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Os tambores de São Luís

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OS TAMBORES DE SÃO LUÍS
JOSUÉ MONTELLO
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA - 1978
romance
"MESMO não tendo a menor dúvida de que, de todos os romances de Josué Montello, 
Os tambores de São Luís é o melhor - o mais completo, o mais vivido, 
tecnicamente
o melhor acabado, e, certamente, o que deve recolher sua preferência - não 
cederei à facilidade de falar em surpresa ou de recorrer ao chavão do "pulo"
que muitas vezes o romancista dá de um livro para outro. Quem leu com cuidado e 
boa disposição Cais da Sagração, não poderá se surpreender muito com a 
qualidade, 
a extraordinária qualidade mesmo, repito, desse Os tambores de São Luís.
De certo modo, um pressagiava o outro. Mestre Severino, o mulato digno, com seu 
crime e aqueles seus "olhos esverdeados, as
sobrancelhas travadas, o rosto comprido, uma gravidade trágica,
tensa", esse Mestre Severino de O Cais da Sagração é bem o irmão do negro 
Damião, sofredor,
vítima, também criminoso em sua primeira mocidade, e ao som dos
tambores, que rufam ao longo do percurso memorialmente ciclópico, vai 
conhecer
o trineto em via de nascer. Estamos em São Luís do Maranhão, é noite e o quadro
se delineia ante nossos olhos, não sei porque como que preparados para um drama:
"Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São 
Pantaleão,
uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de
estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um 
lampião,
com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas.. Perto, para os lados da 
Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galopar 
nas
pedras do calçamento. E sempre o batecum dos tambores, ora fugindo, ora 
voltando, sem perder a cadência frenética, muito
mais ligeira que o retinir das ferraduras."
E, à sombra desses tambores, é toda a São Luís que surge, a São Luís noturna e a
diurna, a de
hoje e a da época da escravatura, numa evocação fundida que dificilmente será
excedida. Creio mêsmo que poucas cidades, poucas épocas, terão sido 
"construídas" com tanta singeleza e perfeição, tanta eficiência e exatidão, 
como essa
São Luís de Josué Montello. É realmente nos grandes evocadores de cidades, 
como o Paris de Balzac e de Zola, a Lisboa de Eça de Queiroz e de Paço D'Arcos, 
o
Rio de Janeiro de Machado de Assis e de Marques Rebelo que somos invencivelmente
levados a pensar."
OcTAVio DE FARIA
OS TAMBORES DE SÃO LUÍS
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA
apresenta de
JOSUÉ MONTELLO
OS TAMBORES DE SÃO LUÍS
romance
Ilustrações de
POTY
3 edição
RIO, 1978
Copyright © 1975 by Josué Montello
Todos os direitos desta edição reservados à LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A.
Rua Marquês de Olinda, 12,
Rio de Janeiro - República Federativa do Brasil
Printed in Brazil / Impresso no Brasil
Capa: desenho de
POTY,
montagem de EUGÊNIO HIRSCH
À memória da preta mina Verônica,
que me benzeu com seu raminho de arruda.
FICHA CATALOGRÁFICA
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos 
Editores de Livros, RJ)
Montelo, Josué, 1917-
1978 Os Tambores de São Luís: romance
por Josué Montello; ilustrações de Poty. 3.ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1978 
x, 486p. ilustr. 21cm.
Dados biobibliográficos do autor.
1. Romance brasileiro. T. Título.
CDD - 869.93
75-°38' CDU - 869.0(81)-31
Negros dei continente, ai Nuevo Mundo hábeis dado Ia sal que lê faltaba: sin 
negros no respiran los tambores y sin negros no suenan Ias guitarras.
PABLO NERUDA Bailando con los negros
Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam 
de lançar sangue!
PADRE ANTÔNIO VIEIRA Sermão da Primeira Dominga da Quaresma
Na minha meninice abri olhos inquietos e maravilhados para as danças e 
cerimônias religiosas desenrolando-se no tradicional terreiro da Casa-Grande das
Minas, e
meus ouvidos, rudes e frágeis - como conchas bivalves à margem do Oceano - 
ressoaram com as vozes dos tambores e das gargantas enchendo as noites de 
melodias e
frases que nenhuma boca humana pôde conspurcar.
NUNES PEREIRA A Casa das Minas
SUMÁRIO
NOTA DA EDITORA Dados biobibliográficos do Autor
Página yIII
BIBLIOGRAFIA DE JOSUÉ MONTELLO
Página X
OS TAMBORES DE SÃO LUÍS Página I
HISTÓRIA DESTE LIVRO (J.M.)
Página 485
NOTA DA EDITORA DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR
JOSUÉ MONTELLO nasceu em São Luís do Maranhão a 21 de agosto de 1917. Aí passou 
a sua infância e juventude. No começo de 1936, mudou-se para Belém, dali saindo,
com destino ao Rio de Janeiro, em dezembro do mesmo ano. Filho de Antônio 
Bernardo Montello, de origem italiana, e de Maneia de Souza Montello, de origem 
portuguesa.
Considera-se um homem de sua Província, com a marca da terra e dos hábitos do 
Maranhão, embora resida no Rio de Janeiro. Morou também no Peru, em Portugal, na
Espanha
e na França. Mas sempre retornou a São Luís, de que nunca se desprendeu. Quase 
toda a sua obra literária traz a marca da inspiração e da cultura maranhense. 
Aos 
vinte
anos, fez concurso para a carreira de Técnico de Educação, do Ministério da 
Educação. Inspetor Federal do Ensino Comercial, professor de Organização de 
Bibliotecas
do DASP, professor de literatura brasileira do Curso de Biblioteconomia da 
Biblioteca Nacional, Diretor-Geral da mesma Biblioteca, Diretor do Museu 
Histórico Nacional,
Diretor e fundador do Museu da República, membro do Conselho Federal de 
Educação, Presidente do Conselho Federal de Cultura, titular da Teoria da 
Literatura da Faculdade
de Letras Pedro II, Reitor da Universidade Federal do Maranhão. Josué Montello 
exerceu também atividade diplomática, como Adido Cultural da Embaixada do Brasil
em Lima, no Peru; Adido Cultural da Embaixada do Brasil em Lisboa; Adido 
Cultural da Embaixada do Brasil em Madri; Conselheiro Cultural da Embaixada do 
Brasil em
Paris. Pertence à Academia Brasileira de Letras, ao Instituto Histórico e 
Geográfico Brasileiro, à Academia Internacional de Cultura Portuguesa, à 
Sociedade de Geografia
de Lisboa, à Academia Maranhense de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico 
do Maranhão, à Academia das Ciências de Lisboa, Doutôr honorís causa pela 
Universidade
Federal do Maranhão, Menbro da Association Internationale dês Critiques 
Littéraires, de Paris. Romancista, crítico, ensaísta, cronista, conferencista, 
Josué Montello
é detentor dos seguintes prêmios: Prêmio de Romance da Academia Brasileira, 
Prêmio de Ensaie da mesma Academia, Prêmio de Teatro igualmente da Academia
Brasileira. Conquistou, o Prêmio Intelectual do Ano, por votação nacional, 
iniciativa da União Brasileira de Escritores. Seu romance Os degraus do paraíso 
obteve 
os
seguintes prêmios: Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores 
(seção do Rio de Janeiro), e Prêmio Luiza Cláudio de Souza, do Pen Clube do 
Brasil.
Prêmio de Romance da Fundação Cultural de Brasília, com Cais da Sagração. A obra
literária de Josué Montello eleva-se a mais de setenta títulos. Ê colaborador 
permanente
do Jornal do Brasil e da Manchete. Seu estudo Un Maítre oublié de Stendhal, 
publicado em Paris, pelas edições Seghers, mereceu de Pierre-Henri Simon, 
crítico de
Lê Monde e membro da Academia Francesa, na crônica que lhe consagrou, este 
elogio:
Sua pena francesa é tão impecável quanto a sua erudição stendhaliana.
Josué Montello é casado com Yvonne Montello. De seu primeiro matrimônio tem duas
filhas: Lenka Elisabeth e Lília. A primeira, casada com Armando Leite; a 
segunda,
com Horácio Amaral. Tem cinco netos: Mauro, Ricardo, Renata, Roberto e Daniela. 
Julga-se um homem plenamente realizado. E só deseja, hoje, e enquanto viver, a 
cordialidade
de seus contemporâneos.
BIBLIOGRAFIA DE JOSUÉ MONTELLO
1936 - História dos homens de nossa
história - de colaboração com Hélio Reis (história).
1937 - O sentido educativo da arte
dramática - tese de concurso (educação).
194Í - Janelas fechadas (romance).
1942 - Gonçalves Dias (ensaio).
1943 - Curso de organização e admi-
nistração de bibliotecas (biblioteconomia).1943 - Precisa-se de um anjo (tea-
tro).
1944 - Histórias da vida literária (en-
saios).
1944 - o tesouro de Dom José (lite-
ratura infantil).
Í945 - As aventuras do Calunga (literatura infantil).
1945 - Q bicho do circo (literatura
infantil).
1946 - Os holandeses no Maranhão
(história).
1946 - Reforma do ensino normal no Maranhão (educação).
1946 - A viagem fantástica (literatu-
ra infantil).
1947 - Escola de saudade (teatro).
1948 - A cabeça de ouro (literatura
infantil).
1948 - A luz da estrela morta (romance).
1948 - Problemas da Biblioteca Na-
cional (biblioteconomia).
1949 - o Hamlet de Antônio Nobre
(ensaio).
1949 - Theremin (história).
1950 - Cervantes e o moinho de ven-
to (ensaio).
1952 - O labirinto de espelhos (romance).
1953 - Fontes tradicionais de Antônio
Nobre (ensaio).
1954 - Ricardo Palma, clássico da
América (ensaio).
1954 - o verdugo (teatro).
1955 - A ficção naturalista, in A li-
teratura no Brasil (ensaio).
1955 - O fio da meada (novelas).
1955 - Um precursor: Manoel Antô-
nio de Almeida, in A literatura no Brasil (ensaio).
1956 - Artur Azevedo e a arte do
conto (ensaio).
1956 - Discurso de posse na Academia Brasileira.
1956 - Estampas literárias (ensaios)
1959 - O anel que tu me deste (teatro).
1959 - Através do olho mágico (teatro).
1959 - Caminho da fonte (ensaios).
1959 - A décima noite (romance).
1959 - A oratória atual do Brasil
(ensaio).
1960 - Alegoria das Três Capitais -
de colaboração com Chianca
de Garcia (teatro).
1960 - A baronesa (teatro).
1960 - Ford (biografia).
1960 - Miragem (teatro).
1961 - Discurso de saudação a Cân-
dido Mota Filho na Academia Brasileira.
1961 - O Presidente Machado de
Assis (ensaio).
1962 - Discurso de saudação ao Pre-
sidente Manuel Prado na Academia Brasileira.
1962 - No centenário de Júlio de Mesquita, in Revista do Instituto Histórico e 
Geográfico Brasileiro (ensaio).
1963 - Aluízio Azevedo (antologia).
1963 - Pequeno anedotário da Academia Brasileira (história).
1963 - O poeta José Bonifácio, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico 
Brasileiro (ensaio).
1965 - Oi degraus do paraíso (romance).
1965 - Os feriados nacionais (educa-
ção cívica).
1966 - Duas vezes perdida (novelas).
1967 - O conto brasileiro, de Macha-
do de Assis a Monteiro Loba--
to (ensaio).
1967 - Na casa dos 40 (história).
1967 - No centenário de Antônio
Nobre, in Portugália (ensaio).
1967 - Numa véspera de Natal (no-
vela).
1968 - Bispos de outrora, in O assun-
to é padre (história).
1968 - Marcas literárias da comunidade luso-brasileira, in Boletim da Academia 
Internacional da Cultura Portuguesa (ensaio).
1968 - Santos de casa (ensaio).
1968 - Uma tarde, outra tarde (no-
velas).
1969 - Uma palavra depois de outra
(ensaios).
1970 - Un maitre oublié de Stendhal
(ensaio publicado em Paris).
1970 - Viés éteintes (novela publicada em Paris).
1971 - Cais da sagração (romance).
1971 - Estante giratória (ensaios).
1972 - Cochrane no Maranhão, in
Navigator (história).
1972 - História da Independência do Brasil, 4 v. (Introdução, planejamento e 
direção geral)
1972 - Machado de Assis (antologia).
1972 - Pedro l e a Independência do Brasil à luz da correspondência epistolar 
(história).
1972 - Rugendas - Introdução de Viagem pitoresca através do Brasil (história).
1972 - A transição da cultura brasi-
leira, in Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (história).
1973 - Anedotário geral da Acade-
mia Brasileira (história).
1973 - Oi bonecos indultados (crônicas).
1973 - Gonçalves Dias (antologia).
1973 - José de Alencar (antologia).
1975 - Aluízio Azevedo e a polêmica d'"O Mulato" (história literária).
1975 - Oi tambores de São Luís (romance).
1975 - Quay of Coronation (tradução de Cais da sagração, por Myrian Henderson, 
publicado em Londres por Rex Collings).
Duas novelas de Josué Montello foram transpostas- para o cinema, em filmes de 
longa-metragem; ambos dirigidos por Willíam Cobbett: Uma tarde, outra tarde
e O monstro.
OS TAMBORES DE SÃO LUÍS
romance de J. M.
A TÉ ALI os TAMBORES da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele
via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os
seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto
a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-
Zamadone,
o dono do lugar.
Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã 
dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava
ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma 
rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches 
vestidas 
de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça 
começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas 
ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da 
varanda, 
de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto.
Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas 
em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas 
a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair do banco um dos assistentes, e ele 
ali
se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores
tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o 
chocalhar
das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade 
nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, 
não saberia
definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que 
se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe 
alastrava
pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda 
essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais
leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o 
vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.
Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São 
Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a 
multidão
de estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um 
lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os 
lados
da Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope 
nas pedras do calçamento. E sempre o batecum dos tambores, ora fugindo, ora 
voltando, 
sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das 
ferraduras.
No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada 
fronteira, Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás.
Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís 
Domingues no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o 
corpo 
seco e rijo, os ombros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter 
sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça 
levantada. 
Até o começo do século, não dispensava a bengala de castão de prata com que 
entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de 
solicitador, 
para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba
escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço 
da gravata.
- Faça favor...
Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do 
lado da Rua do Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o
Sátiro Cardoso, pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o 
colarinho alto, o rosto encovado, bigode, nos negros olhos uma faísca de 
loucura, e que 
logo lhe disse, com um pedaço de papel impresso na ponta dos dedos:
- É o convite para o meu próximo espetáculo.
- Outra vez A queda da Bandeira?
- É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda. Damião quis ainda saberpor que o velho mágico preferia aquela
hora da noite, com as casas fechadas, para distribuir os seus convites.
- De dia - redargüiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de 
mim, me chamando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é
mais 
calmo: os moleques estão dormindo.
E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, 
sem ruído, apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio.
Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, 
debaixo de uma cartola preta, casaca, sapatos -
4
cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e 
apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos 
jornais, no Liceu,
no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos 
casamentos, como - o Husor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, 
tinha ido
assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se 
repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. 
Sátiro 
subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma 
bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras 
abstrusas, 
numa supostalíngua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um 
pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa 
que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça 
para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de 
pólvora 
seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto,
em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do 
chão.
- Bis, bis - gritavam-lhe da torrinha.
E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma
queda, até que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! 
Chega! - e o mágico afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril 
machucado, enquanto o pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e 
assobios.
Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, 
Damião mudou de calçada, ainda ouvindo o batecum dos tambores. Para trás, em 
linha 
reta, ficava o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a 
Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Caiu, 
o amigo 
Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. À 
frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das 
Hortas, 
o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua 
bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar.
O próprio Tião, no mesmo carro em que fora buscar a parteira, viera dar-lhe a 
notícia de que, antes do anoitecer, a Biá começara a sentir fisgadas fortes, no 
alvoroço 
de dar à luz o primeiro filho.
- Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está cheia de parentes. É bom que o 
senhor também esteja lá, para receber o seu trineto.
- Sim, irei - concordara. - Mas não já. O primeiro parto dá muito rebate falso. 
Isso é coisa para o meio da noite.
E antes do Tião sair:
- Eu sou do tempo em que os mais moços esperavam pelos mais velhos.
- Hoje, tá tudo mudando - emendou o Tião.
 5
E como o tinham deixado só, no rebuliço do primeiro trineto da família, apenas 
com a criada que lhe servira apressadamente o jantar (e também se fora para a 
casa
da Biá), Damião se vestiu devagar, sabendo que não adiantava ter pressa, e ainda
passou por um cochilo, na cadeira de balanço da varanda, antes de deixar a casa
entregue ao Veludo, que andava na fase de latir e correr, próprio do cio 
insatisfeito.
Levara bom tempo na esquina da Rua das Cajazeiras, a ver se aparecia um carro 
que o transportasse à Gamboa. Terminara reconhecendo que, se dependesse mesmo de
um
carro, só iria conhecer o trineto depois de grande. O jeito era ir a pé, 
aproveitando a fresca da noite.
Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distante do Cemitério dos Ingleses, 
experimentou de repente uma sensação de frio, que lhe desceu da cabeça aos pés, 
como se 
um sopro gelado o tivesse apanhado por trás, em toda a extensão do corpo. 
Respirou fundo, e prosseguiu no seu caminho, sem aumentar nem diminuir o passo, 
ao mesmo 
tempo que procurava convencer-se de que a rajada viera da Rua da Cotovia. Parou 
adiante, apalpando os bolsos da calça, à procura do maço de cigarros. Tinha 
trazido 
os cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos.
- Velho é assim mesmo: quando se lembra de uma coisa, esquece outra. Paciência.
Senhor de si, voltou a caminhar, procurando espairecer os olhos no ermo da rua 
longa. De novo o vento soprou, agora mais forte, como se o tempo fosse mudar. O 
céu 
limpo tranqüilizou Damião. Uma janela bateu; por cima de um muro, estalou um 
galho de árvore, que resvalou para a calçada; adiante, uma vidraça partiu, no 
bater 
violento de outra janela; uma lata vazia rolou pelo meio-fio.
Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele teve a impressão de que algo 
estranho, que se associava à sua pessoa, estaria ocorrendo naquele momento. 
Tentou sacudir 
de si a impressão aborrecida, e esta retornou, insidiosa, opressiva, com a 
teimosia de um mau presságio. Pensou na Biá. Não, não seria nada com ela: o 
médico tinha-a 
visto pela manhã, e assegurara que seu parto seria normal. Tudo bem, e a criança
no seu lugar; era só esperar agora pela reação da natureza, sob a vigilância 
experiente 
da Comadre Ludovina.
- E a Comadre Ludovina já está lá.
Foi então que escutou o romper dos tambores, ali perto, na Casa-Grande das 
Minas. Quase no mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram as cabaças, mas não 
suplantaram 
os tambores, que iam acelerando o tantantã nervoso que obriga as noviches a 
girarem sobre si mesmas. Dir-se-ia que uma batida queria alcançar a seguinte, 
sem que 
um tamboreiro destoasse dos outros na vertigem do compasso. E só esse batecum 
frenético se impunha agora, apagando o som dos outros instrumentos, e também só 
ele 
o vento levava, rua abaixo e rua acima,
6
dispersando-o na grande noite de agosto que se fechava sobre a cidade.
Depois de passar para o outro lado da rua, Damião deu consigo na calçada do 
querebetã, e ali retardou a caminhada, querendo entrar. Era uma casa baixa, de
beiral
saliente, caiada de novo, na esquina do Beco das Crioulas, com janelas de 
rótulas e porta de duas folhas, sobre a Rua de São Pantaleão. Só uma banda da 
porta estava
aberta. Parado na soleira, ele olhou para dentro, e viu o corredor e a varanda 
já repletos, com as noviches dançando em volta da nochê Andreza Maria. E ia dar 
o 
primeiro passo no corredor, quando a nochê subiu o xale para os ombros, 
compelindo os tamboreiros a uma pausa brusca, logo interrompida por um bater 
mais forte, 
em outro ritmo, e veio caminhando para a porta, no espaço que se ia abrindo para
lhe dar passagem. Damião tinha dado outro passo, e ali esperou que ela o 
levasse.
Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo quanto tempo ali permanecera. Vinte 
minutos? Meia hora? Ou mais ainda? Mais ainda, certamente. O importante é que, 
depois 
de ouvir os tamboreiros e assistir às danças rituais, se sentia preparado para 
ir ao encontro de seu trineto. Sentado no banco, a olhar as noviches dançando 
rodeadas 
de velas, era outra vez o negro puro, filho de sua raça, em contato com as 
remotas raízes africanas. E assim entrou na Rua do Passeio, descendo pelo Beco 
das Crioulas, 
sempre acompanhado pelo tantantã dos tambores.
A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia não ter fim. Casas de azulejos de um
lado e de outro, com grades de ferro rendilhadas,. vidros coloridos no leque das
janelas, um ou outro portal de pedra. Sem relógio para ver as horas (o seu 
andava na loja do Maneco Ourives, para limpeza geral da máquina, já fazia uma 
semana), 
era debalde que Damião consultava de vez em quando a posição da lua, que ora se 
escondia por trás dos mirantes mais altos, ora repontavaadiante, curva e 
pontuda 
como um chavelho de bumba-meu-boi entrando no terreiro.
No canto da Rua de Santana, o bico de gás do lampião estava prestes a apagar, 
reduzido a uma chamazinha débil, que se encolhia no bocal empoeirado, com medo 
da 
noite, a escuridão a se fechar à sua volta. E outra vez Damião se assustou, 
agora com a zoada de uma lata de lixo, que ia sendo arrastada nas pedras do 
chão. Era 
um cão magro, só pele e osso, com uma pata traseira pendurada, que a arrastava 
com o focinho, enquanto o lixo se esparramava na calçada escura. Ao pressentir 
os 
passos de Damião, já bem perto, o cão assustou-se também, retirou depressa a 
cabeça de dentro da lata, e correu para o outro lado da rua, capengando, com um 
osso 
na boca.
Um pouco além, Damião ouve o som de um piano mal tocado, para os lados da Rua do
Oiteiro. E enquanto apura a orelha, tentando identificar os compassos da valsa, 
uma carruagem dispara pela
Rua do Passeio, à altura do Hospital Português, e é tão próximo o
tropel dos cavalos e o estrondo das rodas, que ele fica esperando que ela passe 
ao seu lado, seguindo
a toda brida na direção do Largo do Quartel: Como demore passar, ele se volta 
para trás, e não a vê: na rua deserta, só o cão rói o seu osso, à luz de outro 
lampião.
A carruagem dobrou a Rua do Mocambo, e seu rumor se afasta no sentido da Praça 
da Alegria, ao mesmo tempo que o piano se cala, e volta a ressoar, um pouco mais
distante, 
o batecum dos tambores, na Casa-Grande das Minas.
Damião se lembrou que Donana Jansen saía de seu túmulo, nas noites de sexta-
feira, e dava uma volta comprida pela cidade, numa carruagem puxada por duas 
parelhas 
de cavalos sem cabeça, com um esqueleto na boléia brandindo o chicote. Só se 
ouvia o ruído das rodas e das ferraduras, despencando ladeira abaixo.
- Bobagem - reagiu Damião. - História inventada pelos inimigos políticos da 
velha. Quem morreu quer sossego.
E apalpando novamente o bolso da calça, tirou fora um cigarro, que deixou no 
canto da boca. Mais além, talvez ainda estivesse aberto o botequim da esquina da
Rua 
Grande. Como fora esquecer de trazer a caixa de fósforos? Logo ele que, depois 
de velho, não dispensava os cigarrinhos da noite, para esperar o sono...
E nisto se viu saindo do quarto da Maria Quitéria, nos baixos de um sobradinho 
da Rua da Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da Rua de Nazaré, estranhou 
uma 
zoada ressoante de louça quebrada, a poucos passos, adiante da escadaria da Rua 
do Giz. Retardou o andar, intrigado. Era uma louça atrás da outra, e muitas a um
só tempo, debaixo das mesmas pancadas firmes, que faziam voar para todos os 
lados os cacos partidos.
Do patamar da escadaria, estendeu o olhar para baixo.
Ao pé do último socalco, à porta do sobrado do Comendador Antônio Meireles, na 
claridade do dia que ia rompendo, um bando de negros em ação, cada qual com seu 
porrete 
de pau-roxo, quebrava depressa pilhas e pilhas de vasos de louça empilhados na 
calçada.
Damião desceu os socalcos quase a correr, e antes de chegar cá embaixo começou a
rir, adivinhando o que se passava.
Dias e dias, já fazia, alguns meses, era o assunto de São Luís inteira, nas 
rodas do Largo do Carmo, nas conversas do Passeio Público, no cochicho das 
sacristias. 
Inimigo de Donana Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha 
mandado preparar na Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de 
belos 
penicos de louça, com a cara da velha no fundo do vaso Donana Jansen soube do 
fato e suportou com paciência o riso da cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao 
tempo, 
enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos três, às dezenas, na loja do 
Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que, agora, sim, só
ela os 
possuía.
8
Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos 
negros:
- De quem vocês são escravos?
- De Donana Jansen.
Eram mais de trinta negros, todos fortes, espadaúdos, e iam quebrando os urinóis
com uma fúria divertida, repetindo as cacetadas rijas, que desfaziam a louça 
apenas 
com uma pancada. A vizinhança ia despertando com a zoadaria estranha. Caras 
estremunhadas entreabriam as rótulas, nas janelas dos sobrados, e já algumas 
pessoas 
se debruçavam das sacadas, enquanto outras, na rua, em chinelos, no chambre de 
dormir, riam alto, vendo as matanças dos penicos. Um cheiro insuportável de mijo
podre 
desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros, quase o 
triplo, e coberto com uma tampa também de louça.
- E esse aí? - quis saber Damião.
- Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele
aparecer pra tomar satisfação.
E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura 
farta, que lhe encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um 
penico 
e outro:
- Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem 
sarna muita pra se
coçar. Ora se tem!
Ainda com o cigarro apagado no canto da boca, Damião aproximou-se da Rua Grande,
pensando onde ia encontrar, ali perto, uma caixa de fósforos para comprar. E não
tinha chegado à esquina, defronte de um casarão de altas janelas ogivais, quando
viu entreaberta a porta do botequim.
Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe os passos, com a lua nova a se esconder
e a brilhar, na faiscação do céu estrelado. E agora o assobio do vento, que 
disparava 
na rua deserta, varrendo as calçadas, para se desfazer no giro doido de um 
remoinho.
Dentro do botequim, a única luz era a chama de um candeeiro a óleo, suspenso da 
parede esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz mortiça, por trás do bocal 
enegrecido, 
caía por cima do balcão, mal dando para clarear uma parte da saleta pontilhada 
de mesas vazias. Dentro do balcão, ninguém.
Damião subiu o degrau da porta, avançou uns passos, bateu palmas. Enquanto 
esperava que o atendessem, olhou em volta, aproximando-se do balcão. E foi aí 
que viu 
por terra, entre as duas primeiras mesas à sua direita, o vulto de um negro 
magro, comprido, bem trajado, caído de braços numa poça de sangue, com uma 
facada nas 
costas, à altura do coração. Parado, ficou um momento a fitá-lo, de olhos 
crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a nuca e uma parte do pescoço. Pela 
roupa, era 
gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver se lhe restava um alento de vida, 
mas o corpo permaneceu imóvel, com o busto achatando o braço direito, na posição
em 
que tinha caído.
Na claridade que ia esmorecendo, Damião olhou em volta, de sobrancelhas 
travadas. Numa das mesas, mais para o fundo da saleta, acumulavam-se garrafas de
bebida,
quase todas tombadas sobre o tampo de mármore, juntamente com um copo quebrado e
um cinzeiro atulhado de cinza e pontas de cigarro. Cacos de vidro rangeram 
debaixo
da sola de suas botinas, assim que deu outro passo, na direção do candeeiro. E 
ali, com uma suspeita, espiou para dentro do balcão. Outro morto jazia no 
ladrilho
do piso, com a cabeça fendida por uma paulada. Estava de frente, com o busto 
meio apoiado no ângulo entre o balcão e a prateleira. E a luz que descia sobre 
ele,
muito tênue, levemente avermelhada, permitiu que Damião prontamente 
identificasse, pelo rosto coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de bigode em
ponta, que, 
dias antes, ali mesmo, lhe tinha vendido um maço de cigarros.
O RIO LARGO, enxameado de piranhas, ficava a quatro dias de viagem pelos 
meandros da floresta. Para alcançar a vila mais próxima, era preciso passar para
a
outra margem, remando contra a correnteza, e andar outros quatro dias, sempre 
dentro da mata, por um caminho que só os negros conheciam.
Julião tinha sido o primeiro a chegar ali, já fazia alguns anos. Viera da 
Fazenda Bela Vista, trazendo consigo a mulher e os dois filhos, uma menina e um 
menino,
ambos ainda crianças, suportando uma caminhada tão penosa, sempre com a 
impressão de estar sendo seguido, que levara quase um mês para chegar àquela 
abertura da 
mata, à beira de um pequeno lago. Damião, por esse tempo, já fizeraoito anos, e
era alto, magro, dando a impressão de ter doze, muito parecido com o pai. A 
Leocádia, 
sempre enfermiça, era dois anos mais moça que o irmão, e foi ele que se 
encarregou de traze-la ao longo da viagem, pondo-a às costas quando era preciso,
porque a 
mãe e o pai vinham carregados com o que fora possível trazer da fazenda, na 
precipitação da fuga.
 Para trás, na primeira noite assustada, tinha ficado o clarão do incêndio que 
Julião ateara, parte no canavial, parte na casa-grande, no engenho e na
cocheira, só poupando mesmo a senzala. E enquanto
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as labaredas subiam, atirando rolos escuros de fumaça, sob o clarão da lua 
cheia, ele e a Inácia tinham apanhado os filhos, esgueirando-se para a estrada 
em dois
cavalos de sela, até o ponto da floresta onde Damião vinha escondendo a bagagem.
Fazia muito tempo que planejava fugir; mas a isto só se decidira „ quando soube 
que o Dr. Lustosa tinha
apalavrado a venda do Damião.
Tudo admitia, menos separar-se dos filhos.
Tinham-lhe falado no Quilombo do Mané Quirino, para os lados do rio Maracaçumé, 
no caminho do Pará. Na travessia do rio, fora obrigado a sacrificar um dos 
cavalos,
e o outro, que levava a bagagem, tinha chegado à margem oposta já com uma pata 
traseira
consumida em parte pelas piranhas. Sacrificara-o também, para ao menos
aproveitar-lhe a carne. E todo o resto do caminho teve de ser feito a pé, dias 
seguidos, só descansando nas noites sem lua.
Foi a Inácia que lhe propôs, na volta da lua cheia, quando não podia mais andar,
de tanto lhe doerem os pés inchados:
- Vamos ficar puraqui. Não agüento mais, Julião.
As sondagens que ele fez, nos dias subseqüentes, batendo a selva em todas as 
direções, deram-lhe a certeza de que, ali, não iriam procurá-lo. Ergueu a sua 
palhoça
e fez o seu roçado, e logo as chuvas vieram, grossas, copiosas, como se 
quisessem levá-los também na correnteza das enxurradas.
Ao fim de um ano, já a casa era outra, mais sólida, as paredes de pindoba, o 
chão
de terra batida, os esteios de aroeira. Durante todo esse tempo, só uma vez 
Julião
se ausentou, para ir à vila, deixando o filho em seu lugar. E quando voltou, 
muitos dias depois, trouxe o casal de porcos, que prendeu no chiqueiro, e mais a
galinha
choca, que não tardou a mariscar o chão com a sua ninhada.
No fim do outro inverno, o Prudêncio e o Balbino ali chegaram de surpresa, 
trazendo no corpo as marcas das últimas chicotadas que o próprio Dr. Lustosa 
fazia questão
de dar, com a força e a ira de seu único braço:
- Tem sordado do Governo te procurando - preveniu o Prudêncio, que falava 
depressa e contado. - Nós apanhou como bicho, e não disse onde tu tava. Até nos 
jorná de 
São Luís se falou que tu fugiu, depois de tocar fogo na casa de teu sinhô.
E o Balbino completou:
- Quando nos sortaram, nós fugiu. Quirino jurou que foge. -" Também o 
Bastião e o Nonato. Não se agüenta mais o home. Todo
dia tem gente no tronco prele surrar. A veia Coió, coitada, morreu apanhando. E 
era o doutô que tava com o chicote.
Mas da Bela Vista, nos meses seguintes, só apareceu a Rosaria, gorda, pesada, o 
lábio inferior caído, os olhos pulados, sem que se pudesse supor que, com seu 
corpanzil 
adiposo, fosse capaz de tão longa caminhada. Apareceu pelo fim da tarde, com a 
sua trouxa
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na cabeça, a barra da saia crivada de carrapichos, e foi dizendo, assim que deu 
com o Prudêncio:
- Eu jurei que te achava, e achei.
Egressos de outras fazendas longínquas, novos negros ali chegaram, e não tardou 
que, uma noite, à hora em que descem os voduns nos terreiros sagrados, ressoasse
um tambor, abafado pela floresta circundante. Também apareceu uma cabaça. E 
ainda um ogã.
Nessas ocasiões, o alarmado Bonifácio, sempre na ponta dos pés, vinha recomendar
aos tocadores, sobretudo ao tamboreiro:
- Mais baixo, amigo. O vento acaba dizendo onde nós se escondeu. Toma tenção, 
Mundico. Te lembra do chicote.
Mas a clareira era mesmo fechada, e o vento desfazia o ruído do tambor nos 
rumores da mata, com o entrechocar dos ramos, o sussurro das folhagens, o rolar 
das águas, 
o piar das corujas e o grito dos bacuraus. De vez em quando ouvia-se o esturro 
de uma onça. Ou o chocalhar de uma cascavel. Depois, com a volta das chuvas, era
o estrondo doç trovões, que parecia sacudir o mundo.
Damião também se recordava, com a mais absoluta nitidez, da tarde em que surgiu 
no quilombo um negro de barbicha, cheio de corpo, entroncado, forcejando para 
puxar 
um jumento, que empacara na descida do terreno. Afinal, fustigado por um cipó, o
jerico terminou por afrouxar as patas, e desceu a ladeira.
- Sou de paz - avisou o negro, passando à frente do jumento. - Aqui, quem é que 
manda?
- Vá-se chegando - ordenou Julião, da raiz do pau-d'arco onde se achava sentado.
E o outro, depois de amarrar o jerico num moirão de cerca:
- Está falando com o Barão Altino Celestino dos Anjos. Vosmecê não precisa me 
chamar de Altino, nem de Celestino, nem dos Anjos. Me chame mesmo Barão. É como 
eu 
gosto que me chamem.
Julião sorriu, depois riu mesmo, sem tirar os olhos do Barão. E ainda rindo:
- E vosmecê é mesmo Barão? Onde se viu preto Barão?
- Para Deus, que tudo pode, nada é impossível. Sou Barão de papel passado. Por 
obra e graça do sempre lembrado Dom Cosme Bento das Chagas, Imperador, Tutor e 
Defensor 
das Liberdades Bemte-vis, injustamente enforcado pelo Governo de São Luís.
Julião chegou o corpo mais para a frente, e cruzando as pernas, com as mãos nos 
joelhos:
- Moço, me conte isso direito. Tou querendo saber.
- Antes, deixe eu lhe mostrar, com o meu diploma, que sou mesmo Barão. com 
licença, meu Chefe.
E tornando ao jumento, tirou do baú de couro, pendente de um dos lados da 
cangalha, um papel grosso, que veio abrindo enquanto voltava à presença de 
Julião. com 
o papel aberto, olhou em volta:
- Alguém aqui sabe ler?
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Os outros negros, que se tinham aproximado, entreolharam-se, com ar de vergonha 
e riso. Foi o Prudêncio que respondeu:
- E adonde tu viu negro escravo saber ler? Tu tá falando demais, Barão. É
mió tu calar essa boca.
- Pois eu sei. Minha Sinhá mandou me ensinar.
- Então lê teu papel - ordenou Julião.
E o Barão, muito compenetrado de sua fidalguia: "Sai hoje na ordem do dia esta 
nomeação do Barão Altino Celestino dos Anjos, que foi escravo de Donana Jansen, 
depois
de seu filho Isidoro, que veio pró sertão combater os Balaios e depois se passou
para a minha gente, com muito ato de bravura. Vai pagar 100$000, sendo 50$000 à 
vista e os outros 50$000 fiados por um ano, ao qual se fará as honras de minha 
imperial casa, e quem não fizer ficará desgraçado."
Calou-se, olhando em redor, envaidecido. E ainda com o papel desdobrado, 
acrescentou:
- Aqui embaixo tem uma cruz. Esta cruz quer dizer: Dom Cosme Bento das Chagas. 
Quem escrevia o diploma era um empregado dele, português, Seu Quincas. Só Dom 
Cosme
fazia esta cruz, aqui do lado.
Guardando o papel de novo no baú, perguntou:
- Ninguém aqui ouviu falar de Dom Cosme, o preto de mais poder em todo o nosso 
Maranhão?
- Eu ouvi - respondeu um dos pretos que andavam a limpar o terreno, na descida 
do lago. - Só não fui pró lado dele porque a guerra acabou.
O Barão tinha-se sentado noutra raiz do pau-d'arco, ao lado de Julião, 
perfeitamente à vontade:
- com licença aqui do nosso Chefe, faço questão de contar o que vi. Quem quiser 
pode pensar que é mentira. Juro por Deus e por esta cruz que me alumia: é tudo 
verdade. 
Verdade mesmo, com o testemunho de Nosso Senhor, que está lá em cima me ouvindo 
e não me deixa inventar.
E até tarde, como se não tivesse reparado que as sombras da noite iam escondendo
as duas ruas do quilombo, com seus renques de palhoças ainda novas, recordou a 
figura imponente do preto Cosme, que só andava num andor, no ombro de quatro 
pretos, metido numa roupa de padre, com um chapéu 'alto na cabeça, dando 
patentes de 
capitão e títulos de nobreza aos seus amigos, sempre por atos de bravura, e que 
consistiam em saquear as fazendas próximas. Eram mais de cinco mil os que 
andavam 
comele. E tinha seus ministros e cortesãos, como o outro Imperador, que vivia 
no Rio de Janeiro, com seu papo de tucano. Abriu uma escola, para a negrada 
aprender 
a ier e escrever, e era sem conta a gente armada de bacamartes, espadas, lanças,
espingardas, facas, punhais, barras de ferro e até pistolas, pronta para 
defendê-lo.
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E como foi que ele perdeu tudo isso? - quis saber Da-
mião, sentado ao pé do pai, a ouvir atentamente o Barão, sem perder uma só 
palavra.
- A força do Governo, que andava perseguindo o Balaio no sertão, acabou 
perseguindo também o negro Cosme, na fazenda da Lagoa Amarela, e um dia nos 
cercou de jeito,
com muito soldado e muita munição, sem dar tempo da gente reagir. Tivemos de 
entregar nossas armas. Cada um vinha, atirava a arma perto do Tenente, e saía 
dali
com a mão na nuca, sem ordem de ir embora. Mas de noite, nu como Deus me fez, 
consegui fugir.
Voltou-se novamente para Julião:
- Agora, se o meu Chefe me permite, eu e o meu jumento passamos' aqui uns 
tempos, sem aborrecer ninguém.
E foi ele que, dias depois, pela manhã, tirou do baú um de seus livros que o 
muito manuseio ensebara, e disse a Damião, debaixo da sombra de uma ingazeira:
- Vou-te ensinar a ler.
E ali mesmo principou a mostrar-lhe as letras, que Damião olhava um momento e 
logo as retinha na memória. Por esse tempo já o menino podia dizer, um a um, por
ordem 
de chegada, o nome das pessoas do quilombo. Se lhe contavam uma história, 
reproduzia-a com as mesmas palavras. De modo que, ao cabo de um mês, já o Barão 
passava 
a ler com ele a História de Carlos Magno e dos doze pares de França.
- Menino danado - reconheceu, feliz. - Tua cabeça parece baú de velha: tudo o 
que a gente põe dentro, aí fica, e muito bem guardado. Benza-te Deus, Damião.
E deu-lhe de presente a sua velha Bíblia, toda negra, com uma cruz doirada na 
capa, já meio desbotada.
Depois do Barão, outros negros apareceram, e ali ficaram. Não vieram de uma vez,
ou no espaço de poucas semanas; porém ao longo de vários meses, e todos eles, ao
defrontarem com a clareira alargada pelas palhoças, e só de negros, abriam o 
mesmo riso
triunfante. Houve mesmo um preto velho, de carapinha toda branca, uma cicatriz
em diagonal cortando-lhe o dorso nu, que se pôs a pular num pé só, à maneira de 
um saci, dando a volta no quilombo e repetindo, como ao compasso de um berimbau:
- Ê, ê, ê, ê, o senhor não me pega! Ê, ê, ê, ê, o senhor não me pega!
Antes de fechar a volta, bambeou no pé hesitante, e foi em vão que procurou 
equilibrar-se na outra perna, ainda rindo: caiu ali mesmo por cima do peito, e 
não se 
levantou nem gemeu. Mais tarde, em sua honra, sem que aos menos lhe soubessem o 
nome nem de onde viera, ressoou surdamente o tambor de choro, até tarde, 
madrugada 
adentro,- com o corpo no meio do terreiro, e as velhas à sua volta entoando o 
canto fúnebre dos velhos ritos africanos.
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De uma vez, ao romper da manhã, pelo fim das grandes águas, quatro negros 
armados, só com uma tanga esfarrapada a lhes cobrir as vergonhas, irromperam no 
quilombo, 
um atrás do outro, sem que se tivesse ouvido o aviso da sentinela. Traziam 
espingardas, chuços de ferro e uma lança pontuda, e todos de rosto encovado, os 
olhos 
grandes, quase só pele e osso, um brilho de febre nas pupilas.
Julião esperou por eles, no cômoro de onde olhava a revoada matinal das garças, 
e viu que não eram de paz; mas, antes que lhes ordenasse largarem as armas, já 
com 
os outros negros do quilombo fechando o cerco em redor dos desconhecidos, três 
deles as lançaram por terra, enquanto o outro se punha em guarda, com a sua 
lança 
em posição de ataque, ao mesmo tempo que o Bonifácio chegava com a notícia de 
que, adiante dos Angicos, junto ao riachão da Paciência, o Salustiano tinha sido
encontrado 
morto no seu posto.
E Julião, para o negro que empunhava a lança:
- E por que tu fez isso com ele? Um negro como tu?
- Ele só deixava a gente passar sem as armas. E ali mesmo Julião ordenou que o 
enforcassem.
Já fazia mais de cinco anos que eles se haviam desgarrado do Balaio, e, não 
sabiam como, tinham chegado até ali, fugindo dos índios e dos soldados do 
Governo. Eram 
quinze, no começo. Os demais foram ficando no caminho. Só eles restavam, e 
queriam ainda ir ao encontro do Balaio.
- A guerra acabou, já faz muito tempo - adiantou o Barão.
- Eu também andei metido nela. Enforcaram o negro Cosme. Ninguém sabe que fim 
teve o Balaio.
E diante do companheiro morto, que pendia de um galho de ipê, os três outros se 
puseram a chorar, caídos ao chão, misturando-se ao pó da terra, como se só agora
estivessem mesmo perdidos.
Foi quase um mês depois, nos dias de vento frio que precedem o São João, que o 
Samuel chegou ao quilombo deste modo divertido: inteiramente nu, perseguido pelo
bode 
Manhoso. Primeiro surgiu o preto, saído de uma das veredas da mata, e quase foi 
alcançado pelo tiro de espingarda que um dos vigias detonou em sua direção. O 
bode, 
que vinha logo atrás, assustou-se com o estampido, e aos pinotes retrocedeu para
a mata, enquanto os cães acossavam o preto, que defendia, com as mãos aflitas, 
seu membro enorme ameaçado pelas dentuças agressivas.
Damião andava a assustar os guarás no lago, quando ouviu os latidos. com uma 
vara, enxotou a matilha, e não pôde deixar de rir ante o ar aflito do preto - de
olhos 
imensos, dentadura muito alva, a mover a cabeça para um lado e para o outro, as 
mãos espalmadas diante do pênis, sem conseguir escondê-lo de todo, pois, para 
baixo, 
ainda ficava um palmo de pouca-vergonha, enorme como o de um cavalo.
O Barão acudiu com um pedaço de estopa:
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- Benza-te Deus, amigo. Trata de esconder a prenda, para não dar muito na vista.
De todas as palhoças saíam curiosos, e eram sobretudo mulheres e meninos, todos 
a rirem, e riram mais quando o Manhoso voltou, e ficou um momento a olhar para o
negro, de cabeça baixa, os chavelhos em riste.
Como a estopa, transformada em tanga, ainda foi pouca, os risos redobraram em 
forma de gaitadas, e já o Vadico e o Crispim, que tinham chegado por último, 
pediam 
ao negro que se mostrasse, para que também, como filhos de Deus, vissem o 
despropósito. A Rosaria, que havia engordado ainda mais, sentia-se sufocar, 
balançando 
o corpo para a frente e para trás, com as costas da mão diante da boca, os 
olhinhos apertados pelas convulsões da gargalhada.
Mas de pronto as risadas se recolheram, e a alta figura do Julião, descendo 
devagar a rampa do lago para o terreiro, deu de frente com o Samuel, que se 
curvara 
um pouco, puxando para baixo a frente da tanga. E sempre curvado, olhava de 
esguelha, com uma fisionomia suplicante, para o preto esguio e alto que o 
fitava:
- Faz bem seis mês que eu ando fugido dentro do mato. Não mande eu embora nem me
mate. Eu também posso ajudar.
Já nessa noite, metido numa calça de riscado alinhavada pela Rosária, o Samuel 
pediu ao Mundico que lhe emprestasse o tambor, e então todo o quilombo veio para
perto, 
atraído pelas primeiras batidas, e então se viu que era mesmo um tamboreiro. A 
agilidade de suas mãos pequenas, rufando nervosamente o
instrumento, tinham um ritmo próprio, e tão vertiginoso, no seu batecum 
frenético, que o Mundico o ouviu de boca aberta o tempo todo, sabendo que não 
podia mais 
tocar.
Depois, com o passar dos meses, Samuel mostrou outras habilidades. com um 
baralho nas mãos, enganava quem quisesse. Chegou-se a pensar que tivesse partes 
com
o Diabo. Mas foi ele quem teve a idéia de erguer-se uma capela para Nossa 
Senhora do Rosário, além de ter feito a imagem da santa em pinho-de-riga, que 
desbastou 
a canivete e ainda encarnou, com traças de santeiro consumado.
O Barão, que era também habilidoso, só levava sobre ele a vantagem de saber ler.
No mais, dava-se por vencido. E como gostava de poupar-se, apreciando as sonecas
à sombra da aroeira enquanto cantavam os passarinhos, não viu com maus olhos o 
concorrente, antes o estimulou, gabando-lhe as artes:
- Te cedo a vez, meu nego. Deus te acrescente.
E a verdade é que de tudo o criouloparecia entender. Se era preciso buscar no 
mato uma erva curativa, quer de dia, quer de noite, ele se precipitava por entre
as 
árvores, curvado para o chão, e dali trazia a folha de boldo, a raiz de jurubeba
ou a casca da caneleira, que aliviava o doente. À hora da morte, mandavam chamá-
lo. 
E a mais de um parto difícil, que o sopro da garrafa não resolvia, ele soubera
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dar jeito, ajudando a Comadre Benedita, que não sabia mais o que fazer para 
tirar fora a criança. Também para mordidas de cobras, fossem de cascavel ou 
jararaca,
Samuel sabia a reza forte, que ajudava a chupar o sangue, e só não fazia efeito 
se a vítima tivesse mesmo de morrer, por ordem expressa de Nosso Senhor.
Pequeno de corpo, largo de ombros, ninguém o batia na agilidade e destreza com 
que, diante de uma onça-pintada, disparava a flecha que imobilizava a fera. O 
sangue-frio 
dava-lhe firmeza ao braço. E era astucioso como ninguém. Daí ter sido escolhido 
para substituir o Apolinário (que ultimamente dera para beber), na missão de ir 
a 
um dos povoados mais próximos, de mês em mês, para trocar o milho, o feijão e as
frutas do quilombo, pelas coisas que ali faltavam, como o sal, o fósforo, as 
velas 
de estearina, os côvados de pano e a munição das espingardas.
Damião, em pouco tempo, não quis outro amigo. A bem dizer, foi o Samuel que o 
iniciou mesmo na vida, levando-o a um recesso da mata, que só ele conhecia, e 
ali já 
encontraram a Turíbia, à espera do menino, de costas, sentada nos calcanhares, 
apenas com uma tira de pano sobre as espáduas. Ela não se virou, com o estralar 
dos gravetos e das folhas secas. E sem se voltar, ainda a esgravatar o chão com 
uma ponta de cipó, perguntou:
 - Ocê truxe ele, Samuel? - - Tá aqui te ciando.
- Antão deixa ele e vai-te embora. Não fica pur aí ciando, que eu não gosto.
E só depois que os passos do Samuel se distanciaram, ela se levantou, rindo para
Damião. Estava mesmo nua, o vestido de riscado em cima de uma pedra, e ali pôs 
também
o pano. Devia andar pelos vinte anos, e tinha os seios grandes, de mamilos 
enormes e muito negros, as ancas espalhadas. Bonita não era, com os olhos meio 
estrábicos.
Junto à pedra, fingiu dar uns retoques no leito de folhas secas que havia 
preparado por cima da terra úmida. E tornando a erguer a cabeça,
veio-se aproximando de Damião, oferecida e envergonhada:
- Credo! Tu óia a gente cuns óio de fogo. Nunca viu muié nua? Tá vendo agora.
Nunca mais Damião esqueceria as mãos que o despiam, e o primeiro roçar dos seios
dela no seu corpo, e os zumbidos da mata circundante, com o restolhar das 
lagartixas 
e os trilos e pipilos dos passarinhos. E quando a Turíbia se entregou, a lhe 
pedir, gemendo, que pusesse um filho no seu ventre, um filho bem macho, capaz de
lhe 
encher as entranhas, foi que ele sentiu a plena exultação da vida, no espasmo 
que fez a negra abrir os braços em cruz, de mãos crispadas, com vontade de 
morrer.
Por esse tempo, já o quilombo tinha a casa de farinha, a engenhoca, o seu 
pequeno cemitério. Desde cedo, ouvia-se ranger a bolandeira. Pouco antes, ainda 
com as 
derradeiras sombras da madrugada, uma
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sineta batia. E o vento, ao ramalhar as árvores da mata, fazia também gemer as 
folhas dos roçados, que iam entrando pela selva. As galinhas, os patos e os 
marrecos 
misturavam-se aos porcos e aos negrinhos que corriam entre os casebres, e eram 
muitas as cabras, de úberes apojados, que davam o leite que ali se tomava.
De vez em quando, por uma notícia vinda dê longe, ou pela susta precipitada de 
um dos vigias, corria no quilombo um alvoroço de guerra. Nessas ocasiões, o 
Julião, 
à entrada de um casebre, ajudado pelo filho, distribuía as armas aos 
companheiros, e cada negro se precipitava para o seu posto, com uma espingarda, 
uma lança, 
um chuço tosco, ou apenas um arco e algumas flechas, enquanto as mulheres 
recolhiam os filhos para dentro das palhoças, e ali se escondiam com eles. Só as
aves 
e os animais domésticos se mantinham alheios ao pânico repentino, com exceção 
apenas dos cães, que empinavam as orelhas, rebeldes às ameaças para que 
deixassem 
de latir. Muitos deles embrenhavam-se pela floresta no rastro dos donos, como no
sobressalto de uma caçada, e era preciso recorrer-se ao estalo de um chicote 
para 
obrigá-los a retroceder.
Cessado o alarma, tornavam os negros ao quilombo, e vinham rindo, em grupos, com
o Julião à frente, apartado de todos. Damião, que caminhava logo atrás em 
companhia 
do Samuel, via com orgulho a figura altaneira do pai, que não se confundia com 
nenhum outro negro, na energia e rapidez das decisões, no tipo físico e na 
consciência 
de sua missão. Calado de natureza, Julião parecia fechar-se mais em si mesmo, 
nos longos silêncios em que freqüentemente se concentrava. Ele sabia que vinha 
de estirpe 
ilustre, quase toda dizimada na longa viagem do lerdo navio negreiro que o 
trouxera da África para o Maranhão, e guardava, nítidas, as imagens de sua terra
e de 
seu povo, do outro lado das águas imensas. Se não se atirara ao mar, durante a 
vagarosa travessia, como muitos dos companheiros de viagem, foi porque a si 
próprio 
atribuíra o comando de outros negros, assim que se lhe ensejasse ocasião 
propícia para vingar-se do imerecido cativeiro.
Ao fim de um desses alarmas, Julião chamou o filho, que já tinha quase a sua 
altura, com um buço a escurecer-lhe mais a pele por cima da boca, e passou o 
braço 
sobre seu ombro, levando-o para a beira do lago, na descida do terreno em frente
à capelinha:
- Óia, Damião: home nenhum tem direito de fazer de outro home seu escravo, só 
porque nasceu branco e o outro preto. Quarquer um nasce e morre do mesmo jeito. 
A doença 
que dá no preto, dá no branco. A vida é iguar pra todo mundo. Ninguém quer ser 
escravo, tudo quer ser livre. Cativeiro de negro tem de acabar. Pra acabar, só 
tem 
um jeito: é os preto se juntar. No Brasil tem muito preto, mas tudo espaiado, 
uns aqui, outros ali. Não há lugar sem quilombo. E tudo no mato, escondido, cumo
nós. 
Tu te lembra: quando nós chegou aqui, não tinha ninguém. Hoje tem gente muita. 
Mas se véve
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assustado. Tudo cum medo de vortar pró cativeiro, De noite eu sonho que os 
branco tão chegando e pulo da rede, cum a mão na espingarda. Não se tem sossego.
O nego
Cosme, que tinha mais gente que nós, não agüentou a guerra dos branco. O Balaio 
também acabou se entregando. Tou vendo a hora dos branco chegar aqui pra dar 
cabo 
da gente. Eu podia garrar tu, mais tua mãe e tua irmã, e ir embora. Só se eu não
me chamasse Julião. Mas me chamo. Foi eu que fez o quilombo, tudo aqui tá dentro
de meu corpo. Cheguei agora num ponto que não posso parar nem vortar: tenho de 
ir pra frente. As arma que nós tem aqui é pouca. E a munição não dá pra nada. 
Perto 
de nós não tem onde comprar. Também não tem de quem tumar. Tou pensando mandar o
Samué a São Luís. Ele é arteiro, assunta tudo, vê as casa que vende arma, óia se
nós pode comprar. Cum arma na mão, a gente também morre, mas morre pelejando, 
morre cumo home. Ou antão sai vivo, e junta mais preto, inté acabar cum 
cativeiro. 
Se eu cair, tu fica no meu lugar. A gente não pode é fraquejar. Quem fraqueja, 
Deus não ajuda. Vai pró Inferno aqui mesmo.
Tinha anoitecido, e era tão límpida a noite, na claridade do quarto crescente, 
que se via a silhueta das garças, longe, na orla junto à floresta.
- Tudo que eu te falei é segredo. Não fala pró Samué, deixa que eu mesmo quero 
falar. Tá cedo. Tudo tem sua hora.
MENOs DE UM MÊS DEPOIS da chegada do Samuel ao quilombo, já ali se sabia, pelas
conversas da Firmina com a Januária, à hora da lavagem da roupa no
lago, que não adiantava ficar nua diante dele.
- Ele óia pra gente, faz uns agrados em cima dos peito, e adespois manda embora 
- queixou-se a Januária, ainda desapontada.
A outra se pôs a rir. E concertando a roupa entre as coxas, assim que pôde 
falar:
- Cum eu, foi assim memo. Até amarrei a cara, danada da vida. Home nenhum nunca 
me desfeiteou. Foi o premero.
Mas foi a Quirina Pavão, daí a tempos,já meio ébria, depois de
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um novo gole de cachaça, quem pôs a boca no mundo, gritando no meio do terreiro 
para quem quisesse ouvir:
- Gente, Samué não dá cria. Dei catuaba pra ele beber, um mês inteiro, e não 
adiantou. Ele é memo que capado.
E como era alta e magra, fazia lembrar uma juçareira na ventania, com o corpo 
seco a rodar no balanço das gaitadas.
Daí em diante, em todo o quilombo, não se falou noutra coisa. Nos cavacos da 
noite, à porta dos casebres, e nas conversas dos roçados, à hora da comida, como
também 
nos cochichos dos velórios, quando era preciso quebrar o silêncio da madrugada, 
para não deixar o defunto sozinho no meio da casa, comentava-se a pouca sorte do
Samuel, e o certo é que o tempo passava e a tristeza se desfazia, com o riso 
fácil na boca de toda gente.
Por fim, numa noite de lua, pelo fim de setembro, numa roda de cantadores, o 
Prudêncio da Rosaria alteou a voz bonita, depois de experimentar as cordas da 
viola:
A natureza faz coisa Que ninguém sabe explicar: Pôs espinho nas roseira Pra mão 
da gente jurar.
E logo se ouviu o coro responder:
A pomba do Samué Não foi feita pra voar.
Depois do refrão, que ia longe com o rebôo das vozes masculinas, alongavam-se as
risadas, que o próprio refrão abafava:
A pomba do Samué Não foi feita pra voar.
Samuel estava no seu casebre, terminando de tecer um abano com palmas de 
pindoba, quando ouviu o estribilho. Cerrou a porta, para isolar-se ainda mais, à
luz de 
uma lamparina, e outra vez ouviu o refrão e as risadas, como se toda a mata, em 
seu redor, zombasse dele. Vinha-lhe às vezes a vontade impulsiva de mutilar-se, 
cortando 
o próprio membro, como quem decepa uma haste de cana a um golpe de facão; mas 
sustinha o gesto, temendo não saber estancar o sangue da ferida. Nascera assim, 
assim 
tinha de morrer. Por que não ia embora? Deixava cair os ombros: adiante, seria a
mesma coisa. Certa vez, em Turiaçu, chamara o farmacêutico ao fundo da farmácia 
e lhe pedira um remédio para a sua disformidade. O velho vergou-se para o chão, 
curioso, empunhando um candeeiro, e só lhe soube
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dizer, com ar de riso, depois de espichar a ponta do beiço, espantado:
- Desse tamanho, em homem, nunca vi. Se ele é assim quando
manso, o que não será quando assanhado!
Em seguida, prescrevera-lhe umas pílulas. E todo o efeito que estas fizeram ao 
Samuel, depois de uma semana de uso rigoroso, foi tirar-lhe o sono, quase o 
levando 
à loucura, sobretudo quando coincidiam as suas insônias com o refrão gaiato que 
os companheiros repetiam:
A pomba do Samué Não foi feita pra voar.
Ultimamente ele pouco aparecia aos companheiros. Se o chamavam, para algum caso 
de necessidade urgente, tardava um pouco, mas acabava indo. Até mesmo com o 
Damião, 
que já sabia encontrar-se com a Turíbia sem precisar de sua interferência, pouco
falava. Tinha o seu roçado, e ali se deixava ficar o mais do tempo, consolado 
com 
a solidão. Ao tornar ao quilombo, sempre encontrava a troça de um, o riso de 
outro, E como o viam agastado, redobravam a pilhéria maligna, que ele não raro 
pensava 
em revidar, crescendo para o outro, de surpresa, de facão levantado. com esforço
conseguia conter-se. Por que só se desforraria de um, se eram todos que zombavam
dele, mesmo as mulheres, e também os moleques? Nem banhar-se mais no lago, 
longe, do lado da floresta, ele podia: havia sempre um grupo de negrinhos a 
espioná-lo, 
escondidos por trás das árvores. E só apareciam quando ele já estava nu, dentro 
da água. De uma feita, levaram-lhe as calças. E ele teve de esperar pela noite 
para 
entrar no quilombo. Quando chegou, toda gente estava à sua espera, para rir ao 
vê-lo passar correndo; ainda por cima, tinham-lhe fechado a porta da palhoça.
- Ocês me pagam - jurou ele, depois de meter o ombro na
porta, cego de raiva.
Nos dias que passava fora para abastecer o quilombo, descansava da ira. Preferia
os lugares desconhecidos, e ali trocava as coisas que levava pelas coisas que 
lhe 
encomendavam. Antes que lhe descobrissem o tamanho da rola, sensível no volume 
das calças, já estava de volta. E no vento que assobiava, como no canto dos bem-
te-vis, 
sentia a surriada hostil que vinha de novo torturá-lo.
Julião sentiu-lhe a mudança. E para demonstrar que o distinguia, confiando na 
sua lealdade, teve com ele uma longa conversa, a sós, dias depois de um novo 
alarma 
no quilombo, e daí resultou que o Samuel, na semana seguinte, pela madrugada, 
partiu para São Luís.
Na véspera da viagem, de tardinha, quando se recolhia de seu roçado, ele se 
tinha encontrado, na dobra do caminho, com a Quirina Pavão, que também estava 
voltando 
ao quilombo. Passou por ela, sem lhe falar. E ela, assim que ele se distanciou:
21
- Broxa duma figa! Tem muié sobrando, e tu aí com teu badalo de veio! Faz 
promessa, porcaria!
Ele apressou o passo, quase a correr, sentindo que a mão lhe tremia, impulsiva, 
no cabo do facão. E entrando na palhoça, ainda pálido:
- Espera, vaca veia. Tu não perde por esperar. Novamente havia passado a estação
das grandes chuvas. Vinham
agora as noites límpidas, de céu estrelado, com os bandos de garças e de guarás 
voando baixo pelo cair da tarde. Aos domingos, na capelinha, o velho Quincas 
Nicolau, 
todo curvado, sempre com um bastão para escorar o corpo, a barbicha rala 
algodoando-lhe o queixo, fazia as vezes do padre, numa espécie de missa a seu 
modo, e era 
ele também que fazia os batizados e encomendava os mortos à beira da cova. 
Depois, à noite, no terreiro, rodavam as danças ao som do tambor, dos ogãs e das
cabaças, 
que o coaxar dos sapos, perto, parecia acompanhar.
Os velhos fumadores de diamba, que sempre formavam um grupo à parte, isolados 
dos companheiros, passavam uns aos outros, nas noites claras, o cigarrinho mal 
enrolado, 
até que tudo em redor se distanciava, só ficando um mundo vago, violáceo, já 
silenciado o tambor do terreiro, fechados os casebres, todo o quilombo 
adormecido, com 
um ou outro cão espantadiço a latir à toa, e o vento a soprar o seu sussurro de 
rio invisível.
Dois desses fumadores já tinham caído, derribados pela fumaça que os envolvia. 
Só três, de pernas estendidas, as pálpebras entrefechadas, se mantinham 
despertos, 
com força bastante para ir passando o cigarrinho ao companheiro. Viam ainda 
vultos esbatidos, sombras que se
esgueiravam, uma claridade de fogo-fátuo por cima do 
lago, estranhas mulheres de unhas imensas, sacis que dançavam nos raios do luar.
Foram eles que viram, na vaguidade onírica que os envolvia, uns homens armados 
que confluíam para o quilombo aos dois, aos três, cercando os casebres, 
invadindo
a palhoça onde se guardavam as armas, calando os cães a golpes de lanças. Um dos
fumadores quis levantar-se e gritar, não sabendo distinguir o sonho e a 
realidade, 
e caiu para trás, golpeado em pleno peito, ao mesmo tempo que outros homens iam 
chegando, também armados, e começaram por tirar de sua palhoça o Julião, já de 
mãos 
amarradas para trás, e mais o filho, tonteado por uma coronhada na cabeça.
Todo o quilombo veio para fora, os filhos pequenos agarrados à saia das mães. 
Por toda a parte, gritos e choros, sem que os negros pudessem disparar um só 
tiro. 
Muitos deles jaziam mortos, dentro de suas palhoças, ou em frente às portas, 
atravessados pelo pontaço das lanças. Os cães latiam, no atropelo da confusão. 
Até as 
chamas das lamparinas pareciam atônitas, não sabendo ao certo para que lado se
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voltarem. E na desordem, só um preto, dando mostras de muita calma, pediu a um 
dos soldados que o amarrasse:
- Por favor, dê um nó aqui.
Ele próprio tinha saído de seu casebre, já com as mãos às costas, trazendo 
consigo um pedaço de corda, e a empurrar o seu baú de couro com os pés. E quando
o
soldado o amarrou, não com a corda que ele lhe oferecia, mas com outra, bem mais
grossa, que lhe apertou os pulsos, não gemeu nem se queixou, e só então revelou,
numa voz macia, perfeitamente ajustado à sua condição de prisioneiro:
- O distinto acaba de amarrar um Barão.
E deu uma corridinha para a frente, quandosentiu que o outro, agastado com a 
impertinência de seu título, lhe assestava em cheio um pontapé na bunda.
Ainda curtindo a última carraspana, a Quirina Pavão foi trazida para fora na sua
própria esteira, e esgoelou-se, de punho fechado, sentada no chão, com o ódio a 
lhe tufar as veias do pescoço:
- Brancos de merda! Filhos da puta!
E foi só o que disse, porque, ali mesmo, uma coronhada lhe apanhou a nuca, e ela
tombou para a frente, como se voltasse a mergulhar no sono, desta vez com o 
sangue 
a lhe empapar a cabeça.
Era tão clara a noite, na lua cheia de agosto, que o chão parecia de areia, na 
grande luz que se derramava sobre o quilombo. Não se viam apenas os vultos dos 
negros 
amarrados, sob a vigilância das espingardas inimigas, no terreiro inundado de 
luar: distinguiam-se-lhes as feições tensas, todos imóveis, chumbados ao chão 
pela 
surpresa do infortúnio. Dois deles conseguiram desvencilhar-se da corda, e 
pularam para um soldado, tomando-lhe a espingarda; mas caíram adiante, crivados 
de balas.
Só as mulheres protestavam, vociferando.
- Larga meu fio, diabo!
- Vai empurrar a vaca da tua mãe, seu peste!
com a pistola na mão, o alferes louro, de passo pesado, que comandava a tropa, 
ia avisando:
- Lugar de escravo é na senzala, debaixo das vistas de seu senhor. Todos vocês 
vão voltar para seus donos. Ou então morrem aqui mesmo, que eu tenho ordem de 
matar.
Julião se viu perto do filho:
- Nós foi traído - conseguiu dizer-lhe.
A cada momento estrondavam os tiros, uns aqui, outros adiante, outros mais 
dentro da mata, e de repente um rolo de fumaça subiu, ganhou altura, e logo as 
labaredas 
lamberam a palha de um dos casebres, no começo do fogaréu imenso que irrompeu de
vários pontos, ameaçando estender-se para a mata circundante. Uma a uma, as 
palhoças 
iam ardendo, e só se viam mulheres correndo para a borda do lago, seguidas 
atropeladamente pelos filhos e os cães, enquanto os homens se retraíam, de olhos
crescidos 
e mãos atadas, vendo avançar
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o clarão vermelho que engolfava todo o quilombo. Galinhas, patos, marrecos, 
porcos, cabras, o bode Mimoso, todos fugiam também, na mesma debandada pânica. 
De cada 
canto pulavam sapos, e uma jibóia enorme rastejou, tentando escapar à língua de 
fogo que a perseguia. Em pouco o incêndio era uma única fogueira debaixo da lua 
tranqüila. 
E assim continuou pelo resto da madrugada, até que o raiar do dia esbraseou o 
horizonte, para os lados do nascente, por cima da floresta, ao mesmo tempo que o
luar 
se desfazia sobre os escombros ainda fumegantes: do casario restavam apenas 
montões de cinzas, com algumas brasas que a brisa matutina avermelhava.
Damião guardaria por toda a vida a imagem desse novo dia clareando o quilombo 
desfeito. Só então reparou que muitos negros choravam. Vários deles, exaustos, 
estavam 
sentados, a olhar os seus bens perdidos, com a consciência da volta ao 
cativeiro. Seu pai permanecia de pé, o semblante contraído, caFàdo. Ensaiara 
falar-lhe, e 
ele não respondera, petrificado no seu silêncio, as sobrancelhas travadas. Viu 
também quando ele foi posto à frente dos companheiros, para a longa marcha 
através 
da floresta. Ainda bem que o filho o seguiu de perto, preso à mesma corda que 
amarrava um negro a outro, na longa fila submissa. As mulheres e as crianças 
vinham 
atrás, sem que as tangessem, e só uns poucos soldados, de espingarda ao ombro, 
lhes apressavam o passo, na cauda, dos retirantes. Mesmo assim, se alguma se 
retardava, 
era deixada para trás, entregue à mata.
Na partida tinham sido arrepanhados alguns porcos, marrecos e galinhas, que em 
breve eram largados nas veredas, pela dificuldade de transportá-los. Apenas os 
cães 
seguiam espontaneamente os donos, e tinham um ar festivo, balançando a cauda, ao
lado da fila de negros; por vezes se desgarravam, para perseguir um bicho na 
mata, 
e logo reapareciam mais adiante, ainda de orelhas fitas. Já as cabras vinham 
quase que puxadas, e punham-se a berrar, reclamando contra o laço que lhes 
apertava 
o pescoço.
Por volta do meio-dia, a fome e a sede começaram a afligir, sobretudo a sede. 
Como os negros continuavam de mãos amarradas, eram umas tantaS mulheres que lhes
acudiam, 
com as cabaças d'água. E eles bebiam caminhando, porque a ordem era seguir em 
frente, para alcançar o rio, onde as gabarras os esperavam. E porque todos eles 
conheciam 
a floresta, o caminho se fazia maior, parecendo não ter fim. Julião, sempre à 
frente, mantinha a cabeça erguida, a fisionomia dura fortemente vincada pelo 
sulco 
das rugas. Olhava direito, sem vacilar o passo, e ainda apertava os lábios, de 
sobrancelhas contraídas.
Ao fim do segundo dia, já a marcha era lenta, e alguns negros caíam e 
levantavam, desta vez reanimados pelos chicotes, que os lapeavam nas costas, à 
altura das espáduas. 
Um preto tombou sem forças, dizendo que as pernas não lhe obedeciam, e foi 
largado na orla da mata, depois de um tiro na nuca. Como algumas mulheres, com 
filhos 
ainda pequenos, não pudessem mais carregá-los, foram
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também deixadas com eles, e a retirada prosseguiu, tarde adentro, como na pressa
de uma rota batida.
Mais adiante, nas proximidades de um povoado, outros soldados substituíram os 
primeiros, e a marcha continuou. Só de noite se podia descansar, e assim mesmo 
já tarde, 
porque a lua redonda iluminava a picada, coando-se pelas aberturas dos ramos. 
Cedo, antes do sol, volvia-se a caminhar. E assim a derrota se prolongou, até 
que, 
no quarto dia, quando a tarde principiava a esmorecer-se, ouviu-se, ainda longe,
o sussurro do rio.
Os próprios negros exaustos sorriram, com esperança de alívio. Agora, já estava 
perto o fim da caminhada. Mas as pernas de muitos deles não agüentavam mais o 
corpo 
faminto, e outra vez caíam, e outra vez levantavam, sempre ouvindo o estalar dos
chicotes. O Mundico Tamboreiro pôs-se a rir tão alto, com o braço estendido para
a frente, sem que as palavras lhe viessem à boca ressecada, que o Barão achou 
prudente advertir que o companheiro tinha perdido o
juízo:
- Ficou gira - cochichou ao soldado que vinha à sua direita.
Antes não houvesse dito nada; porque, de pronto, um tiro reboou, e o Mundico 
caiu por terra, com o seu tambor às costas.
A alguns, como o Julião, apenas o ódio mantinha de pé, andando sempre. Nos 
largos estirões areentos, onde as pernas pareciam afundar, enterrando-se acima 
dos tornozelos, 
o esforço era dobrado, e eles não fraquejavam. Só um júbilo experimentavam: o de
ver que muitos dos soldados também arquejavam nas travessias penosas, a despeito
de terem os pés protegidos pelos borzeguins de campanha.
Um espinho ferira o pé esquerdo de Julião, e ele não se queixara. Limitara-se a 
quebrá-lo dentro da carne, com a planta do pé roçando o chão, e adiantara logo 
outro 
passo, com as pálpebras reduzidas apenas a uma fresta pelo ódio tenaz. O que em 
verdade lhe doía era o sentimento da derrota humilhante, sem luta alguma, no 
improviso 
do assalto bem planejado. As três sentinelas, que velavam pelo quilombo durante 
a noite, tinham sido mortas nos seus postos: tinha-as visto no início da marcha,
com as flechas certeiras que as fizeram cair sobre suas espingardas. Agora, tudo
perdido. Que ia fazer, para recomeçar a sua luta?
Pela manhã, na luz rútila que se ia ampliando, o rio apareceu de repente, largo,
um pouco barrento, com três gabarras amarradas a um trapiche, e muita gente à 
espera 
dos calhambolas.
Julião saltou para a primeira gabarra, e caiu, desequilibrando-se com o 
movimento da embarcação. com esforço, tentou erguer-se, e as forças lhe 
faltaram, porque
não tinha o apoio das mãos. Felizmente o Damião acudiu, e ele se levantou, 
ajudado pelas pernas do filho. Os olhos se lhe umedeceram, quase fechados. Onde 
estava 
Deus, que não amparava os seus negros? E nisto um mulato forte, espadaúdo, com
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uma pistola na cintura, desamarrou-lhe as mãos, para que Julião se encarregasse 
de um dos remos, à proa da barcaça.
- Eu remo por ele - ofereceu-se Damião.
Mas Julião já estava no seu posto, as mãosadiantadas para o cabo do remo. Era 
outro agora, com os braços livres, apesar da ferida aberta nos seus pulsos pelo 
nó 
da corda.
Em breve, havia um negro em cada remo, de um lado e de outro da gabarra. Na 
parte central da barcaça, entre as duas orlas de remadores, apertavam-se os 
calhambolas, 
sentados no casco molhado, ainda de mãos para trás, e com as pernas tão 
encolhidas, que alguns deles apoiavam o queixo nos joelhos. Entre eles, alguns 
soldados, 
com o dedo no gatilho das espingardas. Na proa, o mulato da pistola, agora 
empunhando um chicote. E foi ele que ordenou a largada, rio acima.
Os remos vieram para a frente, ao lume do rio, e logo fenderam as águas, 
empurrando a barcaça lerda ao arrepio da correnteza, enquanto um negro magro, 
sentado na 
popa, com as mãos no cabo do leme, ia manobrando para o meio da torrente e 
comandando as remadas:
- Eh, ô, eh, ô, eh, ô.
O rio se faz mais largo, as árvores das margens diminuem de tamanho, e a gabarra
vai avançando por águas mais límpidas, quase transparentes. com pouco, as 
remadas 
se harmonizam, no vaivém dos braços tensos, que ora puxam o cabo do remo, ora o 
empurram, debaixo do sol que vai subindo. Um pouco atrás, vem a outra gabarra, e
a terceira logo a seguir, todas apertadas de negros que voltam ao cativeiro.
Mais a montante, já transposto o meio-dia, a primeira gabarra se atrasa, de modo
que a segunda está prestes a alcançá-la, e é então que o mulato grita, erguendo-
se, 
com o chicote levantado:
- Mais depressa, seus putos!
A chibata zine e estala, zine e estala, primeiro à esquerda, depois à direita, e
aí apanha em cheio as espáduas de Julião, que se encolhe de dor, vergando os 
ombros 
para a frente, e ei-lo a levantar o remo, com toda a força de seu ódio, para 
alcançar de um só golpe a cabeça do mulato, que se desfaz para o lado contrário,
de 
nuca fraturada - ao mesmo tempo que o remador, de um salto, se precipita para o 
meio das águas.
Sentado junto à proa, sempre de mãos atadas, sem poder levantar-se, Damião 
acompanhou toda a cena, até o momento em que o corpo descreveu no ar uma curva, 
no salto 
para a correnteza. Ouviu em seguida o baque nas águas. De respiração suspensa, 
alteou a cabeça o máximo que lhe era possível, chegando-se para a borda do 
casco, 
e ficou procurando o pai com os olhos aflitos.
- Lá vai ele - gritaram vários negros, uns a mostrarem com a ponta do beiço, 
outros estirando os braços.
26
Julião parecia um peixe grande, rabeando na transparência do rio. Lá adiante, 
voltou à tona, apenas por um momento, certamente para respirar. E logo 
estrondaram 
os tiros, partidos simultaneamente das três barcaças. Como se houvesse escapado 
à sanha das balas que o alvejavam, Julião tornou a mergulhar, fugindo sempre. 
Mas 
agora as gabarras mudavam de rumo, seguindo a descida das águas, numa tentativa 
de cerco ao fugitivo.
E o que Damião viu a seguir, juntamente com os companheiros consternados, 
ficaria para sempre nas suas pupilas: uma grande mancha de sangue boiando à tona
da correnteza, 
enquanto as piranhas bloqueavam o corpo esguio, que se debatia entre as navalhas
de seus dentes afiados.
A VOLTA À FAZENDA não poderia ser mais penosa - ele, à frente; a mãe e a irmã, 
logo depois, e por fim o Chico Laurentino, montado numa égua sendeira, pronto
para atirar, se um dos três tentasse fugir.
- Tem de ir tudo calado, para não ficar no caminho, com uma cruz em riba - 
advertiu o diabo louro, com a mão na garrucha.
E mais de uma vez, nas voltas do caminho, Damião sentiu subirlhe à cabeça a 
vontade impulsiva de retroceder de repente, para atirarse ao outro, com a 
agilidade 
e a força de que era capaz. E depois, como seria? Que ia fazer da mãe e da irmã?
A mãe não parava de chorar, entregue ao desespero de ter visto morrer seu homem 
nas águas do rio. Chegara a querer atirar-se também, para morrer com ele. Fora a
filha que não deixara, ajoelhada no fundo da gabarra, abraçada às suas pernas.
De vez em quando repetia a pergunta:
- Por que foi fazer aquilo? Não podia ter um pouco mais de paciência? Que 
custava esperar mais um pouco?
E vinha-lhe a sensação de abandono e desamparo, que pela primeira vez se abatia 
sobre a sua consciência desesperada. Como enfrentar o senhor na fazenda, sozinha
com os filhos? E como agüentaria o castigo, que certamente esperava por ela, no 
tronco do terreiro, agora que não tinha mais o Julião ao seu lado, dando-lhe 
forças 
com o seu
27
olhar? E ia de cabeça baixa, guiando-se pelos passos da Leocádia, sempre a ouvir
o chocalho da égua, que vinha logo atrás.
Aos poucos Damião sente que vai repetindo o pai, no passo firme, na cabeça 
levantada, no modo de encher o peito, com os punhos contraídos, a ira nos olhos 
entrefechados. 
A mãe, agora, quando o olha, nele reconhece os traços do marido - na figura 
esguia e forte, no rosto de pomos salientes, no fulgor das pupilas, nas orelhas 
pequenas. 
Quando ele fala, repete-lhe também a voz, no modo de falar ordenando. E mais de 
uma vez ela já lhe trocou o nome, chamando-o de Julião.
Ao fim do primeiro dia, na nova etapa da viagem, outros dois acompanhantes 
juntaram-se ao primeiro: o Chico Brito e o Patureba, ambos armados, e logo o 
segundo, 
que era estrábico, com um talho de navalha ao pé da orelha esquerda, se pôs a 
gabar a Leocádia, que já começava a deitar corpo, com os quadris bem feitos, os 
seios 
rijos empurrando o morim da blusa. Ela apressou o passo, caminhando ao lado da 
mãe, e viu quando o irmão, de passagem, colheu no chão uma pedra pontiaguda, que
segurou 
com firmeza.
De cima da égua, o Chico Laurentino adivinhou-lhe a intenção:
- Pode largar a pedra, que ninguém aqui toca na moça. Tenho orde do Dr. Lustosa 
pra levar ocês inteiro. Se ocê se mexe aí, quem mata ocê sou eu. Deixe a pedra.
À medida que se iam aproximando da fazenda, Damião só fazia confrontar o que via
com o que tinha na lembrança. Embora houvesse passado por ali já fazia nove 
anos, 
recordava-se de tudo, até mesmo da floração dos ipês na revolta dos atalhos. 
Antes de ver a cascatinha, que se precipita do viso de rochas escalavradas, 
reviu-a 
na sua memória, assim que lhe ouviu o ruído da queda, adiante de um pontiIhão. 
com efeito, nada mudara, inclusive a poeira de espuma, com um halo de arco-íris,
que se ergue da base da cachoeira, no trecho em que o fio d'água desliza, 
buscando o caminho do mar.
Mas, quando tornou a ver a casa-grande, precedida da orla de palmeiras, acima de
uma rampa suave calçada de pedras, não pôde deixar de emocionar-se. Lá adiante, 
alongava-se a senzala, coberta de telha, com seu beiral saliente. Entre a casa-
grande e a senzala, destacava-se o telheiro que cobria o imenso tanque todo de 
pedra, 
e que um dos escravos tinha de encher, todas as manhãs, com a água trazida da 
lagoa.
A casa-grande, a cachoeira, e também o engenho, que deixara envoltos pelas 
chamas, tinham sido rigorosamente recompostos, como se fossem as construções 
primitivas
- sem que lhes faltasse o tom de velhice, nas paredes meio sujas. O largo 
alpendre, com a cadeira austríaca em que o senhor se sentava pelo meio da tarde,
lá estava, 
debaixo do lampião de ferro. E lá estavam também as samambaiaschoronas, que 
balançavam ao sopro das grandes ventanias, nos temporais de janeiro.
28
Retardou um pouco o andar, a jeito de que esperasse a mãe e a irmã; na verdade 
cedia ao alvoroço das imagens que lhe afluíam à consciência, e via-se correndo 
da 
casa-grande para a senzala, da senzala para a casa-grande. De pronto fixou-se no
oitão que olhava para o nascente, e ali recordou Nhá-Biló, de pele muito branca,
os grandes olhos negros.
E ainda olhava para lá, agora parado, quando os cães que guardavam a casa, 
saindo do alpendre ao mesmo tempo, todos iguais, com o mesmo pêlo branco 
salpicado de 
manchas negras, arremeteram ladrando na direção dos que chegavam, como se 
viessem destroçá-los na dentuça agressiva, ao mesmo tempo que um vulto se 
acercava da cadeira 
austríaca, de boné na cabeça, e dali acompanhou a cena.
Antes que eles saltassem, o ChicoLaurentino esporeou a égua, indo-lhes ao 
encontro, de chibata em punho:
- Pra trás, seus diabos!
E eles retrocederam, ainda latindo. A Inácia e a Leocádia tinham-se juntado ao 
Damião, como se este pudesse protegê-las, e abriram os olhos amedrontados, 
sentindo 
o mau presságio daquela acolhida raivosa. Sempre estalando a chibata, o Chico 
Laurentino foi galgando a rampa, seguido de perto pelos três, ao mesmo tempo que
o 
Chico Brito e o Patureba se afastavam, tomando pelo caminho que ia dar no 
engenho.
A tarde vinha desmaiando, com a viração a atiçar o perfume dos jasmineiros que 
se enramavam ao lado do alpendre, numa cerca de pau a pique. Para os lados do 
engenho, 
ia a azáfama dos negros girando a roda da bolandeira. Ouvia-se o gemer das 
moendas espremendo a cana, de mistura com o rangido de um carro de boi que 
voltava do 
canavial.
Assim que saltou da égua, o Chico Laurentino deu de frente com o Dr. Lustosa, 
que se adiantara até o degrau do alpendre, de barba grisalha caindo para o 
peito, 
o boné de xadrez inclinado para a testa, óculos de aros de ouro, o dólmã 
abotoado até o pescoço. Tinha apenas o braço direito. A manga esquerda do 
casaco, vazia 
até o ombro, vinha meter-se-lhe, um pouco acima do quadril, no bolso lateral 
correspondente.
- E o outro? E o outro? - indagou o Dr. Lustosa, dirigindo-se ao Chico 
Laurentino, ao ver apenas o Damião com a mãe e a irmã, defronte do alpendre, as 
duas de olhar 
acossado, ele de cabeça levantada, olhando de frente.
E o Chico Laurentino, torturando o chapéu:
- O outro matou o Bento dentro da barca, depois se atirou no rio, e as piranha 
comeu.
- E por que deixaram? -- gritou o velho, lívido, descendo um degrau, fora de si.
- Eu queria o Julião aqui, e vivo, para pagar o que me fez! Ele tinha de vir! Eu
queria ele aqui! Negro fugido tem de voltar! Era ele que eu queria! Eu disse que
deitava a mão nele!
29
Eu não queria morrer sem agarrar aquele negro! E deixaram ele escapar!
E à medida que Damião lhe ouvia a voz exaltada, que o braço direito acompanhava 
gesticulando, retrocedia ao terror de sua infância, e via-se agarrado à saia da 
mãe, 
chorando, depois de correr da casa-grande para a senzala. Tinha a impressão de 
que o Dr. Lustosa ia bater-lhe como batia nos outros negros, o braço erguido 
segurando 
o chicote.
O braço está novamente levantado, na exaltação da cólera, embora não empunhe a 
chibata; mas os olhos são os mesmos, crescidos por trás das lentes, com o brilho
de ódio nas pupilas castanhas.
- Eu jurei que ia botar aquele miserável no tronco! Era eu que queria acabar com
ele! Como foi que deixaram o negro se atirar no rio? Hem, Seu Chico Laurentino? 
E onde estava você que não impediu aquele filho da puta de se matar?
- Doutôr, eu não tava no barco. Eu tava em terra. Também não vi quando ele se 
atirou. Soube depois.
E o velho, ignorando-lhe a explicação:
- Quando eu dou uma ordem, tem de ser cumprida! Você sabe que fui eu quem dei 
dinheiro ao governo para armar a tropa que ia acabar com o quilombo daquele 
miserável! 
A ordem era pegar todos vivos, e trazer todos aqui! Onde estão os outros? E a 
Rosaria? E o Mundico? E a Quirina Pavão? Quero todos aqui! Aqui!
E batia com o pé no degrau do alpendre, ainda mais exaltado, sempre aos gritos:
- Eu estava no Palácio do Governo, em São Luís, quando o Presidente da Província
autorizou a expedição. E ali mesmo dei a minha parte. Dinheiro mesmo. Saído do 
meu 
bolso! E onde está o crioulo do Samuel? Ele me garantiu que eu pegava vivo o 
Julião! Disse isso na presença do Presidente. E agora você me diz que o Julião 
se atirou 
no rio? Quero ele aqui! Nem que seja só o esqueleto!
Subiu novamente o degrau, vermelho, as veias puladas, e esbarrou na pilastra, 
cego de ira. E dali de cima, apontando para os três escravos, que permaneciam 
parados, 
só o Damião ainda de cabeça erguida:
- Meta os três no tronco, até amanhã.
E foi só daí a uns meses, quase no fim do ano, antes de começarem a cair as 
primeiras grandes chuvas, que Damião, de repente, na estrada que levava a 
Turiaçu, se 
encontrou com o Samuel. Passou a mão nos olhos, para ter a certeza de que estava
mesmo vendo. Sim, era o crioulo. Vinha tocando um berimbau, com ar de bêbado, 
debaixo da soalheira do meio-dia, e ia cruzar-se com ele, adiante do bambual.
Damião preferiu parar, à espera do outro.
E o Samuel, assim que o viu:
30
- Antão é tu, Damião? E sozinho na estrada? Cadê tua gente, cumpanheiro? Nunca 
mais ouvi fala de ocês. Tá tudo vivo?
Damião retrocedeu um pouco, sempre a olhá-lo, a apertar os maxilares, as 
pálpebras contraídas. E quando ele estava bem perto, de modo que já lhe sentia o
bafo, deu-lhe 
o primeiro bofetão. Samuel tonteou, desequilibrando-se, e levantou-se adiante, 
já preparado para negacear o corpo, de pernas arqueadas, as mãos no ar, 
aceitando 
a luta. Damião cresceu para ele, e arremessou-lhe outro bofetão. Samuel outra 
vez tonteou, caindo de borco, na valeta da estrada. Chegou a querer levantar-se,
as 
mãos em terra, soerguendo a cabeça. Mas já Damião saltava sobre o seu dorso, com
a faca fora da bainha, e enterrou-lhe a lâmina até o cabo, à altura do coração.
JÁ AFEITO À ESCASSA LUZ DO CANDEEIRO, Damião olhou mais uma vez em redor, de 
testa
franzida, espantado com a brutalidade dos dois crimes, ali em São Luís. Voltou a
olhar o negro caído de borco, com a imagem do Samuel na memória. Pensou em sair
dali e avisar a Polícia. Mas anteviu o aborrecimento das idas à Delegacia, além 
de ser obrigado a contar, a cada amigo que o procurasse, a mesma história 
trágica. 
Por outro lado, não tardaria a passar pela esquina outra pessoa, que também 
daria pelo duplo assassinato, e isto dispensava a ele, Damião, já octogenário, 
de deixar 
o sossego de sua sesta ou a paz de seus livros, para passar horas e horas diante
do delegado e do escrivão.
- Na minha idade, tenho o direito de pensar mais em mim que nos outros. Estou 
mais para lá que para cá.
E tratou de voltar à rua, abafando os passos, novamente sentindo sob os pés o 
estalido rangente de vidros quebrados.
Cá fora, a mesma calçada deserta, com seu lampião sonolento. E outra vez, por 
cima do mirante do casarão da esquina, a fatia de luz da lua nova, como se 
estivesse 
a segui-lo.
- Crime feio - comentou. - Vamos ter muito barulho nos jornais. Quem lucra com 
isso é o Dr. Domingues. Enquanto a Pacotilha se ocupar com os mortos, tentando 
descobrir 
quem foi o criminoso, dará uma boa trégua à campanha contra o Governador.
31
E retomando a caminhada ienta, na direção da Gamboa, entre alas de casas 
fechadas, tornou a sentir à sua volta o alvoroço dos negros com a notícia da 
próxima chegada
do Senhor Bispo.
De São Luís, tinham vindo os pintores para a reforma da casagrande e da capela. 
Mesmo a senzala recebera caiação nova. No quintal, debaixo da sapotilheira, as 
negras
da copa não descansavam, limpando as velhas pratas com muita cinza e limão; 
outras, mais adiante, areavam os grandes tachos de cobre que o tempo 
azinhavrara.
Era a própria Sinhá Velha, grande, gorda, com a sua eterna saia preta de merinó,
quem dirigia os trabalhos, sempre a ir da cozinha para a varanda, da varanda 
para 
a cozinha, com passagens pelo quintal, a tilintar no passo esperto o seu pesado 
molho de chaves. E como tinha a voz máscula, ajustada ao buço forte que lhe 
cobria 
a boca, parecia fazer competência ao filho no ralho dos negros. Na verdade, 
destoava deste, na doçura do olhar azul, que trazia consigo um fundo de bondade.
Por entre a azáfama dos escravos e operários na casa-grande, a arrastarem 
móveis, a subirem escadas, a tirarem os quadros das paredes, o Dr. Lustosa fazia
sentir 
na fazenda uma ira diferente: em vez de falar aos gritos, como era de seus 
hábitos, rosnava as suas ordens, e já amanhecia amuado. Por vezes, sem tomar 
sequer o 
café da manhã, saía ao campo no seu cavalo de sela, e só regressava por volta do
meio-dia, com a mesa do almoço à sua espera. Depois da sesta, na rede larga, 
sempre 
lavada de novo, vinha para o alpendre, a ler jornais atrasadosde São Luís, que 
um escravo recolhia no correio da vila de mês em mês.
Damião, nessas ocasiões, se tinha uns momentos de folga, evitava passar pela 
frente do alpendre, para não ser visto por seu senhor. Ainda lhe sentia o olhar 
duro, 
a trespassar o seu, afiado como uma lâmina, na tarde em que fora achado na 
estrada o corpo do Samuel.
- Anda, confessa que foste tu que lhe enfiaste a faca - gritava o Dr. Lustosa, 
sacudindo-o por um dos ombros, a olhá-lo de frente.
E o Damião, firme, sustentando o olhar:
- Já lhe disse que não, Doutôr.
E revia-se a lavar a faca na ribeira, senhor de seus nervos, com a consciência 
de que havia aplicado ao morto o castigo merecido.
- Vais ficar amarrado no tronco, sem comer nem beber, até confessar que foste tu
- ameaçava o Dr. Lustosa, voltando a torturar-lhe o ombro com a mão pesada.
Por sorte sua, dois dias depois, o Egídio Carpinteiro, que também tinha voltado 
do quilombo, apareceu morto com uma facada no peito, no mesmo pedaço de estrada 
em que fora encontrado o Samuel. E como a faca estava no talho, com a mão do 
morto junto ao cabo, logo se viu que ele próprio se tinha matado.
32
Ainda amarrado ao tronco, Damião viu passar o corpo, levado numa rede para o 
velório na senzala. Daí a pouco, em companhia do Chico Laurentino, o senhor lhe 
apareceu:
- O Egídio não te disse que foi ele que matou o Samuel?
- Não, Doutôr.
- E tu achas que foi ele?
De lábios rachados pela sede prolongada, sentindo doer-lhe a boca no esforço da 
fala, Damião mantinha os olhos nos olhos castanhos que o fitavam, sem que o 
rosto 
lhe tremesse:
- Como é que eu posso saber? - conseguiu replicar.
E foi só pelo fim da tarde, quando a boca já lhe ardia em chaga viva, que o 
Chico Laurentino teve ordens de tirá-lo dali.
No entanto, a despeito das torturas recebidas, Damião havia experimentado, no 
seu retorno à fazenda, uma sensação inefável de reencontro consigo mesmo, e que 
lhe 
advinha do cheiro de cana molhada, após as breves chuvas de setembro; do 
vagaroso gemido dos carros de bois; do ranger das moendas; do aroma do melaço 
quente nos 
imensos tachos de cobre; do tarantantã dos tambores no terreiro da senzala; do 
tinido do sino marcando o começo e o fim do dia; da lagoa pontilhada de garças, 
marrecas 
e siricoras na primeira luz matutina; da capela de porta ogival alvejando à 
direita da casa-grande. Dir-se-ia que a infância perdida repentinamente lhe 
voltava. 
E o certo é que essas emoções lhe atenuaram, em parte, a amargura do regresso, a
que sempre associava, na mais profunda essência de sua natureza, a revolta e a 
compaixão 
pela perda do pai.
Ao termo de dois meses, rondava a casa-grande, sempre que podia, a espionar-lhe 
as salas e os quartos, cada vez mais intrigado. Que fora feito de Nhá-Biló? Dela
apenas sabia que, magra, crescida, as tranças caídas para o peito, vivia a 
acalentar as suas bruxas de pano, no quarto espaçoso que abria para o nascente, 
defronte 
do cajueiro de folhas amarelas, abrigo das andorinhas ao cair da tarde.
Certa vez, ainda menino, ao dar com o janelão escancarado, Damião parou, 
emocionado e curioso. Do meio do quarto, Nhá-Biló fazia-lhe um gesto para que 
desse a volta,
entrando ali pela porta lateral. Ele transpõe com medo o batente de pedra. É a 
primeira vez que seus pés de menino andam pelas frias lajotas vermelhas do 
corredor, 
dentro da casa-grande. De porta entreaberta, mais adiante, NháBiló o aguarda, 
com ar de riso, roendo as unhas. Ele passa, com o coração a querer sair-lhe da 
boca, 
e ela o empurra para que se apresse; depois, sempre rindo, dá duas voltas 
nervosas na chave da porta.
- Quero-te mostrar uma coisa - previne-lhe.
Ele está parado, de olhos crescidos, maravilhado, querendo ver tudo - a cômoda 
alta, de jacarandá, com fechos de prata, tampo de mármore, com uma bacia de 
louça 
e um jarro; o guarda-roupa negro, de duas portas rangentes, adornado de 
figurinhas, na parede fronteira; a penteadeira, com seu espelho de três faces; 
num dos ângulos 
do
33
quarto, uma rede armada, de largas varandas roçando o chão; perto da rede, uma 
escrivaninha de tampo levantado, ladeada por uma estante baixa, cheia de livros 
e 
revistas velhas, e mais adiante, no ângulo contrário, a comprida esteira com as 
inumeráveis bruxas de pano de Nhá-Biló.
- Olha aqui - diz ela, apanhando uma das bruxas.
E levanta-lhe a saia, sempre com ar de riso, para que ele lhe veja o sexo, com 
seus pêlos de linha preta, no ponto em que o ventre se encontra com a curva das 
coxas.
- Foi a velha Biá que fez esta boneca para mim. Me deu no dia dos meus anos. É 
igualzinho o meu, assim com esses pelinhos.
O negrinho segura a boneca e ri, querendo abafar o riso. No esforço para conter-
se, o riso se lhe derrama pelos cantos da boca, enquanto Nhá-Biló repete, séria:
- Não estou mentindo. É mesmo. Igualzinho. Sem tirar nem pôr. Juro por Deus. 
Queres ver?
E sem esperar que ele responda, retrai-se para o canto da parede, entre o 
janelão e a porta fechada, e ergue primeiro a saia do vestido, que segura com a 
ponta 
do queixo; depois a anágua, que igualmente prende no queixo com a barra da saia,
e por fim a combinação.
De olhos risonhos e divertidos, Damião lhe vê as coxas brancas, cheias, 
destacadas pela claridade da manhã alta, e instintivamente fiscaliza a janela, 
com a vaga 
consciência de que está fazendo o que não deve. Logo reprime o riso, muito 
compenetrado, quando Nhá-Biló desce a calça até os joelhos, e adianta um pouco o
ventre, 
para exibir o sexo, já afofado de pêlos negros.
- Estás vendo? Igualzinho o da boneca.
Em seguida, volta a subir a calça, e deixa cair sucessivamente a combinação, a 
anágua e o vestido. Dali chama Damião:
- Vem cá.
Segura-o pelos ombros, leva-o até à parede, onde o encosta. Quase ao mesmo 
tempo, ajoelha-se aos pés dele, já a procurar-lhe a braguilha das calças:
- Agora, eu quero ver o teu.
Ele ensaia retrair-se, encolhido contra a parede, as pernas bem fechadas, as 
mãos protegendo a rolinha; porém ela o sacode, de olhar duro, quase colérico, e 
desabotoa-lhe 
a calça, até que se extasia, com 'o membro do menino entre as mãos trêmulas:
- Direitinho como eu pensava, direitinho como eu pensava rapete, de olhos 
estrábicos, os seios pequenos arfando sob o vestido.
Diante do janelão fechado, Damião apura o ouvido, para ver se escuta algum rumor
lá dentro. Silêncio. Horas depois, voltou a passar por ali. Sempre o janelão 
fechado, 
e mesmo ao fim da tarde, com a algazarra das andorinhas no cajueiro. Nhá-Biló 
teria morrido? E de súbito avistou, de pé junto ao oitão da casa, uma figura de 
preto, 
com
34
os cabelos soltos dando na cintura, muito branca, os olhos escancarados em sua 
direção.
- É ela, sim - reconheceu, penalizado.
E viu que ela, logo a seguir, corria para o corredor, depois de fazer o sinal-
da-cruz, deixando no chão uma das chinelas de trança.
Tornou a vê-la na semana seguinte, à mesma hora, no mesmo lugar, e confirmou a 
impressão do primeiro encontro, achando-a envelhecida, meio largada, os cabelos 
soltos, 
num desalinho de enfermidade. Assim que ela deu por ele, tornou a correr, 
repetindo o sinal-dacruz.
- Coitada de Nhá-Biló - lamentou Damião.
E não tornou a procurá-la. De volta do canavial, tangendo o lerdo carro de bois 
atulhado de canas para a moenda, olhava de longe o cajueiro, o janelão fechado, 
o 
oitão da casa, e ia para o banho rápido na lagoa, já com as sombras da noite 
escurecendo o verde das árvores, apagando a faixa clara da estrada, começando a 
esconder 
a fachada dá casa-grande e as palmeiras esgalgadas que a precediam. Lá adiante, 
passada a capela, reluzia o olho esbraseado do contravento, pendente de um 
gancho 
de ferro, sob o telheiro da senzala.
Na tarde em que o senhor voltou a chamá-lo, Damião apareceu no alpendre com um 
mau pressentimento. De antemão sabia que para boa coisa não havia de ser. E de 
chapéu 
na mão, subiu de leve o primeiro degrau, apoiando-se num dos pilares:
- Pronto, Doutôr.
Entretido na leitura de um jornal dobrado, que lhe tapava a vista, o Dr.Lustosa
não lhe sentira os passos. Ao ouvir-lhe a voz, que era a mesma do Julião, atirou
para um lado o jornal, de cabeça empinada, a mão no braço da cadeira, como se 
fosse levantar:
- Tu tens a quem sair. Teu pai não prestava, e tu vais pelo mesmo caminho. O 
feitor veio aqui me dizer que a carga de cana, posta no teu carro no canavial, 
chega 
aqui em cima muito reduzida. De duas, uma: ou tu deixas a cana cair de 
propósito, para me dar prejuízo, ou estás passando ela adiante, para me roubar.
Apanhado pela surpresa da acusação, Damião sentiu o sangue subir, ardendo-lhe as
orelhas:
- O feitor lhe disse isso?
- Disse, e aqui na fazenda eu não quero negro safado nem ladrão.
Damião dobrou o chapéu, no impulso da ira. E de vista levantada, sem conseguir 
conter-se:
- Se ele lhe disse isso, o safado e o ladrão é ele.
O Dr. Lustosa levantou-se, já empunhando a palmatória de pauroxo que apanhara na
mesa à sua direita:
- Pois vais aprender a deixar a língua dentro da boca, quando falares com o teu 
senhor. Sobe aqui.
35
Damião subiu, deixando o chapéu no descanso do alpendre, enquanto o Dr. Lustosa,
à frente da cadeira, acomodava melhor a mão no cabo da palmatória.
- Doutra vez, voltas ao tronco - advertiu-o, preparando-se para a bordoada rija,
de pernas levemente abertas para dar toda a firmeza ao corpo. - Vem mais para a 
frente - ordenou.
Damião viu o braço levantar-se e pender um pouco para trás, para voltar a descer
firme sobre a sua mão espalmada. Não olhou o efeito da pancada, com a vista 
fixada 
no rosto do senhor, mas teve a impressão, pela dor e a violência do golpe, que a
sua carne tinha ficado partida. Outra vez o braço subiu, tornou a descer, e mais
uma vez o negro retesou os músculos do rosto, endureceu bem as pernas, sentindo 
escorregar-lhe da testa lisa os primeiros fios de suor. A pancada caiu-lhe em 
cheio 
na palma da outra mão, e ele estremeceu, reprimindo o grito que lhe quis forçar 
a boca. com dezoito anos feitos, era a primeira vez que apanhava. Antes, o pai 
não 
lhe batera; a mãe também fora benigna com ele. De modo que, agora, recebendo o 
castigo imerecido, juntava à dor o sentimento do ódio, e era com esforço que se 
mantinha chumbado ao chão, recebendo as bordoadas. Seu olhar continuava fixado 
no rosto de seu algoz, direito, horizontal, cara a cara, e este redobrava de 
furor, 
sentindo-lhe o desafio. Damião só via a palmatória quando esta subia e baixava, 
passando à frente de seus olhos, sempre brandida por uma energia implacável e 
que 
parecia crescer na repetição da bordoada. À altura da nova palmatoada, não 
precisou olhar para saber que a palma da mão direita estava rachada ao meio e 
empapada 
de sangue. E quando o braço do senhor tornou a descer, com a palmatória zinindo 
no ar para novamente cair na mão ferida, seu instinto pôde mais que a firmeza de
sua cólera, e ele puxou o braço, ao mesmo tempo que o Dr. Lustosa vinha para a 
frente, desequilibrando-se, e só não caiu no quintal, por cima do descanso do 
alpendre, 
porque na passagem se amparou no pilar.
- Ah, negro de merda, tu me pagas! Vai apanhar o dobro, para nunca mais tirares 
a mão na hora da bordoada!
E dobrou de fato o castigo, lapte, lapte, lapte, uma palmatoada atrás da outra, 
até perfazer duas dúzias bem contadas, sem um momento de descanso do braço 
vindicativo, 
que subia e descia, subia e descia, com o rosto do senhor vermelho, de veias 
puladas, as pupilas faiscantes, enquanto Damião alternava as mãos sangrentas, 
que a 
palmatória ia espapaçando no seu bater feroz.
- Agora, acabou-se a boa vida no carro de bois - rematou o Dr. Lustosa, 
aniolecendo o braço exausto, depois da última palmatoada.
- Vais para a lata de água, de manhã à noite. Quem enche o tanque, agora, és tu,
e até à borda, todos os dias, mesmo aos domingos!
E de manhã à noite, daí em diante, chovesse ou fizesse sol, lá ia ele, rampa 
abaixo, rampa acima, entre o tanque e a lagoa, com as
duas latas pendentes de um pau que lhe atravessava os ombros. De início, até
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as mãos, para equilibrar a carga, ele não as tinha, porque as trazia envoltas em
trapos, ainda com as feridas abertas. Só ao cabo de dois meses pôde valer-se 
delas,
e assim mesmo aos poucos, gradativamente, no esforço para contrair os dedos e 
sentir que o tato lhe voltava.
Ali na fazenda, ninguém suportara a penitência do tanque. Antes de Damião, dois 
escravos tinham fugido, preferindo a aventura na mata àquele castigo infindável.
Um terceiro, o Balduíno, enforcara-se numa das escapulas da senzala, antes de 
findar o primeiro mês.
O Dr. Lustosa havia sido franco:
- Se fugires, como o patife do teu pai, quem me paga é a tua mãe e tua irmã, que
vão para o tronco, e ali ficarão até tu voltares.
Felizmente, quando as suas mãos já estavam cicatrizadas, entrou pela casa-
grande, com o alvoroço das ventanias de outubro, numa carta vinda de São Luís, a
notícia 
da próxima chegada do Senhor Bispo, que por ali nunca passara. E então começou, 
em toda a fazenda, antes de clarear o dia e até entrando pela noite, a azáfama 
dos 
escravos e operários, com a Sinhá Velha a tilintar pela casa o seu molho de 
chaves.
Até a Sinhá Dona, que passava o mais das horas com os seus bordados, rodeada de 
mucamas, a aumentar o bragal da casa, agora também não tinha sossego, a abrir e 
fechar os seus imensos baús pintados, de onde retirava as cortinas muito alvas e
os grandes panos de mesa, trescalando fortemente a alfazema, para a varanda, a 
alcova, 
os quartos de hóspedes e a sala de visitas. Vinha-lhe atrás, como se fosse a sua
sombra, a Sinhá Miloca, trazendo por cima do pulso esquerdo um perpétuo xale 
escuro 
que lhe escondia a mão mirrada, e era talvez mais expedita que a irmã, na 
ligeireza com que ia buscar nos armários certos as velhas peças esquecidas, de 
que talvez 
só ela, ali, se recordasse bem.
Ambas andavam agora com vestidos de cassa branca recendendo a naftalina, os 
cabelos apanhados para o alto, botinas de polimento, como se fossem à missa dos 
domingos, 
na igreja do povoado, ao contrário da Sinhá Velha, que nunca variara o seu traje
de merinó preto, desde que deixara o marido no chão da capela, já lá se iam 
vinte 
e nove anos bem contados. Esta última, vez por outra, pelo fim da tarde, 
arrimava-se a uma bengala, para ajudar-se na descida dos batentes.
E como o Dr. Lustosa não falava com a mulher, desde que esta havia trazido para 
a fazenda, sem o seu consentimento prévio, uma senhora portuguesa, com a qual 
Nhá-Biló 
aprendera a tocar guitarra, houve um grande espanto à mesa do almoço quando ele,
à hora da sobremesa, sem levantar a vista, perguntou à Sinhá Dona se não seria 
melhor 
reservar para o Senhor Bispo o quarto dos fundos, que era mais fresco e mais 
espaçoso.
- Eu não quis fazer nada sem sua ordem.
- Pois então faça.
37
l
No ir e vir contínuo, da lagoa para o tanque, do tanque para a lagoa, Damião via
a lufa-lufa da casa que se transformava. Pelas janelas escancaradas, espreitava
de passagem os grandes retratos nas paredes, os espelhos doirados, as cadeiras 
estofadas, a grande marquesa de palhinha, os consolos de tampo de mármore com 
jarros 
de porcelana, as camas de dossel, o enorme oratório de jacarandá cheio de 
santos, e todo ele também se alvoroçava, contagiado pela excitação de 
formigueiro que as 
rótulas abertas permitiam surpreender.
De noite, quebrado de corpo, mal caía no fundo da rede, mergulhava em sono 
profundo, de que só emergia com o bater do sino, chamando para a labuta do novo 
dia. 
E a caminho da lagoa, com o pau da carga atravessado ao ombro, volvia a pensar 
na visita do Senhor Bispo, imaginando que o prelado chegaria à fazenda carregado
num andor, de mitra na cabeça, tal e qual no seu quilombo Dom Cosme Bento das 
Chagas, Imperador e Tutor das Liberdades Bemte-vis.
Parecia-lhe que o Senhor Bispo seria um ser diferente de quantos até então 
conhecera - todo-poderoso, mais perto de Deus que dos homens. Já lhe tinham dito
que, 
quando Sua Reverendíssima passasse, todos ali se ajoelhariam, brancos e negros, 
e com o chapéuna mão. Até o Dr. Lustosa, que não baixava a cabeça para ninguém,
iria beijar, de cabeça baixa, o anel do Reverendo, metido na sua farda da Guarda
Nacional, que já havia sido posta para arejar numa cadeira do alpendre.
O próprio Dr. Lustosa, diante dos negros espantados, mandara o Chico Laurentino 
tirar do terreiro o tronco dos castigos. É logo recolhera o riso dos negros, que
se entreolhavam, maravilhados, na suposição de que a retirada fosse definitiva:
- Mas volta para o seu lugar, assim que o Senhor Bispo for embora. E quem tiver 
de apanhar, com o Bispo aqui, não fica livre do chicote: apanha depois.
Damião ouviu a ameaça na descida da rampa. Já havia perdido a conta de suas idas
e vindas, naquela lida monótona e extenuante. Por vezes, galgando a rampa, tinha
de redobrar de esforços para que as suas pernas não fraquejassem ao peso das 
duas latas transbordantes. Chegava lá no alto, despejava-as no tanque, e outra 
vez voltava 
à lagoa. Tornava a subir, tornava a descer. A despeito da almofada que a mãe 
preparara para proteger-lhe o ombro, sentia ali, incomodando-o, o calo do pau da
carga.
De vez em quando, na senzala, zombavam dele:
- Eh, eh, Damião, tu passou da boa vida do quilombo, cheio de vontade, pró 
aperreio do trabalho na fazenda, com as tuas latas d'água. Te queixa de ti, 
criatura. 
O feitor jurou que ia quebrar teu orgúio. T'aí no que deu esse. teu jeito de 
andar cum a cabeça pra riba. Branco é branco, negro é negro, cada um tem de 
conhecer 
seu lugar.
A Malvina, mais de uma vez, à noite, no seu regresso à senzala, tinha-lhe dito, 
a pitar o seu cachimbo de taquari comprido:
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- loiô disse que tu vai carrega água inté esvazia a lagoa. Eh, eh, Damião! Tu 
morre, e a lagoa não seca!
Ele passava direito para o seu canto, ao fundo da senzala, como se não ouvisse o
que lhe diziam. No íntimo, era só no que pensava. Não raro a revolta trazia-lhe 
à boca um gosto vivo de fel. Até quando duraria o seu tormento? E ficava a 
esmoer a ira surda, de olhos apertados, maquinando desforras. Por que não matava
o senhor? 
Ao ouvir o galope de seu cavalo, nas ocasiões em que o Dr. Lustosa dava as suas 
voltas habituais pela fazenda, vinha-lhe a vontade de atravessar uma corda na 
estrada, 
para derrubar-lhe a montaria, e cair de surpresa sobre ele, assestando-lhe a 
paulada na cabeça. Em seguida, de novo com as latas de água no pau de carga, 
subiria
mais uma vez a rampa, para continuar a encher o tanque, como se nada houvesse 
acontecido. Não fizera assim com o Samuel? E adiando o crime, sempre de olhos 
entrefechados:
- Não perdes por esperar - jurava-o.
De noite, agora, via luz no quarto de Nhá-Biló. E não tardava a ouvir-lhe a 
guitarra, repetindo velhas músicas magoadas, que os tambores do terreiro 
tornavam mais 
plangentes com o fundo sonoro de seu prolongado batecum. Condoía-se dela, 
ajuizando-lhe a desventura, sobretudo depois que lhe ouvira os gritos, no 
silêncio da 
madrugada:
- Eu não quero ir para o Inferno! Eu não quero ir para o Inferno! Eu não quero 
ir para o Inferno!
Toda gente sabia que ela, nessas ocasiões, permanecia de joelhos, rezando em voz
alta, de vista baixa, o rosário nas mãos, com medo do Diabo, que a espreitava de
um canto do quarto, todo vermelho, com seus chifres, sua cauda comprida e seus 
olhos de fogo.
Debalde o Dr. Lustosa crescia para a filha, fora de si, ameaçando bater-lhe. Não
havia Diabo nenhum ali! Era tudo mentira! O que ela queria era ter um pretexto 
para 
não deixar ninguém dormir! Mas a Sinhá Velha acudia, com seu jeito de avó, e os 
gritos de Nhá-Biló se desfaziam, a luz do quarto não tardava a apagar-se, e só 
ficava 
no silêncio o sibilo do vento nas árvores, enquanto rangiam os armadores 
insones, madrugada a fora, ao embalo da rede do Dr. Lustosa.
Também Nhá-Biló se excitara com a notícia da próxima chegada do Senhor Bispo. 
Quis que lhe fizessem um vestido roxo, como o das santas, e mais uma coroa de 
espinhos, 
para pôr na cabeça. Agora, todas as noites, havia luz no seu quarto. Mas não se 
ouvia mais a guitarra, somente o ruído dos passos de Nhá-Biló nas lajotas do 
chão. 
Ou então o rangido de sua rede, e Nhá-Biló repetindo alto uma velha ladainha de 
São Benedito, que só os negros cantavam na capela, nos raros dias de festa.
Foi ao passar-lhe pela janela, com o dia querendo romper, que Damião deu com uma
folha de jornal, na claridade desmaiada que descia pela fresta das rótulas, e 
que o vento úmido ia empurrando, quase
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a ponto de rasgar. Dobrou-a, meteu-a no bolso, e desceu à lagoa, para outra vez 
galgar a rampa com a sua carga de água.
Só ao meio-dia, no descanso do almoço, já de novo na lagoa, tirou do bolso o 
pedaço de jornal para lhe correr os olhos. E soube, então, por uma notícia no 
alto da 
página, que o Senhor Bispo, na sua viagem ao norte da Diocese, pretendia 
recolher moços pobres, de reconhecida devoção e inteligência, com o propósito de
educá-los 
para padres, no Seminário Episcopal de Santo Antônio, em São Luís.
DOM MANUEL JOAQUIM DA SILVEIRA, 17.o Bispo do Maranhão, tinha tudo para destoar 
da tradição dos prelados turbulentos que passaram pela Diocese, desde os tempos
da Colônia. Tanto no feitio quanto na figura, era outro homem: muito fino, 
palavra mansa, mais amigo de ouvir que de falar, e enérgico nas ocasiões 
adequadas. Em
suma: não parecia ter o demônio na pele, como alguns de seus predecessores. E 
logo ao primeiro contacto, deixava transparecer que era, de fato, um ministro de
Deus.
Basta recordar que, monsenhor da Capela Imperial, foi ele que acompanhou D. 
Teresa Cristina, na qualidade de capelão da Imperatriz, quando Sua Majestade, 
meio simplória 
e puxando de uma perna, saiu de Nápoles para o Rio de Janeiro, a fim de conhecer
o seu real marido, e ser por este devidamente apreciada. com esse passado 
ilustre, 
podendo ter a vaidade de seus títulos, Dom Manuel chegou a São Luís como uma 
pessoa simples, igual aos outros sacerdotes, só tendo como programa o desejo de 
viver 
em paz e em paz conduzir o seu rebanho.
Entretanto, quase na véspera de sua chegada, já com a catedral a se adornar para
recebê-lo, aconteceu um fato singular, que deixou os maranhenses com a pulga 
atrás 
da orelha: uma faísca elétrica pôs abaixo, pela madrugada, uma parte da torre da
igreja. E dias depois do desembarque de Sua Reverendíssima, quando se cuidava de
sanar o dano a toque de caixa, para dar posse ao Bispo, uma nova faísca, mais 
violenta que a primeira, acabou de destruir o que ainda restava do velho 
campanário.
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Pela manhã, ao dar com os escombros, o povo teve a sensação de estar diante de 
um sacrilégio, ou de um mau aviso. O sino grande, desequilibrado, ameaçava 
despencar, 
rolando para o lado do Passeio Público. Somente um sino pequeno permanecia preso
à sua barra de ferro. O outro desaparecera no entulho de uma das paredes. A cruz
de ferro fundido, que encimava a torre, jazia torcida sobre o entulho, com seu 
galo de metal de cabeça arrancada. Dir-se-ia que por ali passara um furacão, e 
ainda 
ocorrera um começo de incêndio, que enegrecera rebocos, pedras e vigas de 
madeira, só não indo adiante porque continuava a chover.
Disso tudo resultou que, para empossar-se, Dom Manuel teve de deixar de lado a 
Sé, mais adequada à imponência da cerimônia, e optou pela igrejinha do Rosário, 
que 
a piedade dos pretos edificara perto do mar, no começo da Rua do Egito.
Em verdade, não obstante as muitas festas que lhe preparou, enfeitando ruas e 
praças, pondo colchas e flores nas janelas, e fazendo bimbalharem todos os sinos
de 
São Luís, a Diocese ia dar muito aborrecimento ao novo prelado. Mas seu primeiro
ato, proibindo sair acompanhada de farricocos a procissão de cinzas, fez o povo 
sentir a mão enérgica de Dom Manuel. A procissão foi para a rua, no dia marcado,
e saiu da igreja de Santo Antônio, sem que por lá aparecessem os encapuzados, de
hábito escuro e tocando trombeta, que apenas prolongavam na quaresma as folias 
de carnaval.
Lutas mais sérias, e sem esse bom resultado, tinham travado os antecessoresdo 
novo Bispo. Mesmo as questões de nonada, que se resolveriam com um breve 
diálogo, 
serviram de pretexto aos velhos prelados para trocas de desaforos, prisões, 
excomunhões, queixas ao Rei e ao Papa, intrigas, desfeitas públicas, e até 
agressões 
e emboscadas. Poucos, muito poucos mesmo, foram os ocupantes da Diocese que não 
quebraram a crista com o povo maranhense ou com os Governadores da Capitania.
Se vinha o Bispo por uma rua e encontrava-se com o Governador, que também tinha 
saído para dar o seu passeio, era este que devia parar, enquanto o outro 
passava. 
A desobediência a esse preceito da pragmática fazia arder Tróia: melindrado com 
o agravo, o Bispo reagia, e punha em ação, na cidade pequena, com todo o furor 
possível, as armas a seu alcance, desde a simples reprimenda do púlpito, nos 
sermões de domingo, até à excomunhão maior.
No entanto, não foi por uma razão de pragmática que se desavieram, por exemplo, 
em São Luís, Dom Gregório dos Anjos e Francisco de Sá e Meneses, e sim porque o 
Bispo 
e o Governador tinham o mesmo interesse no comércio de escravo para a Metrópole.
Certa vez, como o capitão de um barco se recusasse a levar para Lisboa a carga 
de
Dom Gregório, este o ameaçou imediatamente com a censura eclesiástica, e outro 
jeito não teve o seu opositor senão abarrotar os porões do navio com os cravos 
do
Senhor Bispo.
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Seu sucessor no Bispado, Dom Timóteo do Sacramento, preferiu bulir numa casa de 
marimbondos, quando denunciou o mau costume, corrente entre os maiorais da 
terra,
de terem estes as suas concubinas. Como as mulheres eram muitas, e os homens 
poucos, chegava-se a este resultado: várias damas para cada um. E como a 
ociosidade
era geral, gemiam as redes e as camas, acompanhando o folguedo dos casais, tanto
de dia quanto de noite, com grande escândalo das mulheres legítimas, que se 
consideravam 
prejudicadas no uso e proveito de seus maridos. Dom Timóteo, assim que chegou a 
São Luís, tomou-lhes o partido, e entrou a perseguir os esposos adulterinos. Foi
um deus-nos-acuda. A Câmara inteira ficou contra o Bispo. E o Governador também.
Mas Dom Timóteo não se intimidou: caiu-lhes em cima, com unhas e dentes. Sua 
Ilustríssima
andava mijando fora do caco conjugal? Pois devia ter mais cuidado onde o mijo 
lhe caía, sob pena de ser preso e excomungado, além de ser seus escândalos 
denunciados
do púlpito da Sé, na missa de domingo!
Dom Timóteo não somente teve mesmo essa coragem como foi adiante: ricaços, 
escrivães, guardas, altos funcionários da Capitania, eles os meteu na cadeia, e 
ainda
subiu ao púlpito para relacionar os prevaricadores, com o templo apertado de 
fiéis. No meio destes, uns riam, outros amarravam a cara, e alguns mesmo se 
levantavam, 
bufando de raiva e largando a missa em meio, apontados pelo dedo episcopal de 
Dom Timóteo.
O Governador da Capitania, que se achava em Belém, não podendo deslocar-se 
imediatamente para São Luís, mandou em seu lugar o ouvidor-geral, com ordem de 
entender-se
com o Bispo. Dom Timóteo nem sequer o recebeu. Aos ofícios em que o ouvidor-
geral lhe ordenava a liberdade dos presos, não deu resposta, e continuou 
prendendo.
O ouvidor-geral perdeu a paciência. Se o Bispo não queria atender-lhe com bons 
modos, tinha de obedecer à força, e mandou soltar os presos, apoiado pelo 
Tribunal 
do Juízo da Coroa. Dom Timóteo não tardou com a represália: excomungou o ouvidor
e todo o Tribunal. A essa altura, a cidade se deliciava com o litígio, e não 
tinha 
outro assunto, no adro das igrejas, nas conversas da botica, nos corredores de 
Palácio, nos bancos do Passeio Público.
Meio tonto com a reação de Dom Timóteo, o ouvidor-geral pediu força militar ao 
capitão-mor para intimidar o Bispo, e aplicou-lhe a pena da temporalidade, que 
consistia 
em privá-lo de meios de transportes, tirar-lhe os criados, seqüestrar-lhe as 
rendas, e confiná-lo no Paço Episcopal.
- Seja tudo pelo amor de Deus - conveio o Bispo. - Mas estão todos enganados 
comigo, se pensam que
vou recuar.
E quando a força militar se postou no Largo de Santiago, cercando-lhe o Palácio,
sentou à sua mesa de trabalho, molhou no tinteiro de chifre a pena de pato e 
excomungou
toda a cidade.
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Depois, sozinho, sem ter quem o servisse, entrou a ir e vir, da sala para a 
cozinha. No primeiro dia, teve ainda em casa uns restos de comida, e pôde-se 
alimentar. 
Mas, no dia seguinte, além de lhe faltar o alimento, faltou-lhe a água para 
beber.
- Pois vou sair, encho a moringa na fonte pública, e quero ver quem tem o topete
de me embargar o passo.
com a moringa na mão, chegou à porta da rua. Os soldados se entreolharam, 
perplexos. E viram Dom Timóteo sair à calçada, romper o cerco, descer a ladeira 
da fonte,
encher aü a moringa de barro, depois voltar, subir a rampa, batendo nas pedras 
da rua a sola zangada de suas alpercatas de couro, e outra vez fechar atrás de 
si 
a porta de seu palácio.
As brigas tempestuosas dos Bispos com os Governadores, nas quais entravam o 
ouvidor-geral, a Câmara e os Tribunais, arrastados pelos lances da contenda, não
excluíam 
outras disputas mais sérias: as do pastor com seus próprios companheiros de 
pastoreio.
A luta maior de Dom Manuel da Cruz, 5.° Bispo do Maranhão, foi com o pároco da 
Sé, Padre Pedro Gonçalves, e estoirou na manhã em que, a mando de Sua 
Reverendíssima, 
o Reverendo Provisor devia celebrar a missa de ação de graças pela aclamação do 
novo Rei. Agastado com o Bispo, Padre Gonçalves, além de não aparecer na igreja,
nem deixar dito onde se metera, havia passado a chave na arca dos paramentos, na
estante dos missais, no hostiário e no armário onde estavam guardados os cálices
e as garrafas de vinho. Foi preciso arrombar tudo!
Tendo de aplicar um castigo ao pároco, em proveito da disciplina eclesiástica, 
Dom Manuel da Cruz se viu com água pela barba: a Câmara de São Luís tomou as 
dores 
do Padre Gonçalves, e desfeiteou o Bispo, que também revidou com azedume, 
injuriando os camaristas e acoimando de doido o pároco insubordinado.
De todos os prelados turbulentos com que contou o Maranhão, nenhum se compara a 
Dom Antônio de São José, tanto pelo motivo de seu litígio quanto pelos poderes 
de 
seu contendor. Dom Antônio brigou com o sobrinho dileto do Marquês de Pombal, 
Joaquim de Melo e Póvoas, o todo-poderoso Governador da Capitania, e apenas por 
isto: 
uma multa de duas libras de cera, imposta a certo soldado que deixara de 
confessar-se. O soldado estava doente no dia da confissão, alegou Melo e Póvoa; 
mas o Bispo 
era teimoso, e não abriu mão da cera.
Tempos depois, o Governador foi informado de que Dom Antônio estava enfermo. 
Querendo fazer as pazes com ele, agarrou o pretexto para visitá-lo. Achou-o de 
bom 
aspecto, no gozo de perfeita saúde. Mesmo assim, formulou votos para seu pronto 
restabelecimento.
- A causa de minha doença é Vossa Mercê - destemperou o prelado, não contendo 
mais a língua raivosa. - E na marcha em
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que vamos, acabo morto, e o assassino está agora mesmo diante de mim.
Melo e Póvoa levantou-se da cadeira:
- Vossa Excelência tem coragem de me dizer isso?
- Perfeitamente. Sou prelado, e não se me dá de morrer mártir para defender a 
Igreja. Vossa Mercê, além de incorrer em pecado mortal, está excomungado e 
possesso 
do Diabo!
Quando ocorre um período de paz, sem que Bispo e Governador se engalfinhem, 
sobrevém outra fase tempestuosa, na qual o novo prelado parece descontar em 
litígios 
o tempo de mansidão.
Depois do bispado de Dom Antônio, de São José, passou o Maranhão por quatorze 
anos de vida calma, graças à circunstância feliz de não terem vindo ocupar os 
seus 
postos os dois bispos que o sucederam: Dom Jacinto da Silveira, que por lá 
jamais apareceu, e Dom José do Menino Jesus, que só se lembrava da Diocese, 
quando mandava 
buscar o dinheirinho que esta lhe rendia.
Em seguida, veio um franciscano ilustre, mestre de teologia, Dom Antônio de 
Pádua e Belas. Um ano antes de chegar a São Luís, publicara ele um livro, que 
vinha mesmo 
a calhar: a Arte de viver em paz comos homens. Da teoria, como escritor, ia 
passar Pádua e Belas à prática, como Bispo do Maranhão. E o certo é que, a 
despeito 
do livro, da condição franciscana, e da cátedra de teologia, ninguém foi mais 
turbulento que ele, na sua briga com o Capitão-General José Teles da Silva, e 
com 
esta singularidade: começou na hora da chegada do novo Bispo, e foi este quem 
deu no Governador a primeira estocada, com uma frase ferina.
Para a entrada solene de Dom Antônio, realizada dias depois, armou-se um arco na
esquina da Rua do Sol com a Rua de São João, e ali foram esperá-lo, com mostras 
de regozijo, o Governador e a Câmara, além dos nobres da terra e a massa 
popular.
Quando o prelado, já revestido de seus trajes episcopais, montou no cavalo que o
levaria à catedral, Teles da Silva adiantou-se e fez o que ninguém esperava: 
segurou 
as rédeas de montaria e veio puxando o cortejo, com unção e humildade, ao longo 
da Rua do Sol.
Os primeiros dias de paz iam ser rapidamente toldados pelas nuvens de tormenta, 
já formadas no céu de São Luís, sombreando a pequena distância que separava do 
Palácio 
do Bispo o Palácio do Governador. Dom Antônio, além de genioso, tinha espírito 
satírico, e o Capitão-General, por seu lado, havia nascido com o gosto da briga.
No dia da procissão de Corpus Christi, quando tudo devia predispor à concórdia, 
os dois encontraram o pretexto para se desentender. Sem consultar a Câmara, o 
Bispo 
determinara que a procissão percorresse a parte alta da cidade. A Câmara 
entendeu que o itinerário devia ser pela parte baixa, por ser a mais vistosa, 
com seus 
velhos sobrados, seus mirantes, suas sacadas de ferro. Teles da Silva logo se 
colocou do lado da Câmara, disposto a dar-lhe a força de que
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necessitasse para opor-se ao Bispo. Informado a tempo, Dom Antônio fez afixar 
numa das portas da Sé a pastoral em que ameaçava de excomunhão todo aquele que 
tentasse 
levar
adiante o projeto, "que só do Inferno poderia ter saído", de conduzir a 
procissão pela Praia Grande.
Intimidados pela ira episcopal, o Governador e a Câmara trataram de baixar a 
cabeça. E de noite, já recolhida a procissão, uma comissão de ouvidores, ainda 
inconformados,
foi levar ao Bispo o seu protesto. Dom Antônio, além de lhes voltar as costas, 
quase os correu escada abaixo. Que fossem bugiar. Tinha mais o que fazer.
Mas a desfeita maior, que enegreceu de vez o ambiente, ia recebê-la, daí a dias,
o próprio Governador.
Teles da Silva, como Capitão-General, tinha direito a três duetos de incenso, em
meio à missa da Sé. O
sacristão, de costas para o altar-mor, aproximava-se do Governador, 
que ocupava o lugar de honra à frente da nave, e sacudia o turíbulo, uma, duas, 
três vezes, na direção de Sua Excelência, que baixava a cabeça calva, envolto na
fumaça cheirosa. Sempre fora assim.
Ora, no primeiro domingo de dezembro, estava Teles da Silva no seu lugar, 
assistindo à missa que Dom Antônio celebrava, quando o
sacristão veio vindo com o turíbulo.' 
Cerrou os olhos, ajoelhado, no movimento da contrição, para receber melhor as 
três baforadas da pragmática. Recebeu a primeira, depois a segunda, e ficou 
esperando
a terceira. Como demorasse, abriu os olhos, intrigado. Já o sacristão estava de 
novo no altar-mor, sacudindo o turíbulo em volta de D.
Antônio.
No outro domingo, a cena se repetiu: dois duetos de fumaça em vez de três. E 
assim também no domingo seguinte.
Teles da Silva concluiu que não se tratava de uma distração do coroinha. O Bispo
dera ordem para que lhe retirassem o terceiro dueto de incenso a que tinha 
direito! 
Ao fim da missa, entrou na sacristia e fez a sua queixa. Dom Antônio, calado 
estava, calado continuou. E fez mais: como Teles da Silva insistisse em falar-
lhe, tirou 
depressa os paramentos, deu-lhe as costas, e o deixou falando sozinho.
- Não estou aqui para ouvir maçadas - resmungou.
De volta ao Palácio, Teles da Silva aproveitou a cólera ainda quente para enviar
outro ofício ao Rei, com a notícia de que estava decidido a recorrer à força, 
caso 
voltasse a ser desfeiteado pelo Bispo.
Em janeiro, no correr de uma briga com um de seus vigários, o Bispo foi 
informado de que o Governador tomara o partido da ovelha negra. Ah, era assim? 
Pois o Senhor 
Capitão-General ia ver agora em que dava meter-se onde não era chamado. Uma 
reprimenda enérgica, com uma suspensão benigna de três dias, teria bastado para 
chamar 
o vigário à ordem. Mas Dom Antônio carregou a dose: mandou recolhê-lo ao cárcere
do Convento das Mercês, e não houve quem o tirasse dali.
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Só havia agora uma solução, reconheceu Teles da Silva: era aplicar ao Bispo a 
pena da temporalidade. Tantas tinha feito o prelado, com as suas sátiras, os 
seus 
caprichos, as suas incontinências de língua e as suas insolências, que não foi 
difícil ao Governador obter do Tribunal da Coroa o remédio extremo.
Decretada a temporalidade, concluiu por fim o Bispo que estava mesmo em maus 
lençóis, e tratou de esconder-se no Convento de Santo Antônio. Ali permaneceu 
quieto, 
de bico calado, esperando que se desfizesse a ira de Teles da Silva. Esperou em 
vão. Semeara ventos, tinha de colher tempestade. E esta desabou, mais forte, 
mais 
copiosa, em abril de 1789, quando Dom Antônio de Pádua e Belas, para salvar a 
pele, foi obrigado a meter-se na selva, em direção de Viana, onde um barco 
misericordioso, 
que o foi buscar rio acima, afinal o recolheu e o restituiu a Lisboa.
Daí a impressão de mau augúrío, que tomou conta da cidade, quando os dois raios 
puseram abaixo a torre da Sé, antes da posse solene de Dom Manuel Joaquim da 
Silveira. 
De que era um aviso do Alto, todo mundo concordava. Sinal de que o novo Bispo 
ia-se desentender com o povo e o Presidente da Província. Seria atrevido como 
Dom 
Antônio de Pádua e Belas? Severo como Dom Timóteo? Agressivo como Dom Antônio de
São José? Ou pior que todos eles?
VISSTO PELO LADO DE FORA, O Velho prédio
do Paço Episcopal parecia bem conservado, com seus dois renques de janelas sobre
a rua, no prolongamento da Sé. No entanto, em carta ao novo Bispo, que ainda
se achava no Rio de Janeiro, o Cônego José Antônio da Costa, seu vigário-geral, 
tinha-lhe advertido: "Apesar de meus avançados anos, tesoureiro-mor da Fábrica 
da
Catedral, é-me doloroso ter de levar à respeitável presença de Vossa Excelência 
que o Paço Episcopal está todo muito arruinado, e indecente para hospedar 
qualquer
pessoa particular, quanto mais um Príncipe da Igreja Brasiliense, chovendo todo 
ele, inclusive a capela de Vossa Excelência."
Foi assim de espírito preparado que Dom Manuel se aproximou de seu palácio, 
depois de ter contemplado, do lado do Passeio Público, a velha torre da igreja, 
que os 
raios tinham derribado.
46
- Vamos ter pano para as mangas - comentou o Cônego Costa, arrimando-se ao 
guarda-chuva, assim que o Bispo desceu o olhar.
- Como eu lhe disse, não há dinheiro para consertar o Paço. Agora, vamos ter 
também de estender a sacola para fazer uma nova torre. Seja tudo pelo amor de 
Deus - 
suspirou, buscando a sombra da calçada.
Dom Manuel tinha contraído a testa, em silêncio. De noite, no quarto que lhe 
fora reservado no Convento de Santo Antônio, levara mais de hora a ir e vir, 
insone, 
de um lado para outro, pensando nos tropeços de sua chegada. Antes de viajar, 
sabia que não seria fácil a sua missão. A bordo, relera o Sermão da 5.a Dominga 
da 
Quaresma, que o Padre Antônio Vieira tinha pregado ali ao lado, na igreja de 
Santo Antônio, e assustara-se um pouco com as observações do jesuíta. Uma, 
sobretudo, 
lhe teimava na memória, ali no quarto, como se a tivesse diante dos olhos: 
"Acontece-lhe aqui aos moradores o mesmo que aos pilotos, que nenhum sabe em que
altura 
está. Cuida o homem nobre hoje que está em altura de honrado e amanhã acha-se 
infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que está em altura de virtuosa 
e amanhã 
acha-se murmurada pelas praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom 
sacerdote e amanhã acha-se com reputação de mau homem."
- Eu, se fosseVossa Excelência, começaria por consertar o Paço, para ter onde 
morar - aconselhou o Cônego, dando a nesga de sombra ao prelado. - O Convento de
Santo 
Antônio (a verdade precisa ser dita, sobretudo entre sacerdotes) não tem 
acomodações para um Bispo de sua categoria. Vossa Excelência está muitíssimo mal
instalado. 
Pior do que numa de nossas pensões. Foi o que se pôde arranjar.
De fato, embora o quarto fosse espaçoso e voltado para o nascente, tinha um 
mobiliário exíguo, que se limitava à cama de ferro, ao guarda-roupa, à cômoda de
tampo 
rachado e a duas cadeiras de palhinha, além de um lavatório, com a bacia de 
estanho e a jarra. Na parede, como único adorno, um crucifixo tosco, pequeno 
demais 
para o espaço que ocupava. Num canto, uma velha rede de varandas esgarçadas.
A cama de ferro, muito baixa, mais parecia um catre, e rangia tão alto, ao menor
movimento de Dom Manuel, que este era acordado por ela, todas as vezes que ia 
pegando 
no sono. Terminara por se passar para a rede, e ali, exausto, conseguiu dormir 
um pouco, a despeito do receio de desequilibrar-se e cair, sempre que mudava de 
posição.
De madrugada, andara às apalpadelas, em busca de um penico. E só de manhã, já 
com o sol dentro do quarto, é que tinha dado por ele, metido por baixo do 
guarda-roupa.
- com o tempo, tudo se resolve - consolou-se Dom Manuel, ainda a lembrar-se da 
dificuldade em localizar o penico. - Mas, em
47
primeiro lugar, vou consertar a torre. A casa de Deus é mais importante do que a
casa do Bispo.
 - Grande frase - aplaudiu o Cônego, sinceramente radiante.
- Já me tinham dito que Vossa Excelência é uma inteligência admirável. Acabo de 
ver que não me enganaram. Meus parabéns. Meus parabéns à Diocese do Maranhão.
E empurrando uma porta entreaberta, rente ao batente da calçada, ao mesmo tempo 
que recuava, para dar passagem ao Bispo:
- Faça favor, Excelência.
A luz da manhã alta inundou o corredor que precedia a comprida escada de 
madeira, apertada contra a parede, e que levava ao pavimento superior. O 
corrimão trabalhado/já 
sem polimento e com marcas de cupim, parava a meio caminho, interrompido por uma
falha longa, e prosseguia lá no alto, meio torto, quase a cair.
- Por aqui já Vossa Excelência pode fazer uma idéia do que vai encontrar lá por 
cima - preveniu o Cônego, com uma expressão de júbilo, forcejando para erguer o 
olhar, contra a vontade do pescoço compacto, que lhe voltava a cabeça para o 
chão. - Podemos subir. Mas com muito cuidado.
E seguiu atrás do Bispo, que ia galgando os degraus apoiando-se na parede. De 
vez em quando ouvia-se a tábua estalar, querendo ceder. Instintivamente o Cônego
arregalava 
os olhos, alarmado. Mas não mudava o ritmo da subida. Seria o que Deus quisesse.
Não podia fazer má figura, com o Senhor Bispo à frente correndo o mesmo perigo.
Lá em cima Dom Manuel parou, descansando da subida, enquanto estendia o olhar 
para a saleta de entrada, que lhe pareceu melhor do que esperava. E em pouco 
menos 
de vinte minutos percorreu toda a parte alta do sobrado, sempre calado. Por 
vezes parava para um exame mais atento, apalpando portas, batendo com o nó dos 
dedos 
nas paredes, abrindo e fechando a gaveta de um móvel, sempre acompanhado pelo 
Cônego, que descansava as mãos por cima do ventre, atento à reação fisionômica 
de Sua 
Reverendíssima, visto que o Bispo não abria a boca.
- Sem querer desfazer de ninguém, o grande culpado do Paço ter chegado a este 
estado lastimável foi o antecessor de Vossa Excelência. Cansei de advertir. Casa
velha 
é como gente velha: tem de ser vigiada e tratada o tempo todo. Mas Dom Carlos se
fiava mais na Providência Divina que nas suas próprias providências.
Ao passar para o salão principal, em esquina, com janelas para o Largo do 
Palácio e para o mar, Dom Manuel quase deixou transparecer o seu entusiasmo. Uma
galeria 
de retratos adornava as paredes, e alguns deles de excelente qualidade. Olhou-os
de longe, com os braços cruzados sobre o peito, e logo o Cônego aproveitou 
aquela 
boa disposição de espírito para lhe dar más notícias:
- As igrejas da capital, embora também necessitem de muitos reparos, ainda não 
estão caindo. Não direi a mesma coisa das do
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interior. Cortam o coração. Quase todas em petição de miséria. Uma lástima. Uma 
verdadeira lástima - insistiu.
E depois de um silêncio, como se juntasse as forças para o golpe
final:
- Mas o pior de tudo é o clero. Muita indisciplina, muita licenciosidade. Padres
que deviam dar o exemplo andam por aí com devassas conhecidas. Resultado: 
ninguém 
quer pôr mais os filhos no Seminário. Cansei de dizer ao antecessor de Vossa 
Excelência que não é possível governar uma Diocese com o coração no lugar da 
cabeça. 
Infelizmente Dom Carlos não quis me dar ouvidos, e aí está o resultado. Já a 
indisciplina se estendeu aos fiéis. Aos fiéis, fique Vossa Excelência sabendo. 
Aos fiéis. 
Ano passado, a insolência chegou ao auge. Imagine Vossa Excelência que a coisa 
se deu dentro da catedral. Sim Senhor: dentro da catedral. Ia começar o Ofício 
de 
Trevas, quando se ouviram assobios, gritos, insultos, chibatadas por cima dos 
bancos, e até nos altares e na mesa da comunhão. Chegou a rebentar uma bomba.
E Dom Manuel, de olhos crescidos:
- Dentro da igreja?
- Dentro da igreja, e na presença do Senhor Bispo. E tem mais. Vossa Excelência 
me desculpe estar lhe dando estas notícias. Mas Vossa Excelência vai navegar 
nestas 
águas, e eu, que sou prático da barra, preciso lhe mostrar onde estão os 
arrecifes.
- Continue - ordenou Dom Manuel, em tom agastado.
- Estou informado de que vão fazer a mesma coisa, um dia destes, na igreja do. 
Rosário, na presença de Vossa Excelência. Portanto, se lhe posso dar um 
conselho,
aqui o tem: mão de ferro. Dirija a Diocese com mão de ferro. Lembre-se que Nosso
Senhor não hesitou em empunhar o chicote para expulsar os vendilhões do templo.
Siga-lhe o exemplo. Não há melhor exemplo que o do Filho de Deus.
Dom Manuel sombreou o olhar, descendo as sobrancelhas preocupadas. Conhecia por 
alto os problemas da Diocese. Via agora que eram mais graves do que pensara. 
Caminhou 
até à janela, como em busca de ar para os pulmões, e escancarou de par em par as
rótulas sobre a rua. E ainda batia as mãos, para sacudir a poeira, alongando a 
vista 
no sentido do mar, quando uma rajada da viração matinal entrou na sala, batendo 
uma porta mais adiante, numa alegria de menino pulando.
Na direção do Palácio do Governo, o céu tinha-se aberto. E debaixo das nesgas 
azuis, irromperam das árvores, ainda úmidas de chuva, bandos ruidosos de bem-te-
vis. 
De início Dom Manuel ouviu-lhes o tatalar das asas nervosas. E eram tantas, que 
ele se assustou. Depois, começou, no largo espaço entre o Palácio do Bispo e o 
Palácio 
do Governo, a bulha dos gritos divertidos, ora aqui, ora ali, ora mais além, 
depois novamente aqui, e sempre no
tom de uma vaia peralta, que só mesmo os bem-te-vis 
sabem dar.
49
Dá gosto ouvi-los, ainda cedo, à primeira luz matutina, ou depois de uma pancada
de chuva, assim que o sol se abre, esses bem-tevis de São Luís. Umas cidades têm
as suas andorinhas; outras, os seus pardais; São Luís tem os seus bem-te-vis, 
que nascem com a luz do sol e parecem cantar com ela pelo resto do dia. De 
relance, 
dir-se-ia que voam em bando. Na verdade, ao contrário das andorinhas, voam 
solitários, sem prejuízo das reuniões eventuais no mesmo fio telegráfico, no 
beiral do 
mesmo telhado, nos ramos da mesma árvore. Destemidos, apesar de medirem pouco 
mais de meio palmo, lançam-se aos urubus em pleno vôo, e os afugentam. Cá 
embaixo parecem
passarinhos bem comportados.
Um deles grita, escandindo as sílabas:
- Bem te vi!
Logo outro grita também, no mesmo tom festivo, apressando a resposta:
- Bem te vi!
Embora circunscrito às três sílabas inconfundíveis, o grito nada tem de 
monótono, porque varia de inflexão e disposição oral. Assim: bem-em-em-em-te-vi!
Ou simplesmente:
te-vi! Por vezes, ouvindo-os ao raiar do dia ou ao cair da tarde, salteia-nos a 
impressão de que umdeles, mais moleque e jovial, zomba do outro, com este grito
diferente: eh, eh, eh. E logo ouve a réplica, depois de um ruído repetido de 
asas no ar: bem te vi! bem te vi!
Há momentos em que os gritos se repetem com tanta freqüência, que o canto solto 
se transforma em alarido. E é essa bulha brejeira que se ouve, todos os dias, em
São Luís, de janeiro a dezembro, sempre que haja sol, de preferência quando as 
janelas dos sobrados se escancaram sobre a rua ou as rótulas dos mirantes se 
descerram
para o mar.
Depois das más notícias do Cônego Costa, Dom Manuel interessou-se em ouvi-los. 
Também eles pertenciam à sua Diocese... E apoiando-se na portada da janela, 
buscou-os
com o primeiro olhar contente, que afinal lhe vinha ao rosto tenso, naquela 
manhã.
Depois dos raios no campanário da Sé, dos longos dias de chuva que acinzentavam 
a cidade, do mau estado do Paço Episcopal, das noites maldormidas no Convento de
Santo Antônio e das notícias aborrecidas que o Vigário-Geral lhe ia dando, numa 
vozinha pontilhada de pigarros, aqueles bem-te-vis urbanos eram as primeiras 
vozes 
alegres que saíam a saudá-lo, no seu novo bispado. E voltando-se para o Cônego, 
que ainda conservava o seu semblante pesaroso, comentou:
- Gostei de ouvir esses passarinhos, Cônego Costa.
- Vai detestá-los depois, Excelência. De manhã à noite, eles andam atrás da 
gente com esses gritos. Não conheço um só trecho de São Luís onde não haja bem-
te-vis. 
Nem o cemitério, que é lugar de silêncio, eles respeitam. Lá também dá muito 
bem-te-vi. Na minha rua,
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nem se fala. Pus um espantalho no quintal, para ver se os afugentava. Sabe Vossa
Excelência o que aconteceu? Passaram a cantar em cima do boneco!
Dom Manuel veio vindo, como se a viração o trouxesse agora para o meio da sala. 
E enquanto caminhava:
- O meu caro Vigário-Geral não vai se zangar com o que lhe vou dizer? Posso lhe 
falar com toda a franqueza?
- Pelo amor de Deus, Excelência. Vossa Excelência e eu somos dois Ministros de 
Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu, aqui embaixo; Vossa Excelência, aí no alto. Mas 
entre 
nós não há cerimônias.
Dom Manuel parou, olhouo outro nos olhos, descansando a mão direita no seu ombro
meio penso. E depois de um silêncio, sempre a fitá-lo:
- Já reparei que os maranhenses de hoje se queixam mais do que trabalham. Na 
minha Diocese, enquanto eu for Bispo, não vai ser assim. Quero todos os meus 
auxiliares
trabalhando. Vamos restaurar a torre e consertar este Palácio. Se não houver 
dinheiro, Deus nos mostrará como encontrá-lo. E não ficaremos só nisso. Vamos 
restaurar 
as outras igrejas, construir mais algumas, dar o bom exemplo aos fiéis, e também
vamos pôr gente nova no Seminário, para ter a quem entregar, na hora própria, as
ovelhas do rebanho de Cristo:
Após outra pausa, abriu o sorriso:
- Sei que haverá murmuradores e maledicentes, como houve aqui no tempo do Padre 
Antônio Vieira. Mas posso-lhe assegurar que eles não atrapalharão nosso 
programa, 
que será fielmente executado, com o favor e a graça de Deus. E sempre que alguém
cruzar os braços, negando-nos a sua ajuda, ou der com a língua nos dentes, 
murmurando 
de nosso esforço, também sei que, lá fora, estão os fiscais de Nosso Senhor, 
denunciando os maus servos da Parábola dos Evangelhos: são aqueles passarinhos. 
Eles 
gritam bem te vi para os que murmuram, em vez de louvar; para os que malsinam, 
em vez de servir; para os que se lastimam, em vez de trabalhar.
O Cônego ficou um momento sério, de sobrancelhas travadas. Depois soltou a boca,
numa risada gorda. E quando pôde falar, concluiu:
- Vossa Excelência acaba de descobrir porque é que há tanto bem-te-vi neste 
nosso Maranhão.
Depois, arrependido do que dissera, recolheu depressa o riso, olhou para um lado
e para o outro, certificando-se de que só o Bispo o tinha escutado. E tentando 
emendar-se:
- Mas a gente é boa, Excelência. E muito inteligente. com jeito, consegue-se 
tudo deste nosso povo. Não se assuste com ele.
E como o Bispo estivesse a rir, riu também, mas sem exagero, apenas para 
acompanhar Sua Excelência Reverendíssima.
51
ATÉ aí TINHA SIDO FÁCIL CONSEGUIR que O Senhor Bispo incluísse a Bela Vista no 
seu itinerário. O próprio Dr. Lustosa, ao saber-lhe da visita pastoral a 
Turiaçu, 
fora a São Luís convidar pessoalmente Dom
Manuel, para que, na volta, a caminho de Cururupu, lhe desse a honra de 
descansar na sua fazenda.
- Vossa Excelência não vai se arrepender - assegurara-lhe. E o Bispo, com um 
semblante desolado:
- O Senhor Doutôr devia ter-me falado mais cedo. A viagem toda está programada, 
dia por dia, hora por hora. Seria necessário mandar novos avisos, o que é quase 
impossível.
O Dr. Lustosa não se dera por vencido:
- Não será por isso. Eu me encarregarei de providenciar os avisos que Vossa 
Excelência quiser.
Era outro homem, ali na sala do Paço Episcopal, muito bem vestido, a fala mansa,
fisionomia aberta, sem nada da figura rústica, de semblante contraído, as botas 
engolindo as pernas das calças, o chicote debaixo do braço, a voz perenemente 
irritada, que martelava os passos nas lajes da fazenda e enchia de medo os seus 
escravos.
E ante o silêncio do Bispo, que baixara o olhar, de sobrancelhas aproximadas, 
balançando-se na sua cadeira austríaca, com um fio de sol a tirar faíscas roxas 
da 
ametista de seu anel, o Dr. Lustosa deu à voz doce um tom mais amável:
- Se Vossa Excelência concordar com o meu convite, chamarei os fazendeiros dos 
arredores, reunirei muitos negros para batizar e casar, e darei à minha mãe a 
maior
das alegrias, de que todos nós naturalmente participamos. Além do mais, Vossa 
Excelência terá oportunidade de conhecer uma das mais bonitas capelas do 
interior maranhense,
mandada fazer por meu pai, ainda no tempo da Colônia.
Dom Manuel ergueu o olhar, procurando os olhos do Dr. Lustosa:
- Vamos fazer um trato. O Senhor Doutôr, com a minha visita à sua fazenda, iria 
fazer muitas despesas, não é verdade? Pois bem: em lugar de fazer essas 
despesas, 
com a minha hospedagem, a hospedagem do padre que me companha, e mais as festas 
que pretende
52
organizar, reunindo os fazendeiros vizinhos, o Senhor Doutôr vai-me ajudar a 
restaurar a matriz de Turiaçu, que está caindo aos pedaços.
De acordo?
- Uma coisa não exclui a outra. Eu ajudo a restaurar a igreja, com a importância
que Vossa Excelência achar necessária, e Vossa Excelência me dará a honra de 
descansar 
em nossa fazenda.
Dom Manuel levantou-se:
- O Senhor Doutôr pode dizer que veio a São Luís, viu o Bispo, e venceu. Eu 
mesmo vou providenciar os avisos com as alterações de meu calendário. Ao sair de
Turiaçu, 
descansarei na sua fazenda.
- E passará a noite conosco?
- Para o descanso ser completo.
- Fique certo de que sei ajuizar o sacrifício de Vossa Excelência. Mas Vossa 
Excelência não vai se arrepender - repetiu o Dr. Lustosa, curvando-se muito para
beijar 
o anel do Bispo.
E dali saíra em direção das casas de comércio da Praia Grande, a providenciar as
primeiras encomendas, para que nada faltasse à fazenda, durante a hospedagem de 
Dom Manuel.
A notícia de que o Bispo tinha partido de São Luís, com destino a Turiaçu, fez 
que o alvoroço crescesse na Bela Vista, embora já tudo estivesse pronto para 
recebê-lo. 
Agora, até tarde, ficavam acesas as luzes da casa-grande. Durante o dia, o Dr. 
Lustosa já pouco parava na sua cadeira de balanço do alpendre: sentava, 
levantava; 
sentava, levantava, e ia por quartos, salas e corredores, a ver se cada coisa 
estava no seu lugar. Se soprava uma pancada de vento, queria que, logo a seguir,
o 
chão fosse varrido, principalmente a rampa de pedras à entrada da casa-grande e 
que prolongava o caminho arborizado até à porteira da fazenda. Ouvia-se o 
chapinhar 
nervoso das vassouras de talo nas pedras do calçamento, e mais de um negro 
recebeu de repente a sua chicotada ríspida, apenas porque, enquanto varria, 
tinha esboçado 
um sorriso, ao ver que nova pancada de vento sacudia as árvores.
- Da outra vez apanha para não deixar o vento soprar ameaçava o Dr. Lustosa, 
recolhendoo chicote.
No começo da rampa, à altura das palmeiras que precediam a casa-grande, abria-se
um arco de ariris enramado por trepadeiras floridas. Por ali devia passar o 
Senhor 
Bispo, saudado pelo estoiro dos foguetes, o tantantã dos tambores e o estampido 
festivo dos tiros das espingardas. Desde a saída de Turiaçu, os foguetões 
marcariam, 
de distância em distância, o seu avanço lento na direção da Bela Vista. Todo o 
longo caminho, entre a vila e fazenda, por dentro da mata, até perto das margens
do 
rio, tinha sido aplainado e limpo, cobertos de palmas os estirões de areia, 
revistos os pontilhões sobre os igarapés, abertas as clareiras para os descansos
da jornada, 
e tudo inspecionado pessoalmente pelo Dr. Lustosa, que ali viera, repetidas 
vezes, montado no seu melhor cavalo.
53
Os nove quartos de hóspedes, na ala esquerda da casa-grande, exibiam nas camas 
de casal as finas colchas de labirinto, e havia redes em cada canto, pendentes 
das 
escapulas, prontas para serem armadas, todas muito alvas, cheirando a folha de 
jardineira. No vão de parede entre as janelas, o lavatório de ferro, pintado de 
novo,
com a bacia e a jarra de louça, oferecia a toalha de felpo, aberta por cima da 
bacia. Sobre as pesadas cômodas de jacarandá com tampo de mármore, alteavam-se 
os
candeeiros de opalina, com o monograma do Dr. Lustosa nas mangas de vidro.
Ainda o dia não rompera, e já se ouvia pelos corredores o tilintar do chaveiro 
de Sinhá Velha. Esse ruído atravessava a manhã e a tarde, entrando pela noite, 
só 
se extinguindo quando se apagavam as luzes na casa-grande. A excitação do Dr. 
Lustosa parecia ter-se contagiado a toda a fazenda, e até mesmo os cavalos nas 
cocheiras 
nitriam com freqüência, como se também eles estivessem à espera do Senhor Bispo.
A azáfama das costureiras terminara por chegar também à senzala. Os escravos 
tinham recebido roupa nova: saia e cabeção de chita, para as mulheres; calças de
riscado 
e camisa de algodão, para os homens.
Deixado para o fim, Damião chegou a pensar que só veria o Bispo de longe, nu da 
cintura para cima, metido nas suas velhas calças molhadas. De manhã à noite, 
continuava 
com a sua carga de água, entre a lagoa e o tanque. Mais de uma vez, madrugada 
alta, saltara da rede, ao ver, em sonho, que, tendo acabado de encher o tanque, 
este 
repentinamente se esvaziava. E ainda banhado em suor, sentado na rede, volvia a 
revoltar-se contra a miséria de sua condição. Por que não ia embora dali quando 
o 
Bispo chegasse? Na confusão de tanta gente estranha na fazenda, com o senhor 
distraído com seus hóspedes, e o feitor na casa-grande, apanharia um cavalo na 
cocheira 
e iria por este mundo de meu Deus, atravessando matas, vadeando rios, transpondo
serras, até sentir que ninguém mais lhe deitaria a mão. Quando dessem por sua 
fuga, 
estaria longe, muito longe dali.
Ao descer para a lagoa, com o dia começando a raiar, a idéia da fuga ainda lhe 
teimava na consciência. Quase ao fim do caminho, sentiu o mato mexer-se à sua 
direita, 
como se alguém estivesse de tocaia à sua espera. Levou a mão ao cabo da faca, 
redobrando de atenção.
- Guarda essa faca, Damião. Deixa de sé brigado, criatura. Eu não tou aqui pra 
tu me matar. Tu só anda longe da gente, que nem passarinho. Vem pra perto dos 
outros. 
Ninguém vai te come.
Pela voz identificou a Miduca, que ultimamente vivia a rondá-lo, com a sua 
insistência de mulher oferecida. Tinha-a repelido, dias antes, de noite, quando 
voltava 
para a senzala. Era ainda muito nova, quase uma menina, para se entregar a um e 
a outro. Criasse juízo. com pouco, andaria de barriga, como as porcas do 
chiqueiro.
54
- Inté parece que tu não gosta de muié - ela lhe replicara, amuada, metendo-se 
pelas sombras do oitão, depois de atirar para o lado uma cusparada aborrecida.
Agora, de dentro da moita, ela volvia a assediá-lo, numa voz suplicante:
- Vem, Damião. Tou te pedindo.
Na claridade que se ia espalhando, ele lhe distinguiu o vulto esguio, mais de 
menina que de mulher, por trás da cerrada moita de capim, na derradeira curva 
que antecedia 
a esplanada da lagoa. Não pôde reprimir a censura:
- Tu estás nua nessa moita molhada, Miduca?
- Tou - confirmou ela, já agora em tom decidido. - Tu não me quê, mas eu te 
quero. Vem. Tou-te esperando.
E como Damião tardasse, ainda à margem do caminho, ela veio até ele, tirou-lhe 
do ombro o pau de carga, e tornou a contornar a moita, por um caminho de cabras,
puxando-o 
pela mão. Assim despida, andando à frente, nada tinha de menina-e-moça: era a 
mulher feita, de quadris cheios, cintura fina, os ombros pequenos, e de seios 
tão rijos 
que só de leve sacudiam com o movimento das pernas resolutas.
- Tu não é o primeiro - advertiu ela, já deitada, ao ver que ele parecia 
hesitar, ainda de pé.
Em verdade, Damião ouvia, longe, o galope de um cavalo, na direção da casa-
grande. Sabia que, se o senhor o surpreendesse ali com a Miduca, desceria sobre 
os dois 
as lapadas de seu chicote, e ainda ordenaria que os atassem ao tronco, nus como 
estavam, para que o castigo fosse dobrado. No entanto, deitou-se sobre o corpo 
que 
o chamava, como se aceitasse o desafio da sorte, e nele penetrou de uma só vez, 
antes que o medo lhe voltasse. Ela gemeu, deitando a cabeça para trás, e ia 
repetir 
o gemido quando sentiu aproximar-se o tropel do cavalo. Os dois permaneceram 
abraçados, imóveis, de respiração suspensa, até que o galope passou perto e se 
perdeu 
para o lado da lagoa. Então ambos se puseram a rir, ainda abraçados.
Foi por ela que Damião veio a saber que ia ter também a sua roupa nova para a 
chegada do Senhor Bispo:
- O Doutôr não queria dar. A Sinhá Velha é que bateu com o pé.
E no sábado, já querendo anoitecer, recebeu as calças e a camisa que só devia 
vestir quando a Sinhá Velha mandasse. Ao guardá-las no baú ao pé da rede, no seu
canto 
na senzala, só lhe acudiu um pensamento: agora, para quando fosse fugir, tinha 
mais aquela muda de roupa.
No sábado mesmo, tinham chegado os primeiros hóspedes. E ao vir a noite, depois 
de uma pancada de vento que ameaçou arrancar as telhas do
beiral da senzala, derrubou
árvores da baixada e fez os
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cavalos relincharem com o estrondo dos trovões, desabou a chuva copiosa, que 
entrou pela madrugada. De manhã ainda chovia.
- O tempo da chuva chegou - comentavam os negros, encolhidos debaixo do beiral, 
aguardando uma estiada. - A água vai estragar tudo.
O caminho entre a porteira e o alpendre, varrido na véspera, era só folhas, 
galhos quebrados, valas abertas pela enxurrada, o arco de ariris desfeito. Uma 
das palmeiras 
jazia por terra, golpeada por um raio, que lhe deixara apenas a metade do 
estipe. Muitas cercas estavam caídas. E como a chuva prosseguia, variando de 
intensidade, 
a enxurrada continuava a descer pelas valas profundas.
Agora se sabia que só por exceção, nos próximos seis meses, o céu se abriria, 
para mostrar uma nesga de azul. Choveria o tempo todo. Uma verdura nova, que a 
água
dos temporais regaria com freqüência, cobriria toda a volta da fazenda. E se as 
chuvas próximas fossem como aquela, a própria lagoa ia sangrar, derramando-se 
pelas 
bordas e avançando pelos meandros da selva.
No alpendre, de botas e esporas, balançando nervosamente o chicote de cabo de 
prata, o Dr. Lustosa olhava raivosamente os estragos da tempestade, e era com 
esforço 
que reprimia a explosão de sua ira contra a chuva nefasta. Que custava esperar 
um pouco? Caísse quando o Senhor Bispo já tivesse partido! Ninguém ia atravessar
a 
mata, chovendo daquele jeito! E as despesas que já fizera? Por acaso era pouco o
dinheirão que empregara na reforma da matriz de Turiaçu? E agora? Na certa, o 
povo 
de lá, e certamente também o Senhor Bispo, estariam a rir-se dele. E logo se pôs
a dizer, exaltado, dando chicotadas a esmo:
- Ele tem de vir à Bela Vista! Mesmo debaixo de chuva! Ou então manda que me, 
restituam o dinheiro que dei para as obras da igreja!
A Sinhá Velha, mais expedita e devota, tratou de acender as velas do altar da 
capelinha, prometendoà Virgem do Rosário uma boa ajuda em favor das vocações 
sacerdotais 
- por que tanto se empenhava o novo Bispo - caso o tempo estiasse, permitindo a 
vinda de Sua Reverendíssima. E tão segura estava de ser atendida pela santa que,
ao voltar à casa-grande, tratou de separar os brincos de brilhante, o cordão de 
ouro, a pulseira de platina e mais o colar de pérola de duas voltas, que 
passaria
às mãos de Dom Manuel, como pagamento da promessa.
Não obstante a fé de Sinhá Velha, as chuvas continuaram desabando, debaixo de um
céu fosco, que já amanhecia carregado. Parecia amainar um pouco pelo fim da 
tarde,
mas recrudescia novamente, antes de a noite fechar. Debalde apelou-se para o 
recurso das ladainhas, que a velha mesma puxava, numa voz forte, logo repetida 
pelo
coro de brancos e negros, e com o Dr. Lustosa presente, de cabeça levantada, 
sempre a apertar a dentadura no intervalo das jaculatórias.
56
De manhã, ainda escuro, era ele o primeiro a sair ao alpendre, no camisolão de 
dormir, para sondar o tempo, a mão em pala por cima dos olhos. Irritado, cerrava
o 
punho, blasfemando:
- Chuva de merda! Chuva do Diabo!
Mesmo sob a chuva cerrada, Damião não interrompia o seu trabalho. Penosamente, 
buscava as veredas cobertas de grama e subia ou descia a rampa, entre o tanque e
a 
lagoa. Por vezes, galgando devagar a ladeira, sentia o terreno fugir debaixo de 
seus pés, que avançavam patinhando na enxurrada, e logo perdia o equilíbrio, não
raro também perdendo a carga, que volvia à lagoa com a água da chuva. Ao passar 
em frente à janela fechada de Nhá-Biló, sentia-se espionado pela fresta das 
rótulas. 
Tarde da noite, só no seu quarto o candeeiro continuava aceso. Era então que ela
se punha a tocar a guitarra, cantarolando baixinho, para adormecer as bruxas de 
pano. Damião se condoía daquela loucura mansa, que a tornava cada vez mais 
esquiva, e ouvia a voz áspera do Dr. Lustosa, ralhando com a filha, em meio à 
madrugada, 
para que parasse com aquilo:
- Quero dormir, e tu não me deixas! Já te disse que, de noite, eu quero 
silêncio! Basta a zoada do vento!
Ela parava um pouco, deixando que o ruído do vento se acentuasse, e depois 
volvia a tocar, deslembrada da reprimenda do pai, sempre repetindo as velhas 
músicas que 
lhe tinha ensinado a mestra portuguesa.
Todas as vezes que Damião se sentia tentado a atear fogo na casagrande, tal como
fizera seu pai, a imagem de Nhá-Biló, morta nas chamas do incêndio, o 
desorientava. 
Não, não faria isso. Por causa dela, mudava de pensamento. Mas era em vão que, a
sós, de si para si, ensaiava imaginar outra vingança, que o desforrasse daquela 
humilhação, sem domingos nem dias santos, sempre com a sua carga ao ombro. Já 
uma vez, cedendo ao impulso da revolta, havia sondado a mãe, para ver se ela 
concordava 
em fugir com ele, levando também a irmã.
- Tu tá doido, Damião? Não basta o que a gente já sofreu? Memo que eu tivesse 
doida do juízo, pra me meter noutra aventura, óia minhas pernas como tão. Não 
dou mais 
um passo direito, e a inchação tá subindo, querendo pegar o jueio. Tua irmã, de 
namoro ferrado com Valentim, também não ia querer ir-se embora. Tira isso de tua
cabeça, meu fio. Tu sabe que, se tu foge, quem vai pagar no tronco sou eu e a 
Leocádia. O
Doutô já jurou que nos castiga, e quando ele diz que faz, faz memo. Pelo
amo de teu pai, tem um pouco mais de paciência. De hora em hora, Deus miora.
Mas não, não melhorava. Sempre o tormento daquelas idas e vindas, mesmo debaixo 
de chuva. Que seria de sua vida futura, ali na fazenda? Mais dia, menos dia, 
acabaria 
amigado com a Miduca, e pondo outros negros no mundo, para o chicote do senhor. 
E a vontade de
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largar tudo, fosse qual fosse a conseqüência, crescia dentro dele, com a força 
obsessiva de uma idéia fixa, teimando, insistindo.
Chovendo ainda, viu o senhor sair do alpendre, debaixo de um guarda-chuva, ao 
mesmo tempo que um grupo de negros, cada qual com a sua vassoura de talos, 
entrava
a tanger as folhas caídas e os galhos quebrados, seguindo o curso da enxurrada.
- Tudo limpo! - ordenava o Dr. Lustosa, com a água a lhe dar pelo cano das 
botas. - E muitas pedras nas valas!
E aí principiou a luta dos negros contra as devastações do temporal. Chapinhavam
as vassouras de talos, levando as folhas do chão, ao mesmo tempo que a ventania 
tornava a torcer os ramos das árvores. De manhã, quando os negros reapareciam 
com as suas vassouras, tudo estava novamente sujo de folhas e ramos partidos.
Pior era dentro da mata, onde trabalhava outra leva de negros, debaixo das 
vistas do Chico Laurentino. A chuva, ali, não amainava: bastava o sopro do 
vento, no alto 
das ramagens, para a água cair mais forte nos lamaçais. O caminho primitivo, com
as folhas acamadas, as palmas sobre os estirões de areia, era um valo profundo. 
Dois pontilhões tinham sido levados de roldão, com a cheia dos igarapés. Nalguns
trechos das veredas estreitas, viam-se árvores tombadas, e só o braço humano não
poderia removê-las. Era preciso golpeá-las a machado, horas seguidas, até 
separar-lhes o tronco, reabrindo a passagem.
Só ao fim de uma semana inteira de chuvas contínuas sobreveio uma noite de céu 
limpo. No domingo, abriu o sol, ainda cedo, e logo a Sinhá Velha encheu 
novamente 
os corredores da casa-grande com o tinido de seu molho de chaves. Apareceram os 
primeiros urubus voando a grande altura, sinal certo de bom tempo. E outra vez 
os negros surgiram, com as suas vassouras, as suas pás, os seus machados, os seu
gadanhos, para recomeçar a limpeza da fazenda, enquanto outros seguiam para a 
mata 
molhada.
Pelo meio da semana, o céu voltou a escurecer, um raio estalou, rasgando a 
amplidão no sentido do nascente, e o trovão rolou no alto, por cima da floresta.
Toda 
gente da casa-grande veio para o alpendre, e ali, em silêncio, aguardou a chuva 
cair. Mas o vento soprou forte, levando as nuvens de chuva, e a tempestade se 
desfez, 
enquanto Sinhá Velha, sozinha na capela, de joelhos, suplicava a intercessão da 
Virgem do Rosário.
- Nossa Senhora me ouviu - afirmou ela, reconhecida, ao tornar à casa-grande, 
ainda com o rosário na mão.
E foi na noite desse dia que o Chico Sarará, de volta de Turiaçu, depois de dois
dias no galope do cavalo, veio dizer ao Dr. Lustosa, de chapéu na mão, que o 
Senhor 
Bispo, muito gripado, sentia muito, mas talvez não pudesse descansar na Bela 
Vista, como tinha prometido.
- Ele tem de vir, nem que seja à força! - gritou o Dr. Lustosa,
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saltando na cadeira. - Ele não pode me fazer essa desfeita! Não aceito! Não 
admito! Ele tem de vir!
E sapateava nas lajotas do chão, os olhos crescidos, sacudindo para o ar o punho
exaltado. Nisto fixou o olhar na figura magra do preto, que parecia sorrir-lhe, 
vexado da má notícia. Foi a ele, rápido, e atirou-lhe no rosto a bofetada firme,
que o sacudiu contra o peitoril da varanda, sem lhe dar tempo de defender-se:
- De que é que estava rindo? - perguntou-lhe, vendo o preto levantar-se, ainda 
atordoado. - Doutra vez, apanha de chicote!
Damião tinha acabado de despejar no tanque as duas latas de água da última 
carga, já noite entrada, quando viu o Chico Sarará entrar na varanda, à procura 
do senhor. 
E já estava na senzala, sentado na rede, a comer o prato de comida que a mãe lhe
trouxera, quando o preto chegou, com um fio de sangue no canto da boca. 
Adivinhou, 
num relance, o que se tinha passado. E oferecendo-lhe a rede, ao mesmo tempo que
se acomodava num mocho de pau, as costas apoiadas na parede:
- Senta aqui, Sarará.
O preto deixou cair a cabeça para o punho da rede, ainda ofegante, o dedo 
indicador a comprimir a ferida para estancar-lhe o sangue. E depois de um 
silêncio longo, 
em que apenas se ouvia Damião mastigar:
- Tou ficando cansado de ser preto, Damião. A gente trabaia, trabaia, e depois é
só chicote e pancada, chicote e pancada, ou então tronco e palmatória. Até no 
gosto 
que a gente tem com as muié, é o branco que sai ganhando, com os negrinho que 
vão nascendo. Tu não conheceu o
Tonico, meu irmão. Era um preto bão,só vivia pra
ajudar os outro. Se tinha arguém doente, o Tonico tava do lado, ajudando a 
sofrer. Não podia haver um coração mio. Mio mesmo, só Deus. Um dia, o
Doutô cismou com ele, passou a judiar do coitado, cumo tá fazendo cuntigo. Era 
ele que enchia o tanque. Cumo era fraco, não agüentava direito a carga. O Doutô 
se 
zangava, metia a
taça nele. Tonico acabou achando que era demais. Uma tarde, desceu pra 
lagoa, e não vortou. Foi pra pedreira, e se jogou lá de riba. Quando acharam 
ele, dentro
do mato, já tava inchado, cum os urubu voando em cima.
No esforço para reprimir a ira, que por vezes lhe voltava, encheu devagar o 
peito, semicerrando os olhos pensativos.
- O castigo de Deus, quando demora, tá no caminho - continuou, como se falasse 
para si mesmo. - O do Doutô já chegou. A filha tá aí maluca, com medo do Diabo. 
E 
não é feia, coitada. com o dinheirão que o pai tem, podia ter casado; mas ficou 
moça veia, agora tá na casa do sem-jeito, moço branco não quê mais ela. Se 
tivesse 
casado, tarvez vortasse a ter juízo. Ali é home que tá fartando. Um macho botava
ela boa. Quando o corpo pede macho, e o macho não vem, a cabeça começa a fazer 
besteira. 
A finada Lúcia foi assim.
59
O Sipaúba trepou com ela, botou um fio na barriga da coitada, e a Lúcia ficou 
boa do juízo. Até morrer, pegou seus macho. Dizia que era remédio.
Damião descansou o prato no peitoril da janela, mergulhou a caneca de flandres 
no gargalo do pote, bebeu um gole de água, e tornou ao mocho, sem perder de 
vista 
o Sarará.
 - Tu conheceu o outro fio do Doutô? Era mais veio que NháBiló, Damião.
Damião tinha uma lembrança distante, sem muita nitidez.
- O pai pôs nele um nome diferente: Délio; mas todo mundo chamava ele de Seu Dê.
Seu Dê era a menina-dos-óio do Doutô. Tinha cavalo de sela, espingarda de caça, 
dois escravo só pra ele, e brinquedo que não acabava mais, tudo vindo das 
estranja. O Doutô não largava o fio, pra riba e pra baixo. Um belo dia, sem que 
nem mais, 
Seu Dê amanheceu doente. Corre daqui, corre dali, dá remédio, chama rezado, 
ninguém deu jeito, aí mandaram chamar o médico no Turiaçu. Quando o médico 
chegou, já
não era mais perciso: Seu Dê tava morto. Mas o médico olhou o menino, examinou 
ele, ouviu a história da doença, e meteu na cabeça do Doutô que Seu Dê tinha 
morrido
de veneno. Pra que foi dizer? O Doutô enterrou o fio na capela, mandou levar o 
médico no Turiaçu, e aí juntou os negros, pra sabe quem tinha envenenado Seu Dê.
Ninguém
se acusou. Aí o Doutô prometeu que quem acusasse o curpado, ganhava a liberdade 
e ainda um bom dinheiro. Ninguém falou. Nessa hora, o Doutô perdeu a cabeça. 
Tava 
cum chicote de umbigo de boi na mão, e começou a bater. A pobre da Marvina, que 
não enxergava direito, ficou cega dos dois óio, só com a tacada que recebeu na 
cara. 
A Candoca perdeu o resto dos dente. E o chicote não parava. Ia batendo, batendo,
sem respeitar veio nem muié de barriga. Foi aí que a gente viu cumo teu pai era 
mesmo home. Não é que, de repente, no meio da negrada apanhando, ele gritou pró 
sinhô que não era direito o que ele tava fazendo? Ah, Damião, nem te conto o que
foi que assucedeu. O Doutô cresceu pró Julião, ainda mais doido, e desceu a taça
nele com força. Julião agüentou firme. E toda vez que o sinhô levantava o braço,
ele tornava a dizer, com os óio em cima do Doutô: "Não tá direito." Foi Sinhá 
Veia, nessa hora, que pôs água na fervura. Ela gritou pró fio, mandando ele 
parar, 
e o Doutô parou. Aí nós foi pra senzala cuidar das ferida. Desde esse dia, o 
Doutô ficou com raiva de Julião. Vorta e meia, tava com ele na taça. Julião 
chegou
a ficar uma semana inteira no tronco, ora apanhando do sinhô, ora apanhando do 
feito. Negro duro. Não tinha medo de branco. Apanhava, mas não baixava a cabeça.
Tu
tem pra quem sair. Eu sou diferente: quando apanho, tenho vontade de me matar. 
Pra que ficar neste mundo, só trabaiando e apanhando? Tem hora que eu fico 
pensando 
que Deus não óia prós preto. Se oiasse, tirava a gente do cativeiro.
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A lamparina, por cima do tampo de um baú, movia ao sopro do vento a sua chama 
comprida, como se desse volta sobre si mesma, e fazia dançar na parede a sombra 
de 
Damião, que apoiara o rosto nas mãos espalmadas, com os cotovelos fincados nos 
joelhos.
- E nunca se soube quem matou Seu Dê? - perguntou Damião, aproximando mais as 
sobrancelhas, assim que o Sarará se calou.
- A finada Joana, que sabia de tudo, me disse uma noite, aqui na senzala, que 
foi Nhá-Biló, que não gostava do irmão. Se foi, não sei. O que eu sei é que 
nunca mais 
se falou na morte de Seu Dê. E foi depois que perdeu o fio, que o Doutô passou a
ser memo ruim prós seus negro. Ruim como cobra.
-pENDO CHEGADO POR ÚLTIMO, ele ficOU do
lado de fora da capela, no adro enfeitado de palmas de ariri. Por ali tinha 
acabado de passar o Senhor Bispo, cheio de corpo e queimado de sol, seguido de 
perto
por um padre mulato, quase negro, a quem a Sinhá Dona dava o braço. Mas o 
Sarará, que dera com o companheiro defronte da porta, meio encabulado nas calças
de algodão 
e na camisa de baeta encarnada, travou-lhe do braço, animando-o:
- Vamo entrar, Damião. Daqui de fora tu não vê nada.
Já os outros escravos tinham tomado o espaço que cercava a fileira de bancos, 
todos de pé. Nos dois bancos da frente, o Dr. Lustosa, de sobrecasaca abotoada, 
chapéu 
no peito, a bengala entre os joelhos, ao lado da mulher, da mãe e da cunhada, e 
em companhia dos parentes mais destacados, só olhava para o altar, de cabeça 
tesa, 
o bigode frisado, o cabelo repartido ao meio. A Sinhá Dona, toda de preto, o 
vestido de merinó lustroso a cair sobre as botinas de pelica, abanava-se com um 
leque 
de madrepérola e dividia com a sogra, muito bem posta no traje espartilhado, o 
vento que conseguia provocar na atmosfera abafada. Adiante, de seios altos, o 
cabelo 
penteado para cima, a Sinhá Miloca parecia espichada, toda dura, recendendo a 
naftalina. Nos outros bancos, os demais parentes e convidados, e um banco vazio 
fechando 
a fileira.
A princípio o olor das velas encheu a capela. Mas, à medida que o ar se 
concentrava, com a multidão de escravos a se comprimir
61
ali dentro, o cheiro forte dos negros se adensou por toda a nave, e eis que se 
ouviu o tatalar dos leques, tentando atenuá-lo.
Na véspera, ao subir com a sua primeira carga de água, Damião deu com o Sipaúba 
à sua espera, junto do tanque, segurando pela rédea um jumento novo, com as 
cangalhas 
no lugar da sela.
- Foi Sinhá Velha que mandou te entregar - disse o outro, depois de uma risada. 
- Agora tu não pode te queixar.
Nessa manhã, nas primeiras subidas, não tinha sido fácil trazer o jerico até o 
alto da rampa: tanto escoiceara, fustigado pela ponta de cipó com que Damião o 
obrigava 
a caminhar, que as latas chegaram ao tanque reduzidas a menos da metade. Puxado 
pela rédea, não saía do lugar. Afinal, tantas vezes desceu e subiu, castigado 
pelo 
cipó, que terminou por ajustar-se ao aclive, sem empacar nem insistir nos 
coices.
Já a tarde havia começado, ensolarada e abafadiça, quando se ouviu, longe, o 
primeiro foguete anunciando a passagem do Bispo com a sua comitiva. Seguiu-se o 
corre-corre
na casa-grande, os pretos acudiram para uma última vassourada entre a porteira e
o alpendre. Daí a pouco outro foguete, mais próximo. E como Damião vinha 
descendo 
a ladeira, de volta à lagoa, sentiu que a rédea lhe escapava da mão, ao mesmo 
tempo que o jumento dava dois pulos assustados,
atirando-se por uma picada lateral, 
com o reunir das latas vazias nos galhos e ramos que ia encontrando. Só muito 
distante dali Damião conseguiu alcançá-lo. E ao vir de volta, com as latas 
cheias,
redobrou de cuidado, segurando bem a rédea, porque os foguetes se iam tornando 
mais freqüentes, e o jerico, de orelhas fitas, parecia disposto a aproveitar a 
primeira 
distração propícia para tornar a escapar-lhe.
Dois dias antes, Dom Manuel mandara dizer ao Dr. Lustosa que cumpriria a 
promessa de descansar na Bela Vista. E desde então recomeçaraa azáfama que os 
dias de chuva 
tinham sensivelmente reduzido. Sem que se interrompesse de todo o trabalho no 
engenho, com o lento ranger dos carros de bois atulhados de cana para as 
moendas, 
chiavam nos tachos de cobre os doces requintados, cujas receitas de família só a
Sinhá Velha conhecia - enquanto se matavam os leitões, os perus e as galinhas, 
que 
ficariam de vinha-d'alhos para os dias de festa, prontos para o forno.
A confirmação da chegada do Bispo foi levada às fazendas vizinhas, e logo outros
parentes e convidados desceram junto ao alpendre, trazidos pelos cavalos de 
sela. 
De longe via-se a poeira vermelha da estrada, levantando-se com o trote ou o 
galope das montarias. Em breve só restavam vazios dois quartos da ala direita da
casa-grande, 
adiante do quarto de Nhá-Biló, e que se destinavam ao Senhor Bispo e ao padre 
que o acompanhava, na hipótese de Sua Reverendíssima preferir ficar do lado do 
poente, 
ao abrigo do primeiro sol matinal.
Embora já se trabalhasse dobrado, assistindo aos hóspedes que enchiam a casa-
grande, muita coisa especial tinha sido reservada para
62
os dias da permanência de Dom Manuel na fazenda. As roupas novas dos escravos, 
por exemplo, só nesses dias podiam ser usadas, e só também na presença do 
prelado 
a capela seria aberta.
Agora, na varanda imensa, onde se destacavam os dois aparadores de jacarandá e o
relógio de pé, a mesa do jantar emendava com a do almoço, entrando pela noite o 
tinido dos talheres na porcelana dos pratos. com seu molho de chaves na cintura,
Sinhá Velha não tinha sossego, e era ela que, a bem dizer, dirigia tudo e tudo 
providenciava. De noite, ainda fazia sala para os hóspedes.
O espocar dos foguetes, repetindo-se a uma distância cada vez mais próxima, 
concentrou a casa-grande no alpendre, e só Nhá-Biló se quedou no seu quarto, a 
espionar 
pela fresta das rótulas.
Damião tinha acabado de despejar as latas de água no tanque, quando o Dr. 
Lustosa, alertado pela nuvem de pó que se levantava na estrada, desceu à 
porteira da fazenda 
para receber o Bispo. Pensou em correr à senzala, para vestir também as calças 
de algodão e a camisa de baeta, como os outros escravos, mas temeu atrasar-se e 
perder 
a cena da chegada de Dom Manuel, que deveria ser imponente. Ao encontro do Bispo
tinham partido o Chico Laurentino e mais um sobrinho do Dr. Lustosa, o Major 
Siqueira, 
representando a família.
Cosendo-se ao oitão da casa-grande, por trás dos ramos fartos de um limoeiro, 
Damião ficou a olhar de longe, sem se lembrar mais do jerico, que se pusera a 
escarvar 
o chão com as patas dianteiras, mordendo nervosamente a rédea, perto da borda do
tanque. Como viria o Senhor Bispo? Num andor, como Dom Bento das Chagas?
O que ele viu primeiro, logo depois da curva da estrada, foram dois vultos, cada
qual no seu cavalo, à frente da nuvem de pó. E ainda procurava fixar-se neles, 
para 
ver se lhes distinguia o semblante, quando outros dois vultos irromperam à 
altura do bambual, ainda envoltos na poeira vermelha. Pelo chapéu de um deles, 
reconheceu 
o Chico Laurentino; o outro devia ser o major. Uma égua escura, que vinha logo 
atrás e lhe pareceu ser a Boneca, trazia nas cangalhas dois baús de couro, e era
puxada 
por uma corda, que o Chico Laurentino segurava. Empurrado pela curiosidade, 
Damião veio mais à frente, a olhar a estrada pelos vãos do limoeiro. Era só 
aquilo? E 
o andor do Bispo? Então o Bispo e o padre vinham montados como qualquer pessoa? 
E por que não tinham vindo de batina? Nesse momento, o jerico conseguiu afrouxar
a rédea, assim que estrondou a fuzilaria dos foguetes na porteira da fazenda, e 
desembestou no rumo da estrada, logo perseguido pelo Damião. E como daqui de 
cima 
outros foguetes assobiaram, ganhando altura, para explodir por cima das árvores,
o jumento desorientou-se, mais assustado ainda, e entrou pela rampa de pedra, 
sempre 
aos pinotes, já agora enxotado pelos negros que formavam ala para a passagem do 
prelado:
- Vai-te embora, bicho!
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O jumento saltou para um lado, depois para o outro, como se fosse retroceder; 
mas seguiu em frente, ameaçando passar pelo arco florido por onde entraria Dom 
Manuel. 
E foi aí que, de dorso nu, as calças molhadas, Damião conseguiu segurar-lhe a 
rédea, ao mesmo tempo que, do outro lado da porteira, o Dr. Lustosa ia ao 
encontro 
do Senhor Bispo, que já se firmava no estribo para descer do cavalo.
- Vai-te vestir direito, Damião - gritou o Sipaúba, ao vê-lo sair da rampa 
levando o jerico.
Mas Damião, com o espanto nos olhos, não apressou muito o passo, parando mais 
adiante e voltando-se para trás, intrigado com o mulato corpulento, quase negro,
a quem o Dr. Lustosa apertava a mão.
- É o padre que vem com o Bispo - concluiu.
E gente de cor podia ser padre? Podia: ali estava a prova. O mulato seria mesmo 
o padre? Ou seria o Bispo?
- O Bispo só pode ser o senhor mais baixo que está agora com o Doutôr - 
reconheceu.
E outra vez por trás do limoeiro, sempre segurando a rédea do jumento, esperou 
que o Dr. Lustosa subisse devagar a rampa acompanhando o Bispo, seguido logo 
depois 
pelo major e pelo padre - enquanto o Chico Laurentino contornava a casa-grande, 
puxando a égua escura que trazia os dois baús de couro.
Desapontado, Damião levou o jumento para a cocheira, sem pressa de chegar à 
senzala. E ele que fizera outra idéia do Senhor Bispo! Um homem como os outros, 
e de 
calças compridas, com um chapéu de feltro na cabeça - era o que tinha visto. 
Chegou mesmo a rir da comitiva do prelado, reduzida ao mulatão robusto, de 
muitos dentes, 
e que ria com facilidade, exibindo a dentadura.
- Tu tá te rindo sozinho, Damião?
E como ele não respondesse, a Miduca insistiu:
- Fala cuns pobre. A mode que tu não gostou de mim. Óia pra eu, Damião. Oiar não
tira pedaço.
Ele a olhou de relance, enquanto tirava a rédea do jumento, já na cocheira. A 
saia estampada, que lhe descia até os pés, fazia-a mais velha. Trazia uma flor 
nos 
cabelos. Por baixo da blusa branca, que caía por cima da saia, os seios soltos 
balançavam. E de olhos baixos, como envergonhada do pedido, ela baixou a voz:
- Eu quero que tu me faça um fio, Damião. O primeiro não pegou. Quando tu me 
chamar, eu vou.
- Deixa de ser assanhada, Miduca. Eu não quero saber de filho. Filho pra quê? 
Pra ficar debaixo do chicote? Como tu? Como eu? Vai, vai embora - ralhou ele, de
rosto 
fechado.
E ela, magoada, olhando-o de lado:
- Eu vou, eu vou. Não percisa me bater.
Não era a primeira vez que ela volvia a aparecer-lhe de surpresa, ali perto da 
senzala. De outra feita, correra-a dos arredores da lagoa,
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à primeira claridade do dia. Cair noutra, depois do susto que tinham levado, com
o Doutôr passando perto? Não, não era maluco. Ela passara a esperá-lo de noite, 
quando ele terminava o seu dia, faminto, de corpo moído, só pensando em comer e 
se deitar. Tornara a aborrecer-se, repelindo-a. E ela, exaltando-se:
- Tá bem, tá bem. Fica sabendo que home é que não farta. E mio que tu, Damião. 
Mio que tu.
- Se é melhor do que eu, por que é que tu me procuras? -
reagiu ele, melindrado.
- Também não sei. Mas tem. Fica sabendo que tem. Agora, lá ia ela, na roupa nova
cheirando a alfazema, a caminho
da casa-grande, pisando o chão com raiva. Ele próprio, ao certo, não sabia bem 
por que a repelia. Ali na senzala, não havia outra crioula mais jeitosa, mais 
bem-feita 
de corpo. Fazia uma semana que se tinha deitado com a Gertrudes, no chão por 
trás da capela; noutra noite, dormira com a Teresona, que todo mundo gabava como
mulher, 
no jeito e gosto com que dava prazer aos seus machos. Uma e outra, juntas, não 
valiam a Miduca. E ele a mandava embora. Por quê? Talvez por ser ela que se 
oferecia.
Ao entrar na capela, levado pelo Sarará, Damião deu com a Miduca, a um canto, de
véu na cabeça, apertada contra o Bené Serafim, que lhe roçava o seio esquerdo 
com 
a ponta do cotovelo manhoso. Ela, assim que o viu, virou-lhe o rosto, com ar 
agressivo - mas Damião se esgueirou para o fundo da nave, afastando-se do 
Sarará. Aliainda havia um pouco de espaço, e ele pôde acomodar-se a gosto. Como era alto, 
via perfeitamente o altar, por cima das cabeças à sua frente.
A figura meã do Bispo, de frente para o altar, nada tinha do tipo vulgar e 
empoeirado que ele vira na véspera. A capa solene, que lhe descia até os pés, 
fazia-o 
mais alto, sobre o fundo de ouro do altar iluminado. Sua voz cheia, recitando o 
latim da missa, ajustava-se ao mistério do rito, como que acompanhada pelo 
movimento 
das mãos, tão brancas que pareciam transparentes.
Depois de uma vista de relance, que abrangeu toda a capela, Damião se fixou de 
novo no altar. Tudo, ali, lhe parecia imponente: a talha doirada, o reflexo das 
velas, 
os enormes castiçais de prata, a imagem da santa no seu nicho azul-celeste, o 
grande cálice de ouro, o sacrário com a cortininha de veludo, o Evangelho de 
letras 
iluminadas junto às três sacras reluzentes. Até o padre mulato, que julgara 
abrutalhado para seu ofício, condizia agora com a cerimônia, na elegância com 
que sacudia 
o turíbulo, repetindo os duetos de incenso, após ter dobrado o joelho defronte 
da Virgem do Rosário. Era ele também que tangia uma sineta, obrigando o Dr. 
Lustosa 
a levantar e a ajoelhar, prontamente seguido pela mãe, a mulher, a cunhada e os 
demais parentes e convidados. Só os negros permaneciam de pé, à revelia das 
ordens 
da sineta, no estreito espaço que lhes era destinado.
65
Quando Dom Manuel começou a sua predica, voltado agora para os fiéis, Damião 
veio um pouco mais à frente, redobrando de atenção. Como trazia na lembrança a 
imagem 
tosca da capelinha do quilombo, com o Quincas Nicolau paramentado com um trapo 
roxo que lhe descia dos ombros nus, o Bispo lhe dava agora a impressão de um ser
sobrenatural, sobre o fundo de ouro da talha do altar. Ouvia-lhe as palavras, 
qual se estas saíssem dos lábios de um santo. A despeito do ar abafado, que 
fazia muita 
gente abanar-se com a mão, ele se mantinha atento à predica, de cenho contraído,
sem tirar a vista do pregador. E assim permaneceu até o momento em que o Bispo 
traçou no ar uma cruz e novamente se voltou para o altar, retomando a celebração
da missa.
Acercando-se um pouco da porta, para atenuar o calor que começava a sentir, 
Damião viu aproximarem-se as negras que traziam os filhos para serem batizados. 
À direita 
do- altar, já estavam as escravas que iriam casar, todas de branco, com uma flor
no cabelo, umas a se esconderem por trás das outras. E foi ao olhá-las que 
Damião 
descobriu, no meio da nave, também à sua direita, a mãe e a irmã. A irmã saíra 
mais à mãe que ao pai, cheia de corpo, seios rijos empurrando a blusa, o rosto 
redondo, 
os olhos grandes e vivos.
- Não sei como foi que ela não quis casar agora - refletiu Damião, olhando-a de 
perfil, e lembrando-se de seu namoro com o Floriano, que lhe parecia adiantado.
A mãe, de ar cansado, apoiava as mãos nos ombros da filha, e movia o busto para 
um lado e para o outro, sempre que mudava o apoio do corpo, ora no pé direito, 
ora 
no pé esquerdo, ambos inchados. Devia sentir-se exausta, assim de pé. E embora 
sobrasse ao fim da nave um banco vazio, nenhum negro pensaria em sentar-se ali. 
Sobretudo 
ela, com seu semblante acossado, sempre com receio de apanhar.
E de repente numa reação impulsiva de seu brio, Damião voltou a fixar o 
pensamento na miséria de sua condição. Por que era escravo? E por que também 
eram escravos 
os negros que enchiam a capela? Agora, ali estava o Bispo, como emissário de 
Deus. Deus estaria de acordo com aquela distinção? Uns livres, outros escravos? 
Uns 
sentados, outros de pé? No entanto, ali na fazenda, os brancos constituíam a 
minoria privilegiada, que oprimia a multidão de negros, sem lhes dar direito a 
nada, 
nem mesmo ao banco vazio da capela. E os negros eram a maioria e a força, o 
vigor e o trabalho. Não seria o caso de perguntar ao Bispo o que fazia Deus que 
não tirava 
os pretos do cativeiro? Ou o Deus era dos brancos e não dos negros?
Em verdade, desde que o Bispo ali chegara, tudo havia mudado. Já fazia dois dias
que o sino da fazenda não chamava os negros para o trabalho. Os carros de bois, 
que iam aos canaviais ao clarear do dia, e que de lá voltavam rangendo pela 
estrada, jaziam com os varais por terra, adiante do curral, enquanto os bois 
pastavam 
no capinzal extenso. Certo, o trabalho na casa-grande não tinha descanso, com as
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mesas que se sucediam, a arrumação dos quartos, o forno aceso antes de raiar a 
manhã; mas trabalhava-se com alegria, e todo mundo se mostrava contente diante 
do 
Senhor Bispo. As chibatas, as palmatórias, o tronco, as gargalheiras, o libambo,
as máscaras de flandres, tudo tinha sido escondido, para evitar que sobre esses
instrumentos de castigo resvalasse o olhar de Sua Reverendíssima. Na véspera, 
pelo fim da tarde, o Chico Laurentino tinha vindo
à senzala dizer aos negros, da parte do Doutôr, que, à noite, se quisessem, 
podiam dançar no terreiro. E até tarde, sob a claridade do luar, no terreiro bem
varrido, 
os pés descalços marcaram o compasso
das danças, ao som frenético dos tambores africanos. Os hóspedes da casa-grande 
vieram ver os negros dançando, e até o Doutôr, em companhia do Senhor Bispo e do
padre mulato, ali aparecera, com uma fisionomia bondosa. Na volta, um toque 
ríspido do sino, que o próprio Doutôr bateu, fez calar os tambores e sustar as 
danças, 
e outra vez o silêncio da noite caiu gravemente sobre a fazenda.
Quando o Bispo fosse embora, as chibatas, as palmatórias e o tronco voltariam 
aos seus lugares, e bem visíveis, para que os negros se atemorizassem só em 
olhá-los. 
Novamente o trabalho no campo, de manhã à noite, e que só se atenuava quando 
estrondavam as grandes chuvas. O Doutôr, de cara fechada, na sua cadeira de 
balanço 
do alpendre. As moendas triturando as canas, com a garapa a escorrer cá embaixo.
O cheiro do melaço nos grandes tachos de cobre. O calor do forno na casa da 
farinha. 
A Sinhá Velha tilintando pelos corredores a sua cambada de chaves. O estalo da 
taça no couro dos escravos. E ele a subir e a descer a rampa, entre o tanque e a
lagoa, 
com a sua carga de água. Na certa, o Chico Laurentino, de ordem do Doutôr, lhe 
tomaria o jumento, e ele teria de suportar no ombro o peso das latas de água. E 
até 
quando duraria o seu tormento? Cinco anos? Dez? Vinte? A vida toda? Seria 
possível agüentar o mesmo suplício, até ficar de cabeça branca, como o Tolentino
e o Barnabé? 
Ou cederia ao impulso do desespero, como o irmão do Sarará?
Nesse momento o olhar de Damião voltou a fitar a mãe, que também olhava para o 
filho com uma expressão alvissareira. com um gesto, ela lhe disse que, depois da
missa, queria falar-lhe. Ele moveu a cabeça, para responder que a tinha 
entendido, e apontou para o adro, indicando o lugar onde deveriam encontrar-se. 
Viu-a baixar 
a cabeça, logo depois, no momento da elevação, ainda apoiando-se nos ombros da 
filha. Assim contrita, tornava-se mais velha, mais acabada- No entanto, quando 
estava 
com ele, jamais lhe transmitia o seu desânimo. Pelo contrário: animava-o sempre,
na sua doce voz cochichada. Agora, que lhe quereria dizer?
Ao fim da missa, Damião não esperou pelos casamentos e batizados. Veio para 
fora, e
ali aguardou a mãe. Por seu gosto, tiraria a camisa de baeta encarnada e 
volveria
às suas velhas calças de todos os dias, sabendo bem que era falsa, no seu corpo,
aquela roupa nova.
67
O Sipaúba veio fazer-lhe companhia:
- Tu gostou da missa?
Damião confirmou com a cabeça, sem olhar o companheiro.
- Eu também gostei. Amanhã de manhã, o Bispo vai embora. Adeus boa vida. Tudo 
isto vai acabar, e nós vorta outra vez pra enxada e pró chicote. Até morrer.
Damião levantou o olhar para o outro, querendo dar-lhe uma palavra de conforto; 
mas sentiu em tempo que não saberia mentir-lhe. Bateu-lhe de leve no ombro, sem 
nada 
dizer.
E o Sipaúba, logo depois:
- Nem drumindo a gente é livre. Ontem de noite, sonhei que tava no tronco, 
apanhando. Acordei gemendo, molhado de suo.
- Também já tive um sonhoassim - confessou Damião, de vista baixa, após um 
silêncio.
Sempre de cabeça baixa, pôs-se a riscar o chão com o dedo grande do pé direito, 
e ele próprio se espantou com a palavra que dali saiu: MIDUCA. Embora o outro 
não 
soubesse ler, apagou-a depressa, correndo a planta do pé sobre a terra, e viu 
que a Miduca ia descendo a rampa, na direção da lagoa, ao lado do Caetano. Ela 
passara 
por ali de propósito, para ser vista por ele. E lá adiante, antes de desaparecer
na volta do caminho, voltou-se para olhá-lo, como a dizer-lhe que ia entregar-
se. 
Damião tornou a riscar o chão com raiva, calcando bem a terra: VAI, conseguiu 
escrever, decidido a bani-la de seu pensamento. No entanto, à medida que ela se 
distanciava, 
ele mentalmente a seguia, até vê-la despida sobre a relva, no mesmo lugar em que
se tinham encontrado. Tornou a correr o pé sobre a terra fofa, tentando dominar-
se. 
De repente as suas narinas se dilataram, sua respiração se fez mais curta. 
Sentia crescer no seu corpo a vontade de saciar a carne exacerbada. E pôs-se a 
dizer a 
si mesmo, sem ouvir o que lhe dizia o Sipaúba:
- Fiz bem em mandar embora aquela cadela. Se não mandasse, acabava tendo um 
filho com ela. E isso eu não quero. Filho, não. Não vou aumentar os negros do 
Dr. Lustosa. 
Filho meu não há de ser escravo de ninguém.
E o Sipaúba, desconfiado:
- Tu tá ouvindo o que eu tou dizendo, Damião?
- Não, Sipaúba. Tu me desculpa. Eu tava pensando uma coisa, aqui comigo. Me 
distraí. Mas vou te dizer o que eu tava pensando. Se um dia eu botar um filho no
mundo, 
meu filho não há de ter senhor.
O Sipaúba recuou um passo, de olhos crescidos, abrindo a dentadura falhada. E 
baixando a voz, quase na orelha do Damião:
- Antão, meu nego, só há um jeito: cumo a Sinhá Miloca já tá veia e não dá mais 
cria, faz um fio em Nhá-Biló. Só assim teu fio não nasce escravo. Doutro jeito, 
cum 
as negra daqui, o negrinho tá no chichoíe, cumo eu, cumo tu.
68
E recolheu o riso, ao ver que, pela porta da capela, vinha saindo o Dr. Lustosa,
em companhia do Bispo. Adiante, a Sinhá Velha, com o padre mulato. Depois a 
Sinhá 
Dona e a Sinhá Miloca. Por fim os parentes e convidados - ao mesmo tempo que, 
pelas portas laterais, ao fundo da nave, saíam os negros, primeiro os noivos, 
depois 
as mães com os filhos já batizados, em seguida os outros escravos, e todos 
rindo, a trocarem pilhérias, numa animação de domingo vadio.
A Inácia veio vindo devagar, sempre a amparar-se no braço da filha. Dava alguns 
passos e parava. O corpo lhe pesava, as pernas tinham inchado ainda mais com a 
posição 
forçada na capela. Mas, ao ver o filho, procurou acelerar os pés, com um ar de 
alegria no rosto cansado. Novamente parou, sem forças, deixando cair o corpo 
para 
a borda da calçada. Só aí Damião deu por ela, e correu ao seu encontro.
E a velha, depois de beijá-lo, prendendo-lhe as mãos:
- Te pega com o Bispo. Vê se ele quê te levar pra ser padre. Já tem padre 
escuro, quase preto. Cum a cabeça que tu tem, ele é capaz de te querer. Vê se tu
fala 
cum ele. Eu pensei nisso a missa toda. E pedi muito pra Nossa Senhora.
Ele olhou a mãe, com emoção. Como resposta, correu de leve a mão sobre seus 
cabelos grisalhos, ouvindo-a dizer:
- Pra Deus nada é impossível, Damião. Ele vê o que tu tem sofrido. Fala, fala 
cum o Bispo. Uma coisa me diz aqui dentro que
ele vai te levar.
O MELHOR QUE FAZIA ERA ESPERAR pela noite, quando a casa-grande e a senzala já 
estivessem quietas, de luzes apagadas, cada hóspede no seu quarto, e os negros 
na
sua rede ou na sua esteira de piaçaba.
Pelo fim da tarde, com os primeiros pirilampos sobre as moitas de avencas e 
samambaias, ele tornara a rodear a casa-grande, de longe, para ver se 
surpreendia o
Bispo a sós, a jeito de lhe falar. Depois da missa, tinha sido o almoço na 
varanda, com muita gente em redor do prelado, sobretudo o Doutôr, que dele não 
se afastara 
um só momento. Viera depois a sesta, com a modorra da tarde. Nessa hora, como 
entrar na casa-grande, se as mucamas continuavam a transitar pelos corredores? 
Por 
outro lado, 'não iria acordar o Bispo, para lhe
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falar de seu caso. Tinha de ter paciência: de um momento para outro, surgiria a 
oportunidade propícia. Quem sabe se Dom Manuel, depois da sesta, não daria uma 
volta 
pelo quintal, antes que o Doutôr acordasse?
- O que tem de ser traz força - argumentara, procurando acalmar-se, sentado numa
raiz de ingazeira, num ponto que lhe permitia abranger a casa-grande.
Por volta das três horas, ainda com o sol alto, chegou a levantar-se, 
alvoroçado, vendo o Bispo aparecer no alpendre. Mas, logo depois, surgiu também 
o Doutôr, 
e os dois ficaram de conversa, cada qual na sua cadeira de balanço. Chegou 
depois o padre. Em seguida, outros hóspedes se aproximaram. Daí a pouco apareceu
a mucama 
com a bandeja do café.
E nisto ele deu com a Miduca à sua frente:
- Quê que tu tá ispiando aí, faz mais de hora, Damião? Tou te vendo, não é de 
hoje.
O susto que ela lhe dera aumentou nele a ira de sua presença. Num impulso, 
levantou-se e correu para ela, segurando-lhe o braço, já de mão erguida para 
bater-lhe.
- Bate, que tu vai ver - desafiou a Miduca, de cabeça inclinada, a fitar-lhe o 
rosto pelo canto dos olhos.
Ele susteve o gesto, limitando-se a empurrá-la:
- Vai-te embora, diaba. Eu não quero perder a cabeça contigo.
- Tu tá cum arguma coisa no pensamento, Damião. Se tu me bate, tu ia ver o que 
era bom. Tu quis judiar comigo, agora chegou a minha vez. Caetano é mio que tu. 
Mais 
home. Não adiante me oiár cum essa cara feia. Não me mete medo.
E ela própria, depois de olhá-lo de frente, ainda de rosto inclinado, seguiu 
devagar o seu caminho, descendo na direção da senzala, enquanto ele volvia à 
raiz da 
ingazeira, de lábios apertados, as mãos frias, tentando reprimir a cólera que o 
atordoava. Não se deixou ficar ali por muito tempo, certo de que a Miduca 
continuaria 
a espioná-lo: orientou-se para a lagoa, ruminando o seu ódio. Ah, puta! Ah, 
vagabunda! Caminhou tanto, seguindo o contorno das águas, que as pernas lhe 
doeram. Sentou 
numa pedra lisa, com a camisa de baeta sobre os joelhos, os olhos alongados para
a lagoa, arrepiada agora pela viração da tarde. Dali via o pasto, com os bois 
soltos na relva, e também a casa-grande, longe, no seu cômoro sobranceiro. Do 
outro lado, um bando de garças, à luz da tarde alta e que já queria esmorecer. 
Mais 
longe ainda, as filas cerradas dos algodoeiros. Do outro lado, avançando mata 
adentro, com as suas lâminas em riste, o canavial
denso, muito verde, protegido pela cerca de arame farpado.
Aos poucos, derramando a vista pelo cenário que o cercava e ouvindo cantarem as 
siricoras nos aguaçais, sentiu atenuar-se a sua ira. Que lhe custava ter um 
pouco
mais de paciência? A Miduca, no seu íntimo, sentia-se machucada pela maneira por
que ele a tratara. Se
70
ele lhe confiasse as suas razões, ela não as compreenderia. O melhor que fazia 
era dar tempo ao tempo, mantendo-a a distância, sem cair na fraqueza de se 
deitar 
com ela.
De coração apertado, lembrou-se de Nhá-Biló. Numa de suas voltas em torno da 
casa-grande, tinha-a visto de relance, pela fresta da janela de seu quarto, a 
olhar 
para fora, no vestido roxo que mandara fazer para receber o Senhor Bispo. Desde 
a chegada dos primeiros hóspedes, mantinha-se fechada, não querendo que ninguém 
a
visse. Como os primos da Serra Negra insistissem em querer vê-la,
batendo-lhe na porta cerrada, pusera-se a gritar que não queria ver ninguém. Nem
mesmo a mucama
entrava agora no aposento para a limpeza diária. Deixavam-lhe a comida à porta, 
o urinol lavado, e também a água morna para seu banho. Todas as noites, antes de
recolher-se, Sinhá Velha lhe dava sempre uma palavra, através da porta fechada, 
para saber como estava ou se precisava de alguma coisa. Ela respondia por 
monossílabos,
ou então cantarolava baixinho, embalando-se na rede. O próprio Bispo, ao saber 
de sua reclusão doentia, tentara convencê-la a abrir-lhe a porta. O Doutôr, que 
o 
acompanhava, chegaraa exaltar-se, ameaçando pôr a porta abaixo. O mesmo 
silêncio. Depois o vaivém da rede. E por fim um grito:
- Eu vou para o Inferno! Eu vou para o Inferno!
O mais acertado era deixá-la no seu canto, quieta, recortando figuras de velhas 
revistas, cuidando das antigas bonecas, ou tocando a sua guitarra. A rigor, não 
dava 
trabalho. Só queria que a deixassem em paz. Mesmo assim, o Bispo, assistido pelo
padre, andara a sacudir água benta pelos cantos da casa, sobretudo na porta e 
nas 
janelas do quarto de Nhá-Biló. E a verdade é que, na madrugada desse dia, só a 
ouviram cantar baixinho, embalando-se na rede.
Quando a tarde entrava a esmorecer, com as nuvens de andorinhas retornando aos 
seus abrigos e os sabiás cantando no ramo mais alto das pitombeiras, Damião 
subiu 
a rampa, para rodear de novo a casa-grande. O alpendre estava deserto, já com o 
lampião aceso no seu gancho de parede, à espera da noite que ia cair. Uns restos
de luz escarlate para os lados do poente. O recorte da mata, projetado contra o 
fundo claro do horizonte, ia-se enegrecendo gradativamente, até converter-se 
numa 
silhueta quase negra, de tons arroxeados.
Da varanda vinha o tinido dos talheres, já com o jantar chegando ao fim. E 
Damião viu quando o Bispo e o Doutôr passaram para a sala de visitas, iluminada 
pelos 
candeeiros de opalina. Como a noite estava abafada, tinha sido aberta aquela 
parte da casa, que Damião admirava pela primeira vez, embora de longe. Chegou-se
mais 
para perto, o máximo que lhe era possível sem que da sala pudessem vê-lo, e 
observou os grandes retratos nas paredes, o imenso espelho de moldura doirada, 
os dois 
grupos de cadeiras, os consolos com tampos de mármore, as cortinas que
guarneciam as janelas, e tudo lhe pareceu de uma riqueza tão grande, que outra 
igual não
poderia existir.
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Sentado numa das pontas da marquesa de palhinha, o Bispo ria alto, equilibrando 
nas mãos a sua xícara de café, enquanto o Dr. Lustosa, também rindo, segurava o
cachimbo que acabara de acender. Nas duas cadeiras de braços, a Sinhá Velha e a 
Sinhá Dona. Os primos da Serra Negra, a um canto, ouvindo o padre. E Sinhá 
Miloca, 
de pé, o olhar para o retrato de um menino, que se destacava na parede ao fundo.
Logo o Bispo recolheu o riso, o Dr. Lustosa contraiu a testa, e houve um 
silêncio 
demorado, e tão profundo, que deu para que Damião ouvisse, cá fora, a tosse seca
de Sinhá Velha.
- Hoje, já Seu Dê estaria tomando conta da fazenda, no meu lugar - adiantou o 
Dr. Lustosa, dirigindo-se ao Bispo.
E Dom Manuel, entrelaçando as mãos por cima do joelho cruzado, no tom grave e 
lento com que proferira a sua predica na capela:
- Se Deus o chamou, ainda menino, é porque considerou que ele estava amadurecido
para a sua santa glória. O Senhor sabe o que faz. Nada se passa neste mundo que
não seja uma emanação da vontade divina. E só nos compete curvar a cabeça ante 
as decisões do Criador - concluiu, inclinando-se um pouco para a frente, depois 
de 
endireitar o joelho.
A noite já havia fechado. E como a lua só ia aparecer por volta das oito horas, 
a escuridão se adensara em toda a volta da casa-grande, destacando o retângulo 
das 
janelas nos aposentos iluminados. No terreiro, uma fogueira começava a arder, 
crepitando as primeiras faíscas, e breve se ouviu a batida tímida de um tambor. 
Em 
seguida, quando o fogo estralejou, com as labaredas dançando sobre os toros de 
madeira, outros tambores retumbaram, no compasso ligeiro de ferraduras nas 
cavalhadas.
Damião ficou um momento absorto. Dir-se-ia que aquele batecum nervoso, que só os
negros sabem tocar, restituía-o a si mesmo, numa noite africana. Ficou assim uns
momentos, como suspenso no ar, vendo o fogaréu, a mata, os vultos que imitavam 
as labaredas, por entre o tantantã dos tambores. Depois, caiu em si.
Porque logo lhe veio, com a rapidez de uma punhalada, a consciência de sua 
condição.
Àquela hora, com certeza, a mãe andaria à sua procura, para lhe dar o jantar. E 
só então ele se lembrou de que, após o almoço na senzala, nada mais havia 
comido.
Olhou para o lado da lagoa. Uma linha de luz pálida estendia-se por cima do 
negror da mata, com a lua querendo aparecer.
Antes que a lua apontasse, ele se decidiu:
- Não adianta nada eu ficar aqui esperando vez para falar ao Bispo. Besteira 
minha. Sozinho, não deixam ele ficar. Para falar mesmo só com ele, tenho de 
deixar 
todo o mundo se deitar: aí entro na casa-grande, pelo corredor dos fundos, e 
bato na porta do quarto dele. Não há outro jeito.
72
E com a consciência do risco que ia correr, apalpou a cintura, por cima da 
camisa, para sentir o cabo da faca. Depois, esgueirando-se na sombra, subiu a 
calçada 
que acompanhava o oitão da casa-grande. Já as mucamas tinham cerrado as janelas 
dos quartos dos hóspedes, para evitar que ali entrassem os besouros, os maruins 
e 
as muriçocas; mas a claridade resvalava para fora pelas frestas das rótulas. Lá 
adiante, defronte do cajueiro frondoso, era o quarto de Nhá-Biló. No mesmo 
correr, 
o quarto do Bispo, de esquina, o mais amplo da casa.
Dentro, sentiu passos. com certeza, a Brígida andaria a preparar o aposento, com
a moringa de água, o lençol dobrado sobre a cama, o óleo no candeeiro, a vela 
no castiçal, a toalha de rosto, o sabonete novo.
Quando ele chegou à senzala, a Inácia parecia aflita:
- Adonde tu te escondeu, Damião? Tou cansada de andar atrás de ti. Tua comida te
esperou tanto que tá fria. Eu vou esquentar.
A Inácia tinha o seu quarto, juntamente com a filha, ao fundo da senzala. Era 
uma peça estreita, apenas com o espaço para as duas redes, a tábua de engomar 
junto 
à única janela, o cesto de roupas para passar, dois baús pintados e um mocho de 
pau. Na parede, o espelhinho da Leocádia.
Sentado no mocho, Damião ficou esperando que a mãe voltasse da cozinha da 
senzala. Quase todos os negros tinham ido para o terreiro. Os tambores agora 
batiam forte, 
acompanhados pelos chocalhos e os agogôs. A despeito de ser domingo, a Inácia 
adiantava o seu trabalho, passando roupa. Sobre a tábua de passar, o ferro 
quente ocupava 
o seu descanso de metal, ao lado da pilha de roupas já prontas. Adiante,' o 
abano.
Ela não tardou a voltar, com o prato quente protegido por uma toalha de felpo.
- Come direito - recomendou ao filho.
Logo se pôs a abanar o ferro, avivando-lhe as brasas. E deslizando-o sobre a 
saia borrifada de água, que espichara ao comprido da tábua, perguntou a Damião:
- Tu já falou com o Bispo? Fala. Não deixa de falar. Meu coração tá dizendo que 
tu vai ser feliz. Ele vai embora amanhã cedinho. Antes do dia amanhecer. Já o 
sinhô 
mandou dizer que cum pouca baíe o sino pra parar os tambô mode o Siô Bispo 
drumir. Tu tem de falar é hoje. Ou antão amanhã, antes dele levantar. Tem de ser
no quarto 
dele. Sem ninguém ver. Tu tem boa cabeça, é que nem teu pai. Tu dá jeito pra 
tudo.
Ele se limitou a ouvir, de cabeça baixa para o prato. Depois, mastigando 
devagar, voltou a olhar a mãe, vergada sobre a tábua, os enormes pés descalços 
plantados 
no chão de terra.
- Tu vai ter de ir embora; mas é mio tu longe, livre da peia, do que perto de 
tua mãe, apanhando do sinhô. Parece mentira: Damião
73
padre. Só queria te ver de batina, e morrer. Era uma caridade que Deus me fazia.
Ele mesmo lavou o prato, na gamela de água do lado de fora da senzala. E foi 
tomar a bênção à mãe, para despedir-se.
- Vai com Deus.
A lua tinha subido, estava agora por cima da mata, clareando tudo à sua volta - 
a casa-grande, a senzala, o terreiro, o engenho, a casa de farinha, a cocheira, 
a 
rampa da lagoa. Até a porteira da fazenda, longe, se podia divisar.
Para que não o vissem, Damião passou ao largo do terreiro, por trás das 
toiceiras de um bananal, com a intenção de esconder-se num velho abrigo coberto 
de palha, 
à direita da casa-grande. Antes de lá chegar, parou a meio caminho, ao ver 
correrem em sua direção os dois cães rajados que o Dr. Lustosa tinha 
habitualmente ao 
pé de si quando estava no alpendre. Esperou por files castanholando os dedos, 
como receio de que não o reconhecessem; mas os cães sustaram a carreira, ainda 
a 
boa distância, e terminaram por sacudir a cauda, enquanto Damião lhes afagava a 
cabeça. Novamente correndo, os dois retrocederam ao alpendre, e Damião, 
agachando-se, 
avançou para o abrigo.
Ali ouviu quando os tambores calaram, após a badalada ríspida do sino. Redobrou 
de atenção olhando a casa-grande, quando o candeeiro do alpendre foi retirado. 
Aos 
poucos as outras luzes se apagaram. Só ficou a claridade desmaiada que, 
esgueirando-se das rótulas cerradas, misturava-se aqui fora à luz do luar.
Ele sabia que deveria bater de leve na porta do quarto antes que o Bispo 
estivesse deitado. Depois já seria tarde. Por isso veio-se aproximando devagar, 
sempre evitando 
que o luar lhe batesse em cheio. Contornando o alpendre, subiu à calçada, rente 
à parede, e foi acompanhando a orla de quartos, sempre à escuta, a mão pronta 
para 
agarrar o cabo da faca.
Na senzala também as luzes tinham sido apagadas. Só restava o velho candeeiro da
entrada, e de chama tão tênue, que se diluía na mansidão do luar. No silêncio, 
piava 
de vez em quando uma coruja. E como a viração era constante, sem pancadas 
bruscas de ventania, o sussurro das árvores lembrava o rolar dos rios largos que
descem 
para o mar.
Junto à janela do quarto do Bispo, Damião parou, de respiração suspensa. Ouvia-
lhe os passos nas lajes do chão, a arrastar os chinelos. Depois o ruído da água 
despejada 
na bacia do lavatório. Chegou a escutar a zoada das mãos que molhavam o rosto 
repetidas vezes, por entre o sibilar das narinas repelindo a água. Esperou ainda
uns 
minutos. Depois de um sopro forte, sentiu a vela apagar.
- Tem de ser agora - decidiu-se.
Cautelosamente, pisando de leve, atravessou o passadiço entre a casa-grande e o 
telheiro do tanque, para entrar pela cozinha. com a
74
ponta da faca, sempre redobrando de cuidados, conseguiu levantar a taramela que 
fechava a porta pelo lado de dentro, ao fundo da cozinha, e outra vez a cerrou, 
quase 
sem ruído. Daí seguiu por um pequeno corredor até à varanda. Embora só houvesse 
entrado ali duas vezes, tinha a lembrança nítida do lugar em que se achava cada 
móvel. 
Ajudado pela claridade do luar, que descia dos vidros das janelas, distinguiu 
nitidamente o relógio de pé, o guarda-louças, os dois aparadores de jacarandá, a
grande 
mesa de almoço com seus pesados cadeirões de couro. Pé ante pé, contendo a 
respiração, dobrou à esquerda. Lá ao fundo, era o quarto do Bispo. E tanto dali 
quanto 
do quarto de Nhá-Biló, que o antecedia, saía um filete de luz, que se alongava 
para as lajes do chão.
Mal deu um passo, ouviu que o chamavam, num sussurro, do lado da varanda:
- Damião...
De início, no relance assustado do olhar, não viu Nhá-Biló; mas a voz era dela, 
não tinha dúvida. Encostou-se à parede, lívido, firmando o olhar na direção da 
varanda. 
Por instinto, levou o dedo aos lábios, para impor silêncio. E só aí deu com o 
vulto esguio, parado à entrada do corredor que levava à sala de visitas.
- Tu vieste me ver, Damião?
Ela estava agora defronte dele, apanhada de perfil pela claridade que 
atravessava o vidro da janela. Vestida de roxo, parecia mais alta com os cabelos
corridos, 
os pés no chão, muito branca, os olhos dilatados.
- O Bispo mandou me chamar - mentiu Damião, num sussurro. - Ninguém deve saber.
- Ah! Então vai. Ele ainda está acordado. Depois vem falar comigo. Estou-te 
esperando no meu quarto.
- Sim, sim - concordou ele. - Vá para lá. Eu não demoro. Ela passou à frente, 
abriu de manso a porta de seu quarto, entrou
na ponta dos pés, cerrou de novo a folha.
Sem perda de tempo, Damião bateu de leve, com o nós dos dedos, na porta do 
quarto do Bispo.
- Quem é? - perguntou Dom Manuel, aproximando-se.
- Um escravo, Senhor Bispo. Preciso lhe falar.
- Que é que queres, a esta hora? - volveu Dom Manuel, ainda com a porta cerrada.
- Eu já ia me deitar. Podes falar, estou te ouvindo.
- É muito importante o que eu vou lhe falar, Senhor Bispo. Não pode ser assim. 
Abra a porta, deixe eu falar com o senhor. É assunto muito importante - tornou a
dizer, em tom mais implorativo. - Pelo bem de Nossa Senhora. Só o senhor pode me
ajudar.
A chave rodou áspera na fechadura, e Damião viu a figura meã de Dom Manuel, 
metida no chambre de dormir, com um barrete na cabeça, candeeiro na mão 
esquerda. De
início o Bispo o olhou no rosto,
75
levantando mais a luz, como a sondar-lhe os olhos, e logo ordenou-lhe, 
retrocedendo um passo:
- Entra.
Já velho, Damião ainda via nitidamente a cena: o Bispo cerrou a porta, passou-
lhe a chave, caminhou até à cômoda, deixou ali o candeeiro; depois, com um 
gesto, 
ao mesmo tempo que se aproximava de uma cadeira de balanço, chamou-o para perto 
de si, certo de que ia ouvi-lo em confissão:
- Ajoelha-te aqui.
E assim que Damião se ajoelhou:
- Sabes o ato de confissão? - perguntou-lhe.
- Não, Senhor Bispo. Mas eu não vim me confessar, vim foi-lhe fazer um pedido. 
Eu quero ser padre.
Damião falara depressa, com receio de que o Bispo o mandasse embora antes de 
ouvi-lo, e logo sorriu, vendo que Dom Manuel lhe sorria, entrando a balançar-se 
na
cadeira:
- Nesse caso, senta-te ali.
E indicou-lhe a cadeira ao pé da janela.
- Mas vem mais para perto de mim.
Damião trouxe a cadeira, sempre sem ruído, e sentou-se em frente ao Bispo, que 
ainda lhe sorria, com a cabeça jogada para trás, buscando o centro das lentes 
para 
olhá-lo melhor.
- Então queres ser padre - disse Dom Manuel, ainda com uma expressão de riso no 
rosto lavado, balançando-se na cadeira. Ora muito bem. Queres ser padre. Não é 
isso?
- É como diz, Senhor Bispo.
- Pelo que vejo, já és um homem feito. Tens mais de vinte anos.
- Dezoito - emendou Damião.
- Por acaso sabes ler? E onde aprendeste? Aqui?
- Não, no quilombo de meu pai. E aprendi depressa. Tudo quanto me ensinam eu não
esqueço. Agora mesmo, se o Senhor Bispo quiser, posso repetir o sermão que o 
Senhor 
Bispo pregou hoje de manhã na capela.
Dom Manuel parou de balançar-se. E desencostando-se do espaldar, veio para a 
frente, com uma expressão de espanto:
- Tu podes repetir o meu sermão? Do começo ao fim?
- Posso, Senhor Bispo.
E sem esperar pela ordem de Dom Manuel, Damião entrou a repetir, palavra por 
palavra, corridamente, a predica de Sua Reverendíssima. As frases se sucediam, 
como 
se ele as tivesse diante dos olhos, enquanto o Bispo, já na ponta da cadeira, 
abria mais os olhos, no auge do assombro. Chegou a segurar o queixo, sem tirar 
os olhos 
do negro, e todo ele era pouco para o espanto com que o escutava.
De repente, segurou-lhe o braço:
76
- Pára, meu filho. O que disseste me basta. Nunca vi uma coisa igual. Levanta as
mãos para o Céu. Tua memória é uma graça de Deus. Tens de tirar proveito dela, 
em 
benefício da obra divina. Foi Deus que me trouxe aqui para te ouvir. Tens razão 
em querer ser padre. É o Espírito Santo que está te inspirando.
Levantou-se e pôs-se a andar ao comprido do aposento, a mão esquerda para trás 
das costas, a direita a mover-se ao compasso da perna, ora olhando para as lajes
que 
ia pisando, ora olhando para Damião, até que voltou a parar diante do preto, com
uma expressão resoluta:
- Sabes que não vai ser fácil, mas o nosso dever é lutar. Além de negro, és 
escravo. Amanhã, cedinho, dou uma palavra ao teu senhor. E vamos rezar. A fé 
abala montanhas.
E mandando-o embora:
- Agora, vai. Que Deus te acompanhe. Não estás sozinho. A tua causa é também 
minha.
Abriu a porta, deixou-o passar.
- Vai com Deus - tornou a dizer.
Damião viu a porta fechar-se, ouviu o ruído da chave na fechadura, E ia sair, 
radiante, esquecido de Nhá-Biló, quando a porta do quarto contíguo se abriu, e 
ela 
lhe apareceu, ainda de roxo, com uma flor no cabelo, muito vermelha, trazendo na
mão o pedaço de papel com que se tinha pintado.
O primeiro impulso de Damião foi tentar esquivar-se dela, fugindo para a varanda
o mais rápido possível, para daí alcançar a cozinha e deixar a casa-grande, 
antes 
que dessem por ele ali dentro, em companhia deNhá-Biló; mas temeu-lhe a reação 
desvairada, e deixou-se ficar um momento, para ver se conseguia sair com a sua 
concordância.
- Está tarde - sussurrou-lhe. - É hora de dormir. Vá-se deitar.
E ela, com energia, segurando-o pela mão:
- Vem comigo. Me conta o que o Bispo te disse. Quero saber tudo. Ele falou de 
mim? Disse que eu vou para o Inferno?
Falava depressa, sem esperar pela resposta, e o ia trazendo consigo, vencendo-
lhe a relutância, até que o viu dentro do quarto. com rapidez, cerrou a porta e 
tirou 
a chave da fechadura.
Segurando a chave, pôs-se a rir, vergada para a frente, com as mãos entre os 
joelhos, enquanto ele a fitava, atônito, depois de ter-se aproximado da janela 
sobre 
o quintal.
- Agora eu não deixo tu saíres.
Ela parecia resoluta, embora continuasse rindo. Desconfiada de que ele quisesse 
fugir-lhe, ameaçou-o:
- Tu agora não sais daqui. Se quiseres sair, eu grito.
E postou-se contra a janela, de cenho contraído, sempre segurando
77
a chave. A luz do candeeiro batia-lhe em cheio na figura magra, destacando a 
mancha escura que lhe cercava os olhos crescidos. Damião decidiu mudar de 
tática,
sabendo o perigo que o cercava. E como estava ao lado de uma cadeira, sentou-se,
cruzando os braços e as pernas, o ouvido atento. Ela voltou a sorrir-lhe, ainda 
encostada à janela. E na sua voz sussurrada:
- Agora, sim.
Voltou a colocar-se diante dele, e pôs a mão direita no seu ombro, meio curvada:
- Tu sabes que eu vou para o Inferno? vou. Já sei que vou. Não adianta padre, 
Bispo, Papa, ninguém no mundo, querer evitar que eu vá. Eu vou. Sei que vou. Há 
muito 
tempo que eu estou perdida. E um dos culpados és tu, Damião. Sim Senhor: tu. Eu 
estava dormindo, tu entraste aqui no meu quarto, te deitaste na rede comigo e 
abusaste 
de mim. Quando eu acordei, ias saindo do quarto. Só não gritei porque sabia que 
o meu pai te matava, e eu não queria que tu morresses. Não adianta negares.
E batendo com a mão no sexo, de barriga empinada:
- Tenho a marca aqui, dentro de mim. Foste tu. Eu vi quando tu ias saindo. Só 
peço a Deus que eu não esteja prenha. Eu, de barriga. Até que ia ser gozado. 
Olha Nhá-Biló 
com um filho no bucho. Agora me conta o que o Bispo te disse. Quero saber "tudo.
Ele deve ter dito muita coisa, porque tu ficaste trancado com ele mais de hora. 
Sim senhor. Mais de hora. Fui olhar no relógio da varanda. Não adianta dizer que
não. Ele não te disse que o Diabo já veio aqui? Ele sabe que veio. Tanto sabe 
que 
andou sacudindo água benta na porta de meu quarto. Tou doida para ele ir embora.
Já vai tarde. Não gosto de Bispo. Tenho horror a padre. E tu? Padre não presta. 
Nem Bispo. Eu, se visse o Papa, dava-lhe uma cusparada.
Assim de perto, parecia ainda mais velha, com os cabelos grisalhos, os vincos 
fortes que lhe cortavam o rosto: sua vida estava nos olhos rutilantes, cheios de
uma 
luz desvairada.
Damião pôde perceber, olhando-a contra a luz, que ela apenas trazia o vestido em
cima do corpo. Apesar de magra, tinha os seios volumosos, que lhe enchiam o 
busto, 
e esses seios estavam soltos, balançando-se com a gesticulação das mãos 
transparentes.
- Estou com vontade de ir embora daqui, para longe, muito longe. E tu vais 
comigo, Damião. Agora, não te deixo mais. Ficas aqui escondido, sem ninguém 
saber.
Foi ao fundo do quarto, abriu um armário, de costas para Damião, e trouxe dali 
um embrulho.
- Sabes o que é isto? Uma rede. A tua rede.
E ela própria, abrindo o pacote, tirou dali a rede branca, de largas varandas, 
que armou num dos ângulos do quarto.
A luz do candeeiro sobre a cômoda iluminava bem toda a peça, e Damião via o 
canto com as bonecas de pano, a guitarra pendente de
78
um gancho na parede, a mesa com o prato de comida e a moringa de água. Tudo 
permanecia ali de acordo com as imagens que tinha na lembrança. E ao mesmo tempo
que 
se inquietava com o passar do tempo, sem saber como sairia dali, sentia crescer 
no seu espírito uma profunda piedade por Nhá-Biló, ainda bem feita de corpo, a 
envelhecer 
naquela obstinada reclusão.
- Vem ver se a rede está boa - pediu ela, puxando-o pelo braço.
Ele sentou na rede, aprovou-a com um gesto. E ia levantar-se, quando ela o 
reteve, com a mão sobre seu ombro:
- Fica aí mesmo.
E novamente curvando-se sobre ele para lhe falar:
- Quando derem por tua falta, vão te procurar em todo lugar, menos aqui. Não 
precisas ter receio. Papai vai ficar furioso. Sabes como foi que ele perdeu o 
braço 
esquerdo? Um negro que mordeu ele. Tia Miloca me contou. Os negros são ruins. 
Mas tu não és. Tu és diferente. Te conheço desde menino. Te lembras quando eu te
trouxe 
aqui no meu quarto? Eu também me lembro. Como se fosse hoje. Estás com calor? Eu
tenho um leque. Ou então te embala na rede. Sabes o que eu faço quando estou com
calor? Vais achar graça. Tiro a roupa. Fico nua me embalando.
Riu baixinho, com a mão diante da boca. E Damião, levantando-se:
- Por que não abre a janela? com a janela aberta, não faz calor aqui dentro. 
Assim como está, fica muito abafado: o vento não corre.
Ela lhe sustou o gesto, tirando-lhe a mão do ferrolho:
- Não, não abre: eu tenho medo. O Diabo pode entrar. Só se pode abrir uma 
fresta, bem pequenininha. Senão ele entra. Deixa a janela fechada. Tu tens 
vergonha de 
mim? Então tira a roupa. Eu também tiro a minha. Assim não se sente calor. Olha.
E segurando a barra do vestido, ergueu-a à altura dos olhos, para tirá-lo por 
cima da cabeça, ao mesmo tempo que toda a sua nudez se descobriu, muito branca, 
apenas 
resguardada pela seda da calça. Nesse momento, Damião torceu rápido o ferrolho, 
escancarando a rótula, e deu um salto para fora, enquanto Nhá-Biló, ainda a 
debater-se 
com o vestido, que se embaraçara nos seus cabelos, pôs-se a chamar por ele, bem 
alto, debruçando-se sobre o poial da janela:
- Damião! Damião!
Outras luzes se acenderam na casa-grande. Os cães, assustados, puseram-se a 
latir, saindo do alpendre. E Damião desceu a rampa, acompanhado pela claridade 
do luar, 
que ia seguindo seu vulto, como se o perseguisse, até que ele desapareceu, 
longe, escondido pela senzala.
79
A
A LAGOA MANSA, levemente crispada pelo frio vento matinal, começava a clarear 
com a luz do sol, ainda rubro por trás da mata.
Ao longo da várzea, ia-se desfazendo 
a cerração alvacenta que tudo cobria. Já se distinguiam, como manchas 
impacientes, as garças e os guarás que bordejavam as águas, prontos para alçar 
vôo, assim que
a claridade restituísse o verde das árvores. Só as siricoras, longe, junto à 
floresta, na região molhada dos mangues, soltavam seus gritos estrídulos, que os
primeiros
bem-te-vis prontamente respondiam, com todo o alarido de que eram capazes.
Alguns minutos mais, e o disco vermelho do sol apontaria no amplo céu de raras 
nuvens esgarçadas. com pouco rolariam as moendas, rangeriam os carros de bois na
estrada, as espirais de fumaça subiriam da chaminé da casa de farinha, enquanto 
levas de negros, de dorso nu, enxada ao ombro, desceriam às extensas plantações 
de 
cana e algodão, para abrir os regos por onde se escoariam as chuvas do inverno.
Ao despejar no tanque quase seco as primeiras latas de água, Damião viu que o 
Bispo descia a rampa da porteira, envolto no seu guarda-pó escuro, ladeado pelo 
Dr. 
Lustosa. Logo atrás, vinha o padre, também de guarda-pó. O Sarará e o Sipaúba 
puxavam os quatro cavalos de sela, já arreados, e mais a égua pintada, com os 
baús 
de couro nas cangalhas.
Preparado para descer novamente a rampa da lagoa, com o cabresto do jumento na 
mão molhada, Damião acompanhou o grupo com os olhos atentos, certo de que o 
Bispo 
já se teria entendido com o Doutôr a respeito de seu caso. Reparou quando os 
dois pararam, do lado de fora da porteira, e se abraçaram, depois que o Doutôr, 
curvando-se, 
beijou a mão do prelado. Em seguida, o padre mulato apertou a mão do Doutôr, 
baixando de leve a cabeça. O Doutôr aproximou-se novamente do Bispo e o ajudou a
subir, 
enquanto o padre subia sozinho, um pouco mais atrás. O Sipaúba e o Sarará 
subiram logo depois nassuas cavalgaduras, e foi o Bispo que rompeu a marcha, 
depois de
tirar o chapéu para o Doutôr. Nesse momento, o Sipaúba
80
passou-lhe à frente, levantando uma nuvem de poeira no seu tordilho nervoso, 
muito sensível à roseta das esporas.
Parado no meio da estrada, a olhar para as nuvens de pó que se iam levantando, o
Dr. Lustosa esperou uns momentos, depois sacudiu o braço, com o chapéu na mão.
Antes que ele começasse a subir a rampa, de volta ao alpendre da casa-grande, 
Damião tratou de descer à lagoa, tangendo apressadamente o jerico com uma 
cipoada.
A bem dizer, não tinha dormido. Só passara de leve pelo sono, uma ou duas horas,
em meio da madrugada, sempre com a sensação de que, a cada momento, ia ser 
retirado 
da senzala. Saltou da rede com as sombras da noite dentro do quarto, receando 
perder a hora de acordar. Ainda apanhara cá fora o clarão do luar, que não 
tardou 
a empalidecer, à medida que a lua se ia apagando, muito branca.
Estava escuro quando tirou o jumento da cocheira. E foi na lagoa que viu o dia 
clarear. Na subida da rampa, ouviu rumor de vozes e passos na casa-grande. 
Chegou 
a pensar em fugir. Logo se lembrou de que, se tal fizesse, todo o castigo 
desabaria sobre a mãe enferma. Não, não tinha o direito de fazê-la sofrer por 
sua causa. 
Nem tampouco a irmã, que tinha agora quinze anos, e já parecia
mulher feita.
- Quem tem de agüentar o tronco sou eu - decidiu-se. E ficou-lhe à espera, para 
o que desse e viesse. Estava preparado para suportar o castigo, qualquer que ele
fosse; mas antes, de cabeça erguida, diria o que se tinha passado. Nada temia. 
Tinha a consciência
tranqüila. Infelizmente, já agora, não poderia invocar o testemunho do bispo.
Mesmo assim, todas as vezes que se acercava da casa-grande, seu coração se 
acelerava, no pressentimento de ter chegado a hora do chamado do Doutôr. 
Antevia-lhe os
olhos duros fixados no seu rosto, e uma sensação de frio, que não conseguia 
reprimir, lhe gelava a espinha e a palma das mãos. Ah, Nhá-Biló de uma figa! Por
que
o tinha chamado pelo nome? E à piedade da véspera, superpunha-se agora, no seu 
espírito, a raiva surda, que lhe fazia tremer os lábios. Lembrava-se 
perfeitamente
de ter visto as luzes se acenderem em dois pontos diferentes da casa-grande. Uma
janela chegara mesmo a abrir-se, enquanto ele corria. Tê-lo-iam visto fugindo? 
com 
certeza. E a doida da Nhá-Biló, debruçada no peitoril da janela, a esgoelar-se, 
chamando por ele, enquanto os cães latiam!
- Ah, miserável! Ah, maluca!
No entanto, toda a manhã passou sem que o chamassem. A cada momento, via 
partirem outros cavalos, levando os hóspedes da casagrande. Os últimos, já 
depois do meio-dia, 
tinham sido os parentes da Serra Negra. Todas as vezes, a cena se repetia, com a
mesma descida à porteira; depois, o galope dos animais, as nuvens de pó
81
subindo da estrada, e o Dr. Lustosa, ao pé da rampa, tirando largamente o 
chapéu.
A tarde avançou pela hora da sesta, com as redes armadas na casa-grande, depois 
o café foi servido no alpendre pela mucama, e Damião subiu e desceu a rampa, 
sempre 
assustado, tangendo o seu jerico, sem receber qualquer chamado. Dir-se-ia não 
ter acontecido a cena da noite. Um susto apenas, que seus nervos tensos 
exageravam.
Mas, antes que o sol quebrasse, o feitor ordenou a Damião, em nome do Doutôr, 
que recolhesse o jumento na cocheira, passando a fazer o seu trabalho como 
sempre o 
fizera.
- No ombro - acentuou o Chico Laurentino.
A primeira subida da rampa, com as duas latas no pau de carga, não custou a 
Damião apenas o esforço físico, que às vezes o obrigava a ziguezaguear o passo 
na ascensão 
difícil - custou-lhe sobretudo a ira calada, com a sensação "de que até se riam 
de sua desventura. De longe, com efeito, viu a Miduca a rir-se dele, e também 
outros 
negros, que voltavam dos canaviais.
- Agora tu aprendeu que o jumento é só pra quando tem visita - comentou o 
Ludovino Careca, mostrando as gengivas murchas.
E foi então que, acercando-se do tanque de cabeça baixa, a morder o lábio 
inferior, Damião firmou consigo a determinação de voltar ao quarto de Nhá-Biló, 
assim que 
a noite fechasse, para deitar-se com ela, saciando-lhe a sensualidade doentia. 
Depois, antes que o dia raiasse, iria embora para sempre, deixando ali, na carne
da filha de seu senhor, a desforra da humilhação que este lhe infligia.
- Além de trepar com ela, faço-lhe um filho - jurou, com o lume do ódio nas 
pupilas, tornando à ladeira da lagoa.
E a sua mãe? E a sua irmã? Deu de ombros, na exaltação da cólera. Perdido por 
pouco, perdido por muito. O que tivesse de vir, viria. Já estava cansado de ser 
maltratado.
No entanto, quando a noite caiu, escura, de luar tardio, encontrou-o mais 
sereno, embora ainda remoesse de tal modo a sua raiva, que só com algum esforço 
conseguia 
fazer descer, garganta abaixo, a comida que levava à boca, isolado no seu canto,
os olhos apertados contra a luz da lamparina. Quando acabou de comer, deixou o 
prato 
vazio sobre o mocho de pau, e deitou-se um pouco, vencido pela exaustão. Só 
despertou muitas horas depois, já com os primeiros galos cantando para o dia que
ia 
nascer.
Enquanto Damião dormia pesadamente, a Sinhá Miloca tinha batido à porta do 
quarto de Nhá-Biló.
- É a Tia Miloca, Biló - avisou.
E como a outra não respondesse, insistiu em bater e chamar, desta vez dizendo 
que tinha para ela uma boneca de pano.
- Tu vais gostar.
82
Nhá-Biló entreabriu de leve a porta:
- Quero ver primeiro a boneca - preveniu.
E quando viu que a tia lhe trazia mesmo uma boneca de pano, toda vestida, com 
chapéu na cabeça, escancarou o resto da folha, sobre o corredor caiado de luar, 
mandando 
que ela entrasse.
Sinhá Miloca entrou até o meio do quarto, premindo a boneca contra o peito, sem 
esquecer de ocultar a mão mirrada no velho xale de borlas de linha. Trazia uma 
touca 
na cabeça, os pés nas sandálias, o corpo magro duplamente protegido pela 
camisola de dormir e ainda por outro xale, que lhe cobria as costas e os ombros,
caindo 
para a frente até à altura dos joelhos. Cheirava a pó de arroz e água-de-
colônia, a que se misturava certo travo de vela derretida.
E defendendo a boneca com os dois braços cruzados por cima do peito, olhou de 
frente a sobrinha:
- Antes de eu te dar a boneca, tu vais me dizer uma coisa, mas só para mim. Que 
foi que o Damião veio fazer aqui, ontem de noite?
E ela, com uma expressão desconfiada:
- Sem a senhora me dar a boneca, eu não falo - replicou, pondo a mão em cima da 
boca, de lábios bem cerrados.
- Pronto, já dei - apressou-se em dizer Sinhá Miloca, entregando-lhe a boneca. -
Agora, me conta.
Seus olhos pequenos, muito negros e redondos, pareciam querer sair das órbitas, 
fixados no rosto de Nhá-Biló, que examinava atentamente a boneca, olhando-lhe os
sapatos, as meias, erguendo-lhe a saia, puxando-lhe a calcinha, sempre com um ar
espantado e brejeiro.
- Estou esperando tu contares o que te perguntei. Que foi que o Damião veio 
fazer aqui ontem de noite?
E Nhá-Biló, divertida:
- Ela tem tudo, Tia Miloca. Direitinha a gente. Até o peitinho. até os 
cabelinhos daqui de baixo. Eu já tive uma boneca assim. Não sei que fim levou.
Sinhá Miloca impacientava-se. De sobrancelhas contraídas, continuava com os 
olhos fixados na sobrinha. E ameaçando-a, depois de um silêncio longo:
- Se não me responderes o que eu te perguntei, eu te tomo a boneca. Anda, 
responde.
Nhá-Biló tinha dobrado o braço esquerdo, para ninar ali a bruxa de pano, 
indiferente à ameaça da tia. Todo o seu instinto materno exteriorizava-se agora 
na ternura 
das mãos, no enlevo do olhar, no leve balanço do corpo que acalantasse junto do 
peito a filha que ia adormecendo.
- Ela é linda, Tia Miloca. Um amor de boneca. Já tenho um nome para ela: Celuta!
Vai-se chamar Celuta!
E nisto sentiu que a mão irada da tia, com os dedos recurvos, tentava arrebatar-
lhe a boneca. Retrocedeu um passo, de rosto
83
desfigurado, a testa franzida, agarrando-se firmemente à bruxa, enquanto Sinhá 
Miloca, de olhos duros, lhe indagava, colérica:- Responde: o que foi que o Damião veio fazer aqui?
- Ele já tinha vindo antes, Tia Miloca. Deitou na rede comigo. Me fez um filho. 
O filho está aqui, crescendo na minha barriga.
Sinhá Miloca ergueu as sobrancelhas até o meio da testa, lívida. O espanto e o 
nojo subiram-lhe ao rosto. E quando conseguiu falar:
- Aquele negro deitou contigo, Biló?
- Deitou, Tia Miloca. Eu estava dormindo quando ele entrou. Senti ele dentro de 
mim, me rasgando. Eu adorei. Sempre pensei ter um filho. Um filho mesmo.
Sinhá Miloca havia recuado um passo, com a mão na boca. E ao ver as duas redes 
armadas:
- Por que estas duas redes, Biló?
- Uma é minha, outra é dele. Damião gostou da rede. Eu queria que ele ficasse 
aqui comigo, escondido. Ele não quis.
Sinhá Miloca deixara cair os braços, olhando a sobrinha com uma expressão de 
ira, piedade e nojo. E juntando novamente as mãos, no esforço para dominar-se:
- Biló, tu és uma branca. Uma branca não se mistura com um negro. O Damião é um 
patife. O que ele fez contigo não se faz. Ele abusou de ti, minha filha.
E saindo do quarto, destroçada, sem saber ao certo o que ia fazer, apertava a 
cabeça entre as mãos frias, caminhando às tontas pelo corredor banhado de luar, 
sem 
conseguir achar a porta de seu quarto:
- Que horror, meu Deus! Que horror! Abusar de uma doida! Negro canalha! com a 
filha de seu senhor!
Mas foi só na tarde seguinte que ela apareceu no alpendre, com a sua caixa de 
costura, o semblante pálido, as olheiras crescidas, para retomar o velho crochê 
com 
que tentava distrair-se, todas as vezes que um problema lhe atormentava o 
pensamento.
Passara a nova noite em claro, ora a embalar-se na rede, ora a caminhar ao 
comprido do quarto, com um ardor nos olhos, a boca amarga, não querendo crer no 
que tinha 
escutado. Imaginara o pior, e o pior tinha acontecido. Seria possível, meu Deus,
que tudo aquilo fosse mesmo verdade? A pobre da Biló violentada por um negro?
Na véspera, havia escutado o grito dela chamando pelo Damião. Ainda estava de 
pé, defronte do espelho, a compor os cabelos dentro da touca de dormir. Quando 
abrira 
a janela, vira o preto correndo na direção da senzala. Pensara ir imediatamente 
ao quarto da sobrinha e dar o alarme; mas de pronto imaginara o escândalo, com o
Bispo na fazenda, os parentes e os convidados nos outros aposentos, e contivera-
se. O mal já estava feito. Primeiro devia esperar que os
84
hóspedes partissem, para então ouvir a sobrinha, à noite, e decidir a 
providência a tomar. Não podia precipitar-se. Devia ter calma. Muita calma. Mas 
só Deus sabia 
como tinha passado a manhã e a tarde, para não deixar transparecer a sua 
aflição.
Afinal, quando o último hóspede se foi, trancara-se no quarto, exausta, à espera
da casa aquietar-se, noite alta, para'bater no quarto da Biló. E pela manhã, já 
ciente de tudo, quase não tivera forças para levantar-se da rede. Doíam-lhe os 
braços e as pernas, a cabeça lhe pesava. O banho morno tinha-a melhorado um 
pouco. 
Mas só pudera sossegar quando se trancara na alcova, com a cunhada e a mãe, 
contando-lhes tudo.
A Sinhá Velha fora prudente:
- Primeiro quero ouvir Biló. Eu mesma. Para ver se ela confirma o que te disse.
Voltara alguns minutos depois, de sobrolho carregado. Não podia afirmar nem 
negar. A Biló baralhava tudo, só fazendo bater na barriga para dizer que estava 
grávida. 
Podia não ser verdade.
E a Sinhá Dona, exaltando-se:
- Como pode não ser verdade, se a Miloca viu o Damião saindo do quarto da Biló e
ela gritando por ele?
A Sinhá Velha espichou o beiço, pensativa. E depois de um momento de silêncio, 
alteando os ombros:
- Mas vejam bem como vão contar tudo isso ao Agostinho. Ele vai perder a cabeça.
Conheço meu filho.
- Não há outro jeito senão contar - ponderou Sinhá Dona. Do contrário a 
responsabilidade é nossa. E aquele negro ainda vai rir da gente. A Miloca, que 
viu tudo, 
vai falar ao Agostinho. Se não quiser falar, eu falo.
Sinhá Miloca formalizou-se:
- Pode deixar. Eu converso com o Agostinho.
A Sinhá Velha afastou-se, arrastando nas tábuas compridas os pés cansados; parou
um momento defronte do oratório, riscou um fósforo, acendeu o pavio de uma vela 
aos pés do crucifixo, e passou para o seu quarto, depois de um suspiro, sempre a
tilintar o seu molho de chaves.
Agora, ali no alpendre, Sinhá Miloca tirou da caixa de madeira o crochê 
interrompido, sem descobrir a mão mirrada, e retomou o ponto com uma laçada 
nervosa.
O Dr. Lustosa, depois de ler os últimos números do Constitucional, que de São 
Luís lhe mandara o Dr. Sotero dos Reis, deixou os jornais ao pé da cadeira de 
balanço 
e recostou a cabeça no espaldar de palhinha, alongando a vista para a porteira 
da fazenda. Só agora, livre de seus hóspedes, voltava a sentir-se à vontade na 
casagrande. 
Em vez das "botinas que lhe aqueciam os pés, tornara às sandálias de trança, com
os dedos bem arejados. Já na manhã seguinte, podia sair, cedo, no seu cavalo. O 
pior de tudo é que os negros, com
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os poucos dias de festas, estavam mal acostumados. Urgia repô-los no bom 
caminho. Instruíra o Chico Laurentino para apertar com eles. Nada de lhes passar
a mão 
pela cabeça. Negro, sem chicote, não conhecia mais o seu senhor. As palmatórias,
as chibatas, os troncos, as gargalheiras, os libambos, as correntes de ferro, 
tudo 
já estava nos seus antigos lugares, bem à vista, para exemplar quem mijasse fora
do caco. Ouviu bem, Seu Chico Laurentino? Quem fosse da roça, que pegasse logo a
enxada, antes que as chuvas voltassem. E por que os fornos ainda não estavam 
acesos? Já era hora de se sentir na casagrande o cheiro do melaço nos grandes 
tachos 
de cobre! Que faziam os carreiros que não punham os bois nos carros? Queria 
ouvir o chiado das rodas na estrada, e o ranger das moendas mordendo a cana! 
Vamos, Seu 
Chico Laurentino! O Senhor está aqui para isso! Faça os negros trabalharem, se 
não quer que eu mude de feitor! Malandro não fica na minha fazenda!
Quando viu a mana sentar no alpendre, com a caixa de costura, a poucos passos de
sua cadeira, ficou a esperar que ela começasse a contar-lhe os prejuízos que 
tinham
tido com gente estranha em casa. Na certa, vinha falar-lhe dos talheres de prata
que tinham sumido, dos guardanapos de
linho que faltavam, da colcha inglesa com dois buracos de brasa de charuto. 
Ninharias. Os negros furtavam, os hóspedes levavam a culpa. Não era ingênuo. Só 
não admitia 
que lhe mijassem nas bacias de louça
dos lavatórios. Por causa disso, o Major Lisboa nunca mais recebera convite seu 
para vir à Bela Vista. Ou aquela besta não sabia que se mija é no penico? E 
penico 
que está sempre por baixo da cama?
Pela fresta das pálpebras, pôs-se a observar as laçadas da agulha da Miloca. 
Pelo jeito, estava nervosa. Já sabia o que era: vinha trazer-lhe mexericos de 
mulher. 
Coisas de moça-velha. Que o Alderico tinha ido meter-se na senzala. Ou o 
Januário saíra a esfregar-se por trás da casa com a vagabunda da Miduca. Isso 
acontece 
em toda fazenda, Miloca! Pior é ouvir os peidos do padre mulato, como eu ouvi, e
ainda por cima ter de ser amável com ele, na manhã seguinte! Por essa eu não 
esperava!
Sinhá Miloca quase não enxergava o vão da laçada na volta da linha; mas a agulha
sempre acertava em cheio, saindo do outro lado. Já tinha feito uma carreira, 
agora 
ia começar a outra. Pelo canto dos olhos, ela observava de vez em quando o 
irmão, esperando a vaza para atirar-lhe a bomba que tinha na boca. Coitado! Ia 
ter a maior 
raiva de toda a sua vida! Quem tivesse perto, que saísse! Mas não havia outro 
jeito senão contar-lhe tudo. A mãe tirara o corpo; a mulher, também. Que mal 
havia 
em lhe dizer a verdade? Era pai, tinha de saber o que se passara com a filha. 
Ela, Miloca, estava na obrigação de não lhe esconder nada. Mas tinha de ir aos 
poucos, 
para não soltar tudo de uma vez. Primeiro, preparar-lhe o espírito. Do contrário
poderia ter um choque. Depois, sim, lhe contaria tudo.
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E de repente, embora ainda visse o cunhado com a cabeça reclinada no espaldar de
palhinha, crioucoragem:
- Agostinho, tu não estás dormindo, pois não?
- Acordei com a tua pergunta - resmungou ele, correndo a mão pela barba, a modo 
de estremunhado.
- Não tens notado nada de anormal aqui na fazenda? O Dr. Lustosa deu à voz 
molhada um
tom arreliado:
- E tu querias que tudo estivesse normal, com tantos hóspedes dentro de casa, a 
começar por um Bispo e um padre?
Sinhá Miloca formalizou-se. E com a agulha no ar, sem levantar de todo a vista:
- Não estou me referindo aos hóspedes, embora tivesse alguma coisa para te 
dizer, com relação a dois de nossos parentes.
O Dr. Lustosa endireitou o busto, os pés firmados no chão, a mão aborrecida em 
cima do joelho:
- Miloca, olha pra mim: quando é que tu vais acabar com essa mania de falar com 
a gente por meio de rodeios? Se tens alguma coisa para contar, desembucha! Não 
fique aí com o diabo dessas voltas, que só me fazem dar cabo da paciência!
Sem melindrar-se, Sinhá Miloca deu mais um ponto no crochê. E rematando a 
laçada:
- Não tens notado nenhuma mudança no Damião?
- E era para falar desse negro que estavas fazendo todo esse rodeio? Ora essa, 
Miloca! Não, não tinha notado. Mas quem me fez abrir os olhos, hoje de manhã, 
quase 
na hora de despedir-se, foi o Bispo. Cheguei a pensar que Dom Manuel estava 
pilheriando; depois vi que não, que era a sério que ele estava falando. Tu não 
viste 
quando ele me levou para o fundo do alpendre, com o braço no meu braço? Pois foi
aí. Junto daquela coluna, ele me olhou, chamou-me mais para perto, como se fosse
me abraçar, e saiu-se com este disparate: "Dr. Lustosa, tenho uma grande notícia
a lhe dar: um de seus escravos quer ser padre, e eu queria que o senhor 
concordasse 
com esse chamado de Deus. O Seminário de Santo Antônio está passando por uma 
grande reforma, e nós precisamos recolher por toda a Província as vocações 
sacerdotais." 
Fiquei olhando o Bispo, sem saber a que escravo, com cara de padre, aqui na 
fazenda, ele queria se referir. Perguntei, intrigado: "A quem é que Vossa 
Reverendíssima 
se refere, Dom Manuel? Eu, para lhe ser franco, não conheço, entre os meus 
pretos, nenhum com vocação religiosa. Só se for para a religião deles, com 
tambor e 
pajelança." Dom Manuel fez-me um ar de riso, e perguntou: "E o Damião, Dr. 
Lustosa?" Não agüentei a gargalhada, e fui franco: "Senhor Bispo, esse Damião é 
um pedaço 
de patife, e
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tem a quem sair. O pai dele, que eu sempre tratei bem, pagou-me a bondade com o 
maior coice que já recebi até hoje: fugiu-me da fazenda, com a mulher e os 
filhos, 
de madrugada, depois de me tocar fogo na casa-grande, no engenho e no canavial. 
Quase que tudo o que é meu ia pelos ares, destruído pelo incêndio. Eu e minha 
família 
escapamos por um verdadeiro milagre. Foi Deus que nos salvou. Nossa sorte é que,
na hora do fogo, desabou uma bendita chuva. Se não fosse isso, estávamos todos 
no 
chão da capela, com uma pedra em cima, sem o prazer de receber Vossa 
Reverendíssima neste momento. O Damião é o preto mais perigoso que tenho hoje na
fazenda. É
desses que não baixam a vista diante do senhor. Basta olhar para ele. É um preto
arrogante. Não há chicote que lhe quebre a crista. Tal qual o pai, que era uma 
peste.
Para Vossa Reverendíssima fazer um juízo do pai do Damião, basta lhe dizer que, 
quando o agarraram no quilombo, ele preferiu se atirar no rio, para ser comido 
pelas 
piranhas, a voltar para a minha fazenda. Me deu esse prejuízo, ainda por cima. 
Ele era meu escravo, tinha custado meu dinheiro, não podia se matar. O filho vai
pelo 
mesmo caminho - mas não me apanhará desprevenido. Estou de olho nele." O Bispo 
se pôs a limpar os óculos, pensando no que eu lhe tinha dito. E voltou à carga, 
assim 
que botou os óculos no nariz: "O que o senhor está me dizendo, Dr. Lustosa, dá 
mais força ao chamado de Deus. Muitos dos grandes santos foram grandes 
pecadores. 
A começar por São Paulo. O Damião pode ter sido tocado pela graça." Resolvi 
encerrar de vez o assunto: "É fingimento puro, Senhor Bispo. Não vá atrás da 
conversa 
daquele negro. Conheço ele como a palma de minha mão. Posso-lhe dar outro 
escravo: ele, não. O que ele quer é livrar-se do meu chicote e mudar-se para São
Luís." 
Senti que o Bispo não gostou. Para ter uma saída, já que ele era meu hóspede, 
amaciei o contra que lhe dei: "Em todo caso, já que Vossa Reverendíssima me 
falou com 
tanto empenho, vou ficar observando o seu projeto de padre, com vontade de lhe 
servir. Se ele se comportar direito, sem me dar trabalho, nem me obrigar a 
encostar-lhe 
o chicote, no período de um ano, despacho-lhe o preto para São Luís. Mas veja 
bem, Senhor Bispo: só daqui a um ano. Antes, não." Ele aceitou a proposta, e 
ficamos 
entendidos. Mas tenho certeza de que, já na semana que entra, estou com o Damião
na chibata. Não me esqueço daquele jumento que ele soltou na rampa, bem na hora 
do Bispo chegar. Foi de propósito, Miloca. Foi de propósito. Ninguém me tira 
isso da cabeça.
Sinhá Miloca voltou a parar a laçada, agora olhando o irmão:
- Tu prometes não perder a cabeça com o que eu vou te contar?
- Como é que vou te fazer semelhante promessa, se já não sei mais onde tenho a 
cabeça, com essa tua mania de dizer as coisas? Se
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queres falar, fala; se não queres falar, vai para o diabo que te carregue! Irra!
Pela estrada, na tarde já declinante, vinha subindo um carro de bois atulhado de
canas, e era tão fino o seu gemido que parecia furar o ar com um espinho longo.
Antes de tornar a abrir a boca muito pequena, que dava a impressão de encolher-
se para dentro da cara, Sinhá Miloca esperou que o Dr. Lustosa, agora de pé, 
fosse
ao fim do alpendre e voltasse. Quando o sentiu aproximar-se, espetou a agulha no
crochê:
- Agostinho: se eu pudesse, me calava; mas não posso. Tenho de falar, mesmo 
sabendo que vou dar o maior desgosto de tua vida. Imagina tu que o Damião - esse
mesmo 
Damião que o Bispo queria levar para ser padre - foi visto, anteontem à noite, 
saindo do quarto da Biló.
- Do quarto da Biló? Aquele negro? E quem foi que viu?
- Eu, Agostinho.
 - Não, Miloca. Tu te enganaste. Aquele negro não seria tão louco que chegasse a
ponto de entrar no quarto da Biló! Não! Ele conhece o seu lugar! Tu te 
enganaste,
Miloca!
Muito pálido, permaneceu de lábios entreabertos, com a vista fixada na irmã, 
imóvel, a mão no ar.
E ela, sustentando o olhar que a trespassava:
- Eu vi, Agostinho. E depois falei com a Biló. A mamãe também falou. Ele esteve 
lá. Aliás, já tinha estado antes. E o pior eu ainda não te disse: parece que a 
Biló
está grávida.
- Não! - gritou o Dr. Lustosa, arregalando muito os olhos, ainda mais pálido, 
como se um golpe certeiro o houvesse apanhado em cheio na cabeça, e o aluísse.
Sentindo que as pernas lhe faltavam, buscou a cadeira com a mão aflita, sem
desfitar a Miloca, os lábios trêmulos, não podendo falar. Ficou assim uns 
momentos,
lívido, a respiração suspensa. E sempre a olhar a mana, que recolhia depressa o 
crochê na caixa de costura, intimidada pelas pupilas crescidas que não se 
afastavam
de seus olhos, pôde levar um pouco de ar aos pulmões. Duas vezes correu a mão no
rosto, da testa ao queixo, uma atrás da outra.
- Não, Miloca, Deus não ia permitir que eu vivesse até hoje, para ouvir o que 
acabas de me dizer. Aquele negro tocar no corpo de minha filha? E desonrá-la 
ainda 
por cima? Não, Miloca. Tu estás mentindo. Pelo amor de Deus me diz que tu estás 
mentindo!
Ela se havia levantado, amedrontada, querendo esquivar-se dali, e já por trás da
cadeira, pronta para correr, quando ele se firmou no chão, com um ar desvairado,
e entrou a gritar, chamando pelo feitor:
- Chico Laurentino! Chico Laurentino! Aqui! Aqui! Quero você
aqui! Chico Laurentino!
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E'
ERA UMA PEÇA RETANGULAR, de altas paredes sem janelas, cobertura de zinco, 
servida apenas por uma porta lateral, que se fechava pelo lado de fora com um 
ferrolho
e um cadeado. A claridade que ali penetrava, coada pelo viso das paredes ou pela
fresta da porta, reduzia-se a uma luz escassa, que mal dava para atenuar a 
escuridãocerrada, mesmo nas horas altas do dia.
A cafua parecia anterior à senzala e à primitiva casa-grande, no seu todo 
abrutalhado, na argamassa de suas paredes sem reboco, no seu chão de terra 
solta. Constava 
ter sido construída pelo primeiro dono daquelas terras, Padre Luís Antônio 
Serrano, para prisão de escravos, na época em que a fazenda não passava de dois 
barracões 
de palha, nos lugares em que eram agora a senzala e a casa-grande.
Muito escravo havia morrido ali, não resistindo à fome e à sede a que eram 
reduzidos depois de açoitados, e ali mesmo uns tinham enterrado os outros, 
abrindo as 
covas com as mãos. Isso explicava as ossadas humanas que vinham ao lume do solo,
todas as vezes que a vassoura de talos varria com mais força a camada de terra 
que lhe servia de piso.
Toda fechada, com um metro e meio de largura por outro tanto de comprimento, 
recebia sol durante todo o dia. E como não tinha janela ou respiradoiro por onde
o 
vento circulasse, fazia ali dentro um calor insuportável, desde que a manhã 
raiava até que a noite se fechava. Mesmo à noite, com o calor armazenado pelas 
paredes, 
os negros suavam em bica, buscando as frestas da porta, na ânsia de respirar 
melhor.
Quando Damião se viu lá dentro, levou uns momentos atordoado, com a sensação de 
que havia ficado cego. Depois de defrontar um retângulo de luz, com a porta 
aberta 
para lhe dar passagem, só percebeu à sua volta a treva densa. Aos poucos ajustou
as pupilas à claridade escassa, e pôde ver, num relance, que a peça não tinha 
mobília 
alguma. Mesmo uma velha esteira para deitar-se, não a encontrou. Ensaiou um 
passo, depois outro, amparando-se na parede, e parou, quando seu pé tocou numa 
coisa 
que se movia, no ângulo do chão. Receou que fosse uma cobra, enrolada sobre si 
mesma,
90
de cabeça levantada, e logo buscou um pau com que se defender. Retrocedeu para a
porta, sem tirar a vista dos olhos miúdos que o seguiam, e nisto o vulto se 
moveu 
para direita, correndo depressa, e desapareceu, ainda com Damião atarantado.
- É um rato - reconheceu, aliviado, enquanto tratava de escorregar para o chão, 
à esquerda da porta.
A terra solta obrigou-o a endireitar o corpo, sentando-se nos calcanhares. Assim
de cócoras, permaneceu largo tempo, sem noção precisa das horas. Parecia-lhe que
estava à boca de um forno, tão grande era o calor que o deprimia. Sentia o suor 
descer-lhe da testa, escorregando para o pescoço e o peito. Ainda bem que trazia
as calças molhadas da última carga que levaria ao tanque. Em breve, porém, 
tinham secado. Tirou-as, para ficar mais à vontade, e não voltou a sentar nos 
calcanhares. 
Permaneceu de pé, durante alguns minutos, como em busca de uma ocupação, as 
calças pendentes do braço. Depois de tatear as paredes, repetindo as voltas no 
cubículo, 
deu com uma saliência na madeira da porta. Pareceu-lhe a cabeça de um prego. Aí 
pendurou as calças. Como o corpo exausto lhe pedia descanso, voltou a agachar-
se, 
terminando por sentar na terra, as costas apoiadas na parede, o ouvido afiado 
para os rumores que vinham de fora.
Ele sabia que também seu pai tinha estado ali, e essa concordância com o destino
paterno ajudou-o a suportar o castigo.
- Um dia, faço também como ele, e vou embora, deixando minhas lembranças - 
jurou, com as mãos sob as axilas.
Não vendo mais o tímido traço de luz que se esgueirava pela fresta da porta, 
reconheceu que já era noite, embora o calor dentro da cafua ainda não houvesse 
de todo 
arrefecido. E como havia passado por um cochilo, não sabia dizer ao certo se o 
sino da fazenda já havia batido. Presumiu que sim. Ainda com a cabeça contra a 
parede, 
deixou-se ficar quieto, de olhos semicerrados, e mais uma vez o sentimento de 
ódio crispou-lhe os punhos, acentuou-lhe a sensação de secura nos lábios.
- Largue isso e venha comigo.
A voz do Chico Laurentino ainda lhe ressoava aos ouvidos, e era como se voltasse
a vê-lo, gordo, ancas avantajadas, o bigode ralo caído para os lados, o chicote 
pendente do punho, a perna das calças engolida pelo cano das botas, o passo 
cheio fazendo reunir a roseta das esporas.
A princípio, quando lhe ouvira a ordem, imaginara que fosse chamado do Doutôr. 
Logo viu que não. Em vez de seguirem para o alpendre, iam tomando direção 
oposta, 
contornando a senzala. De repente o Chico Laurentino parou, esperou por ele, 
deu-lhe um safanão que o atirou ladeira abaixo, ordenando-lhe, em
tom mais áspero:
- Em frente, em frente.
91
Na passagem, tomou-lhe a faca. E sacudindo no ar o chicote, ameaçou-o com a 
ponta da sola. Caminhando depressa, Damião só lhe ouvia o ruído dos passos e o 
tinido 
das esporas. Afinal, aonde iam? Quando queria abrandar a marcha, não sabendo o 
caminho que devia seguir, novamente o relho sibilava, roçando-lhe a costa nua, e
ele 
aumentava o passo, temendo a chibatada. Já perto da cafua foi que lhe veio a 
certeza de que ia ser jogado ali.
- Aqui - berrou-lhe o feitor.
E abrindo o cadeado, descerrou a porta. Depois, segurando Damião pelo braço, 
atirou-o contra a parede fronteira, logo cerrando a porta, que tornou a fechar 
com 
o ferrolho e o cadeado.
Agora começava a sentir fome e sede. Havia almoçado cedo, por volta das nove 
horas. No resto do dia limitara-se a comer um bacuri e chupar umas pitombas. 
Como só
jantava ao fim do trabalho, de volta à senzala, o estômago vazio entrava a 
reclamar alimento. Àquela hora, já a mãe saberia que ele estava na cafua. Não 
pediria 
a ninguém pelo filho, sabendo que de nada adiantaria a sua súplica ou o seu 
pranto: passaria a noite em claro, emendando orações, depois de ter acendido uma
vela 
à Virgem do Rosário, à porta da capela.
Vergado para a frente, com a cabeça entre as mãos, volvia a interrogar-se, 
apreensivo, se seu castigo ia limitar-se à reclusão na cafua. Concluiu que não. 
Conhecia 
bem o Dr. Lustosa. Na certa, tinham ido contar ao Doutôr a cena da noite, com 
Nhá-Biló a chamar por ele, Damião, na janela de seu quarto. O que estranhava é 
que 
o Doutôr não o houvesse interpelado. Em vez de ouvi-lo, tinha-o mandado meter na
cafua. Dali sairia para o tronco. O próprio Doutôr faria questão de açoitá-lo.
- Do chicote eu não me livro.
E quantas chicotadas receberia? Vinte? Trinta? Cinqüenta? Amarrado ao tronco, de
costas para o seu algoz, acabaria perdendo a conta das chibatadas sucessivas. 
Ainda 
bem que já sabia como apanhar: enrijaria os músculos, como se seu corpo fosse 
uma só peça, e todo ele tenso, para que as lapadas não se lhe aprofundassem na 
carne. 
De cabeça, ouvia o zinido do relho tendendo o ar, logo seguido pelo bater da 
relhada segura, e baixava mais o rosto, contraindo-se, como se já estivesse 
recebendo 
no dorso nu as lapadas do couro torcido, lapte, lapte, lapte, para que 
aprendesse a conhecer o seu lugar.
- Ou então ele me deixa aqui uma porção de dias, sem comer, nem beber, até que 
eu morra.
E que mal cometera para estar ali? Nada. Podia ter-se aproveitado de Nhá-Biló, e
não o fizera. Pelo contrário: fugira dela, já nua. Só Deus sabia o quanto isso 
lhe 
custara. Chegara a ver-lhe o sexo, apenas coberto pela seda leve da calça, e os 
seios nus, caindo para o ventre, no momento em que ela tirava o vestido, e 
resistira 
à animalidade que lhe afogueara o instinto. Por um momento apenas, teria cedido 
ao sexo exacerbado. E dera o salto por cima da janela, movido
92
por um impulso de medo e piedade, antes que a virilidade bravia pudesse mais que
a sua compaixão.
A consciência do castigo imerecido dava-lhe ímpetos de reação desatinada, e ele 
se antevia saltando sobre o senhor, com a mão no cabo da faca, na primeira 
ocasião 
propícia em que se defrontassem. Era questão de tempo e paciência. O momento da 
vingança tinha de aparecer-lhe, como aparecera no caso do Samuel. E ele saberia 
esperar 
- mesmo que fosse um ano, ou dois, ou mais ainda. Daria tempo ao tempo. Agora, 
não. Tinha de ser realista. Como reagir, de faca desembainhada, com o Chico 
Laurentino 
ao lado do Doutôr? Preso depois ao tronco, de mãos e pés atados, só devia 
preocupar-seem sobreviver ao castigo. Também sabia que de nada adiantaria jurar
inocência. 
Se o fizesse, quem acudiria em seu favor? A Sinhá Velha? Os outros negros? Pois 
sim! Diriam todos que ele estava mentindo. O melhor mesmo era suportar as 
chicotadas 
cegas, na esperança de chegar ao fim dos açoites, sem perder os sentidos.
- vou até o fim - afirmou, para animar-se.
E levantou a cabeça, contraindo as sobrancelhas. Chegou a firmar as mãos no solo
para levantar-se; mas logo a seguir amoleceu os braços, tomado de pavor, os 
olhos 
aumentados. Só então refletiu que, se o Doutôr o houvesse condenado a morrer na 
cafua, já a pena estava sendo executada. No mesmo instante, sentiu que lhe 
cresciam 
a sede e a fome, sobretudo a sede. Um calor estranho, que o pavor acentuava, 
tomava-lhe a garganta, a boca, os lábios, e ele se ergueu, um pouco às tontas, 
obedecendo 
apenas à necessidade de movimentarse. Deu uns passos, e esbarrou com a parede; 
andou noutra direção, e novamente a parede o bloqueou. Pôs-se a caminhar às 
apalpadelas, 
à maneira de um cego, já agora inteiramente desnorteado. Veio-lhe a vontade de 
gritar, pedindo que o socorressem. E nisto se lembrou de seu pai. Ficou parado, 
como
se tentasse apoderar-se da imagem paterna. Que faria seu pai, numa situação 
assim?
- Ele também esteve aqui - lembrou-se.
Contraiu os punhos, enchendo devagar o tórax, no ingente esforço para não 
fraquejar, e aos poucos reconheceu que o ânimo lhe voltava. Seu coração batia 
tanto, que 
ele lhe sentia as pancadas contra o peito e as têmporas. Mas a taquicardia foi 
cedendo, e Damião tornou a tatear à sua volta, até que deu com a porta, e 
novamente 
sentou, com a sensação de que não estava só.
- Deus não vai deixar que eu morra nesta cafua - terminou por dizer, correndo a 
mão pela boca sedenta.
Lá fora, silêncio, tudo estranhamente quieto. Embora a noite fosse livre, sem os
costumeiros serões na casa de farinha, permaneciam calados os tambores do 
terreiro. 
Da casa-grande não vinha o rumor compassado das pesadas mãos de pilão triturando
os grãos de café. Só o vento continuava a ramalhar as árvores: sibilava forte, 
numa 
arrancada instantânea, e depois se aquietava, enquanto as folhas
93
caíam; tornava a sibilar, e outra vez amainava, perdendo-se para os lados da 
lagoa.
À medida que a noite avançava, o calor ia-se atenuando. No entanto, como o vento
não circulava no interior da cafua, continuava ali dentro a atmosfera abafada, 
que 
agravava a sede de Damião. Ah, se chovesse! A água da chuva certamente 
escorreria pelo piso, entrando por baixo da porta, e ele poderia molhar os 
lábios num fio 
de enxurrada. Aquele vento que corria e parava, corria e parava, não seria o 
indício de que o tempo ia mudar?
com essa esperança, conseguiu permanecer quieto, apoiando-se num ângulo das 
paredes. Várias vezes cabeceou de sono, vencido pela exaustão, e sempre volvia a
si, 
correndo a mão aflita pelos lábios secos. De madrugada, pareceu-lhe ouvir o 
pleque-pleque da chuva na folha de zinco sobre a sua cabeça, de mistura com o 
cheiro 
de terra molhada. Pôs-se à escuta, animado, e novamente correu a mão pelos 
lábios ressequidos, ao verificar que o pleque-pleque não se repetia.
Daí a pouco começou a notar que a escuridão esmorecia, querendo abrir o fio de 
luz da porta, ao mesmo tempo que uma vaga claridade parecia aflorar no vão entre
o 
alto das paredes e a folha de zinco. Baixando o olhar para o chão, pôde ver que 
o rato reluzia na sombra, no canto fronteiro, os seus olhinhos apertados, dando 
a 
impressão de que o observava. Daí a pouco escutou o canto de um galo, que outros
galos responderam. Longe, nos mangais da lagoa, cantaram as siricoras, e ele 
ficou 
a imaginar a manhã raiando por cima das águas, com as primeiras garças alvejando
nos alagados.
Também o Dr. Lustosa, na alcova da casa-grande, viu a primeira luz do dia 
insinuar-se por baixo da porta, ao fim da longa noite atormentada. Tinha custado
recolher-se. 
Ficara andando no alpendre, à luz do contravento, sem saber o que fazer da mão 
impaciente. Depois de mandar recolher o Damião na cafua, a custo reprimindo a 
vontade 
de matar o negro imediatamente, havia tornado à cadeira de balanço, ainda 
pálido, contraindo os maxilares, a veia do pescoço pulada. De vez em quando 
corria a mão 
pelo rosto, como a tirar dos olhos uma sombra que o torturava, e escancelava 
mais os olhos, no esforço para conter a ira que o cegava.
- Tem que ser devagar - repetia, para dominar-se.
Quando vieram dizer-lhe que o jantar ia ser servido, fez um gesto com a mão, 
mandando que a mucama fosse embora. E repetiu o gesto, daí a momentos, quando 
foi a 
mulher que o veio buscar. Não queria que o incomodassem. À própria mãe, que lhe 
veio trazer o prato feito, replicou com aspereza. Se quisesse comer, tinha ido à
mesa. Mas aceitou o café que, pouco depois, ela lhe trouxe, um tanto assustada, 
redobrando de esforço para diminuir o tremor da mão solícita, sempre com o molho
de chaves na cintura.
Andando no alpendre, ele vira a noite cair - uma noite de estio, sem promessa de
chuva, pejada de estrelas. Para lhe fazer companhia,
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só a luz do contravento, na cantoneira da parede, ou algum besouro erradio, que 
ficava a zumbir em volta do bocal de vidro. Já tarde, quando ia recolher-se, 
bateu 
no quarto da filha, e ali ficou mais de hora. Quando saiu, tinha o rosto mais 
cavado, um lume de desvario no olhar. Tão desorientado ficara que não acertou 
com 
a porta da alcova, só se lembrando da figura lívida da Biló, encolhida num dos 
cantos do quarto, as mãos entre as coxas, toda de roxo, e que lhe dizia, 
querendo 
rir:
- Não me bate, não me bate. Eu tenho um filho no bucho. Entrara na alcova ainda 
tonto. Não compreendia aquela nova
provação, depois da morte de seu filho. Por que, meu Deus? Na rede branca, a 
mulher dormia o seu sono profundo, como se nada houvesse acontecido. A candeia 
de azeite, 
sobre o mármore da cômoda, tremeluzia a sua chamazinha azulada, que se irradiava
por todo o aposento. Na claridade mitigada, avultava o oratório de pau-preto, 
cheio 
de santos, com o crucifixo de marfim ao meio. No castiçal de prata, um coto de 
vela, de pavio muito negro, derramava a cera derretida no bocal que o segurava.
Depois de olhar em volta, esmagado pela consciência de sua vergonha, o Dr. 
Lustosa aproximou-se da rede vazia, armada noutro ângulo do aposento, e deitou-
se sem 
trocar de roupa, apenas descalçando as chinelas, decidido a não teimar com o 
sono. Sabia que ia passar a noite em claro. De nada adiantaria tomar o chá de 
erva-cidreira, 
que a mãe lhe deixava no mármore do consolo, todas as noites. Abriu a camisa, 
buscando desoprimir o peito, enquanto impulsionava a rede para o balanço lento, 
conformado 
de antemão com a vigília penosa. Que vida a sua! Naquele fim de mundo, e 
novamente castigado! E logo agora, quando tinha hospedado o Senhor Bispo, e até 
um padre 
mulato!
Longe de acalmar-se, para ao menos descansar o corpo no côncavo da rede, sentiu 
crescer-lhe o ódio, e era uma cólera concentrada, que se voltava sobre si mesma,
aprofundando-lhe ainda mais a consciência do infortúnio e o instinto de revolta,
e que trazia consigo, quase como um lenitivo, certa volúpia fria, que ele jamais
havia experimentado com intensidade igual.
Antes da meia-noite, calçou devagar as chinelas, passou ao corredor, e daí à 
varanda, iluminado pela chama aflita de uma lamparina, que erguia um pouco acima
da 
cabeça. Entrou na despensa onde guardava ferramentas e trastes velhos, e de lá 
saiu sobraçando a navalha com que se castravam os animais da fazenda.
- É esta mesma que vai servir para ele - disse baixinho, com um brilho feroz nos
olhos iluminados, deixando a navalha sobre a cômoda.
com um sopro forte, apagou a lamparina, que ficou ainda fumaçando, só com a 
brasa do pavio. Irritado, premiu a brasa entre o indicador e o polegar, e tornou
a 
deitar-se, desta vez cobrindo o corpo
95
com as varandas da rede. Não tardou a dar um cochilo. Quando voltou a si, ainda 
ardia em cimada cômoda a candeia de azeite, fustigada agora pela viração da 
madrugada. 
De pálpebras entreabertas, com a cabeça alteada na rodilha do lençol, viu então 
a primeira claridade do dia esgueirar-se por baixo da porta.
Sentado na rede, com os pés nas chinelas, esperou que a claridade aumentasse 
dentro da alcova. Quieto, como se estivesse dormitando, viu pela fresta das 
pálpebras 
a mulher despertar, esticar o corpo, mudar de roupa, benzer-se defronte do 
oratório, soprar a luz da candeia e deixar a alcova na ponta dos pés, fechando 
cautelosamente 
a porta. Da cozinha vinha o ruído das escravas preparando o café. De mistura com
o arruino dos pombos no beiral, ouvia-se a algazarra dos passarinhos, ao mesmo 
tempo que as rótulas e portadas, em vários pontos da casa-grande, iam rangendo 
nos gonzos e batendo contra as paredes.
Senhor de si, o Dr. Lustosa foi ao banheiro e de lá saiu com o rosto úmido, os 
olhos levemente vermelhos, as sobrancelhas travadas. Calado, ocupou o seu lugar 
à 
mesa. Tanto a Sinhá Dona quanto a Sinhá Miloca, ladeando a cabeceira, também se 
mantiveram em silêncio. Somente a Sinhá Velha, habitualmente atrasada por causa 
de 
suas orações na capela, deu bom dia ao filho e à nora, bateu de leve no ombro da
Miloca, e foi ocupar a outra cabeceira, depois de deixar a bengala com a mucama 
que a ajudou a sentar-se.
- Obrigada, minha filha - agradeceu à negra solícita, que lhe acomodou também a 
saia fofa entre os braços da cadeira.
Como sempre comia devagar, concentrada no regalo de sua fatia de bolo e da sua 
xícara de chá inglês, a velha não deu atenção à mudez do filho, nem reparou 
quando 
este se levantou: permaneceu quieta no seu canto, mastigando com os poucos 
dentes que lhe restavam, enquanto o Dr. Lustosa passava para o alpendre, com o 
relho 
pendente do punho, depois de ter apanhado a navalha na alcova.
Já a vida da Bela Vista ia entrando no seu ritmo costumeiro, com o ranger das 
moendas, o cheiro do melaço nos imensos tachos de cobre, o rangido da velha 
bolandeira, 
o gemer fatigado dos carros de bois, o tilintar dos cincerros no pescoço das 
vacas leiteiras, debaixo do límpido céu sem nuvens, muito azul, extremamente 
luminoso, 
a ponto de doer na vista, e que se arqueava pelo sem-fim das terras da fazenda.
O Chico Laurentino tinha vindo ao encontro do senhor nas sombras do alpendre:
- Às suas ordens, Doutôr - apresentou-se, de chapéu na mão. O Dr. Lustosa tinha 
descido a rampa até à porteira da fazenda,
a pretexto de olhar as obras da estrada. Na verdade queria ganhar tempo, sabendo
que a demora era uma tortura a mais para o negro na cafua. Por vezes vinha-lhe a
vontade de gritar pelo feitor, para ', que pusesse o Damião no tronco, e logo se
coibia.
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- Aquele patife tem de me pagar caro. Desta vez ele me paga por ele e pelo pai. 
Negro é negro.
Subiu a rampa de cabeça baixa, esquecido da estrada, da porteira que pedia 
dobradiça nova, e o que ele via era a filha quase nua, só com o vestido em cima 
do corpo, 
os cabelos soltos, os olhos grandes, e que lhe dizia, olhando-o pelo espelho:
- O senhor deixa eu casar com o Damião, pai? Tia Miloca lhe contou que ele me 
fez um filho? Tá aqui dentro de mim.
Ele chegou a crescer para ela, fora de si. Mas ainda bem que se viu no espelho, 
de olhos pulados, a mão erguida, e deixou cair o braço, arrasado, vencido, 
lembrando-se 
da insanidade dela. Coitada, não sabia o que tinha feito. A luz do candeeiro 
batia-lhe no rosto, quase de frente, e ele via no espelho o rosto pintado que 
ainda 
lhe sorria, ela sentada no tamborete, meio curvada para a frente, de mão
no queixo.
- Se o senhor me bater, eu grito. Eu agora sou mãe, pai. Meu filho não vai ser 
branco, nem preto. Vai ser moreninho. Bem mo-
reninho.
- Não diga bobagem. Você não sabe o que está dizendo.
- Sei, pai. Damião me disse que nosso filho vai ser parecido com ele. Mas menos 
escurinho. Eu disse que, se fosse escurinho,
não fazia mal.
O Dr. Lustosa, muito pálido, sentia as pernas trêmulas, como se fosse cair. 
Amparou-se no punho da rede, com os olhos molhados, tudo toldado à sua frente. 
Se falasse, 
romperia a chorar. Doía-lhe o peito, como se o apertassem por dentro.
- Essa rede é de Damião, pai - adiantou a Biló, rindo, com
a mão diante da boca.
Ele chegou a sentir o cheiro do negro entranhado nos fios da rede, 
principalmente nas varandas. E todo ele se crispou, tenso, no impulso do ódio. O
negro deitava 
ali onde ele estava sentado. Ali mesmo, meu Deus. Que horror! E conseguiu 
firmar-se no punho à sua direita, levantando-se. Até o punho tinha o cheiro do 
negro!
- Deus devia ter pena de você, Biló - conseguiu dizer-lhe. E ela, no meio do 
quarto, contorcendo-se de riso, à feição de
uma juçareira na ventania:
- O senhor vai ter um neto escurinho, papai.
- Cala-te, doida! Tu não sabes o que estás dizendo. Tu não tens juízo. És uma 
pobre doida. Por isso é que o negro se deitou
contigo!
E deu por si já perto da filha, outra vez de braço levantado. Foi então que ela 
se refugiou no canto do quarto, com as mãos entre as coxas, vergada para a 
frente, 
como a proteger a barriga, e a suplicar que ele não lhe batesse, porque tinha um
filho no ventre.
Já no alpendre, viu aproximar-se o Chico Laurentino, de cabeça descoberta, 
pedindo-lhe as ordens.
97
E apanhando a navalha, que deixara no descanso do alpendre:
- Vá buscar a palmatória. E ponha o negro no tronco.
Entrançado, espadaúdo, capaz de derrubar um boi virando-lhe os chifres, o Chico 
Benedito cerrava um tronco de peroba, para ajustar a tora ao eixo da roda de um 
carro,
quando o Chico Laurentino passou por ele, com o seu tinido de esporas, a caminho
da cafua, enquanto o Doutôr ia-se aproximando do velho tronco de
aroeira que servia de pelourinho para o açoite dos escravos. Viu-lhe o relho 
pendente do punho, a mão fechada sobre a navalha. Adivinhando o que ia ocorrer, 
largou 
depressa o serrote
e tratou de descer a rampa da lagoa, antes que o chamassem para ajudar. Já 
longe, com efeito, ouviu que o próprio senhor lhe gritava pelo nome. E rápido, 
sem olhar
para trás, o passo leve e fofo, meteu-se pelo mato, disposto a só voltar quando 
não precisassem mais da sua força.
Em cima de um banco de pau, a poucos passos do tronco de aroeira, o Dr. Lustosa 
tinha deixado a navalha e um clavinote carregado. Andando de um lado para outro,
a céu descoberto, ficou à espera do Damião - que não demorou a aparecer, seguido
de perto pelo feitor, que lhe vigiava os passos, trazendo na mão direita um 
chicote, 
na outra a palmatória - uma palmatória de ferro, com um orifício no centro, o 
cabo também de ferro.
Ao dar com o senhor, Damião tardou o andar, sem conseguir disfarçar de todo o 
medo que lhe subiu aos olhos crescidos, e logo o Chico Laurentino lhe atirou no 
dorso 
uma chicotada, obrigando-o a aligeirar o passo.
O Dr. Lustosa travou mais as sobrancelhas, os olhos duros no rosto do feitor, e 
quando este lhe entregou a palmatória:
- Não se meta. Este caso é só meu. Só quem bate sou eu. Não se meta.
E noutra ordem:
- Veja onde anda o Chico Benedito.
- Estava aqui agora mesmo - informou o Chico Laurentino, tornando a relancear em
seu redor o olhar desapontado. - Quando se precisa desse negro, ele some.
- Então chame outro. Chame dois. É melhor.
Damião, numa vista de olhos, viu-se perdido. Se corresse, um tiro do clavinote o
derrubaria; se ficasse, teria de apanhar, e muito, tanto da palmatória quanto do
relho. Nisto, deu com a navalha; mas não atinou, no primeiro momento, com o 
emprego que ela ia ter no seu castigo. Raspar-lhe-iam a cabeça e as 
sobrancelhas?
O Chico Laurentino tinha-se afastado, e gritou na direção da casa de farinha 
pelo Lourenço e o João Brito.
98
Os dois negros apareceram quase no mesmo instante, ambos empoados de mandioca, e
vieram se aproximando, um ao lado do outro, retardando o passo, amedrontados.
- Depressa! - ordenou o feitor.
Eles obedeceram, sempre assustados, e afinal pararam, ainda sem saber o que 
vinham fazer ali.
Damião tinha cruzado os braços, com as mãos nas axilas, acabeça levantada. Só 
os seus olhos se moviam, tentando antever o que se ia passar. A palmatória de 
ferro 
deu-lhe uma sensação de frio na espinha. Já ouvira falar dela, mas nunca a tinha
visto. Sabia de negros a quem ela havia mutilado. E viu quando o Dr. Lustosa a 
segurou 
pelo cabo, depois de ter deixado o chicote no banco de pau
ao lado da navalha.
- Vem apanhar, patife! - gritou-lhe o senhor, firmando os dedos no cabo de 
ferro, os olhos nos olhos de Damião.
O negro veio vindo, ainda com as mãos nos sovacos, e parou a uma distância de 
dois passos. Só aí estendeu a mão, sem alongar de todo o braço, o cotovelo 
roçando 
o tórax, como em busca de um apoio. De músculos retesados, mordendo os 
maxilares, esperou a pancada. Prendera a respiração, apertando os dedos da mão 
estendida, 
na esperança de assim preservar a dilaceração da palma. E a palmatória desceu, 
firme, dando-lhe a sensação de uma placa de fogo sobre a carne enrijada. De 
cabeça 
erguida, olhando nos olhos o seu algoz, foi mudando de mão, no revezamento dá 
bordoada, sem descer a vista para as palmas empapadas de sangue. Só calculava o 
estado 
delas pelas dores que sentia e pelos salpicos de sangue que lhe vinham ao rosto 
e ao peito, na repetição dos bolos implacáveis.
Pela altura da nona palmatoada, já as mãos de Damião escorriam sangue, e ele 
mantinha a cabeça alta, sem desfitar o senhor, que por sua vez recrudescia a sua
cólera 
ante esse olhar iracundo e viril. Quase ao fim da dúzia, a palmatória caía em 
cheio na posta vermelha, e o sangue saltava para os lados.
Apenas para não exaurir o braço, que ainda ia empunhar o chicote, o Dr. Lustosa 
não foi além, reconhecendo que havia cumprido a primeira parte de seu programa, 
destroçando 
as mãos do cabra que
lhe infelicitara a filha.
- É para que aprendas a respeitar a filha do teu senhor. Mas isto é apenas o 
começo - preveniu, arquejante.
E para o Chico Laurentino:
- Agora, amarre ele no tronco, nu, com as mãos para cima, e de frente. vou 
descansar um pouco.
Damião quis esboçar um passo, os olhos arregalados de pavor, com a repentina 
certeza de que ia ser castrado. Olhou os dois
99
negros, mudamente implorando que o protegessem; mas ambos baixaram a vista, 
intimidados pela presença do senhor, que sentara mais adiante, e já o João Brito
se aproximava,
meio contrafeito, para ajudar o feitor.
- Tu também - advertiu o Dr. Lustosa, dirigindo-se ao Lourenço. - Ajuda o Chico 
Laurentino, antes que eu te mande meter no tronco.
Num relance, antes que pudesse escapar, Damião se viu agarrado por quatro mãos 
potentes, ao mesmo tempo que o feitor, com um safanão, lhe descia as calças. 
Assim 
nu, veio andando de costas, quase arrastado, até o tronco de aroeira. Uma corda 
atou-lhe os pulsos por cima da cabeça, enquanto outra o cingia pelos pés, 
firmemente, 
tirando-lhe os movimentos, e ele tiritava de medo, com os bogalhos crescidos, 
olhando de vez em quando a navalha, que permanecia em cima do banco.
De longe, alguns negros contemplavam a cena, estatelados, lívidos, atarantados, 
e várias crianças e mulheres tinham deixado a senzala, para olhar o castigo do 
Damião,
atraídas pela novidade do espetáculo. Também da casa-grande vieram vindo outras 
negras, e ficaram também olhando, a distância, ao mesmo tempo que duas moendas 
pararam
de ranger.
E nisto Damião sentiu a primeira chicotada, que o apanhou de lado, à altura do 
rosto, resvalando para o ombro. Uma fúria desumana erguia o braço do Dr. 
Lustosa, 
e a taça subia, passando-lhe por cima da cabeça, para voltar logo depois, com a 
mesma cólera vindicativa. Cinco vezes a tira de couro torcido subiu e desceu, 
subiu 
e desceu, governada pelo braço brutal que lhe empunhava o cabo de madeira, e 
parecia antes crescer que abrandar, à medida que as lapadas se repetiam, 
retalhando 
a cara, o peito, o pescoço, os ombros, os quadris do negro, todo ele agora 
manchado de sangue. Uma nova chicotada desceu-lhe ao ventre e alcançou o membro,
que balançava 
com a violência da pancada, e Damião tentou contrair-se, num urro de dor.
- Agora tu aprendes, negro! - exclamou o Dr. Lustosa, tornando a erguer o braço.
Estava pálido, muito pálido mesmo, com os lábios arroxeados, as veias do pescoço
dilatadas, e toda a sua energia se concentrava na mão que vinha voltando com a 
taça em riste, descrevendo a curva da chicotada cega. E essa mão cruel pareceu 
perder de repente a sua força, afrouxando os dedos que seguravam o cabo do 
relho, 
enquanto o resto do corpo aluía, desequilibrando-se para a frente, sem dar tempo
a que o feitor e os negros
lheacudissem - para cair precisamente aos pés de Damião,
que escancelou os olhos banhados de sangue, sem compreender direito o que se 
estava passando.
100
DEPOIS DE PROLONGADOS DIAS DE ESTIO, ineXplicáveis para aquela época do ano, as 
chuvas desabaram por semanas consecutivas, sem que o pesado céu cinzento 
clareasse
uma só vez. Parecia mesmo um dilúvio. Pequenos riachos, que no verão se 
atravessavam com água um pouco acima dos tornozelos, eram agora rios agressivos,
que arrastavam 
árvores, bois, cobras, galhos quebrados. No Maracaçumé, as águas tinham 
engrossado tanto, desde as nascentes distantes, que não se lhe viam mais as 
pedras do leito, 
cobertas pela enxurrada barrenta que descia dos contrafortes da serra de 
Piracambu. Essa enxurrada tinha saltado das margens, devastando matas, 
destruindo casebres, 
esbarrondando barreiras por entre o fuzilar dos raios e o estrondo das trovoadas
repetidas. Já se falava em fim do mundo.
- com pouco, não tem mais terra - observou o Chico Benedito, vendo a chuva 
recrudescer, depois de breve
estiada.
-- Tá parecendo - confirmou o canoeiro, de pé na proa, a manobrar a vara 
comprida com que livrava a canoa de bater nos barrancos e nas pedras do caminho,
sem se
distanciar muito da margem.
Cedo, debaixo da chuva miúda, tinham deixado o trapiche, ao fim da trilha 
sinuosa que ia dar na Bela Vista. A cobertura da canoa, toda de pindoba 
trançada, pareceu-lhes
um abrigo providencial, depois de três dias a cavalo nos lameiros da floresta, 
sobretudo para Damião, que ainda trazia as mãos enfaixadas, só podendo segurar 
as 
rédeas com a ponta dos dedos.
Ao saírem da fazenda, o tempo dava a impressão de que ia suspender. Havia 
relampejado menos que nas noites anteriores; a chuva chegara a parar de cair, só
ficando 
o vento esfuziante, que parecia não ter fim. Ao fim da madrugada, a
estiada se alongou, entrando pelo dia.
- O mio que nós faz é pruveitar o descanso da chuva - recomendou o Chico 
Benedito.
Mas, antes do meio-dia, já em plena mata, com as montarias a chapinharem nos 
lameiros da picada, o tempo tornou a escurecer, e outra vez o temporal desabou, 
feio
e forte.
101
- Agora, não adianta vortar. Tamo aqui, vamo em frente. Pra frente é que se anda
- decidiu o Chico Benedito.
O abrigo de couro, que lhe caía sobre os ombros largos, escorria água como 
calha, e assim também o chapéu de vaqueiro, amarrado por baixo do queixo. 
Damião, em silêncio, 
vinha logo atrás, na égua baia de passo firme, seguindo o caminho que o outro ia
rompendo.
Foi à noite, quando pararam no pouso do Riacho Fundo, diante do fogo aceso para 
esquentar o corpo e afugentar os mosquitos e besouros, que Damião perguntou ao 
companheiro:
- O Doutôr foi enterrado na capela, Seu Chico?
- Bem no meio defronte do altar, e com a roupa de Doutô, como ele deixou escrito
no pape - replicou o outro, agachado, a picar o pedaço de fumo para o cachimbo.
- Quem mais sentiu foi a Sinhá Veia. Ela, sim, chorou com vontade, quando eu e o
João Brito deixamo o caixão fechado no fundo da cova. Dava pena. Quiseram levar 
ela dali, mas a veia não deixou. Ficou até o fim. Esperou Sinhá Miloca fechar a 
capela e fez questão de guardar a chave, que meteu no chaveiro.
Damião esquece a noite à sua volta, a chuva que bate forte na palha da 
cobertura, os relâmpagos que se sucedem, e novamente se vê amarrado ao tronco de
aroeira, 
enquanto levam o Doutôr para a casa-grande.
Chico Benedito mete o fumo picado no cachimbo,põe o taquari na boca, depois se 
curva sobre a fogueira. E ainda envolto na fumaça da primeira cachimbada:
- Foi Deus que te sarvou, Damião. Bota as mão pró céu. Se não fosse Deus, tu 
tava castrado, como os capado do chiqueiro. O Chico Laurentino ainda falou pra 
Sinhá 
Veia que ele fazia o serviço no lugar do Doutô. Ela mandou ele se calar. Magina 
se ela diz que sim pra peste do feito. Tu tava perdido.
Chico Benedito dá outra cachimbada. E na mesma voz lenta e grossa, que lhe vem 
molhada do fundo da garganta:
- Agora, toma juízo: não levanta mais os óio assanhado pra fia de branco. Fica 
no teu lugar. Tá aí no que deu. Prós preto cumo nós, não farta preta. Neste 
mundo 
de meu Deus, tem mais preta que branca. É só escoiê, Damião.
O riso alto, que estala por cima do ruído da chuva nas árvores, alonga-lhe a 
frase, e ele demora o olhar em Damião, que se encolhe no banco de varas, já 
deitado 
para dormir:
- Tou vendo que falei besteira. Tu não vai ser padre? Padre não percisa de muié.
Muié de padre é cavalacanga. Padre Damião! Só vendo!
Damião não sabe ao certo quando o velho Chico' Benedito graceja ou fala sério, 
debaixo do cabelo grisalho, cortado rente, e que
102
contrasta com o negro retinto de sua pele sem rugas. Deixa passar um silêncio, e
confirma:
- Eu vou mesmo ser padre, Seu Chico.
- Já tou lhe tomando a bênção, Seu Vigário.
Ambos riem, enquanto o vento sacode as árvores no alto das ramagens, por entre 
os relâmpagos que se repetem. Desta vez é o Chico Benedito que recolhe o riso:
- A carta de Sinhá Veia pró Sinhô Bispo tá bem guardada, Damião? Inté me 
assustei. Tu guardou dentro da mala, bem no fundo, pra não moiá? Antão, tá bem. 
A vida inteira 
tu não vai te esquece de Sinhá Veia. Abaixo de Deus, tu deve a vida a ela. 
Coração grande. Mais grande do que ela. Por vontade de Sinhá Dona e de Sinhá 
Miloca, tu 
não saía da cafua. Morria lá dentro, como morreu o Bento, como morreu o Simeão, 
gente que tu não conheceu. Sinhá Veia foi que mandou te tirar de lá. Bateu cum 
pé. 
Falo arto. Eu ouvi.
Damião aprova com a cabeça as palavras do Chico Benedito, enquanto as paredes se
fecham à sua volta, na manhã alta, e é tudo escuro diante de seus olhos feridos.
Doem-lhe as mãos, doem-lhe as costas, doem-lhe os ombros, e também o seu pênis, 
que a ponta do chicote feriu. Ao deixar-se cair na terra do chão, sente que o 
sangue 
lhe desce do peito, das coxas, do rosto, dos braços, do ventre, e vai-se 
coagular à altura das nádegas. Ele ainda não sabe que o senhor está morto. Viu 
que lhe levaram 
o corpo, gritando pelo Simão Quintino, que sabia benzer e afugentar as doenças.
- Depressa, Quintino!
Ainda amarrado, Damião viu passar o velho preto capenga, cego de um olho, a 
arrastar a perna curta, sobraçando o seu embrulho de ervas. O mundo se escurece 
diante 
de suas retinas atordoadas; mas ele ainda percebe quando o Simão Quintino entra 
na casa-grande pela porta da cozinha, seguido pela Andjeza Bibiana, que também 
sabia 
rezar. Depois, sentindo que as forças lhe faltavam, pendeu a cabeça, como o 
Cristo da capela, e só deu por si quando o Chico Benedito o trazia nos braços, a
caminho 
da senzala.
- Nada de senzala! Ele vai é pra cafua! - gritou o Chico Laurentino, saindo da 
casa-grande, ainda de chapéu na mão.
E foi na cafua que o Chico Benedito o deixou, depois de lhe dizer, para animá-
lo:
- Deus tá te ajudando.
Sentado na poça de sangue, Damião ouviu correr o ferrolho da porta, depois o 
estalo do cadeado, e perdeu a noção das horas, vencido pelas dores e a exaustão,
o espírito 
meio confuso, uma vontade invencível de cerrar os olhos, como se voltasse a 
desfalecer. Chegou a pensar se a morte, naquele momento, não era preferível. 
Conseguiu 
dormir ali mesmo, a despeito das dores que o retalhavam, conservando as mãos com
a palma voltada para cima e descansadas nos joelhos. Só despertou quando já 
cantavam 
os galos na alvorada do novo
103
dia. Entreabrindo as pálpebras, viu um traço de luz por baixo da porta e um 
vislumbre de claridade acima das paredes. Dores por todo o corpo. E o mesmo 
desânimo. 
Levou uns momentos parado.
- Tenho de reagir - acabou por dizer-se. - Assim é que não posso ficar.
Ao tentar levantar-se, esqueceu de repente as mãos dilaceradas. Chegou a apoiar-
se nelas. E a dor que de repente o penetrou, subindo-lhe pelos braços também 
retalhados, 
fê-lo cerrar os dentes, no esforço para conter o grito que lhe subiu à boca 
ressecada. Tentou devassar as sombras circundantes. Onde encontraria água para 
beber? 
Só viu sobre o montículo de terra os dois olhinhos do rato, a espiá-lo de seu 
canto, com as patinhas para a frente. A sede apertando, Damião tornou a 
pretender 
levantaf-se, agora sem o apoio das mãos. Retraiu as pernas, alteando os joelhos,
e foi obrigado a imobilizar-se, até que se atenuassem as novas dores do corpo em
movimento. Afinal, apoiando-se na planta dos pés, pôde erguer-se, e outra vez as
dores se açaimaram, com intensidade maior. Pôs-se a soprar o peito, as mãos, os 
braços; mas o rosto também lhe doía. Ensaiou uns passos, com a vista turva, e 
logo parou, nauseado, buscando equilibrar-se. Dir-se-ia que todo o seu corpo era
uma
chaga viva. Sentiu vontade de urinar, mas a urina não lhe veio, com a dor que 
lhe apertava os testículos. Ficou imóvel, a testa apoiada na parede, as pernas 
abertas. 
A sede que o abrasava era tanta que pensou em beber a própria urina. Como faria 
para recolhê-la, se não podia valer-se da concha das mãos? A sensação de que uma
labareda o queimava por dentro, subindo-lhe para a garganta e o céu da boca, 
voltara a torturá-lo, mais intensa, mais obsessiva. Tornando a sentir-se tonto, 
amparou 
as costas na parede. Por que não volvia a sentar-se? Devagar, devagarinho, 
fletiu as pernas, deslizando o dorso na aspereza do barro. Onde estariam as suas
calças? 
Já sentado, tateou o chão à sua volta com a costa das mãos, e não tardou a 
encontrá-las perto da porta. Conseguiu rasgá-las com os dentes, segurando-as com
os 
punhos, e envolveu as mãos nas tiras de pano, com a esperança de que assim 
pudesse preservar as palmas dilaceradas. Sempre sedento, tentava umedecer os 
lábios com 
a ponta da língua, e logo cerrava a boca, sentindo-a rachar-se. Procurou 
aquietar-se, de pernas estiradas, tentando ganhar tempo na intermitência dos
cochilos. Mas 
era debalde: a sede agora lhe tirava o sono, e ele olhava em redor, tentando 
descobrir um filete de água. Se dispusesse das mãos, cavaria a terra até 
encontrá-la.
- E agora, meu Deus?
No entanto, em meio de sua agonia, esboçava um sorriso, agradecido à 
misericórdia de Deus, enquanto revia a navalha em cima do banco e o senhor a 
erguer o braço 
que empunhava o chicote. Como a sede teimasse, esbraseando-lhe a boca, ensaiou 
cavar a terra com os dedos dos pés. Sentia-se a ponto de endoidecer. Por fim, 
arrastou-se
104
até à porta, e entrou a repetir, para ver se alguém o ouvia pelo lado de fora:
- Água. Água.
Por volta do meio-dia, quando maior era o calor dentro da cafua, ouviu passos 
junto da porta. E logo a voz do Tônico Sarará:
- Tou vendo como te levo água. Espera. Tem paciência.
Daí a pouco Damião viu que um talo de folha de mamoeiro se insinuava por baixo 
da porta. Não tardou muito, a água entrou a borbulhar pelo orifício da taboca, 
quase
ao mesmo tempo que ele se deitava ao comprido do solo, chupando-a aos gorgolões.
- Bebe devagar - recomendou-lhe o outro, na mesma voz sussurrada. - Tou 
pruveitando que todo mundo tá na capela vendo o enterro do Doutô.
Só aí soube que o senhor tinha morrido. Veio-lhe então uma sensação repentina de
alívio. Parecia-lhe que a sua vida tinha mudado. Deitado na terra úmida, 
continuou 
a chupar a água, molhando o rosto, o pescoço, o peito, e ainda a sede não se lhe
havia passado quando sentiu a água secar, quase ao mesmo tempo que o talo era 
puxado 
para fora. Deixou-se ficar deitado, sem forças para levantar-se, a boca roçando 
a terra.
- Deus continua a me ajudar - reconheceu.
Durante a tarde, não ouviu um só dos rumores habituais dafazenda. Mas percebeu 
o movimento dos parentes e amigos que tinham vindo para o enterro e agora 
estavam 
de volta. Até tarde repetiu-se o galope dos cavalos. Depois a noite fechou, e o 
silêncio se estendeu à casa-grande e à senzala, só restando o ruído do vento nas
árvores.
Pelo meio da noite, Damião supôs ouvir, por baixo da porta, um ruído apressado 
de terra revolvida, como se um tatu estivesse a cavar ali o seu buraco. E 
novamente 
reconheceu a voz do Tônico Sarará:
- vou passar tua comida - avisou. - Depois, tapa o buraco daí, que eu tapo 
daqui.
Damião ensaiou tocar a terra com as mãos protegidas pelas tiras das calças, e 
não agüentou as dores. Recorreu mais uma vez aos punhos, e pôde levar à boca um 
pedaço 
de bolo de mandioca. Enquanto mastigava, ia atirando na vala a terra mexida, com
a planta do pé direito, até sentir o chão igualado, e mais uma vez sorriu, com 
a certeza de que, assistido assim pelo Tônico Sarará, suportaria por largo tempo
a reclusão da cafua. 
No entanto, ao fim de dezesseis dias, tinha os nervos tensos, só pensando em 
livrar-se dali pela fuga, tão logo pudesse cavar a terra com as mãos. Todas as
manhãs, ele as experimentava, para ver se já podiam- suportar o contacto com a 
terra. Ainda lhe doíam, e muito. Em alguns pontos, as feridas abertas exalavam 
mau 
cheiro,
e a dor era forte, quase insuportável, sempre que ele ensaiava abrir e fechar os
dedos. Mesmo assim, repetia os exercícios. Por outro lado ia
105
crescendo na cafua o odor da urina e das fezes acumuladas. Por mais que abrisse 
valas fundas no chão com a ponta dos pés, para ali recolher os excrementos, o 
fedor
subia ao lume do solo, e empestava o ar à sua volta. Seu cabelo crescido e sua 
barba por fazer tinham-no envelhecido. Apalpando o rosto com a costa das mãos, 
sentia
a face funda, as órbitas cavadas, os pômulos salientes. O que mais o atormentava
era a inhaca de seu próprio corpo. Sentia-se feder, principalmente nas axilas. 
No 
estado em que se achava, somente um demorado banho afugentaria de si o bodum 
nauseante, e era em vão que procurava habituar as narinas à catinga de chiqueiro
que 
adensava o ambiente.
Foi pela madrugada que as chuvas voltaram. Primeiro os relâmpagos, depois os 
golpes de ventania, e por fim o
toró desabando, como se o céu viesse abaixo.
Damião já estava acordado quando otempo mudou. Deitado no chão, aspirou o 
primeiro cheiro da terra molhada. Não tardou que a água se insinuasse por baixo 
da porta
para dentro da cafua. E ele, no escuro, abriu com os pés o rego para ela entrar,
saindo pelo outro lado. Quando a luz da manhã rompeu, atenuando as sombras do 
cubículo,
Damião desprendeu as tiras de pano que lhe envolviam as mãos e lavou as feridas 
na água barrenta que ia passando. Depois, utilizando-se da costa das mãos, 
molhou 
os sovacos, o tronco, o rosto, e acabou por sentar na vala para que a água 
corrente o lavasse.
De tarde, num dos intervalos da chuva, distinguiu uns passos pesados nos 
lameiros do chão. Pelo tinido das esporas, adivinhou o Chico Laurentino. Ouviu 
mexer no 
cadeado, depois no ferrolho.
Quando a porta se abriu, projetando a luz da tarde alta para o interior da 
cafua, Damião pôs a mão diante dos olhos, protegendo-os contra a claridade. Nos 
primeiros 
momentos, não se moveu, agachado contra a parede.
- Saia - ordenou-lhe o feitor.
- Estou sem roupa. Preciso de uma calça.
Devagar, apoiando-se na parede, ficou de pé. A figura magra, só pele e osso, 
parecia ter crescido, e mostrava os olhos fundos, a barba rala cobrindo-lhe a 
ponta 
do queixo, o bigode falhado por cima dos lábios. Ao ensaiar os primeiros 
movimentos, no esforço para levantar-se, sentiu reavivar-se o mau cheiro que 
ainda se desprendia 
de seu corpo nu. Para manter-se de pé, abriu bem as pernas, com os cotovelos 
firmados na parede. Num começo de tontura, o chão oscilou-lhe, ao mesmo tempo 
que a 
figura do Chico Laurentino se toldava no vão da porta. com esforço, enchendo bem
o peito, conseguiu vencer a vertigem, enquanto passava na cintura, apenas com 
a ajuda do polegar e o indicador de ambas as mãos, a toalha que lhe tinham 
trazido para cobrir-se. Embora quisesse rir para a luz que o envolvia, mantinha-
se sério, 
andando devagar, passo a passo.
106
- Saia, já lhe disse que saia - trovejou o feitor, numa voz impaciente.
Ele deu outro passo inseguro, mais outro, sempre a apoiar-se na parede com o 
ombro ou o cotovelo, e saiu por fim na moldura da porta, com a sensação do 
doente 
que deixa o leito no seu primeiro dia de alta, ensaiando a primeira volta 
insegura no corredor do hospital. Sentiu bater-lhe no rosto a chuva fina, e viu 
de longe 
a mãe e a irmã, que lhe acenavam chorando, na companhia de outros negros, à 
entrada da senzala. Comovido, tratou de reprimir a emoção, não sabendo que 
direção ia 
seguir.
- Vá-se banhar e vestir; depois a Sinhá Velha quer lhe falar adiantou o feitor, 
fechando a porta da cafua.
Ele foi andando, de passo ainda trôpego, o rosto mais aberto. O Chico Benedito, 
saindo do meio dos outros negros que o olhavam da porta da senzala, segurou-o 
pelo 
braço:
- No começo é assim mesmo.
Damião sentiu que o esforço o fatigava, mas prosseguiu, pisando firme, a 
despeito da curiosa sensação de que um bando de agulhas lhe picavam as pernas 
dormentes. 
Parou um momento, novamente tonto, a vista escura. E aí foram a mãe e a irmã que
o ampararam.
Mais tarde, ao subir os degraus do alpendre, já de cara raspada, banhado, a 
roupa limpa, para falar com a Sinhá Velha, a sua respiração ainda era curta e 
repetida, 
denunciando-lhe a fraqueza. Estacou no patamar, e deu com ela: parecia 
adormecida na cadeira de balanço, a cabeça branca apoiada no recosto de 
palhinha, as mãos 
no regaço, os pés envoltos em grossas meias de algodão. A idade avolumara-lhe a 
papada, dera-lhe uns fios doidos de barba grisalha pelos lados do queixo. Mas 
tinha 
muito do filho - na testa, nos olhos empapuçados, nas rugas do canto da boca. 
Dormitava de lábios entreabertos, cedendo ao leve acalanto da chuva, que não
parara 
de cair. E erguendo as sobrancelhas, com ar de surpresa:
- Estavas aí há muito tempo? - perguntou ela, endireitando-se na cadeira, os 
olhos em Damião.
- Cheguei agora mesmo - mentiu ele.
E como trazia as mãos envoltas no curativo que o Simão Quintino tinha acabado de
fazer, escondera-as por trás das costas, constrangido. Mas seu rosto ainda 
conservava,
bem à mostra, por cima dos olhos, na face esquerda, na têmpora direita, a marca 
nítida do relho do senhor. Também no pescoço, descendo para o peito, lá estava, 
em 
diagonal, o risco da taça enfurecida.
Sinhá Velha, de vista levantada, firmou-a nos olhos do negro, que também a 
fitava:
- Damião, você sabe que foi por sua causa que meu filho morreu. A Miloca e a 
Sinhá queriam vender você para Donana Jansen, em São Luís. Eu não deixei. Quero 
lhe
pagar o mal com o bem. Aqui você não pode mais ficar. Tem de ir embora, e para 
longe. Já falei
107
ao Chico Benedito para levar você daqui. Quanto mais depressa você for, melhor. 
Ele entrega você ao Senhor Bispo, com uma carta minha. Não se preocupe com a sua
mãe e a sua irmã. Elas continuarão a ser bem tratadas. Pelo menos enquanto eu 
for viva.
As longas chuvas contínuas retardaram-lhe a partida. Foi melhor assim. Se de 
todo ainda não podia usar as mãos, que persistiam em doer-lhe sempre que tentava
segurar 
algum objeto, em compensação já se lhe tinham fechado, com as ervas do Simão 
Quintino e as rezas da Andreza Bibiana, muitas das feridas do peito e dos 
braços. Podia 
andar firme, as tonturas tinham desaparecido.
Na primeira estiada, o Chico Benedito preveniu-lhe:
- Amanhã a gente sai daqui, cedo. Sinhá Veia já me deu a carta para o Senhor 
Bispo.
É mio é a gente sair com o dia clareando.
Agora, ali no pouso do Riacho Fundo, olhando o fogo lutar com as achas molhadas,
Damião não precisa se Voltar para saber que o Chico Benedito continua a pitar o
seu cachimbo, sentado na tábua corrida que duas pedras seguram. A chuva não pára
de fustigar a cobertura depalha do rancho, enquanto a enxurrada vai descendo 
pelos
meandros da mata. As duas éguas, amarradas numa das traves que seguram a 
cobertura, aproximam-se do fogo, protegendo-se contra os insetos e a umidade da 
noite. E 
sempre o vento a zinir por entre as altas ramagens.
- Foi mesmo a Sinhá Veia que fez questão de fechar a carta. A Geminiana trouxe o
pedacinho de lacre, a velha esquentou a ponta do pedacinho na luz da lamparina e
fechou tudo bem fechado; despois me entregou a carta, dizendo pra eu só entregar
ela na mão do Sinhô Bispo.
E o Chico Benedito remata a fala pausada com uma pergunta repentina, que faz o 
Damião olhá-lo de frente:
- Me diz uma coisa, Damião: tu te despediu de Sinhá Veia?
- Ela não quis me receber. Fui à casa-grande ver se falava com ela. Falei com a 
Geminiana, e ela voltou dizendo que a Sinhá Velha não queria mais me ver. Que eu
fosse embora. Que desaparecesse da fazenda.
- Ha. Se foi assim, tá bem. Tu fez o que devia.
Depois que o Chico Benedito guardou o cachimbo e se estendeu ao comprido da 
tábua, Damião ainda ficou largo tempo no outro banco, pensando na carta fechada.
Que 
teria escrito Sinhá Velha ao Senhor Bispo? E por que aquele cuidado de lacrar a 
carta, com o sinete do Dr. Lustosa?
Em redor do rancho, de mistura com o ruído da chuva e do vento, o coaxar dos 
sapos e das rãs nos charcos dos arredores. De vez em quando um dos sapos saltava
para 
dentro do rancho, e ali ficava, agachado, de olhinhos pontudos. Ainda bem que o 
vento se encarregava de avivar as brasas da fogueira, atenuando o frio da noite 
alta.
108
Pela manhã, quando Damião despertou, já o Chico Benedito mascava o seu pedaço de
fumo, com as éguas encilhadas, preparado para continuar a longa viagem. O tempo 
levantara um pouco. Mas, em redor, continuavam a correr os rios das enxurradas, 
dando a impressão de que toda a mata era um, labirinto de cursos de água 
barrenta, 
que iam saltando por cima das raízes das árvores. Em certos pontos, tinham-se 
formado lagos extensos, difíceis de atravessar, sendo preferível contorná-los, 
embora 
alongando a caminhada.
Antes de saírem, Chico Benedito quis ver como iam as mãos do companheiro. Tirou-
lhes devagar as ataduras, e abriu o sorriso, vendo que as feridas estavam 
fechadas.
-Eu não tava acreditando que elas iam sarar. Levanta as mãos pró céu, Damião. 
Mas tem cuidado com elas. Em riba das feridas, tá só uma pele fininha. Tu vai 
levar 
muito tempo sem poder pegar nas coisa. Pra pegar, só com as ponta dos dedo.
E tornou a envolvê-las nas tiras de pano, depois de untá-las mais uma vez com o 
óleo que o Simão Quintino recomendara:
- Deixa passar mais uma semana. Assim tu não te esquece de ter sentido nelas.
Foi só na canoa, descendo cautelosamente o rio cheio, sempre com a chuvinha 
teimosa tamborilando na cobertura de pindoba, que o Chico Benedito voltou a 
olhar as 
mãos do Damião:
- Agora, não precisa botar mais os pedaço de pano. Tão saradas memo. Parece 
mentira que tu ficou bom.
Retalhadas de cicatrizes, as palmas tinham perdido os calos e as linhas de 
outrora; eram lisas, com pontos vermelhos, um pouco repuxadas nos cantos, e 
ainda doíam, 
muito sensíveis a qualquer movimentação dos dedos.
O rio agora é largo. As águas barrentas não permitem ver as pedras do leito nem 
os cardumes de piranhas que rabeiam rio acima ou rio abaixo. Damião conhece 
essas 
águas viageiras, sempre lerdas, sem pressa de chegarem ao fim de seu caminho. 
Ele sabe que, por baixo delas, misturados à areia do fundo do leito, estão os 
ossos 
de seu pai, e é como se tornasse a ver, boiando na torrente que a chuvinha 
encrespa, a mancha de sangue que lhe ficou na memória, de mistura com o estrondo
dos
tiros.
E enquanto o canoeiro, com a ponta da vara, desvia a canoa da sinuosidade de um 
barranco solapado, ele pergunta ao companheiro:
- Quando a gente vai chegar a São Luís, Seu Chico?
- Bota tempo nisso. Daqui a mais um pouco a gente muda de canoa, pra fugir da 
cachoeira. E lá mais longe, quando o rio fica mais fundo, passa pró barco. Aí a 
viagem 
é mio. No barco, depois que a gente sai do rio, vem o marzão bonito, que tu 
nunca viu. Te prepara pra encher os óio. Quem nunca viu o mar, como tu, fica 
banzando, 
de boca aberta.
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Olhando a canoa avançar, rio abaixo, Damião alonga a vista, de pálpebras 
entrecerradas, como se quisesse alcançar mais longe ainda o caminho cheio de 
voltas das 
águas barrentas. Na verdade ele está vendo a figura miúda do Barão, no terreiro 
do quilombo, e que lhe diz, com a mão espalmada sobre a capa de sua velha 
Bíblia:
- Damião, o mar é do tamanho de Deus: não acaba nunca!
NA ESQUINA DO LARGO DO QUARTEL, Damião tornou a parar, com o cigarro entre os
dedos, à espera de alguém que lhe cedesse o lume. Mais uma vez, antes de passar 
para a calçada fronteira, olhou para trás. Lá adiante, o lampião sonolento, já 
quase 
apagado. No céu estrelado, a mesma fatia de lua nova, a espreitá-lo por cima dos
telhados escuros. E o vento da noite a varrer a rua com o seu sopro constante, 
enquanto voltavam a bater, mais fortes, mais frenéticos, os tambores rituais da 
Casa-Grande das Minas.
Depois de levar o cigarro ao canto da boca, espraiou o olhar pela imensidão do 
largo, rodeado de casas fechadas, sem vivalma. De um lado a outro, a massa 
compacta 
do prédio acachapado do Quartel do 5.° Batalhão de Infantaria, com o soldado de 
sentinela quase oculto pela pilastra. Longe, no começo da Rua dos Remédios, a 
igreja 
de Santaninha, caiada de novo.
Conhecera aquela praça, já fazia mais de sessenta anos, quando ali ainda existia
um bonito chafariz da Companhia das Águas. Que fim teria levado o presépio 
campal 
do Tomás Rosas, armado também ali no começo do século? O que se via agora eram 
as árvores plantadas pelo Mariano Lisboa, e os canteiros floridos, e os bancos 
de 
ferro, e os lampiões de gás. Dava gosto sentar naqueles bancos, horas inteiras, 
nas noites de luar.
- E com o Quinquim tocando no violão as serenatas de Raiol...
Damião repõe no seu lugar a praça de outrora, mais singela, mais romântica, 
apenas calçada com pedras de cantaria, e onde se dançavam as cheganças, os 
fandangos 
e os baralhos, nos três dias de carnaval. Atravessa a rua, no mesmo passo firme,
e sente que as velhas pernas lhe pedem uns minutos de descanso. Senta-se no 
primeiro 
banco, em frente à casa do Maneco Jansen, e volta a ver os
110
dois corpos, como se ainda estivesse no botequim da esquina, debaixo da luz do 
candeeiro.
- Pelo paletó de xadrez, o preto deve ser gente de fora conjetura, novamente 
distinguindo, na claridade escassa, a mancha do sangue nas costas do morto. - 
com certeza 
levou a facada depois que o outro foi assassinado. O criminoso parece que é um 
só. Primeiro, matou o dono do botequim com uma paulada, utilizando-se da tranca 
da 
porta; em seguida, quando o preto ia sair, talvez para pedir socorro, enfiou-lhe
a faca. Nos dois casos, agiu para roubar.
Tirou o cigarro da boca, voltou a recolhê-lo ao bolso do paletó, satisfeito com 
a limpidez de seu raciocínio. Esteve um momento com as mãos nos joelhos, 
procurando 
pensar no trineto, que talvez já houvesse nascido, mas os dois corpos teimaram 
na sua memória. No esforço instintivo para livrar-se deles, sacudiu os ombros. 
Era 
bastante velho para saber que esta vida é cheia de horrores. Nem ele tinha mais 
idade para mortificar-se com as tragédias alheias. Bastavam as que Deus lhe 
dera. 
E nisto reparou que uma figura alta, forte, barba cerrada, olhos levemente 
estrábicos, ia até perto de uma das janelas, na sala do Palácio do Bispo, e dali
voltava, 
vermelho, fazendo estremecer as velhas tábuas do soalho com seus passos 
irritados. Mais perto, parou diante de Dom Manuel, sacudindo na mão iracunda uma
folha de 
jornal amarfanhada:
- Se Vossa Reverendíssima não leu este Estandarte, deixou de tomar conhecimento 
de um dos artigos mais reles que já se publicaram no Maranhão. Nunca vi tanto 
ódio 
em letra de imprensa. O papel parece que foi impresso, não com tinta, mas com 
bílis, e bílispodre. Se me permite, eu leio o artigo para Vossa Reverendíssima.
Dom Manuel pôs-se a rodar os polegares, com uma fisionomia mais doce, a cabeça 
meio inclinada, sentado na sua cadeira austríaca:
- E o meu caro Presidente acha que vale a pena dar-se esse cuidado?
- Sim, sim. Vossa Reverendíssima, como titular da Diocese, precisa conhecer toda
a miséria de que são capazes os meus inimigos
- apressou-se em replicar o Dr. Eduardo Olímpio Machado, arrastando uma cadeira 
para perto do Bispo.
- Se é assim, faça-me mais esse favor - concordou Dom Manuel, puxando as mãos 
para o peito, os olhos baixos, como a concentrar toda a sua atenção na orelha 
esquerda, 
que ouvia melhor.
O Presidente da Província, já sentado, torceu um pouco o tronco, de modo a 
recolher mais luz para a folha de jornal.
- A mofina é longa, mas não vou ler tudo - advertiu. - Um trecho basta: "Os 
exemplos de imoralidade pululam nesta malfadada Província, depois que as rédeas 
do Governo 
caíram nas mãos do Sr. Eduardo Olímpio Machado. Não bastavam, para assinalar a 
mais torpe e corrupta das administrações, os excessos e desatinos de todo o 
gênero, 
as contínuas prevaricações, os esbanjamentos dos dinheiros
111
públicos, as desgraçadíssimas nomeações de homens indignos e corruptos para os 
mais importantes cargos, a proteção dada a criminosos conhecidos como tais, a 
conivência 
com poderosos assassinos, etc. Era preciso que os casos de ofensa aos nossos 
costumes e às nossas virtudes domésticas viessem esmaltar o belíssimo e variado 
quadro 
de nossas felicidades. É glória que ninguém poderá tirar do Sr. Olímpio Machado 
a de haver poderosamente contribuído para implantar e fazer medrar entre nós a 
doutrina 
do comunismo, por ele correta e aumentada."
O Presidente tirou a vista do papel para olhar o Bispo:
- Vossa Reverendíssima entendeu a última frase? Nem eu. Mas ouça agora o motivo 
real dos insultos que me são dirigidos por este pasquim.
E voltando a ler:
"No dia 8 do mês próximo passado, uma menina pertencente a uma das principais 
famílias desta cidade foi tirada por justiça da casa de seus pais pelo Sr. Dr. 
Domingos 
da Silva Porto, amigo íntimo e privado do Sr. Olímpio Machado, o qual, em paga 
dos jantares e pagodes do bom Gosto, o elevou à posição de Vice-Presidente da 
Província 
e Comandante Superior da Guarda Nacional."
O Dr. Olímpio Machado tornou a levantar-se, muito vermelho, quase apoplético. E 
curvando-se, a dois passos do prelado:
- É ainda o caso da Ana Amélia Ferreira Vale. Vossa Reverendíssima sabe de tudo,
não? Pensei que já soubesse. O nosso Gonçalves Dias, amigo íntimo do Dr. Teófüo 
Leal, apaixonou-se por uma cunhada deste, a Ana Amélia, e a pediu em casamento à
Dona Lourença Vale, mãe da moça, e que Vossa Reverendíssima também conhece. O 
Gonçalves 
Dias não é um homem qualquer - é o maior poeta do Brasil e amigo pessoal do 
Imperador. O Maranhão não tem glória mais alta. Pois nada disso teve o menor 
significado 
para a nossa Dona Lourença, diante deste fato, de que o Gonçalves Dias não tem 
culpa: - ser ele mestiço e filho bastardo. E respondeu ao poeta, numa carta 
seca, 
com um não redondo. Não dava a filha a um mestiço. Mas a verdade é que o 
Gonçalves Dias, se quisesse, podia vir a São Luís, e levar a Ana Amélia, que 
estava disposta 
a fugir com ele. E não foi isso que fez. Humilhado, guardou a mágoa. E ao chegar
ao Rio, casou numa das mais importantes famílias da Corte. A Ana Amélia, 
coitada, 
não perdoou a família. E quando o Domingos Porto, que é também bastardo e 
mestiço, lhe arrastou a asa, não hesitou em casar com ele, amparada pela 
Justiça. Vossa 
Reverendíssima já sabe que o casamento dela, aqui em São Luís, foi um deus-nos-
acuda. Parecia que o mundo estava vindo abaixo. As amigas de Dona Lourença 
passaram 
a andar de preto, solidárias com o luto fechado da família Vale. O pai da Ana 
Amélia, instigado por Dona Lourença, foi ao cartório do Raimundo Belo e deserdou
a 
filha, sob a alegação de que a moça
112
tinha casado com o neto da negra Eméria, antiga escrava do Coronel Antônio 
Furtado de Mendonça.
O Dr. Olímpio Machado estava agora debruçado sobre a cadeira, com os antebraços 
apoiados na madeira do espaldar. E procurando os olhos de Dom Manuel, depois de 
uma pausa:
- Vossa Reverendíssima já sabia desse fato? Asseguro-lhe que é absolutamente 
verdadeiro. O Domingos Vale deserdou a filha, por escritura pública, apenas 
porque o 
genro, Vice-Presidente da Província e Comandante da Guarda Nacional, é neto de 
uma escrava! Coisas deste nosso Maranhão, Senhor Dom Manuel da Silveira! Coisas 
deste 
nosso Maranhão!
E endireitando o busto, após outra pausa:
- Vossa Reverendíssima pensa que a família Vale se deu por satisfeita? De modo 
algum. Fez mais. Decidiu levar o Domingos Porto à ruína, na sua casa de 
comércio. 
De um dia para o outro, o Porto se viu com todos os seus créditos cortados. 
Ninguém quis mais negociar com ele. O resultado foi a falência, e o pobre do 
Porto 
obrigado a sair do Maranhão as pressas, para não cair nas unhas de seus 
perseguidores! Um horror, Senhor Bispo! Um verdadeiro horror! Eu, como 
Presidente da Província, 
nada pude fazer para amparálo. Só encontrei negativas. Era a cidade inteira 
contra um homem. E tudo por quê? Porque o Domingos Porto, que é um homem de 
primeira 
ordem, culto, educado, finíssimo, tem a desgraça de ser neto de uma escrava! Que
é que Vossa Reverendíssima me diz a isto, Senhor Dom Manuel? Em que século 
estamos? 
E que terra é esta? Na luta, estou levando as sobras, com os insultos deste 
pasquim!
Na saleta contígua, sentado num comprido banco de pau, de ouvido atento à 
conversa da sala, Damião esperava a vez de ser atendido para entregar ao Senhor 
Bispo a 
carta da Sinhá Velha.
O Chico Benedito tinha-o deixado à porta do Palácio:
- Sinhá Veia mandou eu te deixar aqui. Daqui eu vorto. Sobe a escada, o Bispo tá
lá em riba, diz que tu quer falar com ele. Fica com Deus.
E Damião, atarantado:
- A gente não volta a se ver?
- Deus é que sabe. Hoje mesmo pego o barco que vai pró Turiaçu.
Damião, parado à porta do sobrado, a segurar pela alça a sua maleta de couro, 
esteve para pedir ao velho que esperasse o resultado de seu encontro com o 
Bispo; 
mas, não querendo deixar transparecer a inquietação que o afligia, limitou-se a 
segui-lo com os olhos assustados, até vê-lo desaparecer ao fim do Largo do 
Palácio. 
Agora estava só, na cidade desconhecida, entregue a si mesmo. Tinha no bolso uns
dobrões de cobre e duas moedas de prata, que a mãe lhe dera, à porta da senzala,
para a eventualidade de alguma despesa. Como nunca tivera oportunidade de lidar 
com dinheiro, ainda não
113
sabia o que havia de fazer com ele. Seria o que Deus quisesse. com o tempo, 
venceria as dificuldades de seu caminho. Mais cedo ou mais tarde teria de 
dispensar 
a ajuda alheia.
Ao pé da escada, receou subir com a maleta. Olhou em volta, buscando um lugar 
onde deixá-la. Acabou por levá-la consigo, escada acima, já com a carta na mão. 
Lá 
no alto, não encontrou a quem falar. Ouvindo vozes na sala, achou melhor esperar
no patamar, com a maleta ao pé da cadeira de couro tauxiado que ladeava um 
consolo. 
Intimidado pelo ambiente estranho, que em nada se parecia com o da casa-grande, 
na fazenda, permaneceu de pé, sem saber se podia sentar ou não. O menor ruído, 
vindo 
do interior do sobrado, punha-o de sobreaviso, de mãos frias, parado junto à 
maleta.
Passara dois dias a bordo de um barco e não se cansara de contemplar o mar 
imenso, a perder de vista, muito verde aqui, azul lá longe, e que parecia um ser
vivo, 
que se movia e arquejava. Por que não havia de reconhecer que lhe tivera medo? 
Mas soubera conter os olhos crescidos, e viera olhá-lo de perto, recebendo no 
rosto 
pasmado os borrifos de água que as ondas arremessavam para dentro da embarcação.
Depois, na luz sangüínea da alvorada, ao lado do Chico Benedito, que lhe ia 
explicando 
tudo, assistira à gradativa aparição de São Luís, meio escondida numa névoa 
violácea, depois mais nítida,com seu casario equilibrado no flanco das 
ladeiras, as 
janelas escancaradas para a claridade matutina.
Quando pisara na Rampa de Palácio, quase caíra, não sabendo como dividir a 
atenção - entre os pés, que pisavam as pedras do calçamento, e os olhos, que 
tudo queriam 
ver, ladeira acima. Instintivamente segurara o braço do companheiro, em busca de
apoio. E só lá no alto, já no Largo do Palácio, tinha-se desprendido do Chico 
Benedito.
Ainda bem que, não estando o Bispo no Paço pela manhã, tivera tempo de dar um 
giro pelos arredores, levado ainda pelo companheiro, e assim começara a 
familiarizar-se 
com a vida da cidade - o ruído das ruas, as carroças, as pipas de água, as 
carruagens, os pregões dos vendedores ambulantes, os sobrados rente às calçadas,
os mirantes, 
as lojas, as pessoas debruçadas nas janelas, e tudo o deslumbrara.
Agora, entregue a si próprio, voltava a sentir-se atônito. Afinal, decidindo-se,
resolveu sentar, com a carta na mão.
Ouviu o chão ranger, na peça vizinha, e sentiu que seu coração se acelerava, ao 
mesmo tempo que se lhe esfriavam as mãos. Um senhor gordo, de beiço caído, olhos
mortos, apareceu no vão da porta.
E Damião, de pé, apresentando-se:
- Estou chegando de Turiaçu, e trago uma carta de Sinhá Lustosa para o Senhor 
Bispo.
O outro adiantou a mão fofa e cabeluda:
- Se é só para entregar a carta, deixe ela comigo.
114
- Tem resposta - replicou Damião, apertando mais a carta, como no receio de que 
o gordo lha quisesse tomar.
Mas este, em vez de lhe tomar a carta, segurou-o pelo braço, levando-o por um 
corredor comprido. E deixando-o na saleta:
- O Senhor Bispo está na sala aqui ao lado, em conferência com o Presidente 
Olímpio Machado. Depois que o Presidente sair, o amigo entra e fala com Dom 
Manuel. 
Sente-se neste banco, para esperar a sua vez.
Deu-lhe as costas - umas costas de homem fatigado, muito curvas, e que pareciam 
forçar-lhe a cabeça grisalha para o chão - e recomendou, antes de tornar a 
oprimir 
as tábuas do soalho com seus passos preguiçosos:
- Não demore muito. O Senhor Bispo ainda vai sair.
- Sim senhor.
Damião sentou na ponta do banco, juntando os pés e os joelhos, com a maleta de 
couro ao seu lado. Na posição em que se achava, via uma parte da sala contígua, 
e
não tardou a dar com o senhor alto, meio estrábico, que ia até à janela e 
voltava, com um jornal na mão.
Enquanto lhe ouvia a voz agastada, observou que, na casa velha, de caiação 
falhada, quase tudo estava a pedir conserto urgente. Em alguns pontos do forro 
descascado, 
a tábua cedera, mostrando as telhas sobre os caibros. As marcas das goteiras 
sujavam o chão de tábuas corridas. Dois baldes, um em cada ponto, esperavam a 
chuva 
cair. Na janela que abria para um quintal arborizado, uma rótula fora pregada, à
falta do ferrolho respectivo. No entanto, contrastando com essas mostras de 
ruína, 
havia limpeza no soalho, nos móveis, na imagem de Nossa Senhora da Luz que 
guarnecia um consolo do tempo de Dona Maria L
Tornando a alongar os olhos para a sala, observou que Dom Manuel, ao responder 
ao Presidente Olímpio Machado, falava-lhe em segredo, numa voz cochichada. 
Damião 
só lhe apanhava uma ou outra palavra solta, que não fazia sentido. Acabou por se
fixar, mais uma vez, no envelope que ia entregar ao Bispo. Que diria a Sinhá 
Velha 
naquela carta? E por que o cuidado em lacrá-la? Se era em seu favor, por que não
a mandara aberta? No barco, assim que o tempo levantara, andara a olhá-la contra
a luz, para ver se conseguia ler-lhe ao menos um trecho; mas o linho encorpado 
da sobrecarta apenas deixava perceber a mancha leve da escrita nas pautas do 
papel 
epistolar. Bem podia ser que a Sinhá Velha, ainda com a ferida aberta pela morte
do filho, o houvesse despachado a ele, Damião, para ser passado adiante, no 
mercado
de negros de São Luís, revertendo o dinheiro da venda para a caixa da Diocese.
- Não, não pode ser - argumentava consigo mesmo, guardando a carta na maleta de 
couro. - Sinhá Velha não ia fazer isso comigo. No fundo, ela sabe que eu estou 
inocente.
E nisto voltou a ouvir a voz cheia do Dr. Olímpio Machado:
115
- O resto do Brasil - fique Vossa Reverendíssima sabendo, para sua orientação 
como Bispo da Diocese - não leva a palma ao Maranhão, em matéria de preconceito 
de 
cor. Ou se é branco, e tem todas as graças e regalias, ou não se é, e tem todas 
as desgraças. Pode-se ser o maior poeta do Brasil, bacharel em Coimbra, membro 
do 
Instituto Histórico e amigo pessoal do Imperador, como o nosso Gonçalves Dias, e
isso não vale coisa alguma, aqui no Maranhão, se o pobre de Cristo nasceu 
mestiço. 
Vossa Reverendíssima não faz uma idéia da quantidade de cartas anônimas que 
recebo diariamente no Palácio, pretendendo me abrir os olhos quanto ao Dr. 
Beltrano ou 
a Dona Beltrana - que têm negros no sangue. Já não agüento mais! Este caso do 
Porto foi a gota de água que fez entornar o copo. Um dia destes, largo tudo, vou
embora 
para o Sul, e passem bem!
E como havia elevado muito o tom da voz, no impulso da exaltação, caiu em si de 
repente e voltou a sentar-se, já com o lenço aberto para enxugar o suor que lhe 
bolhava das têmporas:
- Vossa Reverendíssima me perdoe, se me exaltei além da conta. Só com Vossa 
Reverendíssima é que me abro, aqui no Maranhão, e eu já estava a ponto de 
estoirar,
se não desabafasse com um amigo.
Ao recolher o lenço, notou que o Bispo, com as mãos nos braços da cadeira de 
balanço, o olhava sorrindo, ainda de cabeça inclinada.
- Vossa Reverendíssima acha graça? - estranhou, sem dar à voz um tom de 
reprimenda.
- Eu também recebo muitas cartas anônimas, meu caro Presidente, tal como Vossa 
Excelência. Os maranhenses ainda não me perdoaram eu ter feito do Padre 
Policarpo,
que é mulato, o arcediago da Diocese. Quase todos os dias encontro na minha 
correspondência uma carta de protesto, e sempre anônima, chamando de bode o 
pobre do 
padre. Hoje mesmo recebi uma, perguntando-me se o bode tinha berrado muito nos 
campos de Turiaçu. Sabe o que faço nessas ocasiões? Rasgo a folha de papel, 
atiro-a 
ao fogo, e rezo a Deus, pedindo-lhe que perdoe e ilumine o autor da carta. Faça 
o mesmo, meu caro Presidente. Um dia a coisa muda. O importante é ter paciência 
para 
esperar.
- Obrigado pelo conselho. Mas não esqueça que há uma diferença muito grande 
entre nós dois: Vossa Reverendíssima é um santo, e eu, não. Fico fervendo por 
dentro, 
com vontade de fazer uma estralada. Mas, como não sei a quem pegar, para aplicar
a merecida lição, a raiva incha aqui no peito, até que não posso mais, e venho 
despejar minha ira no ouvido cristão de Vossa Reverendíssima.
- Venha quando quiser - replicou o Bispo, vendo que o Presidente apanhava do 
sofá de palhinha o chapéu e a bengala para ir embora.
E levantando-se, com a expressão de quem forceja para reprimir o sorriso, 
aproximou-se:
116
 o meu caro Presidente sabe guardar segredo? Pois então
vou-lhe fazer uma confidencia. Eu também, no começo, fervia: hoje não fervo 
mais.
Riram os dois, olhando-se mutuamente. E como o Bispo fizesse menção de 
acompanhá-lo, o Presidente reteve-o no seu lugar, depois de curvar-se para 
beijar-lhe o anel:
- Não se incomode. Eu conheço o caminho.
Damião viu a mão do Bispo acabar de puxar a cortina, para dar espaço ao vão da 
porta, e por ali passou a figura alta do Dr. Olímpio Machado, logo seguida por 
Dom 
Manuel. Os dois passaram por ele, dando o Bispo a impressão de que não o tinha 
visto. Caminharam pelo corredor, sempre estalando as tábuas do soalho, e ainda 
conversaram 
alguns minutos no patamar da escada.
- Até outro dia, Dom Manuel.
- Deus o acompanhe, Senhor Presidente.
E enquanto, na rua, em frente ao Paço, rolava a carruagem', ao galope dos 
cavalos, o Bispo tornou a atravessar o corredor, depois passou pela saleta, de 
volta à 
sala. Só aí deu com o Damião, de pé, à sua espera, com a carta na mão.
Firmando o olhar no rosto do negro, perguntou, prendendo-lhe a mão:
- Tu não és o escravo do Dr. Lustosa que queria ser padre? Logo vi que a tua 
fisionomianão me era estranha. Como te prometi, falei ao teu senhor. Ele me 
disse que 
não podia abrir mão de teus serviços. Precisava de ti na fazenda. Em todo caso, 
como eu insisti, prometeu que ia ver. Pelo que vejo, não faltou com a palavra. É
dele esta carta?
- Não, Senhor Bispo. É de Sinhá Lustosa, mãe do Doutôr replicou Damião, com um 
ríctus de dor, retraindo a mão que o prelado segurava.
E Dom Manuel, com estranheza, reparando na palma cicatrizada:
- Andaste te queimando? O que foi isso? Damião baixou os olhos, embaraçado.
E Dom Manuel, adivinhando:
- Palmatória?
- Sim, Senhor Bispo.
- Foi teu senhor?
E Damião, depois de confirmar com a cabeça:
- Primeiro, apanhei de palmatória; depois, de relho, amarrado ao tronco. A 
intenção do Doutôr era me surrar muito e em seguida me castrar. Mas morreu de 
repente, 
quando me batia.
- Teu senhor morreu? O Doutôr Lustosa? E foi tão grande assim a tua falta?
- Não, Senhor Bispo. Eu estava inocente.
E Dom Manuel, travando-lhe do braço, levou-o para a sala:
117
- Vem comigo. Preciso saber o que se passou. Não me escondas nada. Estás falando
com um sacerdote. com um Bispo - acentuou.
Fez Damião sentar numa cadeira, ao mesmo tempo que ocupava a outra, com uma 
fisionomia fechada, os movimentos nervosos:
- Não te envergonhes de me dizer a verdade, toda a verdade, só a verdade, 
sabendo que Deus também está te escutando. Podes falar.
E em silêncio, a mão em concha na orelha esquerda, de vista baixa, sisudo, ouviu
o relato de Damião, sem interrompê-lo uma só vez, ainda com a carta fechada na 
mão direita. Sombreara mais o rosto, de sobrancelhas contraídas, apertando de 
vez em quando os maxilares.
E quando Damião se calou:
- Que horror! O que tu acabas de me contar me enche de amargura. Como é possível
conciliar tanta crueldade com o sentimento cristão? Os homens precisam muito da 
misericórdia divina. Mais do que se pensa. Todos os dias, ouço crueldades como 
essa, aqui mesmo em São Luís. Isso precisa acabar! Não se pode continuar assim!
Depois de um suspiro profundo, que lhe tufou o peito, rasgou um dos cantos do 
envelope, devagar, e levou o rasgão até o outro canto, sem pressa de tirar dali 
a carta. 
Como o vento entrasse da rua ao golpe de uma rajada, batendo uma das janelas, 
foi até lá, prendeu-a à taramela do caixilho, e voltou para a sua cadeira 
austríaca 
a um canto da sala, com a carta fora do envelope. Correu os olhos pelas 
primeiras linhas do papel tarjado, foi até o fim da página, a apertar de vez em 
quando o 
meio do lábio inferior, e depois repetiu a leitura, voltando lentamente a folha,
sempre de sobrancelhas travadas.
Pelas quatro janelas sobre a rua, podia-se abranger quase todo o Largo do 
Palácio, com seu duplo renque de sobradinhos de azulejos e suas árvores ainda 
novas, reviçadas 
pelas chuvas do inverno. Mais adiante, depois da fachada comprida do Palácio do 
Governo, era a amurada sobre o Cais da Sagração, com a rampa de pedra que ia até
o mar. Tudo deserto, àquela hora de sol forte.
Mas Damião, desde que ali entrara, só de relance alcançava a paisagem, na 
intensa luz da tarde: todo ele se concentrava na atenção com que observava a 
figura do
Bispo. Via-o agora concluir a leitura da carta, fechado em si, com uma ruga mais
funda subindo-lhe pela testa; tardou uns momentos com os olhos baixos, 
pensativo,
como a refletir sobre a providência a tomar; por fim, dobrou o papel tarjado, 
recolheu-o ao envelope, pôs-se a bater com a ponta dos dedos nos braços da 
cadeira.
A pedra de seu anel falseou na claridade, descrevendo um círculo de luz mais 
viva que alcançou o teto e terminou por aquietar-se ao meio da parede, ao mesmo 
tempo
que a mão nervosa se imobilizava, e ele ergueu o olhar para Damião, ainda sem 
lhe falar.
O espelho grande da sala, por cima de um velho consolo de jacarandá, repetia a 
figura magra do negro, que parecia agora sustentar com o prelado o jogo do siso,
na imobilidade das pálpebras e das
118
pupilas. Vestido com simplicidade, a camisa de algodão por cima das calças de 
riscado, os pés espalhados nas sandálias abertas, tinha contudo uma dignidade 
natural, 
própria de sua figura esguia, com os antebraços caídos para as coxas, sem apoiar
o dorso no espaldar da cadeira. E como o espelho o apanhava mais de lado que de 
frente, destacava-lhe a orelha pequena, o pescoço rijo alongando-se para o 
ombro, os lábios carnudos levemente avermelhados, o nariz meio achatado, o 
queixo quase 
sumido, o cabelo aparado rente, e a pele muito negra, de um negro tirando a 
fosco, confirmativa da estirpe superior de sua raça africana - raça de 
guerreiros insubmissos, 
muito ciosos de sua agilidade e de sua força, só por traição jogados um dia no 
porão de um navio negreiro, a caminho do exílio e da escravidão.
- Queres mesmo ser padre, Damião? - perguntou o Bispo, sempre segurando a carta.
- Torno a te dizer que não é padre quem quer, mas quem tem inclinação para o 
ministério 
de Deus. Esse ministério exige sacrifício, e sacrifício constante, de todos os 
dias. Sinhá Lustosa usou de franqueza nas informações a teu respeito. Tu não te 
dobras
com facilidade, tens um gênio obstinado e és altivo. O ministério de Deus exige 
sobretudo humildade. Muita humildade mesmo.
- Sim, Senhor Bispo.
- Além do mais, já és um homem feito, e é quase sempre no menino que principia o
sacerdote.
- O esforço que for preciso fazer, eu faço - interrompeu Damião, no temor de uma
negativa. - Não há sacrifício maior do que ser escravo, e escravo eu sou. Só 
que, 
em vez de ser escravo de outro homem, quero ser escravo de Deus - acrescentou, 
de olhar iluminado.
Dom Manuel aprovou com a cabeça, satisfeito. E tornando a anuviar o rosto, 
depois de um silêncio:
- Não te esqueças de que tens outro obstáculo no teu caminho, e muito sério: és 
negro. Não há sacerdote negro. O Padre Policarpo, que é mulato, teve de vencer 
uma 
corrida de obstáculos para poder ordenar-se, e fora daqui. Contigo, que és mesmo
negro, a luta vai ser maior, muito maior.
E Damião, numa voz suplicante:
- Vamos tentar, Senhor Bispo. Talvez eu consiga vencer, como venceu o Padre 
Policarpo.
Dom Manuel levantou-se, deixou a carta no tampo do consolo, caminhou até o fim 
da sala. Passou por Damião, tornou a passar, foi até à janela. E quando voltou, 
parando 
defronte do preto, que também se levantara, preocupado:
- Farei a experiência contigo - decidiu. - Não vai ser fácil. E não depende 
apenas de ti. Em todo caso, vamos tentar. Antes dos estudos maiores, tens de 
estudar 
coisas elementares, em companhia de meninos. Como és preto e homem feito, não 
vão te receber bem. Mas já estás avisado. Terás também a ajuda do Padre 
Policarpo, 
com quem vou conversar a teu respeito, ainda hoje.
119
Damião sorria, mostrando a fileira alva dos dentes, com uma luz úmida no olhar, 
enquanto outra lufada entrava na sala, tufando as cortinas puídas, sacudindo as 
janelas e trazendo da rua uma nuvem de pó, ao mesmo tempo que irrompia nas 
árvores do largo a bulha dos bem-te-vis.
- Mas há ainda uma condição, imposta por Sinhá Lustosa na sua carta - 
acrescentou o Bispo, descansando a mão direita no ombro de Damião e olhando-o de
frente. - 
Não te poderás preparar para ser padre, sendo escravo. Ela também concorda com a
tua alforria mas desde que me ajudes (vê bem!) a rezar trezentas missas, sendo 
uma por dia, pela paz da alma do Dr. Lustosa. Eu, por mim, aceito a proposta. E 
tu?
Apanhado pela surpresa da condição estranha, Damião demorou o olhar nos olhos do
Bispo. Trezentas missas? Durante quase um ano? Para ajudar a dar o Céu à alma do
senhor que morrera de chicote em punho, castigando-o? E depois de encher o 
peito, no esforço para reprimir o impulso da revolta:
- Eu também aceito, Senhor Bispo.
D1
DE SEUS TEMPOS DE INICIAÇÃO ECLESIÁSTICA, que lhe tinham parecido um céu aberto,
depois dos anos de humilhação e tortura na fazenda, o que Damião mais lembrava, 
de mistura com as imagens do quintal arborizado do Paço Episcopal, era a figura 
meio tosca do Padre Tracajá, sempre de batina sovada, um livrodebaixo do braço 
e o cabelo crescido a cair para as orelhas.
- Tu vens morar aqui - tinha-lhe dito o Bispo, na tarde em que o recebera. - Vai
falar, de minha parte, lá embaixo, com o Padre Policarpo, para que dê um jeito 
de te acomodar num dos quartos que dão para o quintal. Não te espantes, que ele 
vai resmungar,
coçar a cabeça, amarrar a cara, dizendo que os quartos estão todos 
ocupados; mas, no fim, descobrirá um canto onde possas armar a tua rede e 
guardar a tua maleta.
E tomando por um corredor largo, que ia dar ao fundo do sobrado, levou Damião 
até o patamar da escada de madeira:
120
- Desce por aqui. Lá embaixo, segue pela calçada. É na segunda porta, à direita.
A estas horas, o Padre Policarpo deve estar lendo. Primeiro, espera que ele 
feche 
o livro; depois, fala com ele.
Na casa velha, de dois pavimentos, atulhada de trastes antigos, com severos 
retratos nas paredes, imagens de santos por toda parte, castiçais azinhavrados, 
um forte 
cheiro de mofo e estearina, reinava uma espaçosa paz de convento, sobretudo para
os lados do parque. As velhas árvores esgalhadas, que sombreavam o terreno 
coberto
de folhas caídas, pareciam esperar pelos velhos monges meditativos, que se 
aconchegariam nos bancos de pedra, ao pé do muro enramado de trepadeiras, com a 
sua Bíblia 
ou o seu Breviário, à hora do entardecer..
Embora Damião batesse, repetidas vezes, na segunda porta à sua direita e que 
encontrou fechada, ninguém saiu a recebê-lo. Descansou a maleta no chão, 
sentindo que 
a mão lhe doía, e foi caminhando até o fim do sobrado, para ver se dava com 
alguém que lhe dissesse onde andava o Padre Policarpo. Dentro do quarto é que 
não podia 
estar. Já vinha de volta, disposto a ir de novo ao encontro do Senhor Bispo, 
quando descobriu um senhor escuro, metido numas calças caseiras, com um chapéu 
de palha 
a cobrir-lhe a cabeça, e que corria o gadanho pelas folhas caídas, limpando o 
caminho que ia ter à carranca de pedra de um chafariz.
- Boa tarde, amigo - saudou Damião, aproximando-se. Podia me dizer onde posso 
encontrar o Padre Policarpo?
- Está falando com ele.
Desconcertado com a resposta, que talvez fosse uma pilhéria, Damião olhava o 
outro ensaiando o riso, sem saber se devia aceitar ou pôr em dúvida o que 
acabara de 
ouvir. Veio-se chegando mais para perto, e pôde identificar, a poucos passos, na
figura compacta, pelo rosto queimado e cortado de pequenas rugas, o padre que 
havia 
acompanhado o Bispo na visita à fazenda. E essa impressão se confirmou quando 
ele, deixando o gadanho, avançou no sentido de Damião, tirando o chapéu e 
sacudindo 
o suor que lhe banhava a testa.
E Damião, sério:
- Estou chegando de Turiaçu, trouxe uma carta para o Senhor Bispo, e ele me 
mandou falar com o senhor, para ver se acha um lugar onde eu possa ficar, aqui 
mesmo 
no Palácio.
- Aqui? Não estou entendendo mais o Senhor Bispo. Não há mais espaço para nada, 
aqui embaixo. Todos os quartos estão cheios de alfaias de igreja, que o Senhor 
Bispo 
trouxe do interior. Quando não são as alfaias, são os santos, as pratas e os 
trastes velhos. Tudo tomado. E ainda por cima com o sobrado em petição de 
miséria. 
No meu quarto, já não posso me mexer. Mal tenho espaço para a minha rede. De 
noite, sou obrigado a fechar a porta e a janela, por causa dos morcegos. Mas 
ficam os 
ratos, que se enfiam por baixo da porta. Um deles, semana passada, já chegou ao 
cúmulo de roer as solas de
121
meu chinelo. E é aqui que o Senhor Bispo mandou que eu achasse lugar para mais 
uma pessoa? Será que o Senhor Bispo pensa que eu, com os quartos do Paço 
Episcopal, 
posso fazer o milagre de Nosso Senhor Jesus Cristo com os pães e os peixes? Não,
não pode ser.
E arrastando as sandálias no capacho da porta, para sacudir a terra da sola, 
meteu a chave na fechadura, sempre de cara trombuda:
- Espere aqui, que eu já volto.
Entrou no quarto, cerrando a porta com uma pancada aborrecida.
Atônito, Damião estava vendo o momento em que seria posto no olho da rua, com a 
sua maleta de couro, para que se arranjasse como pudesse. E que ia fazer na 
cidade 
estranha, sem conhecer ninguém, nem saber onde podia alojar-se, com as poucas 
moedas que trazia no bolso? Toda a sua aflição tinha-lhe subido aos olhos, que 
se
fixavam, cheios de medo, na porta fechada à sua frente. E quando esta voltou a 
abrir, já o Padre Policarpo estava de batina, com um livro sobraçado, trazendo 
nas 
mãos uma cambada de chaves, ainda de rosto amarrado.
- Venha comigo - disse ele a Damião.
E defronte da porta seguinte, contígua à janela de seu quarto, procurou a chave 
na cambada, tentou enfiá-la na fechadura. Como não girasse, resmungou, 
aborrecido, 
e experimentou outra. A fechadura cedeu, e logo uma nuvem de pó dançou na luz 
que invadiu o aposento, ao mesmo tempo que a folha da porta corria para dentro, 
batendo 
na parede.
Era um quarto estreito, atafulhado de armários e cadeiras, numa desordem de 
acomodação precipitada. Um Santo Inácio de gesso, todo escalavrado na cabeça e 
nos braços, 
parecia presidir, com seu ar reflexivo, de caveira em punho, aquele pandemônio 
de belchior, imóvel no meio da peça. Mais adiante, quase do tamanho natural, um 
Santo 
Antônio de madeira, despojado do Menino Jesus, guardava a porta de uma alta 
estante envidraçada, repleta de alfarrábios e encimada por uma mitra solene, 
picada pelas 
traças.
- Acha que pode ficar aqui? - perguntou o padre, com o lenço no nariz, para se 
defender da poeira, e sem se voltar.
- Posso - respondeu prontamente Damião.
Num relance do olhar, tinha visto que, se dispusesse melhor os bregueços e 
santos ali deixados, poderia abrir a janela, arejando o aposento, e ter espaço 
para armar 
a sua rede.
- Se pode, o quarto é seu - afirmou o padre, já agora interessado em saber como 
o preto se meteria ali dentro. - Precisa dar-lhe uma limpeza em regra - 
acrescentou. 
- Vassoura e pá de lixo o amigo encontra no último quarto. É só empurrar a 
porta, que está encostada. Como é seu nome?
- Damião.
E enquanto o Padre Policarpo, meio curvo, o cabelo liso descendo para as 
orelhas, saía ao quintal, no seu passo preguiçoso, em
122
direção ao banco onde sempre lia, Damião abriu de par em par a janela do quarto,
depois de arredar um dos armários, e começou a conquistar o espaço de que 
necessitava
para alojar-se. Aos poucos, embora lhe doesse a palma das mãos, foi abrindo 
caminho, com uma melhor disposição dos velhos trastes ao fundo do aposento, e o 
certo
é que, pelo fim da tarde, quando o padre voltou, ainda sobraçando o seu livro, 
com os olhos mais empapuçados pelo esforço da leitura, não pôde deixar de 
espantar-se, 
ao ver que a metade do quarto estava livre, de chão varrido, a rede armada, a 
estante dos alfarrábios desafogada da vigilância de Santo Antônio. Até mesmo uma
pequena 
mesa de tampo corrido, que teria vindo de alguma sacristia com o fecho 
emperrado, sobressaía junto à estante, com a cadeira competente, recebendo luz 
direta.
Parado à porta, a olhar por cima dos óculos, o padre sorria, aprovando com a 
cabeça. E levantando a vista para o preto, que descansava as duas mãos na 
extremidade 
do cabo da vassoura:
- Não há a menor dúvida, Damião: começaste bem. Acabas de dar um peido cheiroso.
Meus parabéns.
À noitinha, logo após o jantar, indo e vindo pela calçada de pedra que 
perlongava o quintal, o padre indagou a Damião, sem alterar o ritmo vagaroso das
passadas 
digestivas:
- Queres mesmo ser padre? Vê lá o que vais fazer. Estás trocando um cativeiro 
por outro. Queira Deus dê certo. Duvido
muito. E duvido mais ainda que, preto retinto
como és, te deixem abrir uma coroa nessa cabeça de carapinha. Tomara que eu 
esteja enganado.
E já nessa noite, fez que Damião, à hora de recolher-se, lhe providenciasse a 
bilha de água e o copo de leite, além de lhe trazer, convenientemente lavado, o 
penico
de louça inglesa, que lhe servia para mijar e cuspir. Depois, como custasse a 
dormir, escanchou-se na rede, metido no seu camisolão folgado, que lhe ia até os
pés,
e mandou que Damiãoocupasse a cadeira de palhinha, ao pé da porta.
- Senta-te aí. Enquanto o sono não me vem, vou-te pôr a par dos hábitos da casa.
Nosso Bispo acorda cedo. Às cinco horas, quando os galos estão cantando, já se 
ouvem 
as passadas dele, aqui por cima de minha cabeça. Tens de te regular por ele. Às 
sete horas, depois da missa, que é rezada por Dom Manuel, serve-se o café, lá em
cima, na copa. Somos cinco à mesa, à hora das refeições: o Bispo, eu, o 
arcipreste, o chantre e o mestre-escola. Vai-te habituando a servir. 
Naturalmente Dom Manuel 
vai mandar que te ensinem a servir. Dos dignitários da catedral, só eu moro 
aqui, por bondade do Senhor Bispo, que me deixou ficar no quarto onde me pôs Dom
Carlos, 
já faz muitos anos, quando vim fazer companhia aos ratos e aos morcegos. Agora, 
vens tu, e passas a ser meu vizinho. Como Dom Manuel quer fazer de ti padre, 
despachou-te 
para cá. Podia ter-te mandado para a parte dos fundos do sobrado, onde moram os 
subalternos e um artista. Os subalternos são dois: o cozinheiro e o sineiro. O 
cozinheiro
123
é o mestre Ambrósio, a quem devemos tratar muito bem, porque, no fim das contas,
é quem nos alimenta. Quanto ao sineiro, o Vivi, tem um talento especial para 
bater 
o sino na hora em que estamos dormindo. É o tipo perfeito do desmancha-prazer. O
organista Teodoro, que se diz educado na Itália, mora também com eles: é um 
velho 
rosado, sempre de olho no vinho da missa, e ora toca bem, ora toca como a cara 
dele, sem perder a mania de tocar peças profanas, todas as vezes que o Senhor 
Bispo 
anda longe. Há ainda o pessoal avulso, que não dorme aqui. Começo pelo Firmino, 
que se diz secretário do Senhor Bispo, e fica lá em cima, repimpado numa 
cadeira, 
todas as vezes que Dom Manuel recebe visitas. bom sujeito. Alma pura, cheia de 
bondade. Mas com a mania de se confessar todos os dias, para aliviar-se de 
pecados 
que Nosso Senhor não pode levar a sério: - que não dobrou direito a cabeça 
quando o Senhor Bispo passava; que teve vontade de soltar um traque quando 
estava ajoelhado;
que arrotou na hora de receber a hóstia, e outras coisas parecidas. Conto-te 
essas coisas porque ele, além de contá-las quando se confessa, passa-as adiante,
com 
o mesmo ar pesaroso, para quem quiser ouvi-las, logo que sai do confessionário. 
Não sabe guardar segredo. Nem os dele. Mas boa pessoa. De vez em quando aparecem
aqui várias beatas. Conheço-as pelo cheiro de formiga e a fita no pescoço. Não 
me dou ao trabalho de saber o nome delas. Chamo a umas de minha filha, e a 
outras 
de minha velha, conforme o cheiro e a idade.
Apanhou do chão, ao pé da rede, o maço de cigarros e a caixa de fósforos, e 
ficou a balançar-se, com o cigarro pendurado no canto da boca. E enquanto a rede
ia 
e vinha, prosseguiu, com a cabeça envolta pela fumaça do cigarro forte:
- Não vou te dizer, uma a uma, as batinas da Sé, que são muitas. Ficadas tonto. 
Por enquanto, fica sabendo que há nomes que só com o tempo te entrarão na 
cabeça. 
Por exemplo: prioste-geral, prioste das benesses, mestre-de-cerimônia do sólio, 
mestre-de-cerimônia do cabido, penitenciário da Diocese. De modo especial, 
recomendo-te 
que guardes este nome comprido: tesoureiro da mitra, do cofre das cauções e das 
obras pias, e tesoureiro-mor da fábrica da catedral. Tudo isso, que daria pano 
para
as mangas, pertence a um cônego magrinho, baixinho, apertadinho, o Cônego Pinto.
Nunca vi nome mais apropriado. Não merecia outro. Quando ele passar por ti, não
te esqueças de exagerar nas reverências. É ele quem guarda o dinheiro. Um dia, 
querendo Deus, tens de te haver com ele. Não lhe esqueças o nome nem o título: é
o Arcipreste Pinto. Vem aqui todas as tardes, com a chave do cofre. Entre os 
defeitos com que a natureza o distinguiu, sobressai este: pensa que o dinheiro 
da 
mitra é mesmo dele, e que todos nós somos seus dependentes. Mas já vejo que 
estás com sono como eu também, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Não, não estou com sono, Padre Policarpo - negou Damião.
124
- Estás bocejando com a boca fechada. Conheço o truque. Não se ensina padre-
nosso a vigário. Pede perdão a Deus pelo pecado.
E levantando-se da rede, olhou em volta:
- Tenho que te dar um candeeiro. Espera um momento.
Foi ao fundo do quarto, com os pés nos chinelos cambados, a barra do camisolão 
arrastando nas tábuas do soalho, espiou pelos cantos, arrastou um armário, 
riscou 
meia dúzia de fósforos e voltou com um castiçal e uma vela por acender.
- Deram sumiço no candeeiro. Não foi o primeiro. Contenta-te com este castiçal. 
Olha que é de prata portuguesa, coisa fina, de luxo, e que só se usa para 
iluminar 
o Cristo nos velórios graúdos. Está é sujo.
De passagem pela estante, encheu a mão de livros.
- Leva estes livros, para que aprendas a te desemburrar por ti mesmo. Queima as 
pestanas de noite, se puderes afugentar o sono, ou então lê de madrugada, quando
a cabeça está fresca.
Damião ia saindo, já com o castiçal de vela acesa e os livros sobraçados, quando
o padre o chamou, de novo na rede:
- Se ouvires falar aí por fora, ou mesmo aqui dentro, no Padre Tracajá, fica 
sabendo que sou eu. Me botaram esse apelido num dos pasquins de nossa terra, e a
coisa 
pegou. Há beatas que só me chamam assim. Pensam que sou mesmo Tracajá. Podes me 
chamar de Tracajá, mas pelas costas; na minha presença, me chama de Padre 
Policarpo. 
Padre Policarpo Soares.
E com um gesto, que mandava Damião sair:
- Quando passares, bate a porta. Até amanhã. Deus te abençoe. No seu quarto 
comprido, assim que passou a chave na porta,
Damião descansou o castiçal sobre a pequena mesa de tampo corrido e ficou 
olhando em volta, com a consciência de sua nova vida. Só agora, quando ia 
deitar-se, exausto 
das emoções do longo dia, podia ajuizar com nitidez o passo que tinha dado. 
Nunca tivera um canto como aquele, unicamente seu. E nisto começou a ouvir, por 
cima 
do sussurro do vento nas árvores do quintal, o bater de tambores rituais. Como 
não conhecia ainda a cidade, senão pela volta da Praia Grande e do Cais da 
Sagração, 
na companhia do Chico Benedito, não sabia dizer ao certo de onde vinham aqueles 
tantantãs compassados, tocados por mãos de negros. Era o mesmo batecum 
inconfundível, 
que todos os ouvidos podem ouvir, mas que só os negros realmente escutam, com as
vivências nostálgicas de sua origem africana. E aos poucos, devagarinho, sentado
na rede, depois de soprar a vela, deixou-se envolver pela saudade da mãe, da 
irmã, dos companheiros da fazenda, na senzala banhada de luar. O contrãvento de 
manga 
esfumaçada arregalava o seu olho vermelho sobre a bandeira da porta, como que 
vigiando os negros que dançavam no terreiro, ao som dos tambores e das cabaças. 
Mas 
não eram apenas essas imagens nítidas que lhe afluíam à consciência alvoroçada. 
Sentiu
125
que não estava só. Um sentimento indefinível, que parecia desprendê-lo do mundo 
e do tempo, crescia em seu espírito, e ele teve a impressão de quê se fundia 
ainda 
mais à sua raça, longe, muito longe, do outro lado do mar, nas infindáveis 
selvas primitivas, ao mesmo tempo que se lembrou da figura alta do pai, no 
remanso e na 
paz do quilombo.
Quando acordou, madrugada alta, já os tambores estavam calados. Só ouviu o 
sibilo do vento, que subia as ladeiras da cidade e trazia consigo o sussurro do 
mar. De 
manso, sem ruído, entreabriu a porta, ergueu o olhar para ver a altura das 
estrelas. com certeza, o dia não tardaria a raiar.
De orelha atenta, debalde esperou, durante alguns minutos, as passadas do Senhor
Bispo nas velhas tábuas do soalho. Como havia perdido o sono, levantou-se, saiu 
ao quintal. Ainda encontrou cá fora a noite fechada. Uma aragem fresca, úmida de
orvalho, veio ao seu encontro, batendo-lhe no rosto repousado, e ele foi pisando
as folhas caídas, por entre o tronco das árvores, até o muro coberto de musgo ao
fundo do quintal, a cavaleiro da ladeira que escorregava para o Cais da 
Sagração.
Ali, trepado no banco de pedra junto à carranca do chafariz, alongou a vista no 
sentido do mar.Longe, o farol da Ponta da Areia. Mais longe ainda, o farol de 
Alcântara. 
E por cima das águas que a escuridão encobria, as lanternas dos barcos 
ancorados.
A claridade veio vindo devagar, à sua direita, e foi-se abrindo em leque, a 
misturar tons vermelhos e róseos; a massa cinzenta do mar se destacou, imóvel a 
princípio, 
depois levemente ondulante, imersa na luz desmaiada que ia esbranquecendo as 
últimas sombras da noite. Quando o sol apontou, por cima da orla escura dos 
telhados, 
a sangrar como um olho ferido, toda a paisagem repentinamente se coloriu, e 
alvejaram as fachadas, as torres das igrejas, os mirantes dos sobrados, enquanto
velas 
azuis, pardas, cor de terra, se recortavam contra o horizonte, com as primeiras 
gaivotas roçando a crista das vagas.
E nisto Damião ouviu a voz pastosa do Padre Policarpo por cima do ruído da água 
que rolava do chafariz:
- Fui ao teu quarto e não te achei. Pensei que tinhas fugido. Por descargo de 
consciência, resolvi dar uma volta no quintal. Anda, desce daí. Temos missa na 
Sé, 
oficiada por Dom Manuel, e não vai demorar.
Fungou forte, limpando ruidosamente as narinas. E enxugando-se na toalha de 
felpo que lhe pendia dos ombros:
- Mas, antes da missa, bota ordem no meu quarto. Não te esqueças de despejar o 
penico.
O padre ainda estava no camisolão de dormir, com um ar mais cansado que na 
véspera - os cabelos em desalinho, a barba por fazer, os olhos empapuçados. E 
sempre 
a enxugar-se, esfregandoa
126
papada, ao ver que Damião se afastava, ergueu a voz, sem interromper os 
movimentos da toalha:
- Na privada velha há uma vassoura de talos para a limpeza do penico. Está por 
baixo da pia, do lado direito. Se os ratos não levaram.
Damião voltou a encontrá-lo na nave da catedral, depois de dar uma volta longa 
para descobrir o passadiço que, por dentro, atravessando um jardim maltratado, 
ia 
ter à sacristia. Entrou assustado, vendo a missa começada, e ficou de pé, à 
esquerda das duas orlas de bancos, com as mãos nas axilas. Atarantou-se um 
momento, 
tanto com a nave imensa quanto com o fulgor das velas no ouro dos ornatos: 
deixou cair
o lábio inferior, relanceando o olhar pasmado para os nichos, os bancos,
as imagens, o teto pintado, a grade do coro, antes de fixar-se na figura ancha 
do Bispo, revestido de uma casula cintilante, com uma cruz nas costas.
Ajoelhado defronte do altar-mor, o Padre Policarpo só não se confundia com as 
beatas de preto, que salpicavam os bancos da nave àquela hora matutina, porque 
abrira
recentemente a coroa. E era a sua voz potente que ressoava a cada instante, 
respondendo em latim, sem olhar para o missal, o latim corrido que Dom Manuel ia
cantando 
por entre mímicas e genuflexões.
Por mais que ensaiasse concentrar-se, para dar toda a atenção possível à 
cerimônia, Damião acabava por distrair-se com o próprio culto, sem poder 
alcançar o sentido 
de seus mistérios. Volvia aos poucos ao espanto da capelinha da fazenda, até que
a musicalidade das palavras, o tinido da sineta, o som do órgão, a atitude 
prosternada 
dos fiéis, o cheiro suave do incenso queimado, a luz que incendiava os vitrais, 
como que lhe penetraram o espírito, e ele se acercou da ponta do banco mais 
próximo, 
meio encabulado, sem saber se fazia bem ou se fazia mal, e também se ajoelhou.
Ao fim da missa, parou à porta da sacristia, esperando que o Bispo lhe desse 
ordem para entrar. Havia ali outros padres. Do meio deles destacou-se o Padre 
Policarpo, 
que o chamou:
- O Senhor Bispo quer te falar - disse e afastou-se.
E foi o Bispo que veio ao seu encontro, com surpresa dos outros padres, que logo
se entreolharam, num esboço de reprovação, sobretudo quando viram que Dom Manuel
punha a mão no ombro do negro:
- Logo que estejas preparado - preveniu-lhe Dom Manuel, olhando-o nos olhos com 
uma expressão de bondade - podemos
começar as missas pela paz da alma de teu senhor. O Padre Policarpo vai te 
ensinar o que tens de fazer. Ele me falou de ti com grande simpatia.
127
PARA DAR A SUA AULA MATUTINA, todos OS dias, no Convento de Santo Antônio, o 
Padre Tracajá podia escolher vários itinerários. Ele, entretanto, desde que ali 
entrara,
para ensinar português e história sagrada no Seminário, insistia no mesmo 
caminho, que poderia percorrer de olhos fechados: contornava a calçada da Sé, 
provia-se
de cocadas no tabuleiro da Genoveva Pia, descia a ladeira da Rua dos Afogados, 
tomava adiante a Rua de São João, e não tardava a chegar ao Largo de Santo 
Antônio,
que sempre lhe parecia muito limpo, com a igreja alvejando ao fundo, caiada de 
novo, e mais os dois renques de janelinhas do Convento, logo ao lado, debaixo 
das
telhas risonhas de um beiral.
Ainda na Rua dos Afogados começava a comer as cocadas, sempre de modo discreto e
disfarçado, que não lhe quebrava a circunspeção, e que consistia em meter a mão
no bolso da batina, quebrar ali dentro o pedaço que ia ser comido e levá-lo à 
boca com extrema rapidez. Ao chegar ao Largo de Santo Antônio, só lhe restava 
uma
cocada, que reservava para a volta, quando precisava distrair a fome impaciente,
debaixo do sol quase a pino.
Dia sim, dia não, nesse regresso metódico, mudava de caminho, e ia pela Rua de 
São João até o Largo de Santiago. Almoçava numa meia-morada pintada de
ocre, e ali também dormia a sua sesta, para estar de novo no Paço pelo meio da 
tarde.
Nos outros dias, quando voltava diretamente para o Paço, trocava a Rua dos 
Afogados pela Rua do Sol, para evitar o esforço de subir a ladeira, e ainda 
apanhava a
Genoveva Pia no seu ponto, já com o tabuleiro quase vazio. Tornava a prover-se 
de cocadas, que a negra
sempre deixava de reserva para ele, e ia direto para o seu
quarto. Metia-se depois no banheiro, mergulhava na tina de água, e saía outro. 
Ainda de cabelos molhados, subia para o almoço. Já ali estavam o Padre Lula, 
Monsenhor
Tavares e o Cônego Pinto, à espera do Senhor Bispo. Às vezes aparecia um ou 
outro vigário do interior, que também sentava à mesa, um tanto desabituado do 
talher
e do guardanapo.
Se havia visita, o ambiente era austero, pouco expansivo. Mas mudava muito, com 
risos derramados e ditos chistosos, quando eram
128
somente os quatro, na companhia de Dom Manuel. Até mesmo o Cônego Pinto, que 
tinha a cara fechada, ensaiava rir de lado, escondendo com a mão canhota a falha
da
dentadura.
Foi à mesa, numa dessas ocasiões, pelo fim do almoço, que o Senhor Bispo 
perguntou pelo Damião ao Padre Policarpo, enquanto se desfazia o riso provocado 
por Monsenhor 
Tavares, que terminara de contar o último rompante de Donana Jansen, ocorrido à 
saída da missa, na igreja de Santo Antônio - quando a velha foi vista soltando 
um 
muxoxo, depois de uma rabanada de desdém, ao passar pelo nicho de São Benedito.
Padre Policarpo respondeu de boca cheia, correndo o guardanapo pelos cantos da 
boca, para limpar a farinha da farofa:
- Vossa Reverendíssima já pode chamá-lo para ajudar a missa. O preto tem ótima 
cabeça. Basta ensinar uma vez, que ele guarda tudo. Um assombro de memória. 
Semana 
que vem, vou passar a leválo comigo para as primeiras aulas no Seminário.
O Padre Lula, depois de um silêncio, voltou-se para o Senhor Bispo, sem esconder
de todo o seu assombro:
- Vossa Reverendíssima pensa encaminhá-lo mesmo para o sacerdócio?
Os outros padres, com exceção do Padre Policarpo, que ainda não cruzara o 
talher, ergueram a vista para Dom Manuel, interessados na resposta. E o Bispo, 
confirmando 
também com a cabeça:
- Estou com essa intenção.
Monsenhor Tavares começou por dobrar o guardanapo. E no silêncio que se alongou 
pela varanda:
- Mas ele não é preto? Preto retinto?
- Acabado de sair da senzala - replicou o Padre Tracajá, com uma cara meio 
gaiata. - Muito mais preto do que eu.
O Padre Pinto encarou o Padre Tracajá por cima dos óculos:
- O colega não se esqueceu da humilhação por que passou, aqui em São Luís, no 
começo de sua carreira, pois não? O episódio da igreja do Rosário ficou famoso.
Ao que Monsenhor Tavares acrescentou, como se quisesse avivar-lhe a memória:- No momento em que o colega se aproximou do altar, para dizer a sua primeira 
missa, as pessoas que enchiam a nave, ocupando as fileiras de bancos, de repente
se 
levantaram e foram embora.
- Mas eu disse a minha missa, como se a igreja estivesse repleta, e sei que 
Nosso Senhor a
assistiu - contraveio o Padre Tracajá, chamando para perto de si a compoteira
de doce de jaca.
- E eu, quando aqui cheguei, fiz do Padre Policarpo meu arcediago, e até hoje 
não me arrependi da escolha - adiantou Dom Manuel, subindo o
tom da voz para interromper
a discussão.
O Padre Lula ergueu-se um pouco da cadeira, curvado para a frente, a cabeça 
baixa:
129
- A caridade de Vossa Reverendíssima não tem limites, Senhor Bispo. O que Vossa 
Reverendíssima faz, com a sua bondade e a sua sabedoria, não pode deixar de ser 
uma inspiração da graça divina.
- Apoiado - aprovou Padre Policarpo.
Mas tanto Monsenhor Tavares quanto o Cônego Pinto se fecharam em silêncio, de 
vista baixa, as mãos entrelaçadas, enquanto crescia no sobrado o ruído do 
relógio, 
ao fundo da varanda.
E foi Dom Manuel que reatou a conversa:
- A luta contra o preconceito de cor, aqui no Maranhão, tem de começar pela 
Igreja. Somos nós que devemos dar os exemplos de compreensão e tolerância. A 
fraternidade, 
acima do pigmento de cada ser humano, está na essência de nossa religião.
E como o Senhor Bispo se calasse, circulando o olhar pela mesa, para sentir o 
efeito de suas palavras, o Cônego Pinto deu a impressão de que ia levantar, 
depois 
tornou a esparramar-se na cadeira, e ponderou:
- De acordo, Dom Manuel. Mas, com a devida vênia de Vossa Reverendíssima, 
devemos ter em mente a preocupação de não contribuir para agravar os conflitos 
sociais. 
Eu posso, com a minha autoridade de sacerdote branco, pregar a fraternidade 
humana, do alto de meu púlpito, procurando harmonizar o senhor e o escravo, o 
branco 
e o preto. Mas, se eu sou preto e ocupo o púlpito para pregar as mesmas idéias, 
deixo de ser o sacerdote, aconselhando, para ser o advogado em causa própria, e 
é 
aí que meu sermão perde a força. Sem me contrapor às recomendações de Vossa 
Reverendíssima, creio que esse é o puncíum dolens.. Eu sempre cito, sobre o 
assunto, 
as palavras de São Mateus: "Ai do mundo por causa dos escândalos! Eles são 
inevitáveis; mas ai do homem que os causa!"
Monsenhor Tavares não se conteve:
- Muito bem - apoiou.
Até o Padre Lula, que se mantinha de cabeça baixa, com a testa franzida, saiu de
seu silêncio:
- O Cônego Pinto falou como um iluminado. Nosso dever é não escandalizar. 
Atuaremos nas consciências, a pouco e pouco, devagarinho, e quando menos se 
esperar, brancos 
e negros estarão de braços dados. Tudo depende do tato em conduzir a questão.
E enquanto o Cônego Pinto, o Padre Lula e o Monsenhor Tavares sorriam um para o 
outro, vitoriosos, o Padre Tracajá se limitava a olhar para o Senhor Bispo, 
muito 
sereno, como se quisesse rir, enquanto esfarelava migalhas de pão sobre o linho 
da toalha.
O Padre Lula, agastado, decidiu esmagar de vez o Tracajá:
- O colega, ainda hoje, com o seu título de arcediago, nunca ouviu a confissão 
de uma só das grandes damas maranhenses. Nem delas, nem das filhas. Nenhuma o 
quer 
como confessor. Nem tampouco o chamam para casamentos, batizados e extrema-
unções.
130
- Em compensação, com a gente do povo, não chego para as encomendas - objetou o 
Padre Policarpo. - No princípio, quando as
madames me desfeiteavam, eu me consolava
com Nosso Senhor Jesus Cristo, que mais tinha sofrido, e era filho de Deus. 
Depois, dei de ombros. Que se lixem. Tenho mais o que fazer. Passei a dizer 
minhas missas
na igreja do Rosário dos Pretos, aos sábados e domingos, e a casa fica tão cheia
que se derrama pela calçada.
- Só pretos - esclareceu Monsenhor Tavares.
- Só cristãos - corrigiu-Padre Policarpo.
Monsenhor Tavares, vendo que o Tracajá enchia o prato com a massa muito alva da 
compota de bacuri, achou apropriado o momento para atirar-lhe um gracejo:
- O colega, por igual motivo, só devia servir-se da compota de ameixa, que veio 
também para a mesa, e até agora ninguém provou.
Todos riram, inclusive Dom Manuel.
E o Padre Tracajá, acabando de servir-se:
- Um momento, Monsenhor - pediu, repondo a tampa na compoteira. - Quem foi que 
lhe disse que eu tenho preconceito de cor? Depois da compota de bacuri, irei à 
compota 
de ameixa. E com o mesmo apetite, louvado seja Deus. Tudo tem o seu tempo, como 
está nas Sagradas Escrituras.
Toda a mesa voltou a rir, mais alto, derramadamente, enquanto a compota de 
ameixa passava de mão em mão, servida primeiro pelo Senhor Bispo, que desejou 
dar o exemplo, 
como lhe competia.
Quando o Padre Policarpo desceu ao seu quarto, já de olhos apertados pela 
sonolência da digestão, amparando-se no corrimão da escada rangente, encontrou 
tudo limpo, 
com os livros na estante, o óleo no candeeiro, a mesa espanada, a escarradeira 
de louça ao pé da rede e mais espaço no aposento com uma nova disposição dos 
móveis.
Parado à porta, o padre quase não reconhecia o seu velho quarto. Onde as teias 
de aranha que ensombreciam as quinas das paredes? E as pilhas de jornais velhos?
Que 
fora feito do penico? E nisto viu aproximar-se o Damião, que tinha ido guardar a
vassoura, o espanador e a pá de lixo.
- Está a seu gosto, Padre Policarpo?
- Saíste melhor do que a encomenda, Damião. Nunca entrei num quarto mais 
asseado. Até parece que vou receber a visita do Senhor Bispo.
E entrou pisando com cautela, depois de esfregar as solas das botinas no capacho
de ferro, repetidas vezes. Assim como estava, caiu na rede, só tirando as 
botinas, 
que deixou ali mesmo. Antes de cerrar a porta, Damião ouviu-lhe o ressonar 
profundo, bufando alto, como se repetisse cachimbadas.
Dali saiu para acabar de arear dois tocheiros de bronze, que o Firmino lhe viera
trazer na véspera, da parte do Senhor Bispo.
131
Aos poucos iam-lhe transferindo obrigações e encargos, que lhe tomavam boa parte
do dia. Já era ele que limpava e polia as pratas da catedral, e ainda quem 
sacudia 
o pó dos paramentos, guardados no pesado arcaz da sacristia. Também no Paço não 
lhe faltavam serviços. Além de tratar do quintal imenso, que já não parecia mais
o mesmo, com o chão varrido e capinado, cabia-lhe limpar as salas da frente, 
tirar a poeira dos móveis, sacudir os tapetes, e a tudo ele acudia de boa 
vontade, 
porque sempre lhe davam novo encargo pedindo-lhe que dele se ocupasse.
Mesmo assim, aproveitando as horas que lhe restavam pelo meio da tarde, ia dando
conta das lições que o Padre Policarpo lhe passava. Embora interessado em 
ensinar-lhe, 
o velho Tracajá, ainda sonolento após a sesta, reduzia as aulas a menos de meia 
hora, e assim mesmo entre bocejos, com os olhos entrefechados, o cigarro 
pendurado 
do canto da boca. Damião não lhe exigia mais. O resto ele o fazia por si, com o 
livro na mão. Menos afeito à escrita que à leitura, começara com tão má letra, 
que mais parecia um garrancho; mas, de noite, com as aparas de papel que juntava
do lixo, tratou de melhorá-la, e o certo é que, em poucos dias de esforço, 
entrando 
pela madrugada, à luz escassa do candeeiro, conseguiu dar desembaraço aos dedos,
de modo que o cursivo já começava a sair-lhe mais corrido e regular.
No último sábado, enquanto o Padre Policarpo dormia a sua sesta, o Vivi Sineiro,
que puxava de uma perna, tinha-o levado ao campanário, ainda em reparos. Lá no 
alto, 
derramando o olhar pela cidade, Damião pôs-se a rir, não sabendo para que lado 
se voltar. Olhava os telhados, os mirantes, as casas, as ruas, o mar, o cais, as
igrejas, 
até onde a vista podia alcançar, e escancarava mais os dentes, com os olhos 
crescidos, querendo ver mais, sempre mais, através das quatro aberturas da 
torre. Chegava 
a supor que poderia passar ali dias e dias, só olhando a cidade. E dali só 
desceu quando a tarde começava a declinar.
Daí em diante, sempre que tinha tempo disponível, e sem prejuízo de seus 
estudos, subia ao campanário, e lá ficava, como esquecido das horas, a admirar acidade, 
mesmo nos dias de chuva e ventania. Alertado pelo sineiro, descia. E era como se
continuasse a ver São Luís em toda volta do horizonte, desde a Praia Grande ao 
Largo 
dos Amores, e ainda a baía ampla, pontilhada de barcos e igarités de pesca, e 
tudo lhe parecia de uma beleza incomparável, sobretudo ao pôr-do-sol. Ficava 
absorto, 
com os olhos no ar, e mais de uma vez lhe viera a vontade, que logo reprimira, 
de escrever à mãe e à irmã, para lhes dizer como era a cidade. Por que haveria 
de 
escrever-lhes, se ambas não sabiam ler?
Quando o Padre Tracajá terminou a sua sesta, já o Damião tinha voltado do 
campanário, de cara contente, com muito brilho nos olhos. Vira passar, lá 
embaixo, uma 
cadeirinha de arruar, toda doirada, que dois negros iam levando pelos varais, um
atrás, outro à frente, ambos
132
de uniforme, luvas, chapéu na cabeça. E debruçara-se tanto, para seguir a 
cadeirinha, que vinha do Palácio do Governo e tomava a direção do Largo do 
Carmo, que o
Vivi Sineiro gritara com ele, temendo que perdesse o equilíbrio e caísse na 
calçada da Sé. Embora já lhe tivessem dito várias vezes, contando horrores, que 
os negros,
ali em São Luís, também apanhavam, chegava a ter sobre isso as suas dúvidas, ao 
vê-los andando livres nas ruas, sem um feitor a vigiá-los. Dali do alto vira 
também 
negras bem vestidas, de sandálias de cetim, pente comprido nos cabelos, xale por
cima dos ombros, e concluíra que nem a Sinhá Dona nem a Sinhá Miloca, na 
fazenda, 
se trajavam com tanto luxo.
Mais tarde, à hora da lição, tornou a surpreender o Padre Tracajá, que dessa vez
lhe havia passado quase um terço da Gramática Latina, do Padre Antônio Pereira 
de 
Figueiredo, certo de que o preto, por mais memória que tivesse, não poderia 
decorar tantas declinações e tantos verbos, no intervalo apenas de três dias 
entre uma 
lição e outra.
- Estudou tudo, Damião?
- Sim, Senhor Padre.
- E fez os exercícios?
- Sim, Senhor Padre.
Escanchado na rede, em ceroulas, a batina levantada acima das pernas, os pés nas
meias de algodão, o padre recebeu o caderno que Damião lhe entregava, e foi-lhe
virando as folhas, a princípio com ar de riso e dúvida, depois de testa franzida
e sobrancelhas arrepeladas, até que o lábio inferior lhe caiu.
- Está tudo ótimo, Damião - aprovou, balançando a cabeça pasmada. - Preciso 
mostrar este teu caderno ao Senhor Bispo. Deixa ele comigo.
E ao passar à argüição oral, com a leitura do texto latino, só precisou 
corrigir-lhe duas silabadas, que ele próprio, já agora um tanto desconfiado de 
seu saber, 
tratou de conferir logo depois, numa olhadela prudente ao Dicionário.
- Estás me dando orgulho, Damião - confessou, entrando a calçar as botinas, 
curvado para o soalho. - Não vejo, aqui em São Luís, quem te possa fazer sombra.
No Seminário,
vais passar todos aqueles brancos para trás. E com um pé nas costas.
Ainda de beiço caído, levantou-se, tomou entre as mãos emocionadas a cabeça de 
Damião, que se conservava sentado na cadeira ao pé da mesa, e beijou-lhe a 
testa:
- Tens idade de ser meu filho - explicou-se, endireitando a cabeça. - Nosso 
Senhor que te proteja. Hás de ir longe, muito longe, com o favor da Divina 
Graça.
Ao mesmo tempo que experimentava um aperto na garganta, num começo de sufocação,
Damião sentia os olhos úmidos, e teve de redobrar de esforços para não chorar. 
Desde 
que perdera o pai, nunca se identificara tão profundamente com outro homem, 
mesmo com o Chico Benedito, que lhe salvara a vida. E a verdade é que fazia
133
pouco mais de um mês que convivia com o Padre Policarpo. Aos poucos sentia 
voltar-lhe a confiança nos outros homens - que havia perdido de repente com a 
consciência 
da traição do Samuel.
Ali no Paço, só via amigos. O mutismo em que se fechara nos. primeiros dias, 
metido consigo, cedia lugar ao diálogo que ele-mesmo provocava, na cozinha, no 
campanário, 
nos corredores, na sacristia, e todos pareciam querer-lhe bem, inclusive o 
Cônego Pinto, que nunca deixava de lhe pôr na mão uma moeda de vintém, sempre 
que lhe 
entregava o chapéu para pendurar no cabide.
De noite, depois de terminado os deveres que Padre Policarpo lhe passara para o 
dia seguinte, Damião apagou o candeeiro e estirou-se na rede. Entrou a balançar-
se 
de leve, indo e vindo, para chamar o sono. Custou a acalmar-se, ainda alvoroçado
com as emoções da tarde, e acabou por fixar-se, mais uma vez, nas imagens que 
recolhera 
do campanário, sobretudo da cadeirinha de arruar. Haveria uma cidade maior que 
São Luís? E com os sobrados tão bonitos? Duvidava muito. E ao embalo da rede, 
sentiu-se 
de novo no campanário, senhor negro da velha cidade, dominando-lhe as ruas em 
ladeira, os mirantes de azulejos, os telhados escuros, as grades de ferro das 
sacadas, 
os lampiões nas esquinas. Nunca se sentira tão feliz. Para trás, ficara o seu 
passado de muitos tormentos. Agora era uma outra vida, sem o braço do senhor a 
erguer 
a palmatória e dilacerar-lhe as mãos. Para que fosse plenamente feliz, só lhe 
faltava ter a mãe e a irmã ali ao seu lado. Um dia, com o favor de Deus, viveria
com 
elas. E imaginou a Sé toda iluminada e florida, com a nave apertada de gente, na
manhã em que ele, Padre Damião, fosse dizer a missa nova.
Foi o Padre Policarpo, já noite velha, quem o tirou desse enlevo, batendo-lhe 
com força na porta do quarto:
- Damião, te veste depressa e vem comigo.
POR ESSE TEMPO já não se armava o patíbulo, no Largo da Forca Velha, para a 
execução dos negros escravos. O velho largo era agora uma praça tranqüila, 
rodeada de 
casas geminadas, e onde as crianças brincavam ao cair da tarde. Nas noites 
quentes, viam-se cadeiras nas calçadas, se havia luar.
134
A designação primitiva, ajustada ao patíbulo, acabou substituída por outra, que 
lhe deu o povo:. Praça da Alegria. A nova denominação inspirou-se na 
circunstância 
de que os pobres condenados, vistos de longe, pareciam pular de contente, logo 
que eram soltos no espaço com a corda no pescoço.
À medida que a cidade se expandia e povoava, entraram a aumentar os protestos 
contra os enforcamentos de negros na Praça da Alegria. A Rua de Santana, com 
seus 
sobrados aristocráticos, passava por lá. Também por lá passava a Rua da 
Imprensa. A Santa Casa de Misericórdia era-lhe quase vizinha. Área 
essencialmente residencial, 
com muitas crianças nas ruas, uma escola mais adiante, convinha evitar que o 
patíbulo continuasse a ser armado ali. Como o castigo da forca recaía 
habitualmente 
em negros assassinos, que se vingavam de seus senhores, houve quem alvitrasse 
que o
cadafalso fosse erguido no próprio lugar do delito, tornando assim mais exemplar
o suplício do criminoso. Mas se viu logo ser isso impossível, visto que os 
crimes 
freqüentemente ocorriam no interior das casas. Optou-se então por uma solução 
volante.
A forca passou a ser armada, não mais na Praça da Alegria, mas na Praia Grande, 
no Largo da Cadeia, no Largo de Santiago, no Largo do Desterro, e mesmo no chão 
baldio
do Apicum, por trás da quinta do Barão.
Todos os sinistros apetrechos necessários às execuções passaram a ser guardados 
no Arsenal de Marinha, de onde eram retirados à calada da noite, e logo armados 
no 
local escolhido pelo Tribunal da Relação, para que, nessa mesma noite, ocorresse
o enforcamento.
Padre Policarpo dormia o melhor de seu sono, com o corpo coberto pelas varandas 
da rede, quando o Quirino Porteiro, que ficava de plantão num pequeno quarto ao 
pé da escada, veio bater-lhe na porta, para lhe dizer que, lá fora, estava um 
carro à sua espera.
- Vão enforcar outro preto - adivinhou o padre, acendendo o candeeiro, ainda a 
ouvir os passos do Quirino rangendo alto nos degraus da escada.
E lá iria ele, mais uma vez, cumprir a piedosa incumbência de dar assistência ao
condenado. Só atribuía ao fato de ser mulato a freqüência com que, nos últimos 
anos, era chamado para essa missão pungente, que sempre lhe destroçava os 
nervos. Sentia-se nauseado, a cabeça lhe doía, passava alguns dias de cara 
trombuda, falando 
pouco. Mas nuncapensara, uma só vez sequer, em fugir ao seu dever de sacerdote,
e de sacerdote que tinha sangue negro nas veias. A despeito do sentimento de 
comiseração 
e revolta, que lhe vincava ainda mais as rugas do rosto tenso, mantinha-se junto
ao condenado, procurando confortá-lo, até o momento final. Nesse instante, 
cerrava 
os olhos, e era, com Deus que se comunicava, implorando misericórdia para a 
fraqueza e a estupidez dos homens, enquanto ouvia deslizar a roldana da corda 
que ia 
suspender o enforcado.
Depois de chamar o Damião, tornou ao quarto pisando alto,
135
bochechou um pouco de água sobre o penico, banhou o rosto no lavatório de ferro,
sempre resmungando, sem se olhar no espelho meio carcomido, pendente da parede, 
e que lhe servia para fazer a barba e olhar a língua.
- É preciso acabar com isto. Já não basta o que sofrem os negros, debaixo do 
chicote dos senhores, todo santo dia? Quando um deles se revolta, no impulso do 
desespero, 
paga na forca, e sempre me chamam para ajudá-lo a morrer. Se a Justiça é mesmo 
Justiça, por que não castiga também os brancos? Aqui mesmo em São Luís, quantos 
senhores 
já mataram os seus negros, sem que nada lhes acontecesse?
Ainda resmungando, ia de um lado para outro do aposento, por vezes esquecido do 
que ia fazer. E seu vulto ancho, em ceroulas, fazia mover a chama do candeeiro, 
ao 
mesmo tempo que as tábuas do chão rangiam sob seus pés. Afinal, depois de enfiar
os dedos na cabeleira, calcando-a para trás, vestiu a batina surrada, enfiou as
botinas. E disse ao Damião, que aparecera na fresta da porta, com ar intrigado:
- Vão enforcar um escravo, e eu tenho de confortá-lo. Vem comigo.
Damião alargou a fresta, dando mais um passo para dentro do quarto, no momento 
em que o padre apanhava do cabide o seu chapéu preto:
- Enforcar? Vão enforcar um escravo?
E era tão grande o seu espanto, com a vista fixada no semblante do padre, que as
suas sobrancelhas tinham subido para o meio da testa, ao mesmo tempo que os 
olhos 
cresciam, esbugalhando-se.
- Sim - confirmou o Padre Policarpo, já de chapéu na cabeça, trazendo os 
paramentos. - Tens de te acostumar com a morte, se queres mesmo ser padre, e 
também com 
a estupidez dos homens, para aprenderes a perdoá-los, em nome de Deus. Vamos 
embora.
Na rua morta, de casas fechadas, até mesmo a parelha de cavalos castanhos, 
atrelada ao carro, parecia cochilar, imóvel, com o cocheiro gordalhufo 
dormitando na 
boléia, junto à calçada do Paço. Mais ninguém no largo mal iluminado. Só de 
longe em longe, para os lados do Palácio
do Governo, luzia a chamazinha azulada de um 
lampião de azeite.
O padre fez Damiao entrar primeiro, depois deixou cair pesadamente o corpo 
aborrecido no assento traseiro da carruagem, e só então o cocheiro deu mostras 
de ter
acordado, bocejando.
- Podemos ir - ordenou Padre Policarpo.
O cocheiro torceu o pino da lanterna, para clarear melhor o caminho, e em 
seguida soltou a rédea. Deu uma volta contornando a Sé, devagar, cautelosamente,
para descer 
adiante a Rua de Nazaré, na direção da Praia Grande, ao toque-toque dos cavalos,
que ia estimulando apenas com sacudidelas das rédeas e estalos da língua no céu 
da
136
boca. No silêncio largo, que a escuridão tornava mais denso, soavam alto as 
ferraduras e as rodas nas pedras do calçamento. A luz da boléia só dava para 
clarear
desmaiadamente o vão da rua, à medida que a parelha avançava, passo a passo, 
perlongando agora o Largo do João do Vale.
Embora a figura do cocheiro, esparramada no banco da boléia, impedisse que a luz
da lanterna chegasse ao banco traseiro, Damiao pôde ver, numa das oscilações do 
carro, que o Padre Policarpo, em vez de ir cochilando, torcia as contas do 
terço, com as mãos descansadas no regaço, por cima do Breviário.
Na esquina da Rua da Palma com a Rua de Nazaré, os cavalos dobraram à direita, 
obedecendo ao repuxo das rédeas, e o carro resvalou pela ladeira, com o cocheiro
inclinado para trás, no esforço para conter a parelha, que tendia a precipitar-
se declive abaixo, galopando no sentido da escuridão. Mas, ao pé da ladeira, o 
homem 
voltou a endireitar-se no banco, sustendo fortemente as rédeas, e o carro tornou
a rolar com lentidão preguiçosa, por entre alas de sobradões de azulejos. 
Naquele 
ermo, tiniam mais alto as ferraduras e as rodas, numa atmosfera carregada de 
mistério.
Damiao olhava para um lado e para o outro, no trânsito da luz da lanterna, de 
sobrancelhas franzidas, o coração acelerado, sem saber ao certo onde se achava. 
Teria 
andado por ali em companhia do Chico Benedito? Parecia-lhe que não. E mais viva 
era a curiosidade de suas pupilas, que só viam portas e janelas cerradas, 
calçadas 
desertas, um ou outro cão assustado, e mais adiante a escuridão compacta, 
debaixo do céu estrelado.
O carro tinha entrado na Rua da Estrela, dando a impressão de que rolava mais 
devagar, puxado pela parelha sonolenta. Estavam agora no coração da Praia 
Grande, cercados 
de sobradões de pedra e cal, alguns de quatro andares, outros de sacadas de 
ferro, vários de mirante, e todos fechados, sem vivalma. Adiante, na Rua do 
Trapiche, 
luzia uma tocha vermelha, que o vento esbofeteava, obrigando-a a mudar de 
direção a cada momento. Sua luz sangüínea, abrindo um claro nas sombras da 
noite, mostrava 
o caminho do Cais da Sagração. Ali, encolhidos nos portais ou estirados nas 
calçadas, dormiam negros seminus, apenas com pedaços de estopa a protegê-los 
contra 
a viração úmida que vinha do mar.
Passado o casarão da Alfândega, que outra tocha iluminava, o carro tardou ainda 
mais a marcha na subida da ladeira, parecendo que ia parar, tão lento era o 
toque-toque 
das ferraduras nas pedras do chão.
Padre Policarpo alteou a voz para o cocheiro:
- Afinal de contas, aonde nos levas?
- Ao Desterro, Senhor Padre.
- Não podíamos ir mais depressa?
E o outro, depois de um risinho finório:
137
- Neste passo, a gente dá um pouco mais de vida ao preto replicou. - O coitado 
vai pra forca, assim que o Senhor Padre chegar. Só estão esperando pelo senhor.
- Então vai mesmo devagar. O mais devagar que puderes concordou o padre, 
voltando a concentrar-se nas contas de seu terço.
Damião mantinha-se em silêncio, na outra extremidade do banco. À medida que o 
carro avançava, sentia crescer na sua consciência a revolta e o medo. Onde seria
o 
Desterro? E que teria feito o negro para ser enforcado? Por vezes um gato 
passava defronte dos cavalos e engolfava-se novamente na treva, só ficando de 
sua passagem 
a imagem fugidia e espantada. E lá ia o carro, toque-toque, tardo, pesado, rua 
acima, quebrando com o ruído áspero das rodas o sono da noite fechada.
Ao fim da ladeira, os cavalos dobraram à esquerda, e uma luz apontou na esquina.
Dois quarteirões adiante, viraram à direita, e logo Damião viu luzes nas casas,
ao mesmo tempo que sentia a vigília curiosa da multidão na rua, à espera do 
enforcamento.
- Estamos chegando - preveniu o cocheiro.
Já agora não lhe era possível tardar a marcha do carro. Sacudindo as rédeas, 
animou os cavalos, duro no banco, o chicote em riste.
- Não precisa correr - advertiu Padre Policarpo, agastado.
E foi ele que primeiro deu com a forca, armada no meio do largo, com as duas 
traves de madeira, uma vertical, outra horizontal, unidas na extremidade 
superior 
da primeira, já com o laço de corda pendente da roldana de ferro.
Quatro tochas, uma em cada extremidade da praça, davam à cena uma luz desvairada
e que não tinha sossego. Uma escadinha de madeira levava ao cadafalso onde o 
condenado 
esperava pelo padre, com o carrasco ao seu lado, baixo, entrançado, a cabeça 
envolta pelo sambenito que lhe escondia o rosto, só com dois buracos no lugar 
dos 
olhos. Em redor, soldados de lanças perfiladas, contendo o povo que se tinha 
aglutinado em toda a volta do largo e que tentava aproximar-se cada vez mais, 
para olhar 
de perto o escravo que ia morrer. Ao fundo, avultava a fachada da igreja do 
Desterro, de portas e janelas fechadas, como
a esquivar-se de testemunhar a execução.
À aproximação docarro, a multidão abriu caminho, e várias vozes murmuraram em
tom de alvoroço e excitação:
- O padre chegou!
Logo os cavalos avançaram pela nesga de rua, novamente devagar, passo a passo, e
foram parar debaixo de um ramo de oitizeiro, junto da grade de ferro que 
protegia
um dos lados da praça.
- Tu me esperas aqui mesmo - recomendou Padre Policarpo ao Damião. - Não 
precisas sair.
E depois de enfiar-se na sobrepeliz, segurou o Breviário e o crucifixo, 
adiantando o pé para fora do carro, sem conseguir
disfarçar
138
de todo a sua emoção. Cortou o largo em diagonal, aproximando-se do cadafalso, e
subiu depressa os degraus da escadinha, com os olhos no condenado, que também o
fitava, tomado de pavor.
- Soltem-lhe as mãos - ordenou Padre Policarpo, ao ver-lhe os punhos atados por 
uma corda.
Era um preto forte, espadaúdo, a barba crescida, as mãos enormes 
desproporcionadas aos punhos. Trazia no corpo apenas uma sunga rasgada nas 
pernas. Devia ter sido 
vergalhado na cadeia porque ainda trazia no dorso e nos braços as marcas das 
lapadas recentes. Mesmo assim, não queria morrer. Dir-se-ia em guarda, pronto 
para defenderse 
ou fugir, embora não pudesse dar um passo com a corda que lhe atava os 
tornozelos. Seus olhos não tinham sossego, com um lume de pavor nas pupilas.
Ao lhe soltarem as mãos, não procurou livrar-se da peia: caiu de joelhos, 
alongando os braços suplicantes na direção do padre:
- Não deixe eu morrer, Seu Padre. É uma caridade que o sinhô me faz. Pelo amor 
de Deus. Pelo bem de São Benedito.
As mãos vingativas, que tinham estrangulado o filho mais velho de seu senhor, 
estavam agora unidas, no gesto da humildade mais patética, e toda a figura 
vigorosa, 
de músculos retesados, torso de ébano, como que se desfazia e destroçava, 
vencida pelo medo da morte. Não obstante o vento frio que corria no largo, o 
preto suava,
e o suor que lhe bolhava a testa e as têmporas descia-lhe pelos sulcos do rosto 
luzidio. Além do mais, tremia, batendo os dentes, como nas convulsões de um 
calafrio.
Padre Policarpo tentou levantá-lo, erguendo-o por um dos braços; mas o preto 
teimou em permanecer de joelhos, e agora chorava, repetindo a súplica:
- Não deixe me enforcar, Padre. Pelo bem de Nossa Senhora do Rosário. Pelo amor 
de Jesus. Os branco pode me bater, Seu Padre, e eu juro que não levanto a mão.
Os soldados mantinham-se atentos, com as lanças enristadas, quase a formarem um 
círculo em volta do condenado. com um gesto, Padre Policarpo ordenou que se 
afastassem. 
Só o carrasco não se movera, metido no seu sambenito, as mãos segurando o laço 
da corda.
E Padre Policarpo, mais perto do negro:
- Me dá as tuas mãos.
E ungiu-as depressa, derramando os santos óleos sobre o dorso de cada uma, mesmo
erguidas na insistência da súplica. Como a luz de uma das tochas batia em cheio 
no rosto do condenado, viam-se-lhe as lágrimas descendo pela cara cintilante, a 
cabeça meio inclinada. Agora chorava em silêncio, de lábio pendente, os olhos 
erguidos 
para o sacerdote. Sempre depressa, Padre Policarpo fez o sinal-da-cruz sobre a 
testa, a boca e o peito do preto, pedindo que Deus lhe perdoasse os pecados e 
lhe 
desse a vida eterna:
139,
-, Misereatur fui omnipotens Deus, et dimssis peccatis tuis perducat te ad vitam
aeternam.
E de repente, como tocada pela magia dessas palavras, a figura corpulenta do 
negro desabou para o chão, desfeita num desmaio. Logo o carrasco acudiu, 
aproveitando-lhe 
a síncope, e ainda teve tempo de atar-lhe novamente os punhos e enfiar-lhe o 
laço na cabeça. Quando o condenado voltou a si, já com a corda a apertar-lhe o 
pescoço, 
deu um salto, mesmo sem apoio das mãos, e ficou de pé, na posição atarantada de 
quem vai correr e procura um caminho. Embora a peia lhe prendesse os tornozelos,
conseguiu equilibrár-se numa agilidade de gato, e saltou para trás com os pés 
unidos, ao ver que o carrasco começava a puxar a corda. E esta esticou, rangeu, 
deslizou 
na roldana, arrastando o preto sobre as tábuas do patíbulo, sem lhe dar tempo de
ensaiar outro salto.
Padre Policarpo tinha retraído um passo, querendo sair dali o mais rápido 
possível; mas conseguiu dominar-se. Não, não podia ir embora, tinha de ficar até
o fim. 
E abrindo o Breviário, implorou a misericórdia de Deus:
- Ostende nobis Domine misericordiam tuam. Impelido para fora do estrado, o 
corpo ficou suspenso no ar, com os músculos do pescoço retesados, no esforço 
para conter 
o arrocho da corda. E esta ia subindo, puxada pelo giro da roldana. Nisto o 
negro conseguiu partir o nó que lhe atava os pulsos e levou as mãos acima da 
cabeça, 
tentando segurar-se na corda. Como não podia mover os pés, ainda peados, 
contorcia-se todo, iluminado pelo clarão vermelho das quatro tochas, enquanto a 
multidão, 
cá embaixo, de respiração suspensa, lhe acompanhava os movimentos, com um brilho
de júbilo nos olhos espantados.
Conseguindo agarrar a corda, o negro ensaiou puxar o corpo para cima, tentando 
afrouxar o laço que o sufocava, mas as forças lhe faltaram. Tentou outra vez, 
estimulado 
pelos gritos do povaréu que se pôs a aplaudi-lo, e novamente falhou. De dentes 
cerrados, pescoço endurecido, quis insistir na luta desigual, contorcendo-se e 
pulando, 
a balançar-se no espaço, sempre puxado pela corda, e de pronto os braços lhe 
caíram, com os ombros curvos, a cabeça pendida, a língua para fora da boca. Logo
um 
toque leve de corneta vibrou no ar, anunciando o fim da cerimônia.
Padre Policarpo cerrou de golpe o Breviário, sem esperar que o aparato lúgubre 
se desfizesse, e correu para o carro.
- Vamos embora, vamos embora - gritou para o cocheiro, caindo pesadamente no 
banco, sem despir a casula.
E enquanto o cocheiro manobrava, soqueando as rédeas, curvou-se para a frente, 
com as mãos cobrindo o rosto, e assim ficou até quase o fim da rua, sem poder 
esquecer 
que, de relance, ao deixar o cadafalso, tinha dado com o senhor do escravo, 
dentro de uma carruagem aparatosa, a assistir-lhe à execução.
140
FELIZMENTE, JÁ NO COMEÇO DE MAIO, ÚlStruído pelo Padre Policarpo, pôde Damião 
começar a ajudar o Senhor Bispo a rezar as missas pela paz da alma do Dr. 
Lustosa. 
Parecia-lhe, ao termo de cada uma, que tinha acabado de pôr num cofre, sob os 
olhos de nossa Senhora da Luz, padroeira da igreja, a nova moeda com que ia 
pagando 
a sua carta de alforria.
Vinha-lhe essa sensação no momento em que, na sala da sacristia, se despia de 
suas vestes, depois de ter recolhido os paramentos do Senhor Bispo à pesada arca
de 
jacarandá lavrado, que se estendia por quase toda uma parede, com severos 
argolões de prata, debaixo de um grande retrato de Pio IX, pintado por Domingos 
Tribuzzi.
O Bispo, vez por outra, antes de voltar ao Palácio, perguntava-lhe, com mostras 
de interesse verdadeiro:
- Quantas, com a de hoje, Damião?
Ele dava o número, com a mais absoluta segurança, alargando a cara no riso 
feliz, e o certo é que, pouco a pouco, se ia sentindo mais senhor de si, tanto 
no Paço 
quanto na Sé.
Embora as aulas do Seminário já tivessem começado, Padre Policarpo achara melhor
continuar a dar-lhe as lições ali mesmo no Paço, meio hábil para não lhe dizer 
que, 
a despeito de todo o empenho do Senhor Bispo, Sua Reverendíssima encontrara 
resistências intransponíveis para matriculá-lo como aluno regular.
Padre Lucas, com a sua autoridade de reitor, usara da maior franqueza, na 
conversa que tivera com Dom Manuel:
- Quando se soube, no Seminário, que Vossa Reverendíssima ia enviar-nos um 
preto, saído da senzala, para encaminhá-lo ao sacerdócio, até parece que estava 
ardendo 
Tróia. Dois dos nossos melhores professores, o Padre Severo e o Monsenhor 
Soares, entraram no meu gabinete, muito nervosos, para declarar que deixavam de 
ensinar. 
E hoje, pela manhã, recebi um grupo de pais de alunos, com um abaixoassinado, 
onde deixam claro que, se o preto for matriculado, preferem trancar a matrícula 
de 
seus filhos. Estou nas pontas de um dilema, que só Vossa Reverendíssima pode 
resolver: se acato a recomendação de meu Bispo, crio umproblema para o 
Seminário; se 
deixo de acatá-la,
141
crio um problema grave para mim, como sacerdote. Venho aqui rogar de joelhos a 
Vossa Reverendíssima que me tire desta dificuldade. Foi o Padre Policarpo que 
acabou 
por encontrar a solução:
- Nem Damião se matricula nem deixa de estudar. Assim que passarem os 
comentários, levo-o comigo, faço-o sentar ao fundo da sala, e dou a lição. com o
tempo, os 
outros seminaristas acabarão por acostumar-se com ele. Aí lhe pomos a batina.
Do Palácio do Bispo, depois que acompanhara o Padre Policarpo para assistir ao 
enforcamento do escravo, Damião só voltara a sair uma vez. Contornara a igreja, 
sem 
se afastar da calçada, para entrar na Travessa da Sé, e ali comprar, no 
tabuleiro da Genoveva Pia, as cocadas do Padre Policarpo, que estava impedido de
deixar a 
rede, com um começo de febre manhosa, atribuída a um resfriado.
A preta, no momento de embrulhar as cocadas, demorara o olhar no rosto de 
Damião, franzindo a testa. E com as mãos paradas nas dobras do papel:
- Me diz uma coisa, meu nego: tu não é filho do Julião? Eu logo vi. Não podia 
deixa de ser. Tu é ele, escrito e escarrado. Vejo um, tou vendo o outro. Que fim
levou 
ele?
- Morreu - replicou Damião, intrigado.
- Morreu? - espantou-se a preta. - Nós veio da África no mesmo barco, meu fio. 
Ele era novinho, como tu. Brabo que só ele. Bateram nele o tempo todo da viage; 
e 
ele firme, sem dobrar a cabeça. Home como o Diabo. Nós veio de contrabando. Ele 
foi pró sertão, eu fiquei aqui. Uma sinhá me comprou, deixou eu trabaiar até ter
dinheiro pra comprar minha liberdade. Trabaiei como uma doida nos meus tachos de
doce, e hoje tou aqui, dona do meu nariz.
Riu alto, mostrando a fileira de dentes do maxilar inferior, a sacudir as voltas
que lhe pendiam do pescoço comprido. Sentada no banco, junto ao muro do quintal 
da Sé, mantinha o corpo direito, sem se encostar, muito magra, o rosto comprido,
uma luz de bondade no olhar.
- E tu? Quê que tu faz aqui? - perguntou a Damião, antes de entregar-lhe as 
cocadas.
E ao saber que ele morava ali ao lado, no Palácio do Bispo, e ia ser padre, 
orientado pelo Padre Policarpo, não pôde reprimir o riso:
- Eu logo vi que tanta cocada de uma vez só podia ser pró Padre Tracajá. Quê 
qu'ele tem? Tá doente? Hum, já sei. Macacoa de veio. É assim mesmo. Antão tu vai
ser 
padre? Eu até quero ver. Pretinho assim como tu, dentro da batina, fazendo 
sermão prós branco, que bom! Só quero ver pra crer. Mas tu precisa ir no tambor 
de mina. 
Vai lá. É na Casa das Mina, na Rua de São Pantaleão. De noite, não tem errada: 
basta ouvi o tambô tocando. Lá eu sou noviche, tenho o meu vodum, que anda 
comigo. 
Vai conhecer Mãe Hosana. É a nochê de nós todo. Tu é preto, e preto puro, de boa
raça, como teu pai. Te chega aos preto. Mãe Hosana vai gostar de te ver.
142
Fez outro embrulho de cocadas enquanto falava. E entregando-o
a Damião:
- Este é teu. Não custa nada. Tu é preto grande, Damião. Eu
sei quem tu é. Vai cum Deus.
E ficou a olhá-lo, embevecida, até vê-lo sumir na dobra da rua, de volta ao 
Paço, magro, esguio, o passo certo e cheio, a cabeça alta, com a certeza de que 
ele 
era bem o filho de seu pai, homem de mando e força, que ela conhecera do outro 
lado do mar, na sua selva
africana.
A luz da manhã de sol, depois de uns dias de céu fosco, de chuvinha aborrecida, 
parecia alargar a cidade, que refulgia na claridade intensa, com as suas 
fachadas 
de azulejos muito limpas.
Em vez de voltar logo ao Paço, Damião retrocedeu junto à porta da Sé, e passou 
para a calçada do Largo do João do Vale, que lhe ficava quase fronteiro. Foi 
indo 
devagar, contornando o gradil que protegia a praça arborizada. E ia vendo 
cadeirinhas doiradas, suspensas no ombro dos negros, e carruagens puxadas pelo 
galope das 
parelhas, e cavalos de sela garbosamente montados, e transeuntes que iam e 
vinham pela calçada - uns senhores de preto, com bengala, cartola e luvas; umas 
senhoras 
de chapéu de palha, vestidos de cauda e sombrinha de cor, e também negras com 
panos-da-costa, batendo na cantaria do chão o pleque-pleque das sandálias de 
cetim. 
Mas via também negros de ganho, achatados pelos fardos que levavam na cabeça, 
subindo o aclive das ladeiras, e escravos com máscaras de flandres, e aguadeiros
de 
rua, com suas pipas transbordantes, e que pingavam nas pedras do calçamento, 
levadas pelas carroças barulhentas.
Num relance, a visão da fazenda refluiu-lhe ao espírito, e ele se viu na rampa 
da lagoa, com a sua carga de água ao ombro, ouvindo o ruído da bolandeira, o 
ranger 
das moendas e o gemido dos carros de bois carregados de cana. Não obstante tudo 
quanto ali
sofrera, vinha-lhe agora um vago apego nostálgico ao cheiro da terra úmida, 
ao canto dos pássaros, à mãe, à irmã, a alguns companheiros, ao bater dos 
tambores no terreiro da senzala, a luz da tarde desfazendo-se sobre a lagoa que 
a primeira
viração da noite levemente arrepiava. com quem andaria agora a Miduca? Que 
estaria fazendo Sinhá Velha, com seu molho de chaves na cintura? Por onde 
andaria o
Chico Benedito? Da mãe e da irmã continuava a não ter notícias. Um dia, com o 
favor de Deus, tirá-las-ia do cativeiro, dando-lhes a liberdade, para que ambas,
já 
alforriadas, ouvissem a missa nova do Padre Damião, ali na Sé. E como estaria a 
pobre da
NháBiló? Com certeza vaguearia de noite pela casa às escuras, toda de roxo,
muito pintada, ou então faria gemer a sua guitarra, no silêncio da casa-grande, 
só aplacando a ansiedade da sua carne, no fundo da rede, com os machos a quem em
sonhos se entregava.
Sempre acompanhando o gradil do largo, Damião chegou à esquina da Rua de Nazaré.
Lembrava-se de que entrara ali, tomando a sua
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esquerda, quando fora assistir, à noite, ao enforcamento do preto. 
Instintivamente olhou na direção contrária. Viu de longe outro largo e uma rua 
estreita que parecia 
não ter fim. Pensou ir até lá. E se se perdesse? Não, o melhor era voltar, que 
Padre Policarpo estava à sua espera.
Encontrou-o de pé, com as mãos para as costas, cabeça baixa, a andar ao comprido
do quarto, os cabelos despenteados pelo atrito da rede, a barba por fazer.
- Está melhor, Padre? - perguntou-lhe.
Calado, sem responder, Padre Policarpo recebeu o pacote das cocadas. E abrindo o
embrulho, com irreprimível sofreguidão:
- Ficaste de conversa com a Genoveva Pia, e eu aqui bestando, com o estômago a 
doer - desabafou, em
tom de reprimenda.
Comeu a primeira cocada, começou a mastigar a segunda, e foi adoçando o 
semblante, de novo escanchado
na rede. Depois, de boca cheia, mastigando alto, gulosamente,
voltou para Damião os olhinhos risonhos:
- Ninguém faz cocadas, aqui no Maranhão, como aquela preta. Podes também te 
servir, Damião. Tira uma para ti. Não faças cerimônia.
E Damião, mostrando-lhe o outro embrulho:
- Estas ela me deu. Mas também são suas, Padre Policarpo.
- Põe junto das outras, aí mesmo na mesa. Obrigado.
E ainda deleitado, já agora mastigando devagar, degustando cada pedaço que os 
dentes fortes iam trincando, Padre Tracajá chegou ao fim da quarta cocada, com a
boca 
suja de farelos de açúcar e coco, o semblante satisfeito, os olhos cheios de 
luz. Passou a costa da mão canhota pelos lábios úmidos, sem desfitar Damião. E 
após 
um silêncio, farto, a mão sobre o ventre, com uma fisionomia apaziguada:
- Levaste quase uma hora, entre o Paço e a Travessa da Sé. Por quê? Não mintas. 
A um padre não se mente.
- Mesmo que o senhor não fosse padre, eu lhe diria a verdade. Conversei um pouco
com a Genoveva Pia, que chegou a São Luís no mesmo barco em que veio meu pai, e 
depois dei uma volta no largo. Daqui do Paço, só saí uma vez, à noite, com o 
senhor. Eu ainda não conheço a cidade.
E o padre, depois de outro silêncio, sentindo-lhe a queixa:
- Tudo tem seu tempo, Damião. Diz o Eclesiasíes. E acrescenta que todas as 
coisas passam debaixo do Céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito. Não 
perdes 
por esperar.
E no domingo, depois da sesta preguiçosa, mandou que Damião se vestisse com a 
sua melhorroupa. Quando o preto voltou, já encontrou o padre de chapéu na 
cabeça, 
pronto para sair.
Na tarde fosca, com o sol querendo abrir, disse este a Damião, travando-lhe o 
braço, ainda na calçada da Sé:
- O mais importante de São Luís tu já conheces: é a vista da
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cidade, do alto do campanário. Quanto ao mais, quem vê uma rua vê as outras: 
todas se parecem, com casas de um lado e casas do outro. A novidade maior aqui 
são 
as moças nas janelas, criando calos nos cotovelos, para ver quem passa.
Mas a verdade é que, embora Damião já conhecesse a cidade pelos seus telhados e 
horizontes, sentia uma curiosidade mais viva para olhá-la de perto. Tinha na 
memória 
todos os seus bairros e muitos nomes de ruas, e perguntava a si mesmo, nos seus 
momentos de devaneio, como seriam o Largo do Carmo, a Madre Deus, o Pertinho, o 
Largo 
dos Amores, o Largo do Quartel, a Rua do Sol, o Largo de Santo Antônio, a Rua 
Formosa, a Rua de São Pantaleão, a Gamboa, a Rua da Paz...
De guarda-chuva sobraçado, o Padre Policarpo mantinha o passo curto e cheio, sem
mudar de calçada. Adiante, na Travessa da Sé, passou para o outro lado, sem se 
desprender 
do braço de Damião, enquanto este, de olhos atentos, ia guardando tudo o que 
via, desde o nome da rua à forma das casas. E foi ele que disse, com ar de 
alvoroço, 
querendo adivinhar, assim que entraram por uma ampla praça arborizada, rodeada 
de sobrados, quase todos de azulejos:
- Aqui é o Largo do Carmo, Padre?
O outro confirmou com a cabeça, parado na ponta da calçada, para deixar que se 
atenuasse o assombro do preto, que envolvia no mesmo olhar feliz os transeuntes,
as casas, as árvores, os bancos de ferro, os lampiões, os balcões dos sobrados. 
Mais que no Largo de João do Vale, via ali negras altas, de cintura fina, 
quadris 
fartos, sandálias de cetim. Num relance do olhar, notou mais pretos que brancos 
- mas já o Padre Policarpo voltava a travar-lhe do braço atravessando a rua. Lá 
adiante 
tornaram a parar, desta vez defronte da coluna de mármore que dominava a praça, 
quase em frente ao Convento do Carmo: era alta, elegante, de base retangular, 
subindo 
para o capitel em feixes espiralados.
- Sabes o que é isso? - indagou o padre, espichando o beiço inferior na direção 
da coluna. - É o Pelourinho. Nunca ouviste falar nesse nome? Guarda-o bem na 
memória.
Essa coluna foi erguida para o castigo público dos negros cativos. Os escravos 
eram amarrados à coluna, de bunda de fora, para serem açoitados. Hoje, já está 
fora 
de uso. Os pretos não apanham mais na praça pública; só apanham dentro das 
casas, e alguns apanham tanto que morrem de apanhar.
E enquanto o sol se abria, banhando com a sua luz intensa a espiral de mármore, 
o padre deu à voz um
tom mais grave:
- Se os negros se unissem, não havia mais escravos.
Um silêncio se alongou, quebrado logo depois pelo ruído de uma carruagem que 
passava para a Rua da Paz. Mas Damião pareceu não ouvir o rolar das rodas e o 
tinido
das ferraduras, concentrado em si mesmo, as pálpebras apertadas. A opinião de 
seu pai
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coincidia com a opinião do Padre Policarpo. Ali no Maranhão, os negros eram 
muitos, talvez mais que os brancos, e todos cativos, com o seu senhor e a sua 
sujeição.
Não se dizia que Donana Jansen, para atravessar o alagadiço à entrada de seu 
sítio no Cutim, ia pisando sobre os corpos dos pretos, que se deitavam na lama 
para
que a senhora não sujasse os sapatos? Já ele havia assistido, mais de uma vez, à
entrada repentina de negros fugidos, que saltavam o muro do fundo da Sé, por 
cima
da crista de cacos de garrafas, para implorar ao Senhor Bispo, de joelhos, ainda
sangrando, que os livrassem das iras de seus senhores. Um deles ficara 
escondido,
durante toda uma noite, dentro da própria Sé, por baixo do altar-mor, para 
escapar ao famigerado Cabo Machado, que o perseguia a cavalo, de chicote em 
punho, e chegara
a querer agarrar o preto dentro da igreja. Só não o fizera porque de pronto Dom 
Manuel acudira, ameaçando o cabo de excomunhão, se desse mais um passo dentro da
nave.
- O senhor tem razão, Padre Policarpo. É preciso que os negros se unam. Se não 
se unirem, continuam apanhando, como eu apanhei.
Na outra esquina, passada a igreja do Carmo, principiava a Rua Grande, com as 
suas casas de modas, os seus bazares, a sua farmácia homeopática, o seu barbeiro
sangrador.
Da janela de um sobrado, pendia uma placa de metal, com esta indicação: M. Ory, 
cabeleireiro francês. Noutra placa, mais adiante, José Adriano Moreira da Rocha
informava que vendia instrumentos musicais e livros em todas as línguas. Havia 
ainda um professor de dança, um afinador de pianos, dois armadores de galas e 
funerais,
várias lojas de fazendas, um armazém de vinhos e uma chapelaria, além de um 
atelier fotográfico "muito bem aparelhado para tirar retratos pelo novíssimo 
sistema
de ambrótipo, sobre cristal, malacacheta e encerado".
Pela altura da Rua de São João, dobraram à esquerda, até à Rua da Paz, e de novo
passaram pelo Largo do Carmo, de volta ao Palácio do Bispo, já querendo 
entardecer. 
E como o sol rutilava, bafejado pela viração que subia do mar, irrompeu das 
árvores do caminho a estralada dos bem-te-vis, como se uns respondessem aos 
outros, e 
todos radiantes, enquanto a luz se decompunha, para os lados do poente, em vivos
tons escarlates, suspensa sobre as águas da baía.
Padre Policarpo parou à porta do Palácio do Bispo, resvalando o' olhar pela 
tarde em agonia, e comentou, antes de começar a subir, apoiado no braço do 
Damião:
- E ainda há por aí quem não acredite em Deus...
De noite, repassando o passeio, já deitado, Damião ia vendo os transeuntes nas 
calçadas, e negros, muitos negros, ao mesmo tempo que avultava a espiral de 
mármore 
do Pelourinho. Era o seu povo disperso, entregue a muitos senhores, e estes o 
castigavam. E por que ele, Damião, não se consagrava, assim que se formasse, à 
causa 
de seus irmãos de raça? No vaivém da rede, no quarto as escuras, pôs-se a pensar
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que talvez ele fosse um enviado de Deus para essa missão redentora. Daí a morte 
de seu senhor, quando injustamente o castigava. E tudo o mais que lhe 
acontecera, 
salvando-lhe a vida, conduzindo-o para São Luís, aproximando-o do Senhor Bispo, 
parecia obedecer a um desígnio secreto, que só agora entrevia e alcançava. Deus 
escrevia 
direito por linhas tortas. O pensamento que orientara seu pai, insurgindo-se 
contra o cativeiro e levando-o a construir o seu quilombo, o filho haveria de 
continuar, 
já agora na grande cidade, com a sua batina
de sacerdote.
E tanto se embalou na rede, insone, madrugada adentro, que Padre Policarpo lhe 
observou, quando se encaminhavam, muito cedo,
para a missa na Sé:
- Tu, esta noite, dormiste pouco, se é que dormiste. Nas duas vezes em que 
acordei, pela madrugada, ouvi o rangido de tua rede nos armadores. Na tua idade,
também 
passei minhas noites em claro. E vou-te dar um aviso, com a minha experiência de
padre: a vida inteira terás noites assim, se fores sacerdote, e sacerdote às 
direitas. 
Essas noites compridas fazem parte de nossa vida de sacrifícios. Sempre que nos 
recusamos a ceder às tentações da carne, ela nos maltrata, não nos deixando 
dormir. 
Quando a tentação for muito forte, mergulha numa tina de água fria, seja de dia,
seja de noite. Ou então trata de caminhar. Anda, anda muito. Dá uma volta atrás 
da outra, muitas e muitas vezes, no terreno do quintal. Anda, até o corpo 
cansar. Era assim que eu fazia, na tua idade. Hoje, já estou velho, a carne 
fraca já me 
deixa dormir o meu sono, quer de dia, quer de noite. Louvado seja Deus. Bendito 
seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas não penses que fui santo. Não, não fui. Mas 
sempre 
encontrei os braços do Senhor Jesus, para me envolver e perdoar, quando me 
ajoelhei diante dele, arrependido de meus pecados.
E no domingo seguinte, Padre Policarpo levou-o em sua companhia para que também 
lhe acolitasse a missa na igreja do Rosário. De longe, já na Rua do Egito, 
Damião 
viu a calçada cheia de negros. Uns estavam vestidoscom ar de senhores, e eram 
solenes até na maneira de andar, a roupa bem passada, óculos de aro de metal, 
chapéu 
alto. Também viu negras trajadas com esmero, pose de brancas, a gaforinha 
espichada a ferro, saia nos tornozelos, sapatos de verniz, a blusa cavada 
mostrando o 
começo dos seios. Mas a grande maioria era constituída de negros descalços, a 
camisa arremangada, o rosto assustado. Um deles, dentro da igreja, chamava a 
atenção, 
muito magro, alto - com a máscara de flandres a lhe subir do pescoço, fechada do
lado da nuca por um cadeado.
No correr da missa, com o turíbulo aceso a espalhar os duetos de incenso em 
volta do altar, Damião sentiu volver-lhe ao espírito, mais nítida, mais 
ambiciosa,
a consciência da missão que Deus lhe reservava. A multidão de negros que enchia 
a nave, e ainda se alastrava para a calçada da rua, indo quase ao outro lado, 
não
tinha um chefe
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que os guiasse. Uns mais afortunados, outros menos, não chegavam a constituir um
rebanho. Eram ovelhas dispersas, cada qual vivendo a sua vida, sem um pastor que
as aproximasse e conduzisse, ali no meio grande, onde só os brancos podiam 
mandar, como amos e senhores. Era-lhe difícil aceitar que as pessoas se 
cruzassem nas 
ruas, sem se falar, como se não morassem na mesma cidade nem se encontrassem 
todos os dias. Ali mesmo na igreja, ao contrário do que se passava na fazenda, 
os negros 
lhe davam a impressão de que não se falavam: permaneciam isolados, cada qual no 
seu canto, embora reunidos na mesma nave. Era preciso que todos se unissem, como
no quilombo. E seria ele, Damião, já revestido de sua autoridade de sacerdote, 
que por fim os aglutinaria, com o favor e a graça de Deus! Padre Policarpo 
entrava 
agora na consagração da missa:
- Per omnia saecula saeculorum.
- Amen - respondeu Damião. „
- Dominus vobiscum.
- Ei cum spiritu tuo.
Já agora não somente podia repetir, sem um erro, corridamente, o latim da missa,
como lhe conhecia o sentido e a significação. Havia terminado a Arte Latina, do 
Padre Figueiredo, que em parte sabia de cor. Aos poucos, orientado pelo Padre 
Policarpo, ia lendo um livro atrás de outro, até tarde, à fraca luz do velho 
candeeiro. 
Ultimamente, dera-lhe o padre seus antigos cadernos de seminarista, e era por 
eles que Damião ia disciplinando melhor o que estudava. Quando tinha uma dúvida,
recorria 
ao Tracajá, e este, mesmo sonolento, levantava a pálpebra espantada:
- Já andas por aí, Damião?
- Sim, Senhor Padre.
No entanto, ao ajudar pela primeira vez o Senhor Bispo, na celebração da santa 
missa, duas vezes se havia atrapalhado: uma, ao deixar de responder a Dom 
Manuel,
no início da consagração; outra, ao esquecer de tanger a sineta, antes da 
elevação. Em ambas as ocasiões, o Bispo o ajudara a corrigir-se, com um
tom de leve reprimenda.
Mas Padre Policarpo, que lhe acompanhava cada palavra e cada gesto, ajoelhado no
primeiro banco da nave, tratara logo de sorrir-lhe, animando-o. E, ao fim da 
missa,
entrara rindo na sacristia:
- Saíste melhor do que eu, quando ajudei Dom Nazaré. Na hora do vinho, a galheta
estava vazia. E várias vezes deixei o Bispo falando sozinho. Aqui mesmo levei um
pito, que me fez a orelha arder.
Damião ainda sentia as pernas trêmulas. Mais de uma vez tivera receio de que a 
voz lhe faltasse. Suara
tanto, a despeito da manhã friorenta, que molhara as costas da batina.
A noite toda ele a havia passado em claro, angustiado. Cedo, na véspera, por mão
do Padre Policarpo, fizera a sua primeira comunhão. Antes, tinha-se confessado.
E aflitivo havia sido o debate consigo mesmo,
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hesitando se deveria contar também que fora ele que matara o Samuel. Afinal, 
decidira-se: não, não contaria. Se o padre soubesse que ele havia matado um 
homem,
mudaria de idéia a seu respeito, e não o encaminharia para o sacerdócio. O 
melhor
que fazia era calar-se. Deus o perdoaria. com certeza, já o tinha perdoado.
De repente, à hora da missa, sentira volver-lhe o problema de consciência. 
Instintivamente erguera o olhar para a imagem de Nossa Senhora, buscando o seu 
amparo,
e esquecera de tanger a sineta.
Agora, ali na igreja do Rosário, sentia-se mais firme, mais seguro, limpo de 
espírito, confiado na graça de Deus. Tudo quanto ocorria no mundo obedecia a um 
desígnio
divino. Mesmo um grão de areia não se deslocava, sem a concordância do Senhor. E
ele, Damião, nada mais era, na sua pequenez e na sua humildade, do que um 
instrumento
dessa vontade suprema, a que todo o Universo obedecia.
A voz grossa do Padre Policarpo enchia a nave:
- Graccias agamus Domino Deo nostro.
E Damião, compenetrado de que Deus o olhava:
- Dignum et justum est.
Passou o.resto do dia no mesmo estado de espírito. Como o Padre Tracajá tinha 
ido almoçar fora, só devendo regressar ao Palácio pelo fim da tarde, subiu à 
torre
do campanário, e ali se deixou ficar olhando a cidade, com o mesmo sonho no 
pensamento. Agora não podia perder tempo. Tinha de começar, o mais rápido 
possível,
as suas aulas no Seminário. Quanto mais cedo principiasse, mais cedo se
ordenaria. Metido na sua batina de sacerdote, só teria este ideal: livrar do 
cativeiro os
outros negros. Do púlpito, no momento da predica, não falaria aos escravos no
tom contemporizador e manso do Padre Policarpo. Seria mais rude, mais objetivo. 
Por 
que os negros teriam de suportar, durante toda a vida, o chicote de seus 
senhores? E onde estava a determinação de Deus, para que os brancos 
escravizassem os pretos? 
Longe, por cima do mar, o céu se avermelhava, e seu tom escarlate ensangüentava 
a crista das ondas, na tarde que "ia esmorecendo. E o que Damião revia, 
alongando
o olhar para a amplidão da barra, era o rio barrento, que se tingia com o sangue
de seu pai.
De noite, no quarto do Padre Policarpo, esperou o momento propício para 
perguntar a este quando pensava levá-lo ao Seminário para iniciar o seu curso. O
padre, sonolento, 
parecia ter mergulhado num cochilo, com a cabeça descansada no punho da rede. 
Daí a pouco, vendo-o erguer as pálpebras, Damião repetiu a pergunta, já de pé 
para 
sair.
E o velho, depois de um bocejo longo, como se procurasse com os pés os chinelos 
para levantar-se:
- Quando chegar a hora, eu te aviso. Por enquanto, vai estudando aqui mesmo. 
Deixa o resto comigo.
Mas só quando se levantou, ainda com o Damião a olhá-lo de sobrancelhas 
travadas, foi que lhe veio o argumento manhoso, que
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evitava revelar-lhe a sua luta para que aceitassem um negro no Seminário:
- Primeiro, precisas ter a tua carta de alforria. O Senhor Bispo já te disse 
que, como escravo, não podes pensar em ser padre. Só te podes matricular no 
Seminário
depois que fores livre. Tem um pouco mais de paciência. Deus sabe o que faz.
Só NO ANO SEGUINTE, pelo meado de agosto, o senhor Bispo pôde afinal dizer ao 
Damião, ao fim da derradeira missa pela paz da alma do Dr. Lustosa:
- Agora, vamos tratar de tua carta de alforria. Hoje mesmo vou escrever à Dona 
Sinhá Lustosa.
E como estavam na sacristia o Padre Lula, o Monsenhor Tavares e o Padre Pinto, 
além do Padre Policarpo, todos se aproximaram do Damião, depois que Dom Manuel o
abraçou".
Enquanto Padre Pinto e Monsenhor Tavares apenas lhe bateram no ombro, 
felicitando-o, o Padre Lula, mais efusivo, apertou-lhe a mão.
Padre Policarpo, de propósito, deixou que os outros lhe tomassem a frente, 
tardando o passo. E quando chegou a sua vez, segurou o rosto de Damião com as 
mãos frias, 
beijando-lhe a testa. Em seguida, depois de olhá-lo nos olhos, comovidamente, 
apertou-o contra o peito. E quando pôde falar, ainda a abraçá-lo:
- Tu conquistastes a tua liberdade trabalhando para o Céu, Damião. com a tua 
ajuda, a alma de teu senhor há de ter chegado diante de Deus. Meus parabéns. Que
Nossa 
Senhora continue a te proteger.
Depois, no palácio do Bispo, à mesa do café, apareceram o Chantre Soares, o 
Cônego Leite, o Padre Abreu, o Cônego Damasceno e Monsenhor Prado, que também 
felicitaram 
Damião, de modo formal, ao verem que o Bispo o fizera sentar à sua esquerda, em 
frente ao Padre Policarpo.

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