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]EAN-]ACQUES COURTINE Prefácio de Michel Pêcheux ANÁLISE DO DISCURSO POLmCO o DISCURSO COMUNISTA ENDERECADO AOS CRISTÃOS, •--pfdUfSCar São Carlos, 2009 © 2009. Iean-Iacques Courtine Capa Cristina Akemi G. Kiminami Projeto gráfico Vítor Massola Gonzales Lopes Preparação e revisão de texto Priscilla Dei Fiori Marcelo Dias Saes Peres Editoração eletrônica Patricia dos Santos da Silva Tradução (Bacharéis em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. no âmbito do Projeto '11. Tradufão no Instituto de Letras: da teoria à prática") Cristina de Campos Velho Birck, Didier Martin, Maria Lúcia Meregalli, Maria Regina Borges Osório, Sandra Dias Loguércio e Vincent Leclercq Supervisão da tradução Patrícia Chittoni Ramos Reuillard Revisão técnica Carlos Piovezani Maria Cristina Leandro Ferreira Vanice Sargentini Preparação do texto Luzmara Curcino Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar Court i ne , Jean-Jacques. C864a Análise do discurso polftico : o discurso comunista endereçado aos cri stãos / Jean-Jacques Courtine. -- São Carlos : EdUFSCar. 2009. 250 p. ISBN - 978-85-7600-160-7 1. Análise do discurso. 2. Oiscurso político. 3. Enunciado dividido. 4. Memória discursiva. I. Título. COO- 401.41 (2()<)~ COU- 801 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma elou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos. incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco .de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 7 PREFÁCIO 21 INTRODUÇÃO 27 PARTE I CAPÍTULO I A noção de "condição de produção do discurso" CAPÍTULO 11 O conceito de formação discursiva 45 69 PARTE 11 cAPÍTULom Orientações teóricas da pesquisa CAPÍTULO IV Constituição do COlpUS da pesquisa 123 99 PARTEm CAPÍTULO v Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 153 CAPÍTULo VI Efeitos discursivos: contradição, real e saber 173 CONCLUSÃO 235 BIBUOGRAFIA 241 PARTE 111 CAPÍTULo v ELEMENTOS PARA DEFINICÃO DA NOCÃO, , DE ITEMA DE DISCURSO" 1. OS PROBLEMAS LIGADOS À DEFINIÇÃO DAS ENIR.ADAS DE UM TRATAMENTO DISCURSIVO Trataremos, neste capítulo, das operações que nos permitiram locali- zar e, em seguida, extrair da sdr um conjunto de formulações de referência. Escolhemos extrair da sdr as formulações nas quais se pode identificar a ocorrência, presente na superfície, de estruturas sintáticas determinadas que correspondem às estruturas de frase C'EST ... QU (É ... QUE), assim como a certas formas sintáticas a elas relacionadas. Desse modo, nosso procedimento distancia-se das análises de tipo "harrissiano ampliado", assim como das análises do processo de enuncia- ção em discurso: não é, com efeito, uma lista de termos-pivô, nem uma grade de "marcas enunciativas" que vai constituir a entrada do tratamento discursivo propriamente dito, mas um conjunto de pares associando, numa formulação, uma forma sintática determinada e um conteúdo léxico-se- mântico dado. 154 Análise do discurso político Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 155 Essa decisão levanta duas questões: (1) Por que escolher, como modo de identificação das ler], a pre- sença de estruturas sintáticas determinadas? (2) Por que escolher tal estrutura sintática (e não outra) como base dessa identificação? e afrontamento discursivo em 1776: os grandes editos de Turgot e as exor- tações do Parlamento de Paris'), o corpus consiste numa lista de frases, com os rermos-pivô liberdade, regulamento (... ), em posição de sujeito gramati- cal. É impossível ignorar que a seleção desses termos apeia-se em um saber histórico" (op. cit., p. 10). O corpus obtido após uma normalização das frases efetuada com base em equivalências sintáticas é, assim, constituído da classe de respostas a um conjunto restrito de questões que o analista estabelece no campo de arquivos que ele examina. Essa operação resulta em depreender o que Marandin (op. cit., p. 36) denomina tópico discursiuo (ou tema de discurso), segundo a definição de Keenan & Schieffelin (1976): "proposição ou conjunto de proposições que exprimem um interesse do lo- cutor", formalmente definido pela "proposição ou conjunto de proposições pressupostas por uma questão e conservadas pela resposta a essa questão". Ilustremos essa noção com o auxílio do exemplo precedente: Questão: O que é a LIBERDADE? (nos editos de Turgot ou ainda o SOCIA- LISMO nos discursos de [aurés, etc.). Tema de discurso: A LIBERDADE é alguma coisa Corpus: A liberdade é:::.·.·. } (frases de base) A seleção sob a forma de um rerrno-pivô de um tema de discurso é, por- tanto, de fato, uma questão que visa a identificar no discurso um elemen- to determinado com base em um saber definido a priori. O procedimento corre o risco, assim, de encerrar-se na circularidade: "A análise responde à questão do analista, mas, apresentando essa resposta como estrutura bási- ca de um texto, o analista encontra-se no limite em que seu interesse e o que é o discurso se confundem" (MARANDlN,1979, p. 37). Desse modo, o corpus construído torna-se modelo do discurso e o conjunto das frases de base extraídas a partir dos temas de discurso (que refletem os pressupostos das questões do analista) induz a uma configuração do conteúdo do discurso, sob a forma de uma certa organização lexical interpretada em termos de configuração ideológica: o que os procedimentos de seleção de termos-pivô Adiantar uma resposta à primeira questão vai nos conduzir, a seguir, a fazer o inventário de um certo número de dificuldades encontradas em AD, quando dos procedimentos de definição das entradas de um tratamento discursivo que concernem a uma relação que as análises de tipo harrissia- no, bem como as análises enunciativas, estabelecem entre forma sintática do discurso e conteúdo semântico do discurso. A resposta à segunda questão necessita do exame de certas proprie- dades das estruturas apreendidas. Essas propriedades parecem-nos efeti- vamente - no âmbito das hipóteses gerais sobre o objeto "formação dis- cursiva" e das hipóteses específicas sobre o corpus da pesquisa que formu- lamos - apropriadas para fornecer uma base satisfatória de identificação empírica das ler], a partir das quais as redes deformulação e os enunciados poderão ser constituídos. 1.1 Os PROBLEMAS LEVANfADOS PELA ESCOLHA DE TERMOS-PIVÓ EM ANÁLISE HARRISSIANA Esses problemas, levantados por Pêcheux (1969) e J.-c. Gardin (1976), foram mais recentemente acentuados por Guilhaumou & Maldidier (1979), na sequência da argumentação desenvolvida por Marandin (1979); esta pode assim se resumir: a seleção de termos-pivô e a constituição de um corpus de frases de base que resulta dessa seleção são procedimentos manufaturados. A seleção-de termos-pivô repousa, de fato, nos a priori do analista, o que Guilhaumou & Maldidier chamam de "julgamentos de saber": "Em 'Polémique idéologique et affrontement discursif en 1776: les grands édits de Turgot et les remontrances du Parlement de Paris' ('Polêmica ideológica ii li L i' I 'i 156 Análise do discurso político recobrem é uma interferência não controlada entre julgamentos de saber do analista e elementos de saber próprios a uma formação discursiva dada. Assinalaremos, por outro lado, que os procedimentos de constituição de um corpus experimental, familiares aos usuários da Análise Automática do Discurso, fundamentam-se num princípio semelhante: trata-se ainda aí de induzir, sob a evidência de uma pergunta ingênua, uma resposta que virá "espontaneamente" recobrir o pressuposto da pergunta. Portanto, se o recurso à experimentação nada resolve e apenas contri- bui para mascarar essa dificuldade, ele pode ser uma solução que mereça ser considerada: tal solução, que colocamos à prova em nosso trabalho, consistiria, em primeiro lugar, em substituir a questão (1), feita pelo ana- lista a um cainpo de arquivos, pela questão (2): (1) O que é X? (onde X = um lexema determinado, escolhidoa priori como termo-pivô, aparecendo como tema de discurso no pressuposto da questão). (2) Como, no próprio discurso e pelo próprio discurso, um ele- mento determinado pode ser caracterizado como tema de discurso? (como, isto é: pela presença de quais estruturas, sob que forma linguística?). Se nos detivermos, com efeito, na noção de tema de discurso, que foi extraída acima, poderemos identificar, no intradiscurso de uma sequência discursiva determinada, a presença de' estruturas sintáticas cujo efeito, no próprio discurso, é localizar um tema de discurso e identificá-lo. É o caso, por exemplo, de sequências pergunta/resposta, como a seguinte, extraída da sdr: Quem pode temer um tal avanço das liberdades? É a aristocra- cia do dinheiro que tem medo da liberdade. na qual: (1) uma pergunta é formulada; (2) a existência de um tema de discurso é localizada pelo pressu- posto da pergunta: EI definição da noção de "tema de discurso"ementas para 157 Existe ALGUÉM que pode temer um tal avanço das liberdades. (3) a resposta identifica um elemento determinado como o tema de discurso pressuposto pela pergunta: Este alguém \pode temer um tal avanço das liberdades \É A ARISTOCRACIA , d d DO DINHEIRO.que tem medo da liber a e "É DE"1.2 ALGUMAS PREDIÇÕES INTIJITlVAS A RESPEITO DAS FORMAS EM ••• Q Esse exemplo orienta nossa intuição a propósito das formas sintáticas de tipo: ÉXQUEP e de estruturas que lhes são semelhantes de tipo: O QUEPÉX XÉO QUEP Parece-nos possível avançar que essas formas de frase, numerosa~ no inrradiscurso das sequências discursivas dominadas pela FD comunista, constituem uma base satisfatória para uma identificação formal ~os te- mas de discurso e podem assim permitir a localização e a extraçao das ler]. Se essa predição for correta, será, então, pos~ível cons,truir as redes.~~ formulação, constituindo o processo discurslvo me rente a FD de refer~er , a partir das ler] localizadas e extraídas; poderemos, enfim, apreen era, b ,,' FD ou enun- dos R[e] assim construídos os elementos de sa ~r,~ropnos a . ' e ciados [El, formas gerais que governam a repetlblhd~de no seio das ~[ :~_ Definimos a noção de tema de discurso de maneira vaga; ela sera p , ' ., noção designa por ora:cisada mais adiante. De maneira mrumva, essa , ' 158 Análise do discurso político • um elemento que figura no inrradiscurso de uma sequência cuja importância é acentuada, marcada na cadeia. Um tema de dis- curso carrega assim uma marca de ênfase; • um elemento (segundo a definição de KEENAN & SCHIEFFELlN, op. cit.) que pode ser objeto de uma pergunta, que é localizável no pres- suposto da pergunta e é conservado na resposta a esta. Acrescen- taremos que é possível tratar-se seja de uma pergunta efetivamente formulada no intradiscurso, seja de uma pergunta virtual (isto é, pressuposta pela presença de uma forma sintática de resposta no intradiscurso) ; • e ainda um elemento que é identificado enquanto tal pelo próprio discurso. A presença de um tema de discurso em uma sequência supõe um efeito de sentido do tipo: "É disso - e não de outra coisa - que falo; é isso - e não outra coisa - que é o objeto de meu discurso ... " mas, igualmente: "É isso que quero dizer quando emprego esse termo; essa pala- vra de meu discurso significa isso ... " I· ou seja: identificação de um elemento como elemento do dis~ur- so, mas igualmente identificação de um elemento do discurso com um outro. Efeitos de sentido de ênfase e de identificação, inscrição em uma for- ma dialógica: essas propriedades atribuídas à noção de tema de discurso conduzem-nos a fazer disso uma base privilegiada da determinação dos elementos de saber de uma FD. Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 159 1.3 DEFINIÇÃO DE CRITÉRIos FORMAIS DE DETERMINAÇÃO DOS TEMAS DE DISCURSO A descrição de algumas propriedades linguísticas das estruturas apre- endidas virá mais adiante apoiar a escolha feita. Gostaríamos, antes de chegar a isso, de dar sentido ao nosso procedimento; este último consiste, efetivamente,em fazer intervir critérios formais (linguísticos) nos procedi- mentos de seleção das entradas de um tratamento discursivo. Essa posição parece-nos ter como interesse: (1) introduzir entre o analista do discurso e seu objeto um descorn- passo próprio para quebrar a circularidade que se estabelece "naturalmente" entre "perguntas" do analista e "respostas" do corpus nas operações clássicas de escolha de terrnos-pivô; (2) favorecer uma determinação unluoca das ler] no corpus que se baseia nas propriedades de autonomia relativa da língua; (3) estabelecer a relação entre intradiscurso (como lugar de deter- minação das [erj) e interdiscurso (como lugar de construção dos [E] efetuada a partir dessa determinação); (4) evitar separar materialidade da língua (um ou vários funcio- namentos formais' determinados) e materialidade do discurso (um conjunto de processos identificáveis no corpus discursi- vo), ao passo que uma tal separação é amplamente difundida em AD, sob a forma de uma dissociação forma do discurso/ conteúdo do discurso; (5) adotar, assim, a perspectiva do funcionamento de uma estru- tura de língua, em discurso, como base de definição das en- tradas de um tratamento em AD. Essa perspectiva parece-nos preferível à posição que consiste numa determinação estatís- tica como critério de seleção dos temas de discurso. Todo le- vantamento estatístico, por mais cuidadoso que seja, não pode •evitar faz;r da definição das entrad~s de um tratamento ~ma fase de demografia discursiva que ignora toda consideração do funcionamento do discurso. I i1 1 i I I: ' i i J: 160 Análise do discurso político Dessa forma, a abundância de estruturas do tipo: É X QUE P/O QUE P É X/X É O QUE P nas sequências discursivas dominadas pela FD de referência poderá ser considerada como um argumento suplementar, não como um argumento decisivo, justificando sua escolha. Tal posição comporta, entretanto, um risco: este equivaleria a ceder à ilusão de uma transparência do discurso, isto é, a considerar que os discur- sos "falam por si próprios" e dão espontaneamente, em sua forma linguís- tica, as chaves para sua interpretação pelo tipo de operações linguísticas que empregam (em virtude de um princípio do tipo: a tal estrutura sintá- tica, tal efeito de sentido). A AD seria, nesse caso, tomada ela própria nos efeitos ideológicos ligados à leitura de um texto. Convém assim lembrar, por um lado, que a existência da ambiguidade semântica ligada ao funcionamento de certas estruturas sintáticas (é o caso das frases em É ... QUE) previne contra a ilusão de uma transparência; por outro lado, que as hipóteses propriamente históricas, formuladas na oca- sião da determinação das condições de produção e das condições de for- mação, não poderiam ser subordinadas às considerações linguísticas que presidem aqui mesmo a determinação dos temas de discurso. Ao contrário, é a hipótese segundo a qual o domínio de saber da FD comunista constitui-se sob uma forma determinada de dominação ideo- lógica que conduz a buscar as formas nas quais os temas desse "diálogo" inscrevem-se na materialidade linguística das sequências discursivas domi- nadas pela FD comunista. r A ordem do discurso não subordina a ideologia à língua, nem a língua à ideologia; o discurso materializa o contato entre o ideológico e o linguístico, na medida em que ele "representa, no interior do funcionamento da língua, os efeitos da luta ideológica (e em que), inversamente, manifesta a existência da materialidade linguística no interior da ideologia" (PÊCHEUX, 1979, p. 4). -_o .. - ~'. ."" .' Elementos para definição da noção de "terna de discurso" 161 2. O lRATAMENTO DAS FRASES EM ''É ... QVE'' EM AD: UM EXEMPLO DA DISSOCIAÇÃO ENTRE FORMA DO DISCURSO E CONTEÚDO DO DISCURSO 2.1 EM ANÁLISE DE TIPO HARRISSIANA A manipulação transformacional das frases em língua natural que contém um rerrno-pivô vai levar o analista, segundo os princípios estabele- cidos por Dubois (1969a), a suprimir asformas em É QUE. Essa operação fundamenta-se nos seguintes pressupostos: (1) O conteúdo léxico-semântico dos enunciados pode ser teori- camente separado de sua forma sintática. As transformações sintáticas consideradas só constituem um acréscimo facultativo que não afeta fundamentalmente o significado do enunciado; (2) Certas formas sintáticas podem, assim, ser suprimidas num acesso regulado ao conteúdo léxico-semântico dos enunciados, no qual a AD deverá produzir uma organização (constituição de classes de equivalências distribucionais). O discurso ver-se-á, portan~o, representado no modelo de um dicio- nário, cujas entradas são constituídas de temas de discurso arbitrariamen- te escolhidos e que funciona com base em uma sintaxe reduzida. Outra consequência desse procedimento: a distribuição, no discurso, da relação entre conteúdo léxico-semântico e forma sintática é aqui tratada. implicitamente como uma distribuição aleatória: ela tende para uma posi- ção lexicalista que implica a indiferença do conteúdo léxico-semântico das formulações à forma sintática dessas mesmas formulações. 2.2 EM ANÁLISE DO PROCESSO DE ENUNOAÇÃO Os dois tipos de análise opõem-se, nos termos de Dubois (1969a, p. 123), como uma perspectiva estática opõe-se a uma perspectiva dinâmica. A análise enunciativa substitui a representação estática, "cartografia" do discurso, que 162 Análise do discurso político as análises de enunciados estabelecem sob a forma de um quadro de classes de equivalências, por uma representação dinâmica, indicando "a ordem das transformações operadas numa frase tipo, estabelecidas pela operação pre- cedente e permitindo explicar as transformações pela decisão tomada pelo sujeito" (grifo nosso). A citação precedente permite precisar a relação entre análise de enun- ciados (harrissiana) e análise da enunciação que se estabelece em AD: a análise de enunciados é anterior à análise enunciativa; ela constitui um modelo de reconhecimento que, a partir de um corpus e de uma lista de termos-pivô, constrói, pela supressão de marcas sintáticas, um dicionário de equivalências semânticas entre frases tipo. Inversamente, a análise enun- ciativa é posterior à primeira; ela constitui um modelo de produção que, a partir de frases de base obtidas pela aplicação da análise de enunciados, explica a produção do texto pelos atos, escolhas, decisões do sujeito enun- ciador que modaliza o enunciado, principalmente pela ordem das regras que impõe a derivação de uma frase. Gostaríamos, agora, de salientar certas consequências ligadas à opera- cionalização das análises do processo de enunciação em análise do discurso político. Desse modo, a análise efetuada por Courdesses (1971): procedendo a uma decomposição comparativa das marcas do processo de enunciação nos discursos de Blum e Thorez, se ela não considerar nenhuma forma de ênfase ou de tematização, chega, em compensação, no que concerne ·ao levantamento das transformações negativas, numerosas no discurso de Blum, a conclusões tão diversas quanto estas: li " I I Em todos os casos, as transformações negativas expli- cam sua percepção permanente dos outros na sequência de seu enunciado e a percepção permanente de si pró- prio, que lhe faz questionar incessantemente seus pen- samentos e julgamentos, numa flutuação contínua que encontraremos na utilização complexa das formas ver- bais. Elas revelam, no plano psicológico, sua inquietude fundamental (op. cit., p. 26). Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 163 Surgem numerosas objeções a tal análise.' a noção de transformação sintática, principalmente, é afetada por um conteúdo psicológico; o que se encontra manipulado no trabalho de Courdesses não são tanto as regras de uma gramática quanto as operações de um sujeito. A noção de regra gra- matical é tomada aqui conforine o mal-entendido para o qual Chomsky, a partir de Aspects de Ia théorie syntaxique (l965, p. 19-20) chamava a atenção dos linguistas: Para evitar o que foi um perpétuo mal-entendido, talvez seja útil repetir que uma gramática gerativa não é um modelo do falante ou do ouvinte. Ela tenta caracterizar, da maneira mais neutra, o conhecimento da língua que fornece sua base à atuação efetiva da linguagem pelo falante-ouvinte. Quando dizemos que uma gramática engendra uma frase provida de uma certa descrição es- trutural, compreendemos simplesmente que a gramáti- ca atribui essa descrição estrutural à frase. Quando di- zemos que uma frase tem uma certa derivação do ponto de vista de uma gramática gerativa particular, nada di- zemos sobre a maneira como um falante ou um ouvinte 1 Além das objeções relativas -à constituição do =r«.mencionadas no Capítulo I, podería- mos acrescentar: Como se justifica a escolha de uma forma linguistica mais do que outra nas formas levantadas (senão pela confusão entre uma interpretação psicológica do modelo gramatical de Syntactic structures - e principalmente a noção de transformação facultativa - e o próprio discurso)? Que significação conceder a um levantamento estatístico em discurso que não tenha como condição prévia o estudo do funcionamento discursivo das formas recenseadas? Como interpretar, em rermos de relação entre as formações discursivas socialista e co- munista, as diferenças estatísticas levantadas, senão nos rermos da oposição psicológica entre duas "personalidades" ou pela reinscrição das medidas efetuadas nas concepções ideológicas mais espontâneas do "que são os socialistas" e do "que são os comunistas"? É interessante notar acerca disso que a oposição discurso de Blumldiscurso de Thorez reco- bre espontaneamente as categorias de código elaborado e código restrito, caracterizando, na sociolinguística de Bernstein (1975), o discurso da classe média/da classe operária. São as mesmas formas ideológicas (discurso valorizando o indivíduo nas camadas médias e a burguesia/discurso negando o indivíduo na classe operária) que estão operando nesses dois tipos de trabalhos; fizemos sua crítica em outro lugar, conforme Courtine & Gadet (1977), Classes socia/es et égalité des chanceslinguistiques. lil'i! ":.i 164 Análise do discurso político i I 1 1 .'1' "I,II li poderia proceder, de um modo prático ou eficaz, para construir tal derivação (grifo nosso). Além disso, a posição desenvolvida por Courdesses equivale, no que concerne ao tratamento da relação entre forma e conteúdo do discurso em AD, a estabelecer o princípio da indiferença da forma sintática das formu- lações ao conteúdo léxico-semântico das formulações: são as decisões do sujeito enunciador - e somente elas - que virão justificar o aparecimento de tal forma sintática neste ou naquele lugar do texto. A análise do tipo harrissiano e a análise enunciativa revelam-se, as- sim, como figuras gêmeas (elas operam uma mesma dissociação forma do discurso/conteúdo do discurso), ao mesmo tempo em que complementares (distribuem complementarmente os dois termos da relação assim estabe- lecida). O discurso só pode numa tal alternativa receber, como modelo, o dicionário ou o sujeito. 2.3 A NÃO INDIFERENÇA DA FORMA DO DISCURSO AO CONTEÚDO DO DISCURSO E VICE-VERSA: ALGUNS ARGUMENTOS EMPÍRICOS Gostaríamos, para concluir este ponto, de trazer alguns argumentos empíricos, extraídos do corpus, com o apoio da tese subjacente às críti- cas que acabam de ser formuladas: a forma sintática do discurso não é indiferente aos conteúdos léxico-semânticos do discurso e vice-versa. Se a dissociação forma/conteúdo não é admissível em AD, é porque ela tende a separar conteúdo de um saber e forma sintática de uma formulação. Dessa forma, as frases em É ... QUE não se distribuem aleatoriamen- te nas sequências discursivas, mas dependem de uma FD determinada (os exemplos seguintes são extraídos do corpus): • Existe uma classe de lexemas, como classe operária (mas também poder, democracia, liberdade ... r, que apãrecern frequentemente em posição X em É X QUE P, ao passo que outros podem jamais aparecer nessa posição. Exemplo: XXI Congresso do PCF: I I,Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 165 É a CLASSE OPERÁRIA que garante a produção dos bens materiais. É a CLASSE OPERÁRIA que está situada no cerne do meca- nismo de exploração. É a CLASSE OPERÁRIA que produz a mais-valia. É a CLASSE OPERÁRIA que sofre mais diretamente a explo- ração. G. Marchais (10/06/76): É a CLASSE OPERÁRIA que é a mais explorada. • Certos elementos de saber (por exemplo: a violência vem dos comunistas) serão combinados, em FD antagonistas, a formas sintáticas semelhantes (presença de É ... QUE) e, ao mesmo tem- po, opostas (afirmação/negação). Podemos observar, assim, nos textos da Igreja: É dos comunistas que vem a violência. e, em contraponto, G. Marchais (10/06/76): A violência, não é de nós que ela vem. Encontraremos, na descrição das formas em É ... QUE no discurso, fei- ta 110 Capítulo VI, numerosos exemplos de coincidência entre determinado conteúdo de saber e determinada forma sintática de formulação. É a posição de um elemento determinado no saber de uma FD (isto é, também na contradição entre saberes opostos) que vem, conforme vere- mos, explicar essa coincidência. É por isso, também, que podemos esperar, com base em uma determinação de certas formas sintáticas no intradiscur- so de uma sequência, caracterizar a posição no saber da FD que domina essa sequência de elementos, da qual esta ou aquela formulação constitui - uma reformulação sió't"i'ticament'e' rnarcada. 166 Análise do discurso político 3. ELEMENTOS DE DESCRIÇÃO LINGUÍSTICA DE FRASES EM ''É...QVE'' Efetuamos em outro texto (COURTINE, 1980, p. 192-214) uma descrição sintática completa das frases em É... QUE, ao mesmo tempo que fizemos a crítica das noções (tópico/comentário, tema/rema, dadoinovo ... ), por meio das quais são geralmente tratados os efeitos de sentido relacionados. Nós nos limitaremos aqui a algumas indicações, pela lembrança de certas proprieda- des dessas frases e de certas soluções avançadas em seu tratamento sintático. 3.1 ALGUMAS PROPRIEDADES DAS FRASES EM "É••• QUE" Essas propriedades são bem conhecidas (deslocamento e focaliza- ção do constituinte enquadrado por É ... QUE; inscrição em uma relação pergunta/resposta cuja especificidade encontra-se marcada pela corres- pondência entre o pronome QUE ... da pergunta e o elemento-central da resposta em É ... QUE, etc.). As frases em É ... QUE são, da mesma forma, frases ambíguas, e é sobre essa propriedade que insistiremos aqui. Uma frase como (1) pode, efetivamente, receber uma interpretação contrastiua, parafraseada em (Ia), dêitica (ou designativa) em (Ib), e cons- tatiua em (Ic):" (1) É a democracia que queremos para a França. (Ia) É a democracia - e nada mais - que queremos ... (Ib) Esta democracia é a democracia que queremos, é bem esta a democracia que queremos, eis a democracia que ... (lc) Há a democracia, e eventualmente outras coisas, que que- remos ... Diferenças de paráfrase permitem, assim, distinguir os diversos va- ,"' .•••••••... - •••. •••••.•••. 50-....... .••• • lores de E... QUE, mas a caracterização de interpretações diferentes com base em critérios estritamente formais é problemática, como veremos. 2 Observamos, também, às vezes, uma interpretação exclamatiua (BALLY, 1951, p. 262) , da qual não trataremos aqui, na medida em que não aparece em nosso corpus. I ! I I I ! Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 167 3.2 DESCRIÇÃO SINTÁTICA DA AMBIGUIDADE a) O tratamento do efeito contrastivo Gross (1977) propõe relacionar as frases clivadas em É... QUE como (2) a frases com dois membros (eventualmente ligados por mas ou e) como (2a): (2) É a aristocracia do dinheiro que tem medo da liberdade. (2a) É a aristocracia do dinheiro que tem medo da liberdade {e/ mas} não a classe operária (que tem medo da liberdade). Gross vê, nas frases do tipo (2a): PI = É X QUE P ({e/mas}) Pz = NÃO É Y QUE P a base formal geral a partir da qual a noção intuitiva de efeito contrastivo pode receber uma representação. O contraste tem sua origem na conjunção de duas frases PI e P2; essas duas frases apenas apresentam uma diferença: B está, então, em contraste com A. Uma única negação é obrigatória em um ou em outro membro, quando a negação está na origem do contraste: ela é de forma contrastiva em não, como em (2b), que provém de (2a) por redução de um segundo membro de duas frases conjuntas, seguida de uma permuta que aproxima os dois termos do contraste: (2b) É a aristocracia do dinheiro, (não) a classe operária, que tem medo da liberdade. A análise de Gross fornece um critério que permite o reconhecimento em superfície da interpretação contrastiva das frases clivadas, isso no caso de frases contrastivas com dois membros. Quanto às frases com um mem- bro, como (1) ou (2), Gross considera-as tipos degenerados que devem ser 168 Análise do discurso político interpretados a partir da forma de base geral contrastiva. E é nesse ponto que surge uma dificuldade: com base em que tipo de intuição ou de saber - pois de forma alguma se trata aqui de intuição ou de saber gramaticais- podemos, no discurso, autorizar-nos a proceder a essa reconstrução? b) Análise de interpretações contrastiva vs. dêitica A descrição anterior não permite explicar as ambiguidades levantadas. Dubois & Dubois-Charlier (1970, p. 185-186) esforçam-se, em compensa- ção, para tratar da distinção entre as interpretações contrastiva e dêitica.' Assim, (3) proviria de (3a) e de (3b), frases clivadas, consideradas fra- ses transformadas que resultam do encaixe de uma frase relativizada em uma outra. (3) É o socialismo que nós propomos ao país. (3a) Nós propomos algo ao país. (3b) Este algo é o socialismo. if: 11: 1 1:.1 n l ! ,l I. I'i' [' I' I ~ !l "~i I "'I ~ ~ 11 :~ I j (3a) encaixando-se em (3b) por relativização. A ambiguidade resultaria do possível encaixe da relativa, seja no SN contendo a proforma nominal (este algo), seja no SN contendo o socialismo. Veremos, mais adiante, que os problemas levantados a propósito da análise de Gross permanecem igualmente aqui. Nós nos limitaremos, no momento, a salientar que a forma atribuída à frase matriz (3b) explica uma outra intuição relativa às frases clivadas: estas são frases de identificação (o tratamento proposto consiste, dessa forma, em fazer provirem as frases em É ... QUE do encaixe de uma relativa em uma frase de identificação). .. 3 O tratamento da interpretação consrativa geralmente é ignorado. Desse modo, Culioli (1974) distingue tematização forte (em É ... QUE) e fraca (em HÁ ... QUE); mas não especi- fica que E ... QUE em superfície pode, às vezes, ser interpretado como ternatização fraca. Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 169 3.3 A IDENTIFICAÇÃO NAS FRASES EM "É X QUE p"/"O QUE P É X"/"x É O QUE p" a) Frases de identifica~ão equativas A propriedade de frase de identificação é a que resulta da possibili- dade para toda frase predicativa de ser transformada em frase clivada de forma equativa. As frases equativas são frases de forma SNj É SN2, em que É deve ser interpretado como "deve ser identificado a". Distinguem-se das frases copulativas, em geral, pelo fato de sua reversibilidade (sua cópula é dita equativa). Se SN É SN - SN É SN então SN É SN2 é uma frase equativa1 2 2 I' 1 como (4): (4) O programa comum é a base de nossa ação - A base de nossa ação é o programa comum. Encontramos em Halliday (1967) um estudo exaustivo de frases de identificação. Ele indica nesse estudo que toda frase predicativa como (5) pode transformar-se em frase de identificação equativa pela nominalização (em O QUE P) de um conjunto de seus elementos, seja (6): (5) Queremos a união dos trabalhadores. (6) O que queremos é a união dos trabalhadores. A propriedade de reversibilidade das frases equativasfaz que (6) possa converter-se em (7): (7) A união dos trabalhadores é o que queremos. Essas frases, ditas pseudoclivada e pseudoclivada invertida, caracteri- zam-se pelas propriedades seguintes: (1) Em uma frase copulativareversível de tipo SNj É SN2 - SN2 É SN elas estabelecem uma relação entre dois elementos defini- j' dos por sua relação de identificação: 170 Análise do discurso político Identificado - cópula equativa - identificante, que representaremos por: IDado e IDante (2) Se a forma sintática dessas frases é reversível, a relação de identificação é orientada (no sentido: "elemento a identificar- elemento identificante"). (3) A orientação da relação de identificação é determinável: o identificante é sempre o constituinte que corresponde ao pro- nome QUE da pergunta pressuposta pela frase; esse elemento é o núcleo da frase. (4) Em uma frase c1ivada de identificação equativa, o elemento O QUE P é sempre o identificado; o identificante é reduzido a um único elemento. (5) As frases desse tipo especificam, como as frases predicativas, um processo e seus participantes, mas acrescentam a informa- ção, segundo Halliday (op. cit., p. 233), de "que um dos parti- cipantes pode definir-se como participante do processo". (6) Elas podem originar efeitos contrastivos. b) Frases com tema predicado e tema de discurso Halliday distingue, nas frases em É... QUE, às quais denomina frases com tema predicado, as frases quase-sinônimas das frases c1ivadas de iden- tificação equativa. Assim, ele exprime a diferença semântica entre as duas estruturas: Estruturalmente, a predicação condensa as funções de tema e de identificante, dando ao tema uma ênfase ex- plícita por exclusão ("É de X e de ninguém mais que se trata"). Há, entretanto, uma diferença entre uma frase com um tema predicado e urna frase de identificação, no efeito de ênfase que ela implica. Na identificação, a ênfase é cognitiva: "X - e ninguém mais - fez isto", ao passo que na predicação, é temática: "X - e ninguém mais - é o tema desta frase" (HALLlDAY, 1967, p. 233). Elementos para definição da noção de "tema de discurso" 171 Esse conjunto de observações quanto às propriedades linguísticas das frases em É X QUE PIO QUE P É XIX É O QUE p4 vem especificar algumas das intuições que nos fizeram escolhê-Ias como base de determinação dos temas de discurso e das formulações de referência. Elas constituem exatamente um meio privilegiado que associa focali- zação e identificação de um elemento do discurso. As modalidades dessa identificação variam nos diferentes funcionamentos de É... QUE, corres- pondendo às ambiguidades que descrevemos; por outro lado, as frases em O QUE P É XIX É O QUE P produzem efeitos de sentidos específicos. Voltaremos, mais adiante, à descrição dessas frases no intradiscurso da sdr. Denominaremos, ao término desse desenvolvimento, tema de discur- so todo constituinte focalizado de uma frase clivada de identificação ou de uma frase em É... QUE (o constituinte X em: O QUE P É XIX É O QUE P/ÉX QUEP). Chamaremos de frases introdutórias de temas de discurso as frases que respondem a essas formas sintáticas. 4 Encontramos no corpus O QUE P É X/x É O QUE P. A presença dé O parece-nos corres- • ponder a um reforço da identificação por um vínculo correferencial suplementar. [N. de T.: em francês, CE QU P C'EST X/X C'EST CE QUE P apresenta o pronome demonstra- tivo neutro (C' = CE) como sujeito aparente; quando associado ao verbo être coloca em evidência um elemento da frase, como nas frases mencionadas. BESCHERELLE. La grammai- Tepour tous. Paris: Harier, 1990. p. 231-232.]
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