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ESTUDOS DE LITERATURA - ANÁLISE DA NARRATIVA EM SUAS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES Mariana Terra Teixeira Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever a narratologia e seus pressupostos fundamentais. Explicar como a narratologia interpreta as narrativas a partir de sua estrutura e de suas operações. Comparar estratégias narratológicas de interpretação de narrativas literárias e cinematográficas. Introdução A narratologia é a teoria da narrativa, que busca sistematizar conceitos e estratégias de abordagem para análises dos textos narrativos. Os textos narrativos são como relatos, histórias contadas para o leitor ou espectador que as recebe. A estrutura das narrativas pode ser explorada de diferentes maneiras, demonstrando como as narrativas são diferentes entre si. A narratologia busca trabalhar sobre o que é comum às diferentes narrativas e também sobre as particularidades dos diferentes tipos de narrativa, como na análise de uma narrativa cinematográfica, por exemplo. Neste capítulo, você vai estudar os elementos que compõem a história da narrativa, bem como as operações do discurso utilizadas na interação entre quem narra a história e quem a recebe, seja como leitor, espectador ou ouvinte. 1 A narratologia e seus pressupostos fundamentais A narratologia, tal como defi nida por Mieke Bal (1977, p. 4), teórica cultural holandesa, é “[...] a ciência que procura formular a teoria dos textos narrativos na sua narratividade”. Assim, a narratologia, ou teoria da narrativa, é a área de estudo que busca explicar o funcionamento dos textos narrativos. Mas o que são textos narrativos? Para chegarmos a essa resposta, podemos primeiro pensar nas narrativas existentes no mundo, que são inúmeras. O mito, a lenda, a fábula, o romance, o conto, a novela, as histórias em quadrinhos, os fi lmes cinematográfi cos são todos exemplos de textos narrativos. O conceito de texto aqui é entendido como discurso, um exemplo empiricamente atestado de linguagem, conforme a defi nição do linguista Émile Benveniste (1995): o discurso é expressão da língua como instrumento de comunicação. Então, o que todos esses textos têm em comum que os torna textos narrativos? A sua narratividade e a sua forma de veiculação da informação, da história, entre quem conta a história e quem a lê, ouve ou vê. Todos esses textos narrativos citados fazem parte da tipologia textual narrativa, que tem características discursivas bem marcantes. Nas narra- tivas, necessariamente transmite-se uma mensagem, que está inserida em um tempo específico, elaborada de modo que o receptor consiga entendê-la. Essa mensagem possui um estado inicial e progride até o desfecho, ainda que nem todas as narrativas comecem de forma cronológica pelo primeiro acontecimento. Algumas narrativas são feitas in media res, isto é, começam pelo meio da história, por um acontecimento importante, como a morte de alguém, e o narrador volta ao início de tudo, quando o personagem ainda não havia morrido, para contar como a história se desenrolou. A mensagem do texto narrativo é emitida pelo narrador, que conta a his- tória, e captada pelo receptor do texto, o narratário, mas só é compreendida e interpretada pelo leitor real, a pessoa que faz a interpretação dessa mensagem olhando o todo: o que foi enunciado e como foi enunciado. A narratologia, então, é a teoria que busca sistematizar as técnicas, os métodos e os modos de transmissão e recepção dos textos narrativos, e busca explicar teoricamente as maneiras como nós, receptores, entendemos narrativas literárias e não literárias. Segundo Reis e Lopes (1988), a narratologia não se limita à análise de textos narrativos literários, pois estuda a narrativa de um modo geral, englobando a análise de textos narrativos não literários, ainda que os textos literários tenham sido privilegiados ao longo da construção da teoria da narrativa. Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema2 A teoria literária há um bom tempo vem tentando distinguir o que torna um texto literário e o que torna outros textos não literários. Uma proposta até hoje discutida foi formulada por um grupo de estudiosos conhecidos como formalistas russos. Um desses teóricos foi o linguista russo-americano Roman Jakobson (1921), o qual argumentava que existiria algo nesses textos, como sua linguagem, que os faria serem vistos como literatura, como arte, diferentemente de outros tipos de discursos. Para Jakobson, os textos literários são textos, ou discursos, que têm a literariedade como característica, como, a narrativa literária. Normalmente, são estudados em sua forma escrita (apesar da literatura também poder ser desenvolvida oralmente) e têm uma estética definida. Assim, a literariedade, para esse teórico, distingue textos não literários comuns de textos pertencentes à literatura. A literatura, além disso, partiria da realidade para criar outros mundos, que podem ser fictícios ou fantásticos, utilizando-se dessa linguagem literária para gerar outras formas de ver a experiência humana. Além da ficcionalidade, outra característica primordial da linguagem literária é estética, preocupada com efeitos de sentido. Ela é selecionada pelo autor, que pode utilizar metáforas e outras figuras de linguagem, e pode ter como um de seus objetivos a fruição do texto pelo leitor. Apesar de poderem ser de ficção e sobre mundos alternativos, inventados, as obras literárias precisam ter verossimilhança. Não necessariamente o que está sendo contado, declamado ou lido necessita existir no mundo real, mas a história inventada requer verossimilhança, isto é, lógica interna: o que ocorre no interior da história deve fazer sentido naquele mundo interno ao texto. Em resumo, a narrativa literária é um tipo de texto específico que faz parte do conjunto de textos literários. Aqui, o termo texto é entendido como discurso, segundo Bakhtin (1992, p. 279): “[...] tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos nas diferentes esferas da atividade humana”. Assim, um texto, seja literário ou não, é entendido como uma maneira pela qual a linguagem pode ser posta em prática nas relações humanas. Ambos tipos de textos, literários e não literários, podem ser escritos ou não. Um poema declamado, por exemplo, é um texto literário oral. Apesar do termo literariedade ser uma hipótese válida para distinguir a literatura de outras formas de discurso, é possível argumentar que ela varia de época para época e de leitor para leitor. Assim, o que é considerado linguagem literária varia e, por isso, surgem disputas relativas à classificação de certos textos como literatura. Não há uma regra única que determine se um texto é ou 3Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema não literário, porque essa decisão depende da sua recepção (pelo público, pela crítica, em manuais, etc.). Seja como for, o Quadro 1 nos ajuda a visualizar e a entender possíveis diferenças entre textos literários e textos não literários. Textos O que são? Exemplos Autor referência Não literários Tipos estáveis de enunciados, discursos utilizados na interação humana. São textos recorrentes no dia a dia da vida humana. Não possuem litera- riedade. Falados ou escritos. Bilhetes, diálogos familiares, cartas de amigos, teses cientí- ficas, palestras. Definição baseada em conceitos de Bakhtin (1992). Literários Discursos da litera- tura. Textos literários. Textos com linguagem literária. Esteticamente pensados para impac- tar artisticamente o re- ceptor/leitor. Possuem literariedade. Falados ou escritos. Narrativas literárias (contos, romances, fábulas, mitos); poesia; peças de teatro. Definição baseada em conceitos de Jakobson (1921). Quadro 1. Diferenças entre textos literários e textos não literários Pressupostos fundamentais— as narrativas e a narratividade A narratologia nasceu da relação com duas outras abordagens teóricas e metodológicas: o estruturalismo e a semiótica. Embora seja uma área de estudo da literatura, teve seu ponto de início gerado devido à necessidade de contraponto à linguística estruturalista. Roland Barthes, em 1966, em seu artigo publicado no número 8 da revista Communications, número que inaugurou as discussões sobre a teoria da narrativa, aponta a necessidade de reconhecimento de níveis de análise da linguagem acima da frase, o nível do discurso, como uma unidade que demanda estudo sistemático. Segundo a crítica de Barthes, a linguística estruturalista se concentrava na explicação de Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema4 objetos linguísticos menores, como fonemas e morfemas, e não avançava do nível da frase. Assim, desse confronto e desejo de expansão surgiu a análise da narrativa, da narrativa como discurso, texto complexo, com características particulares. Em 1969, Tzvetan Todorov, ao publicar seu livro Grammaire du Décameron, utiliza pela primeira vez o termo “narratologia” quando afi rma que sua obra literária é uma narrativa e sua análise faz parte de uma ciência chamada narratologia. Vinda, portanto, da linguística estruturalista, corrente teórica vigente na época, a narratologia analisa a estrutura subjacente aos textos narrativos e traz conceitos comuns a todas as narrativas, conforme veremos mais adiante neste capítulo. Ates disso, examinemos os pressupostos fundamentais de um texto narrativo segundo a narratologia. O termo narrativa tem concepções diversas, mas duas em especial são sempre confrontadas na teoria da narrativa. A primeira concepção é da narrativa como um processo de enunciação, como o ato de relatar algo, e a segunda concepção é da narrativa como resultado dessa enunciação, como produto do que foi narrado (REIS; LOPES, 1988). A primeira concepção é mais utilizada pela narratologia e tem consequências para a análise dos diferentes tipos de estrutura e operações que podem emergir nas narrativas. Assim, a narrativa é entendida como algo que não é estático, como uma “[...] prática interativa (relação narrador/narratário), uma comunicação narrativa” (REIS; LOPES, 1988, p. 66). Essa primeira concepção abre espaço para a consideração de Reis e Lopes (1988) sobre a narrativa não ser imune a ati- tudes de valoração, como ideologias e comportamentos éticos, que surgem principalmente da subjetividade do narrador, evidenciado, segundo os autores, “[...] o caráter pluridiscursivo da enunciação narrativa” (REIS; LOPES, 1988, p. 60). Por outro lado, a segunda definição também é utilizada para se analisar os textos narrativos, que são histórias com tempo e espaço definidos, nas quais eventos e ações de personagens acontecem. Essa história, então, chega ao leitor por meio de um código, uma linguagem específica. Desse modo, tanto a relação comunicativa entre quem conta a história e quem a lê/ouve/vê (conforme a primeira definição) quanto o próprio produto dessa comunicação, o texto em si (conforme a segunda definição), são objetos de análise da narratologia. Antes de descrevermos as estruturas e operações formuladas pela nar- ratologia para analisar os diferentes tipos de narrativas existentes, vamos contrapor o significado de texto narrativo a seus pares, para entendê-lo melhor. A narração, a descrição e a dissertação são três tipos de textos diferentes. A narração, que estudamos aqui, é o ato de contar uma história 5Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema para alguém; a descrição é o ato de caracterizar/descrever um ambiente ou um personagem; já a dissertação é o ato de argumentar. Na dissertação predomina o argumento do escritor, a fim de provocar o leitor e o seu posicionamento. Se levamos em conta o texto narrativo literário, em particular, podemos contrapô-lo ao texto lírico e ao texto dramático. O exemplo clássico de texto lírico é o poema, texto essencialmente subjetivo, que traz marcas do sentimento e do lirismo do sujeito. O exemplo clássico do texto dramático é o teatro, o drama, que é escrito para ser representado e encenado, e pressupõe o uso de outras linguagens, como a linguagem gestual. Por sua vez, um exemplo clássico de texto narrativo literário é o romance, um texto escrito que conta uma história mediante uma sequência de acontecimentos e ações dos personagens, podendo essa história ser baseada na realidade (extratextual) ou ficcional. Ao contrário do que acontece com o texto lírico e com o texto dramático, a narrativa não se concretiza apenas no plano dos textos literários. A narrativa se encontra em diversas situações funcionais e contextos comunicativos — como em relatórios, em piadas e anedotas contadas —, na historiografia, na história contada da humanidade e também, muitas vezes, aparece na mídia. Da mesma maneira que os contextos comunicacionais das narrativas são diversos, ultrapassando o texto narrativo literário, os suportes também são variados. As narrativas acontecem também em suportes multimodais, como histórias em quadrinhos, por exemplo, que misturam imagem e linguagem verbal, e o cinema, que também é uma modalidade mista verbo-icônica (linguagem verbal, imagem, sequência de cenas, vídeo e áudio). As narrativas apresentam contextos interativos e sociais diversos — im- prensa, literatura, relatório —, e também acontecem em suportes diferentes — verbal, imagético, sequência de cenas (filme) —, como vimos. Mas o que todas essas narrativas têm em comum, então, que as torna narrativas? A narratividade, ou seja, a qualidade nuclear do texto narrativo. É por meio dela que nós, leitores/receptores, entendemos a história que nos é contada. A narratividade é definida teoricamente como “[...] o fenômeno de sucessão de estados e de transformações, inscrito no discurso, que é responsável pela produção de sentido” (GROUPE D'ENTREVERNES, 1979, p. 14). Isto é, a narratividade é a qualidade do texto narrativo de contar uma sequência de eventos, de fatos, narrados na construção de uma história. Assim, a narrati- vidade é o que possibilita a decodificação da narrativa pelo receptor, aquele que ouve, lê ou vê a narrativa. Na teoria semiótica, o conceito de narratividade foi ampliado e dá papel central ao receptor da história, que, no processo de leitura, atualiza e identifica Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema6 os acontecimentos, o desenrolar da narrativa (REIS; LOPES, 1988). Uma vez que a narrativa representa uma reconstrução do universo, de histórias reais e ficcionais possíveis, a narratividade deve ser entendida como uma característica própria do discurso narrativo, que é o reconstrutor desse universo contado, e deve ser atualizado no processo de leitura pelo leitor/receptor da narrativa. Desse modo, a narratividade existe para possibilitar ao receptor o acesso às ações de dimensão temporal e sequencial dos textos narrativos. Além de ter acesso à narrativa pela narratividade, outras características constituem um texto como narrativa. As diferentes estruturas dos textos narrativos e operações utilizadas na criação das narrativas levam a textos narrativos diferentes entre si, como o romance e o cinema, por exemplo. A seguir, veremos algumas das estruturas e das operações utilizadas pela narratologia para explicar os diferentes tipos de textos narrativos existentes. Diferentes textos têm diferentes tipologias textuais. Tipologias textuais são, segundo Marcuschi (2002), sequências previamente definidas pela natureza linguística predomi- nante na composição de um texto. Cada tipo textual tem aspectos lexicais, sintáticos e tempos verbais mais recorrentes. Os principais tipos textuais são: o injuntivo, o narrativo, o descritivo e o dissertativo-argumentativo, entre outros. Aqui, focamos nos aspectos constitutivos do texto narrativo, pois a narratologia é a ciênciaque estuda os textos narrativos. No entanto, você pode conhecer os demais tipos de texto e suas funções lendo os seguintes artigos: “A caracterização de categorias de texto: tipos, gêneros e espécies” de Luiz Carlos Travaglia e “Produzindo textos: gêneros ou tipos?” de Maria Marta Furlanetto. 2 Estruturas e operações da narratologia O texto narrativo e as operações que utilizamos em uma narrativa evidenciam como ela “[...] não é uma simples soma de proposições” (BARTHES, 2011, p. 25). Assim, devemos classifi car os elementos que entram na composição da narrativa. Compreender uma narrativa, segundo a análise da narratologia, não é somente seguir os fatos da história até seu esvaziamento e sua conclusão, passando de uma palavra para outra. É preciso, na verdade, analisar a estrutura da narrativa para poder compreendê-la completamente. 7Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema A estrutura diz respeito à organização específica do texto narrativo e dos elementos funcionais necessários à narrativa. Há um consenso entre teorias da narrativa de cunho estruturalista e teorias da narrativa de cunho semiótico quanto à existência de dois subdomínios que devem ser levados em conta quando se analisa a estrutura de uma narrativa: o plano da história e o plano do discurso. A narratologia de cunho estruturalista atribui certa prioridade ao plano da história, ao passo que a narratologia de cunho semiótico enfatiza o plano do discurso. No domínio da história, temos a estrutura da narrativa em relação aos seus elementos básicos: os personagens, o espaço da narrativa — o cenário, onde a história acontece —, o tempo da narrativa — cronológico, sequencial aos acontecimentos da narrativa —, e as ações dos personagens e eventos que dão andamento à história. Esses componentes são interrelacionados, havendo uma conexão entre personagens e o espaço onde a história acontece. Às vezes, essa conexão é mais decisiva em certa narrativa, às vezes não, às vezes o espaço é somente o cenário, o local, onde as ações acontecem. Assim, no plano da história, analisa-se esses elementos e suas relações. A ação é um elemento da narrativa do plano da história, representando um componente fundamental da estrutura narrativa. É dela que vem a composição da história, pois é um processo de desenvolvimento de vários eventos que conduzem a um desenlace, ao desfecho da história da narrativa. Segundo Reis e Lopes (1988), a ação acontece mediante a interação de pelo menos três componentes: “[...] um (ou mais) sujeito(s) diversamente empenhado(s) na ação, um tempo determinado em que ela se desenrola e as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros estados” (REIS; LOPES, 1988, p. 190). A ação é o que confere consistência ao relato, ao texto narrativo, e a forma como ela se manifesta no texto tem consequências para a sua análise. No conto, por exemplo, em princípio, há uma ação singular e concentrada; já no romance é possível observar o desenrolar paralelo de várias ações (REIS; LOPES, 1988). Os autores ainda trazem como exemplo mais específico o romance policial, no qual as ações da história narrada são representadas minuciosamente, em detalhes, e geralmente em ordem cronológica, sequencial. O espaço também é um elemento específico da história. O espaço são os componentes, primeiramente físicos, que servem de cenário para o aconte- cimento das ações dos personagens — o cenário geográfico, o interior dos lugares, residências, internatos, hospitais e demais lugares passíveis de serem relatados em uma narrativa. Em um sentido mais amplo, o espaço pode ser entendido também como atmosferas sociais e psicológicas, a saber, espaço social e espaço psicológico. Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema8 No período literário do romantismo brasileiro do século XIX, o espaço teve uma impor- tante participação para a constituição de um subgênero narrativo, o romance urbano, muito lido no Brasil no segundo reinado de D. Pedro II, iniciado em 1840. Nessa época, os romances eram lidos em folhetins, isto é, saíam no jornal. Exemplo de romances urbanos brasileiros adorados pelo público são Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e Senhora, de José de Alencar. Os romances urbanos, então, tinham como cenário a cidade, relatando romances e aventuras ocorridas geralmente na capital do império, o Rio de Janeiro. O personagem é um componente essencial da narrativa. Não é raro que esse componente seja o eixo em torno do qual gira a ação da narrativa e em função do qual se organiza a história. O personagem é construído progressi- vamente pela narrativa, e ao longo da história conhecemos os personagens. Em diversos tipos de narrativas, como em histórias em quadrinhos em que aparece um herói, o eixo narrativo gira em torno do personagem protagonista. Neste exemplo, a história acontece por meio dos desafios e das aventuras do personagem principal, o herói. Existem ainda dois tipos de composição de personagem: o personagem plana e o personagem redondo. O personagem plano é aquele mais raso cons- titutivamente, construído em torno de uma única ideia ou qualidade. Assim, é um personagem genérico, facilmente reconhecido. Normalmente podemos identificar o comportamento e as características desse tipo de personagem com a sua representatividade social. A personagem Luísa do romance O primo Basílio, de Eça de Queirós, é uma personagem plana, descrita pelo próprio autor como “uma burguesinha”. Dessa forma, também vemos que um personagem principal pode ser um personagem plano, pois esses são tipos diferentes de caracterização. Por sua vez, o personagem redondo é bem mais elaborado e complexo. Muitas vezes, as ações de um personagem redondo são imprevisíveis, pois ele pode surpreender o leitor por suas reações, por revelar seus traumas, por trazer fatos novos à história em decorrência da sua complexa estrutura. O autor russo Leon Tolstói ficou conhecido pelos personagens redondos que criava, como os personagens principais do romance histórico Guerra e Paz. O tempo é o último aspecto principal do plano da história das narrativas. Em uma primeira definição, o tempo é aquele contado no relógio, aquela sucessão cronológica de eventos que acontecem na narrativa e que são datados com maior ou menor rigor. Há também o tempo psicológico, que não é o tempo 9Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema cronológico dos eventos. O tempo psicológico é aquele filtrado pelas emoções, sentimentos e vivências do personagem. Sendo assim, é um tempo menos rígido, em que certos acontecimentos podem durar bastante, serem alongados, a depender da importância que o personagem lhes confere. Um exemplo de narrativa que utiliza o tempo psicológico é o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual o narrador-personagem lembra de episódios que aconteceram em sua vida, dando-lhe mais ou menos importância de acordo com a sua percepção e a sua experiência. Plano do discurso — perspectiva narrativa e voz No nível do discurso, temos diferentes estratégias discursivas utilizadas para relatar a história em um texto narrativo. Uma narração, o discurso narrado, é entendido como o processo de enunciação. Segundo a narratologia, deve-se levar em conta na análise de cada texto narrativo a perspectiva narrativa e a voz, estratégias discursivas importantes para a confi guração do texto narrativo. A perspectiva narrativa é utilizada para se referir ao conjunto de proce- dimentos de focalização que podem ser utilizados em um texto narrativo. A focalização estrutura o discurso narrativo, e é ela que determina a quantidade e qualidade da informação veiculada para o leitor. Em outras palavras, a foca- lização é o tipo de narrador da história, pois é a partir dele que o leitor conhece o enredo da narrativa. Assim, a quantidade e a qualidade de informações que o leitor tem da históriadepende de quem a narra. As informações podem ser ilimitadas, no caso da focalização onisciente. Nessa focalização, temos o narrador onisciente, que sabe todo o enredo e tudo que acontece na trama da história, e nos conta em terceira pessoa, de maneira impessoal. Esse narrador não participa dos acontecimentos da trama. As informações, por outro lado, podem ser limitadas ou condicionadas se a focalização utilizada na narrativa for a focalização interna. Nesse segundo tipo de focalização, temos o narrador-protagonista, que conta a história sob o seu ponto de vista. Dessa forma, vamos conhecendo os acontecimentos da história somente através do olhar do narrador-personagem, que utiliza os verbos em primeira pessoa para contá-la. Ele é ao mesmo tempo narrador e protagonista da narrativa, como seu nome sugere; portanto, também participa dos acontecimentos e exerce ações na narrativa, privilegiando, de certa forma, o seu ponto de vista sobre os fatos. Há ainda um tipo de focalização que fica entre os dois já citados: a foca- lização externa, em parte limitada e em parte abrange os fatos de maneira aparentemente impessoal. O narrador-testemunha é o narrador que representa Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema10 a focalização externa. Ele também é um personagem da história, mas não o protagonista. Assim, participa dos acontecimentos da narrativa, mas de maneira secundária. Dessa forma, o narrador-testemunha conta a história do seu ponto de vista, mas procurando ter uma certa objetividade em seu relato, visto que seu papel não é central nos acontecimentos, procurando muitas vezes ter um olhar mais imparcial, apesar dos fatos ainda serem relatados sob o seu ponto de vista, na sua versão da história. Segundo Reis e Lopes (1988), é importante relacionar, já que se trata de discurso, a perspectiva narrativa com os sentidos ideológicos que regem a narrativa. Assim, pelo foco que é dado à história e como ela é contada, transpassam ideologias. O narrador contará a história de sua perspectiva, imbuído de sua ideologia e suas crenças. A perspectiva narrativa pode ter ainda relação com elementos da história da narrativa. O narrador vai descrever os personagens, o espaço onde acontece a história, o tempo em que ela acontece. Um narrador-personagem, por exemplo, pode usar o tempo psicológico e não contar os fatos em ordem cronológica. O segundo elemento do domínio do discurso do texto narrativo é a voz dos personagens dentro da narrativa. Os personagens interagem na história e o registro dessas falas é feito pelo narrador. No texto narrativo, a voz dos personagens é veiculada via três tipos de discurso: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre. O discurso direto engloba os diálogos entre personagens e é normalmente introduzido por dois pontos, travessões ou aspas, para que o leitor identifique que é o personagem que está falando, não o narrador. As marcas discursivas do discurso direto são da enunciação pessoal e experiencial, como verbos em primeira pessoa e expressões dêiticas como “eu” e “aqui”, que se referem ao próprio personagem que está com a palavra. Nesse discurso, temos a localização temporal dos fatos e acontecimentos em relação à visão do personagem. O discurso indireto é aquele no qual o narrador transmite ao leitor a fala do personagem. Nele, não temos contato com a fala do personagem exatamente como o personagem teria dito. O nome desse tipo de discurso já evidencia que ele é transmitido ao leitor indiretamente, pois o narrador é o intermediário da mensagem. Assim, como leitores, somente lemos a voz do narrador, que passa a nós a mensagem da fala do personagem. Nas narrativas, podemos ver falas indiretas dos personagens quando o narrador utiliza verbos de introdução de discurso indireto, como “Capitu falou que...”, “Quincas Borba contestou o que foi decidido por...”. O discurso indireto livre é uma mistura do discurso direto e do indireto, ou seja, um meio-termo entre a fala literal do personagem, ou seu pensamento, e a voz do narrador. Normalmente, são reconhecíveis por 11Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema conterem expressões típicas dos personagens ou seus pensamentos, mediados pelo narrador. Quando lemos alguma expressão como “droga!” no meio do texto (misturada ao discurso que parece ser do narrador), pode ser uma fala do personagem em discurso indireto livre. Um exemplo de uso do discurso indireto livre pode ser encontrado no livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Nesse romance, o narrador transmite os pensamentos da personagem principal, Emma, seus conflitos internos e sua visão de mundo, mas também possibilita, ao longo do romance, que o leitor veja a perspectiva de outro personagem, seu marido Charles. 3 Narrativas literárias e cinematográficas — ferramentas de análise As narrativas analisadas pela narratologia podem ser verbais, como as narra- tivas literárias, em romances, contos, fábulas. Contudo, também podem ser mistas, verbo-icônicas, como na história em quadrinhos e no cinema. Nessas narrativas, a imagem também desempenha um papel importante. Especifi ca- mente no cinema, as cenas podem envolver apenas ações dos personagens, imagens, sem nenhum texto verbal, e ainda sim veicular uma ação da história, uma continuidade do enredo da narrativa contada. Podemos muito bem aplicar as estruturas e operações discursivas da narra- tologia, estudadas na seção anterior, para analisar narrativas cinematográficas. Em filmes de suspense, por exemplo, em que um caso policial precisa ser solucionado ou um assassino em série precisa ser encontrado para que pare de matar novas vítimas, é comum que o narrador também seja um personagem, no mais das vezes o próprio detive. O ponto de vista da história é contado pelas descobertas do narrador; nós espectadores sabemos o que ele sabe, o que o narrador, aos poucos, vai descobrindo. Assim, a focalização interna, com um narrador-personagem, é uma operação discursiva utilizada pela narratologia não apenas para analisar narrativas literárias, mas também para analisar narrativas cinematográficas. Existem, no entanto, estratégias mais próprias das narrativas cinemato- gráficas, tal como a anacronia. A anacronia acontece quando os eventos da história não são contados de maneira cronológica, isto é, não seguem a ordem temporal. Há dois tipos de anacronia bastante utilizados no cinema, conhe- cidos como flash-forward e flash-back. Quando o filme mostra uma cena do futuro, às vezes anos à frente, e depois retorna à sequência da narrativa do ponto que havia parado, temos o flash-foward.. Por outro lado, o flash-back Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema12 é ainda mais comum nos filmes. Se voltamos ao exemplo dos filmes de sus- penses, não são raras as vezes em que o detetive lembra de algum detalhe da cena do crime que o ajuda a desvendá-lo. Essa lembrança é um flash-back. O componente tempo da história de uma narrativa é bastante explorado nas narrativas cinematográficas com esses recursos de anacronia. Atualmente, o recurso de flash-back também é analisado em narrativas literárias, quando o escritor emprega essa operação de voltar no tempo e narrar algo que aconteceu no passado, em um tempo anterior na história. Um segundo recurso muito utilizado no cinema são os cortes temporais, lacunas em que as ações são subentendidas pelos espectadores. O espectador preenche os significados das cenas faltantes e entende, por exemplo, que o personagem que outrora estava no hospital agora já não está mais vivo, pelo mero fato de ver um leito hospitalar vazio. O termo utilizado para conceituar esse corte na continuidade espaço-temporal dos eventos da narrativa é elipse. A elipse é mais característica da narrativa cinematográfica do que da narrativa literária. Na narrativa literária, as elipses tendem a ser mais breves, pois sem os demais componentesdo cinema, como a imagem e a música da cena, o leitor ficaria sem elementos para preencher o significado de uma ação omitida da história. Um último exemplo de diferença entre narrativas literárias e narrativas cinematográficas é o estudo da focalização. No cinema, o estudo de focalização é diferente, porque o narrador pode ser visual e também sonoro, ao usar uma locução sobre a imagem. A locução acontece bastante em filmes que retratam contos de fadas, por exemplo. Também nos filmes encontramos uma versão da focalização externa, quando temos planos mais abertos e vemos os personagens de uma certa distância. Já uma versão cinematográfica da focalização interna ocorre, por exemplo, quando a câmera mostra imagens do ponto de vista do personagem, como se víssemos tudo através de seus olhos, ou quando a câmera é posicionada over the shoulder, sobre o ombro desse personagem, em que temos a sensação de acompanhar a história de sua perspectiva. O cinema é um tipo de narrativa com grande potencial para a manipulação do tempo da história. Isso se deve provavelmente ao meio em que narrativa é veiculada, ou seja, a multimídia audiovisual. Enquanto isso, na narrativa literária clássica, o autor não dispõe de recursos de multimídia, explorando o tempo das narrativas de outras maneiras, como o tempo psicológico do narradores-personagens, como vimos. Dessa forma, as narrativas, em seus diferentes meios, têm suas peculiaridades, e o estudo da narratologia se ex- pande e se especializa para descrever as operações utilizadas nos diferentes textos narrativos. 13Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 277–326. BAL, M. Narratologie: essais sur ia signification narrative dans quatre romans moder-nes. Paris: Librairie Klincksieck, 1977. BARTHES, R. et al. Análise estrutural da narrativa. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 1995. GROUPE D'ENTREVERNES. Analyse semiotique des textes: introduction, theorie, pratique. Lyon: Presses universitaires de Lyon, 1979. JAKOBSON, R. Novishaya russkaya poeziya: Nabrosok pervyi. Prague: Tipografija, 1921. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade: In: DIONÍSIO, Â. P.; MA- CHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (org.). 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Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Narratologia ou teoria da narrativa: da literatura às telas do cinema14
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