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EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO MÉDIO: PRÁTICA DOCENTE OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar os temas contemporâneos transversais a serem trabalhados no ensino médio. > Reconhecer a importância dos temas contemporâneos transversais como parte integradora do currículo do ensino médio. > Descrever o referencial teórico-pedagógico que sustenta a proposta do trabalho com temas contemporâneos de forma transversal e integradora no ensino médio. Introdução A escola é uma instituição que tem como objetivo a transmissão de conteúdos de caráter técnico-científico em diversas áreas do conhecimento, apontadas como fundamentais para a construção de uma base de saberes necessários para a atuação em sociedade. A sociedade, por sua vez, é formada por um conjunto de conexões interpessoais inseridas em determinado contexto, com características únicas do ponto de vista histórico, social, cultural e econômico. Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio Leonardo Mateus Teixeira de Rezende Além da responsabilidade com a transmissão de conhecimentos de caráter técnico-científico, o que é realizado pelas disciplinas tradicionais, a escola tem um papel social determinante, uma vez que também tem como objeto de estudo temas que deverão contribuir para a formação de cidadãos críticos e sensíveis aos problemas do mundo. Esses assuntos são conhecidos como temas contemporâneos transversais (TCTs). Eles abordam questões diversas e, necessariamente, devem estar inseridos em todas as áreas de conhecimento presentes na educação básica, contribuindo para a integração dos conheci- mentos e a promoção de uma abordagem educacional sistêmica. Neste capítulo, você vai estudar os temas contemporâneos transversais a serem trabalhados na educação de base brasileira. Vai ler sobre a importância desses temas para a formação de indivíduos capazes de atuar de forma crítica e reflexiva na sociedade e conhecer o referencial teórico-pedagógico que sustenta a proposta do trabalho com tais temas. Temas contemporâneos transversais no ensino médio De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação brasileira, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o ensino médio corresponde à etapa final da educação básica, com duração de três anos. A LDB aponta ainda que a finalidade do ensino médio é aprofundar o conhecimento adquirido no ensino fundamental, promover o desenvolvimento ético, intelectual e crítico, bem como desenvolver a capacidade de compreensão dos fundamentos científicos-tecnológicos dos processos produtivos. Deve ainda preparar os estudantes para o mercado de trabalho e para a prática cidadã, contribuindo para o aprimoramento do indivíduo (BRASIL, 1996). O ensino médio consiste em um momento de transição na vida de jovens estudantes. Contudo, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aponta que não deve haver uma caracterização ou estereotipação dos estudantes baseada em aspectos cronobiológicos, uma vez que o contexto educacional deve ser expandido para além do desenvolvimento fisioanatômico dos sujeitos, mas também considerar suas múltiplas dimensões, o que está associado aos processos socioculturais do contexto de vida em que eles estão inseridos. A partir dessa concepção ampla de juventude, fica claro que o ambiente escolar precisa ser expandido também no sentido de oferecer experiências e possibilidades que possibilitem aos jovens desenvolver, em plenitude, todo Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio2 o seu potencial. Considerando que o ensino médio é etapa fundamental para a preparação dos indivíduos para a vida em sociedade, a aplicação de conteúdos de forma isolada ou fragmentada — que é prática comum das disciplinas clássicas — não é suficiente para alcançar esse objetivo. Sendo assim, o conceito de transversalidade precisa ser inserido com o objetivo de integralizar os conteúdos e contribuir para uma educação sistêmica. De acordo com documento complementar da BNCC, que aborda especifica- mente esse assunto, transversalidade é (BRASIL, 2019, p. 4): […] um princípio que desencadeia metodologias modificadoras da prática pedagó- gica, integrando diversos conhecimentos e ultrapassando uma concepção fragmen- tada em direção a uma visão sistêmica. Os TCTs não são de domínio exclusivo de um componente curricular, mas perpassam a todos de forma transversal e integradora. Por ser um período de transição, o ensino médio é, muitas vezes, utilizado como um meio para alcançar uma etapa posterior, deixando de lado ques- tões importantes que precisam e devem ser trabalhadas. Frequentemente, o ensino médio é tratado como uma preparação para os vestibulares, o que leva à fragmentação dos conteúdos com o intuito de facilitar o processo de acesso ao curso de ensino superior desejado na instituição desejada. Outra forma comum de aplicação de conteúdos do ensino médio é em associação a cursos técnicos profissionalizantes, em que existe grande preocupação com o desenvolvimento de atividades práticas voltadas para ocupações laborais. Essas duas concepções são importantes e precisam, de fato, estar inseridas no ensino médio, mas não podem interferir na formação global que precisa ser oferecida nessa etapa educacional (BRASIL, 2000). Desse modo, além de preparar os estudantes para atividades laborais e para a inserção em cursos de graduação, o ensino médio precisa prepará-los para a vida, o que só é possível por meio do trabalho de conteúdos voltados para o exercício da cidadania. A inserção de temas transversais na educação básica vem da percepção de que a vida em sociedade é dinâmica e complexa, de forma que seus in- tegrantes precisam desenvolver uma capacidade de adaptação contínua às novas demandas que emergem. Dessa forma, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) indicaram a necessidade da implementação de um currículo flexível e atento à realidade local/regional. Inicialmente, um grupo de seis assuntos compreendiam os temas transversais apontados pelos PCNs: ética, meio ambiente, pluralidade cultural, saúde, orientação sexual e temas locais relevantes. A seguir, você lerá um pouco mais sobre cada um desses compo- nentes, de acordo com os PCNs (BRASIL, 1997). Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio 3 Ética Na escola, o estudo da ética tem como objeto de reflexão a conduta humana perante as situações que envolvem o convívio social. Ela tem como pergunta norteadora o seguinte: “Como agir perante os outros?”. A resposta a esse questionamento vai depender da situação que é colocada diante dos agentes envolvidos. O professor de educação física pode exibir um vídeo do lance em que o futebolista Diego Maradona usa a mão para fazer um gol contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 1986, e iniciar um debate sobre a ética nos esportes de alto rendimento. Uma discussão sobre ética levará a uma valoração das atitudes e práticas das pessoas nos diferentes contextos da vida em sociedade. Nesse sentido, o trabalho da ética no ensino médio deve ser direcionado para o desenvol- vimento de uma autonomia moral (BRASIL, 1997). Pluralidade cultural A sociedade moderna é caracterizada pela miscigenação de diferentes povos, o que indica uma diversidade cultural que precisa ser respeitada e valorizada. A escola deve apresentar aos estudantes a riqueza cultural observada no Brasil, com o objetivo de superar o preconceito quanto às diferenças étnicas, religiosas e culturais (BRASIL, 1997). Um exemplo importante é a abordagem das culturas indígena e africana; a educação física pode explorar os jogos, as danças e outros elementos da cultura desses povos. Meio ambiente O meio ambiente envolve tudo que afeta o ecossistema do planeta Terra. É um conjunto de unidades ecológicas que funcionam como um sistema na- turalmente integrado, envolvendo os animais, a vegetação, o solo, o ar, entre outros componentes. É necessário que a escola contribua para a formação desujeitos conscientes a respeito de sua relação com o meio ambiente, capazes de compreender a importância do cuidado com a natureza (BRASIL, Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio4 1997). As aulas de educação física podem trabalhar com atividades ao ar livre, por exemplo, as práticas de aventura, e trazer para o debate temas como as ameaças contra flora e fauna. Saúde Saúde aqui precisa ser enxergada de forma bastante ampla, para que sejam abordados diferentes temas que podem influenciar na saúde da sociedade como um todo (BRASIL, 1997). Por exemplo, a influência da poluição urbana na saúde coletiva, a relação entre a desnutrição observada em países emergentes em contraponto à alta incidência de obesidade nos países desenvolvidos, entre outros temas de grande abrangência. Contudo, aspectos voltados para análises microambientais também podem ser trabalhados, como a adoção de um estilo de vida saudável, caracterizado por fatores como alimentação equilibrada e prática de exercícios físicos. Orientação sexual Este assunto deve ser abordado na escola com a finalidade de debater ques- tões relacionadas a sexualidade, autoconhecimento corporal, prevenção de doenças e de violências. O conteúdo é trabalhado em abordagem coletiva, com foco em aspectos psicológicos, fisiológicos, anatômicos e sociológicos, com o objetivo de orientar os jovens quanto a práticas responsáveis e seguras. Além disso, este tema auxilia de forma substancial no combate à violência, ao preconceito e ao abuso infantil (BRASIL, 1997). Temas locais Este é um espaço que deve ser dado para a valorização da sociedade local, para a análise dos costumes e tradições. Os PCNs reconhecem a importância da compreensão das condições de vida dos estudantes para que o ensino seja dirigido às suas necessidades (BRASIL, 1997). Dessa forma, cada escola precisa elencar temas que são determinantes para a sua comunidade local e direcionar sua prática pedagógica para atender as necessidades educativas dos estudantes inseridos nesse contexto, abordando questões como condições de trabalho, trânsito, produção alimentar, entre outros. A seleção dos temas que acabamos de ver ocorreu após a análise dos fatores norteadores para a construção dos ideais de cidadania e democracia, levando em consideração toda a diversidade da vida social. Na sociedade Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio 5 moderna, isso ganha importância ainda maior, uma vez que o desenvolvi- mento tecnológico impõe uma aceleração desses processos evolutivos e, consequentemente, modificações do modo de vida. Para atender ao conceito de contemporaneidade, foi necessário realizar uma análise contínua das modificações da vida em sociedade com o passar dos anos, com o objetivo de promover adequações desses conteúdos em função das alterações observadas. Dessa forma, uma atualização da BNCC, publicada em 2019, indica uma ampliação dos temas transversais, com alte- ração da denominação para temas contemporâneos transversais (TCTs), que abordam seis macroáreas: meio ambiente, economia, ciência e tecnologia, multiculturalismo, cidadania e civismo e saúde. Dentro dessas macroáreas existem subtópicos a serem trabalhados de forma sistematizada e integrali- zada no ensino médio, que você pode observar na Figura 1. Figura 1. Temas contemporâneos transversais apresentados pelo complemento da BNCC de 2019. Fonte: Adaptada de Brasil (2019). Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio6 Os temas indicados não são direcionados a disciplinas específicas, mas sim devem ser trabalhados como eixo transversal em todas as disciplinas da educação básica brasileira, propondo a integralização dos componentes do currículo. Para a devida compreensão de como esses temas podem ser pensados e aplicados na escola, alguns conceitos precisam entendidos, acompanhe: � Multidisciplinaridade: está associada à fragmentação de um mesmo conteúdo, de forma que grupos separados deverão trabalhar em partes específicas de acordo com sua especialidade. Por exemplo, o profes- sor de ciências irá abordar o sistema cardiovascular por uma ótica de funcionamento padrão das estruturas, enquanto o professor de educação física poderá trabalhar o mesmo tema observando situações de estresse, como o exercício físico. � Pluridisciplinaridade: indica o estudo de um conteúdo de uma disciplina a partir da perspectiva das outras. Por exemplo, a Guerra Fria pode ser estudada a partir da ótica da história, geografia, sociologia, etc. � Interdisciplinaridade: refere-se à transferência de métodos de uma disciplina para a outra. Ela surgiu da necessidade de oposição à frag- mentação de conteúdos oriunda da concepção positivista (FAZENDA, 1993). Um exemplo de ação pedagógica interdisciplinar é o estudo da aplicação de exercícios físicos como meio de prevenção de doenças crônico-degenerativas, conteúdo que transfere e integra os conheci- mentos a respeito dos efeitos da prática de exercícios sobre os sistemas corporais em situações de patologia. � Transversalidade: é um tratamento dado aos conteúdos de forma que esses transitem em todas as disciplinas como um eixo integralizador. A complexidade dos temas transversais faz com que nenhuma disciplina consiga explorá-los de forma suficiente e eficiente se o fizer isolada- mente. Por exemplo, para estudar o tema saúde de forma ampla, serão necessárias contribuições das disciplinas de educação física, ciências, biologia, história, entre outras (ARAÚJO, 2014). A abordagem de temas transversais, portanto, somente faz sentido se for feita por meio da apli- cação das concepções de pluridisciplinaridade e interdisciplinaridade. Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio 7 Para trabalhar com os TCTs, a BNCC indica ser importante a cons- trução de projetos entre os professores das diferentes disciplinas, com o intuito de criar estratégias para abordar de forma paralela, integrada e contextualizada determinado tema. Considere, por exemplo, uma possibili- dade de trabalho do tema “diversidade cultural” com foco na valorização do multiculturalismo. Professores das disciplinas de história, geografia, artes e educação física podem criar o projeto de estudo sobre o tema “diversidade cultural no território nacional” e iniciar pelo estudo da cultura indígena. Fica preestabelecida a abordagem inicial dos seguintes tópicos durante as aulas de cada disciplina: � História: grupamentos linguísticos e associação às tribos indígenas no sé- culo XVI. � Geografia: diferenças socioculturais entre grupos indígenas oriundos de diferentes tribos do território nacional. � Artes: reprodução de artefatos indígenas por meio de processos manuais. � Educação física: importância da dança para a reprodução da cultura indígena. Perceba que as disciplinas traçaram um plano de abordagem inicial que irá atuar de forma complementar quanto ao desenvolvimento do conteúdo e à construção do conhecimento. Os encontros das disciplinas podem acontecer em separado ou em conjunto, a depender das possibilidades da escola. Importância dos temas contemporâneos transversais no currículo do ensino médio No livro A prática educativa — como ensinar, o autor, Antoni Zabala, faz uma reflexão sobre a função social das instituições educativas e do ensino de forma geral na sociedade atual. Nessa análise, ele coloca em debate o que é feito e qual o ideal a ser alcançado. A sociedade atribuiu à escola — princi- palmente à etapa do ensino médio — o papel de preparar os estudantes para ingressarem em uma carreira profissional, o que é ainda mais valorizado se ocorrer por meio de uma universidade pública bem conceituada (ZABALA, 1998). Essa concepção agrega um valor competitivo ao meio escolar, o que, consequentemente, promove a instalação de um ambiente seletivo, em que os alunos com melhor desempenho acadêmico em disciplinas com maior peso parao sucesso nas provas de vestibulares são mais valorizados. Contudo todos os agentes envolvidos na educação escolar precisam realizar uma análise crítica com base no papel da escola como instituição formadora Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio8 em sentido global. Para isso, algumas reflexões podem ser colocadas em de- bate, como “Quais funções a escola precisa cumprir?”, “Quais são os objetivos educacionais da escola como instituição preparatória para a vida?”, “Quais os métodos e conteúdos devem ser trabalhados para alcançar o equilíbrio entre formação técnico-científica e social/moral/ética/cidadã?”. O caminho para as respostas a essas indagações certamente irá passar pelo trabalho dos conteúdos apontados pelos TCTs. Como apontado pelos documentos de base legal da educação brasileira (BRASIL, 2017; BRASIL, 1996), o ensino médio é uma etapa em que deve haver aprofundamento dos conhecimentos trabalhados no ensino fundamental, com foco voltado para o desenvolvimento integral do ser humano. Para tal, os TCTs surgem como opção para a construção de uma escola participativa, voltada para a formação social por meio da articulação das dimensões do conhecer/saber e viver/exercer (BOVO, 2004). Os TCTs representam o elo de ligação entre essas duas dimensões da escola, que, muitas vezes, caminham de forma separada. Por tratarem de questões de grande amplitude e importância para a vida em sociedade, os TCTs naturalmente englobam conhecimentos e práticas de diferentes disciplinas do currículo escolar. Além disso, o fato de tratarem de assuntos vividos no cotidiano dos estudantes e de suas famílias aproxima as dimensões conceito/prática, tor- nando palpável os conhecimentos adquiridos (BOVO, 2004). Essa aproximação e experimentação real torna o aluno capaz de intervir de fato sobre os temas estudados, adotando posturas e ações conscientes dentro da vida em sociedade. O conceito de sociedade indica relações interpessoais dentro de um contexto comunitário. Tal concepção indica um estado dinâmico. Por- tanto, os TCTs também precisam ter tal característica, passando por alterações/ renovações em função do local de aplicação dos conteúdos e das modificações induzidas pelo tempo transcorrido. Por esse motivo, em 2019, o Ministério da Educação publicou um documento complementar à BNCC, com uma atualização dos temas transversais. O que se pretende com a prática de temas transversais no ensino médio não é eliminar os conteúdos específicos das disciplinas tradicionais do currículo, mas sim que os TCTs integrem todas essas disciplinas (por exemplo, mate- Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio 9 mática, português, educação física, geografia, etc.) de forma a relacioná-las a questões da realidade da vida em sociedade. Sobre essa concepção, veja a seguinte colocação de Busquets et al. (1999, p. 13): [...] os conteúdos curriculares tradicionais formam um eixo longitudinal do sistema educacional e, em torno dessas áreas do conhecimento, devem circular, ou per- passar, transversalmente esses temas, mais vinculados ao cotidiano da sociedade. Assim, nessa concepção, se mantém as disciplinas que estamos chamando de tradicionais do currículo (como Matemática, as Ciências e a Língua), mas os seus conteúdos devem ser impregnados com os temas transversais. Essa aproximação entre o conteúdo teórico praticado pela maioria das disciplinas tradicionais e o conhecimento sobre fatos importantes para a vida em sociedade permite que o estudante desenvolva capacidades importantes para a vida em sociedade. O professor de educação física pode trabalhar o conceito de demo- cracia no momento de seleção de integrantes para uma atividade. Ao propor a divisão da turma em dois grupos, pode formar uma comissão res- ponsável por selecionar, por meio de votação, a que grupo cada estudante irá pertencer. Durante a realização dessa prática, ele pode introduzir e debater os conceitos de democracia, cidadania, importância do voto, entre outros pontos. Perceba, com este exemplo, que em um pequeno trecho da aula, que costuma ser atividade corriqueira e realizada sem qualquer tipo de fundamentação, o professor pode introduzir um tema importante para a sociedade, contribuindo para a compreensão dos alunos sobre práticas democráticas e estimulando o interesse pelo assunto. É muito importante que o professor e a escola como um todo enxergue os estudantes como indivíduos que trazem consigo uma bagagem construída pela vida em família e em sociedade. Sendo assim, todas as suas interações com o meio em que estão inseridos levaram a aquisições de conhecimentos que precisam ser reconhecidos e adotados como ponto de partida para o desenvolvimento do trabalho pedagógico (SOARES et al., 1992). Somente assim o sistema educacional conseguirá elencar os TCTs mais relevantes a serem trabalhados com aquele grupo de estudantes. Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio10 Imagine que um professor de educação física resolva trabalhar o conteúdo “esportes radicais de aventura” com foco em esportes marítimos, como o surfe e o wakeboard, durante todo o primeiro bimestre. No entanto, a escola se situa em Jataí, no interior de Goiás, que está a uma grande distância da praia e, consequentemente, a maioria dos estudantes não tem acesso a essas modalidades. Em algum momento, o professor pode trabalhar esse conteúdo de forma adaptada, no entanto, por representar algo fora da realidade da comunidade local, o ideal é que ele não despenda tanto tempo nesse conteúdo. Perceba, assim, a necessidade da seleção de conteúdos que levem em consideração o contexto de vida dos estudantes e da sociedade. Ao reconhecer essa dinâmica, o professor pode propor uma ação docente que abra espaço para a intervenção dos estudantes quanto as suas descober- tas, dúvidas, questionamentos. Com isso, permite a criação de um raciocínio próprio e autônomo, caracterizado pela integração entre suas experiências prévias e o conhecimento técnico-científico acessado no ambiente escolar (BOVO, 2004). Você pode ter percebido que todo o conteúdo sobre a aplicação de TCTs no ensino médio até aqui apresentado aponta para a vinculação entre o conhecimento cotidiano com o científico (BOVO, 2004). Nesse ponto está a principal intencionalidade na prática da transversalidade no ambiente escolar. Ao acessarem esse tipo de planejamento educacional, os estudantes certa- mente terão contato com uma maior riqueza de conteúdos, que contribuirá para sua formação integral. Além disso, a proximidade entre temas importantes da sociedade com o conhecimento científico praticado na escola permitirá que esses sujeitos intervenham em sua realidade por meio de práticas conscientes e pautadas no princípio da cidadania. Teorias pedagógicas de sustentação para a aplicação dos temas contemporâneos transversais A educação brasileira passou por grande reformulação após o término da ditadura militar, momento em que foi instalado um pensamento libertário, identificando a educação como responsável por trabalhar uma diversidade de conteúdos e assuntos antes ignorados. Tal concepção progressista foi iniciada pela publicação de documentos de base legal, como a Constituição Federal Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio 11 de 1988 e outros documentos especificamente voltados para a temática da educação, como a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional e os Parâ- metros Curriculares Nacionais. Esse movimento emergiu com a colaboração de educadores e pesquisadores da área escolar, que publicaram importantes obras, que servem como ferramenta de direcionamento da prática docente com o objetivo de valorização da diversidade cultural do Brasil. A divisão dos conteúdos em disciplinas com alto grau de especificidade tem origem no modelo cartesiano proposto pelo filósofo francês René Descartes. Descartes propôs a divisãodo todo em pequenas partes que pudessem ser analisadas mais facilmente, acreditando que, entendendo-se as partes, haveria a compreensão do todo (ARAÚJO, 2014). A partir dessa concepção, nasceu a divisão dos elementos da natureza e dos fenômenos relacionados aos seres humanos, o que levou à formação de especialistas cada vez mais interessados e capacitados na intervenção sobre pequenas partes. Novamente, o que se pretende aqui não é abolir a prática especializada, uma vez que avanços técnico-científicos foram obtidos a partir dessa con- figuração de aplicação do conhecimento. Contudo, trabalhos de caráter progressista apontam que tal grau de compartimentalização promove uma simplificação/redução dos fenômenos, o que pode induzir a um estado de “cegueira” quanto à realidade global (MORIN, 2000). A redução e separação dos conteúdos no ambiente escolar, que é o local de formação dos estudantes, pode impor uma limitação no processo formativo. O ensino tradicional/compartimentalizado promove uma clara separação entre o tempo voltado para o desenvolvimento cognitivo, incitado durante as aulas teóricas das diversas disciplinas dentro de sala, e o desenvolvimento físico, estimulado nos momentos destinados à movimentação corporal, prin- cipalmente nas aulas de educação física (ARAÚJO, 2014). Essa percepção leva a uma redução tanto dos conteúdos das disciplinas tradicionalmente ministradas dentro de sala de aula quanto daqueles presentes na aula de educação física, impondo uma limitação no acesso dos estudantes a uma série de possibilidades educacionais que promoveriam o desenvolvimento integral, ou seja, cognitivo, corporal, afetivo, social, etc. O desenvolvimento de temas contemporâneos transversais como eixo integrante de todas as disciplinas regulares tem como fundamento a ideia de que o contexto social é um dos fatores de maior influência sobre a for- mação dos estudantes. Contudo, a aplicação prática dessa teoria necessita de planejamento dos professores das diferentes disciplinas escolares para o desenvolvimento de projetos em conjunto, com temas que possam sofrer Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio12 conexões que permitam aos estudantes uma compreensão global do fenômeno estudado. Nesse sentido, veja o que diz Morin (2000, p. 35): O conhecimento do mundo como mundo é necessidade ao mesmo tempo intelectual e vital. É o problema universal de todo cidadão do novo milênio: como ter acesso às informações sobre o mundo e como ter a possibilidade de articulá-las e organizá- -las? Como perceber e conceber o Contexto, o Global (a relação todo/partes), o Multidimensional, o Complexo? Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é necessária a reforma do pensamento. Entretanto, esta reforma é paradigmática e, não, programática: é a questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento. (Grifo nosso.) O mesmo autor justifica o uso dos temas transversais apontando que passa por eles a educação do futuro, uma vez que julga inadequado a fragmentação imposta pelo positivismo, que gera como produto saberes divididos, com- partimentalizados. A concepção positivista é enxergada como um problema, pois as situações da vida em sociedade, em geral, envolvem necessidades multi, inter e transdisciplinares, ou seja, é necessária uma capacidade de intervenção global (MORIN, 2000). Alguns fatores necessariamente precisam ser considerados na ação pe- dagógica. O primeiro é o contexto, uma vez que as informações trabalhadas somente terão sentido se inseridas em um dado contexto. Morin (2000) aponta ainda que o conhecimento precisa ter uma dimensão global, caracterizada pelo conjunto de todas as partes envolvidas no objeto de estudo. Os dois últimos pontos levantados são o multidimensional e o complexo. O multidimensional explica que tudo na sociedade apresenta mais de uma face, mais de uma dimensão; por exemplo, o ser humano é composto pelas dimensões biológica, psíquica, social, etc. Já o complexo sinaliza que os ele- mentos que compõem as diferentes dimensões são inseparáveis e somente assim poderão formar o todo, portanto essa união entre as unidades gera um todo multidimensional e complexo (MORIN, 2000). Em obra recente, Araújo (2014) indica que o desenvolvimento tecnoló- gico e científico acelerado no século XX escancarou a percepção de que a disciplinarização tradicionalmente aplicada até então não conseguia mais explicar os fenômenos complexos e multidimensionais que se apresentavam. Tal situação tornou necessária a colaboração de especialistas de diferentes áreas para compor um conjunto de conhecimentos imprescindíveis para a resolução dos problemas, o que caracteriza o trabalho multidisciplinar. Ao perceber essa necessidade, os pesquisadores da área da educação inicia- ram esse movimento de rompimento com o ensino positivista. Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio 13 O rompimento com práticas amplamente estabelecidas não acontece de forma instantânea: é necessário um trabalho de preparação, ade- quação e adaptação às novas metodologias. Conforme Esteve (2004), as revoluções silenciosas são aquelas que melhor resistem às provas do tempo, sendo improvável o apontamento do momento preciso da modificação de mentalidade. Dessa forma, há algumas décadas a educação brasileira vem lutando para oferecer um ensino voltado para o todo, objetivando formar integralmente os estudantes. Um dos conceitos mais utilizados na educação moderna é o da formação integral dos estudantes. Para atingi-la o único caminho é a observação do contexto e o direcionamento do processo educativo para que atenda efetiva- mente às necessidades e interesses da sociedade. Segundo Araújo (2014), não basta a aplicação de propostas multi, pluri e interdisciplinares sem que exista um esforço real para que os conteúdos sejam integralizados e trabalhados transversalmente (em conjunto/conectados) em todas as disciplinas em que tenham relação. Araújo (2014, p. 463) apresenta uma explicação bastante didática sobre a transversalidade, acompanhe: [...] o transversal dá uma ideia de “atravessamento” do que é longitudinal, como se ambos fossem duas retas que se cruzam. Se isso é uma verdade, ao mesmo tempo deve-se compreender que as temáticas transversais não são novos campos disci- plinares, e sim áreas de conhecimento que “atravessam” os campos disciplinares. Outro componente fundamental é que os temas transversais precisam responder a problemas reais da sociedade. Então, como conectar conteúdos para propor soluções contra conflitos sociais, contra a desigualdade, contra o desmatamento, etc. Araújo (2014) deixa evidente que a transversalidade precisa expor uma preocupação baseada no contexto e voltada para a necessidade da maior parcela da população. No artigo “Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade como fun- damentos na ação pedagógica: aproximações teórico-conceituais”, os autores Sousa e Pinho (2017) discutem, do ponto de vista teórico, o uso da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade como ferramentas pedagógicas para o tratamento de temas contemporâneos transversais. Se quiser ler o artigo, pesquise pelo título dele em seu mecanismo de busca — ele está disponível gratuitamente na internet. Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio14 Importantes obras específicas da área de educação física também trou- xeram contribuições para o campo de estudo da transversalidade, seja por meio da introdução de conceitos, seja reforçando ideias progressistas da educação. Em 1992, um coletivo de autores lançou o livro Metodologia do ensino da educação física, que debate a prática pedagógica da educação física escolar após o movimento renovador, sendo um dos pontos de destaque o fortalecimento da ideia de currículo ampliado. O termo currículo indica o caminho percorridopelos estudantes na apreen- são dos saberes educacionais, e o planejamento curricular reflete o projeto de educação praticado pela escola. Os autores (SOARES et al., 1992) apontam que o currículo é ferramenta fundamental na seleção e organização dos conteúdos para posterior aplicação voltada para pensar e modificar a realidade social. Para tal, é determinante o conflito do conhecimento científico com aquele que os estudantes trazem do seu cotidiano. A concepção de currículo com foco voltado para a transversalidade precisa propor uma reflexão pedagógica ampliada e comprometida com as camadas populares da sociedade, com a presença de investigação, constatação, inter- pretação e compreensão da interação dos complexos fatores que compõem o quadro observado. Para isso, o coletivo de autores questiona a aplicação isolada das disciplinas e aponta que o caminho da educação integralizadora é indicar a função social de cada uma delas no currículo para ampliar seu foco de atuação e promover a conexão das partes que compõem o todo. Veja mais sobre isso (SOARES et al., 1992, p. 17): A visão de totalidade do aluno se constrói à medida que ele faz uma síntese, no seu pensamento, da contribuição das diferentes ciências para a explicação da realidade. Por esse motivo, nessa perspectiva curricular, nenhuma disciplina se legitima no currículo de forma isolada. É o tratamento articulado do conhecimento sistematizado nas diferentes áreas que permite ao aluno constatar, interpretar, compreender e explicar a realidade social complexa, formulando uma síntese no seu pensamento à medida que vai se apropriando do conhecimento científico universal sistematizado pelas diferentes ciências ou áreas do conhecimento. Nesta seção você leu sobre algumas obras importantes na área da educação progressista. Todas elas têm em comum o apontamento para a necessidade latente do direcionamento da prática pedagógica escolar para uma educação globalizada e preocupada com a formação integral dos estudantes. Esses autores, além de outros, apresentam conteúdos que, junto com os documentos de ordem legal, funcionam como uma base de sustentação para a aplicação dos temas contemporâneos transversais. É importante que profissionais da área da educação compreendam as principais ideias de cada um deles Temas contemporâneos transversais da educação física no ensino médio 15 e saibam aplicá-las de forma consciente e adequada ao contexto social da escola e da comunidade local. Referências ARAÚJO, U. F. Temas transversais, pedagogia de projetos e mudanças na educação: Prá- ticas e reflexões (novas arquiteturas pedagógicas). São Paulo: Summus Editorial, 2014. BOVO, M. C. Interdisciplinaridade e transversalidade como dimensões da ação pedagó- gica. Revista Urutágua: Revista Acadêmica Multidisciplinar, Maringá, v. 7, p. 1-12, 2004. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF, ano 134, n. 248, seção 1, p. 27833-27841, 23 dez. 1996. Disponível em: https://pesquisa. in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=23/12/1996&jornal=1&paginp=9&tot alArquivos=289. Acesso em: 15 jan. 2021. BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. 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