausência de realce do parênquima pancreático pelo contraste intravenoso e/ou presença de indícios de necrose peripancreática. A história natural desse tipo de necrose pancreática é variável, pois pode permanecer sólida ou líquida, continuar estéril ou tornar-se infectada e persistir ou desaparecer com o tempo. 3. Coleção líquida pancreática aguda 4. Pseudocisto pancreático 5. Coleção necrótica aguda (CNA); 6. Necrose encapsulada (NE) A TC com contraste é o melhor exame para avaliar pâncreas, porém, só é útil 3 a 5 dias depois da hospitalização, quando os pacientes não estão respondendo ao tratamento de manutenção, de forma a investigar a existência de complicações locais como necrose. Pedido imediato para TC → Quadro de inicio grave, paciente piorou ou em duvida do diagnostico DIAGNOSTICO É estabelecido pela presença de dois dos seguintes critérios: 1. Dor abdominal típica no epigástrico que pode irradiar para o dorso 2. Elevação de três vezes ou mais nos níveis séricos de lipase e/ou amilase 3. Alterações confirmatórias de pancreatite aguda nos exames de imagem abdominais no plano transversal DIAGNOSTICO DIFERENCIAL Deve incluir: 1. Víscera profunda, sobretudo úlcera péptica; 2. Colecistite aguda e cólica biliar 3. Obstrução intestinal aguda 4. Obstrução vascular mesentérica 5. Cólica renal 6. Infarto agudo do miocárdio inferior 7. Aneurisma dissecante da aorta 8. Distúrbios do tecido conectivo com vasculite 9. Pneumonia 10. Cetoacidose diabética. EVOLUÇÃO CLINICA E CLASSIFICAÇÕES FASES DA PANCREATITE AGUDA A pancreatite aguda pode ser definida em duas fases: 1. Inicial (< 2 semanas) Se estende por 1-2 semanas, sendo que a sua gravidade é determinada principalmente pelos parâmetros clínicos. A PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES maioria dos pacientes apresenta SIRS que, se for persistente, torna os pacientes predispostos à falência orgânica. Três sistemas orgânicos devem ser avaliados para a definição de falência de órgãos: respiratório, cardiovascular e renal. Um escore ≥ 2 em um dos três sistemas orgânicos, usando o sistema de graduação de Marshall modificado garante o diagnóstico. ➔ Se afetar mais de um órgão: falência múltipla de órgãos ➔ Se persistir por mais de 48 horas: falência orgânica persistente, sendo o achado clínico mais importante quanto à gravidade do episódio de pancreatite aguda. A TC geralmente é desnecessária ou recomendada nas primeiras 48 horas da internação por pancreatite aguda. 2. Tardia (>2 semanas) Caracteriza-se por evolução prolongada da doença e, assim como na fase inicial, o parâmetro clínico importante de gravidade é a falência persistente dos órgãos. Esses pacientes podem necessitar de medidas de suporte como diálise renal, suporte ventilatórioou nutrição suplementar por via nasojejunal ou parenteral, além de exames de imagem para avaliação de complicações locais GRAVIDADE DA PANCREATITE AGUDA Classificado pelos critérios de Atlanta em: 1. Leve É autolimitada, regride espontaneamente (3-7 dias depois da instituição do tratamento), não há complicações locais nem falência de órgãos, sendo que a maioria apresenta pancreatite aguda intersticial. Para avaliar pode ser pedido: gasometria, ureia/creatinina, hematócrito e lactato 2. Pancreatite aguda moderadamente grave Caracteriza-se por falência de órgãos transitória (melhora em menos de 48 horas) ou complicações locais ou sistêmicas na ausência de falência orgânica persistente. Esses pacientes podem ou não apresentar necrose, mas podem desenvolver complicação local como coleção líquida, que exige hospitalização prolongada por mais de 1 semana. 3. Pancreatite aguda grave Caracteriza-se por falência orgânica persistente (> 48 horas) que pode afetar um ou mais órgãos, sendo a TC ou RM os melhores exames para avaliar necrose e/ou complicações. Proteína C reative maior → Marcador inflamatório mais importante TRATAMENTO O manejo da pancreatite aguda começa no setor de emergência que deve fazer: anamnese cuidadosa, revisão dos fármacos usados, exames laboratoriais selecionados (perfil hepático, triglicerídeos séricos, cálcio sérico) e ultrassonografia abdominal (avaliar principalmente vesícula biliar e o ducto colédoco, assim como a cabeça do pâncreas). RESSUSCITAÇÃO VOLÊMICA E MONITORAÇÃO DA RESPOSTA AO TRATAMENTO A intervenção terapêutica mais importante é a ressuscitação volêmica segura e agressiva com líquidos intravenosos: 1. Bolus de líquidos intravenosos de solução de ringer lactato ou soro fisiológico a 15 a 20 mL/kg (1.050 a 1.400 mL) a. Acredita-se que o RL reduz a inflamação sistêmica podendo ser uma solução melhor do que o SF 2. Em seguida: 2 a 3 mL/kg por hora (200 a 250 mL/h), para manter o débito urinário acima de 0,5 mL/kg/hora A cada 6-8 horas: reavaliação a beira do leito para aferir os sinais vitais, saturação de oxigênio e alterações do exame físico. Além disso, recomenda-se uma estratégia de ressuscitação dirigida com determinações do hematócrito e da ureia a cada 8 a 12 horas para garantir a adequação da ressuscitação líquida e monitorar a resposta ao tratamento → O objetivo é uma queda do hematócrito e da ureia sanguínea durante as primeiras 12 a 24 horas. Se o paciente evoluir com elevações do hematócrito e da ureia durante as avaliações seriadas, ele deve ser tratado com um desafio de volume repetido → um bolus de cristaloides de 2 L, seguido de aumento da taxa de infusão em 1,5 mg/kg/h. Se não houver resposta da ureia e do hematócrito, recomenda-se fortemente a transferência do paciente para a unidade de terapia intensiva para monitoração hemodinâmica. Pode haver necessidade de ajustes na reposição de fluidos dos pacientes com doença cardíaca, pulmonar ou renal. PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES Além disso, outras recomendações são: 1. Oferecer analgésicos narcóticos intravenosos para a dor abdominal 2. Ofertar oxigênio suplementar (2 L) por cateter nasal. 3. CPRE → para casos de colangite ou icterícia AVALIAÇÃO DA GRAVIDADE E TRIAGEM HOSPITALAR Para avaliar a gravidade, é utilizada o BISAP: A presença de 3 ou mais desses fatores era associada ao aumento substancial do risco de mortalidade hospitalar entre pacientes com pancreatite aguda. Em geral, os pacientes com escores de BISAP, hematócritos e nível de ureia mais baixos por ocasião da internação tendem a responder ao tratamento inicial e são colocados em enfermaria comum para a continuação dos cuidados. Se não houver SIRS nas primeiras 24 horas, é improvável que o paciente desenvolva falência de órgãos ou necrose. Assim, os pacientes com SIRS persistente em 24 horas ou com comorbidades subjacentes (p. ex., doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência cardíaca congestiva) devem ser considerados para internação em unidade de cuidados intermediários, quando disponível. TRATAMENTO NUTRICIONAL Enquanto o paciente com pancreatite leve sentir dor abdominal → dieta não oral (NPO) para descanso do pâncreas. Depois da melhora da dor abdominal pode ser administrado dieta sólida pobre em gorduras. A nutrição enteral deve ser considerada 2 a 3 dias depois da internação dos pacientes com pancreatite mais grave, em vez de recorrer à nutrição parenteral total (NPT) → A alimentação enteral mantém a integridade da barreira intestinal, limita a translocação bacteriana, tem menor custo e menos complicações que a NPT CONSIDERAÇÕES ESPECIAIS COM BASE NA ETIOLOGIA 1. Pancreatite biliar Os pacientes com evidências de colangite ascendente (elevação da contagem de leucócitos, aumento de enzimas hepáticas) devem ser submetidos à CPRE dentro de 24 a 48 horas após a admissão. Pacientes com pancreatite biliar têm risco aumentado de recorrência e deve ser considerada a realização de colecistectomia durante a mesma internação ou em 4 a 6 semanas após a alta. Uma alternativa para pacientes que não são candidatos cirúrgicos seria a esfincterotomia biliar por endoscopia digestiva antes da alta. 2. Hipertrigliceridemia (triglicerídeos séricos > 1000 mg/dL) Inicialmente, o manejo é feito com insulina, heparina ou plasmaférese. Para o manejo ambulatorial, o recomendado é controle de diabetes (se presente), administração de hipolipemiantes, perda de peso e interrupção dos fármacos que aumentam os níveis de lipídeos. COMPLICAÇÕES As complicações da pancreatite aguda podem ser divididas em: 1. Locais Necrose (estéril, infectada ou encapsulada), coleções de líquido pancreático, pseudocisto pancreático, ruptura do ducto pancreático principal ou ramos secundários, ascite pancreática, acometimento de órgãos contíguos pela pancreatite necrosante, trombose de vasos sanguíneos (veia esplênica, veia porta), fístula pancreaticoentérica, infarto intestinal, icterícia obstrutiva PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES 2. Sistêmicas Pulmonares → Derrame pleural, atelectasia, derrame mediastino, pneumonite, hipoxemia, síndrome da angusta respiratória aguda) Cardiovasculares → Hipotensão, hipovolemia, alterações ST- T inespecíficas no eletrocardiograma que simulam infarto agudo do miocárdio, derrame pericárdico Hematológica → Coagulação intravascular disseminada Hemorragia digestiva → Doença ulcerosa péptica, gastrite erosiva, necrose pancreática hemorrágica com erosão dos principais vasos sanguíneos, trombose de veia porta, trombose de veia esplênica, hemorragia de varizes Renais → Oliguria (<300 mL/dia), azotemia, trombose da artéria renal e/ou da veia renal, necrose tubular aguda Metabólicas → hiperglicemia, Hipertrigliceridemia, hipocalcemia, encefalopatia, cegueira súbita (retinopatia de Purtscher) Sistema nervoso central → psicose, êmbolos gordurosos Necrose gordurosa → Tecidos subcutâneos (nódulos eritematosos), ossos e diversas (mediastino, pleura, sistema nervoso) MANEJO DA NECROSE Quando há sinais evidentes de infecção pancreática (leucocitose persistente, febre ou falência de órgãos) → Aspiração percutânea do foco necrótico com coloração por Gram e cultura devem ser considerados. Enquanto se aguarda os resultados, é razoável iniciar antibióticos de amplo espectro para um paciente aparentemente séptico. ➔ Se o resultado voltar negativo para infecção, deve- se parar imediatamente a ATB para evitar o risco de desenvolvimento de superinfecção oportunista ou fúngica. ➔ Se for confirmado a suspeita de diagnostico infectado, a antibioticoterapia é feita de forma dirigida. o O desbridamento pancreático (necrosectomia) pode ser considerado para tratamento definitivo da necrose infectada.Aspirações repetidas com agulha fina podem ser realizadas com coloração por Gram e culturas da necrose pancreática a cada 5 a 7 dias quando há febre persistente. A repetição da TC ou RM também deve ser considerada quando há qualquer alteração da evolução clínica para monitorar complicações (p. ex., tromboses, hemorragia, síndrome do compartimento abdominal). MANEJO DOS PSEUDOCISTOS A maioria das coleções agudas desaparece com o tempo, sendo que apenas as coleções sintomáticas devem ser drenadas com cirurgia ou endoscopia ou por via percutânea. MANEJO DA RUPTURA DO DUCTO PANCREÁTICO É evidenciado por sintoma como dor abdominal crescente ou dispneia na presença de acúmulo crescente de líquido e o diagnóstico pode ser confirmado por colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM) ou CPRE. A colocação de um stent pancreático através da lesão e sua manutenção por no mínimo 6 semanas tem eficácia > 90% como medida de controle do extravasamento. Os stents que não atravessam a área da lesão são menos eficazes Teoricamente, a incidência de pancreatite aguda é mais alta nos pacientes com Aids por duas razões: 1. Incidência alta de infecções que acometem o pâncreas, como infecções por citomegalovírus, Cryptosporidium e complexo Mycobacterium avium; 2. Uso frequente de fármacos para tratar Aids como didanosina, pentamidina, sulfametoxazol- trimetoprima e inibidores de protease. PANCREATITE CRÔNICA FISIOPATOLOGIA E ETIOLOGIA É um processo patológico caracterizado por danos irreversíveis ao pâncreas, sendo definido pela presença de anormalidades histológicas como inflamação crônica, fibrose e destruição progressiva dos tecidos exócrinos e, por fim, endócrinas (o que indica atrofia) A etiologia da pancreatite crônica pode ser (TIGARO): 1. Tóxico-metabólica a. Alcoolismo (etiologia mais comum nos adultos) b. Tabagismo PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES c. Hipercalcemia e hiperlipidemia d. Doença renal crônica e. Fármacos e toxinas 2. Idiopática a. Inicio precoce, tardio ou tropical 3. Genética a. Mutação PRSS1 → Anomalia genética que afeta o gene codificador de tripsinogênio, impedindo a destruição da tripsina ativada prematuramente e permita que ela resista ao efeito protetor intracelular do inibidor da tripsina b. CFTR → fibrose cística (principal causa de pancreatite crônica em crianças) c. SPINK1 4. Autoimune a. Pancreatite crônica autoimune tipo 1 ou 2 b. IgG4 sistêmica 5. Recorrentes a. Pancreatite aguda recorrente b. Pós necrose pancreática 6. Obstrutiva a. Pâncreas bífido b. Obstrução ductal – tumor, trauma, stent c. Disfunção do esfíncter de Oddi d. Cistos da parede duodenal pré-ampulares Independentemente do mecanismo da lesão, a ativação das células estreladas pancreáticas (CEP) resulta na expressão de citocinas e produção de proteínas da matriz extracelular causando inflamação aguda e crônica além da deposição de colágeno no pâncreas. A ativação dessas células estreladas se dá por meio de duas vias: 1. Estimulada por citocinas pró-inflamatórias, fator de necrose tumoral alfa, interleucina 1/6 e complexos oxidantes 2. Vias autocrinas autoativadoras mediadas pelo fator de crescimento transformador beta PANCREATITE AUTOIMUNE (PAI) É uma doença rara, na qual o pâncreas é afetado como parte da doença sistêmica associada à IgG4 e que causa manifestações laboratoriais, histológicas e morfológicas típicas → Atende aos critérios HISORt que afirmam que a PAI pode ser diagnostica pela existência de um ou mais dos seguintes itens: 1. Histologia a. Infiltrado linfoplasmocitário extensivos com fibrose densa ao redor dos ductos pancreáticos, assim como infiltração linfoplasmocitária resultando em flebite obstrutiva. 2. Exames de imagem a. Pâncreas em salsicha – sem as divisões características b. Crescimento difuso, aumento focal e ampliação bem-demarcada da cabeça do pâncreas 3. Sorologia a. Elevação dos níveis séricos de IgG4 acima 2x o normal 4. Outros órgãos envolvidos → estenose biliar, parótide 5. Resposta ao tratamento com glicocorticoides (prednisona 0,6 mg/kg), com melhora das manifestações pancreáticas e extrapancreaticas QUADRO CLINICO E DIAGNOSTICO O diagnóstico da pancreatite crônica inicial ou leve pode ser difícil, pois não há um biomarcador da doença QUADRO CLINICO Geralmente, o paciente é um homem de meia idade, alcoolista e tabagista, apresentando: 1. Dor abdominal Pode ser muito variável em relação a sua localização, intensidade e frequência → A dor pode ser constante ou intermitente, com intervalos frequentes sem dor que pode variar de leve a muito grave (com dependência frequente de narcóticos) Essa dor pode ser exacerbada pela ingestão de alimentos, dando origem ao medo de comer 2. Má digestão e perda de peso A má digestão manifesta-se por diarreia crônica, esteatorreia (gordura nas fezes), perda de peso e fadiga → Apesar da esteatorreia, as deficiências clinicamente evidentes de vitaminas lipossolúveis são incomuns ao extremo PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES Em geral, as alterações do exame físico desses pacientes são discretas, de forma que existe discrepância entre a gravidade da dor abdominal e os sinais físicos, que geralmente consistem em algum grau de hipersensibilidade leve. EXAMES LABORATORIAIS 1. Amilase e lipase → Em geral, não estão acentuadamente elevados 2. Níveis séricos de bilirrubina e fosfata alcalina podem indicar colestase secundaria à estenose do ducto colédoco 3. Níveis elevados de glicemia em jejum 4. Baixa de albumina e magnésio 5. Diminuição de vitamina B12 e lipossolúveis (K, E, D, A) A elastase-1 fecal e a biópsia do intestino delgado são úteis para avaliação dos pacientes sob suspeita de esteatorreia pancreática → O nível de elastase fecal está anormal (<300 mcg/g) enquanto a histologia do intestino delgado apresenta-se normal nesses pacientes. A diminuição do nível de elastase fecal para < 100 μg/g de fezes sugere fortemente a presença de insuficiência pancreática exócrina grave. AVALIAÇÃO RADIOGRAFICA Geralmente começa com exames não invasivos e progride a uma abordagem mais invasiva: 1. TC ou RM de abdome A TC pode excluir a possibilidade de pseudocisto e câncer pancreático e revelar calcificação, ductos dilatados e pâncreas atrófico 2. Ultrassonografia endoscópica Seu papel ainda não está definido, principalmente na fase inicial. No total, foram descritas nove características de pancreatite crônica à USE. A existência de cinco ou mais é considerada diagnóstica de pancreatite crônica. Dados recentes sugerem que a USE pode ser combinada com as provas de função pancreática endoscópica (USE-PFPe) durante uma endoscopia de rastreamento para pancreatite crônica nos pacientes com dor abdominal crônica. 3. Provas de função pancreática. Exame diagnóstico com mais sensibilidade e especificidade é o teste de estimulação hormonal usando secretina, anormal quando há perda igual ou superior a 60% da função exócrina do pâncreas que, em geral, está relacionado com o início da dor abdominal crônica → Porém, é um exame caro e pouco disponível As calcificações difusas observadas na radiografia simples de abdome costumam indicar dano significativo do pâncreas e são patognomônicas de pancreatite crônica. COMPLICAÇÕES 1. Dor abdominal crônica 2. Adição a narcóticos 3. Diabetes mellitus/intolerância à glicose 4. Gastroparesia → tratar com fármacos pró-cineticos 5. Má absorção/má digestão 6. Icterícia 7. Estenose biliar e/ou cirrose biliar 8. Pseudocisto a. É a complicação mais prevalente. b. Só deve fazer abordagem se apresentar dor refratária, sangramento, rompimento, infecção ou obstrução 9. Osteopatia metabólica 10.Câncer pancreático TRATAMENTO MEDIDAS GERAIS 1. Cessar o tabagismo e etilismo 2. Adequações dietéticas → Fracionar e reduzir gorduras 3. Insuficiência endócrina → hipoglicemiante oral (insulina) ESTEATORREIA Geralmente é simples, feito com enzimas pancreáticas que controla a diarreia e restaura a absorção das gorduras a um nível aceitável, permitindo o aumento do peso, mas sua correção completa é incomum. É importante utilizar uma formulação pancreática potente, capaz de fornecer lipase em quantidade suficiente ao duodeno para corrigir a má digestão e diminuir a esteatorreia. PANCREATITE AGUDA E CRÔNICA LETÍCIA FAGUNDES Em alguns pacientes com pancreatite crônica idiopática, as preparações enzimáticas convencionais (em revestimento entérico) contendo concentrações altas de serina-proteases podem aliviar a dor ou o desconforto abdominais leves. O alívio da dor obtido por esses pacientes pode ser devido, na realidade, à melhora da dispepsia decorrente da má digestão DOR ABDOMINAL O controle da dor dos pacientes com pancreatite crônica é problemático. Deve-se preconizar a analgesia escalonada, podendo utilizar a pregabalina em casos refratários Em casos de dor refrataria, pode-se fazer ainda: 1. CPRE → Estenose e cálculos 2. Bloqueio do plexo celíaco → Pacientes com contraindicação cirúrgica, com risco de disautonomia 3. Cirurgia → Principal indicação de cirurgia são: a. Dor refrataria b. Suspeita de neoplasia c. Obstruções que não resolveu com CPRE d. Alguma complicação Existem dois tipos de cirurgia que podem ser feitas: a. Derivações → Preserva o parênquima hepático b. Ressecções (Whipple) → Subtotal ou total
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