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Marcus Mota Para Gisele, com amor. Título Original Três histórias estranhas Copyright Marcus Mota, 2016 Reservam-se os direitos desta edição à: GIOSTRI EDITORA LTDA. São Paulo - SP - República Federativa do Brasil. Impresso no Brasil ISBN: 978-85-8108-911-9 CDD: B869-3 Giostri Editora Rua Dona Avelina, 145 Vila Mariana - SP Tel.: (011) 2537-2764 contato@giostrieditora.com.br www.giostrieditora.com.br Editor Responsável Alex Giostri Editor Assistente Fábio Costa Capa e Diagramação Felipe Braz Revisão final de texto Giostri Editora Ltda. Mota, Marcus Três histórias estranhas 1ª Ed. São Paulo: GIOSTRI, 2016 1 - Literatura brasileira – Novela Literária 1º título: Três histórias estranhas 1ª Edição Giostri Editora LTDA. giostrieditora.blogspot.com.br facebook.com/giostrieditora ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ SUMÁRIO A Grande libertação 9 A Doença 100 O Retorno do Homem Invisível 179 10 11 I ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ Quem poderia imaginar que a Grande Libertação começou justamente naquela simples e comum tarde de sexta-feira, com mamães e papais ocu- pados trabalhando em seus empregos enquanto que, em um bairro qual- quer do subúrbio, na sala da casa, ali estava uma criança com os olhos nas imagens da tv, imagens essas que, de repente, desaparecem e retornam de um jeito diferente, estranho, como que trazendo de um passado remoto cores e sons que aos poucos vão ficando claros e audíveis. O tremeluzir da tv, seu aparente mal funcionamento ou problemas de contato, logo foi dan- do lugar à imagem de uma bela mulher de olhos vendados, boca brilhan- te, falando diretamente para a câmera. A criança no andador apenas sorri em resposta. E a mulher, linda, aos poucos vai se livrando de suas trans- parentes roupas. A bela mulher já nua se levanta e anda em nossa direção. Nesse momento adentra a babá: aos gritos ela se divide entre fechar os olhos da criança e tentar desligar a tv. De sua parte, sem demorar, a bela mulher da tela de plasma puxa a mão de um homem igualmente nu, cujo rosto jamais veremos. E os dois começam a fazer sexo ardente bem em nos- sa frente, para o pavor da babá: ela, com a criança nos braços, joga-se con- tra a tv, quase apagando a vida e o ar de todos ali. Rapidamente a notícia se espalha. Os papais e mamães, ao chegarem em casa, foram informados de tudo. Estavam irados. Como as Grande Cadeias de Comunicação e o Go- verno deixaram isso acontecer?!! Não havia mais lugar seguro no mundo! E as crianças?!! Logo as Crianças!! Ninguém estava livre do perigo… Então, era preciso agir contra a enorme onda de imoralidade que se aba- tia contra o país. O futuro da nação, a sobrevivência da espécie – tudo estava ameaçado. Durante a longa noite que se sucedeu à repentina aparição das imagens da mulher fazendo sexo na tv aberta, em plena tarde de sexta-fei- ra, não houve consenso. Os longos e desgastantes debates se multiplicaram pelas associações de moradores, de pais e mestres, de livreiros, de religiosos, de entregadores de pizza e militares aposentados, sempre observados pelo olhar distanciado dos executivos das cadeias de comunicação e pelos buro- cratas do governo. Nos canais de tv paga, a coisa parecia diferente, mas não avançava: multiplicavam-se mesas-redondas com educadores, sociólogos, psicólogos, todos discutindo os terríveis efeitos dessas imagens para as fu- turas gerações. Várias babás foram trazidas para esses debates. O máximo que conseguiam era chorar e repetir aos prantos: “Que horror! Que hor- ror!” Não havia uma só imagem que comprovasse o que aconteceu ou que mostrasse o quão monstruoso seria a visão de uma bela mulher na cama com um homem. Ninguém podia com precisão definir o que invadiu a tv naquela inesquecível tarde ensolarada. Todos foram dormir indefesos e con- fusos, esperando que a luz do dia seguinte trouxesse paz e esclarecimento. E o dia seguinte chegou com todos cansados. As tvs ligadas projetavam desenhos infantis matinais. Recuperando-se da longa noite sem porquê, papais e mamães preparavam a primeira refeição, sempre bisbilhotando para ver se seus filhinhos já apresentavam sintomas e distúrbios de algum trauma que durante as mesas redondas os especialistas já nomeavam como “Síndrome de Jéssica”. Alguém havia dito, uma das babás talvez, ter ouvido esse nome sendo balbuciado durante a cena de sexo. E, já que grande parte das atrizes de filmes pornôs tinham esse nome, uma coisa levou à outra… Os pais conversavam sobre essas hipóteses durante a refeição quando ouviram um estranho som vindo da tv, como o da sexta-feira – o ruído de estática, de perda de contato, a tv saindo do ar. E então aquela voz, aquela imagem, agora tudo mais nítido, a visão da bela mulher com uma másca- ra, chamando todos para a sala, para que vissem o maior espetáculo que pode haver, aquele que todos sabem qual é e não adianta negar. Sabendo o que estava acontecendo, os papais e mamães correram para a sala para tentar salvar seus bebês, mas já era tarde. Quando chegaram, a bela mu- lher desmanchava-se no movimento de ir para frente e para trás, em po- sição de quatro, recebendo o enorme membro do desconhecido homem que a penetrava com toda força. Com a aceleração dos trancos e ancas, a mulher procurava temperar todo o esforço de estar ali diante de nós com suas palavras. Mas era impossível ouvir alguma coisa. Não havia como prestar atenção em nada além do corpo se movimentando tão pertinho, 12 13 do membro forte e rijo fazendo seu vai e vem e nos chamando. Ela que- ria dizer algo. Foi aí que o homem anônimo segurou firme o pescoço dela e a puxou para trás, como que cravando no mais íntimo da mulher todo o seu furor e gozo. Nesse momento as imagens sumiram, como um cur- to-circuito que tudo desligou. Após, a tv voltou a ficar em estática e nova- mente fora do ar. Em seguida a programação normal foi voltando, com os desenhos animados iluminando os rostos do bebê e dos papais e mamães. Ainda bem que a interrupção aconteceu bem naquele instante… Quan- do papai deu conta de si, estava com uma mão no seio de mamãe, e a ou- tra dentro da calcinha dela, tudo em frente de seu filhinho. O pavor então tomou conta dos dois: como é que se deixaram levar sem dificuldade al- guma pelos estímulos de um filmete pornográfico daquele? Tinham que fazer alguma coisa. Mas como, sem revelar sua fraqueza, sua decadência em sentir prazer diante de algo tão infame? Como negar aquilo que lhes deu tanto prazer? Há anos papai e mamãe não se sentiam tão intensos e vibrantes como naquela manhã diante da tv. Nunca o toque de papai foi tão certeiro e invasivo. “As duas mãos, meu bem… As duas…” E agora: o que fazer? Parar toda essa maravilha? E em nome de quê? O mundo ficou confuso. Enquanto papais e mamães e especialistas dis- cutiam na tv e nos consultórios como enfrentar essa ameaça terrorista que estava destruindo as famílias e a nação, dentro das casas, no canto mais oculto de cada homem e mulher, o que mais se esperava era o retorno da- quela visão explosiva de gozo e felicidade. Simplesmente ver aquilo, estar perto da tela já era a coisa mais importante de suas vidas. Assim, quando no meio da tarde daquele mesmo dia, Jéssica e seu violador apareceram novamente entre os sons da estática e o fôlego curto de seus observadores, papai estava outra vez com as mãos nos seios e no sexo de mamãe, deslizan- do agora juntos para o chão da sala, sob o olhar atento do bebê no andador. E foi assim no domingo também. Séculos e séculos de sexo comporta- do e mesquinho deram lugar a um irresistível clamor de corpos se apertan- do e se mordendo e querendo mais. No meio da manhã e no meio da tarde, seguindo os sons da tv saindo do ar, começava em cada casa, em cada co- ração uma descontroladafúria de coxas, bocas e gritos. Tudo o mais era secundário: lavar o carro, fazer compras, limpar a casa, alimentar os animais, trocar as fraldas do bebê. O mais importante, o mais necessário era seguir o êxtase de Jéssica, participar do êxtase de Jéssica e, como Jéssica, amar a vida. A manhã de segunda feira trouxe uma reversão desse paraíso provisó- rio. As babás, sempre elas, chegaram para trabalhar, viram tudo e avisa- ram as autoridades. Gente do governo e especialistas vieram todos para combater os efeitos da Síndrome de Jéssica. Aquilo que antes fora con- siderado uma simples anomalia eletromagnética ou uma brincadeira de adolescentes contra as grandes empresas de mídia, agora era enfrentan- do como uma calamidade pública, uma praga contagiosa e assassina que devastava os lares e as famílias: papais e mamães ao chão nus, sangrando, desidratados, delirantes, olhos abertos esperando novos estímulos de seu vício. E, mais à frente, caída no chão, chorando, com assaduras e desnu- trição, a pobre da criança. Nunca a nação fora assolada por tamanha catástrofe. Ninguém foi traba- lhar nesse dia. O país parou. Todo mundo tinha algum parente envolvido nisso. As grandes empresas de mídia foram processadas, crianças e jovens entregues a instituições de ensino e correção. Os papais e mamães separa- dos e colocados em recém-criados centros de recuperação. As crianças fo- ram distribuídas para novas casas não afetadas pela Síndrome de Jéssica. O governo agiu rápido e precipitadamente. Havia deixado tudo seguir seu curso desde a sexta-feira para daí intervir com rigor e firmeza. Mas nenhuma das medidas conseguiu deter as duas aparições diárias da linda mulher e de seu selvagem amante. De manhã e de tarde só havia uma certeza: nada, fosse o que fosse, poderia impedir que Jéssica entrasse em cada lar, espalhando o doce e quente perfume de seu sexo abrindo-se a quem quisesse e desejasse receber. Essa flor radiosa, com suas unhas pe- netrava inteira todas as mentes e corpos famintos de algo mais forte que a própria vida. E não havia governo ou exército no mundo que iria conter aquele irresistível chamado. Assim, os meses seguintes se sucederam nessa imensa e inútil tarefa de isolar quem tivesse sido diagnosticado com a síndrome até que se identifi- casse a fonte do sinal que interrompia a programação normal das emissoras. 14 15 E quase no fim de um ano, a nação estava paralisada: não havia mais nin- guém que não houvesse experimentado a visão de Jéssica. Do mesmo modo, toda a tecnologia conhecida e ainda não inventada fora utilizada para en- contrar sem sucesso a fonte do sinal de emissão das imagens. Por mais es- tranho que fosse, pela primeira vez na história havia uma unanimidade: historiadores, religiosos, artistas e especialistas de todos os tipos junto com a burocracia do governo viram que a síndrome estava em todo lugar, a sín- drome mesma é o que definia os homens e as mulheres da nação. Sem a síndrome, antes cada um vivia isolado em seu pequeno mun- do, indo e voltando de casa, sem saber nada mais do que já se sabia, ou do que se acreditava ser a realidade. Quando a irrupção das imagens na tv alterou toda essa existência ordinária e cotidiana, todos puderam no- tar que há outras coisas, mais intensas e importantes, que nem o gover- no, nem os grandes empresas de mídia, e muito menos os religiosos ou os especialistas ou qualquer outra instituição pode algum dia nessa ter- ra prover e mostrar. Foi diante desse consenso, meus amigos, desse maravilhoso abrir de olhos, que a Grande Libertação foi montada. E até hoje, trinta e sete anos depois, é a plataforma da Grande Libertação que continua a nos propor- cionar uma sociedade mais justa, plural, moderna e emancipada. A to- dos, meu muito obrigado! II ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ Aos homens e mulheres livres, Neste relato sintético e objetivo, são apresentados os fatos que se su- cederam à violenta interrupção do discurso realizado pelo grande líder da convergência entre o Governo, Grandes Empresas de Mídia, Liga das Famílias e Sociedades dos Especialistas – chamado pelo povo de O Pró- prio – durante a celebração dos 37 anos da Grande Libertação. Com o objetivo de prover registro-base para futuras ações contra raras e ocasionais insurgências desse tipo é que minuciosamente descrevemos e interpretamos o que de fato aconteceu. Em transmissão ao vivo para toda a nação, realizada no Salão Principal do Palácio de Todas as Gentes, O Próprio discursava, quando um indiví- duo desconhecido e fora de si saiu da multidão, dirigiu-se batendo pal- mas para a plataforma das autoridades, tirou uma arma do bolso de seu casaco puído e disparou sem parar contra o grande líder. Foi um humi- lhante golpe nesses anos todos de consenso e paz, que haviam expulsado para sempre de nossa sociedade todos os vestígios de agressividade inú- til, de caos e desequilíbrio. Em um primeiro momento os projéteis não eram disparados apenas contra a pessoa de nosso líder: em vez de atingir um homem, essa triste criatura quis é ferir todas as nossas conquistas. Como O Próprio bem dizia, após as inúteis tentativas de se encontrar e eliminar o sinal televisivo tido como causador da Síndrome de Jéssica, o que todas as vozes de todos os setores administrativos, intelectuais e digesti- vos da nação perceberam foi que em cada um dos papais e das mamães ha- via uma angustiada necessidade de deixar eclodir a irrupção dos sentidos. Por séculos e séculos o controle e repressão dos sentidos só produziu criminosos e infelizes. E qual teria sido a razão de tantos roubos, estu- pros e mortes durante a história passada da humanidade? Sexo. Por sexo se aprisionou, se violou e se trucidou quem quer que se colocasse como obstáculo ao cumprimento do desejo. O domínio sobre o sexo seria o do- mínio sobre os homens. O Próprio bem compreendeu isso antes de todos e com todos passou a partilhar essa verdade: a tal síndrome de Jéssica era a oportunidade única de nossa redenção, um novo começo. Em vez de negar e esconder o dese- jo, era preciso organizá-lo. Seguiram-se então demoradas negociações com os setores conserva- dores da nação – historiadores, religiosos e dentistas – com o objetivo de 16 17 estabelecer uma agenda mínima de diretrizes, um horizonte programado de ações que nos assegurasse uma clareza de pensamento durante a per- turbação que tomava conta de todos. Nessa agenda duas diretrizes apenas: 1 – TUDO É PERMITIDO. 2 – TUDO É PERMITIDO DESDE QUE OBSERVÁVEL. Assim, o que quer que se fizesse deveria ser realizado diante das câme- ras, para o grande público. Em acordo com os canais de tv, a programação aberta e a cabo começou a transmitir aquilo que antes era chamado de “in- timidade”. A negação do desejo havia inventado essa abstrata ideia de um espaço indevassável, inacessível, que deveria ser a todo custo protegido. Na verdade, durante milênios o que se fez foi não resolver a questão sobre o que realmente é uma pessoa. Para essa “área secreta e misteriosa” lançava-se tudo o que de bom e melhor alguém achava possuir. Então se vivia uma existência estranha: no dia a dia, diante dos outros, ninguém podia mostrar o que ou quem realmente era; já quando sozinha, cansada e oprimida pela miséria de ser sem saber o que é, a pessoa virava-se para si mesma procurando se encontrar, e nada, nada! O Próprio percebeu isso muito bem. Daí vieram as bases teórico-práti- cas das diretrizes, que não passam de permissões públicas legais, da pro- posição de um amplo espaço de experiências para que as instituições em busca do consenso pudessem encontrar um fundamento para novas leis e erguer uma sociedade mais completa e consciente de si mesma. Nos meses que se seguiram, impulsionados pelas imagens de Jéssica e seu amante, câmeras instaladas nas casas de papais e mamães registraram horas e horas de toda forma de nudez e gozo. Sem se cansarem, e cada vez mais sedentos, homens e mulheres se entregavam ao exercíciosobre-huma- no de ir além dos limites de seus órgãos, como que seguindo uma memória dos impulsos, memória esta que se impunha como seus ossos e músculos. Recobrando um vigor que achavam perdido, papais e mamães suporta- ram dias de contínuo vibrar dos corpos. Exercitados no fervor e devoção do coito, eles se robusteciam e ficavam mais felizes do que nunca. A presença da câmera não era problema algum. Antes, como Jéssica, atuavam sem im- pedimento, como que cumprindo uma função esclarecedora e remissiva. Pois o sexo entre papais e mamães virou a programação principal de todas emissoras de tv. Em qualquer canal, a qualquer hora que você ligas- se a televisão, você poderia ver o vai e vem de homens e mulheres em sua mais completa satisfação e sintonia. Isso derrubou em parte as objeções das empresas de mídia e dos re- ligiosos. Primeiramente, os imensos conglomerados comunicativos te- miam não haver público suficiente para assistir tal aparente mesmice de gente fazendo sexo o tempo inteiro. Mas tal objeção era completamente errônea. Durante anos os canais de sexo explícito foram canais pagos, ex- clusivos, “íntimos”, com suas atrizes e enredos sempre repetidos. E nem por isso deixaram de atrair novos e renovados clientes, produzindo uma indústria bilionária, concentrada nas mãos de alguns poucos poderosos. Porque, independentemente do que se joga na tela, o que seduzia era justamente ver e sentir a mesma coisa, mais ainda que as personagens do filme. A natureza do gozo virtual tornava compreensível a realidade do prazer não encenado. E, quando as fronteiras entre o íntimo e o público foram demolidas pelas cenas de papais e mamães se masturbando e fazendo sexo para o mundo, nesse momento tornava-se clara a imensidão de novos usos e lu- cros que as empresas de mídia poderiam ter a seu dispor. Porque não era uma classe especial de pessoas, como um gado escolhido e apartado, que ocupava a tela: todos, homens e mulheres, gordos, magros, velhos e no- vos, sãos ou moribundos, de todas as raças e credos e línguas, todos mes- mo estavam sendo expostos completamente, à hora que quisessem, para quem quer que quisesse assisti-los. Disso, todo o dinheiro e a imensa busca por variar e enriquecer a progra- mação da tv agora era inútil. As pessoas só queriam ver isso em sua frente: sexo. Durante todo o tempo anterior as empresas de mídia fizeram justa- mente o contrário: pouco sexo, como em um conta-gotas, e muito prepara- tivo ou desvio do sexo. Agora era direto. De acordo com O Próprio, sempre 18 19 se vendeu sexo como se ele fosse um combustível raro, com reservas no fim, um animal em extinção, tudo cheio de cuidados, precauções e medo. Mas, como agora se descobria, o sexo é uma energia não só renovável como infinita, expansiva e altamente lucrativa: quando mais se usa, mais se produz. Assim, substituir toda a grade de programação por sexo não só foi um gigantesco barateamento dos custos de produção das empresas de mídia, como também multiplicou exponencialmente os lucros. Em segundo lugar, os religiosos. A simples ideia de dar às próprias pes- soas o direito de arbitrar sobre sua sexualidade causou reações enfureci- das e irritadiças, como se fosse possível deixar alguém, um filho de Deus, controlar o seu destino. Todo mundo esperava com grande inquietação o desenrolar desse último debate, desse último obstáculo para a implemen- tação sem restrições da agenda mínima. Foi nesse momento que a grande astúcia de O Próprio em prol do bem comum, em conjunto com a providencial assistência das grandes empresas de mídia, tudo resolveu. Ora, não adiantava lutar contra os religiosos. Eles sempre têm razão. Sempre tudo que dizem é melhor e mais perfeito e cor- reto. Aliás, eles só existem pra isso, pra dizer o que se deve fazer de melhor. Por outro lado, eles sempre tiveram sua existência relacionada com os fiéis. As grandes mudanças na história ocorreram não porque os religio- sos descobriram uma nova maneira de ver a vida, mas sim porque os fiéis resolveram viver de um modo diferente do que antes, e as leis e o profe- tas tiveram se acomodar, com seus ensinamentos e suas reprimendas, a esses novos impulsos. Assim, o melhor não era ir contra os religiosos, mas seguir os anseios dos papais e mamães, dar suporte à longa história subterrânea que agora de um só jato fazia tremer a terra e suas instituições, e projetava, para o alto e para todos, as partes todas de um maravilhoso novo mundo. Essa foi a estratégia de O Próprio. Fortalecendo o que o povo queria, ele pôde conter o desagrado dos religiosos. E os religiosos, por fim, temendo ficar sem fiéis, cederam, muito a contragosto, às radicais arbitrações da agenda mínima. O caminho para o consenso era ratificado. E agora, anos depois, quando se pensava não haver mais obstáculos aos caminhos irreversíveis que a Convergência conquistou, eis que justamen- te, como em um ato de pura provocação, premeditado, diante das câme- ras, entra um sujeito confuso e perigoso, armado, que procura chamar a atenção egoisticamente para si, para sua suposta causa. Todos os avanços desses anos em prol de eliminar o espaço íntimo, a exclusividade da pes- soa humana, estavam ameaçados. Felizmente a pacífica guarda que acompanha todos os passos dos mem- bros destacados da Convergência dominou o infeliz desgraçado, levando-o para uma das dependências de nossas instituições de descanso e regozijo. No mesmo instante alguns especialistas socorriam O Próprio, enquanto uma cortina de cor vermelho-castanho com detalhes dourados se fechava sobre o palco do Salão Principal do Palácio de Todas as Gentes, encerran- do dramaticamente a transmissão ao vivo para toda a nação do discurso anual de celebração dos 37 anos da Grande Libertação, realizado por O Próprio, nosso grande líder. ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ III Prestação de contas ao Secretariado Para Grandes Debates, órgão dire- tamente subordinado à Convergência, discriminando o conteúdo do mate- rial a nós entregue para análise e averiguação: Trata-se de um indivíduo de porte médio, desarmado, vestindo calça e camisa azuis, barba por fazer, cabelos escuros e desarrumados, olhos cas- tanhos, sapatos pretos. Como era incapaz de se identificar, o indivíduo foi alcunhado, como de praxe, de “Ninguém”. Após esta primeira averiguação macroscópica, uma série de exames fi- siológicos e escaneamentos psicomotores nos levou a concluir que Ninguém 20 21 não apresenta nenhuma deficiência psiquiátrica ou física. Ninguém é um indivíduo totalmente normal, como qualquer um outro. Não constitui foco de vírus ou doença alguma conhecida. Após completa higinização, ele foi entregue aos Observadores do Alojamento Q do Complexo de Me- lhorias Comportamentais. Como todos sabemos, logo em seguida à implementação das diretri- zes da agenda mínima, para perplexidade de muitos, todos os estabele- cimentos prisionais e correcionais da nação foram fechados. Criminosos e maníacos dos mais variados tipos foram postos em liberdade. Isso foi feito porque seria impossível conviver com dois tipos de sociedade: uma, que usufruía dos bens da Grande Libertação; e outra, que apodrecia em presídios, sanatórios e repartições públicas. Para que se comprovasse a eficiência das diretrizes e para que se garantissem suas conquistas, pela primeira vez, sem demagogia, o alto e o baixo, os incluídos e os excluídos teriam a possibilidade de ficar frente a frente. Pois, como até ali se sabia, não poderia haver mudança sem sacrifícios, ou revolução sem derrama- mento de sangue. Inicialmente – e era de se esperar – toda aquela imensa multidão de deformados e bandidos se arremessou contra as frágeis figuras de papais e mamães isolados nas janelas de suas casas. Nos primeiros embates houve sim uma repetição da mesma herança violenta e estúpida, com estupros e mortes. Os filhos não estavam casa havia um bom tempo, distribuídos que foram pela Convergência para Casas do Futuro. Quem estava arma-do se defendeu. E os mais fracos foram eliminados pelos mais armados. Para tornar mais eficiente e rápido este encontro entre mundos em co- lisão, tudo havia sido anunciado em cadeia nacional pelas lideranças da Convergência. Papais e mamães aguardavam em casa pelos invasores, papais e mamães armados até os dentes. Tudo foi feito da maneira mais pública e democrática possível, para que nenhuma voz se levantasse e se proclamasse contra as decisões consensuais. E tudo foi mostrado pela tv. Durante uma semana, a sociedade teve a oportunidade de descarregar bala contra suas antigas desgraças e vergonhas. Nada foi proibido. Ho- mens e mulheres matavam, assassinavam o que quisessem, sem remorso algum. Com muita energia e munição ainda, papais e mamães largaram os corpos dos mortos na vizinhança e adentraram hospitais, asilos, cen- tros para deficientes e supermercados. Ainda sem se darem por satisfei- tos, foram disparando contra quem não estivesse armado no caminho que faziam contra escolas, restaurantes e salões de beleza. Dizem até que essa foi a Segunda Grande Libertação: depois do sexo, a morte. Cadáveres se amontoavam nas ruas. A ordem era não haver feridos. No fim daquela se- mana foi eliminado de uma só vez e para sempre todo o incômodo, todo o embaraço de haver gente diferente da gente, gente que não parece gen- te, gente que não quer o que gente deve almejar. Essa semana foi fundamental para a Convergência. A violência chegou a sua exaustão. Todos agora queriam novas e melhores coisas. Viciados, ladrões, famintos, cronistas esportivos, vagabundos, gente de pés gran- des ou sujos, fedorentos, pessoas com mau hálito ou seborreia – não ha- via mais sinal deles. Todos agora ansiavam por paz. O mínimo sinal de oposição e discordância seria um passo para trás, como se pudesse haver um retorno para aquele tempo no qual pederastas, guardadores de carro ou órfãos nos olhavam com ódio e pavor. A partir de agora não haveria um mundo dividido em duas partes: to- dos participaram ativamente da construção da Nova Ordem. As diretrizes da agenda mínima estavam nas mãos ensanguentadas de cada um, estavam no suor de cada intermitente noite de sexo. Papais e mamães agora tinham o que sempre sonharam: um lugar tranquilo para morar, sem ameaças, babás e filhos. Não havia mais maiorias ou minorias, nem a necessidade da política. Todos eram maiores, adultos – papais e mamães diante da tv vendo papais e mamães fazendo sexo sem parar. Jéssica e seu amante ge- miam convulsos no interior da raça recém-liberta. No que se refere ao indivíduo para cá transportado, ele agora espera por julgamento, sendo monitorado 24 horas pelos Observadores do Alo- jamento Q. Reforçamos o encaminhamento de que não sejam liberadas imagens para a tv. Por mais que a situação se encontre segura e definida, por mais que o povo hoje esteja mais do que satisfeito com as conquis- tas da Grande Libertação, nós, os especialistas, aconselhamos que assim 22 23 continue, que a eliminação da presença de Ninguém seja efetivada. Alguns membros dos Especialistas vêm demonstrando profunda indignação con- tra os incidentes ocorridos durante a celebração do aniversário da Gran- de Libertação. Muitos acham que a eliminação da presença de Ninguém deveria ser mais incisiva, terminal. Por outro lado, muitos também con- sideram que não estamos no momento de atiçar a curiosidade, de criar heróis a partir do nada. De qualquer forma fica bem patente que a Comunidade dos Especialis- tas espera ser melhor ouvida e consultada. Há anos nosso papel na Con- vergência tem sido considerado algo um tanto secundário. Nunca esquecer que desde a aparição dos primeiros sinais televisivos de Jéssica fomos nós quem instruímos o Governo e as Grandes Empresas de Mídia sobre qual solução adotar. Fomos nós os Especialistas que orientamos a formulação dos programas recreativos e formativos das Casas do Futuro. Antes da crescente e justa influência de O Próprio, nosso trabalho era mais que o de uma consultoria ou de exames laboratoriais. Essa inútil insurgência de um homem sozinho, anônimo, mais que um fato isolado, precisa ter um tratamento mais vigoroso e elaborado por par- te da Convergência. Que um homem com uma arma adentre o tão presti- gioso Salão Principal do Palácio de Todas as Gentes e atente contra a vida de O Próprio isso é algo que devemos investigar mais atentamente. Pode não estar nele, em um homem só, tudo isso. Membros da comunidade dos Especialistas, que trabalham em outras dependências do Complexo de Melhorias Comportamentais, durante as obrigatórias e regulares ses- sões de instrução dos papais e das mamães têm registrado expressões de vontade por mais informações sobre Ninguém. Todos viram aquele indi- víduo portando uma arma. Todos viram Ninguém se dirigindo contra O Próprio. Todos viram as bizarras reações de nosso líder. Por isso, mesmo fazendo nossa parte, não podemos deixar de comu- nicar que nós, os especialistas, temos nas mãos mais que um desgraçado inútil. Podemos dispor dele como quisermos. Não foi um acidente for- tuito esse encontro entre O Próprio e Ninguém justamente na Celebra- ção de mais um aniversário de nossas conquistas. Para todos na tv ficou claro que há algo mais, que uma decisão que deve ser tomada. Cada ho- mem, cada mulher que diariamente é entrevistado no Complexo de Me- lhorias Comportamentais, cada um deles tem um começo de dúvida, de inquietude, de antecipada conclusão. E eles são muitos, são milhares, são milhões. É impossível saber onde isso vai parar. Assim, durante mais este mês ainda ficaremos com a guarda de Nin- guém. Precisamos desse tempo. Ele permanecerá incomunicável. Reali- zaremos mais e mais exames, cada vez mais invasivos, que vão infligir em Ninguém um tamanho tormento como ele nunca pensou um dia poder receber ou suportar. Todos os dias, de manhã até a noite, Ninguém vai ser interrogado e investigado como se fosse a cura para a mais grave doen- ça, como se fosse uma mensagem de alguma galáxia distante. Mais que seu corpo, queremos seus pensamentos, queremos encontrar quem, onde e quando originou nele essa triste ideia de tentar desestabilizar a Grande Libertação. Estamos em busca das raízes do mal contra o consenso. Esta- mos procurando por um coração não submisso a Jéssica. Nós, os especialistas, que encerramos em nossos arquivos dados da his- tória e da física e da química de todas as criaturas dessa terra, mais uma vez reivindicamos nossa importância no processo de construção e refor- ço da Convergência. Ainda e mais uma vez cabe a nós o papel de revelar o que parecia estar escondido, de insistir na superação de toda e qualquer resistência à Grande Libertação e de permitir que homens e mulheres li- vres atinjam a plenitude de suas capacidades. ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ IV AUDIODOCUMENTO 01/031.24.Q.24 Relatório preliminar dos Observadores do Alojamento Q a respeito do indivíduo cognominado Ninguém. Desde os primeiros dias, quando foi 24 25 acolhido em nossas dependências, Ninguém tem se demonstrado comple- tamente alheio a tudo que o rodeia. Parece não ter lembrança alguma dos inúteis atos que praticou contra a Convergência. Tem recusado alimento e banho. Por enquanto, não participa de nenhuma das sessões de entrevista. Adotamos, pois, resolução padrão CMC05: que Ninguém viva com suas fezes, que fique recluso com seu melhor e pior, que sobreviva a si mesmo. AUDIODOCUMENTO 02/31.24.Q.24. Relatório supletivo dos Observadores do Alojamento Q a respeito do indivíduo cognominado Ninguém. Após uma semana submetido ao pa- drão CMC05, como era de se esperar, Ninguém admitiu alimentar-se e participar das sessões de entrevista. Durante a limpeza de seu quarto, para nosso espanto, pudemos identificar sinais gráficos nas paredes, registros de uma linguagem rudimentar há muito superada pelos nossos eficientes meios de transmissão de mensagens audiovisuais. Todo esse material foi filmado e guardado no Arquivo Geraldo Complexo de Melhorias Com- portamentais. As paredes foram limpas e todo instrumento capaz de pro- duzir sinal gráfico retirado do quarto de Ninguém. Agora é apenas ele, um colchão e o imenso branco em sua volta. AUDIODOCUMENTO 03/31.24.Q.24 Relatório supletivo dos Observadores do Alojamento Q a respeito do indivíduo cognominado Ninguém. Nenhum dos procedimentos objeti- vando a interrupção de sinais gráficos nas paredes tem se demonstrado eficiente. Mesmo com a mudança da frequência das atividades de assep- sia – de semanal para diário – não há como interromper o intermitente fluxo da produção gráfica de Ninguém. Quando não está nas sessões de entrevista, Ninguém passa o tempo inteiro rabiscando as paredes, o olhar preso a uma poderosa determinação. Este estranho modo de ocupar seu tempo já tem suscitado questionamentos entre os membros de nossa corporação. Inicialmente as interrogações se relacionavam ao modo como proceder diante de tal ato. Após, as dúvidas se dirigiam ao conteúdo desses sinais. Pois não se sabe o que Ninguém registra, se está afirmando alguma coisa sobre nós ou se está informando para alguém algo a respeito de nos- sas instalações. Enfim, não sabemos o que fazer nem com o que Ninguém registra, nem muito menos com o próprio Ninguém. Todos os dias apa- gamos os sinais, lavamos as paredes e filmamos os rabiscos. E depois, de nossas salas, pelas câmeras, vemos Ninguém seguindo suas linhas, fazen- do caminhos por onde antes só existia a placidez geométrica e infinita da cor única. Da esquerda para a direita, de cima para baixo e sempre – este é Ninguém. CONFIRMAÇÃO DO ALERTA CMC 04 Confirmamos que recebemos diretriz de urgente mudança de procedi- mento para com o indivíduo isolado no Alojamento Q. A partir de agora Ninguém terá suas mãos e pés amarrados toda vez que regressar das ses- sões de entrevista para seu quarto. AUDIOCOMUNICAÇÃO EXTRAORDINÁRIA 01/31 Informamos que Ninguém, na última semana, alterou drasticamente seu comportamento: ao adentrar o quarto, passou a balbuciar sons incom- preensíveis, seguindo os mesmos caminhos anteriores, como se falasse os sinais que antes deixava impressos na parede. A grande diferença de agora é que ele, ao vocalizar aquilo que parece estar diante de seus olhos, reage de um modo específico a cada momento, ora sorrindo, agora aumentan- do a voz, nunca indiferente às visões dos tijolos nus. Mesmo de mãos e pés amarrados, Ninguém se lança com todas as suas forças para o cami- nho dos sinais. Todo o seu corpo se movimenta a cada passagem. E não há nada que pode deter essa marcha para o invisível. Porém, a situação fi- cou terrivelmente perigosa quando hoje Ninguém pronunciou algo que todos nós conhecemos: Jéssica! Jéssica! Em alto e bom som! Jéssica! To- dos nós ouvimos! Jéssica! Jéssica! Jéssica!! E, para ampliar mais a catástrofe, Ninguém, mesmo com todos seus membros atados, mesmo tendo sessões diárias de entrevista, mesmo com o controle nutricional do que se alimenta, mesmo com tudo isso, após várias e várias vezes vociferar o grande nome da mulher, ele começou a esfregar 26 27 seu corpo contra a parede, firme, forte, um vai e vem certeiro, necessário, ele e a dureza dos tijolos uma coisa só. Junto com isso, ele solta sons des- conhecidos, uns chamados, grunhidos, tudo num acelerando que ia fe- rindo seu rosto, sua pele, todo seu corpo já quase dentro dessa fantástica visão. No auge desse delirante sobe e desce pela parede, Ninguém come- çou a arremessar sua pélvis para frente. Subia e descia e vinha e voltava. Os golpes de sua pélvis contra a parede ecoavam pelo quarto. O lugar po- deria até ruir tamanho o empenho desse homem. Imóveis, de nossos mo- nitores nós apenas tentávamos identificar quando algum dia vimos algo semelhante em nossas vidas. Quando todos os movimentos frontais e diagonais se encontraram, ele soltou um enorme grito, tremeu inteiro e caiu como uma pedra no chão, logo adormecendo. Rapidamente corre- mos para o quarto e encontramos Ninguém com um sorriso no rosto e as mãos amarradas acariciando sua pélvis. Ele estava vivo, bem vivo, de um modo impossível de ser compreendido. Todos os observadores estavam perplexos. Nunca nenhum de nós ha- via passado por tal experiência. Durante anos recebemos nossos cidadãos aqui para as entrevistas de reciclagem e confirmação de adesão às diretri- zes da Convergência. Mas nunca, nunca houve algo parecido com o que aconteceu esta noite, mesmo depois dos turbulentos anos após a sema- na da grande matança, ou da segunda libertação, quando muitos ainda não conseguiam se livrar do impacto das mortes e da loucura do ardor do sexo. Como todos sabem diariamente multidões de homens e mulhe- res sobreviventes e responsáveis pela chacina se encaminhavam para as dependências do Complexo de Melhorias Comportamentais. Era preci- so sempre reafirmar aquilo que fizeram. Não havia mais como culpar a mídia ou o governo pela maravilhosa oportunidade de terem encontran- do enfim a felicidade. Estavam agora livres para a grande paz. Mesmo assim, a lembrança dos filhos agora entregues às Casas do Futuro, dos vi- zinhos mortos pelos invasores ou mortos por outros vizinhos, do sangue de crianças e inválidos escorrendo em suas mãos trêmulas, isso tudo tra- zia um certo e inútil desconforto. Era preciso entregar as armas, devolvê -las. Era preciso desarmar-se e abrir-se com todas as forças e de todas as formas para o que os especialistas, em conjunto com as empresas de mí- dia e o governo, indicavam. Foi nesse momento que enfim as coisas fica- ram claras e a Grande Libertação pôde ser completamente abraçada por cada homem, cada mulher. Porque os agentes e membros da Convergência chegaram à conclusão, depois de ver tanto sofrimento, que a causa de tanta incapacidade em as- sumir a plenitude da liberdade se encontrava justamente na velha e ultra- passada perspectiva de se dividir o mundo em duas metades. Repartido tudo o que é e existe entre bem e mal, os homens e mulheres desse mun- do vinham vivendo uma insuportável eterna insatisfação e agonia. Pois nunca têm o que querem, sempre desejam o que não podem ter – o outro lado, a outra metade. O que não se vê é sempre o melhor, é sempre o mais precioso. Divididos entre descontentamento com o que têm a impossibi- lidade de possuir o inefável, todos encontravam-se sobrecarregados com a miséria dessa falta, com o vazio dessa carência. Porém, pelo sexo e pela morte tudo ficou explícito, comum. Este é o fim da nudez. Esta é a conclusão do mal: basta! De uma vez por todas tudo fica para trás. Nas grandes palavras de O Próprio, em vez de comba- ter uma coisa pelo seu contrário, eliminamos a própria coisa por ela mes- ma. Nada de opostos ou oposição: o mistério é revelado e cada um pode com suas próprias mãos tocar nas rugas de Deus. Nunca mais será preci- so justificar ato algum por outro. Somos livres, livres! E foi o que aconteceu. Depois de um certo tempo, os homens e mulhe- res voltaram para suas casas e não havia mais em seus rostos marcas de choro, lamento ou dor, pois as primeiras coisas haviam passado. A fúria intempestiva do coito foi cessando até ser eliminada. A culpa pelo desti- no dos filhos, pelos assassinatos ou por quem quer que seja desapareceu. Em seu lugar havia homens e mulheres indo e vindo do trabalho, felizes e tranquilos, sem lembrança ou memória alguma de algo além das diretri- zes da Grande Libertação. Jéssica continuou a aparecer nos mesmos ho- rários, mitigando ainda o mínimo desejo que poderia existir. Uma nova geração veio em seguida, nutrida e fortalecida nas Casas do Futuro. Para elas havia somente a paz, e a certeza de que todos os caminhos 28 29 estavam abertos. Em poucos anos a geração das Casas do Futuro realizou as maiores descobertas do espírito humano, corroborando a nova ordem, os Novos Céus e Nova Terra da Grande Libertação. Primeiro, a descoberta de que o registro escrito é inútil. Disso decorreu a abolição de sinais grá- ficos. Como Jéssica jáhavia prenunciado, a verdade e completude da co- municação audiovisual superam qualquer registro escrito. Além do custo de se publicar todo o tipo de livro, revista e impresso, textos escritos tra- zem dificuldades de toda ordem para sua assimilação e interpretação. Por séculos o mundo viveu guerras e violências íntimas porque não se conse- guia entender o que estava grafado em um simples pedaço de papel. Ora, se uma coisa demanda tanto esforço, tantos anos de formação para depois resultar em algo indefinido, perturbador e vago, então essa coisa é inútil. Assim, em nome da paz e dos ideais da Grande Libertação, a escritura foi extinta e todo material impresso destruído. Tudo agora se basearia so- mente no contato frente a frente via tv. Tudo mais direto, simples e eficaz. As grandes empresas de mídia, a burocracia do governo e os especialis- tas deram todo o suporte para essas mudanças. Em menos de seis meses nenhum registro escrito podia mais ser encontrado. Houve uma imensa festa, com a queima das últimas obras esquecidas no porão de uma biblio- teca antiga. Com a morte da escrita, foram para o esquecimento absoluto também as livrarias, bilhetes de amor, professores de história e filmes le- gendados. Nunca em toda a história da humanidade as pessoas estavam tão felizes. Todo mundo comemorava o fato de se libertar da necessidade do passado, de registrar o que se pensa ter acontecido, ou o que se sentiu ou viveu. Olhando para frente, para bem além de seus olhos, as pessoas sorriam, gargalhavam, como se tivessem acabado de nascer. E é por isso que nós, os observadores do Alojamento Q, julgamos que os últimos atos de Ninguém, tanto quanto seu atentando contra O Próprio, são a expressão do nosso maior temor: um retorno aos dias anteriores à Grande Libertação. É fundamental que haja uma deliberação mais enér- gica e terminativa: antes que a situação fique incontrolável, que se apli- que a Ninguém o procedimento padrão CMC02. Tanto hoje, quanto no passado, sempre será preciso abrir fogo contra os inimigos do consenso. E nós desconfiamos que Ninguém tem consciência do que está fazendo – ele conhece muito bem o alcance de sua inútil provocação. ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ V VIDEOCONFÊRENCIA ENTRE OS DESTACADOS MEMBROS DA CONVERGÊNCIA, CONVOCADA PELOS REPRESENTANTES DAS GRANDES EMPRESAS DE MÍDIA. Temos acompanhado com grandes expectativas os desdobramentos do atentado contra nosso líder O Próprio, ocorrido durante a celebração de mais um ano de nossa vitoriosa e unânime Convergência. Nós, mais do que qualquer outro segmento aqui representado, temos nos dedicado completamente a manter as conquistas da Grande Libertação. Por isso, se- nhores, lamentamos que tanto a ausência de nosso líder quanto a estranha ascendência que esse criminoso tem tido em nosso meio. É, em nosso meio. Foi isso que os senhores ouviram. Destacados integrantes não só dos observadores como também do Governo e dos Especialistas deixaram vazar algumas informações que nunca, repetimos, nunca deveriam ter sido tornadas públicas. Não é justamente essa a razão de nossa existência: determinar e deliberar o que melhor deve ser feito pela e para a sociedade? Agora temos diante de nós este problema: as taxas de audiência da nos- sa programação, tirando as duas aparições diárias de Jéssica, diminuíram sensivelmente nos últimos dias. Papais e mamães não estão vendo mais tanta tv como antes. Sexo, sabemos que eles nem sabem mais o que é. Logo depois da exaustiva correria para suprir a demanda reprimida de séculos e séculos de controle sexual, em menos de um ano a libido baixou e todos se contentaram apenas com as imagens na tela. Então fizemos nossa parte: 30 31 imensos telões foram colocados nas ruas mostrando abusivamente repro- duções da cena primal de Jéssica. Onde quer que você fosse a única coisa que você poderia ver era Jéssica feliz e absorta em seu incansável cotidiano. Assim, de tanto verem a bela mulher fazendo a mesma coisa, papais e mamães voltaram seus olhos para apreciar a única realidade disponí- vel em qualquer aparelho audiovisual. Não havia mais notícias, telejorna- lismo, pois não havia outro acontecimento senão Jéssica. Não havia mais entretenimento ou telenovela, porque só existia uma coisa pela qual era importante gastar seu tempo – Jéssica. E não somente papais e mamães – nas Casas do Futuro, desde cedo as mesmas imagens eram projetadas continuamente, servindo de modelo e satisfação para a nova geração que hoje encabeça as posições de coman- do deste país. Nisso nos juntamos às grandes contribuições de nossos colegas, os es- pecialistas, na absoluta e correta verdade que é preciso tratar sempre o bem com o mal, e mostrar que o bem e o mal já não mais existem. Nós fornecemos os meios, vocês as mensagens. Sempre temos em mente o tra- tamento restaurador dado aos jovens nas Casas do Futuro: acompanhar aos gritos os jovens, humilhando-os o tempo inteiro, expondo seus defei- tos, suas manias, seus segredos. De manhã até a noite os jovens eram mo- nitorados pelo berro de vozes que não paravam de insultar e provocar. De tanto serem tratados assim logo quando acordavam, eles adquiriram um grande senso de prontidão, uma capacidade extraordinária de reagir ao primeiro comando: “Acorda, seu estrume! Não presta prá nada! Não faz nada direito! Erga essa cabeça! Pare de chorar, senão eu meto a mão na tua cara! Tá me ouvindo, seu merda, tá me ouvindo!” Ora, durante anos ouvindo tamanha violência era de se esperar que for- mássemos uma geração pronta para servir e obedecer. Tudo no mundo se resumia ao estar preparado para receber o golpe e assimilar o tapa. Ago- ra nossos jovens são fortes, atenciosos. Fazem tudo com gosto e sem re- clamações. Anos de boa educação fizeram com que soubessem quem são e com o que devem cumprir. Está em suas carnes, em seu sangue. Nun- ca mais se viu um cidadão chorando ou gripado. Muitas doenças tiveram seu fim justamente porque a maneira como as pessoas são ensinadas a vi- ver foi alterada. Como sabemos, se você joga um cachorro na rua durante o inverno, ele vai morrer, com certeza – se for fraco. Se você queimar a pele de alguém várias vezes, essa pele não vai mais cair, pois se tornou osso. Do mesmo modo, nossos jovens agora são fortes porque são ossos, pedras, firmes estruturas de nossa sociedade e da Convergência. Quem por acaso fica- ria surdo depois de ouvir tantos gritos? Ou quem então pode ainda sen- tir nojo depois de levar tanta cusparada no rosto? Eles foram rebaixados para se tornarem dignos. Eles foram pisoteados para saber onde andar. Em tudo isso temos concordado com nossos colegas especialistas. Mas agora o que até aqui havia sustentado nossa hegemonia parece não mais ser tão suficiente. Imaginem se perdermos nossos braços, o apoio da nova geração? Imaginem se um dia chegarem às Fazendas… Podemos estar exagerando, mas o autor do atentado foi entregue nas mãos dos especialistas há quase dois meses. Esse bandido era para estar in- comunicável. E até hoje nenhum dentre vocês conseguiu de fato esclarecer quem é esse sujeito ou por que ele fez o que fez!! O chamado “interrogató- rio invasivo”, um mero desdobramento dos procedimentos realizados nas Casas do Futuro, tem se demonstrado inútil. Ora, será que é inútil somen- te com Ninguém ou há algum tempo já que o procedimento é ineficaz?!! Nesse sentido é que nossa perplexidade se justifica. Como podemos continuar aqui sentados diante da corrosão dos ideais da Grande Liber- tação? Nós, os grandes empresários de mídia, gostaríamos de ouvir ex- plicações e não desculpas da parte dos especialistas. Esse vácuo de poder criado pela ausência de O Próprio e essa misteriosa fama que o crimino- so vem adquirindo entre nós tudo isso surge em um mau momento para a Convergência. - Não querendo responder à já conhecida ansiedade e perturbação que predomina entre os nossos colegas das Grandes Empresas de Mídia, sen- timentos que durante anoseles trataram de nos vender e incutir, infor- mamos que o agora denominado Ninguém encontra-se preso e isolado 32 33 nas dependências do Alojamento Q do Complexo de Melhorias Ambien- tais. Dizendo isso parecemos não estar apresentando nenhuma novidade. Para espanto de nosso grupo, todos aqui aparentam saber mais de Nin- guém que nós mesmos, os especialistas. Agradeço então aos colegas das Grandes Empresas de Mídia pela convocação dessa reunião, que vai nos dar uma oportunidade única para esclarecer não só esse ponto relativo ao sujeito que vocês já estão qualificando de criminoso, como também o destino de nossa pacífica convivência na Convergência. Antes de tudo, agradecemos também à exposição bem simplista de nos- sa contribuição em prol da Grande Libertação. Por muito tempo fomos conhecidos como “Os gritadores”. Não sei se essa pejorativa atribuição nos ajudou muito na conquista do papel, infelizmente hoje tão subalter- no, que temos aqui, mas o certo é que quando as palavras deixam de ser palavras e se tornam apenas sons, alguém ganha com isso. E não fomos nós que ganhamos… Afinal, estamos aqui dividindo essa mesa também com nossos insa- ciáveis colegas representantes dos papais e mamães. Gostamos muito de sua vigorosa presença, mais robusta e feliz, não é mesmo? Saudamos vo- cês todos, papais e mamães, com essas mãozinhas gordinhas, untadas de gordura e pus, nas unhas amarelas cascas crocantes de frango empanado, mãozinhas brilhando como por encanto. É realmente algo assim recom- pensador ver vocês quase que estourando de tanta alegria, premiando to- dos os anos que nós temos dedicado nas pesquisas e nas intermináveis entrevistas que realizamos diariamente nas dependências do Complexo de Melhorias Ambientais. Pois, eliminada a culpa pelo sexo, pela morte e pela criação dos filhos, vocês, papais e mamães, estavam livres para tomar posse de suas poten- cialidades, para, pela primeira vez na história da humanidade, não mais agir como resposta ao medo, à dor e à solidão. Pois, sendo dois, papai e mamãe não precisavam de mais nada – se bastavam. Não eram mais re- produtores, provedores, nem formadores de família, muito menos educa- dores: eram pessoas, enfim. Não precisavam mais trabalhar para garantir um lar, não precisavam mais acordar cedo para levar alguém para a igreja. Acabou-se a outra coisa: namorar para ter de casar para fazer sexo para ter filhos e estudar para trabalhar para cuidar dos filhos. Tudo agora se resumia a vocês mesmos. Era um com o outro. Só vocês dois. O paraíso. Realmente, com a maciça presença de Jéssica, com Jéssica fazendo sexo por vocês, não havia mais sentido em papai e mamãe no chão da sala o tempo inteiro. E não havia mais sentido em momento algum fazer isso: tanto sexo acabou com o sexo. A Grande Libertação em sua maturidade foi a eliminação do sexo através do sexo. Aquilo que os religiosos e alguns papais e mamães ainda avessos e ignaros à suprema doação que Jéssica fez por nós fora considerado uma indecência, um escândalo, agora tinha sua razão de ser. O mal gerando o bem, e eliminando o bem e o mal, como aqui foi dito. Aquilo que começou com a voraz cena de uma mulher pe- netrada exaustivamente por seu amante terminou em papai e mamãe sen- tados no sofá da sala vendo tv felizes sem seus filhos. Mas, enquanto nós os especialistas desenvolvíamos alternativas para que essa paz enfim alcançada nunca acabasse, novas diretrizes foram so- brepostas às antigas diretrizes. Com papais e mamães deixando de se cutucar no chão da sala, a programação da tv foi sofrendo um sério aba- lo. Cada vez mais um número menor de pessoas assistia ao sexo filma- do de papais e mamães, pois cada vez mais um número menor de papais e mamães fazia sexo. Os mais de trezentos canais de tv aberta e fechada começaram então a diminuir o tempo de sua programação e, por conse- quência seus investimentos e lucros também diminuíram. Tudo pura e simples matemática. Foi nesse sentido que nós desenvolvemos as Fazendas, para prover às emissoras imagens baseadas em variações da cena de Jéssica. Precisáva- mos que houvesse sexo, que nascesse gente ainda. Para lá foram parte das crianças das Casas do Futuro, uma parte melhor, escolhida. As fazendas são a contribuição que cada papai e mamãe dá em direção da sobrevivên- cia de nossa sociedade. O Próprio mesmo, nosso grande líder, atualmente ferido e enfermo, após crescer nas Casas do Futuro, estagiou nas Fazendas. Porém, enquanto nós os especialistas estávamos ocupados em garantir a continuidade da Grande Libertação, vocês da mídia passaram a veicular 34 35 os famigerados Shows Alimentares, repletos de músicas, dança e comida. Quem poderia imaginar que toda a nossa cotidiana atividade de redefini- ção da pessoa humana iria decair nesses festins de desperdício e gulodice, com homens e mulheres arremessando tortas de carne e bolos de abacaxi uns nos outros, enquanto seguiam marchando, em fila, em uma canto- ria ébria e barriguda. Foram vocês, membros da mídia, que desenvolve- ram toda essa sorte de divertimentos atlético-culinário-musicais, com o único objetivo de ocupar a grade televisiva, vendendo para papais e ma- mães a falsa felicidade de uma satisfação sem fim que se pode pegar com as mãos e pôr na boca. Com todo o seu tempo livre, livre para ampliar suas mentes, papais e mamães tornaram-se presa fácil. E, sem opção, empaturraram-se daquilo que viam na tv, e passaram a comer tudo o que viam. Agindo como por- cos, vivendo como porcos, gordos, violentos, insaciáveis, suarentos, fa- mintos, nossos cidadãos chegam até ao ponto de nem mais conseguirem ficar de pé. De quatro, como Jéssica, mas por outra razão, passam a vida esfolando os joelhos, abrindo geladeiras, sentindo no rosto o borrifo de refeições ainda nem preparadas. E vão aí, pelas ruas, rolando, do trabalho para a casa, da casa para o trabalho, atropelando gatos, derrubando árvo- res, amassando carros. Se essa era para ser a grande conquista de nossa revolução, conseguimos: temos agora grandes pessoas, enormes, gigantes, compostas de várias camadas e uma cor amarelada cobrindo tudo. São fa- cilmente montáveis e desajeitadamente operantes. Comem em bacias, dor- mem com cortinas. De longe sabemos onde estão, pelo cheiro do frango em suas mãos, pelo tremor da terra inteira. Gordos, gordos, gordos; boju- dos, afofados, cevadiços, substanciosos. Pomadões, banhasustos, calefados, inchadonhos e pluritufos. Com megafuças, dupla-arcadas, estes mani-an- siosos podem raspa-curva, lâmina-língua, glote-espaço. Mas o que mais desejam é arrota-esfuma, puxa-e-ronca e vai-te-embora. Por isso, é a vocês, membros representantes dos papais e mamães, que nós nos dirigimos. É impossível não deixar de perceber como em seu dis- curso nossos colegas multimidiáticos tentaram desqualificar nosso tra- balho. Eles sabem muito bem como fazer isso. Há séculos esses distintos membros de nossa comunidade vêm obtendo sucesso por deixar piores seus clientes. Mas a Grande Libertação veio para revelar tudo que estava oculto, para tornar manifesto o que antes era obscuro e inacessível. Por isso nós advertimos: papais e mamães, há anos vocês estão sendo enganados! A Grande Libertação ainda não aconteceu completamente por causa das Grandes Empresas de Mídias. Elas não querem vocês realmente livres. Elas querem que vocês sejam livres apenas para o que eles pensam ser a liberdade. Há anos nós os especialistas estamos lutando contra uma nova ordem incompleta, precária e insustentável. A última etapa é desli- gar a rede, eliminar o sinal que nos une. A próxima conquista é viver sem mais nada, livres até de nós mesmos. E é, por incrível que pareça, em Nin- guém que vemos o novo modelo do novo homem. O Próprio já é passa- do. Sua incapacidade de reagir ao ataque, sua frágil e instável compleição e atitude nos incita a pensar melhor. Se decidimos colocar O Próprio na liderança, podemos decidir também por substituí-lo. Durante as sessões de interrogatório,Ninguém tem se demonstrado firme, forte, um estímulo para nossas investigações e castigos. Com Nin- guém, por ele, temos aprendido a ser mais audazes em nossos golpes. Sua carne e suas dores têm nos ensinado a ir mais além do que podemos che- gar. Não há limites para algo como Ninguém, não há limites para seu so- frimento, para sua mais completa aniquilação. Ninguém é indestrutível, fantástico, maior e mais forte que a vida. Você pode cortá-lo, aspergir seu sangue, cuspir em sua cara, massacrar seus ossos, penetrá-lo de todas as formas que ele continua ali o mesmo, inteiro, irrestrito, selvagem. Nós os especialistas gostaríamos que todos os cidadãos fossem assim, perfeitos, flexíveis, maleáveis. Nós gostaríamos que todos fossem uma matéria dó- cil em nossas mãos, e não uma baba grossa de gordura escorregando da frigideira para o ralo. Vocês estão piores, cada vez mais intragáveis, meus cidadãos. O que podemos fazer com vocês assim nesse estado? Agora, com a criatura do Alojamento Q nós podemos fazer tudo, tudo o que quisermos. Ainda temos muito pra experimentar. Cada dia é uma nova oportunidade, um desafio para destrinçar a invencível natureza do sacrifício. E, enquanto não nos dermos por satisfeitos com esse banquete, 36 37 não vamos passar adiante nosso lugar na mesa. É nossa vez de comer, seus gordos mortos de fome! É a nossa vez de nos fartar com a medida improvável de nossos sonhos! Ninguém vai continuar em observação no Complexo de Melhorias Experimentais. Essa é nossa palavra final. Não se preocupem: nenhum de nós vai deixar que ele fuja ou seja recuperado. Ele não está perdido. Não é mais uma ameaça: a criatura repousa no tor- por de suas visões e gritos. VI ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ RELATOS ANÔNIMOS REUNIDOS APÓS A DISSOLUÇÃO DA CONVERGÊNCIA - Era impossível saber quem teria mais a ganhar por haver possibili- tado que Ninguém escapasse. A única certeza, mais uma vez, estava nas imagens de um homem nu correndo pelas ruas, o olhar em todas as di- reções. Imediatamente à fuga, os membros da Convergência foram con- vocados para uma reunião na casa de O Próprio. Enquanto discutiam o que poderiam fazer e tentavam encontrar um responsável para tamanha e inédita falha acadêmico-administrativa, surgiam na tv, interrompendo mais uma besuntada dançazinha de mais um Show Alimentar, as imagens da fuga de Ninguém. Aquilo foi um golpe. Todos se sentiam traídos e se acusavam. Papais e mamães comiam desesperados. O grupo da Mídia se defendia dizendo que os especialistas nunca se importaram com as pessoas. Os especialistas apelavam para medidas extremas contra o grupo da Mídia. Em sua cama, colocada ali na sala de reuniões, O Próprio suspirava. Todos esses minu- tos finais da Convergência foram gravados e depois veiculados em cadeia nacional, junto com um dos últimos discursos de O Próprio. Nele, o grande líder traçava uma mudança nas diretrizes: com toda a coragem que lhe é peculiar, O Próprio revelou que durante esses anos muitas coisas haviam sido realizadas sem o conhecimento da população. Isso feria as instruções fundamentais das Diretrizes da Grande Liberta- ção, que exigiam a completa explicitação pública de todo e qualquer ato. A abolição da escritura e, consequentemente, da burocracia produzira um gigantesco impulso rumo a essa total liberdade de contato e informação. Tudo era veiculado boca a boca, olho a olho. Aqueles que pensavam que a revolução precisaria de muito tempo para ser realizada estavam enga- nados. Em poucos dias sem escritura, sem texto as pessoas estavam mais felizes e mais inteligentes. O pensamento fluía livremente, sem obstácu- los – cada ideia se ligava à outra intermitentemente. Este foi um dos fatores de eliminação da libido. Pensando sempre e melhor, o tempo inteiro, papais e mamães agora tinham algo para acredi- tar, para manipular em suas cabeças. Não precisavam de mais nada, nem ninguém. Todos aqueles anos terríveis, toda a história de esperar por algo num futuro indeterminado, de imaginar coisas e não poder cumpri-las, de ter esperanças e sonhar com novos mundos e céus e além, tudo isso era passado. Consigo mesmos, papais e mamães encadeavam nitidamen- te cada parte do que desejavam, transformando em ideia palpável aqui- lo que antes nenhum escritor, nenhum profeta conseguira alcançar. Pois tudo estava ali diante de seus olhos, com todos os detalhes, proporções e volume, para que cada um se satisfizesse e bastasse a si próprio. Esta vitória da mente sobre todas as outras contingências logo foi ca- pitalizada pelos demais membros da Convergência. Os Especialistas e as Grandes Empresas de Mídia se uniram em prol de exterminar um gru- po minoritário, mas poderoso – o dos religiosos. Em sua milenar cam- panha de rebaixar os espíritos e introjetar o medo da morte, os religiosos sobreviviam ainda, mesmo em um mundo marcado pelo esclarecimen- to e autonomia. O principal motivo dessa incômoda presença era a propaganda em prol da esperança, correlato da mais completa humilhação. Para adquirir o porvir, a pessoa tem de deixar de ser ela mesma, tem de renegar tudo que 38 39 acredita, tem de renunciar ao mundo. Essa pregação arcaica e fascinante se constituía em uma perigosa provocação contra a nova ordem: alardea- va a recusa de tudo o que é ou existe. E em prol de quê? Nada. Aí está a mais devastadora, assombrosa e absurda perversão, capaz de vencer todo e qualquer pensamento: a ilusão de que se ganha algo de coisa nenhuma, de que não é necessário ganhar nada para se obter a liberdade. Essa era a matriz da esperança: o vazio, a troca de tudo por coisa nenhuma. Diante desse instrumento poderoso, capaz de desarmar os espíritos e destruir a Convergência, os especialistas e membros da mídia passaram a investir todo os seus recursos e estratégias em tornar irrelevante e nula a função dos religiosos na terra. Para tanto, a solução mais eficiente foi ampliar as conquistas que a abo- lição da escritura havia proporcionado. Com o desaparecimento das letras, da necessidade de registrar palavra por palavra aquilo que se fala, pensa ou vê, as pessoas ficaram mais propensas ao ouvir. Então, após um grande concurso de talentos, que envolveu toda a nação e que foi veiculado em to- dos os canais, com diversas eliminatórias em todas as Casas do Futuro, eis que irrompe no cenário e nas vidas de todos os papais e mamães a voz e a figura de O Próprio. Cantando, falando, discursando ali estava ele. Desde as primeiras etapas do concurso, O Próprio já se distinguia. Como as le- tras não mais existiam e as pessoas tinham dificuldade em nomear e qua- lificar o que sentiam, rapidamente se espalhou entre todos que aquele ali diante de nós, diariamente na tv, cantando e sorrindo temas e ideias sobre como é bom viver, que esse não poderia ser outro que o próprio princípio da esperança personificado. O Próprio era o anseio de gerações e gerações que se perdiam entre as indefinidas e sinuosas sombras daquilo que tanto almejam atingir. Pois essa era justamente a grande arma dos religiosos: na verdade tudo era mentira, tudo era apenas promessa, palavra e nada mais. Mas com O Próprio era diferente: era música, era um agradável som em teus ouvidos. O que você sempre quis escutar, o que você sempre quis possuir agora estava bem ali ao alcance do controle remoto. Não havia mais o medo da perda, da impossibilidade de se participar das boas coi- sas. O Próprio era de todos, nem de maus, nem de bons, pois os únicos que achavam que o mundo ainda era dividido em duas partes eram os re- ligiosos, que ameaçavam todos com suas promessas e falsidades, dizendo haver um mundo outro somente para os melhores, para os que se esfor- çassem em abandonar todas as coisas e rumassem para o além, para onde quer que ficasse esse lugar. E para isso não tinham mapas, não tinham instruções seguras, não tinham show, não tinham nada: somente diziam que era preciso que seguissem o que diziam, que aceitassem as palavras.E quando todos souberam que a esperança que os religiosos vendiam não passava de um engano para garantir a sobrevivência dos próprios re- ligiosos, houve uma ira tremenda, como aquela que arremessou papais e mamães contra quem quer que lhes cruzasse o caminho. Nesse momento as canções de O Próprio se tornaram mais veementes e esbravejantes. To- dos cantavam e gritavam juntos os sons da nova ordem. Unidos pela mú- sica e pelo ruído, a multidão tomou conta novamente das ruas e a marcha pela verdadeira liberdade contra a esperança e o medo afugentou para sempre da face da terra o menor vestígio da presença dos religiosos en- tre nós. A mensagem era clara: nunca mais em tempo algo algum papais e mamães gostariam de ser iludidos. Nunca mais e para sempre haverá uma divisão entre a luz e as trevas. Nunca mais e definitivamente as pes- soas serão julgadas e classificadas pelas outras. Nunca mais, nunca mais as palavras vão determinar nosso destino. Esse coro fantástico e infinito se reuniu no campo aberto onde hoje se encontra o Palácio de Todas as Gentes. Naquela semana ninguém voltou para casa. Grandes telões transmitiam a sequência de canções que todos cantavam. O Próprio comandava a multidão que delirava durante as músicas. Não havia como parar aquela massa de papais e mamães juntos, fortes, para o que der e vier. Foi nesse momento que os especialistas e a mídia, embora satisfeitos com essa demonstração de seu poder, passaram a observar com toda a atenção a performance de O Próprio. Não havia outra saída. Ele era o líder. Todos os anos nas Casas do futuro e aquela comoção generalizada provavam isso. Em um acontecimento que ficou célebre, todas as câmeras se viraram para O Próprio. Ele pôde ser visto e admirado em sua inteireza, em todos 40 41 os seus ângulos e poses. Assim, O Próprio, dividido e multiplicado, espa- lhou-se e foi consumido indistintamente. A velocidade das imagens vin- das das mais variadas posições deixou bem claro para o público que O Próprio estava ali completamente, como se estivesse em todos os lugares. Gratos por esse presente, o grande coro entoou por horas uma canção de agradecimento e louvor. Finalmente, após tantos séculos, a multidão con- seguiu possuir aquilo que tanto desejava: algo aqui conosco. Todo o des- lumbre com o coito, toda a felicidade com as mortes e com as visões em suas mentes, tudo isso agora chegava à mais alta conclusão: O Próprio es- tava ali, entre eles. Não precisavam de mais nada, pois tinham o benefício sublime da presença do cantor. E agora, pelo resto de seus dias, eles sa- biam que não estavam sós, que a vida não havia sido em vão, que o esfor- ço, a miséria e a desgraça de tantas gerações não fora inútil. Quantos enganos, quantas mentiras… Mas tudo isso ficava no passado, como as letras, como os religiosos. Pois os papais e mamães enfim se en- contraram com a voz que os chama para canto e que lhes sossega o espírito. Sem demora, os especialistas e a mídia montaram uma plataforma, al- çaram O Próprio para cima e por aclamação o jovem foi nomeado e ins- tituído líder de uma convergência. Como era de se esperar, atos impulsivos geram instabilidade sem fim. Nos anos subsequentes, os membros da convergência ora disputavam a prerrogativa de haver nomeado O próprio, ora censuravam o possível au- tor de tamanho despropósito. Diante disso, e da lenta e contínua ascendên- cia do grupo dos vigilantes e observadores, um novo equilíbrio de forças era fundamental: a Grande Libertação estava em perigo. Não só a fuga de Ninguém como o próprio atentado que ele cometera cercava de dúvidas e incertezas o futuro das relações entre os membros da Convergência. Quem era esse que agora atraía a simpatia de todos? Quem estava atrás de seus atos? Diante da demanda e pressão de papais e mamães, as tvs passaram a retransmitir as imagens da grande fuga. Como viviam em uma sociedade aberta, toda vigiada por câmeras, todos os passos de Ninguém foram re- gistrados. Inicialmente, vemos a anônima criatura de longos cabelos, barba por fazer, com seus olhos fixos na tela da tv. É a aparição diária de Jéssi- ca, no meio da tarde. Há um corte de edição. Depois disso, vemos Nin- guém chorando ao chão, nu, as mãos em seu sexo. É noite. De repente, ele levanta a cabeça. Parece ouvir algo. Ninguém balança devagar a cabe- ça para um e outro lado, como que procurando um ângulo sem câmera, como que percebendo que esse ângulo não existe. Então ele, com as ener- gias que ainda lhe restavam, olha firme para uma das câmeras e projeta para nós uma raiva terrível, indecifrável, intimidante. Sem que se espere, para nossa surpresa, ele se atira contra a câmera e aos gritos a destrói. Em seguida sai correndo pela porta aberta de seu quarto, atravessa ruidosa- mente os corredores do Alojamento Q e corre bufando pelos gramados e prédios do Complexo de Melhorias Experimentais. Em tudo isso, no que a câmera pôde captar e registrar, está a presença de uma força além de nossa capacidade de descrever e avaliar. Pulando cercas, rompendo cur- vas, pisando arbustos, ele corre sempre, para frente, o coração pulsando sem parar, o ar indo e vindo em seus pulmões. Ninguém continua e some no meio da cidade e seus edifícios, mostrando para todos a imensidão de luta, o poder de seu olhar, porque mesmo após ter sido vasculhado, de- glutido e expulso pela grande máquina inquisidora dos especialistas, ele não cedeu, não se consumiu: antes, segue invicto, o corpo ereto, o rosto para cima, o olhar firme adiante, pois é um homem. E nada do que fize- rem vai poder mudar essa condição, essa matéria do que ele é feito e que Ninguém carrega dentro de si, vibrando em seu peito. Vendo tudo isso e reconhecendo em Ninguém mais que a pessoa e seu valor, O Próprio ergueu-se entre as discussões de especialistas e midiáti- cos e gritou para todos: “Matem esse desgraçado! Matem agora! Eu quero esse homem morto, entenderam? Morto!” 42 43 VII ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ ◦ As violentas e desencontradas palavras do líder da Convergência ecoa- ram em cada casa, em cada rosto desta nação. O trauma da grande sema- na dos assassinatos parecia haver sido eliminado com as entrevistas no Complexo de Melhorias Comportamentais e com as canções de O Pró- prio, que passavam intermitentemente na tv. Todos tinham bem vivas as imagens dos corpos se abrindo, dos gritos, da confusão entre mortos e vi- vos que o inesperado contra-ataque de papais e mamães armados fez res- soar sobre todos. Quem agora olha essas gordas criaturas, ensaboadas no sofá da sala, cumprindo uma rotina que parece eterna, nunca iria imagi- nar que justamente esses aí, um dia, foram capazes de tremendos atos de morte e destruição. As canções de O Próprio foram um alívio para essa e outras dores. As mamães vendo seus filhinhos sendo tirados dos enormes braços delas, muitas vezes à força, essas mamães só puderam encontrar algum confor- to nas doces melodias, nas suaves mensagens vindas dos lábios daquele que mais tarde seria a grande mente a nos guiar para a Grande Libertação. Em sua voz todos sentiam que havia um sopro, um fôlego, uma res- piração calma, serena, completa. Cada frase cantada vinha sem esforço algum, como uma fala, um conselho, um abraço amigo. Ele falava direta- mente para cada um de nós, mesmo estando em um estúdio qualquer. O Próprio se dirigia a cada um dos papais e mamães e cada um deles sentia que agora tinham um grande amigo, um inseparável companheiro. Onde quer que fossem, todos podiam bem saber que não estavam sós. Em todos os canais da tv, seja em casa, seja nos aparelhos portáteis, seja nos grandes telões espalhados pela cidade, não havia como estar livre da influência pa- cificadora de O Próprio. De manhã bem cedo, papais e mamães desperta- vam ao som das canções e seguiam para o trabalho ouvindo mais e mais dessa voz. No trabalho, alto-falantes em todos os escritórios e banheiros distribuíam os sons da felicidade. A mesma música, em suas múltiplasva- riações, convidava todos a serem melhores, a trabalhar mais e a esquecer, a nunca mais lembrar o que se passou. Ouvindo a voz de O Próprio, os olhos abertos ao infinito, papais e mamães deixavam atrás de si dia após dia tudo aquilo que poderia trazer algum mal, alguma tristeza. Era forço- so lutar contra toda e qualquer forma de distúrbio e perturbação que as- solasse suas mentes. Por isso, não cessavam de aumentar o volume da música para aba- far os gemidos da luta extrema que travavam consigo, a batalha contra as imagens de um passado que insistia em ressurgir. Todas as conquistas da Grande Libertação dependiam exclusivamente da força da música de O Próprio em sepultar para todo o sempre os vestígios de um tempo quando as pessoas fingiam ser felizes e não lutavam por uma vida melhor. Agora tudo dependia delas. Não havia ninguém para ajudar ninguém. A decisi- va guerra estava no imenso mundo que se erguia entre a mão e a cabeça, tudo ao alcance do preciso e poderoso golpe de um piscar de olhos. As- sim iam gemendo papais e mamães, absortos em somar canção a canção e reunirem-se com o imenso novo destino que as músicas de O Próprio anunciavam e proclamavam com tanto ardor e persuasão. Então, quando a voz de canção se tornou grito, voz de comando, pa- pais e mamães se arremessaram para as ruas, arrastando seus imensos corpos no ímpeto de capturar o fugitivo bandido ladrão quase assassino. Um terrível ruído se espalhou pela cidade – o estrondo das montanhas de suor e gordura se abatendo contra o chão e os prédios. Como se fossem gi- gantescas ratazanas, a noite após a irada declaração de O Próprio na tv se revestiu de uma confusa mistura de esguichos de ferozes investidas e in- suportáveis sofrimentos: pressão nos joelhos, nas pernas, nas costas dessa multidão alentada e cevada trazia junto com a inspiração vitoriosa o rom- pimento de ligamentos, diarreia e desnutrição. Blocos de carne e roupas se acumulavam nas ruas e a perseguição a Ninguém foi um verdadeiro fra- casso. Todos os canais de televisão filmavam os rostos sofredores e raivo- sos daquela massa robusta. Tudo que fizeram antes, todas as conquistas em prol da Grande Revolução foram substituídas por essa desmoralizante 44 45 desgraça – a humilhação de terminarem encalhados antes de empreender a selvagem caça. As câmeras mostravam o infeliz encontro entre a sanha e a banha, com papais e mamães afogados, detidos em sua ânsia de mais poder em virtude de tanto pesarem. Assim, como um exército vencido, um perseguidor após outro ia cain- do, entupindo os caminhos, abarrotando as esquinas, fechando as entra- das e saídas das cidades. Os que mais se esforçavam em superar a fadiga do cansaço imposto pelo volume de seus corpos até que iam mais adian- te, mas logo se transformavam em novos embaraços e impedimentos para os que vinham atrás. Desse modo, chegou o tempo em que, em vez de ir para frente, a multidão gulosa começou a formar amontoados de rotun- das criaturas, proeminentes depósitos de gente, como se fossem imensos restos, sobras, detritos abandonados em plena praça pública. Aquele aglo- merado de mãozinhas inchadas, joelhos partidos e choramingos deba- tia-se, sufocando-se, enquanto as câmeras buscavam um melhor ângulo. Foi nesse momento que os Observadores intervieram e foi justamente por causa dessa intervenção que o prematuro fim da Convergência ficou ratificado. Não havia mais como sustentar uma sociedade que se baseava no escárnio e no mal dizer. Eram famosas entre grande parte dos mem- bros da Convergência piadas sobre papais e mamães. Nas reuniões de li- derança parte do tempo preparatório para as discussões era gasto com projeção das imagens do cotidiano dos progenitores rotundos. Com a conquista do bem estar e eliminação do crime, da religião, das leis e da educação, papais e mamães estavam mais do que satisfeitos: queriam não se preocupar com mais nada. Estavam cheios de si e não queriam se es- vaziar. Tudo era feito em função deles e em poucos anos tudo o que eles queriam já havia sido alcançado. Agora, uma geração que parecia não ter passado por traumas, que em silêncio apenas anotava os dias e as noites de cada um de nós, essa geração vinda das Casas do Futuro deixou seu lugar nas sombras e com mão forte resolveu dizer que quer participar do mundo e das boas coisas que nele há. Para tanto, Os Observadores, em socorro aos viçosos clamores dos pro- genitores que agonizavam empilhados, se lançaram contra as câmeras de tv e destroçaram máquinas e seus operadores. Quem poderia imaginar que haveria tanta força assim em gente que passou a vida somente vigiando! En- quanto alguns observadores tomavam o lugar dos operadores das câmeras, outros procuravam socorrer papais e mamães. Tudo era isso filmado, mas sob nova perspectiva. Quem estava de posse das máquinas agora eram os empregados da Convergência, os subalternos, os anônimos da Grande Li- bertação. Para horror dos Especialistas e dos donos das Grandes Empresas de Mídia, fora a audiência, a inútil e estúpida audiência que agora toma- ra de assalto a programação. Fora justamente quem ficava do outro lado da tela que nesse instante determinava o que deveria ser visto e escutado. Essa enfim era a total demonstração da degradação das diretrizes da Grande Libertação. Pois, em meio desse desgoverno, dessa irresistível von- tade de usufruir o que não se pode usufruir, o verdadeiro alvo da Conver- gência encontrava-se livre, solto, imune a qualquer impedimento: Ninguém corria sem parar, atravessando todas as portas e muros, indo firme em di- reção daquilo que em sua mente latejava. Como era possível que em um mundo justo, com tudo exposto, tudo registrado democraticamente pelas câmeras, um criminoso fugisse das dependências do mais bem aparelha- do sistema de vigilância e investigação, e que esse mesmo inútil e infeliz desgraçado tranquilamente cruzasse as ruas e as casas desse país sem que fosse capturado ou impedido de prosseguir?!! Sendo apenas um homem, um homem nu, faminto e fraco, como ele poderia obter tamanho êxito diante de toda a máquina, de toda a maciça presença da Convergência em cada cabeça, em cada buraco dessa terra? Pois se ele é somente um homem, há algo de errado com toda a vasta estrutura de controle que a Grande Libertação conseguiu construir todos esses anos. Se um só homem não é passível de ser atingido por nossos ins- trumentos, então toda a estrutura é falha e desnecessária. Se um homem só consegue impedir que todos nós nos reunamos e em comum busquemos soluções para esse impasse e devastação, isso prova que nunca estivemos fortes o suficiente, apesar de todos os nossos esforços. Todos esses anos que mal acabamos de comemorar não são nada diante do que hoje acon- teceu. Por causa desse homem a ordem e os princípios da Convergência 46 47 foram abalados e os Observadores perderam o controle de si. O ataque aos meios televisivos foi pior que o atentado que eu sofri. E tudo veio de um só homem. Está na hora de deixamos tudo que aconteceu para trás e pôr um fim em tudo isso. Está na hora de derramar o verdadeiro sangue, o sangue de quem deveria estar morto há muito tempo. Está na hora de caçar, prender e dilacerar Ninguém! A oportuna intervenção de O Próprio apaziguou por alguns momen- tos o inesperado assalto de Os Observadores às instalações centrais das Grandes Emissoras de Mídia. Depois de libertarem os progenitores, Os Observadores andaram firme pelas ruas desobstruídas e chegaram sem dificuldade alguma à entrada das instalações. Era impossível impedir sua arremetida contra os temerosos e instáveis donos das empresas de mídia. Quando tudo mais uma vez se encaminhava para um embate violento, as portas são abertas e das escadas O Próprio discursou por horas e horas. Ele relembrou todas as conquistas da Grande Libertação, apontou falhas, sugeriu correções, censurou todos os segmentos e, ao final, cantou, cantou como nunca, como se fosse a última vez. Embalados pela música
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