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História da Filosofia Antiga

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NOÇÃO DE POLÍTICA NA GRÉCIA CLÁSSICA
Na crise econômica mundial, iniciada em 2008, a Grécia foi pressionada a pagar dívidas adquiridas com os bancos da União Europeia. Nessa época, surgiu na internet a piada: e se tivéssemos que pagar royalties sobre todas as palavras que importamos dos gregos – e, consequentemente, os conceitos daí derivados? A conclusão do raciocínio era óbvia: o mundo ocidental é muito mais devedor dos gregos que os poucos bilhões de euros que constavam naquele deficit. Só que o valor não é cobrado na mesma moeda!
Se quisermos comprovar isso, basta começar por uma noção geral e abstrata que perpassa todos os lugares como “política” (a junção de polis com tékhnē). O segundo termo (tékhnē), “o ato de fazer ou cunhar algo”, é a origem, com algumas variações de interpretação, da técnica como nós a conhecemos atualmente. Já o primeiro (polis) era associado às independentes cidades-Estados localizadas próximas à península do Peloponeso, banhadas pelo mar Mediterrâneo, cujos habitantes falavam variações do grego antigo. Mas não apenas isso.
O termo também caracterizava a própria população, fazendo com que um grego dessa época se pensasse, primeiramente, como um “animal político”, ou zoon politikon, como escreveu Aristóteles (384 A.E.C.-322 A.E.C.), antes de ser um indivíduo. Aliás, a própria noção de “indivíduo”, como a conhecemos – de alguém isolado do seu entorno, da sua comunidade, vivendo uma vida “privada” –, deveria soar bastante estranha para um grego da época de Sócrates (469 A.E.C.-399 A.E.C.) e Platão (428/427 A.E.C.-348/347 A.E.C.).
Para esses homens comunitários, todas as ações eram políticas, “públicas”, por assim dizer. Não haveria, portanto, uma divisão tão clara entre a política, como a conhecemos hoje, e a ética. Por isso, quando Platão, no diálogo Górgias, coloca Sócrates, seu mestre e protagonista da maioria de suas obras, como o verdadeiro político, apesar de sua aversão às práticas mais comumente associadas na atualidade com o fazer político – como não participar de organizações ou associações, por exemplo –, tal afirmação não parecia um absurdo completo para seus conterrâneos.
Mesmo que não fizesse parte das assembleias, Sócrates poderia ser visto ainda como um bom, belo e verdadeiro exemplo de político?
ASSEMBLEIAS
A palavra “assembleia” tem origem no termo grego ekklesia, que também deu origem à palavra “igreja”. As ekklesiai eram ocasiões em que os cidadãos atenienses se reuniam para decidir sobre os assuntos da cidade-Estado – o que se considerava a ação política por excelência (aqui no sentido mais restrito do vocábulo) para os contemporâneos de Sócrates.
CONDIÇÕES HISTÓRICAS
Para explicar a importância de um Sócrates político, devemos voltar um pouco no tempo e mostrar a excepcionalidade do lugar e do tempo em que ele viveu. Por volta do século V a.C., ou talvez no século seguinte – ninguém sabe ao certo a data de nascimento –, aconteceu, na região do Peloponeso, provavelmente um fenômeno único na história: os habitantes de determinada cidade-Estado, chamada de Atenas, decidiram que a melhor maneira de se organizar como sociedade era distribuir os poderes de decisão sobre as questões comunitárias por todos os cidadãos. Eles chamaram essa forma de governo de “democracia” (dêmos = povo + kratía = poder), e criaram mais uma palavra-conceito que influenciaria todo o mundo ao longo dos séculos e milênios. 
Heródoto (485 A.E.C.-425 A.E.C.) sugere que houve, sim, um criador da democracia, conhecido como o pai da História, por ser seu “inventor”, isto é, aquele que tentou, pela primeira vez, escrever fatos históricos de maneira mais próxima de como ocorreram – apesar de todas as liberdades que tomou. Heródoto credita essa façanha a Clístenes (565 A.E.C.-492 A.E.C.), membro de uma proeminente família da região.
Mas uma filha tão complexa e diversa assim não tem apenas um pai.
Outros relatos mostram como responsáveis pela criação da democracia os seguintes nomes:
Sólon, legislador do início do século VI A.E.C
Efialtes, líder ateniense que supervisionou as reformas que visavam reduzir o poder do Areópago, bastião do conservadorismo na Atenas pré-democrática.
Teseu, herói mitológico, considerado um dos “fundadores” da Grécia.
TESEU
Apesar de alguns relatos apontarem Teseu como um dos criadores da democracia, esse nome não é levado exatamente em consideração pelos estudiosos mais sérios.
O provável é que, para atingir seu auge no quarto século A.E.C., exatamente quando viveu Platão, a democracia ateniense tenha sido alimentada por todas essas vertentes e outras ainda não catalogadas: a partir das reformas empreendidas por Sólon, como consequência das modificações implantadas por Clístenes; após as revoltas populares da época; por conta das transformações introduzidas por Efialtes; ou pela liderança de Péricles (495 A.E.C.-429 A.E.C.), o famoso estadista e general, em cujo governo (entre 460 A.E.C. e 430 A.E.C.), logo após os atenienses liderarem os gregos na guerra que derrotou os persas, Atenas teria tido seu auge.
Independentemente dos dados presentes em sua certidão de nascimento, a democracia ateniense é um exemplo de organização social-política sem paralelos na história do mundo, como dizem historiadores de renome incontestável. E entre os vários motivos que a fazem única está a assembleia: um conselho de cerca de quinhentos cidadãos eleitos por sorteio, que supervisionava o aparato administrativo, lidava com as relações exteriores, ouvia os relatórios oficiais, deliberava a agenda, preparava as moções para as assembleias e realizava outras atividades. Esse nível de organização acontecia cerca de meio milênio antes do nascimento de Jesus de Nazaré! Para se ter noção de como isso era original, basta lembrar que esses quinhentos anos equivalem ao mesmo tempo que separa os dias atuais da chegada do navegador português Pedro Álvares Cabral nestas terras que, anos depois, viriam a se chamar Brasil.
Havia, ainda, vários outros recursos burocráticos para assegurar o máximo de participação dos atenienses nas coisas públicas (ou “república” – res = coisa + pública – palavra de origem latina). Por exemplo, o Conselho dos 500, uma espécie de câmara alta, tal como um Senado na atualidade, e os tribunais, onde os réus eram julgados.
Na ekklesia ou assembleia, especificamente, parte da comunidade ateniense (os homens adultos e livres) tinha de se encontrar cerca de quarenta vezes ao ano para discutir sobre os problemas e as soluções da cidade. Pode-se afirmar que cerca de um terço dos cidadãos acima dos 18 anos e dois terços dos cidadãos acima dos 40 anos já tinham servido pelo menos durante um ano nessa assembleia.
Embora tenha um grau de organização incomum, até para os dias atuais, a democracia ateniense também recebeu muitas críticas a respeito de sua estrutura, a começar pela própria noção de participação popular. Segundo estudiosos, a presença e a assiduidade no conselho eram consideradas baixas. Uma das razões, segundo dizem, é que, geralmente, as pessoas preferiam atender a seus próprios negócios a ter de resolver os assuntos de Estado – algo mais distante da urgência cotidiana.
De acordo com os historiadores, ainda havia problemas de instabilidade política. Com tantas vozes podendo apontar as direções que a cidade deveria tomar, era difícil se chegar a um caminho único e em linha reta em pouco tempo. A morosidade, às vezes, acabava se tornando imobilidade, o que atrapalhava em um período de constantes guerras, invasões, e governos fortes e autoritários.
Mas, certamente, a principal crítica à democracia ateniense devia-se ao impedimento da participação de mulheres, estrangeiros (como Aristóteles, que era de Estagira – cidade próxima à Macedônia –, por exemplo) e escravos no conselho. As mulheres até assumiam funções religiosas importantes – afinal, a religião era parte fundamental da sociabilidade habitual ateniense –, porém os demais moradores da cidade, mesmo que fossem a maioria da população, tinham pouca ou nenhuma voz ativa nesse contexto.
No total, os participantesdo conselho atingiam no máximo 20% da população de Atenas. Esse número fez com que os críticos do período dissessem que tal organização social política não era exatamente uma democracia, mas uma forma atenuada de oligarquia.
Inegavelmente, há semelhanças com os modelos atuais de organização comunitária. Todo o corpo burocrático ateniense é certamente o primeiro passo de uma longuíssima caminhada, com idas e vindas, que veio a dar nos aparelhos que sustentam nossos Estados-nações ocidentais e liberais da atualidade. Mas as equivalências ficam bem mais enfraquecidas quando se pensa na ideia de representação direta, principalmente quando há o recorte de gênero e classe.
OLIGARQUIA
Palavra de origem grega que significa “governo exercido por um pequeno número de pessoas”.
ATENÇÃO
Cabe questionar se, de fato, a comparação entre a organização burocrática da sociedade ateniense e nossos Estados-nações atuais é fraca. Basta lembrarmos de que o voto feminino, no Brasil, apenas foi alcançado em 1934, ou, em pior situação, na França revolucionária, apenas em 1945. Será que um país, atualmente, de população em sua maioria negra e feminina, e, ainda assim, com baixíssimo número de políticos afrodescendentes e mulheres, poderia criticar a Grécia Clássica?
De qualquer modo, a democracia ateniense se tornou um marco inaugural que acabou influenciando diversas maneiras de pensar a organização comunitária ao longo dos tempos. Mesmo que imperfeita, tornava a vida pública uma constante para todos os cidadãos e a política, uma parte do cotidiano. Não era possível se manter totalmente alienado.
Na atualidade, ela nos força a pensar sobre nossa própria maneira de nos estruturar como sociedade – as distribuições de poder, a participação popular, a representação de todos os estratos e segmentos populacionais na tomada de decisão, a partilha dos direitos e deveres civis, a divisão dos recursos econômicos. Ao olhar para o exemplo grego, fica difícil não se perguntar se o que vivemos nos dias atuais, apesar de sustentar um nome homônimo, seria verdadeiramente uma democracia.
SOFISTAS × FILÓSOFOS
Na democracia ateniense, as capacidades da oratória e da retórica se valorizaram extremamente. Como o debate, o diálogo público e a discussão eram as maneiras de se portar no conselho, tornou-se comum que quem conseguisse se comunicar mais persuasivamente alcançasse, com facilidade maior, os objetivos almejados.
Quem era eloquente e, ainda assim, bastante proativo acabava, pela lábia, exercendo cargos políticos, mesmo sem precisar ser eleito – caso, inclusive, de Péricles, citado anteriormente. Por conta disso, alguns jovens atenienses endinheirados recorriam a um grupo de professores chamados de sofistas (algo como “sábios”) para que estes lhes ensinassem as manhas da fala em público.
Diferentemente dos filósofos (philo = amigo + sophia = saber), os sofistas não se preocupavam com o mundo supralunar, como Aristóteles chamaria o espaço sideral. Além disso, diferentemente dos pensadores originais (também conhecidos como pré-socráticos), eles não queriam saber da origem do mundo nem tentavam entender a physis (em uma tradução aproximada, tudo o que é a “natureza”). Estavam mais preocupados diretamente com as questões morais e políticas, isto é, os temas mais pragmáticos da vida pública. Em vez de olhar para o alto e divagar, miravam o pequeno, o próximo, aquilo em que podemos influir diretamente. Em vez de tentar explicar o mundo de uma vez só, como os pré-socráticos, esforçavam-se para dar conta, buscavam o melhor jeito de influir na vida de sua própria sociedade. Ou seja, em vez da abstração, pregava-se a materialidade.
A diferença entre pré-socráticos e sofistas é clara. Os pensadores originais (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1985) tentaram explicar a origem das coisas, buscando responder à dúvida sobre por que as coisas existem em vez de simplesmente não haver nada. Para isso, criaram explicações das causas de tudo, como ser a água o motivo inicial (Tales de Mileto), ou o ar (Anaxímenes), ou o fogo (Heráclito).
Os sofistas afirmavam que “o homem é a medida de todas as coisas”, como famosamente disse Protágoras de Abdera, um dos mais famosos sofistas. Tal frase – uma espécie de resumo da filosofia sofista – já demostra que o diálogo sofista era mais concreto. Há, ao menos, duas formas – uma quase antagônica à outra – de interpretá-la, e ambas reforçam esse aspecto mais “pé no chão”. Em primeiro lugar, mostra a tentativa de se criar um conjunto de regras pessoais (daí o homem ser a medida) para a tomada de decisões, para fazer escolhas, para, enfim, viver.
Seguindo esse raciocínio, essas normas seriam baseadas em uma visão mais próxima do humano, sem a necessidade da descoberta de um âmbito superior ou secreto, algo que fosse alcançável apenas por procedimentos complicadíssimos. Era uma proposta mais acessível, portanto, e que, além do caráter mais democrático, poderia ser ensinada. Isto é, a verdade na qual estamos apoiados não seria algo distante e imóvel no tempo e no espaço, como sugere, por exemplo, o filósofo pré-socrático Parmênides, mas poderia ser entendida a partir de uma leitura pessoal, imanente, “humana”.
Em contrapartida, tal afirmação reforça um pensamento baseado apenas no homem de forma individual, no sujeito em si – um pensamento que cai facilmente em um relativismo rasteiro, sem qualquer fundamento ou parâmetro mais fixo, para que não se ficasse à mercê das variações de humor de quem quer que fosse.
Os valores perdem a pretensão de universalidade, a ambição de atingir o absoluto se torna infundada, e a própria noção de totalidade parece improvável. O homem é a medida de todas as coisas, mas que homem? Se não haveria algo “por trás” do homem para lhe garantir qualquer estabilidade mais perene, se as verdades seriam tão passageiras assim, restaria se tornar cada vez mais hábil em usar as palavras – e convencer os demais que você é o “homem” que é a medida de todas as coisas. Disso resulta o sucesso dos sofistas!
Tal pensamento mais humanista – e, portanto, mais fragilizado do ponto de vista da universalização e da estabilidade – não era uma exclusividade dos sofistas. Três dos dramaturgos gregos do período de que temos mais material preservado atualmente – Ésquilo, Eurípides e Sófocles – também retratam essa relativização dos valores, essa tentativa de mostrar mais lados da verdade quando as questões morais são abordadas.
Aliás, não é de se espantar que o teatro, com seus diálogos e suas encenações públicas, tenha florescido na mesma época da democracia ateniense. A audácia de colocar em questão mesmo os fundamentos mais tradicionais da própria sociedade estava incluída, mesmo que inconscientemente, na proposta democrática. O teatro, com seus debates no meio da praça da cidade, com várias vozes que se inter-relacionavam, era a atmosfera perfeita para a época.
Foi aproveitando essa pretensa liberdade de expressão que Sócrates, segundo os escritos deixados por Platão – visto que ele mesmo nunca escreveu nenhuma linha –, destacou-se: ele queria tentar criar parâmetros ideais que não dependessem apenas do homem.
SÓCRATES: O IGNORANTE MAIS SÁBIO DOS HOMENS
Veterano da guerra contra Esparta, onde salvou a vida do futuro político Alcibíades (450 A.E.C.-404 A.E.C.) e de seu futuro discípulo e escritor Xenofonte (430 A.E.C.-355 A.E.C.), defensor da lei ateniense para julgar mesmo generais antipopulares, corajoso para enfrentar tiranos que tentaram sequestrar adversários políticos, Sócrates não era uma figura exatamente desconhecida em Atenas, mesmo antes de se tornar mestre de uma geração. Entretanto, apesar das glórias acumuladas, ele não considerava nenhum desses acontecimentos como o mais importante de sua vida.
Na Apologia de Sócrates, o filósofo-mor conta que foi outro o fato que mais marcou sua vida: a declaração do oráculo do deus Apolo, localizado na famosa cidade de Delfos, bem no centro da Grécia, de que ele, Sócrates, seria o homem mais sábio de todos.
Vivendo junto a generais vitoriosos, políticos cativantes, criativos dramaturgos,Sócrates se perguntava por que exatamente ele – humilde filho de uma parteira com um escultor – seria o mais sábio entre todos. A única resposta que conseguiu encontrar foi o fato de ele ser o único entre todos a duvidar das próprias certezas.
Essa sua ignorância era o sinal de sua sabedoria, porque fazia com que ele, ao menos, soubesse de algo: de que nada sabia. Daí vem a famosa frase: “Só sei que nada sei” (que não foi dita exatamente assim, mas o sentido é esse mesmo). A partir desse momento, Sócrates entendeu que sua tarefa era revelar a seus concidadãos a ignorância de todos. Começava, assim, sua missão. O “mais sábio entre todos os homens” queria fazer com que as pessoas se conhecessem, se encontrassem, fugissem de pseudoverdades, não acreditassem em falsas ideias ou meras opiniões. O importante era se descobrir, mergulhar dentro de si, racionalmente, e perceber o que era a verdade.
Ao contrário dos sofistas, Sócrates não cobrava por seus ensinamentos, pois se imaginava em uma tarefa com inspiração divina, uma vez que teria sido iniciada pelo oráculo de Apolo. Isso causou diversos problemas de relacionamento em Atenas para Sócrates.
Se os sofistas mantinham, de certo modo, o status quo (no estado em que encontravam antes), dado que só ensinavam quem já tinha dinheiro, o filósofo ateniense chegou a conversar sobre Matemática até mesmo com um escravo. A atitude audaciosa, ainda que não abertamente intencional, não deixava de ser um jeito de demonstrar certo desprezo pelas regras da democracia ateniense, que mantinha os homens não livres como o ponto mais baixo que se poderia descer na escala social.
APOLOGIA DE SÓCRATES
Obra do filósofo ateniense Platão em que são narrados o julgamento e a condenação de Sócrates, de quem ele era discípulo. A Apologia, assim como os demais escritos de Platão, apresenta a forma de diálogo, o que evidencia a força do discurso oral na sociedade ateniense dos séculos V e IV a.C.
ATENÇÃO
É importante lembrar que quando falamos de “homens não livres” (ou escravos), nesse contexto da Antiguidade, e especialmente na cidade-Estado de Atenas, não estamos nos referindo ao mesmo tipo de escravidão ocorrida, no continente americano, por exemplo, durante o período colonial (séc. XVI-XIX). Na Antiguidade, a escravidão acontecia, geralmente, sob duas condições: ou se era um prisioneiro de guerra, ou alguém que estava endividado. Em ambos os casos, o escravo exercia a mesma função/profissão que tinha em sua nação de origem (ou antes do endividamento). Condição inconcebível, como sabemos, no Colonialismo, quando o escravo era considerado “ser humano de espécie inferior” em relação a seu dono.
O confronto entre a filosofia socrática e a retórica dos sofistas era uma constante. O diálogo platônico Górgias (famoso sofista) é um exemplo disso. Na obra, contada – ressalte-se – do ponto de vista socrático, há o choque entre a integridade moral, que seria uma característica dos filósofos, e a busca por poder político, imputações feitas aos sofistas.
Sócrates acusa os sofistas de serem amorais, sem se importar com as necessidades de buscar o que seria o certo e evitar o errado, sem se interessar em distinguir o que é nobre do que é vergonhoso.
Os sofistas, por sua vez, dizem que a filosofia seria uma retórica inferior, um brinquedo lógico. Na melhor das hipóteses, um jeito de educar os jovens, jamais uma ferramenta decente para os adultos.
Sócrates rebatia dizendo que a retórica, técnica oratória ensinada pelos sofistas, era, no máximo, um truque para agradar as pessoas, e que apenas a filosofia produzia uma verdadeira tékhnē que busca a bondade nas almas. Seu objetivo seria, por fim, produzir bons cidadãos.
O embate entre as duas escolas de pensamento no diálogo é tamanho que sobra para a democracia ateniense, vista ali como impossível de ser boa. Mas não para por aí!
A política, continua o incansável Sócrates, deveria ser confundida com a filosofia e produzir bons cidadãos, que “conhecem a si mesmos”, como estava escrito no oráculo de Delfos e como o filósofo repetia sempre. Aqueles que não são comedidos, não são racionais, não se entendem, são incapazes de ter amizades e, assim, de viver em comunidade.
Para responder à pergunta levantada no início deste módulo, Sócrates, e não os retóricos sofistas, poderia e deveria ser visto como um bom, belo e verdadeiro exemplo de político, porque ele era um filósofo.
A PRODUÇÃO POLÍTICO-FILOSÓFICA DE PLATÃO
Apesar de viver no auge do período democrático da cidade de Atenas, na Antiguidade, Platão não estava convencido de que essa fosse a melhor forma de governo. Muito de sua má vontade se justificava exatamente porque seu mestre Sócrates – “o homem mais sábio de todos” – tinha sido condenado à morte por essa mesma democracia.
Todos os seus escritos foram produzidos após a morte de seu professor e depois de o filósofo também tentar uma carreira política. Portanto, esses escritos carregaram, de um jeito ou de outro, certo posicionamento político.
A partir dessa sua formação e observando de perto toda a sua literatura, até seria possível dizer que toda – ou, ao menos, grande parte – de sua produção filosófica pode ser, no fundo, lida como um pensamento político em constante amadurecimento. Isso, claro, não no sentido mais simples e amplo do termo, de tratar diretamente de questões organizacionais do Estado, mas conforme citado no módulo 1: a política como uma preocupação também ética com a criação de um homem que estivesse interessado em ser correto, não corrompido pelas idiossincrasias (peculiaridades) dos tempos, ou, nos termos platônicos, um homem livre que buscasse as formulações eternas sobre o belo, o verdadeiro e o bem.
ATUAÇÃO POLÍTICA DE PLATÃO
Por duas vezes Platão foi convidado a ir à Siracusa, colônia grega na ilha da Sicília, para atuar como conselheiro dos tiranos que governavam a cidade. Primeiro, durante o governo de Dionísio I, de cujo cunhado, Dion, Platão havia se tornado amigo, e, a seguir, quando Siracusa passou às mãos de Dionísio II. No entanto, em ambas as tentativas, Platão deixou a Sicília sem conseguir instituir nenhuma reforma política significativa.
A CONSTRUÇÃO DA CIDADE E SEUS HABITANTES
A tarefa inicial do diálogo mais famoso de Platão é criar uma polis perfeita que sirva como ideal ou paradigma para todas as cidades. O fato de representar “apenas” um modelo é um dos pontos mais importantes na leitura e interpretação da obra A república, pois protege Sócrates (e Platão) de algumas – mas não todas – controvérsias que a envolvem.
A proposta socrática é formular no logos, ou seja, na teoria, no discurso, em abstrato, essa cidade. Isso faz com que certas propostas mais extravagantes do diálogo não precisem ser vistas como necessárias ou indispensáveis. Nem o próprio Sócrates, por exemplo, defendia com muita veemência certas sugestões, como o fim do formato da família tradicional (com pai, mãe e filhos, apenas), a eugenia (o controle da procriação para atingir uma raça “superior”) ou mesmo ideias bem mais aceitáveis para os dias atuais, como a participação das mulheres na esfera pública.
O ponto de partida da criação da cidade perfeita é a defesa da especialização. Sócrates acreditava que especialistas em apenas uma habilidade ou um ofício são muito mais produtivos nos seus trabalhos que um não especialista ou alguém que atue em mais de uma frente. Tal recomendação formou a cama argumentativa de Sócrates para a defesa da justiça individual: alguém que não está dividido, alguém em equilíbrio entre seus diferentes impulsos, em uma espécie de harmonia psíquica.
Voltando ao tema dos pontos controversos, há um trecho famoso na obra A república mencionado com frequência pelos comentadores. Nele, diferentemente do que seria de se esperar do senso comum na atualidade, Sócrates fez uma censura a obras de arte e a artistas. O argumento é de que não são “necessários”, ao contrário: criam, em princípio, “falsidades”, reproduções, ficções, que não são, na maioria dos casos, ficções “boas”, mas impetuosas, que desequilibram quem asescuta ou as vê.
JUSTIÇA INDIVIDUAL
Platão acreditava que, por analogia, há traços de referência entre o corpo político de uma cidade e o corpo humano, com todas as suas próprias contradições. Ao falar sobre justiça individual, ele criou a argumentação para se abordar a noção de justiça em geral. E o inverso é igualmente verdadeiro: a construção da cidade ideal é, também, uma maneira de tentar analisar a justiça na própria alma. Esse é um mecanismo que sempre utiliza ao longo de toda a obra A república, com maior ou menor assiduidade.
Em sua cidade bela, justa e verdadeira, é preciso garantir a maior produtividade dos indivíduos, sem desvio de atenção para coisas “supérfluas”, como a arte narrativa, teatral ou pictórica que mostra a história de confrontos raivosos, traições, vinganças, sentimentos que atrapalham a harmonia e o equilíbrio. Nesse caso, sobra para os poetas, rapsodos, atores, coristas, empresários e artífices, sobretudo os que produzem “adereços femininos” – em suma, toda essa laia artística. Estes, ele quer fora da cidade ideal.
RAPSODOS
Na Grécia Antiga, recitador profissional de poesias épicas.
Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
ARTÍFICES
Trabalhador, operário, artesão que produz algum artefato ou que professa alguma das artes.
Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
Em vez deles, para povoar tal cidade, Sócrates sugere uma série de profissões mais “úteis” para o bem de todos e a felicidade geral. E a mais útil de todas, de acordo com o filósofo, é a do guardião, porque, além de proteger a cidade de ataques externos, é dessa classe que sai, também, o legislador, que poderá produzir as melhores leis do povoado. O problema se resume, então, a como se forma essa classe social.
QUE TIPO DE EDUCAÇÃO AS CRIANÇAS PRECISAM RECEBER PARA SE TORNAREM BONS GUARDIÕES DA CIDADE IDEAL?
Sócrates reflete que não cabe aplicar na infância Homero e Hesíodo, como era o costume – esses poetas seriam nocivos para a proposta platônica. O filósofo explica que, quando pequenos, somos facilmente influenciados. Tais literaturas, com seus mitos e suas histórias amorais, não podem ser as mais apropriadas como forma pedagógica, exatamente pela intemperança. Um guardião precisa aprender a evitar o ódio e as explosões de ira, tão comuns nesses poemas clássicos. Mesmo que tais obras de arte sejam ou fossem a “verdade”, os guardiões precisam ser poupados dessas violências para a formação de seu caráter.
Em vez disso, Sócrates sugere como pedagogia o treinamento físico e o ensino da Matemática e da música – arte que ele salva explicitamente. O “homem mais sábio de todos” defende a música “porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição” (PLATÃO, 2001) – repetindo um argumento também presente no diálogo Protágoras.
Sócrates até aceita que sejam contadas certas ficções, algo como mentiras nobres, na criação das crianças que serão os futuros guardiões. Ele propõe, por exemplo, inventar que os habitantes da cidade ideal são autóctones, isto é – na tradução da palavra grega que ele quer usar –, nasceram literalmente de dentro da terra, sem mãe nem pai humanos. Assim, todos os habitantes de tal cidade seriam irmãos. A sociedade inteira, por consequência, estaria unida em uma única família, o que nos leva a entender onde se encontra sua proposta de abolir a família nuclear – essa em que haveria uma mãe e um pai para cada pequeno grupo social formado com os filhos.
Continuando dentro dessa nobre mentira, as diferentes classes corresponderiam apenas aos distintos tipos de metal de que cada um dos estratos era formado. Por isso que aqueles feitos de ferro ou bronze, aptos a ser fazendeiros ou artesãos, não poderiam ser guardiões. Todos, contudo, nasceriam da mesma terra. O ponto principal, portanto, fica inalterado: criar um profundo sentimento de pertencimento em todos os habitantes dessa cidade à terra em que ou, segundo essa “versão”, de que nasceram.
A justiça, nessa localidade, aparece como uma consequência desse cuidado mútuo. Todas as pessoas se percebem como iguais e pertencendo ao mesmo lugar. Há um sentimento de harmonia social (a analogia social e individual aparece aqui outra vez). A justificativa para se usar ficção nesse trecho, e não anteriormente, quando expulsam os poetas da cidade, fica para o fato de que Sócrates não acredita que possa haver tal harmonia social sem que as pessoas verdadeiramente creiam em seu íntimo que essa é a ordem natural das coisas. Sem moldar as almas, diria Sócrates, não se constrói ou se muda uma sociedade.
A UNIDADE, O CONSERVADORISMO E O REI FILÓSOFO
Desde que Platão colocou seu mestre Sócrates para imaginar uma cidade utópica, diversos autores se incumbiram da tarefa de conceber uma organização social que fosse perfeita. A unanimidade também atingiu a recepção crítica. Intérpretes de espectros políticos opostos e de diferentes temporalidades, a começar por Aristóteles, aluno de Platão, enxergaram na Politeia platônica um texto conservador. Alguns chegam a afirmar que ele fez uma obra em que defende uma espécie de ideologia totalitária: aos guardiões era reservada apenas uma preocupação com o bem da sociedade como um todo, pouco importando suas opiniões pessoais.
POLITEIA
Termo grego com múltiplas possibilidades de leitura, que faz referência à constituição, ao sistema político ou, ainda, ao ordenamento da estrutura política.
Era o título original do clássico platônico, rebatizado com o termo latino “República” a partir da tentativa do pensador romano Cícero (106 A.E.C.-43 A.E.C.) de emular Platão, escrevendo o livro De re publica. Mas o grande Cícero não foi o único a querer copiar Platão. É o caso, por exemplo, de Utopia, do inglês Thomas Morus (1478-1535), que usa o termo grego que quer dizer “não lugar” para reforçar essa proposta de imaginação de outra cidade.
A relevância era dada para a felicidade da cidade inteira, não de uma classe em especial, talvez do indivíduo. Sócrates ainda tenta contra-argumentar: dentro de uma estrutura de pensamento como a proposta pela obra A república, os guardiões certamente seriam felizes.
Se não bastasse essa falta de liberdade, as técnicas de especialização dos cidadãos e, principalmente, a proposta eugênica para a produção de uma raça “superior” arrancam calafrios pela desconfortável semelhança com as propostas nazifascistas, sem falar na propaganda política como modo de lavagem cerebral de seus cidadãos. E o que dizer de toda a relação misógina, que era o padrão do período em que viveu Sócrates?
Mesmo que nas obras de alguns filósofos – como em A república, de Platão – haja uma explícita proposta de equiparação de atuação de homens e mulheres na vida pública, não podemos esquecer que a vida social de determinada época não é espelho de sua literatura.
A importância da obra platônica para o pensamento político não pode ser, de maneira nenhuma, descartável, principalmente porque o filósofo faz uma sugestão que coloca em questão todo o pensamento de teoria política desde aquela época até os dias atuais.
Criticando Atenas por ser uma sociedade “democrática” – e que, apesar de todas as ressalvas já levantadas, tinha muito mais participação popular que outras cidades da época –, Sócrates propõe outra forma de organizar os agrupamentos populacionais. Em vez do poder de muitos (democracia), portanto, de gente pouco especializada – e que podia condenar inocentes, como no caso socrático –, ou de poucos e ricos (oligarquia); ou em vez de o poder ficar na mão de apenas uma única pessoa – e essa pessoa querer todo o poder para si (tirania); o poder deveria ser entregue para uma única pessoa, sim, mas alguém extremamente especializado, como acontecia com todas as coisas em “sua” cidade.
E QUE TIPO DE PESSOA SERIA A MAIS HABILITADA PARA REINAR POR E PARA TODOS, DE MANEIRA DEMOCRÁTICA (SE PODEMOS CHAMAR ASSIM), POR CONHECER OS VALORES DE BOM, JUSTO E VERDADEIRO?
Sim, ele mesmo: o filósofo! Mas como se transformar em um filósofo? (Pois, sim, erapossível aprender a ser um.)
Segundo Platão, era necessária uma compreensão racional da eterna realidade da verdade, que poderia ser incentivada por uma educação especial em todas as ciências matemáticas. É nesse momento que aparece a mais famosa alegoria da história da filosofia.
O MITO DA CAVERNA
No capítulo VII de A república, Sócrates narra para Glauco uma história:
GLAUCO
Irmão mais velho de Platão e um de seus principais interlocutores na obra A república.
HOMENS ACORRENTADOS DENTRO DE UMA CAVERNA, COM APENAS UMA SAÍDA, RECEBENDO LUZ INDIRETAMENTE DO SOL. APRISIONADOS, OS HOMENS SÓ CONSEGUEM ENXERGAR AS SOMBRAS PROJETADAS NA PAREDE DO QUE ACONTECE ATRÁS DELES. UM DELES, CONTUDO, SE DESVENCILHA DOS GRILHÕES E SAI DA GRUTA EM DIREÇÃO AO SOL. NUM PRIMEIRO MOMENTO, ELE TEM DIFICULDADE DE ENXERGAR, MAS, AOS POUCOS, VAI SE ACOSTUMANDO ATÉ QUE VÊ AS COISAS COMO ELAS SÃO E, DEPOIS, O PRÓPRIO SOL. IMPRESSIONADO COM A VISÃO DAS COISAS VERDADEIRAS, ELE DECIDE VOLTAR E CONTAR PARA OS DEMAIS PRISIONEIROS A VERDADE.
Assim, Sócrates narra, em um dos momentos mais metafísicos e metafóricos da obra, a ascensão do homem comum rumo à verdade eterna e, consequentemente, sua transformação em um filósofo.
A condição moral e intelectual da humanidade estaria representada pela condição ultrajante da caverna. Ao conseguir escapar dessa condição para enxergar o mundo como ele é, sem qualquer impedimento, é que seria possível ver as verdades eternas. O sol representaria o ideal de bem – principal critério para se avaliar todas as demais coisas.
É a partir dessa passagem que Sócrates defende que a única chance de se construir uma sociedade ideal seria fazer com que ela fosse governada por um filósofo ou tornar seus governantes, por meio de um programa educacional apropriado, filósofos. Apenas os filósofos escapariam da degradação moral das coisas corriqueiras.
Mesmo que eles não queiram, a princípio, assumir o cargo, posto que teriam de abdicar de seus outros afazeres, vivendo nessa cidade ideal, eles acabariam por assumir tal função por uma questão de justiça, para desempenhar sua função específica e apropriada nessa sociedade “perfeita”.
Observe a explícita intenção de Platão de reforçar a importância de uma ética interna forte para a produção de um governante ideal, que, por consequência, produziria uma cidade politicamente estável, unida e harmônica.
Mais que um processo analógico (de comparação), o que Platão está fazendo é uma relação de interligação e interdependência, até mesmo de interface e igualdade, entre a esfera privada e a pública. Por isso, no fim do livro, Sócrates insiste em dizer que a harmonia psíquica, que, como vimos, é uma das formas de felicidade para o filósofo, é a politeia da alma, ou, em outros termos, o ordenamento político do espírito.
A cidade ideal não necessariamente é possível – talvez nem se queira que seja. Porém, como diz Sócrates, ela pode ser “um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e, contemplando-a, fundar uma para si mesmo” (PLATÃO, 2001).
POLÍTICO
Segundo a datação mais comumente utilizada, A república é uma das primeiras obras escritas por Platão, em que o protagonismo de Sócrates, tanto como personagem quanto como influência sobre o pensamento platônico, aparece mais realçado.
Em outro escrito, com Sócrates como personagem menor (em ambos os sentidos mencionados anteriormente), podemos ver outra vez como Platão encara o problema da melhor maneira de governar uma sociedade – dessa vez, com uma tentativa mais forte de conciliar os aprendizados práticos com suas idealizações teóricas. O nome da obra, escrita, de acordo com alguns estudiosos, após sua segunda passagem pela Sicília, é, simplesmente, Político.
O título se consolidou apesar de alguns intérpretes verem uma diferença na obra entre o político, em si mesmo, e o estadista. Categorizar alguém como político seria uma maneira de chamá-lo de sofista – isto é, em uma leitura mais frouxa, algo como falso, dissimulado, hipócrita. Pode-se perceber que as disputas entre filósofos e sofistas eram violentas.
HIPÓCRITA
Outra palavra de origem grega, mas que tinha outros sentidos, como o de “ator”.
Aliás, tanto Político quanto Sofista – outros dos diálogos platônicos – se passam no mesmo “dia”, com os mesmos personagens, como se um (Político) fosse a continuação do outro (Sofista). Há informações de que Platão teria intenção de escrever um terceiro diálogo para fechar essa trilogia, que se chamaria, não por acaso, Filósofo, e retornaria o protagonismo de Sócrates, mas tal obra foi abandonada.
Segundo a anedota, popularizada por Cícero, o governante, para demonstrar como era aflitiva a situação daqueles que detêm o poder, convidou Dâmocles a tomar o lugar principal em um banquete, mas mandou pendurar sobre sua cabeça uma espada, sustentada por um fio de crina de cavalo.
O certo é que, após as experiências frustradas de tentar transformar o tirano Dionísio de Siracusa em um rei filósofo, o ideal máximo platônico de governante, tendo ficado, inclusive, retido por Dionísio, na Sicília, e precisado fugir, Platão acreditava que era importante dar atenção às dificuldades de governar que apareciam no cotidiano. O mundo não existe apenas na abstração; é necessário encarar a realidade, com suas contradições e seus vetores de forças, nem sempre “justos” ou “verdadeiros”.
Por isso, uma das principais sugestões da obra é a tecedura (ato de tecer algo): um estadista é aquele que consegue não apenas saber o momento apropriado (em grego, a palavra usada é kairós) de aplicar seus conhecimentos específicos, mas também aquele com a capacidade de entremear os diferentes elementos da sociedade para que ela se torne única.
Em Político, o Estrangeiro insiste em explicar a um jovem homônimo de Sócrates (os dois personagens principais do texto) toda a tékhnē da tecelagem para servir de analogia à política. A capacidade de entrelaçar as leis e os cuidados com todos os aspectos da cidade seria o que o Estrangeiro chamaria de política ou a capacidade do estadista.
O diálogo prossegue, e o Estrangeiro, que, nesse texto, faz o papel que, em outras obras, cabe ao experiente Sócrates – isto é, desenvolver o raciocínio filosófico –, explica que esse político-estadista modelo seria um personagem capaz de providenciar respostas infalíveis para todas as perguntas sobre a legislação dessa sociedade. Mas ele seria ainda mais sábio que qualquer conjunto de leis, adaptando-se para as questões cotidianas, que não podem ser previstas pelas letras frias.
Apesar de a preocupação com a realidade ser claramente maior nesse escrito, tal político é construído, mais uma vez, como um paradigma, como é comum nos escritos platônicos, exatamente como foi o rei filósofo de A república.
Segundo Platão, devemos nos aproximar ao máximo desse ideal, mas sabendo que, provavelmente, nunca o atingiremos. Ele teria experiência em comandar, obtida por meio dos estudos, mas seria o mais difícil e o mais importante tipo de conhecimento a se adquirir.
Novamente crítico à tentativa de distribuir o poder de comandar a cidade-Estado entre mais de uma pessoa, com receio de colocar pessoas pouco experientes ou com rasa capacidade de guiar a sociedade, Platão, por meio do Estrangeiro, sugere que esse político ideal possa até mesmo ignorar as leis principalmente porque se mostram pouco flexíveis, o que seria um problema insolúvel em um mundo feito mais de fatos aleatórios que de qualquer previsão. Se houvesse alguém capaz de abarcar tamanho conhecimento exigido sobre como governar uma nação, como pede o Estrangeiro, seria um desperdício deixá-lo à mercê de qualquer constituição.
Na ausência de um político ideal como esse (ou de um rei filósofo), Platão sugere que fiquemos mesmo com a legislação, de maneira a conservar o ensinamento deixado no passado, uma vez que as leis são “imitações da verdade executadas o mais perfeitamente possível sob a inspiração daqueles que sabem” (PLATÃO, 1930), como diz o Estrangeiro.
ESTRANGEIRO
Personagem sem nome que provém de Eleia – mesma cidade dos pensadorespré-socráticos Parmênides e Zenão.
ARISTÓTELES × PLATÃO
No início do século XVI, quando pintou a Escola de Atenas, Rafael Sanzio (1483-1520) escolheu para colocar bem no centro do afresco os dois principais filósofos que o Renascimento estava ajudando a consolidar como os mais importantes da Antiguidade. Nenhum dos dois é Sócrates, que, no painel de quase sessenta figuras históricas, aparece apenas em um canto, conversando com seus alunos, como era seu costume.
Na área com mais destaque da pintura de mais de 5 metros de altura por quase 8 metros de largura, que fica atualmente no Vaticano, perto da Capela Sistina, estão Platão e Aristóteles. Caracterizado como o muso da época Leonardo da Vinci, Platão segura um tomo de sua obra Timeo, que aprofunda alguns dos temas levantados por A república e vai além: em linhas gerais, trata de uma explicação cosmológica da origem do mundo. Para mostrar onde estão os fundamentos em que ele se baseia, “Platão da Vinci” aponta para o céu, deixando explícito de onde vinha sua noção de bem.
A seu lado, Aristóteles apresenta os traços do artista toscano, mestre da perspectiva Bastiano da Sangallo, cujo apelido era exatamente Aristotile (como se escreve em italiano), por conta de seu ar grave e meditativo, que lembraria o do estagirita. “Dizemos que as coisas sérias são melhores do que as risíveis”, teria dito, certa vez, o filósofo.
Aristóteles segura com a mão esquerda sua Ética a Nicômaco e está com a direita espalmada, estendida à frente, como se quisesse deixar clara a sua oposição ao colega da filosofia. Opostamente ao pensamento associado a Platão, Aristóteles sugeriria que o mundo a se preocupar era este, aqui e agora. Em vez de tentar buscar alguma explicação no céu, temos de nos importar em como viver – e bem – nas cidades em que nascemos, crescemos, criamos laços e vamos morrer, não com as idealizadas.
Apesar da grande bagagem platônica que Aristóteles carregou ao longo da vida, por ter estudado cerca de vinte anos com o mestre Platão na famosa Academia de Atenas fundada por ele, o estagirita tentou ao longo de sua vasta produção intelectual distanciar-se do professor.
A obra de Aristóteles, com quase duas mil páginas que chegaram até nós, pode ser considerada um misto de continuação e variação dos textos platônicos: continuação por revisitar os temas levantados pelo antecessor, e variação por tentar dar um caráter menos relacionado aos idealismos platônicos e mais aos sentidos, à realidade.
O resultado dessa relação de proximidade e afastamento é o tamanho de sua influência sobre o pensamento ocidental: a sombra aristotélica só pode ser mesmo comparada à sombra de Platão. Em alguns períodos, como a Idade Média, foi até maior, a ponto de ser conhecido na época como simplesmente O filósofo.
DIVERSIDADE DA PRODUÇÃO INTELECTUAL ARISTOTÉLICA
A produção de Aristóteles abarcou os mais variados assuntos: da lógica à retórica, da física à metafísica, incluindo nesse meio a ética, a política, a estética e muitos outros temas.
OBRA DE ARISTÓTELES
A quase totalidade dos escritos clássicos da Grécia ou de Roma foi completamente perdida. As cópias possuem séculos de distância entre os originais. As 49 cópias das obras de Aristóteles possuem uma distância de 1.400 anos; as únicas 7 cópias de Platão, 1.200 anos; as 10 cópias de Guerra Gália, de Júlio César (Roma), 1.000 anos. Curiosa exceção se faz com a Ilíada, de Homero, com mais de 600 cópias e 500 anos de distância; e os livros do chamado Novo Testamento, com mais de 5.600 cópias no idioma original, e a maioria com apenas 30 anos de distância.
A ÉTICA DA FELICIDADE E DA FILOSOFIA
Uma das maneiras de continuar a obra platônica foi pensar na mistura que existe entre ética e política. Tal entrelaçamento já aparecia nas obras de Platão, embora não tenha sido exatamente o autor de A república a criar essa aproximação.
O grego comum daquela época achava que ambos os aspectos (o âmbito do que é certo e do que é errado, e o âmbito da reflexão sobre a melhor maneira de se governar as cidades-Estados) deveriam estar bem entrelaçados – por mais que essa sobreposição possa soar algo estranho a certos ouvidos da atualidade.
Aristóteles escreveu livros para os mais variados assuntos específicos possíveis. Pense em um tema. Provavelmente, ele já o abordou, ao menos de passagem. Em geral, a cada obra, ele escolhia um tema em separado (biologia, zoologia, antropologia, psicologia etc.) e o explorava até o fim.
Em Ética a Nicômaco, entretanto, texto que foi pensado para ser uma espécie de primeiro de dois volumes, ele aborda em sua completude a “filosofia sobre os assuntos humanos” (ARISTÓTELES, 2017). O segundo tomo assume exatamente a estrutura de um novo livro, chamado de A política (ARISTÓTELES, 2011), onde dá continuidade àquela mesma reflexão. Ambos os livros se mencionam e, certamente, complementam-se.
Não se sabe ao certo quando Aristóteles escreveu sua mais famosa ética. Ele também compôs uma Ética a Eudemo, mas muito menos impactante. Há, ainda, outras obras que abordam o tema, supostamente escritas por Aristóteles, mas suas autorias são contestadas.
Também não se tem certeza sobre quem seria o Nicômaco a quem a ética é “dedicada”. Pode ser tanto o pai de Aristóteles – médico na corte da Macedônia que muito o influenciou em sua formação – quanto o filho de Aristóteles – que também tinha o mesmo nome do avô e, especula-se, teria sido o responsável por editar essa obra.
O que é certo é o tema da obra: mais do que tratar de deveres e obrigações, a ética aristotélica quer fazer com que nós encontremos nada mais, nada menos, que a felicidade. Em grego, a palavra é eudaimonia (que traduzimos por felicidade) e quer dizer algo como “ter um bom daimon”, que, por sua vez, é o nome grego com uma tradição filosófica forte, citada de Platão a Nietzsche – antípodas (contrários) do pensamento ocidental.
A melhor forma de entender o vocábulo é, talvez, pensar naqueles seres que aparecem na mitologia árabe como “gênios” e saem das lâmpadas nas histórias de As mil e uma noites ou nos desenhos da Disney. É uma versão aparentada do que nós chamaríamos de “anjo da guarda” ou “santo” particular – seres sobrenaturais que acompanham cada pessoa a todo momento.
Mas a felicidade, para Aristóteles, não tem nada de sobrenatural nem de banal. Ele tenta construir uma argumentação e uma profunda reflexão para tentar escapar das pegadinhas de confundir felicidade com sentimentos mais imaturos ou com prazeres momentâneos, ou, simplesmente, com a mera satisfação de um desejo. Felicidade, para ele, é algo que demonstra a excelência específica humana, sua virtude (areté, em grego).
FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900)
Filósofo alemão e crítico da cultura ocidental. Seu trabalho hermenêutico visa mostrar como a racionalidade e a moralidade ocidentais são sempre o preconceito, o erro ou a mera sublimação de impulsos vitais.
Fonte: Biografías y Vidas.
De acordo com Aristóteles, para ser feliz – esse tipo de felicidade virtuosa –, é necessário viver bem como um ser humano. E, como sempre estamos dentro de algum tipo de comunidade, vivendo gregariamente, o bem viver tem sempre relação com a organização desse agrupamento de pessoas, o que reforça o argumento de que ética e política são duas partes da mesma preocupação.
Mas, para Aristóteles, virtude não é um termo vinculado a uma aleatoriedade, algo com o que nascemos, bastando sermos sortudos. É um traço de nossa personalidade, um meio pelo qual conseguimos atingir algo, no sentido que ficou preservado na expressão “em virtude de”. Pode-se dizer que somos felizes em virtude de sabermos utilizar, ao máximo possível, as potencialidades que são características nossas. Ou seja, seremos felizes se conseguirmos alcançar o que é o “bem” humano. Esse seria o objetivo de toda vida humana – e, se não houvesse esse objetivo, a vida seria vazia e sem sentido.
Todavia, dizer que ser feliz é explorar ao máximo nossas virtudes ou alcançar o que é o bem humano não explica muito a questão.
PARA COMEÇAR, O QUE SERIA O BEM HUMANO?
Aristótelespercebe que há um problema nesse âmbito e sabe que a solução dada por Platão no livro VI de A república – que lida exatamente com a questão do bem, dizendo que é o fundamento máximo que existe – é muito abstrata para ele. O filósofo se põe, portanto, a tentar desvendá-lo.
A começar, ele explica que, muitas vezes, o “bem” é um problema social: é determinado pela comunidade em que você está inserido. O que é bom para um grupo pode ser visto como ruim para outro, e vice-versa. Esse, inclusive, é mais um argumento para a interconexão entre ética e política, mas ainda não soluciona nossa questão.
Para ajudar a explicar o que seria esse bem, que, por sua vez, seria a finalidade da vida, Aristóteles passa uma boa parte do livro investigando as virtudes humanas por meio de suas atividades características, como coragem, generosidade, justiça etc. Ele repara em quais virtudes o bem é associado e percebe que são as pessoas corajosas, generosas e justas aquelas chamadas de boas.
Contudo, ficamos ainda na dúvida sobre o que é exatamente o bem. O que dá para suspeitar é que haveria uma associação virtuosa entre algo bem vivido (ou feito) e a finalidade da vida. “Na medicina, é a saúde; na estratégia, a vitória; na arquitetura, uma casa”, escreve Aristóteles, tentando explicar esse objetivo final ou teleológico, como se diz em filosofês. Talvez um exemplo (que não é dado por Aristóteles) funcione para clarear as ideias.
O objetivo de “vida” de um martelo não é ter sido construído para, digamos, bater um prego – isso qualquer objeto com alguma solidez conseguiria, mal ou bem –, mas ser capaz de bater esse prego, salvo falhas de quem o empunha, bem. Isso significa que, além de ser capaz de bater um prego, como qualquer pedra seria, tem de empurrar o prego para dentro da parede de maneira a, por exemplo, não destruir a superfície em que o prego é inserido ou com o menor esforço possível de quem está martelando, ou, ainda, impedir que não se martele o próprio dedo.
Ao fim do primeiro tomo (são dez ao todo), Aristóteles (2017) sugere, então, que haveria três tipos de vidas que poderiam ser consideradas bem vividas: uma vida de prazeres, uma vida política e uma vida devotada à contemplação e ao estudo filosófico.
No décimo tomo, após tratar de justiça, amizade e outros temas, ele descarta uma vida só de prazeres (ao menos alguns deles), considerando que deveríamos nos preocupar com assuntos mais “importantes”, segundo seu ponto de vista (ARISTÓTELES, 2017).
É só um pouco antes de terminar a obra que Aristóteles conclui que a razão é a “a melhor coisa que existe em nós” e, portanto, nada mais justo que considerá-la o caminho para saber o “fim” do homem, o que traria mais felicidade a ele. Além disso, a razão é completamente autossuficiente, não depende de nada nem de ninguém, é pura, não poder ser contaminada e tem uma durabilidade razoavelmente independente de fatores externos: com a devida tranquilidade, pode se entreter com os próprios pensamentos em muitos lugares e muitas situações (ARISTÓTELES, 2017).
Por conta disso, Aristóteles (2017) arremata, bem ao estilo do homem que foi chamado de O filósofo pelos medievais: o objetivo último da vida humana, portanto, sua felicidade, é a atividade intelectual mesma, porque a “sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais aprazível das atividades virtuosas”.
AS DIFERENTES CONSTITUIÇÕES
Segundo os comentadores de Aristóteles, a Ética para Nicômaco teria sido escrita para legisladores e estadistas. Portanto, não deveria espantar a preocupação em terminar a obra com a sugestão de se investigar os diferentes sistemas políticos que, porventura, fossem conhecidos à época para se saber qual seria a melhor forma de governar um povo. E é possível já dizer ainda na Ética: assim como Platão, Aristóteles também era contrário à democracia, ao menos da maneira como era feita por Atenas.
Além de achar que a democracia era o mau governo da maioria, que beneficiaria apenas alguns, em vez de focar em todos os cidadãos, em um bem comum, Aristóteles também tinha uma motivação pessoal para se colocar contrariamente ao sistema ateniense. Assim como Sócrates, antes dele, o estagirita foi igualmente perseguido na mais famosa cidade-Estado grega, em um momento em que os atenienses estavam se revoltando contra todo macedônio e, principalmente, contra qualquer pessoa relacionada a Alexandre Magno. Aristóteles não somente tinha crescido na corte da Macedônia (onde seu pai atuou como médico), mas também tinha sido um professor de Alexandre.
Diferentemente de seu “avô” intelectual, que, condenado à morte, aceitou a pena e tomou cicuta oficialmente, Aristóteles fugiu da cidade, com o argumento de que não iria “permitir que os atenienses pecassem duas vezes contra a filosofia”.
Ainda de acordo com alguns estudiosos da obra aristotélica, o filósofo teria escrito um pequeno livro sobre a história política de Atenas, ao qual deu o nome de A constituição dos atenienses. A autoria do livro é controversa por diversas razões – por exemplo, ele se mostrar mais favorável à democracia que em outros escritos. O que se pode considerar como mais provável é que nesse texto, como em outros aristotélicos, o estagirita teria recebido ajuda de alunos de seu Liceu. O livro consiste em um exame de 158 constituições diferentes da cidade.
Além da abordagem teórica das diferentes formas de governo do passado, há, também, na segunda metade do livro, uma tentativa de interpretação de como era o governo ateniense no período em que Aristóteles vivia lá. Ele fala desde como era feito o recenseamento até como eram escolhidos os magistrados. Trata-se de um trabalho historiográfico exaustivo e importantíssimo para entender como funcionava o primeiro sistema de governo no Ocidente (ao menos o primeiro conhecido) a dividir entre seus cidadãos o poder das decisões sobre todos (ARISTÓTELES, 2015).
Em A política, livro dedicado a teorizar sobre organizações sociais, Aristóteles criticou muito a democracia ateniense, considerando-a demagógica e um caminho inevitável em direção à tirania – esta, ainda, a pior forma de governo possível por concentrar em apenas uma pessoa os benefícios de toda a sociedade.
Suas críticas à democracia, junto a seu costumeiro racismo, sua frequente xenofobia, seu machismo e sua defesa da predominância masculina no poder e, por fim, a justificativa da escravidão fizeram com que esse tratado político fosse malvisto até, de modo razoável, recentemente na história da filosofia.
CICUTA
Suco extraído da cicuta-da-europa, espécie rica em conicina, um dos venenos mais letais que existem, usado na Grécia Antiga para executar condenados.
Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
LICEU
Espécie de primeira universidade do mundo montada por Aristóteles, em Atenas, logo após Alexandre conquistar a cidade.
RECENSEAMENTO
Arrolamento dos indivíduos que estão nas condições previstas por lei de fazer certos serviços, desempenhar cargos ou exercer funções.
Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
O inglês Thomas Hobbes (1588-1679), autor de Leviatã – um dos maiores clássicos das Ciências Políticas –, chegou a dizer que, improvavelmente, encontraríamos texto mais repugnante que A política de Aristóteles. Assim como aconteceu com Platão, Aristóteles também foi visto como totalitário por alguns intérpretes da atualidade – e, novamente, precisamos nos atentar para os anacronismos!
A política – mesmo para Hobbes e liberais como John Locke (1632-1704) ou comunistas como Karl Marx (1818-1883) – é vista até os dias atuais como uma obra incontornável na história da teoria política, apesar de seus problemas e de ter, em certos aspectos, envelhecido mal.
ANACRONISMO
Erro de cronologia que geralmente consiste em atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que são de outra época, ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de uma época a que não pertencem.
Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
Também não é uma concessão a Aristóteles, por conta do tamanho deseu nome, mas uma constatação de que há abordagens do livro que podem ainda na atualidade funcionar. Muitos de seus principais temas permanecem atuais, e continuam a reverberar e fazer sentido, tais como:
· A justiça e a lei.
· O estatuto do cidadão.
· A participação política da comunidade como obrigação ou privilégio.
· A educação pública.
· A felicidade humana.
Na obra, Aristóteles mostra como o homem é um animal político. Ele tenta propor a melhor maneira de organização social possível, indaga a respeito de quem poderia governar sobre os outros e sobre que bases se apoiaria. Aristóteles faz, em geral, uma defesa de uma constituição – ou seja, certa organização dos habitantes de um Estado – que beneficie o bem comum, em vez de priorizar apenas algumas pessoas, como os próprios governantes. Para tanto, o filósofo lista seis possibilidades de governo:
· Monarquia e tirania – o governo de apenas um.
· Aristocracia e oligarquia – o governo de poucos.
· Politeia e democracia – o governo de muitos.
Vejamos a diferença entre os termos: apenas os primeiros (monarquia, aristocracia e politeia) teriam essa preocupação com o bem comum, que Aristóteles menciona como a mais importante característica de uma constituição. Os segundos termos (tirania, oligarquia e democracia) mostram as degenerações, como boas ideias podem sempre descarrilar para priorizar uma, poucas ou, no máximo, algumas pessoas.
No início do livro A política, Aristóteles afirma que a melhor forma de governo seria a monarquia ou a aristocracia. No meio da obra, ele muda de opinião e diz que, para a maioria das cidades-Estados, o melhor mesmo seria uma constituição mista, que fizesse um agrupamento da aristocracia com a politeia. Por fim, ele fala de uma cidade dos sonhos, em que todos os cidadãos governariam.
O que fica dessas reviravoltas é a tentativa de não se fazer um único receituário que possa ser aplicado a qualquer localidade, em qualquer condição. É importante entender as particularidades de cada sociedade para que se encontre as respostas mais adequadas aos problemas daquele lugar específico. Aqui, aparentemente, a crítica é direcionada a Platão, que costumava olhar para cima e criar cidades imaginárias, e não enxergava os problemas à sua frente.
Essa vontade de se ater à realidade justificava os estudos extensivos sobre as constituições existentes. Para Aristóteles, mesmo um mau governo ensina algo – nem que seja o que não se deve fazer. Para ele, o ponto que aparece tanto na Ética a Nicômaco quanto em A política é que não podemos ser passivos ou teóricos.
Qualquer pensamento ou razão deve ser encarado como, na pior das hipóteses, etapas para a prática, o planejamento para se ir às ruas. Elas miram a ação e não apenas o entendimento. Deve-se fazer, agir, não esperar “cair do céu” ou aguardar que um ou outro político faça por você.
No fim de Ética a Nicômaco, quando volta a falar sobre qual seria, afinal, a natureza da felicidade, Aristóteles reforça que a eudaimonia não pode ser uma disposição, ou seja, não é algo que estará conosco independentemente do que fizermos. Ele continua: “[...] se o fosse, poderia pertencer a quem passasse a vida inteira dormindo e vivesse como um vegetal” (ARISTÓTELES, 2017).
De volta à obra A política, é perceptível que o estagirita nos mostra o quanto não conseguimos não ser políticos. Para fazermos bem nossa natureza política, devemos observar, analisar e avaliar as possibilidades políticas que se nos apresentam, a fim de influir e transformar a organização política que nos submete a algo que verdadeiramente tem como fim o bem de todos: todos. Uma verdadeira democracia, enfim!

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