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OS TAMBORES DE SÃO LUÍS JOSUÉ MONTELLO LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA - 1978 romance "MESMO não tendo a menor dúvida de que, de todos os romances de Josué Montello, Os tambores de São Luís é o melhor - o mais completo, o mais vivido, tecnicamente o melhor acabado, e, certamente, o que deve recolher sua preferência - não cederei à facilidade de falar em surpresa ou de recorrer ao chavão do "pulo" que muitas vezes o romancista dá de um livro para outro. Quem leu com cuidado e boa disposição Cais da Sagração, não poderá se surpreender muito com a qualidade, a extraordinária qualidade mesmo, repito, desse Os tambores de São Luís. De certo modo, um pressagiava o outro. Mestre Severino, o mulato digno, com seu crime e aqueles seus "olhos esverdeados, as sobrancelhas travadas, o rosto comprido, uma gravidade trágica, tensa", esse Mestre Severino de O Cais da Sagração é bem o irmão do negro Damião, sofredor, vítima, também criminoso em sua primeira mocidade, e ao som dos tambores, que rufam ao longo do percurso memorialmente ciclópico, vai conhecer o trineto em via de nascer. Estamos em São Luís do Maranhão, é noite e o quadro se delineia ante nossos olhos, não sei porque como que preparados para um drama: "Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas.. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galopar nas pedras do calçamento. E sempre o batecum dos tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das ferraduras." E, à sombra desses tambores, é toda a São Luís que surge, a São Luís noturna e a diurna, a de hoje e a da época da escravatura, numa evocação fundida que dificilmente será excedida. Creio mêsmo que poucas cidades, poucas épocas, terão sido "construídas" com tanta singeleza e perfeição, tanta eficiência e exatidão, como essa São Luís de Josué Montello. É realmente nos grandes evocadores de cidades, como o Paris de Balzac e de Zola, a Lisboa de Eça de Queiroz e de Paço D'Arcos, o Rio de Janeiro de Machado de Assis e de Marques Rebelo que somos invencivelmente levados a pensar." OcTAVio DE FARIA OS TAMBORES DE SÃO LUÍS LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA apresenta de JOSUÉ MONTELLO OS TAMBORES DE SÃO LUÍS romance Ilustrações de POTY 3 edição RIO, 1978 Copyright © 1975 by Josué Montello Todos os direitos desta edição reservados à LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A. Rua Marquês de Olinda, 12, Rio de Janeiro - República Federativa do Brasil Printed in Brazil / Impresso no Brasil Capa: desenho de POTY, montagem de EUGÊNIO HIRSCH À memória da preta mina Verônica, que me benzeu com seu raminho de arruda. FICHA CATALOGRÁFICA (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Montelo, Josué, 1917- 1978 Os Tambores de São Luís: romance por Josué Montello; ilustrações de Poty. 3.ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1978 x, 486p. ilustr. 21cm. Dados biobibliográficos do autor. 1. Romance brasileiro. T. Título. CDD - 869.93 75-°38' CDU - 869.0(81)-31 Negros dei continente, ai Nuevo Mundo hábeis dado Ia sal que lê faltaba: sin negros no respiran los tambores y sin negros no suenan Ias guitarras. PABLO NERUDA Bailando con los negros Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue! PADRE ANTÔNIO VIEIRA Sermão da Primeira Dominga da Quaresma Na minha meninice abri olhos inquietos e maravilhados para as danças e cerimônias religiosas desenrolando-se no tradicional terreiro da Casa-Grande das Minas, e meus ouvidos, rudes e frágeis - como conchas bivalves à margem do Oceano - ressoaram com as vozes dos tambores e das gargantas enchendo as noites de melodias e frases que nenhuma boca humana pôde conspurcar. NUNES PEREIRA A Casa das Minas SUMÁRIO NOTA DA EDITORA Dados biobibliográficos do Autor Página yIII BIBLIOGRAFIA DE JOSUÉ MONTELLO Página X OS TAMBORES DE SÃO LUÍS Página I HISTÓRIA DESTE LIVRO (J.M.) Página 485 NOTA DA EDITORA DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR JOSUÉ MONTELLO nasceu em São Luís do Maranhão a 21 de agosto de 1917. Aí passou a sua infância e juventude. No começo de 1936, mudou-se para Belém, dali saindo, com destino ao Rio de Janeiro, em dezembro do mesmo ano. Filho de Antônio Bernardo Montello, de origem italiana, e de Maneia de Souza Montello, de origem portuguesa. Considera-se um homem de sua Província, com a marca da terra e dos hábitos do Maranhão, embora resida no Rio de Janeiro. Morou também no Peru, em Portugal, na Espanha e na França. Mas sempre retornou a São Luís, de que nunca se desprendeu. Quase toda a sua obra literária traz a marca da inspiração e da cultura maranhense. Aos vinte anos, fez concurso para a carreira de Técnico de Educação, do Ministério da Educação. Inspetor Federal do Ensino Comercial, professor de Organização de Bibliotecas do DASP, professor de literatura brasileira do Curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional, Diretor-Geral da mesma Biblioteca, Diretor do Museu Histórico Nacional, Diretor e fundador do Museu da República, membro do Conselho Federal de Educação, Presidente do Conselho Federal de Cultura, titular da Teoria da Literatura da Faculdade de Letras Pedro II, Reitor da Universidade Federal do Maranhão. Josué Montello exerceu também atividade diplomática, como Adido Cultural da Embaixada do Brasil em Lima, no Peru; Adido Cultural da Embaixada do Brasil em Lisboa; Adido Cultural da Embaixada do Brasil em Madri; Conselheiro Cultural da Embaixada do Brasil em Paris. Pertence à Academia Brasileira de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, à Academia Internacional de Cultura Portuguesa, à Sociedade de Geografia de Lisboa, à Academia Maranhense de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, à Academia das Ciências de Lisboa, Doutôr honorís causa pela Universidade Federal do Maranhão, Menbro da Association Internationale dês Critiques Littéraires, de Paris. Romancista, crítico, ensaísta, cronista, conferencista, Josué Montello é detentor dos seguintes prêmios: Prêmio de Romance da Academia Brasileira, Prêmio de Ensaie da mesma Academia, Prêmio de Teatro igualmente da Academia Brasileira. Conquistou, o Prêmio Intelectual do Ano, por votação nacional, iniciativa da União Brasileira de Escritores. Seu romance Os degraus do paraíso obteve os seguintes prêmios: Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores (seção do Rio de Janeiro), e Prêmio Luiza Cláudio de Souza, do Pen Clube do Brasil. Prêmio de Romance da Fundação Cultural de Brasília, com Cais da Sagração. A obra literária de Josué Montello eleva-se a mais de setenta títulos. Ê colaborador permanente do Jornal do Brasil e da Manchete. Seu estudo Un Maítre oublié de Stendhal, publicado em Paris, pelas edições Seghers, mereceu de Pierre-Henri Simon, crítico de Lê Monde e membro da Academia Francesa, na crônica que lhe consagrou, este elogio: Sua pena francesa é tão impecável quanto a sua erudição stendhaliana. Josué Montello é casado com Yvonne Montello. De seu primeiro matrimônio tem duas filhas: Lenka Elisabeth e Lília. A primeira, casada com Armando Leite; a segunda, com Horácio Amaral. Tem cinco netos: Mauro, Ricardo, Renata, Roberto e Daniela. Julga-se um homem plenamente realizado. E só deseja, hoje, e enquanto viver, a cordialidade de seus contemporâneos. BIBLIOGRAFIA DE JOSUÉ MONTELLO 1936 - História dos homens de nossa história - de colaboração com Hélio Reis (história). 1937 - O sentido educativo da arte dramática - tese de concurso (educação). 194Í - Janelas fechadas (romance). 1942 - Gonçalves Dias (ensaio). 1943 - Curso de organização e admi- nistração de bibliotecas (biblioteconomia).1943 - Precisa-se de um anjo (tea- tro). 1944 - Histórias da vida literária (en- saios). 1944 - o tesouro de Dom José (lite- ratura infantil). Í945 - As aventuras do Calunga (literatura infantil). 1945 - Q bicho do circo (literatura infantil). 1946 - Os holandeses no Maranhão (história). 1946 - Reforma do ensino normal no Maranhão (educação). 1946 - A viagem fantástica (literatu- ra infantil). 1947 - Escola de saudade (teatro). 1948 - A cabeça de ouro (literatura infantil). 1948 - A luz da estrela morta (romance). 1948 - Problemas da Biblioteca Na- cional (biblioteconomia). 1949 - o Hamlet de Antônio Nobre (ensaio). 1949 - Theremin (história). 1950 - Cervantes e o moinho de ven- to (ensaio). 1952 - O labirinto de espelhos (romance). 1953 - Fontes tradicionais de Antônio Nobre (ensaio). 1954 - Ricardo Palma, clássico da América (ensaio). 1954 - o verdugo (teatro). 1955 - A ficção naturalista, in A li- teratura no Brasil (ensaio). 1955 - O fio da meada (novelas). 1955 - Um precursor: Manoel Antô- nio de Almeida, in A literatura no Brasil (ensaio). 1956 - Artur Azevedo e a arte do conto (ensaio). 1956 - Discurso de posse na Academia Brasileira. 1956 - Estampas literárias (ensaios) 1959 - O anel que tu me deste (teatro). 1959 - Através do olho mágico (teatro). 1959 - Caminho da fonte (ensaios). 1959 - A décima noite (romance). 1959 - A oratória atual do Brasil (ensaio). 1960 - Alegoria das Três Capitais - de colaboração com Chianca de Garcia (teatro). 1960 - A baronesa (teatro). 1960 - Ford (biografia). 1960 - Miragem (teatro). 1961 - Discurso de saudação a Cân- dido Mota Filho na Academia Brasileira. 1961 - O Presidente Machado de Assis (ensaio). 1962 - Discurso de saudação ao Pre- sidente Manuel Prado na Academia Brasileira. 1962 - No centenário de Júlio de Mesquita, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (ensaio). 1963 - Aluízio Azevedo (antologia). 1963 - Pequeno anedotário da Academia Brasileira (história). 1963 - O poeta José Bonifácio, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (ensaio). 1965 - Oi degraus do paraíso (romance). 1965 - Os feriados nacionais (educa- ção cívica). 1966 - Duas vezes perdida (novelas). 1967 - O conto brasileiro, de Macha- do de Assis a Monteiro Loba-- to (ensaio). 1967 - Na casa dos 40 (história). 1967 - No centenário de Antônio Nobre, in Portugália (ensaio). 1967 - Numa véspera de Natal (no- vela). 1968 - Bispos de outrora, in O assun- to é padre (história). 1968 - Marcas literárias da comunidade luso-brasileira, in Boletim da Academia Internacional da Cultura Portuguesa (ensaio). 1968 - Santos de casa (ensaio). 1968 - Uma tarde, outra tarde (no- velas). 1969 - Uma palavra depois de outra (ensaios). 1970 - Un maitre oublié de Stendhal (ensaio publicado em Paris). 1970 - Viés éteintes (novela publicada em Paris). 1971 - Cais da sagração (romance). 1971 - Estante giratória (ensaios). 1972 - Cochrane no Maranhão, in Navigator (história). 1972 - História da Independência do Brasil, 4 v. (Introdução, planejamento e direção geral) 1972 - Machado de Assis (antologia). 1972 - Pedro l e a Independência do Brasil à luz da correspondência epistolar (história). 1972 - Rugendas - Introdução de Viagem pitoresca através do Brasil (história). 1972 - A transição da cultura brasi- leira, in Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (história). 1973 - Anedotário geral da Acade- mia Brasileira (história). 1973 - Oi bonecos indultados (crônicas). 1973 - Gonçalves Dias (antologia). 1973 - José de Alencar (antologia). 1975 - Aluízio Azevedo e a polêmica d'"O Mulato" (história literária). 1975 - Oi tambores de São Luís (romance). 1975 - Quay of Coronation (tradução de Cais da sagração, por Myrian Henderson, publicado em Londres por Rex Collings). Duas novelas de Josué Montello foram transpostas- para o cinema, em filmes de longa-metragem; ambos dirigidos por Willíam Cobbett: Uma tarde, outra tarde e O monstro. OS TAMBORES DE SÃO LUÍS romance de J. M. A TÉ ALI os TAMBORES da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi- Zamadone, o dono do lugar. Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear. Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças. Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro. Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o batecum dos tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das ferraduras. No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira, Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás. Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de solicitador, para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço da gravata. - Faça favor... Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado, bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura, e que logo lhe disse, com um pedaço de papel impresso na ponta dos dedos: - É o convite para o meu próximo espetáculo. - Outra vez A queda da Bandeira? - É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda. Damião quis ainda saberpor que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas fechadas, para distribuir os seus convites. - De dia - redargüiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques estão dormindo. E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído, apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio. Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma cartola preta, casaca, sapatos - 4 cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como - o Husor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa supostalíngua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão. - Bis, bis - gritavam-lhe da torrinha. E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e assobios. Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou de calçada, ainda ouvindo o batecum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Caiu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar. O próprio Tião, no mesmo carro em que fora buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de que, antes do anoitecer, a Biá começara a sentir fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz o primeiro filho. - Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está cheia de parentes. É bom que o senhor também esteja lá, para receber o seu trineto. - Sim, irei - concordara. - Mas não já. O primeiro parto dá muito rebate falso. Isso é coisa para o meio da noite. E antes do Tião sair: - Eu sou do tempo em que os mais moços esperavam pelos mais velhos. - Hoje, tá tudo mudando - emendou o Tião. 5 E como o tinham deixado só, no rebuliço do primeiro trineto da família, apenas com a criada que lhe servira apressadamente o jantar (e também se fora para a casa da Biá), Damião se vestiu devagar, sabendo que não adiantava ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na cadeira de balanço da varanda, antes de deixar a casa entregue ao Veludo, que andava na fase de latir e correr, próprio do cio insatisfeito. Levara bom tempo na esquina da Rua das Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o transportasse à Gamboa. Terminara reconhecendo que, se dependesse mesmo de um carro, só iria conhecer o trineto depois de grande. O jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite. Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distante do Cemitério dos Ingleses, experimentou de repente uma sensação de frio, que lhe desceu da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o tivesse apanhado por trás, em toda a extensão do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu caminho, sem aumentar nem diminuir o passo, ao mesmo tempo que procurava convencer-se de que a rajada viera da Rua da Cotovia. Parou adiante, apalpando os bolsos da calça, à procura do maço de cigarros. Tinha trazido os cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos. - Velho é assim mesmo: quando se lembra de uma coisa, esquece outra. Paciência. Senhor de si, voltou a caminhar, procurando espairecer os olhos no ermo da rua longa. De novo o vento soprou, agora mais forte, como se o tempo fosse mudar. O céu limpo tranqüilizou Damião. Uma janela bateu; por cima de um muro, estalou um galho de árvore, que resvalou para a calçada; adiante, uma vidraça partiu, no bater violento de outra janela; uma lata vazia rolou pelo meio-fio. Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele teve a impressão de que algo estranho, que se associava à sua pessoa, estaria ocorrendo naquele momento. Tentou sacudir de si a impressão aborrecida, e esta retornou, insidiosa, opressiva, com a teimosia de um mau presságio. Pensou na Biá. Não, não seria nada com ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e assegurara que seu parto seria normal. Tudo bem, e a criança no seu lugar; era só esperar agora pela reação da natureza, sob a vigilância experiente da Comadre Ludovina. - E a Comadre Ludovina já está lá. Foi então que escutou o romper dos tambores, ali perto, na Casa-Grande das Minas. Quase no mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram as cabaças, mas não suplantaram os tambores, que iam acelerando o tantantã nervoso que obriga as noviches a girarem sobre si mesmas. Dir-se-ia que uma batida queria alcançar a seguinte, sem que um tamboreiro destoasse dos outros na vertigem do compasso. E só esse batecum frenético se impunha agora, apagando o som dos outros instrumentos, e também só ele o vento levava, rua abaixo e rua acima, 6 dispersando-o na grande noite de agosto que se fechava sobre a cidade. Depois de passar para o outro lado da rua, Damião deu consigo na calçada do querebetã, e ali retardou a caminhada, querendo entrar. Era uma casa baixa, de beiral saliente, caiada de novo, na esquina do Beco das Crioulas, com janelas de rótulas e porta de duas folhas, sobre a Rua de São Pantaleão. Só uma banda da porta estava aberta. Parado na soleira, ele olhou para dentro, e viu o corredor e a varanda já repletos, com as noviches dançando em volta da nochê Andreza Maria. E ia dar o primeiro passo no corredor, quando a nochê subiu o xale para os ombros, compelindo os tamboreiros a uma pausa brusca, logo interrompida por um bater mais forte, em outro ritmo, e veio caminhando para a porta, no espaço que se ia abrindo para lhe dar passagem. Damião tinha dado outro passo, e ali esperou que ela o levasse. Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos? Meia hora? Ou mais ainda? Mais ainda, certamente. O importante é que, depois de ouvir os tamboreiros e assistir às danças rituais, se sentia preparado para ir ao encontro de seu trineto. Sentado no banco, a olhar as noviches dançando rodeadas de velas, era outra vez o negro puro, filho de sua raça, em contato com as remotas raízes africanas. E assim entrou na Rua do Passeio, descendo pelo Beco das Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã dos tambores. A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de outro, com grades de ferro rendilhadas,. vidros coloridos no leque das janelas, um ou outro portal de pedra. Sem relógio para ver as horas (o seu andava na loja do Maneco Ourives, para limpeza geral da máquina, já fazia uma semana), era debalde que Damião consultava de vez em quando a posição da lua, que ora se escondia por trás dos mirantes mais altos, ora repontavaadiante, curva e pontuda como um chavelho de bumba-meu-boi entrando no terreiro. No canto da Rua de Santana, o bico de gás do lampião estava prestes a apagar, reduzido a uma chamazinha débil, que se encolhia no bocal empoeirado, com medo da noite, a escuridão a se fechar à sua volta. E outra vez Damião se assustou, agora com a zoada de uma lata de lixo, que ia sendo arrastada nas pedras do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com uma pata traseira pendurada, que a arrastava com o focinho, enquanto o lixo se esparramava na calçada escura. Ao pressentir os passos de Damião, já bem perto, o cão assustou-se também, retirou depressa a cabeça de dentro da lata, e correu para o outro lado da rua, capengando, com um osso na boca. Um pouco além, Damião ouve o som de um piano mal tocado, para os lados da Rua do Oiteiro. E enquanto apura a orelha, tentando identificar os compassos da valsa, uma carruagem dispara pela Rua do Passeio, à altura do Hospital Português, e é tão próximo o tropel dos cavalos e o estrondo das rodas, que ele fica esperando que ela passe ao seu lado, seguindo a toda brida na direção do Largo do Quartel: Como demore passar, ele se volta para trás, e não a vê: na rua deserta, só o cão rói o seu osso, à luz de outro lampião. A carruagem dobrou a Rua do Mocambo, e seu rumor se afasta no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo tempo que o piano se cala, e volta a ressoar, um pouco mais distante, o batecum dos tambores, na Casa-Grande das Minas. Damião se lembrou que Donana Jansen saía de seu túmulo, nas noites de sexta- feira, e dava uma volta comprida pela cidade, numa carruagem puxada por duas parelhas de cavalos sem cabeça, com um esqueleto na boléia brandindo o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das ferraduras, despencando ladeira abaixo. - Bobagem - reagiu Damião. - História inventada pelos inimigos políticos da velha. Quem morreu quer sossego. E apalpando novamente o bolso da calça, tirou fora um cigarro, que deixou no canto da boca. Mais além, talvez ainda estivesse aberto o botequim da esquina da Rua Grande. Como fora esquecer de trazer a caixa de fósforos? Logo ele que, depois de velho, não dispensava os cigarrinhos da noite, para esperar o sono... E nisto se viu saindo do quarto da Maria Quitéria, nos baixos de um sobradinho da Rua da Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoante de louça quebrada, a poucos passos, adiante da escadaria da Rua do Giz. Retardou o andar, intrigado. Era uma louça atrás da outra, e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas pancadas firmes, que faziam voar para todos os lados os cacos partidos. Do patamar da escadaria, estendeu o olhar para baixo. Ao pé do último socalco, à porta do sobrado do Comendador Antônio Meireles, na claridade do dia que ia rompendo, um bando de negros em ação, cada qual com seu porrete de pau-roxo, quebrava depressa pilhas e pilhas de vasos de louça empilhados na calçada. Damião desceu os socalcos quase a correr, e antes de chegar cá embaixo começou a rir, adivinhando o que se passava. Dias e dias, já fazia, alguns meses, era o assunto de São Luís inteira, nas rodas do Largo do Carmo, nas conversas do Passeio Público, no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha mandado preparar na Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de belos penicos de louça, com a cara da velha no fundo do vaso Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que, agora, sim, só ela os possuía. 8 Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos negros: - De quem vocês são escravos? - De Donana Jansen. Eram mais de trinta negros, todos fortes, espadaúdos, e iam quebrando os urinóis com uma fúria divertida, repetindo as cacetadas rijas, que desfaziam a louça apenas com uma pancada. A vizinhança ia despertando com a zoadaria estranha. Caras estremunhadas entreabriam as rótulas, nas janelas dos sobrados, e já algumas pessoas se debruçavam das sacadas, enquanto outras, na rua, em chinelos, no chambre de dormir, riam alto, vendo as matanças dos penicos. Um cheiro insuportável de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros, quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça. - E esse aí? - quis saber Damião. - Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra tomar satisfação. E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro: - Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra se coçar. Ora se tem! Ainda com o cigarro apagado no canto da boca, Damião aproximou-se da Rua Grande, pensando onde ia encontrar, ali perto, uma caixa de fósforos para comprar. E não tinha chegado à esquina, defronte de um casarão de altas janelas ogivais, quando viu entreaberta a porta do botequim. Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe os passos, com a lua nova a se esconder e a brilhar, na faiscação do céu estrelado. E agora o assobio do vento, que disparava na rua deserta, varrendo as calçadas, para se desfazer no giro doido de um remoinho. Dentro do botequim, a única luz era a chama de um candeeiro a óleo, suspenso da parede esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por cima do balcão, mal dando para clarear uma parte da saleta pontilhada de mesas vazias. Dentro do balcão, ninguém. Damião subiu o degrau da porta, avançou uns passos, bateu palmas. Enquanto esperava que o atendessem, olhou em volta, aproximando-se do balcão. E foi aí que viu por terra, entre as duas primeiras mesas à sua direita, o vulto de um negro magro, comprido, bem trajado, caído de braços numa poça de sangue, com uma facada nas costas, à altura do coração. Parado, ficou um momento a fitá-lo, de olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a nuca e uma parte do pescoço. Pela roupa, era gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver se lhe restava um alento de vida, mas o corpo permaneceu imóvel, com o busto achatando o braço direito, na posição em que tinha caído. Na claridade que ia esmorecendo, Damião olhou em volta, de sobrancelhas travadas. Numa das mesas, mais para o fundo da saleta, acumulavam-se garrafas de bebida, quase todas tombadas sobre o tampo de mármore, juntamente com um copo quebrado e um cinzeiro atulhado de cinza e pontas de cigarro. Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de suas botinas, assim que deu outro passo, na direção do candeeiro. E ali, com uma suspeita, espiou para dentro do balcão. Outro morto jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendida por uma paulada. Estava de frente, com o busto meio apoiado no ângulo entre o balcão e a prateleira. E a luz que descia sobre ele, muito tênue, levemente avermelhada, permitiu que Damião prontamente identificasse, pelo rosto coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo, lhe tinha vendido um maço de cigarros. O RIO LARGO, enxameado de piranhas, ficava a quatro dias de viagem pelos meandros da floresta. Para alcançar a vila mais próxima, era preciso passar para a outra margem, remando contra a correnteza, e andar outros quatro dias, sempre dentro da mata, por um caminho que só os negros conheciam. Julião tinha sido o primeiro a chegar ali, já fazia alguns anos. Viera da Fazenda Bela Vista, trazendo consigo a mulher e os dois filhos, uma menina e um menino, ambos ainda crianças, suportando uma caminhada tão penosa, sempre com a impressão de estar sendo seguido, que levara quase um mês para chegar àquela abertura da mata, à beira de um pequeno lago. Damião, por esse tempo, já fizeraoito anos, e era alto, magro, dando a impressão de ter doze, muito parecido com o pai. A Leocádia, sempre enfermiça, era dois anos mais moça que o irmão, e foi ele que se encarregou de traze-la ao longo da viagem, pondo-a às costas quando era preciso, porque a mãe e o pai vinham carregados com o que fora possível trazer da fazenda, na precipitação da fuga. Para trás, na primeira noite assustada, tinha ficado o clarão do incêndio que Julião ateara, parte no canavial, parte na casa-grande, no engenho e na cocheira, só poupando mesmo a senzala. E enquanto 10 as labaredas subiam, atirando rolos escuros de fumaça, sob o clarão da lua cheia, ele e a Inácia tinham apanhado os filhos, esgueirando-se para a estrada em dois cavalos de sela, até o ponto da floresta onde Damião vinha escondendo a bagagem. Fazia muito tempo que planejava fugir; mas a isto só se decidira „ quando soube que o Dr. Lustosa tinha apalavrado a venda do Damião. Tudo admitia, menos separar-se dos filhos. Tinham-lhe falado no Quilombo do Mané Quirino, para os lados do rio Maracaçumé, no caminho do Pará. Na travessia do rio, fora obrigado a sacrificar um dos cavalos, e o outro, que levava a bagagem, tinha chegado à margem oposta já com uma pata traseira consumida em parte pelas piranhas. Sacrificara-o também, para ao menos aproveitar-lhe a carne. E todo o resto do caminho teve de ser feito a pé, dias seguidos, só descansando nas noites sem lua. Foi a Inácia que lhe propôs, na volta da lua cheia, quando não podia mais andar, de tanto lhe doerem os pés inchados: - Vamos ficar puraqui. Não agüento mais, Julião. As sondagens que ele fez, nos dias subseqüentes, batendo a selva em todas as direções, deram-lhe a certeza de que, ali, não iriam procurá-lo. Ergueu a sua palhoça e fez o seu roçado, e logo as chuvas vieram, grossas, copiosas, como se quisessem levá-los também na correnteza das enxurradas. Ao fim de um ano, já a casa era outra, mais sólida, as paredes de pindoba, o chão de terra batida, os esteios de aroeira. Durante todo esse tempo, só uma vez Julião se ausentou, para ir à vila, deixando o filho em seu lugar. E quando voltou, muitos dias depois, trouxe o casal de porcos, que prendeu no chiqueiro, e mais a galinha choca, que não tardou a mariscar o chão com a sua ninhada. No fim do outro inverno, o Prudêncio e o Balbino ali chegaram de surpresa, trazendo no corpo as marcas das últimas chicotadas que o próprio Dr. Lustosa fazia questão de dar, com a força e a ira de seu único braço: - Tem sordado do Governo te procurando - preveniu o Prudêncio, que falava depressa e contado. - Nós apanhou como bicho, e não disse onde tu tava. Até nos jorná de São Luís se falou que tu fugiu, depois de tocar fogo na casa de teu sinhô. E o Balbino completou: - Quando nos sortaram, nós fugiu. Quirino jurou que foge. -" Também o Bastião e o Nonato. Não se agüenta mais o home. Todo dia tem gente no tronco prele surrar. A veia Coió, coitada, morreu apanhando. E era o doutô que tava com o chicote. Mas da Bela Vista, nos meses seguintes, só apareceu a Rosaria, gorda, pesada, o lábio inferior caído, os olhos pulados, sem que se pudesse supor que, com seu corpanzil adiposo, fosse capaz de tão longa caminhada. Apareceu pelo fim da tarde, com a sua trouxa 11 na cabeça, a barra da saia crivada de carrapichos, e foi dizendo, assim que deu com o Prudêncio: - Eu jurei que te achava, e achei. Egressos de outras fazendas longínquas, novos negros ali chegaram, e não tardou que, uma noite, à hora em que descem os voduns nos terreiros sagrados, ressoasse um tambor, abafado pela floresta circundante. Também apareceu uma cabaça. E ainda um ogã. Nessas ocasiões, o alarmado Bonifácio, sempre na ponta dos pés, vinha recomendar aos tocadores, sobretudo ao tamboreiro: - Mais baixo, amigo. O vento acaba dizendo onde nós se escondeu. Toma tenção, Mundico. Te lembra do chicote. Mas a clareira era mesmo fechada, e o vento desfazia o ruído do tambor nos rumores da mata, com o entrechocar dos ramos, o sussurro das folhagens, o rolar das águas, o piar das corujas e o grito dos bacuraus. De vez em quando ouvia-se o esturro de uma onça. Ou o chocalhar de uma cascavel. Depois, com a volta das chuvas, era o estrondo doç trovões, que parecia sacudir o mundo. Damião também se recordava, com a mais absoluta nitidez, da tarde em que surgiu no quilombo um negro de barbicha, cheio de corpo, entroncado, forcejando para puxar um jumento, que empacara na descida do terreno. Afinal, fustigado por um cipó, o jerico terminou por afrouxar as patas, e desceu a ladeira. - Sou de paz - avisou o negro, passando à frente do jumento. - Aqui, quem é que manda? - Vá-se chegando - ordenou Julião, da raiz do pau-d'arco onde se achava sentado. E o outro, depois de amarrar o jerico num moirão de cerca: - Está falando com o Barão Altino Celestino dos Anjos. Vosmecê não precisa me chamar de Altino, nem de Celestino, nem dos Anjos. Me chame mesmo Barão. É como eu gosto que me chamem. Julião sorriu, depois riu mesmo, sem tirar os olhos do Barão. E ainda rindo: - E vosmecê é mesmo Barão? Onde se viu preto Barão? - Para Deus, que tudo pode, nada é impossível. Sou Barão de papel passado. Por obra e graça do sempre lembrado Dom Cosme Bento das Chagas, Imperador, Tutor e Defensor das Liberdades Bemte-vis, injustamente enforcado pelo Governo de São Luís. Julião chegou o corpo mais para a frente, e cruzando as pernas, com as mãos nos joelhos: - Moço, me conte isso direito. Tou querendo saber. - Antes, deixe eu lhe mostrar, com o meu diploma, que sou mesmo Barão. com licença, meu Chefe. E tornando ao jumento, tirou do baú de couro, pendente de um dos lados da cangalha, um papel grosso, que veio abrindo enquanto voltava à presença de Julião. com o papel aberto, olhou em volta: - Alguém aqui sabe ler? 12 Os outros negros, que se tinham aproximado, entreolharam-se, com ar de vergonha e riso. Foi o Prudêncio que respondeu: - E adonde tu viu negro escravo saber ler? Tu tá falando demais, Barão. É mió tu calar essa boca. - Pois eu sei. Minha Sinhá mandou me ensinar. - Então lê teu papel - ordenou Julião. E o Barão, muito compenetrado de sua fidalguia: "Sai hoje na ordem do dia esta nomeação do Barão Altino Celestino dos Anjos, que foi escravo de Donana Jansen, depois de seu filho Isidoro, que veio pró sertão combater os Balaios e depois se passou para a minha gente, com muito ato de bravura. Vai pagar 100$000, sendo 50$000 à vista e os outros 50$000 fiados por um ano, ao qual se fará as honras de minha imperial casa, e quem não fizer ficará desgraçado." Calou-se, olhando em redor, envaidecido. E ainda com o papel desdobrado, acrescentou: - Aqui embaixo tem uma cruz. Esta cruz quer dizer: Dom Cosme Bento das Chagas. Quem escrevia o diploma era um empregado dele, português, Seu Quincas. Só Dom Cosme fazia esta cruz, aqui do lado. Guardando o papel de novo no baú, perguntou: - Ninguém aqui ouviu falar de Dom Cosme, o preto de mais poder em todo o nosso Maranhão? - Eu ouvi - respondeu um dos pretos que andavam a limpar o terreno, na descida do lago. - Só não fui pró lado dele porque a guerra acabou. O Barão tinha-se sentado noutra raiz do pau-d'arco, ao lado de Julião, perfeitamente à vontade: - com licença aqui do nosso Chefe, faço questão de contar o que vi. Quem quiser pode pensar que é mentira. Juro por Deus e por esta cruz que me alumia: é tudo verdade. Verdade mesmo, com o testemunho de Nosso Senhor, que está lá em cima me ouvindo e não me deixa inventar. E até tarde, como se não tivesse reparado que as sombras da noite iam escondendo as duas ruas do quilombo, com seus renques de palhoças ainda novas, recordou a figura imponente do preto Cosme, que só andava num andor, no ombro de quatro pretos, metido numa roupa de padre, com um chapéu 'alto na cabeça, dando patentes de capitão e títulos de nobreza aos seus amigos, sempre por atos de bravura, e que consistiam em saquear as fazendas próximas. Eram mais de cinco mil os que andavam comele. E tinha seus ministros e cortesãos, como o outro Imperador, que vivia no Rio de Janeiro, com seu papo de tucano. Abriu uma escola, para a negrada aprender a ier e escrever, e era sem conta a gente armada de bacamartes, espadas, lanças, espingardas, facas, punhais, barras de ferro e até pistolas, pronta para defendê-lo. 13 E como foi que ele perdeu tudo isso? - quis saber Da- mião, sentado ao pé do pai, a ouvir atentamente o Barão, sem perder uma só palavra. - A força do Governo, que andava perseguindo o Balaio no sertão, acabou perseguindo também o negro Cosme, na fazenda da Lagoa Amarela, e um dia nos cercou de jeito, com muito soldado e muita munição, sem dar tempo da gente reagir. Tivemos de entregar nossas armas. Cada um vinha, atirava a arma perto do Tenente, e saía dali com a mão na nuca, sem ordem de ir embora. Mas de noite, nu como Deus me fez, consegui fugir. Voltou-se novamente para Julião: - Agora, se o meu Chefe me permite, eu e o meu jumento passamos' aqui uns tempos, sem aborrecer ninguém. E foi ele que, dias depois, pela manhã, tirou do baú um de seus livros que o muito manuseio ensebara, e disse a Damião, debaixo da sombra de uma ingazeira: - Vou-te ensinar a ler. E ali mesmo principou a mostrar-lhe as letras, que Damião olhava um momento e logo as retinha na memória. Por esse tempo já o menino podia dizer, um a um, por ordem de chegada, o nome das pessoas do quilombo. Se lhe contavam uma história, reproduzia-a com as mesmas palavras. De modo que, ao cabo de um mês, já o Barão passava a ler com ele a História de Carlos Magno e dos doze pares de França. - Menino danado - reconheceu, feliz. - Tua cabeça parece baú de velha: tudo o que a gente põe dentro, aí fica, e muito bem guardado. Benza-te Deus, Damião. E deu-lhe de presente a sua velha Bíblia, toda negra, com uma cruz doirada na capa, já meio desbotada. Depois do Barão, outros negros apareceram, e ali ficaram. Não vieram de uma vez, ou no espaço de poucas semanas; porém ao longo de vários meses, e todos eles, ao defrontarem com a clareira alargada pelas palhoças, e só de negros, abriam o mesmo riso triunfante. Houve mesmo um preto velho, de carapinha toda branca, uma cicatriz em diagonal cortando-lhe o dorso nu, que se pôs a pular num pé só, à maneira de um saci, dando a volta no quilombo e repetindo, como ao compasso de um berimbau: - Ê, ê, ê, ê, o senhor não me pega! Ê, ê, ê, ê, o senhor não me pega! Antes de fechar a volta, bambeou no pé hesitante, e foi em vão que procurou equilibrar-se na outra perna, ainda rindo: caiu ali mesmo por cima do peito, e não se levantou nem gemeu. Mais tarde, em sua honra, sem que aos menos lhe soubessem o nome nem de onde viera, ressoou surdamente o tambor de choro, até tarde, madrugada adentro,- com o corpo no meio do terreiro, e as velhas à sua volta entoando o canto fúnebre dos velhos ritos africanos. 14 De uma vez, ao romper da manhã, pelo fim das grandes águas, quatro negros armados, só com uma tanga esfarrapada a lhes cobrir as vergonhas, irromperam no quilombo, um atrás do outro, sem que se tivesse ouvido o aviso da sentinela. Traziam espingardas, chuços de ferro e uma lança pontuda, e todos de rosto encovado, os olhos grandes, quase só pele e osso, um brilho de febre nas pupilas. Julião esperou por eles, no cômoro de onde olhava a revoada matinal das garças, e viu que não eram de paz; mas, antes que lhes ordenasse largarem as armas, já com os outros negros do quilombo fechando o cerco em redor dos desconhecidos, três deles as lançaram por terra, enquanto o outro se punha em guarda, com a sua lança em posição de ataque, ao mesmo tempo que o Bonifácio chegava com a notícia de que, adiante dos Angicos, junto ao riachão da Paciência, o Salustiano tinha sido encontrado morto no seu posto. E Julião, para o negro que empunhava a lança: - E por que tu fez isso com ele? Um negro como tu? - Ele só deixava a gente passar sem as armas. E ali mesmo Julião ordenou que o enforcassem. Já fazia mais de cinco anos que eles se haviam desgarrado do Balaio, e, não sabiam como, tinham chegado até ali, fugindo dos índios e dos soldados do Governo. Eram quinze, no começo. Os demais foram ficando no caminho. Só eles restavam, e queriam ainda ir ao encontro do Balaio. - A guerra acabou, já faz muito tempo - adiantou o Barão. - Eu também andei metido nela. Enforcaram o negro Cosme. Ninguém sabe que fim teve o Balaio. E diante do companheiro morto, que pendia de um galho de ipê, os três outros se puseram a chorar, caídos ao chão, misturando-se ao pó da terra, como se só agora estivessem mesmo perdidos. Foi quase um mês depois, nos dias de vento frio que precedem o São João, que o Samuel chegou ao quilombo deste modo divertido: inteiramente nu, perseguido pelo bode Manhoso. Primeiro surgiu o preto, saído de uma das veredas da mata, e quase foi alcançado pelo tiro de espingarda que um dos vigias detonou em sua direção. O bode, que vinha logo atrás, assustou-se com o estampido, e aos pinotes retrocedeu para a mata, enquanto os cães acossavam o preto, que defendia, com as mãos aflitas, seu membro enorme ameaçado pelas dentuças agressivas. Damião andava a assustar os guarás no lago, quando ouviu os latidos. com uma vara, enxotou a matilha, e não pôde deixar de rir ante o ar aflito do preto - de olhos imensos, dentadura muito alva, a mover a cabeça para um lado e para o outro, as mãos espalmadas diante do pênis, sem conseguir escondê-lo de todo, pois, para baixo, ainda ficava um palmo de pouca-vergonha, enorme como o de um cavalo. O Barão acudiu com um pedaço de estopa: 15 - Benza-te Deus, amigo. Trata de esconder a prenda, para não dar muito na vista. De todas as palhoças saíam curiosos, e eram sobretudo mulheres e meninos, todos a rirem, e riram mais quando o Manhoso voltou, e ficou um momento a olhar para o negro, de cabeça baixa, os chavelhos em riste. Como a estopa, transformada em tanga, ainda foi pouca, os risos redobraram em forma de gaitadas, e já o Vadico e o Crispim, que tinham chegado por último, pediam ao negro que se mostrasse, para que também, como filhos de Deus, vissem o despropósito. A Rosaria, que havia engordado ainda mais, sentia-se sufocar, balançando o corpo para a frente e para trás, com as costas da mão diante da boca, os olhinhos apertados pelas convulsões da gargalhada. Mas de pronto as risadas se recolheram, e a alta figura do Julião, descendo devagar a rampa do lago para o terreiro, deu de frente com o Samuel, que se curvara um pouco, puxando para baixo a frente da tanga. E sempre curvado, olhava de esguelha, com uma fisionomia suplicante, para o preto esguio e alto que o fitava: - Faz bem seis mês que eu ando fugido dentro do mato. Não mande eu embora nem me mate. Eu também posso ajudar. Já nessa noite, metido numa calça de riscado alinhavada pela Rosária, o Samuel pediu ao Mundico que lhe emprestasse o tambor, e então todo o quilombo veio para perto, atraído pelas primeiras batidas, e então se viu que era mesmo um tamboreiro. A agilidade de suas mãos pequenas, rufando nervosamente o instrumento, tinham um ritmo próprio, e tão vertiginoso, no seu batecum frenético, que o Mundico o ouviu de boca aberta o tempo todo, sabendo que não podia mais tocar. Depois, com o passar dos meses, Samuel mostrou outras habilidades. com um baralho nas mãos, enganava quem quisesse. Chegou-se a pensar que tivesse partes com o Diabo. Mas foi ele quem teve a idéia de erguer-se uma capela para Nossa Senhora do Rosário, além de ter feito a imagem da santa em pinho-de-riga, que desbastou a canivete e ainda encarnou, com traças de santeiro consumado. O Barão, que era também habilidoso, só levava sobre ele a vantagem de saber ler. No mais, dava-se por vencido. E como gostava de poupar-se, apreciando as sonecas à sombra da aroeira enquanto cantavam os passarinhos, não viu com maus olhos o concorrente, antes o estimulou, gabando-lhe as artes: - Te cedo a vez, meu nego. Deus te acrescente. E a verdade é que de tudo o criouloparecia entender. Se era preciso buscar no mato uma erva curativa, quer de dia, quer de noite, ele se precipitava por entre as árvores, curvado para o chão, e dali trazia a folha de boldo, a raiz de jurubeba ou a casca da caneleira, que aliviava o doente. À hora da morte, mandavam chamá- lo. E a mais de um parto difícil, que o sopro da garrafa não resolvia, ele soubera 16 dar jeito, ajudando a Comadre Benedita, que não sabia mais o que fazer para tirar fora a criança. Também para mordidas de cobras, fossem de cascavel ou jararaca, Samuel sabia a reza forte, que ajudava a chupar o sangue, e só não fazia efeito se a vítima tivesse mesmo de morrer, por ordem expressa de Nosso Senhor. Pequeno de corpo, largo de ombros, ninguém o batia na agilidade e destreza com que, diante de uma onça-pintada, disparava a flecha que imobilizava a fera. O sangue-frio dava-lhe firmeza ao braço. E era astucioso como ninguém. Daí ter sido escolhido para substituir o Apolinário (que ultimamente dera para beber), na missão de ir a um dos povoados mais próximos, de mês em mês, para trocar o milho, o feijão e as frutas do quilombo, pelas coisas que ali faltavam, como o sal, o fósforo, as velas de estearina, os côvados de pano e a munição das espingardas. Damião, em pouco tempo, não quis outro amigo. A bem dizer, foi o Samuel que o iniciou mesmo na vida, levando-o a um recesso da mata, que só ele conhecia, e ali já encontraram a Turíbia, à espera do menino, de costas, sentada nos calcanhares, apenas com uma tira de pano sobre as espáduas. Ela não se virou, com o estralar dos gravetos e das folhas secas. E sem se voltar, ainda a esgravatar o chão com uma ponta de cipó, perguntou: - Ocê truxe ele, Samuel? - - Tá aqui te ciando. - Antão deixa ele e vai-te embora. Não fica pur aí ciando, que eu não gosto. E só depois que os passos do Samuel se distanciaram, ela se levantou, rindo para Damião. Estava mesmo nua, o vestido de riscado em cima de uma pedra, e ali pôs também o pano. Devia andar pelos vinte anos, e tinha os seios grandes, de mamilos enormes e muito negros, as ancas espalhadas. Bonita não era, com os olhos meio estrábicos. Junto à pedra, fingiu dar uns retoques no leito de folhas secas que havia preparado por cima da terra úmida. E tornando a erguer a cabeça, veio-se aproximando de Damião, oferecida e envergonhada: - Credo! Tu óia a gente cuns óio de fogo. Nunca viu muié nua? Tá vendo agora. Nunca mais Damião esqueceria as mãos que o despiam, e o primeiro roçar dos seios dela no seu corpo, e os zumbidos da mata circundante, com o restolhar das lagartixas e os trilos e pipilos dos passarinhos. E quando a Turíbia se entregou, a lhe pedir, gemendo, que pusesse um filho no seu ventre, um filho bem macho, capaz de lhe encher as entranhas, foi que ele sentiu a plena exultação da vida, no espasmo que fez a negra abrir os braços em cruz, de mãos crispadas, com vontade de morrer. Por esse tempo, já o quilombo tinha a casa de farinha, a engenhoca, o seu pequeno cemitério. Desde cedo, ouvia-se ranger a bolandeira. Pouco antes, ainda com as derradeiras sombras da madrugada, uma 17 sineta batia. E o vento, ao ramalhar as árvores da mata, fazia também gemer as folhas dos roçados, que iam entrando pela selva. As galinhas, os patos e os marrecos misturavam-se aos porcos e aos negrinhos que corriam entre os casebres, e eram muitas as cabras, de úberes apojados, que davam o leite que ali se tomava. De vez em quando, por uma notícia vinda dê longe, ou pela susta precipitada de um dos vigias, corria no quilombo um alvoroço de guerra. Nessas ocasiões, o Julião, à entrada de um casebre, ajudado pelo filho, distribuía as armas aos companheiros, e cada negro se precipitava para o seu posto, com uma espingarda, uma lança, um chuço tosco, ou apenas um arco e algumas flechas, enquanto as mulheres recolhiam os filhos para dentro das palhoças, e ali se escondiam com eles. Só as aves e os animais domésticos se mantinham alheios ao pânico repentino, com exceção apenas dos cães, que empinavam as orelhas, rebeldes às ameaças para que deixassem de latir. Muitos deles embrenhavam-se pela floresta no rastro dos donos, como no sobressalto de uma caçada, e era preciso recorrer-se ao estalo de um chicote para obrigá-los a retroceder. Cessado o alarma, tornavam os negros ao quilombo, e vinham rindo, em grupos, com o Julião à frente, apartado de todos. Damião, que caminhava logo atrás em companhia do Samuel, via com orgulho a figura altaneira do pai, que não se confundia com nenhum outro negro, na energia e rapidez das decisões, no tipo físico e na consciência de sua missão. Calado de natureza, Julião parecia fechar-se mais em si mesmo, nos longos silêncios em que freqüentemente se concentrava. Ele sabia que vinha de estirpe ilustre, quase toda dizimada na longa viagem do lerdo navio negreiro que o trouxera da África para o Maranhão, e guardava, nítidas, as imagens de sua terra e de seu povo, do outro lado das águas imensas. Se não se atirara ao mar, durante a vagarosa travessia, como muitos dos companheiros de viagem, foi porque a si próprio atribuíra o comando de outros negros, assim que se lhe ensejasse ocasião propícia para vingar-se do imerecido cativeiro. Ao fim de um desses alarmas, Julião chamou o filho, que já tinha quase a sua altura, com um buço a escurecer-lhe mais a pele por cima da boca, e passou o braço sobre seu ombro, levando-o para a beira do lago, na descida do terreno em frente à capelinha: - Óia, Damião: home nenhum tem direito de fazer de outro home seu escravo, só porque nasceu branco e o outro preto. Quarquer um nasce e morre do mesmo jeito. A doença que dá no preto, dá no branco. A vida é iguar pra todo mundo. Ninguém quer ser escravo, tudo quer ser livre. Cativeiro de negro tem de acabar. Pra acabar, só tem um jeito: é os preto se juntar. No Brasil tem muito preto, mas tudo espaiado, uns aqui, outros ali. Não há lugar sem quilombo. E tudo no mato, escondido, cumo nós. Tu te lembra: quando nós chegou aqui, não tinha ninguém. Hoje tem gente muita. Mas se véve 18 assustado. Tudo cum medo de vortar pró cativeiro, De noite eu sonho que os branco tão chegando e pulo da rede, cum a mão na espingarda. Não se tem sossego. O nego Cosme, que tinha mais gente que nós, não agüentou a guerra dos branco. O Balaio também acabou se entregando. Tou vendo a hora dos branco chegar aqui pra dar cabo da gente. Eu podia garrar tu, mais tua mãe e tua irmã, e ir embora. Só se eu não me chamasse Julião. Mas me chamo. Foi eu que fez o quilombo, tudo aqui tá dentro de meu corpo. Cheguei agora num ponto que não posso parar nem vortar: tenho de ir pra frente. As arma que nós tem aqui é pouca. E a munição não dá pra nada. Perto de nós não tem onde comprar. Também não tem de quem tumar. Tou pensando mandar o Samué a São Luís. Ele é arteiro, assunta tudo, vê as casa que vende arma, óia se nós pode comprar. Cum arma na mão, a gente também morre, mas morre pelejando, morre cumo home. Ou antão sai vivo, e junta mais preto, inté acabar cum cativeiro. Se eu cair, tu fica no meu lugar. A gente não pode é fraquejar. Quem fraqueja, Deus não ajuda. Vai pró Inferno aqui mesmo. Tinha anoitecido, e era tão límpida a noite, na claridade do quarto crescente, que se via a silhueta das garças, longe, na orla junto à floresta. - Tudo que eu te falei é segredo. Não fala pró Samué, deixa que eu mesmo quero falar. Tá cedo. Tudo tem sua hora. MENOs DE UM MÊS DEPOIS da chegada do Samuel ao quilombo, já ali se sabia, pelas conversas da Firmina com a Januária, à hora da lavagem da roupa no lago, que não adiantava ficar nua diante dele. - Ele óia pra gente, faz uns agrados em cima dos peito, e adespois manda embora - queixou-se a Januária, ainda desapontada. A outra se pôs a rir. E concertando a roupa entre as coxas, assim que pôde falar: - Cum eu, foi assim memo. Até amarrei a cara, danada da vida. Home nenhum nunca me desfeiteou. Foi o premero. Mas foi a Quirina Pavão, daí a tempos,já meio ébria, depois de 19 um novo gole de cachaça, quem pôs a boca no mundo, gritando no meio do terreiro para quem quisesse ouvir: - Gente, Samué não dá cria. Dei catuaba pra ele beber, um mês inteiro, e não adiantou. Ele é memo que capado. E como era alta e magra, fazia lembrar uma juçareira na ventania, com o corpo seco a rodar no balanço das gaitadas. Daí em diante, em todo o quilombo, não se falou noutra coisa. Nos cavacos da noite, à porta dos casebres, e nas conversas dos roçados, à hora da comida, como também nos cochichos dos velórios, quando era preciso quebrar o silêncio da madrugada, para não deixar o defunto sozinho no meio da casa, comentava-se a pouca sorte do Samuel, e o certo é que o tempo passava e a tristeza se desfazia, com o riso fácil na boca de toda gente. Por fim, numa noite de lua, pelo fim de setembro, numa roda de cantadores, o Prudêncio da Rosaria alteou a voz bonita, depois de experimentar as cordas da viola: A natureza faz coisa Que ninguém sabe explicar: Pôs espinho nas roseira Pra mão da gente jurar. E logo se ouviu o coro responder: A pomba do Samué Não foi feita pra voar. Depois do refrão, que ia longe com o rebôo das vozes masculinas, alongavam-se as risadas, que o próprio refrão abafava: A pomba do Samué Não foi feita pra voar. Samuel estava no seu casebre, terminando de tecer um abano com palmas de pindoba, quando ouviu o estribilho. Cerrou a porta, para isolar-se ainda mais, à luz de uma lamparina, e outra vez ouviu o refrão e as risadas, como se toda a mata, em seu redor, zombasse dele. Vinha-lhe às vezes a vontade impulsiva de mutilar-se, cortando o próprio membro, como quem decepa uma haste de cana a um golpe de facão; mas sustinha o gesto, temendo não saber estancar o sangue da ferida. Nascera assim, assim tinha de morrer. Por que não ia embora? Deixava cair os ombros: adiante, seria a mesma coisa. Certa vez, em Turiaçu, chamara o farmacêutico ao fundo da farmácia e lhe pedira um remédio para a sua disformidade. O velho vergou-se para o chão, curioso, empunhando um candeeiro, e só lhe soube 20 dizer, com ar de riso, depois de espichar a ponta do beiço, espantado: - Desse tamanho, em homem, nunca vi. Se ele é assim quando manso, o que não será quando assanhado! Em seguida, prescrevera-lhe umas pílulas. E todo o efeito que estas fizeram ao Samuel, depois de uma semana de uso rigoroso, foi tirar-lhe o sono, quase o levando à loucura, sobretudo quando coincidiam as suas insônias com o refrão gaiato que os companheiros repetiam: A pomba do Samué Não foi feita pra voar. Ultimamente ele pouco aparecia aos companheiros. Se o chamavam, para algum caso de necessidade urgente, tardava um pouco, mas acabava indo. Até mesmo com o Damião, que já sabia encontrar-se com a Turíbia sem precisar de sua interferência, pouco falava. Tinha o seu roçado, e ali se deixava ficar o mais do tempo, consolado com a solidão. Ao tornar ao quilombo, sempre encontrava a troça de um, o riso de outro, E como o viam agastado, redobravam a pilhéria maligna, que ele não raro pensava em revidar, crescendo para o outro, de surpresa, de facão levantado. com esforço conseguia conter-se. Por que só se desforraria de um, se eram todos que zombavam dele, mesmo as mulheres, e também os moleques? Nem banhar-se mais no lago, longe, do lado da floresta, ele podia: havia sempre um grupo de negrinhos a espioná-lo, escondidos por trás das árvores. E só apareciam quando ele já estava nu, dentro da água. De uma feita, levaram-lhe as calças. E ele teve de esperar pela noite para entrar no quilombo. Quando chegou, toda gente estava à sua espera, para rir ao vê-lo passar correndo; ainda por cima, tinham-lhe fechado a porta da palhoça. - Ocês me pagam - jurou ele, depois de meter o ombro na porta, cego de raiva. Nos dias que passava fora para abastecer o quilombo, descansava da ira. Preferia os lugares desconhecidos, e ali trocava as coisas que levava pelas coisas que lhe encomendavam. Antes que lhe descobrissem o tamanho da rola, sensível no volume das calças, já estava de volta. E no vento que assobiava, como no canto dos bem- te-vis, sentia a surriada hostil que vinha de novo torturá-lo. Julião sentiu-lhe a mudança. E para demonstrar que o distinguia, confiando na sua lealdade, teve com ele uma longa conversa, a sós, dias depois de um novo alarma no quilombo, e daí resultou que o Samuel, na semana seguinte, pela madrugada, partiu para São Luís. Na véspera da viagem, de tardinha, quando se recolhia de seu roçado, ele se tinha encontrado, na dobra do caminho, com a Quirina Pavão, que também estava voltando ao quilombo. Passou por ela, sem lhe falar. E ela, assim que ele se distanciou: 21 - Broxa duma figa! Tem muié sobrando, e tu aí com teu badalo de veio! Faz promessa, porcaria! Ele apressou o passo, quase a correr, sentindo que a mão lhe tremia, impulsiva, no cabo do facão. E entrando na palhoça, ainda pálido: - Espera, vaca veia. Tu não perde por esperar. Novamente havia passado a estação das grandes chuvas. Vinham agora as noites límpidas, de céu estrelado, com os bandos de garças e de guarás voando baixo pelo cair da tarde. Aos domingos, na capelinha, o velho Quincas Nicolau, todo curvado, sempre com um bastão para escorar o corpo, a barbicha rala algodoando-lhe o queixo, fazia as vezes do padre, numa espécie de missa a seu modo, e era ele também que fazia os batizados e encomendava os mortos à beira da cova. Depois, à noite, no terreiro, rodavam as danças ao som do tambor, dos ogãs e das cabaças, que o coaxar dos sapos, perto, parecia acompanhar. Os velhos fumadores de diamba, que sempre formavam um grupo à parte, isolados dos companheiros, passavam uns aos outros, nas noites claras, o cigarrinho mal enrolado, até que tudo em redor se distanciava, só ficando um mundo vago, violáceo, já silenciado o tambor do terreiro, fechados os casebres, todo o quilombo adormecido, com um ou outro cão espantadiço a latir à toa, e o vento a soprar o seu sussurro de rio invisível. Dois desses fumadores já tinham caído, derribados pela fumaça que os envolvia. Só três, de pernas estendidas, as pálpebras entrefechadas, se mantinham despertos, com força bastante para ir passando o cigarrinho ao companheiro. Viam ainda vultos esbatidos, sombras que se esgueiravam, uma claridade de fogo-fátuo por cima do lago, estranhas mulheres de unhas imensas, sacis que dançavam nos raios do luar. Foram eles que viram, na vaguidade onírica que os envolvia, uns homens armados que confluíam para o quilombo aos dois, aos três, cercando os casebres, invadindo a palhoça onde se guardavam as armas, calando os cães a golpes de lanças. Um dos fumadores quis levantar-se e gritar, não sabendo distinguir o sonho e a realidade, e caiu para trás, golpeado em pleno peito, ao mesmo tempo que outros homens iam chegando, também armados, e começaram por tirar de sua palhoça o Julião, já de mãos amarradas para trás, e mais o filho, tonteado por uma coronhada na cabeça. Todo o quilombo veio para fora, os filhos pequenos agarrados à saia das mães. Por toda a parte, gritos e choros, sem que os negros pudessem disparar um só tiro. Muitos deles jaziam mortos, dentro de suas palhoças, ou em frente às portas, atravessados pelo pontaço das lanças. Os cães latiam, no atropelo da confusão. Até as chamas das lamparinas pareciam atônitas, não sabendo ao certo para que lado se 22 voltarem. E na desordem, só um preto, dando mostras de muita calma, pediu a um dos soldados que o amarrasse: - Por favor, dê um nó aqui. Ele próprio tinha saído de seu casebre, já com as mãos às costas, trazendo consigo um pedaço de corda, e a empurrar o seu baú de couro com os pés. E quando o soldado o amarrou, não com a corda que ele lhe oferecia, mas com outra, bem mais grossa, que lhe apertou os pulsos, não gemeu nem se queixou, e só então revelou, numa voz macia, perfeitamente ajustado à sua condição de prisioneiro: - O distinto acaba de amarrar um Barão. E deu uma corridinha para a frente, quandosentiu que o outro, agastado com a impertinência de seu título, lhe assestava em cheio um pontapé na bunda. Ainda curtindo a última carraspana, a Quirina Pavão foi trazida para fora na sua própria esteira, e esgoelou-se, de punho fechado, sentada no chão, com o ódio a lhe tufar as veias do pescoço: - Brancos de merda! Filhos da puta! E foi só o que disse, porque, ali mesmo, uma coronhada lhe apanhou a nuca, e ela tombou para a frente, como se voltasse a mergulhar no sono, desta vez com o sangue a lhe empapar a cabeça. Era tão clara a noite, na lua cheia de agosto, que o chão parecia de areia, na grande luz que se derramava sobre o quilombo. Não se viam apenas os vultos dos negros amarrados, sob a vigilância das espingardas inimigas, no terreiro inundado de luar: distinguiam-se-lhes as feições tensas, todos imóveis, chumbados ao chão pela surpresa do infortúnio. Dois deles conseguiram desvencilhar-se da corda, e pularam para um soldado, tomando-lhe a espingarda; mas caíram adiante, crivados de balas. Só as mulheres protestavam, vociferando. - Larga meu fio, diabo! - Vai empurrar a vaca da tua mãe, seu peste! com a pistola na mão, o alferes louro, de passo pesado, que comandava a tropa, ia avisando: - Lugar de escravo é na senzala, debaixo das vistas de seu senhor. Todos vocês vão voltar para seus donos. Ou então morrem aqui mesmo, que eu tenho ordem de matar. Julião se viu perto do filho: - Nós foi traído - conseguiu dizer-lhe. A cada momento estrondavam os tiros, uns aqui, outros adiante, outros mais dentro da mata, e de repente um rolo de fumaça subiu, ganhou altura, e logo as labaredas lamberam a palha de um dos casebres, no começo do fogaréu imenso que irrompeu de vários pontos, ameaçando estender-se para a mata circundante. Uma a uma, as palhoças iam ardendo, e só se viam mulheres correndo para a borda do lago, seguidas atropeladamente pelos filhos e os cães, enquanto os homens se retraíam, de olhos crescidos e mãos atadas, vendo avançar 23 o clarão vermelho que engolfava todo o quilombo. Galinhas, patos, marrecos, porcos, cabras, o bode Mimoso, todos fugiam também, na mesma debandada pânica. De cada canto pulavam sapos, e uma jibóia enorme rastejou, tentando escapar à língua de fogo que a perseguia. Em pouco o incêndio era uma única fogueira debaixo da lua tranqüila. E assim continuou pelo resto da madrugada, até que o raiar do dia esbraseou o horizonte, para os lados do nascente, por cima da floresta, ao mesmo tempo que o luar se desfazia sobre os escombros ainda fumegantes: do casario restavam apenas montões de cinzas, com algumas brasas que a brisa matutina avermelhava. Damião guardaria por toda a vida a imagem desse novo dia clareando o quilombo desfeito. Só então reparou que muitos negros choravam. Vários deles, exaustos, estavam sentados, a olhar os seus bens perdidos, com a consciência da volta ao cativeiro. Seu pai permanecia de pé, o semblante contraído, caFàdo. Ensaiara falar-lhe, e ele não respondera, petrificado no seu silêncio, as sobrancelhas travadas. Viu também quando ele foi posto à frente dos companheiros, para a longa marcha através da floresta. Ainda bem que o filho o seguiu de perto, preso à mesma corda que amarrava um negro a outro, na longa fila submissa. As mulheres e as crianças vinham atrás, sem que as tangessem, e só uns poucos soldados, de espingarda ao ombro, lhes apressavam o passo, na cauda, dos retirantes. Mesmo assim, se alguma se retardava, era deixada para trás, entregue à mata. Na partida tinham sido arrepanhados alguns porcos, marrecos e galinhas, que em breve eram largados nas veredas, pela dificuldade de transportá-los. Apenas os cães seguiam espontaneamente os donos, e tinham um ar festivo, balançando a cauda, ao lado da fila de negros; por vezes se desgarravam, para perseguir um bicho na mata, e logo reapareciam mais adiante, ainda de orelhas fitas. Já as cabras vinham quase que puxadas, e punham-se a berrar, reclamando contra o laço que lhes apertava o pescoço. Por volta do meio-dia, a fome e a sede começaram a afligir, sobretudo a sede. Como os negros continuavam de mãos amarradas, eram umas tantaS mulheres que lhes acudiam, com as cabaças d'água. E eles bebiam caminhando, porque a ordem era seguir em frente, para alcançar o rio, onde as gabarras os esperavam. E porque todos eles conheciam a floresta, o caminho se fazia maior, parecendo não ter fim. Julião, sempre à frente, mantinha a cabeça erguida, a fisionomia dura fortemente vincada pelo sulco das rugas. Olhava direito, sem vacilar o passo, e ainda apertava os lábios, de sobrancelhas contraídas. Ao fim do segundo dia, já a marcha era lenta, e alguns negros caíam e levantavam, desta vez reanimados pelos chicotes, que os lapeavam nas costas, à altura das espáduas. Um preto tombou sem forças, dizendo que as pernas não lhe obedeciam, e foi largado na orla da mata, depois de um tiro na nuca. Como algumas mulheres, com filhos ainda pequenos, não pudessem mais carregá-los, foram 24 também deixadas com eles, e a retirada prosseguiu, tarde adentro, como na pressa de uma rota batida. Mais adiante, nas proximidades de um povoado, outros soldados substituíram os primeiros, e a marcha continuou. Só de noite se podia descansar, e assim mesmo já tarde, porque a lua redonda iluminava a picada, coando-se pelas aberturas dos ramos. Cedo, antes do sol, volvia-se a caminhar. E assim a derrota se prolongou, até que, no quarto dia, quando a tarde principiava a esmorecer-se, ouviu-se, ainda longe, o sussurro do rio. Os próprios negros exaustos sorriram, com esperança de alívio. Agora, já estava perto o fim da caminhada. Mas as pernas de muitos deles não agüentavam mais o corpo faminto, e outra vez caíam, e outra vez levantavam, sempre ouvindo o estalar dos chicotes. O Mundico Tamboreiro pôs-se a rir tão alto, com o braço estendido para a frente, sem que as palavras lhe viessem à boca ressecada, que o Barão achou prudente advertir que o companheiro tinha perdido o juízo: - Ficou gira - cochichou ao soldado que vinha à sua direita. Antes não houvesse dito nada; porque, de pronto, um tiro reboou, e o Mundico caiu por terra, com o seu tambor às costas. A alguns, como o Julião, apenas o ódio mantinha de pé, andando sempre. Nos largos estirões areentos, onde as pernas pareciam afundar, enterrando-se acima dos tornozelos, o esforço era dobrado, e eles não fraquejavam. Só um júbilo experimentavam: o de ver que muitos dos soldados também arquejavam nas travessias penosas, a despeito de terem os pés protegidos pelos borzeguins de campanha. Um espinho ferira o pé esquerdo de Julião, e ele não se queixara. Limitara-se a quebrá-lo dentro da carne, com a planta do pé roçando o chão, e adiantara logo outro passo, com as pálpebras reduzidas apenas a uma fresta pelo ódio tenaz. O que em verdade lhe doía era o sentimento da derrota humilhante, sem luta alguma, no improviso do assalto bem planejado. As três sentinelas, que velavam pelo quilombo durante a noite, tinham sido mortas nos seus postos: tinha-as visto no início da marcha, com as flechas certeiras que as fizeram cair sobre suas espingardas. Agora, tudo perdido. Que ia fazer, para recomeçar a sua luta? Pela manhã, na luz rútila que se ia ampliando, o rio apareceu de repente, largo, um pouco barrento, com três gabarras amarradas a um trapiche, e muita gente à espera dos calhambolas. Julião saltou para a primeira gabarra, e caiu, desequilibrando-se com o movimento da embarcação. com esforço, tentou erguer-se, e as forças lhe faltaram, porque não tinha o apoio das mãos. Felizmente o Damião acudiu, e ele se levantou, ajudado pelas pernas do filho. Os olhos se lhe umedeceram, quase fechados. Onde estava Deus, que não amparava os seus negros? E nisto um mulato forte, espadaúdo, com 25 uma pistola na cintura, desamarrou-lhe as mãos, para que Julião se encarregasse de um dos remos, à proa da barcaça. - Eu remo por ele - ofereceu-se Damião. Mas Julião já estava no seu posto, as mãosadiantadas para o cabo do remo. Era outro agora, com os braços livres, apesar da ferida aberta nos seus pulsos pelo nó da corda. Em breve, havia um negro em cada remo, de um lado e de outro da gabarra. Na parte central da barcaça, entre as duas orlas de remadores, apertavam-se os calhambolas, sentados no casco molhado, ainda de mãos para trás, e com as pernas tão encolhidas, que alguns deles apoiavam o queixo nos joelhos. Entre eles, alguns soldados, com o dedo no gatilho das espingardas. Na proa, o mulato da pistola, agora empunhando um chicote. E foi ele que ordenou a largada, rio acima. Os remos vieram para a frente, ao lume do rio, e logo fenderam as águas, empurrando a barcaça lerda ao arrepio da correnteza, enquanto um negro magro, sentado na popa, com as mãos no cabo do leme, ia manobrando para o meio da torrente e comandando as remadas: - Eh, ô, eh, ô, eh, ô. O rio se faz mais largo, as árvores das margens diminuem de tamanho, e a gabarra vai avançando por águas mais límpidas, quase transparentes. com pouco, as remadas se harmonizam, no vaivém dos braços tensos, que ora puxam o cabo do remo, ora o empurram, debaixo do sol que vai subindo. Um pouco atrás, vem a outra gabarra, e a terceira logo a seguir, todas apertadas de negros que voltam ao cativeiro. Mais a montante, já transposto o meio-dia, a primeira gabarra se atrasa, de modo que a segunda está prestes a alcançá-la, e é então que o mulato grita, erguendo- se, com o chicote levantado: - Mais depressa, seus putos! A chibata zine e estala, zine e estala, primeiro à esquerda, depois à direita, e aí apanha em cheio as espáduas de Julião, que se encolhe de dor, vergando os ombros para a frente, e ei-lo a levantar o remo, com toda a força de seu ódio, para alcançar de um só golpe a cabeça do mulato, que se desfaz para o lado contrário, de nuca fraturada - ao mesmo tempo que o remador, de um salto, se precipita para o meio das águas. Sentado junto à proa, sempre de mãos atadas, sem poder levantar-se, Damião acompanhou toda a cena, até o momento em que o corpo descreveu no ar uma curva, no salto para a correnteza. Ouviu em seguida o baque nas águas. De respiração suspensa, alteou a cabeça o máximo que lhe era possível, chegando-se para a borda do casco, e ficou procurando o pai com os olhos aflitos. - Lá vai ele - gritaram vários negros, uns a mostrarem com a ponta do beiço, outros estirando os braços. 26 Julião parecia um peixe grande, rabeando na transparência do rio. Lá adiante, voltou à tona, apenas por um momento, certamente para respirar. E logo estrondaram os tiros, partidos simultaneamente das três barcaças. Como se houvesse escapado à sanha das balas que o alvejavam, Julião tornou a mergulhar, fugindo sempre. Mas agora as gabarras mudavam de rumo, seguindo a descida das águas, numa tentativa de cerco ao fugitivo. E o que Damião viu a seguir, juntamente com os companheiros consternados, ficaria para sempre nas suas pupilas: uma grande mancha de sangue boiando à tona da correnteza, enquanto as piranhas bloqueavam o corpo esguio, que se debatia entre as navalhas de seus dentes afiados. A VOLTA À FAZENDA não poderia ser mais penosa - ele, à frente; a mãe e a irmã, logo depois, e por fim o Chico Laurentino, montado numa égua sendeira, pronto para atirar, se um dos três tentasse fugir. - Tem de ir tudo calado, para não ficar no caminho, com uma cruz em riba - advertiu o diabo louro, com a mão na garrucha. E mais de uma vez, nas voltas do caminho, Damião sentiu subirlhe à cabeça a vontade impulsiva de retroceder de repente, para atirarse ao outro, com a agilidade e a força de que era capaz. E depois, como seria? Que ia fazer da mãe e da irmã? A mãe não parava de chorar, entregue ao desespero de ter visto morrer seu homem nas águas do rio. Chegara a querer atirar-se também, para morrer com ele. Fora a filha que não deixara, ajoelhada no fundo da gabarra, abraçada às suas pernas. De vez em quando repetia a pergunta: - Por que foi fazer aquilo? Não podia ter um pouco mais de paciência? Que custava esperar mais um pouco? E vinha-lhe a sensação de abandono e desamparo, que pela primeira vez se abatia sobre a sua consciência desesperada. Como enfrentar o senhor na fazenda, sozinha com os filhos? E como agüentaria o castigo, que certamente esperava por ela, no tronco do terreiro, agora que não tinha mais o Julião ao seu lado, dando-lhe forças com o seu 27 olhar? E ia de cabeça baixa, guiando-se pelos passos da Leocádia, sempre a ouvir o chocalho da égua, que vinha logo atrás. Aos poucos Damião sente que vai repetindo o pai, no passo firme, na cabeça levantada, no modo de encher o peito, com os punhos contraídos, a ira nos olhos entrefechados. A mãe, agora, quando o olha, nele reconhece os traços do marido - na figura esguia e forte, no rosto de pomos salientes, no fulgor das pupilas, nas orelhas pequenas. Quando ele fala, repete-lhe também a voz, no modo de falar ordenando. E mais de uma vez ela já lhe trocou o nome, chamando-o de Julião. Ao fim do primeiro dia, na nova etapa da viagem, outros dois acompanhantes juntaram-se ao primeiro: o Chico Brito e o Patureba, ambos armados, e logo o segundo, que era estrábico, com um talho de navalha ao pé da orelha esquerda, se pôs a gabar a Leocádia, que já começava a deitar corpo, com os quadris bem feitos, os seios rijos empurrando o morim da blusa. Ela apressou o passo, caminhando ao lado da mãe, e viu quando o irmão, de passagem, colheu no chão uma pedra pontiaguda, que segurou com firmeza. De cima da égua, o Chico Laurentino adivinhou-lhe a intenção: - Pode largar a pedra, que ninguém aqui toca na moça. Tenho orde do Dr. Lustosa pra levar ocês inteiro. Se ocê se mexe aí, quem mata ocê sou eu. Deixe a pedra. À medida que se iam aproximando da fazenda, Damião só fazia confrontar o que via com o que tinha na lembrança. Embora houvesse passado por ali já fazia nove anos, recordava-se de tudo, até mesmo da floração dos ipês na revolta dos atalhos. Antes de ver a cascatinha, que se precipita do viso de rochas escalavradas, reviu-a na sua memória, assim que lhe ouviu o ruído da queda, adiante de um pontiIhão. com efeito, nada mudara, inclusive a poeira de espuma, com um halo de arco-íris, que se ergue da base da cachoeira, no trecho em que o fio d'água desliza, buscando o caminho do mar. Mas, quando tornou a ver a casa-grande, precedida da orla de palmeiras, acima de uma rampa suave calçada de pedras, não pôde deixar de emocionar-se. Lá adiante, alongava-se a senzala, coberta de telha, com seu beiral saliente. Entre a casa- grande e a senzala, destacava-se o telheiro que cobria o imenso tanque todo de pedra, e que um dos escravos tinha de encher, todas as manhãs, com a água trazida da lagoa. A casa-grande, a cachoeira, e também o engenho, que deixara envoltos pelas chamas, tinham sido rigorosamente recompostos, como se fossem as construções primitivas - sem que lhes faltasse o tom de velhice, nas paredes meio sujas. O largo alpendre, com a cadeira austríaca em que o senhor se sentava pelo meio da tarde, lá estava, debaixo do lampião de ferro. E lá estavam também as samambaiaschoronas, que balançavam ao sopro das grandes ventanias, nos temporais de janeiro. 28 Retardou um pouco o andar, a jeito de que esperasse a mãe e a irmã; na verdade cedia ao alvoroço das imagens que lhe afluíam à consciência, e via-se correndo da casa-grande para a senzala, da senzala para a casa-grande. De pronto fixou-se no oitão que olhava para o nascente, e ali recordou Nhá-Biló, de pele muito branca, os grandes olhos negros. E ainda olhava para lá, agora parado, quando os cães que guardavam a casa, saindo do alpendre ao mesmo tempo, todos iguais, com o mesmo pêlo branco salpicado de manchas negras, arremeteram ladrando na direção dos que chegavam, como se viessem destroçá-los na dentuça agressiva, ao mesmo tempo que um vulto se acercava da cadeira austríaca, de boné na cabeça, e dali acompanhou a cena. Antes que eles saltassem, o ChicoLaurentino esporeou a égua, indo-lhes ao encontro, de chibata em punho: - Pra trás, seus diabos! E eles retrocederam, ainda latindo. A Inácia e a Leocádia tinham-se juntado ao Damião, como se este pudesse protegê-las, e abriram os olhos amedrontados, sentindo o mau presságio daquela acolhida raivosa. Sempre estalando a chibata, o Chico Laurentino foi galgando a rampa, seguido de perto pelos três, ao mesmo tempo que o Chico Brito e o Patureba se afastavam, tomando pelo caminho que ia dar no engenho. A tarde vinha desmaiando, com a viração a atiçar o perfume dos jasmineiros que se enramavam ao lado do alpendre, numa cerca de pau a pique. Para os lados do engenho, ia a azáfama dos negros girando a roda da bolandeira. Ouvia-se o gemer das moendas espremendo a cana, de mistura com o rangido de um carro de boi que voltava do canavial. Assim que saltou da égua, o Chico Laurentino deu de frente com o Dr. Lustosa, que se adiantara até o degrau do alpendre, de barba grisalha caindo para o peito, o boné de xadrez inclinado para a testa, óculos de aros de ouro, o dólmã abotoado até o pescoço. Tinha apenas o braço direito. A manga esquerda do casaco, vazia até o ombro, vinha meter-se-lhe, um pouco acima do quadril, no bolso lateral correspondente. - E o outro? E o outro? - indagou o Dr. Lustosa, dirigindo-se ao Chico Laurentino, ao ver apenas o Damião com a mãe e a irmã, defronte do alpendre, as duas de olhar acossado, ele de cabeça levantada, olhando de frente. E o Chico Laurentino, torturando o chapéu: - O outro matou o Bento dentro da barca, depois se atirou no rio, e as piranha comeu. - E por que deixaram? -- gritou o velho, lívido, descendo um degrau, fora de si. - Eu queria o Julião aqui, e vivo, para pagar o que me fez! Ele tinha de vir! Eu queria ele aqui! Negro fugido tem de voltar! Era ele que eu queria! Eu disse que deitava a mão nele! 29 Eu não queria morrer sem agarrar aquele negro! E deixaram ele escapar! E à medida que Damião lhe ouvia a voz exaltada, que o braço direito acompanhava gesticulando, retrocedia ao terror de sua infância, e via-se agarrado à saia da mãe, chorando, depois de correr da casa-grande para a senzala. Tinha a impressão de que o Dr. Lustosa ia bater-lhe como batia nos outros negros, o braço erguido segurando o chicote. O braço está novamente levantado, na exaltação da cólera, embora não empunhe a chibata; mas os olhos são os mesmos, crescidos por trás das lentes, com o brilho de ódio nas pupilas castanhas. - Eu jurei que ia botar aquele miserável no tronco! Era eu que queria acabar com ele! Como foi que deixaram o negro se atirar no rio? Hem, Seu Chico Laurentino? E onde estava você que não impediu aquele filho da puta de se matar? - Doutôr, eu não tava no barco. Eu tava em terra. Também não vi quando ele se atirou. Soube depois. E o velho, ignorando-lhe a explicação: - Quando eu dou uma ordem, tem de ser cumprida! Você sabe que fui eu quem dei dinheiro ao governo para armar a tropa que ia acabar com o quilombo daquele miserável! A ordem era pegar todos vivos, e trazer todos aqui! Onde estão os outros? E a Rosaria? E o Mundico? E a Quirina Pavão? Quero todos aqui! Aqui! E batia com o pé no degrau do alpendre, ainda mais exaltado, sempre aos gritos: - Eu estava no Palácio do Governo, em São Luís, quando o Presidente da Província autorizou a expedição. E ali mesmo dei a minha parte. Dinheiro mesmo. Saído do meu bolso! E onde está o crioulo do Samuel? Ele me garantiu que eu pegava vivo o Julião! Disse isso na presença do Presidente. E agora você me diz que o Julião se atirou no rio? Quero ele aqui! Nem que seja só o esqueleto! Subiu novamente o degrau, vermelho, as veias puladas, e esbarrou na pilastra, cego de ira. E dali de cima, apontando para os três escravos, que permaneciam parados, só o Damião ainda de cabeça erguida: - Meta os três no tronco, até amanhã. E foi só daí a uns meses, quase no fim do ano, antes de começarem a cair as primeiras grandes chuvas, que Damião, de repente, na estrada que levava a Turiaçu, se encontrou com o Samuel. Passou a mão nos olhos, para ter a certeza de que estava mesmo vendo. Sim, era o crioulo. Vinha tocando um berimbau, com ar de bêbado, debaixo da soalheira do meio-dia, e ia cruzar-se com ele, adiante do bambual. Damião preferiu parar, à espera do outro. E o Samuel, assim que o viu: 30 - Antão é tu, Damião? E sozinho na estrada? Cadê tua gente, cumpanheiro? Nunca mais ouvi fala de ocês. Tá tudo vivo? Damião retrocedeu um pouco, sempre a olhá-lo, a apertar os maxilares, as pálpebras contraídas. E quando ele estava bem perto, de modo que já lhe sentia o bafo, deu-lhe o primeiro bofetão. Samuel tonteou, desequilibrando-se, e levantou-se adiante, já preparado para negacear o corpo, de pernas arqueadas, as mãos no ar, aceitando a luta. Damião cresceu para ele, e arremessou-lhe outro bofetão. Samuel outra vez tonteou, caindo de borco, na valeta da estrada. Chegou a querer levantar-se, as mãos em terra, soerguendo a cabeça. Mas já Damião saltava sobre o seu dorso, com a faca fora da bainha, e enterrou-lhe a lâmina até o cabo, à altura do coração. JÁ AFEITO À ESCASSA LUZ DO CANDEEIRO, Damião olhou mais uma vez em redor, de testa franzida, espantado com a brutalidade dos dois crimes, ali em São Luís. Voltou a olhar o negro caído de borco, com a imagem do Samuel na memória. Pensou em sair dali e avisar a Polícia. Mas anteviu o aborrecimento das idas à Delegacia, além de ser obrigado a contar, a cada amigo que o procurasse, a mesma história trágica. Por outro lado, não tardaria a passar pela esquina outra pessoa, que também daria pelo duplo assassinato, e isto dispensava a ele, Damião, já octogenário, de deixar o sossego de sua sesta ou a paz de seus livros, para passar horas e horas diante do delegado e do escrivão. - Na minha idade, tenho o direito de pensar mais em mim que nos outros. Estou mais para lá que para cá. E tratou de voltar à rua, abafando os passos, novamente sentindo sob os pés o estalido rangente de vidros quebrados. Cá fora, a mesma calçada deserta, com seu lampião sonolento. E outra vez, por cima do mirante do casarão da esquina, a fatia de luz da lua nova, como se estivesse a segui-lo. - Crime feio - comentou. - Vamos ter muito barulho nos jornais. Quem lucra com isso é o Dr. Domingues. Enquanto a Pacotilha se ocupar com os mortos, tentando descobrir quem foi o criminoso, dará uma boa trégua à campanha contra o Governador. 31 E retomando a caminhada ienta, na direção da Gamboa, entre alas de casas fechadas, tornou a sentir à sua volta o alvoroço dos negros com a notícia da próxima chegada do Senhor Bispo. De São Luís, tinham vindo os pintores para a reforma da casagrande e da capela. Mesmo a senzala recebera caiação nova. No quintal, debaixo da sapotilheira, as negras da copa não descansavam, limpando as velhas pratas com muita cinza e limão; outras, mais adiante, areavam os grandes tachos de cobre que o tempo azinhavrara. Era a própria Sinhá Velha, grande, gorda, com a sua eterna saia preta de merinó, quem dirigia os trabalhos, sempre a ir da cozinha para a varanda, da varanda para a cozinha, com passagens pelo quintal, a tilintar no passo esperto o seu pesado molho de chaves. E como tinha a voz máscula, ajustada ao buço forte que lhe cobria a boca, parecia fazer competência ao filho no ralho dos negros. Na verdade, destoava deste, na doçura do olhar azul, que trazia consigo um fundo de bondade. Por entre a azáfama dos escravos e operários na casa-grande, a arrastarem móveis, a subirem escadas, a tirarem os quadros das paredes, o Dr. Lustosa fazia sentir na fazenda uma ira diferente: em vez de falar aos gritos, como era de seus hábitos, rosnava as suas ordens, e já amanhecia amuado. Por vezes, sem tomar sequer o café da manhã, saía ao campo no seu cavalo de sela, e só regressava por volta do meio-dia, com a mesa do almoço à sua espera. Depois da sesta, na rede larga, sempre lavada de novo, vinha para o alpendre, a ler jornais atrasadosde São Luís, que um escravo recolhia no correio da vila de mês em mês. Damião, nessas ocasiões, se tinha uns momentos de folga, evitava passar pela frente do alpendre, para não ser visto por seu senhor. Ainda lhe sentia o olhar duro, a trespassar o seu, afiado como uma lâmina, na tarde em que fora achado na estrada o corpo do Samuel. - Anda, confessa que foste tu que lhe enfiaste a faca - gritava o Dr. Lustosa, sacudindo-o por um dos ombros, a olhá-lo de frente. E o Damião, firme, sustentando o olhar: - Já lhe disse que não, Doutôr. E revia-se a lavar a faca na ribeira, senhor de seus nervos, com a consciência de que havia aplicado ao morto o castigo merecido. - Vais ficar amarrado no tronco, sem comer nem beber, até confessar que foste tu - ameaçava o Dr. Lustosa, voltando a torturar-lhe o ombro com a mão pesada. Por sorte sua, dois dias depois, o Egídio Carpinteiro, que também tinha voltado do quilombo, apareceu morto com uma facada no peito, no mesmo pedaço de estrada em que fora encontrado o Samuel. E como a faca estava no talho, com a mão do morto junto ao cabo, logo se viu que ele próprio se tinha matado. 32 Ainda amarrado ao tronco, Damião viu passar o corpo, levado numa rede para o velório na senzala. Daí a pouco, em companhia do Chico Laurentino, o senhor lhe apareceu: - O Egídio não te disse que foi ele que matou o Samuel? - Não, Doutôr. - E tu achas que foi ele? De lábios rachados pela sede prolongada, sentindo doer-lhe a boca no esforço da fala, Damião mantinha os olhos nos olhos castanhos que o fitavam, sem que o rosto lhe tremesse: - Como é que eu posso saber? - conseguiu replicar. E foi só pelo fim da tarde, quando a boca já lhe ardia em chaga viva, que o Chico Laurentino teve ordens de tirá-lo dali. No entanto, a despeito das torturas recebidas, Damião havia experimentado, no seu retorno à fazenda, uma sensação inefável de reencontro consigo mesmo, e que lhe advinha do cheiro de cana molhada, após as breves chuvas de setembro; do vagaroso gemido dos carros de bois; do ranger das moendas; do aroma do melaço quente nos imensos tachos de cobre; do tarantantã dos tambores no terreiro da senzala; do tinido do sino marcando o começo e o fim do dia; da lagoa pontilhada de garças, marrecas e siricoras na primeira luz matutina; da capela de porta ogival alvejando à direita da casa-grande. Dir-se-ia que a infância perdida repentinamente lhe voltava. E o certo é que essas emoções lhe atenuaram, em parte, a amargura do regresso, a que sempre associava, na mais profunda essência de sua natureza, a revolta e a compaixão pela perda do pai. Ao termo de dois meses, rondava a casa-grande, sempre que podia, a espionar-lhe as salas e os quartos, cada vez mais intrigado. Que fora feito de Nhá-Biló? Dela apenas sabia que, magra, crescida, as tranças caídas para o peito, vivia a acalentar as suas bruxas de pano, no quarto espaçoso que abria para o nascente, defronte do cajueiro de folhas amarelas, abrigo das andorinhas ao cair da tarde. Certa vez, ainda menino, ao dar com o janelão escancarado, Damião parou, emocionado e curioso. Do meio do quarto, Nhá-Biló fazia-lhe um gesto para que desse a volta, entrando ali pela porta lateral. Ele transpõe com medo o batente de pedra. É a primeira vez que seus pés de menino andam pelas frias lajotas vermelhas do corredor, dentro da casa-grande. De porta entreaberta, mais adiante, NháBiló o aguarda, com ar de riso, roendo as unhas. Ele passa, com o coração a querer sair-lhe da boca, e ela o empurra para que se apresse; depois, sempre rindo, dá duas voltas nervosas na chave da porta. - Quero-te mostrar uma coisa - previne-lhe. Ele está parado, de olhos crescidos, maravilhado, querendo ver tudo - a cômoda alta, de jacarandá, com fechos de prata, tampo de mármore, com uma bacia de louça e um jarro; o guarda-roupa negro, de duas portas rangentes, adornado de figurinhas, na parede fronteira; a penteadeira, com seu espelho de três faces; num dos ângulos do 33 quarto, uma rede armada, de largas varandas roçando o chão; perto da rede, uma escrivaninha de tampo levantado, ladeada por uma estante baixa, cheia de livros e revistas velhas, e mais adiante, no ângulo contrário, a comprida esteira com as inumeráveis bruxas de pano de Nhá-Biló. - Olha aqui - diz ela, apanhando uma das bruxas. E levanta-lhe a saia, sempre com ar de riso, para que ele lhe veja o sexo, com seus pêlos de linha preta, no ponto em que o ventre se encontra com a curva das coxas. - Foi a velha Biá que fez esta boneca para mim. Me deu no dia dos meus anos. É igualzinho o meu, assim com esses pelinhos. O negrinho segura a boneca e ri, querendo abafar o riso. No esforço para conter- se, o riso se lhe derrama pelos cantos da boca, enquanto Nhá-Biló repete, séria: - Não estou mentindo. É mesmo. Igualzinho. Sem tirar nem pôr. Juro por Deus. Queres ver? E sem esperar que ele responda, retrai-se para o canto da parede, entre o janelão e a porta fechada, e ergue primeiro a saia do vestido, que segura com a ponta do queixo; depois a anágua, que igualmente prende no queixo com a barra da saia, e por fim a combinação. De olhos risonhos e divertidos, Damião lhe vê as coxas brancas, cheias, destacadas pela claridade da manhã alta, e instintivamente fiscaliza a janela, com a vaga consciência de que está fazendo o que não deve. Logo reprime o riso, muito compenetrado, quando Nhá-Biló desce a calça até os joelhos, e adianta um pouco o ventre, para exibir o sexo, já afofado de pêlos negros. - Estás vendo? Igualzinho o da boneca. Em seguida, volta a subir a calça, e deixa cair sucessivamente a combinação, a anágua e o vestido. Dali chama Damião: - Vem cá. Segura-o pelos ombros, leva-o até à parede, onde o encosta. Quase ao mesmo tempo, ajoelha-se aos pés dele, já a procurar-lhe a braguilha das calças: - Agora, eu quero ver o teu. Ele ensaia retrair-se, encolhido contra a parede, as pernas bem fechadas, as mãos protegendo a rolinha; porém ela o sacode, de olhar duro, quase colérico, e desabotoa-lhe a calça, até que se extasia, com 'o membro do menino entre as mãos trêmulas: - Direitinho como eu pensava, direitinho como eu pensava rapete, de olhos estrábicos, os seios pequenos arfando sob o vestido. Diante do janelão fechado, Damião apura o ouvido, para ver se escuta algum rumor lá dentro. Silêncio. Horas depois, voltou a passar por ali. Sempre o janelão fechado, e mesmo ao fim da tarde, com a algazarra das andorinhas no cajueiro. Nhá-Biló teria morrido? E de súbito avistou, de pé junto ao oitão da casa, uma figura de preto, com 34 os cabelos soltos dando na cintura, muito branca, os olhos escancarados em sua direção. - É ela, sim - reconheceu, penalizado. E viu que ela, logo a seguir, corria para o corredor, depois de fazer o sinal- da-cruz, deixando no chão uma das chinelas de trança. Tornou a vê-la na semana seguinte, à mesma hora, no mesmo lugar, e confirmou a impressão do primeiro encontro, achando-a envelhecida, meio largada, os cabelos soltos, num desalinho de enfermidade. Assim que ela deu por ele, tornou a correr, repetindo o sinal-dacruz. - Coitada de Nhá-Biló - lamentou Damião. E não tornou a procurá-la. De volta do canavial, tangendo o lerdo carro de bois atulhado de canas para a moenda, olhava de longe o cajueiro, o janelão fechado, o oitão da casa, e ia para o banho rápido na lagoa, já com as sombras da noite escurecendo o verde das árvores, apagando a faixa clara da estrada, começando a esconder a fachada dá casa-grande e as palmeiras esgalgadas que a precediam. Lá adiante, passada a capela, reluzia o olho esbraseado do contravento, pendente de um gancho de ferro, sob o telheiro da senzala. Na tarde em que o senhor voltou a chamá-lo, Damião apareceu no alpendre com um mau pressentimento. De antemão sabia que para boa coisa não havia de ser. E de chapéu na mão, subiu de leve o primeiro degrau, apoiando-se num dos pilares: - Pronto, Doutôr. Entretido na leitura de um jornal dobrado, que lhe tapava a vista, o Dr.Lustosa não lhe sentira os passos. Ao ouvir-lhe a voz, que era a mesma do Julião, atirou para um lado o jornal, de cabeça empinada, a mão no braço da cadeira, como se fosse levantar: - Tu tens a quem sair. Teu pai não prestava, e tu vais pelo mesmo caminho. O feitor veio aqui me dizer que a carga de cana, posta no teu carro no canavial, chega aqui em cima muito reduzida. De duas, uma: ou tu deixas a cana cair de propósito, para me dar prejuízo, ou estás passando ela adiante, para me roubar. Apanhado pela surpresa da acusação, Damião sentiu o sangue subir, ardendo-lhe as orelhas: - O feitor lhe disse isso? - Disse, e aqui na fazenda eu não quero negro safado nem ladrão. Damião dobrou o chapéu, no impulso da ira. E de vista levantada, sem conseguir conter-se: - Se ele lhe disse isso, o safado e o ladrão é ele. O Dr. Lustosa levantou-se, já empunhando a palmatória de pauroxo que apanhara na mesa à sua direita: - Pois vais aprender a deixar a língua dentro da boca, quando falares com o teu senhor. Sobe aqui. 35 Damião subiu, deixando o chapéu no descanso do alpendre, enquanto o Dr. Lustosa, à frente da cadeira, acomodava melhor a mão no cabo da palmatória. - Doutra vez, voltas ao tronco - advertiu-o, preparando-se para a bordoada rija, de pernas levemente abertas para dar toda a firmeza ao corpo. - Vem mais para a frente - ordenou. Damião viu o braço levantar-se e pender um pouco para trás, para voltar a descer firme sobre a sua mão espalmada. Não olhou o efeito da pancada, com a vista fixada no rosto do senhor, mas teve a impressão, pela dor e a violência do golpe, que a sua carne tinha ficado partida. Outra vez o braço subiu, tornou a descer, e mais uma vez o negro retesou os músculos do rosto, endureceu bem as pernas, sentindo escorregar-lhe da testa lisa os primeiros fios de suor. A pancada caiu-lhe em cheio na palma da outra mão, e ele estremeceu, reprimindo o grito que lhe quis forçar a boca. com dezoito anos feitos, era a primeira vez que apanhava. Antes, o pai não lhe batera; a mãe também fora benigna com ele. De modo que, agora, recebendo o castigo imerecido, juntava à dor o sentimento do ódio, e era com esforço que se mantinha chumbado ao chão, recebendo as bordoadas. Seu olhar continuava fixado no rosto de seu algoz, direito, horizontal, cara a cara, e este redobrava de furor, sentindo-lhe o desafio. Damião só via a palmatória quando esta subia e baixava, passando à frente de seus olhos, sempre brandida por uma energia implacável e que parecia crescer na repetição da bordoada. À altura da nova palmatoada, não precisou olhar para saber que a palma da mão direita estava rachada ao meio e empapada de sangue. E quando o braço do senhor tornou a descer, com a palmatória zinindo no ar para novamente cair na mão ferida, seu instinto pôde mais que a firmeza de sua cólera, e ele puxou o braço, ao mesmo tempo que o Dr. Lustosa vinha para a frente, desequilibrando-se, e só não caiu no quintal, por cima do descanso do alpendre, porque na passagem se amparou no pilar. - Ah, negro de merda, tu me pagas! Vai apanhar o dobro, para nunca mais tirares a mão na hora da bordoada! E dobrou de fato o castigo, lapte, lapte, lapte, uma palmatoada atrás da outra, até perfazer duas dúzias bem contadas, sem um momento de descanso do braço vindicativo, que subia e descia, subia e descia, com o rosto do senhor vermelho, de veias puladas, as pupilas faiscantes, enquanto Damião alternava as mãos sangrentas, que a palmatória ia espapaçando no seu bater feroz. - Agora, acabou-se a boa vida no carro de bois - rematou o Dr. Lustosa, aniolecendo o braço exausto, depois da última palmatoada. - Vais para a lata de água, de manhã à noite. Quem enche o tanque, agora, és tu, e até à borda, todos os dias, mesmo aos domingos! E de manhã à noite, daí em diante, chovesse ou fizesse sol, lá ia ele, rampa abaixo, rampa acima, entre o tanque e a lagoa, com as duas latas pendentes de um pau que lhe atravessava os ombros. De início, até 36 as mãos, para equilibrar a carga, ele não as tinha, porque as trazia envoltas em trapos, ainda com as feridas abertas. Só ao cabo de dois meses pôde valer-se delas, e assim mesmo aos poucos, gradativamente, no esforço para contrair os dedos e sentir que o tato lhe voltava. Ali na fazenda, ninguém suportara a penitência do tanque. Antes de Damião, dois escravos tinham fugido, preferindo a aventura na mata àquele castigo infindável. Um terceiro, o Balduíno, enforcara-se numa das escapulas da senzala, antes de findar o primeiro mês. O Dr. Lustosa havia sido franco: - Se fugires, como o patife do teu pai, quem me paga é a tua mãe e tua irmã, que vão para o tronco, e ali ficarão até tu voltares. Felizmente, quando as suas mãos já estavam cicatrizadas, entrou pela casa- grande, com o alvoroço das ventanias de outubro, numa carta vinda de São Luís, a notícia da próxima chegada do Senhor Bispo, que por ali nunca passara. E então começou, em toda a fazenda, antes de clarear o dia e até entrando pela noite, a azáfama dos escravos e operários, com a Sinhá Velha a tilintar pela casa o seu molho de chaves. Até a Sinhá Dona, que passava o mais das horas com os seus bordados, rodeada de mucamas, a aumentar o bragal da casa, agora também não tinha sossego, a abrir e fechar os seus imensos baús pintados, de onde retirava as cortinas muito alvas e os grandes panos de mesa, trescalando fortemente a alfazema, para a varanda, a alcova, os quartos de hóspedes e a sala de visitas. Vinha-lhe atrás, como se fosse a sua sombra, a Sinhá Miloca, trazendo por cima do pulso esquerdo um perpétuo xale escuro que lhe escondia a mão mirrada, e era talvez mais expedita que a irmã, na ligeireza com que ia buscar nos armários certos as velhas peças esquecidas, de que talvez só ela, ali, se recordasse bem. Ambas andavam agora com vestidos de cassa branca recendendo a naftalina, os cabelos apanhados para o alto, botinas de polimento, como se fossem à missa dos domingos, na igreja do povoado, ao contrário da Sinhá Velha, que nunca variara o seu traje de merinó preto, desde que deixara o marido no chão da capela, já lá se iam vinte e nove anos bem contados. Esta última, vez por outra, pelo fim da tarde, arrimava-se a uma bengala, para ajudar-se na descida dos batentes. E como o Dr. Lustosa não falava com a mulher, desde que esta havia trazido para a fazenda, sem o seu consentimento prévio, uma senhora portuguesa, com a qual Nhá-Biló aprendera a tocar guitarra, houve um grande espanto à mesa do almoço quando ele, à hora da sobremesa, sem levantar a vista, perguntou à Sinhá Dona se não seria melhor reservar para o Senhor Bispo o quarto dos fundos, que era mais fresco e mais espaçoso. - Eu não quis fazer nada sem sua ordem. - Pois então faça. 37 l No ir e vir contínuo, da lagoa para o tanque, do tanque para a lagoa, Damião via a lufa-lufa da casa que se transformava. Pelas janelas escancaradas, espreitava de passagem os grandes retratos nas paredes, os espelhos doirados, as cadeiras estofadas, a grande marquesa de palhinha, os consolos de tampo de mármore com jarros de porcelana, as camas de dossel, o enorme oratório de jacarandá cheio de santos, e todo ele também se alvoroçava, contagiado pela excitação de formigueiro que as rótulas abertas permitiam surpreender. De noite, quebrado de corpo, mal caía no fundo da rede, mergulhava em sono profundo, de que só emergia com o bater do sino, chamando para a labuta do novo dia. E a caminho da lagoa, com o pau da carga atravessado ao ombro, volvia a pensar na visita do Senhor Bispo, imaginando que o prelado chegaria à fazenda carregado num andor, de mitra na cabeça, tal e qual no seu quilombo Dom Cosme Bento das Chagas, Imperador e Tutor das Liberdades Bemte-vis. Parecia-lhe que o Senhor Bispo seria um ser diferente de quantos até então conhecera - todo-poderoso, mais perto de Deus que dos homens. Já lhe tinham dito que, quando Sua Reverendíssima passasse, todos ali se ajoelhariam, brancos e negros, e com o chapéuna mão. Até o Dr. Lustosa, que não baixava a cabeça para ninguém, iria beijar, de cabeça baixa, o anel do Reverendo, metido na sua farda da Guarda Nacional, que já havia sido posta para arejar numa cadeira do alpendre. O próprio Dr. Lustosa, diante dos negros espantados, mandara o Chico Laurentino tirar do terreiro o tronco dos castigos. É logo recolhera o riso dos negros, que se entreolhavam, maravilhados, na suposição de que a retirada fosse definitiva: - Mas volta para o seu lugar, assim que o Senhor Bispo for embora. E quem tiver de apanhar, com o Bispo aqui, não fica livre do chicote: apanha depois. Damião ouviu a ameaça na descida da rampa. Já havia perdido a conta de suas idas e vindas, naquela lida monótona e extenuante. Por vezes, galgando a rampa, tinha de redobrar de esforços para que as suas pernas não fraquejassem ao peso das duas latas transbordantes. Chegava lá no alto, despejava-as no tanque, e outra vez voltava à lagoa. Tornava a subir, tornava a descer. A despeito da almofada que a mãe preparara para proteger-lhe o ombro, sentia ali, incomodando-o, o calo do pau da carga. De vez em quando, na senzala, zombavam dele: - Eh, eh, Damião, tu passou da boa vida do quilombo, cheio de vontade, pró aperreio do trabalho na fazenda, com as tuas latas d'água. Te queixa de ti, criatura. O feitor jurou que ia quebrar teu orgúio. T'aí no que deu esse. teu jeito de andar cum a cabeça pra riba. Branco é branco, negro é negro, cada um tem de conhecer seu lugar. A Malvina, mais de uma vez, à noite, no seu regresso à senzala, tinha-lhe dito, a pitar o seu cachimbo de taquari comprido: 38 - loiô disse que tu vai carrega água inté esvazia a lagoa. Eh, eh, Damião! Tu morre, e a lagoa não seca! Ele passava direito para o seu canto, ao fundo da senzala, como se não ouvisse o que lhe diziam. No íntimo, era só no que pensava. Não raro a revolta trazia-lhe à boca um gosto vivo de fel. Até quando duraria o seu tormento? E ficava a esmoer a ira surda, de olhos apertados, maquinando desforras. Por que não matava o senhor? Ao ouvir o galope de seu cavalo, nas ocasiões em que o Dr. Lustosa dava as suas voltas habituais pela fazenda, vinha-lhe a vontade de atravessar uma corda na estrada, para derrubar-lhe a montaria, e cair de surpresa sobre ele, assestando-lhe a paulada na cabeça. Em seguida, de novo com as latas de água no pau de carga, subiria mais uma vez a rampa, para continuar a encher o tanque, como se nada houvesse acontecido. Não fizera assim com o Samuel? E adiando o crime, sempre de olhos entrefechados: - Não perdes por esperar - jurava-o. De noite, agora, via luz no quarto de Nhá-Biló. E não tardava a ouvir-lhe a guitarra, repetindo velhas músicas magoadas, que os tambores do terreiro tornavam mais plangentes com o fundo sonoro de seu prolongado batecum. Condoía-se dela, ajuizando-lhe a desventura, sobretudo depois que lhe ouvira os gritos, no silêncio da madrugada: - Eu não quero ir para o Inferno! Eu não quero ir para o Inferno! Eu não quero ir para o Inferno! Toda gente sabia que ela, nessas ocasiões, permanecia de joelhos, rezando em voz alta, de vista baixa, o rosário nas mãos, com medo do Diabo, que a espreitava de um canto do quarto, todo vermelho, com seus chifres, sua cauda comprida e seus olhos de fogo. Debalde o Dr. Lustosa crescia para a filha, fora de si, ameaçando bater-lhe. Não havia Diabo nenhum ali! Era tudo mentira! O que ela queria era ter um pretexto para não deixar ninguém dormir! Mas a Sinhá Velha acudia, com seu jeito de avó, e os gritos de Nhá-Biló se desfaziam, a luz do quarto não tardava a apagar-se, e só ficava no silêncio o sibilo do vento nas árvores, enquanto rangiam os armadores insones, madrugada a fora, ao embalo da rede do Dr. Lustosa. Também Nhá-Biló se excitara com a notícia da próxima chegada do Senhor Bispo. Quis que lhe fizessem um vestido roxo, como o das santas, e mais uma coroa de espinhos, para pôr na cabeça. Agora, todas as noites, havia luz no seu quarto. Mas não se ouvia mais a guitarra, somente o ruído dos passos de Nhá-Biló nas lajotas do chão. Ou então o rangido de sua rede, e Nhá-Biló repetindo alto uma velha ladainha de São Benedito, que só os negros cantavam na capela, nos raros dias de festa. Foi ao passar-lhe pela janela, com o dia querendo romper, que Damião deu com uma folha de jornal, na claridade desmaiada que descia pela fresta das rótulas, e que o vento úmido ia empurrando, quase 39 a ponto de rasgar. Dobrou-a, meteu-a no bolso, e desceu à lagoa, para outra vez galgar a rampa com a sua carga de água. Só ao meio-dia, no descanso do almoço, já de novo na lagoa, tirou do bolso o pedaço de jornal para lhe correr os olhos. E soube, então, por uma notícia no alto da página, que o Senhor Bispo, na sua viagem ao norte da Diocese, pretendia recolher moços pobres, de reconhecida devoção e inteligência, com o propósito de educá-los para padres, no Seminário Episcopal de Santo Antônio, em São Luís. DOM MANUEL JOAQUIM DA SILVEIRA, 17.o Bispo do Maranhão, tinha tudo para destoar da tradição dos prelados turbulentos que passaram pela Diocese, desde os tempos da Colônia. Tanto no feitio quanto na figura, era outro homem: muito fino, palavra mansa, mais amigo de ouvir que de falar, e enérgico nas ocasiões adequadas. Em suma: não parecia ter o demônio na pele, como alguns de seus predecessores. E logo ao primeiro contacto, deixava transparecer que era, de fato, um ministro de Deus. Basta recordar que, monsenhor da Capela Imperial, foi ele que acompanhou D. Teresa Cristina, na qualidade de capelão da Imperatriz, quando Sua Majestade, meio simplória e puxando de uma perna, saiu de Nápoles para o Rio de Janeiro, a fim de conhecer o seu real marido, e ser por este devidamente apreciada. com esse passado ilustre, podendo ter a vaidade de seus títulos, Dom Manuel chegou a São Luís como uma pessoa simples, igual aos outros sacerdotes, só tendo como programa o desejo de viver em paz e em paz conduzir o seu rebanho. Entretanto, quase na véspera de sua chegada, já com a catedral a se adornar para recebê-lo, aconteceu um fato singular, que deixou os maranhenses com a pulga atrás da orelha: uma faísca elétrica pôs abaixo, pela madrugada, uma parte da torre da igreja. E dias depois do desembarque de Sua Reverendíssima, quando se cuidava de sanar o dano a toque de caixa, para dar posse ao Bispo, uma nova faísca, mais violenta que a primeira, acabou de destruir o que ainda restava do velho campanário. 40 Pela manhã, ao dar com os escombros, o povo teve a sensação de estar diante de um sacrilégio, ou de um mau aviso. O sino grande, desequilibrado, ameaçava despencar, rolando para o lado do Passeio Público. Somente um sino pequeno permanecia preso à sua barra de ferro. O outro desaparecera no entulho de uma das paredes. A cruz de ferro fundido, que encimava a torre, jazia torcida sobre o entulho, com seu galo de metal de cabeça arrancada. Dir-se-ia que por ali passara um furacão, e ainda ocorrera um começo de incêndio, que enegrecera rebocos, pedras e vigas de madeira, só não indo adiante porque continuava a chover. Disso tudo resultou que, para empossar-se, Dom Manuel teve de deixar de lado a Sé, mais adequada à imponência da cerimônia, e optou pela igrejinha do Rosário, que a piedade dos pretos edificara perto do mar, no começo da Rua do Egito. Em verdade, não obstante as muitas festas que lhe preparou, enfeitando ruas e praças, pondo colchas e flores nas janelas, e fazendo bimbalharem todos os sinos de São Luís, a Diocese ia dar muito aborrecimento ao novo prelado. Mas seu primeiro ato, proibindo sair acompanhada de farricocos a procissão de cinzas, fez o povo sentir a mão enérgica de Dom Manuel. A procissão foi para a rua, no dia marcado, e saiu da igreja de Santo Antônio, sem que por lá aparecessem os encapuzados, de hábito escuro e tocando trombeta, que apenas prolongavam na quaresma as folias de carnaval. Lutas mais sérias, e sem esse bom resultado, tinham travado os antecessoresdo novo Bispo. Mesmo as questões de nonada, que se resolveriam com um breve diálogo, serviram de pretexto aos velhos prelados para trocas de desaforos, prisões, excomunhões, queixas ao Rei e ao Papa, intrigas, desfeitas públicas, e até agressões e emboscadas. Poucos, muito poucos mesmo, foram os ocupantes da Diocese que não quebraram a crista com o povo maranhense ou com os Governadores da Capitania. Se vinha o Bispo por uma rua e encontrava-se com o Governador, que também tinha saído para dar o seu passeio, era este que devia parar, enquanto o outro passava. A desobediência a esse preceito da pragmática fazia arder Tróia: melindrado com o agravo, o Bispo reagia, e punha em ação, na cidade pequena, com todo o furor possível, as armas a seu alcance, desde a simples reprimenda do púlpito, nos sermões de domingo, até à excomunhão maior. No entanto, não foi por uma razão de pragmática que se desavieram, por exemplo, em São Luís, Dom Gregório dos Anjos e Francisco de Sá e Meneses, e sim porque o Bispo e o Governador tinham o mesmo interesse no comércio de escravo para a Metrópole. Certa vez, como o capitão de um barco se recusasse a levar para Lisboa a carga de Dom Gregório, este o ameaçou imediatamente com a censura eclesiástica, e outro jeito não teve o seu opositor senão abarrotar os porões do navio com os cravos do Senhor Bispo. 41 Seu sucessor no Bispado, Dom Timóteo do Sacramento, preferiu bulir numa casa de marimbondos, quando denunciou o mau costume, corrente entre os maiorais da terra, de terem estes as suas concubinas. Como as mulheres eram muitas, e os homens poucos, chegava-se a este resultado: várias damas para cada um. E como a ociosidade era geral, gemiam as redes e as camas, acompanhando o folguedo dos casais, tanto de dia quanto de noite, com grande escândalo das mulheres legítimas, que se consideravam prejudicadas no uso e proveito de seus maridos. Dom Timóteo, assim que chegou a São Luís, tomou-lhes o partido, e entrou a perseguir os esposos adulterinos. Foi um deus-nos-acuda. A Câmara inteira ficou contra o Bispo. E o Governador também. Mas Dom Timóteo não se intimidou: caiu-lhes em cima, com unhas e dentes. Sua Ilustríssima andava mijando fora do caco conjugal? Pois devia ter mais cuidado onde o mijo lhe caía, sob pena de ser preso e excomungado, além de ser seus escândalos denunciados do púlpito da Sé, na missa de domingo! Dom Timóteo não somente teve mesmo essa coragem como foi adiante: ricaços, escrivães, guardas, altos funcionários da Capitania, eles os meteu na cadeia, e ainda subiu ao púlpito para relacionar os prevaricadores, com o templo apertado de fiéis. No meio destes, uns riam, outros amarravam a cara, e alguns mesmo se levantavam, bufando de raiva e largando a missa em meio, apontados pelo dedo episcopal de Dom Timóteo. O Governador da Capitania, que se achava em Belém, não podendo deslocar-se imediatamente para São Luís, mandou em seu lugar o ouvidor-geral, com ordem de entender-se com o Bispo. Dom Timóteo nem sequer o recebeu. Aos ofícios em que o ouvidor- geral lhe ordenava a liberdade dos presos, não deu resposta, e continuou prendendo. O ouvidor-geral perdeu a paciência. Se o Bispo não queria atender-lhe com bons modos, tinha de obedecer à força, e mandou soltar os presos, apoiado pelo Tribunal do Juízo da Coroa. Dom Timóteo não tardou com a represália: excomungou o ouvidor e todo o Tribunal. A essa altura, a cidade se deliciava com o litígio, e não tinha outro assunto, no adro das igrejas, nas conversas da botica, nos corredores de Palácio, nos bancos do Passeio Público. Meio tonto com a reação de Dom Timóteo, o ouvidor-geral pediu força militar ao capitão-mor para intimidar o Bispo, e aplicou-lhe a pena da temporalidade, que consistia em privá-lo de meios de transportes, tirar-lhe os criados, seqüestrar-lhe as rendas, e confiná-lo no Paço Episcopal. - Seja tudo pelo amor de Deus - conveio o Bispo. - Mas estão todos enganados comigo, se pensam que vou recuar. E quando a força militar se postou no Largo de Santiago, cercando-lhe o Palácio, sentou à sua mesa de trabalho, molhou no tinteiro de chifre a pena de pato e excomungou toda a cidade. 42 Depois, sozinho, sem ter quem o servisse, entrou a ir e vir, da sala para a cozinha. No primeiro dia, teve ainda em casa uns restos de comida, e pôde-se alimentar. Mas, no dia seguinte, além de lhe faltar o alimento, faltou-lhe a água para beber. - Pois vou sair, encho a moringa na fonte pública, e quero ver quem tem o topete de me embargar o passo. com a moringa na mão, chegou à porta da rua. Os soldados se entreolharam, perplexos. E viram Dom Timóteo sair à calçada, romper o cerco, descer a ladeira da fonte, encher aü a moringa de barro, depois voltar, subir a rampa, batendo nas pedras da rua a sola zangada de suas alpercatas de couro, e outra vez fechar atrás de si a porta de seu palácio. As brigas tempestuosas dos Bispos com os Governadores, nas quais entravam o ouvidor-geral, a Câmara e os Tribunais, arrastados pelos lances da contenda, não excluíam outras disputas mais sérias: as do pastor com seus próprios companheiros de pastoreio. A luta maior de Dom Manuel da Cruz, 5.° Bispo do Maranhão, foi com o pároco da Sé, Padre Pedro Gonçalves, e estoirou na manhã em que, a mando de Sua Reverendíssima, o Reverendo Provisor devia celebrar a missa de ação de graças pela aclamação do novo Rei. Agastado com o Bispo, Padre Gonçalves, além de não aparecer na igreja, nem deixar dito onde se metera, havia passado a chave na arca dos paramentos, na estante dos missais, no hostiário e no armário onde estavam guardados os cálices e as garrafas de vinho. Foi preciso arrombar tudo! Tendo de aplicar um castigo ao pároco, em proveito da disciplina eclesiástica, Dom Manuel da Cruz se viu com água pela barba: a Câmara de São Luís tomou as dores do Padre Gonçalves, e desfeiteou o Bispo, que também revidou com azedume, injuriando os camaristas e acoimando de doido o pároco insubordinado. De todos os prelados turbulentos com que contou o Maranhão, nenhum se compara a Dom Antônio de São José, tanto pelo motivo de seu litígio quanto pelos poderes de seu contendor. Dom Antônio brigou com o sobrinho dileto do Marquês de Pombal, Joaquim de Melo e Póvoas, o todo-poderoso Governador da Capitania, e apenas por isto: uma multa de duas libras de cera, imposta a certo soldado que deixara de confessar-se. O soldado estava doente no dia da confissão, alegou Melo e Póvoa; mas o Bispo era teimoso, e não abriu mão da cera. Tempos depois, o Governador foi informado de que Dom Antônio estava enfermo. Querendo fazer as pazes com ele, agarrou o pretexto para visitá-lo. Achou-o de bom aspecto, no gozo de perfeita saúde. Mesmo assim, formulou votos para seu pronto restabelecimento. - A causa de minha doença é Vossa Mercê - destemperou o prelado, não contendo mais a língua raivosa. - E na marcha em 43 que vamos, acabo morto, e o assassino está agora mesmo diante de mim. Melo e Póvoa levantou-se da cadeira: - Vossa Excelência tem coragem de me dizer isso? - Perfeitamente. Sou prelado, e não se me dá de morrer mártir para defender a Igreja. Vossa Mercê, além de incorrer em pecado mortal, está excomungado e possesso do Diabo! Quando ocorre um período de paz, sem que Bispo e Governador se engalfinhem, sobrevém outra fase tempestuosa, na qual o novo prelado parece descontar em litígios o tempo de mansidão. Depois do bispado de Dom Antônio, de São José, passou o Maranhão por quatorze anos de vida calma, graças à circunstância feliz de não terem vindo ocupar os seus postos os dois bispos que o sucederam: Dom Jacinto da Silveira, que por lá jamais apareceu, e Dom José do Menino Jesus, que só se lembrava da Diocese, quando mandava buscar o dinheirinho que esta lhe rendia. Em seguida, veio um franciscano ilustre, mestre de teologia, Dom Antônio de Pádua e Belas. Um ano antes de chegar a São Luís, publicara ele um livro, que vinha mesmo a calhar: a Arte de viver em paz comos homens. Da teoria, como escritor, ia passar Pádua e Belas à prática, como Bispo do Maranhão. E o certo é que, a despeito do livro, da condição franciscana, e da cátedra de teologia, ninguém foi mais turbulento que ele, na sua briga com o Capitão-General José Teles da Silva, e com esta singularidade: começou na hora da chegada do novo Bispo, e foi este quem deu no Governador a primeira estocada, com uma frase ferina. Para a entrada solene de Dom Antônio, realizada dias depois, armou-se um arco na esquina da Rua do Sol com a Rua de São João, e ali foram esperá-lo, com mostras de regozijo, o Governador e a Câmara, além dos nobres da terra e a massa popular. Quando o prelado, já revestido de seus trajes episcopais, montou no cavalo que o levaria à catedral, Teles da Silva adiantou-se e fez o que ninguém esperava: segurou as rédeas de montaria e veio puxando o cortejo, com unção e humildade, ao longo da Rua do Sol. Os primeiros dias de paz iam ser rapidamente toldados pelas nuvens de tormenta, já formadas no céu de São Luís, sombreando a pequena distância que separava do Palácio do Bispo o Palácio do Governador. Dom Antônio, além de genioso, tinha espírito satírico, e o Capitão-General, por seu lado, havia nascido com o gosto da briga. No dia da procissão de Corpus Christi, quando tudo devia predispor à concórdia, os dois encontraram o pretexto para se desentender. Sem consultar a Câmara, o Bispo determinara que a procissão percorresse a parte alta da cidade. A Câmara entendeu que o itinerário devia ser pela parte baixa, por ser a mais vistosa, com seus velhos sobrados, seus mirantes, suas sacadas de ferro. Teles da Silva logo se colocou do lado da Câmara, disposto a dar-lhe a força de que 44 necessitasse para opor-se ao Bispo. Informado a tempo, Dom Antônio fez afixar numa das portas da Sé a pastoral em que ameaçava de excomunhão todo aquele que tentasse levar adiante o projeto, "que só do Inferno poderia ter saído", de conduzir a procissão pela Praia Grande. Intimidados pela ira episcopal, o Governador e a Câmara trataram de baixar a cabeça. E de noite, já recolhida a procissão, uma comissão de ouvidores, ainda inconformados, foi levar ao Bispo o seu protesto. Dom Antônio, além de lhes voltar as costas, quase os correu escada abaixo. Que fossem bugiar. Tinha mais o que fazer. Mas a desfeita maior, que enegreceu de vez o ambiente, ia recebê-la, daí a dias, o próprio Governador. Teles da Silva, como Capitão-General, tinha direito a três duetos de incenso, em meio à missa da Sé. O sacristão, de costas para o altar-mor, aproximava-se do Governador, que ocupava o lugar de honra à frente da nave, e sacudia o turíbulo, uma, duas, três vezes, na direção de Sua Excelência, que baixava a cabeça calva, envolto na fumaça cheirosa. Sempre fora assim. Ora, no primeiro domingo de dezembro, estava Teles da Silva no seu lugar, assistindo à missa que Dom Antônio celebrava, quando o sacristão veio vindo com o turíbulo.' Cerrou os olhos, ajoelhado, no movimento da contrição, para receber melhor as três baforadas da pragmática. Recebeu a primeira, depois a segunda, e ficou esperando a terceira. Como demorasse, abriu os olhos, intrigado. Já o sacristão estava de novo no altar-mor, sacudindo o turíbulo em volta de D. Antônio. No outro domingo, a cena se repetiu: dois duetos de fumaça em vez de três. E assim também no domingo seguinte. Teles da Silva concluiu que não se tratava de uma distração do coroinha. O Bispo dera ordem para que lhe retirassem o terceiro dueto de incenso a que tinha direito! Ao fim da missa, entrou na sacristia e fez a sua queixa. Dom Antônio, calado estava, calado continuou. E fez mais: como Teles da Silva insistisse em falar- lhe, tirou depressa os paramentos, deu-lhe as costas, e o deixou falando sozinho. - Não estou aqui para ouvir maçadas - resmungou. De volta ao Palácio, Teles da Silva aproveitou a cólera ainda quente para enviar outro ofício ao Rei, com a notícia de que estava decidido a recorrer à força, caso voltasse a ser desfeiteado pelo Bispo. Em janeiro, no correr de uma briga com um de seus vigários, o Bispo foi informado de que o Governador tomara o partido da ovelha negra. Ah, era assim? Pois o Senhor Capitão-General ia ver agora em que dava meter-se onde não era chamado. Uma reprimenda enérgica, com uma suspensão benigna de três dias, teria bastado para chamar o vigário à ordem. Mas Dom Antônio carregou a dose: mandou recolhê-lo ao cárcere do Convento das Mercês, e não houve quem o tirasse dali. 45 Só havia agora uma solução, reconheceu Teles da Silva: era aplicar ao Bispo a pena da temporalidade. Tantas tinha feito o prelado, com as suas sátiras, os seus caprichos, as suas incontinências de língua e as suas insolências, que não foi difícil ao Governador obter do Tribunal da Coroa o remédio extremo. Decretada a temporalidade, concluiu por fim o Bispo que estava mesmo em maus lençóis, e tratou de esconder-se no Convento de Santo Antônio. Ali permaneceu quieto, de bico calado, esperando que se desfizesse a ira de Teles da Silva. Esperou em vão. Semeara ventos, tinha de colher tempestade. E esta desabou, mais forte, mais copiosa, em abril de 1789, quando Dom Antônio de Pádua e Belas, para salvar a pele, foi obrigado a meter-se na selva, em direção de Viana, onde um barco misericordioso, que o foi buscar rio acima, afinal o recolheu e o restituiu a Lisboa. Daí a impressão de mau augúrío, que tomou conta da cidade, quando os dois raios puseram abaixo a torre da Sé, antes da posse solene de Dom Manuel Joaquim da Silveira. De que era um aviso do Alto, todo mundo concordava. Sinal de que o novo Bispo ia-se desentender com o povo e o Presidente da Província. Seria atrevido como Dom Antônio de Pádua e Belas? Severo como Dom Timóteo? Agressivo como Dom Antônio de São José? Ou pior que todos eles? VISSTO PELO LADO DE FORA, O Velho prédio do Paço Episcopal parecia bem conservado, com seus dois renques de janelas sobre a rua, no prolongamento da Sé. No entanto, em carta ao novo Bispo, que ainda se achava no Rio de Janeiro, o Cônego José Antônio da Costa, seu vigário-geral, tinha-lhe advertido: "Apesar de meus avançados anos, tesoureiro-mor da Fábrica da Catedral, é-me doloroso ter de levar à respeitável presença de Vossa Excelência que o Paço Episcopal está todo muito arruinado, e indecente para hospedar qualquer pessoa particular, quanto mais um Príncipe da Igreja Brasiliense, chovendo todo ele, inclusive a capela de Vossa Excelência." Foi assim de espírito preparado que Dom Manuel se aproximou de seu palácio, depois de ter contemplado, do lado do Passeio Público, a velha torre da igreja, que os raios tinham derribado. 46 - Vamos ter pano para as mangas - comentou o Cônego Costa, arrimando-se ao guarda-chuva, assim que o Bispo desceu o olhar. - Como eu lhe disse, não há dinheiro para consertar o Paço. Agora, vamos ter também de estender a sacola para fazer uma nova torre. Seja tudo pelo amor de Deus - suspirou, buscando a sombra da calçada. Dom Manuel tinha contraído a testa, em silêncio. De noite, no quarto que lhe fora reservado no Convento de Santo Antônio, levara mais de hora a ir e vir, insone, de um lado para outro, pensando nos tropeços de sua chegada. Antes de viajar, sabia que não seria fácil a sua missão. A bordo, relera o Sermão da 5.a Dominga da Quaresma, que o Padre Antônio Vieira tinha pregado ali ao lado, na igreja de Santo Antônio, e assustara-se um pouco com as observações do jesuíta. Uma, sobretudo, lhe teimava na memória, ali no quarto, como se a tivesse diante dos olhos: "Acontece-lhe aqui aos moradores o mesmo que aos pilotos, que nenhum sabe em que altura está. Cuida o homem nobre hoje que está em altura de honrado e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que está em altura de virtuosa e amanhã acha-se murmurada pelas praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom sacerdote e amanhã acha-se com reputação de mau homem." - Eu, se fosseVossa Excelência, começaria por consertar o Paço, para ter onde morar - aconselhou o Cônego, dando a nesga de sombra ao prelado. - O Convento de Santo Antônio (a verdade precisa ser dita, sobretudo entre sacerdotes) não tem acomodações para um Bispo de sua categoria. Vossa Excelência está muitíssimo mal instalado. Pior do que numa de nossas pensões. Foi o que se pôde arranjar. De fato, embora o quarto fosse espaçoso e voltado para o nascente, tinha um mobiliário exíguo, que se limitava à cama de ferro, ao guarda-roupa, à cômoda de tampo rachado e a duas cadeiras de palhinha, além de um lavatório, com a bacia de estanho e a jarra. Na parede, como único adorno, um crucifixo tosco, pequeno demais para o espaço que ocupava. Num canto, uma velha rede de varandas esgarçadas. A cama de ferro, muito baixa, mais parecia um catre, e rangia tão alto, ao menor movimento de Dom Manuel, que este era acordado por ela, todas as vezes que ia pegando no sono. Terminara por se passar para a rede, e ali, exausto, conseguiu dormir um pouco, a despeito do receio de desequilibrar-se e cair, sempre que mudava de posição. De madrugada, andara às apalpadelas, em busca de um penico. E só de manhã, já com o sol dentro do quarto, é que tinha dado por ele, metido por baixo do guarda-roupa. - com o tempo, tudo se resolve - consolou-se Dom Manuel, ainda a lembrar-se da dificuldade em localizar o penico. - Mas, em 47 primeiro lugar, vou consertar a torre. A casa de Deus é mais importante do que a casa do Bispo. - Grande frase - aplaudiu o Cônego, sinceramente radiante. - Já me tinham dito que Vossa Excelência é uma inteligência admirável. Acabo de ver que não me enganaram. Meus parabéns. Meus parabéns à Diocese do Maranhão. E empurrando uma porta entreaberta, rente ao batente da calçada, ao mesmo tempo que recuava, para dar passagem ao Bispo: - Faça favor, Excelência. A luz da manhã alta inundou o corredor que precedia a comprida escada de madeira, apertada contra a parede, e que levava ao pavimento superior. O corrimão trabalhado/já sem polimento e com marcas de cupim, parava a meio caminho, interrompido por uma falha longa, e prosseguia lá no alto, meio torto, quase a cair. - Por aqui já Vossa Excelência pode fazer uma idéia do que vai encontrar lá por cima - preveniu o Cônego, com uma expressão de júbilo, forcejando para erguer o olhar, contra a vontade do pescoço compacto, que lhe voltava a cabeça para o chão. - Podemos subir. Mas com muito cuidado. E seguiu atrás do Bispo, que ia galgando os degraus apoiando-se na parede. De vez em quando ouvia-se a tábua estalar, querendo ceder. Instintivamente o Cônego arregalava os olhos, alarmado. Mas não mudava o ritmo da subida. Seria o que Deus quisesse. Não podia fazer má figura, com o Senhor Bispo à frente correndo o mesmo perigo. Lá em cima Dom Manuel parou, descansando da subida, enquanto estendia o olhar para a saleta de entrada, que lhe pareceu melhor do que esperava. E em pouco menos de vinte minutos percorreu toda a parte alta do sobrado, sempre calado. Por vezes parava para um exame mais atento, apalpando portas, batendo com o nó dos dedos nas paredes, abrindo e fechando a gaveta de um móvel, sempre acompanhado pelo Cônego, que descansava as mãos por cima do ventre, atento à reação fisionômica de Sua Reverendíssima, visto que o Bispo não abria a boca. - Sem querer desfazer de ninguém, o grande culpado do Paço ter chegado a este estado lastimável foi o antecessor de Vossa Excelência. Cansei de advertir. Casa velha é como gente velha: tem de ser vigiada e tratada o tempo todo. Mas Dom Carlos se fiava mais na Providência Divina que nas suas próprias providências. Ao passar para o salão principal, em esquina, com janelas para o Largo do Palácio e para o mar, Dom Manuel quase deixou transparecer o seu entusiasmo. Uma galeria de retratos adornava as paredes, e alguns deles de excelente qualidade. Olhou-os de longe, com os braços cruzados sobre o peito, e logo o Cônego aproveitou aquela boa disposição de espírito para lhe dar más notícias: - As igrejas da capital, embora também necessitem de muitos reparos, ainda não estão caindo. Não direi a mesma coisa das do 48 interior. Cortam o coração. Quase todas em petição de miséria. Uma lástima. Uma verdadeira lástima - insistiu. E depois de um silêncio, como se juntasse as forças para o golpe final: - Mas o pior de tudo é o clero. Muita indisciplina, muita licenciosidade. Padres que deviam dar o exemplo andam por aí com devassas conhecidas. Resultado: ninguém quer pôr mais os filhos no Seminário. Cansei de dizer ao antecessor de Vossa Excelência que não é possível governar uma Diocese com o coração no lugar da cabeça. Infelizmente Dom Carlos não quis me dar ouvidos, e aí está o resultado. Já a indisciplina se estendeu aos fiéis. Aos fiéis, fique Vossa Excelência sabendo. Aos fiéis. Ano passado, a insolência chegou ao auge. Imagine Vossa Excelência que a coisa se deu dentro da catedral. Sim Senhor: dentro da catedral. Ia começar o Ofício de Trevas, quando se ouviram assobios, gritos, insultos, chibatadas por cima dos bancos, e até nos altares e na mesa da comunhão. Chegou a rebentar uma bomba. E Dom Manuel, de olhos crescidos: - Dentro da igreja? - Dentro da igreja, e na presença do Senhor Bispo. E tem mais. Vossa Excelência me desculpe estar lhe dando estas notícias. Mas Vossa Excelência vai navegar nestas águas, e eu, que sou prático da barra, preciso lhe mostrar onde estão os arrecifes. - Continue - ordenou Dom Manuel, em tom agastado. - Estou informado de que vão fazer a mesma coisa, um dia destes, na igreja do. Rosário, na presença de Vossa Excelência. Portanto, se lhe posso dar um conselho, aqui o tem: mão de ferro. Dirija a Diocese com mão de ferro. Lembre-se que Nosso Senhor não hesitou em empunhar o chicote para expulsar os vendilhões do templo. Siga-lhe o exemplo. Não há melhor exemplo que o do Filho de Deus. Dom Manuel sombreou o olhar, descendo as sobrancelhas preocupadas. Conhecia por alto os problemas da Diocese. Via agora que eram mais graves do que pensara. Caminhou até à janela, como em busca de ar para os pulmões, e escancarou de par em par as rótulas sobre a rua. E ainda batia as mãos, para sacudir a poeira, alongando a vista no sentido do mar, quando uma rajada da viração matinal entrou na sala, batendo uma porta mais adiante, numa alegria de menino pulando. Na direção do Palácio do Governo, o céu tinha-se aberto. E debaixo das nesgas azuis, irromperam das árvores, ainda úmidas de chuva, bandos ruidosos de bem-te- vis. De início Dom Manuel ouviu-lhes o tatalar das asas nervosas. E eram tantas, que ele se assustou. Depois, começou, no largo espaço entre o Palácio do Bispo e o Palácio do Governo, a bulha dos gritos divertidos, ora aqui, ora ali, ora mais além, depois novamente aqui, e sempre no tom de uma vaia peralta, que só mesmo os bem-te-vis sabem dar. 49 Dá gosto ouvi-los, ainda cedo, à primeira luz matutina, ou depois de uma pancada de chuva, assim que o sol se abre, esses bem-tevis de São Luís. Umas cidades têm as suas andorinhas; outras, os seus pardais; São Luís tem os seus bem-te-vis, que nascem com a luz do sol e parecem cantar com ela pelo resto do dia. De relance, dir-se-ia que voam em bando. Na verdade, ao contrário das andorinhas, voam solitários, sem prejuízo das reuniões eventuais no mesmo fio telegráfico, no beiral do mesmo telhado, nos ramos da mesma árvore. Destemidos, apesar de medirem pouco mais de meio palmo, lançam-se aos urubus em pleno vôo, e os afugentam. Cá embaixo parecem passarinhos bem comportados. Um deles grita, escandindo as sílabas: - Bem te vi! Logo outro grita também, no mesmo tom festivo, apressando a resposta: - Bem te vi! Embora circunscrito às três sílabas inconfundíveis, o grito nada tem de monótono, porque varia de inflexão e disposição oral. Assim: bem-em-em-em-te-vi! Ou simplesmente: te-vi! Por vezes, ouvindo-os ao raiar do dia ou ao cair da tarde, salteia-nos a impressão de que umdeles, mais moleque e jovial, zomba do outro, com este grito diferente: eh, eh, eh. E logo ouve a réplica, depois de um ruído repetido de asas no ar: bem te vi! bem te vi! Há momentos em que os gritos se repetem com tanta freqüência, que o canto solto se transforma em alarido. E é essa bulha brejeira que se ouve, todos os dias, em São Luís, de janeiro a dezembro, sempre que haja sol, de preferência quando as janelas dos sobrados se escancaram sobre a rua ou as rótulas dos mirantes se descerram para o mar. Depois das más notícias do Cônego Costa, Dom Manuel interessou-se em ouvi-los. Também eles pertenciam à sua Diocese... E apoiando-se na portada da janela, buscou-os com o primeiro olhar contente, que afinal lhe vinha ao rosto tenso, naquela manhã. Depois dos raios no campanário da Sé, dos longos dias de chuva que acinzentavam a cidade, do mau estado do Paço Episcopal, das noites maldormidas no Convento de Santo Antônio e das notícias aborrecidas que o Vigário-Geral lhe ia dando, numa vozinha pontilhada de pigarros, aqueles bem-te-vis urbanos eram as primeiras vozes alegres que saíam a saudá-lo, no seu novo bispado. E voltando-se para o Cônego, que ainda conservava o seu semblante pesaroso, comentou: - Gostei de ouvir esses passarinhos, Cônego Costa. - Vai detestá-los depois, Excelência. De manhã à noite, eles andam atrás da gente com esses gritos. Não conheço um só trecho de São Luís onde não haja bem- te-vis. Nem o cemitério, que é lugar de silêncio, eles respeitam. Lá também dá muito bem-te-vi. Na minha rua, 50 nem se fala. Pus um espantalho no quintal, para ver se os afugentava. Sabe Vossa Excelência o que aconteceu? Passaram a cantar em cima do boneco! Dom Manuel veio vindo, como se a viração o trouxesse agora para o meio da sala. E enquanto caminhava: - O meu caro Vigário-Geral não vai se zangar com o que lhe vou dizer? Posso lhe falar com toda a franqueza? - Pelo amor de Deus, Excelência. Vossa Excelência e eu somos dois Ministros de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu, aqui embaixo; Vossa Excelência, aí no alto. Mas entre nós não há cerimônias. Dom Manuel parou, olhouo outro nos olhos, descansando a mão direita no seu ombro meio penso. E depois de um silêncio, sempre a fitá-lo: - Já reparei que os maranhenses de hoje se queixam mais do que trabalham. Na minha Diocese, enquanto eu for Bispo, não vai ser assim. Quero todos os meus auxiliares trabalhando. Vamos restaurar a torre e consertar este Palácio. Se não houver dinheiro, Deus nos mostrará como encontrá-lo. E não ficaremos só nisso. Vamos restaurar as outras igrejas, construir mais algumas, dar o bom exemplo aos fiéis, e também vamos pôr gente nova no Seminário, para ter a quem entregar, na hora própria, as ovelhas do rebanho de Cristo: Após outra pausa, abriu o sorriso: - Sei que haverá murmuradores e maledicentes, como houve aqui no tempo do Padre Antônio Vieira. Mas posso-lhe assegurar que eles não atrapalharão nosso programa, que será fielmente executado, com o favor e a graça de Deus. E sempre que alguém cruzar os braços, negando-nos a sua ajuda, ou der com a língua nos dentes, murmurando de nosso esforço, também sei que, lá fora, estão os fiscais de Nosso Senhor, denunciando os maus servos da Parábola dos Evangelhos: são aqueles passarinhos. Eles gritam bem te vi para os que murmuram, em vez de louvar; para os que malsinam, em vez de servir; para os que se lastimam, em vez de trabalhar. O Cônego ficou um momento sério, de sobrancelhas travadas. Depois soltou a boca, numa risada gorda. E quando pôde falar, concluiu: - Vossa Excelência acaba de descobrir porque é que há tanto bem-te-vi neste nosso Maranhão. Depois, arrependido do que dissera, recolheu depressa o riso, olhou para um lado e para o outro, certificando-se de que só o Bispo o tinha escutado. E tentando emendar-se: - Mas a gente é boa, Excelência. E muito inteligente. com jeito, consegue-se tudo deste nosso povo. Não se assuste com ele. E como o Bispo estivesse a rir, riu também, mas sem exagero, apenas para acompanhar Sua Excelência Reverendíssima. 51 ATÉ aí TINHA SIDO FÁCIL CONSEGUIR que O Senhor Bispo incluísse a Bela Vista no seu itinerário. O próprio Dr. Lustosa, ao saber-lhe da visita pastoral a Turiaçu, fora a São Luís convidar pessoalmente Dom Manuel, para que, na volta, a caminho de Cururupu, lhe desse a honra de descansar na sua fazenda. - Vossa Excelência não vai se arrepender - assegurara-lhe. E o Bispo, com um semblante desolado: - O Senhor Doutôr devia ter-me falado mais cedo. A viagem toda está programada, dia por dia, hora por hora. Seria necessário mandar novos avisos, o que é quase impossível. O Dr. Lustosa não se dera por vencido: - Não será por isso. Eu me encarregarei de providenciar os avisos que Vossa Excelência quiser. Era outro homem, ali na sala do Paço Episcopal, muito bem vestido, a fala mansa, fisionomia aberta, sem nada da figura rústica, de semblante contraído, as botas engolindo as pernas das calças, o chicote debaixo do braço, a voz perenemente irritada, que martelava os passos nas lajes da fazenda e enchia de medo os seus escravos. E ante o silêncio do Bispo, que baixara o olhar, de sobrancelhas aproximadas, balançando-se na sua cadeira austríaca, com um fio de sol a tirar faíscas roxas da ametista de seu anel, o Dr. Lustosa deu à voz doce um tom mais amável: - Se Vossa Excelência concordar com o meu convite, chamarei os fazendeiros dos arredores, reunirei muitos negros para batizar e casar, e darei à minha mãe a maior das alegrias, de que todos nós naturalmente participamos. Além do mais, Vossa Excelência terá oportunidade de conhecer uma das mais bonitas capelas do interior maranhense, mandada fazer por meu pai, ainda no tempo da Colônia. Dom Manuel ergueu o olhar, procurando os olhos do Dr. Lustosa: - Vamos fazer um trato. O Senhor Doutôr, com a minha visita à sua fazenda, iria fazer muitas despesas, não é verdade? Pois bem: em lugar de fazer essas despesas, com a minha hospedagem, a hospedagem do padre que me companha, e mais as festas que pretende 52 organizar, reunindo os fazendeiros vizinhos, o Senhor Doutôr vai-me ajudar a restaurar a matriz de Turiaçu, que está caindo aos pedaços. De acordo? - Uma coisa não exclui a outra. Eu ajudo a restaurar a igreja, com a importância que Vossa Excelência achar necessária, e Vossa Excelência me dará a honra de descansar em nossa fazenda. Dom Manuel levantou-se: - O Senhor Doutôr pode dizer que veio a São Luís, viu o Bispo, e venceu. Eu mesmo vou providenciar os avisos com as alterações de meu calendário. Ao sair de Turiaçu, descansarei na sua fazenda. - E passará a noite conosco? - Para o descanso ser completo. - Fique certo de que sei ajuizar o sacrifício de Vossa Excelência. Mas Vossa Excelência não vai se arrepender - repetiu o Dr. Lustosa, curvando-se muito para beijar o anel do Bispo. E dali saíra em direção das casas de comércio da Praia Grande, a providenciar as primeiras encomendas, para que nada faltasse à fazenda, durante a hospedagem de Dom Manuel. A notícia de que o Bispo tinha partido de São Luís, com destino a Turiaçu, fez que o alvoroço crescesse na Bela Vista, embora já tudo estivesse pronto para recebê-lo. Agora, até tarde, ficavam acesas as luzes da casa-grande. Durante o dia, o Dr. Lustosa já pouco parava na sua cadeira de balanço do alpendre: sentava, levantava; sentava, levantava, e ia por quartos, salas e corredores, a ver se cada coisa estava no seu lugar. Se soprava uma pancada de vento, queria que, logo a seguir, o chão fosse varrido, principalmente a rampa de pedras à entrada da casa-grande e que prolongava o caminho arborizado até à porteira da fazenda. Ouvia-se o chapinhar nervoso das vassouras de talo nas pedras do calçamento, e mais de um negro recebeu de repente a sua chicotada ríspida, apenas porque, enquanto varria, tinha esboçado um sorriso, ao ver que nova pancada de vento sacudia as árvores. - Da outra vez apanha para não deixar o vento soprar ameaçava o Dr. Lustosa, recolhendoo chicote. No começo da rampa, à altura das palmeiras que precediam a casa-grande, abria-se um arco de ariris enramado por trepadeiras floridas. Por ali devia passar o Senhor Bispo, saudado pelo estoiro dos foguetes, o tantantã dos tambores e o estampido festivo dos tiros das espingardas. Desde a saída de Turiaçu, os foguetões marcariam, de distância em distância, o seu avanço lento na direção da Bela Vista. Todo o longo caminho, entre a vila e fazenda, por dentro da mata, até perto das margens do rio, tinha sido aplainado e limpo, cobertos de palmas os estirões de areia, revistos os pontilhões sobre os igarapés, abertas as clareiras para os descansos da jornada, e tudo inspecionado pessoalmente pelo Dr. Lustosa, que ali viera, repetidas vezes, montado no seu melhor cavalo. 53 Os nove quartos de hóspedes, na ala esquerda da casa-grande, exibiam nas camas de casal as finas colchas de labirinto, e havia redes em cada canto, pendentes das escapulas, prontas para serem armadas, todas muito alvas, cheirando a folha de jardineira. No vão de parede entre as janelas, o lavatório de ferro, pintado de novo, com a bacia e a jarra de louça, oferecia a toalha de felpo, aberta por cima da bacia. Sobre as pesadas cômodas de jacarandá com tampo de mármore, alteavam-se os candeeiros de opalina, com o monograma do Dr. Lustosa nas mangas de vidro. Ainda o dia não rompera, e já se ouvia pelos corredores o tilintar do chaveiro de Sinhá Velha. Esse ruído atravessava a manhã e a tarde, entrando pela noite, só se extinguindo quando se apagavam as luzes na casa-grande. A excitação do Dr. Lustosa parecia ter-se contagiado a toda a fazenda, e até mesmo os cavalos nas cocheiras nitriam com freqüência, como se também eles estivessem à espera do Senhor Bispo. A azáfama das costureiras terminara por chegar também à senzala. Os escravos tinham recebido roupa nova: saia e cabeção de chita, para as mulheres; calças de riscado e camisa de algodão, para os homens. Deixado para o fim, Damião chegou a pensar que só veria o Bispo de longe, nu da cintura para cima, metido nas suas velhas calças molhadas. De manhã à noite, continuava com a sua carga de água, entre a lagoa e o tanque. Mais de uma vez, madrugada alta, saltara da rede, ao ver, em sonho, que, tendo acabado de encher o tanque, este repentinamente se esvaziava. E ainda banhado em suor, sentado na rede, volvia a revoltar-se contra a miséria de sua condição. Por que não ia embora dali quando o Bispo chegasse? Na confusão de tanta gente estranha na fazenda, com o senhor distraído com seus hóspedes, e o feitor na casa-grande, apanharia um cavalo na cocheira e iria por este mundo de meu Deus, atravessando matas, vadeando rios, transpondo serras, até sentir que ninguém mais lhe deitaria a mão. Quando dessem por sua fuga, estaria longe, muito longe dali. Ao descer para a lagoa, com o dia começando a raiar, a idéia da fuga ainda lhe teimava na consciência. Quase ao fim do caminho, sentiu o mato mexer-se à sua direita, como se alguém estivesse de tocaia à sua espera. Levou a mão ao cabo da faca, redobrando de atenção. - Guarda essa faca, Damião. Deixa de sé brigado, criatura. Eu não tou aqui pra tu me matar. Tu só anda longe da gente, que nem passarinho. Vem pra perto dos outros. Ninguém vai te come. Pela voz identificou a Miduca, que ultimamente vivia a rondá-lo, com a sua insistência de mulher oferecida. Tinha-a repelido, dias antes, de noite, quando voltava para a senzala. Era ainda muito nova, quase uma menina, para se entregar a um e a outro. Criasse juízo. com pouco, andaria de barriga, como as porcas do chiqueiro. 54 - Inté parece que tu não gosta de muié - ela lhe replicara, amuada, metendo-se pelas sombras do oitão, depois de atirar para o lado uma cusparada aborrecida. Agora, de dentro da moita, ela volvia a assediá-lo, numa voz suplicante: - Vem, Damião. Tou te pedindo. Na claridade que se ia espalhando, ele lhe distinguiu o vulto esguio, mais de menina que de mulher, por trás da cerrada moita de capim, na derradeira curva que antecedia a esplanada da lagoa. Não pôde reprimir a censura: - Tu estás nua nessa moita molhada, Miduca? - Tou - confirmou ela, já agora em tom decidido. - Tu não me quê, mas eu te quero. Vem. Tou-te esperando. E como Damião tardasse, ainda à margem do caminho, ela veio até ele, tirou-lhe do ombro o pau de carga, e tornou a contornar a moita, por um caminho de cabras, puxando-o pela mão. Assim despida, andando à frente, nada tinha de menina-e-moça: era a mulher feita, de quadris cheios, cintura fina, os ombros pequenos, e de seios tão rijos que só de leve sacudiam com o movimento das pernas resolutas. - Tu não é o primeiro - advertiu ela, já deitada, ao ver que ele parecia hesitar, ainda de pé. Em verdade, Damião ouvia, longe, o galope de um cavalo, na direção da casa- grande. Sabia que, se o senhor o surpreendesse ali com a Miduca, desceria sobre os dois as lapadas de seu chicote, e ainda ordenaria que os atassem ao tronco, nus como estavam, para que o castigo fosse dobrado. No entanto, deitou-se sobre o corpo que o chamava, como se aceitasse o desafio da sorte, e nele penetrou de uma só vez, antes que o medo lhe voltasse. Ela gemeu, deitando a cabeça para trás, e ia repetir o gemido quando sentiu aproximar-se o tropel do cavalo. Os dois permaneceram abraçados, imóveis, de respiração suspensa, até que o galope passou perto e se perdeu para o lado da lagoa. Então ambos se puseram a rir, ainda abraçados. Foi por ela que Damião veio a saber que ia ter também a sua roupa nova para a chegada do Senhor Bispo: - O Doutôr não queria dar. A Sinhá Velha é que bateu com o pé. E no sábado, já querendo anoitecer, recebeu as calças e a camisa que só devia vestir quando a Sinhá Velha mandasse. Ao guardá-las no baú ao pé da rede, no seu canto na senzala, só lhe acudiu um pensamento: agora, para quando fosse fugir, tinha mais aquela muda de roupa. No sábado mesmo, tinham chegado os primeiros hóspedes. E ao vir a noite, depois de uma pancada de vento que ameaçou arrancar as telhas do beiral da senzala, derrubou árvores da baixada e fez os 55 cavalos relincharem com o estrondo dos trovões, desabou a chuva copiosa, que entrou pela madrugada. De manhã ainda chovia. - O tempo da chuva chegou - comentavam os negros, encolhidos debaixo do beiral, aguardando uma estiada. - A água vai estragar tudo. O caminho entre a porteira e o alpendre, varrido na véspera, era só folhas, galhos quebrados, valas abertas pela enxurrada, o arco de ariris desfeito. Uma das palmeiras jazia por terra, golpeada por um raio, que lhe deixara apenas a metade do estipe. Muitas cercas estavam caídas. E como a chuva prosseguia, variando de intensidade, a enxurrada continuava a descer pelas valas profundas. Agora se sabia que só por exceção, nos próximos seis meses, o céu se abriria, para mostrar uma nesga de azul. Choveria o tempo todo. Uma verdura nova, que a água dos temporais regaria com freqüência, cobriria toda a volta da fazenda. E se as chuvas próximas fossem como aquela, a própria lagoa ia sangrar, derramando-se pelas bordas e avançando pelos meandros da selva. No alpendre, de botas e esporas, balançando nervosamente o chicote de cabo de prata, o Dr. Lustosa olhava raivosamente os estragos da tempestade, e era com esforço que reprimia a explosão de sua ira contra a chuva nefasta. Que custava esperar um pouco? Caísse quando o Senhor Bispo já tivesse partido! Ninguém ia atravessar a mata, chovendo daquele jeito! E as despesas que já fizera? Por acaso era pouco o dinheirão que empregara na reforma da matriz de Turiaçu? E agora? Na certa, o povo de lá, e certamente também o Senhor Bispo, estariam a rir-se dele. E logo se pôs a dizer, exaltado, dando chicotadas a esmo: - Ele tem de vir à Bela Vista! Mesmo debaixo de chuva! Ou então manda que me, restituam o dinheiro que dei para as obras da igreja! A Sinhá Velha, mais expedita e devota, tratou de acender as velas do altar da capelinha, prometendoà Virgem do Rosário uma boa ajuda em favor das vocações sacerdotais - por que tanto se empenhava o novo Bispo - caso o tempo estiasse, permitindo a vinda de Sua Reverendíssima. E tão segura estava de ser atendida pela santa que, ao voltar à casa-grande, tratou de separar os brincos de brilhante, o cordão de ouro, a pulseira de platina e mais o colar de pérola de duas voltas, que passaria às mãos de Dom Manuel, como pagamento da promessa. Não obstante a fé de Sinhá Velha, as chuvas continuaram desabando, debaixo de um céu fosco, que já amanhecia carregado. Parecia amainar um pouco pelo fim da tarde, mas recrudescia novamente, antes de a noite fechar. Debalde apelou-se para o recurso das ladainhas, que a velha mesma puxava, numa voz forte, logo repetida pelo coro de brancos e negros, e com o Dr. Lustosa presente, de cabeça levantada, sempre a apertar a dentadura no intervalo das jaculatórias. 56 De manhã, ainda escuro, era ele o primeiro a sair ao alpendre, no camisolão de dormir, para sondar o tempo, a mão em pala por cima dos olhos. Irritado, cerrava o punho, blasfemando: - Chuva de merda! Chuva do Diabo! Mesmo sob a chuva cerrada, Damião não interrompia o seu trabalho. Penosamente, buscava as veredas cobertas de grama e subia ou descia a rampa, entre o tanque e a lagoa. Por vezes, galgando devagar a ladeira, sentia o terreno fugir debaixo de seus pés, que avançavam patinhando na enxurrada, e logo perdia o equilíbrio, não raro também perdendo a carga, que volvia à lagoa com a água da chuva. Ao passar em frente à janela fechada de Nhá-Biló, sentia-se espionado pela fresta das rótulas. Tarde da noite, só no seu quarto o candeeiro continuava aceso. Era então que ela se punha a tocar a guitarra, cantarolando baixinho, para adormecer as bruxas de pano. Damião se condoía daquela loucura mansa, que a tornava cada vez mais esquiva, e ouvia a voz áspera do Dr. Lustosa, ralhando com a filha, em meio à madrugada, para que parasse com aquilo: - Quero dormir, e tu não me deixas! Já te disse que, de noite, eu quero silêncio! Basta a zoada do vento! Ela parava um pouco, deixando que o ruído do vento se acentuasse, e depois volvia a tocar, deslembrada da reprimenda do pai, sempre repetindo as velhas músicas que lhe tinha ensinado a mestra portuguesa. Todas as vezes que Damião se sentia tentado a atear fogo na casagrande, tal como fizera seu pai, a imagem de Nhá-Biló, morta nas chamas do incêndio, o desorientava. Não, não faria isso. Por causa dela, mudava de pensamento. Mas era em vão que, a sós, de si para si, ensaiava imaginar outra vingança, que o desforrasse daquela humilhação, sem domingos nem dias santos, sempre com a sua carga ao ombro. Já uma vez, cedendo ao impulso da revolta, havia sondado a mãe, para ver se ela concordava em fugir com ele, levando também a irmã. - Tu tá doido, Damião? Não basta o que a gente já sofreu? Memo que eu tivesse doida do juízo, pra me meter noutra aventura, óia minhas pernas como tão. Não dou mais um passo direito, e a inchação tá subindo, querendo pegar o jueio. Tua irmã, de namoro ferrado com Valentim, também não ia querer ir-se embora. Tira isso de tua cabeça, meu fio. Tu sabe que, se tu foge, quem vai pagar no tronco sou eu e a Leocádia. O Doutô já jurou que nos castiga, e quando ele diz que faz, faz memo. Pelo amo de teu pai, tem um pouco mais de paciência. De hora em hora, Deus miora. Mas não, não melhorava. Sempre o tormento daquelas idas e vindas, mesmo debaixo de chuva. Que seria de sua vida futura, ali na fazenda? Mais dia, menos dia, acabaria amigado com a Miduca, e pondo outros negros no mundo, para o chicote do senhor. E a vontade de 57 largar tudo, fosse qual fosse a conseqüência, crescia dentro dele, com a força obsessiva de uma idéia fixa, teimando, insistindo. Chovendo ainda, viu o senhor sair do alpendre, debaixo de um guarda-chuva, ao mesmo tempo que um grupo de negros, cada qual com a sua vassoura de talos, entrava a tanger as folhas caídas e os galhos quebrados, seguindo o curso da enxurrada. - Tudo limpo! - ordenava o Dr. Lustosa, com a água a lhe dar pelo cano das botas. - E muitas pedras nas valas! E aí principiou a luta dos negros contra as devastações do temporal. Chapinhavam as vassouras de talos, levando as folhas do chão, ao mesmo tempo que a ventania tornava a torcer os ramos das árvores. De manhã, quando os negros reapareciam com as suas vassouras, tudo estava novamente sujo de folhas e ramos partidos. Pior era dentro da mata, onde trabalhava outra leva de negros, debaixo das vistas do Chico Laurentino. A chuva, ali, não amainava: bastava o sopro do vento, no alto das ramagens, para a água cair mais forte nos lamaçais. O caminho primitivo, com as folhas acamadas, as palmas sobre os estirões de areia, era um valo profundo. Dois pontilhões tinham sido levados de roldão, com a cheia dos igarapés. Nalguns trechos das veredas estreitas, viam-se árvores tombadas, e só o braço humano não poderia removê-las. Era preciso golpeá-las a machado, horas seguidas, até separar-lhes o tronco, reabrindo a passagem. Só ao fim de uma semana inteira de chuvas contínuas sobreveio uma noite de céu limpo. No domingo, abriu o sol, ainda cedo, e logo a Sinhá Velha encheu novamente os corredores da casa-grande com o tinido de seu molho de chaves. Apareceram os primeiros urubus voando a grande altura, sinal certo de bom tempo. E outra vez os negros surgiram, com as suas vassouras, as suas pás, os seus machados, os seu gadanhos, para recomeçar a limpeza da fazenda, enquanto outros seguiam para a mata molhada. Pelo meio da semana, o céu voltou a escurecer, um raio estalou, rasgando a amplidão no sentido do nascente, e o trovão rolou no alto, por cima da floresta. Toda gente da casa-grande veio para o alpendre, e ali, em silêncio, aguardou a chuva cair. Mas o vento soprou forte, levando as nuvens de chuva, e a tempestade se desfez, enquanto Sinhá Velha, sozinha na capela, de joelhos, suplicava a intercessão da Virgem do Rosário. - Nossa Senhora me ouviu - afirmou ela, reconhecida, ao tornar à casa-grande, ainda com o rosário na mão. E foi na noite desse dia que o Chico Sarará, de volta de Turiaçu, depois de dois dias no galope do cavalo, veio dizer ao Dr. Lustosa, de chapéu na mão, que o Senhor Bispo, muito gripado, sentia muito, mas talvez não pudesse descansar na Bela Vista, como tinha prometido. - Ele tem de vir, nem que seja à força! - gritou o Dr. Lustosa, 58 saltando na cadeira. - Ele não pode me fazer essa desfeita! Não aceito! Não admito! Ele tem de vir! E sapateava nas lajotas do chão, os olhos crescidos, sacudindo para o ar o punho exaltado. Nisto fixou o olhar na figura magra do preto, que parecia sorrir-lhe, vexado da má notícia. Foi a ele, rápido, e atirou-lhe no rosto a bofetada firme, que o sacudiu contra o peitoril da varanda, sem lhe dar tempo de defender-se: - De que é que estava rindo? - perguntou-lhe, vendo o preto levantar-se, ainda atordoado. - Doutra vez, apanha de chicote! Damião tinha acabado de despejar no tanque as duas latas de água da última carga, já noite entrada, quando viu o Chico Sarará entrar na varanda, à procura do senhor. E já estava na senzala, sentado na rede, a comer o prato de comida que a mãe lhe trouxera, quando o preto chegou, com um fio de sangue no canto da boca. Adivinhou, num relance, o que se tinha passado. E oferecendo-lhe a rede, ao mesmo tempo que se acomodava num mocho de pau, as costas apoiadas na parede: - Senta aqui, Sarará. O preto deixou cair a cabeça para o punho da rede, ainda ofegante, o dedo indicador a comprimir a ferida para estancar-lhe o sangue. E depois de um silêncio longo, em que apenas se ouvia Damião mastigar: - Tou ficando cansado de ser preto, Damião. A gente trabaia, trabaia, e depois é só chicote e pancada, chicote e pancada, ou então tronco e palmatória. Até no gosto que a gente tem com as muié, é o branco que sai ganhando, com os negrinho que vão nascendo. Tu não conheceu o Tonico, meu irmão. Era um preto bão,só vivia pra ajudar os outro. Se tinha arguém doente, o Tonico tava do lado, ajudando a sofrer. Não podia haver um coração mio. Mio mesmo, só Deus. Um dia, o Doutô cismou com ele, passou a judiar do coitado, cumo tá fazendo cuntigo. Era ele que enchia o tanque. Cumo era fraco, não agüentava direito a carga. O Doutô se zangava, metia a taça nele. Tonico acabou achando que era demais. Uma tarde, desceu pra lagoa, e não vortou. Foi pra pedreira, e se jogou lá de riba. Quando acharam ele, dentro do mato, já tava inchado, cum os urubu voando em cima. No esforço para reprimir a ira, que por vezes lhe voltava, encheu devagar o peito, semicerrando os olhos pensativos. - O castigo de Deus, quando demora, tá no caminho - continuou, como se falasse para si mesmo. - O do Doutô já chegou. A filha tá aí maluca, com medo do Diabo. E não é feia, coitada. com o dinheirão que o pai tem, podia ter casado; mas ficou moça veia, agora tá na casa do sem-jeito, moço branco não quê mais ela. Se tivesse casado, tarvez vortasse a ter juízo. Ali é home que tá fartando. Um macho botava ela boa. Quando o corpo pede macho, e o macho não vem, a cabeça começa a fazer besteira. A finada Lúcia foi assim. 59 O Sipaúba trepou com ela, botou um fio na barriga da coitada, e a Lúcia ficou boa do juízo. Até morrer, pegou seus macho. Dizia que era remédio. Damião descansou o prato no peitoril da janela, mergulhou a caneca de flandres no gargalo do pote, bebeu um gole de água, e tornou ao mocho, sem perder de vista o Sarará. - Tu conheceu o outro fio do Doutô? Era mais veio que NháBiló, Damião. Damião tinha uma lembrança distante, sem muita nitidez. - O pai pôs nele um nome diferente: Délio; mas todo mundo chamava ele de Seu Dê. Seu Dê era a menina-dos-óio do Doutô. Tinha cavalo de sela, espingarda de caça, dois escravo só pra ele, e brinquedo que não acabava mais, tudo vindo das estranja. O Doutô não largava o fio, pra riba e pra baixo. Um belo dia, sem que nem mais, Seu Dê amanheceu doente. Corre daqui, corre dali, dá remédio, chama rezado, ninguém deu jeito, aí mandaram chamar o médico no Turiaçu. Quando o médico chegou, já não era mais perciso: Seu Dê tava morto. Mas o médico olhou o menino, examinou ele, ouviu a história da doença, e meteu na cabeça do Doutô que Seu Dê tinha morrido de veneno. Pra que foi dizer? O Doutô enterrou o fio na capela, mandou levar o médico no Turiaçu, e aí juntou os negros, pra sabe quem tinha envenenado Seu Dê. Ninguém se acusou. Aí o Doutô prometeu que quem acusasse o curpado, ganhava a liberdade e ainda um bom dinheiro. Ninguém falou. Nessa hora, o Doutô perdeu a cabeça. Tava cum chicote de umbigo de boi na mão, e começou a bater. A pobre da Marvina, que não enxergava direito, ficou cega dos dois óio, só com a tacada que recebeu na cara. A Candoca perdeu o resto dos dente. E o chicote não parava. Ia batendo, batendo, sem respeitar veio nem muié de barriga. Foi aí que a gente viu cumo teu pai era mesmo home. Não é que, de repente, no meio da negrada apanhando, ele gritou pró sinhô que não era direito o que ele tava fazendo? Ah, Damião, nem te conto o que foi que assucedeu. O Doutô cresceu pró Julião, ainda mais doido, e desceu a taça nele com força. Julião agüentou firme. E toda vez que o sinhô levantava o braço, ele tornava a dizer, com os óio em cima do Doutô: "Não tá direito." Foi Sinhá Veia, nessa hora, que pôs água na fervura. Ela gritou pró fio, mandando ele parar, e o Doutô parou. Aí nós foi pra senzala cuidar das ferida. Desde esse dia, o Doutô ficou com raiva de Julião. Vorta e meia, tava com ele na taça. Julião chegou a ficar uma semana inteira no tronco, ora apanhando do sinhô, ora apanhando do feito. Negro duro. Não tinha medo de branco. Apanhava, mas não baixava a cabeça. Tu tem pra quem sair. Eu sou diferente: quando apanho, tenho vontade de me matar. Pra que ficar neste mundo, só trabaiando e apanhando? Tem hora que eu fico pensando que Deus não óia prós preto. Se oiasse, tirava a gente do cativeiro. 60 A lamparina, por cima do tampo de um baú, movia ao sopro do vento a sua chama comprida, como se desse volta sobre si mesma, e fazia dançar na parede a sombra de Damião, que apoiara o rosto nas mãos espalmadas, com os cotovelos fincados nos joelhos. - E nunca se soube quem matou Seu Dê? - perguntou Damião, aproximando mais as sobrancelhas, assim que o Sarará se calou. - A finada Joana, que sabia de tudo, me disse uma noite, aqui na senzala, que foi Nhá-Biló, que não gostava do irmão. Se foi, não sei. O que eu sei é que nunca mais se falou na morte de Seu Dê. E foi depois que perdeu o fio, que o Doutô passou a ser memo ruim prós seus negro. Ruim como cobra. -pENDO CHEGADO POR ÚLTIMO, ele ficOU do lado de fora da capela, no adro enfeitado de palmas de ariri. Por ali tinha acabado de passar o Senhor Bispo, cheio de corpo e queimado de sol, seguido de perto por um padre mulato, quase negro, a quem a Sinhá Dona dava o braço. Mas o Sarará, que dera com o companheiro defronte da porta, meio encabulado nas calças de algodão e na camisa de baeta encarnada, travou-lhe do braço, animando-o: - Vamo entrar, Damião. Daqui de fora tu não vê nada. Já os outros escravos tinham tomado o espaço que cercava a fileira de bancos, todos de pé. Nos dois bancos da frente, o Dr. Lustosa, de sobrecasaca abotoada, chapéu no peito, a bengala entre os joelhos, ao lado da mulher, da mãe e da cunhada, e em companhia dos parentes mais destacados, só olhava para o altar, de cabeça tesa, o bigode frisado, o cabelo repartido ao meio. A Sinhá Dona, toda de preto, o vestido de merinó lustroso a cair sobre as botinas de pelica, abanava-se com um leque de madrepérola e dividia com a sogra, muito bem posta no traje espartilhado, o vento que conseguia provocar na atmosfera abafada. Adiante, de seios altos, o cabelo penteado para cima, a Sinhá Miloca parecia espichada, toda dura, recendendo a naftalina. Nos outros bancos, os demais parentes e convidados, e um banco vazio fechando a fileira. A princípio o olor das velas encheu a capela. Mas, à medida que o ar se concentrava, com a multidão de escravos a se comprimir 61 ali dentro, o cheiro forte dos negros se adensou por toda a nave, e eis que se ouviu o tatalar dos leques, tentando atenuá-lo. Na véspera, ao subir com a sua primeira carga de água, Damião deu com o Sipaúba à sua espera, junto do tanque, segurando pela rédea um jumento novo, com as cangalhas no lugar da sela. - Foi Sinhá Velha que mandou te entregar - disse o outro, depois de uma risada. - Agora tu não pode te queixar. Nessa manhã, nas primeiras subidas, não tinha sido fácil trazer o jerico até o alto da rampa: tanto escoiceara, fustigado pela ponta de cipó com que Damião o obrigava a caminhar, que as latas chegaram ao tanque reduzidas a menos da metade. Puxado pela rédea, não saía do lugar. Afinal, tantas vezes desceu e subiu, castigado pelo cipó, que terminou por ajustar-se ao aclive, sem empacar nem insistir nos coices. Já a tarde havia começado, ensolarada e abafadiça, quando se ouviu, longe, o primeiro foguete anunciando a passagem do Bispo com a sua comitiva. Seguiu-se o corre-corre na casa-grande, os pretos acudiram para uma última vassourada entre a porteira e o alpendre. Daí a pouco outro foguete, mais próximo. E como Damião vinha descendo a ladeira, de volta à lagoa, sentiu que a rédea lhe escapava da mão, ao mesmo tempo que o jumento dava dois pulos assustados, atirando-se por uma picada lateral, com o reunir das latas vazias nos galhos e ramos que ia encontrando. Só muito distante dali Damião conseguiu alcançá-lo. E ao vir de volta, com as latas cheias, redobrou de cuidado, segurando bem a rédea, porque os foguetes se iam tornando mais freqüentes, e o jerico, de orelhas fitas, parecia disposto a aproveitar a primeira distração propícia para tornar a escapar-lhe. Dois dias antes, Dom Manuel mandara dizer ao Dr. Lustosa que cumpriria a promessa de descansar na Bela Vista. E desde então recomeçaraa azáfama que os dias de chuva tinham sensivelmente reduzido. Sem que se interrompesse de todo o trabalho no engenho, com o lento ranger dos carros de bois atulhados de cana para as moendas, chiavam nos tachos de cobre os doces requintados, cujas receitas de família só a Sinhá Velha conhecia - enquanto se matavam os leitões, os perus e as galinhas, que ficariam de vinha-d'alhos para os dias de festa, prontos para o forno. A confirmação da chegada do Bispo foi levada às fazendas vizinhas, e logo outros parentes e convidados desceram junto ao alpendre, trazidos pelos cavalos de sela. De longe via-se a poeira vermelha da estrada, levantando-se com o trote ou o galope das montarias. Em breve só restavam vazios dois quartos da ala direita da casa-grande, adiante do quarto de Nhá-Biló, e que se destinavam ao Senhor Bispo e ao padre que o acompanhava, na hipótese de Sua Reverendíssima preferir ficar do lado do poente, ao abrigo do primeiro sol matinal. Embora já se trabalhasse dobrado, assistindo aos hóspedes que enchiam a casa- grande, muita coisa especial tinha sido reservada para 62 os dias da permanência de Dom Manuel na fazenda. As roupas novas dos escravos, por exemplo, só nesses dias podiam ser usadas, e só também na presença do prelado a capela seria aberta. Agora, na varanda imensa, onde se destacavam os dois aparadores de jacarandá e o relógio de pé, a mesa do jantar emendava com a do almoço, entrando pela noite o tinido dos talheres na porcelana dos pratos. com seu molho de chaves na cintura, Sinhá Velha não tinha sossego, e era ela que, a bem dizer, dirigia tudo e tudo providenciava. De noite, ainda fazia sala para os hóspedes. O espocar dos foguetes, repetindo-se a uma distância cada vez mais próxima, concentrou a casa-grande no alpendre, e só Nhá-Biló se quedou no seu quarto, a espionar pela fresta das rótulas. Damião tinha acabado de despejar as latas de água no tanque, quando o Dr. Lustosa, alertado pela nuvem de pó que se levantava na estrada, desceu à porteira da fazenda para receber o Bispo. Pensou em correr à senzala, para vestir também as calças de algodão e a camisa de baeta, como os outros escravos, mas temeu atrasar-se e perder a cena da chegada de Dom Manuel, que deveria ser imponente. Ao encontro do Bispo tinham partido o Chico Laurentino e mais um sobrinho do Dr. Lustosa, o Major Siqueira, representando a família. Cosendo-se ao oitão da casa-grande, por trás dos ramos fartos de um limoeiro, Damião ficou a olhar de longe, sem se lembrar mais do jerico, que se pusera a escarvar o chão com as patas dianteiras, mordendo nervosamente a rédea, perto da borda do tanque. Como viria o Senhor Bispo? Num andor, como Dom Bento das Chagas? O que ele viu primeiro, logo depois da curva da estrada, foram dois vultos, cada qual no seu cavalo, à frente da nuvem de pó. E ainda procurava fixar-se neles, para ver se lhes distinguia o semblante, quando outros dois vultos irromperam à altura do bambual, ainda envoltos na poeira vermelha. Pelo chapéu de um deles, reconheceu o Chico Laurentino; o outro devia ser o major. Uma égua escura, que vinha logo atrás e lhe pareceu ser a Boneca, trazia nas cangalhas dois baús de couro, e era puxada por uma corda, que o Chico Laurentino segurava. Empurrado pela curiosidade, Damião veio mais à frente, a olhar a estrada pelos vãos do limoeiro. Era só aquilo? E o andor do Bispo? Então o Bispo e o padre vinham montados como qualquer pessoa? E por que não tinham vindo de batina? Nesse momento, o jerico conseguiu afrouxar a rédea, assim que estrondou a fuzilaria dos foguetes na porteira da fazenda, e desembestou no rumo da estrada, logo perseguido pelo Damião. E como daqui de cima outros foguetes assobiaram, ganhando altura, para explodir por cima das árvores, o jumento desorientou-se, mais assustado ainda, e entrou pela rampa de pedra, sempre aos pinotes, já agora enxotado pelos negros que formavam ala para a passagem do prelado: - Vai-te embora, bicho! 63 O jumento saltou para um lado, depois para o outro, como se fosse retroceder; mas seguiu em frente, ameaçando passar pelo arco florido por onde entraria Dom Manuel. E foi aí que, de dorso nu, as calças molhadas, Damião conseguiu segurar-lhe a rédea, ao mesmo tempo que, do outro lado da porteira, o Dr. Lustosa ia ao encontro do Senhor Bispo, que já se firmava no estribo para descer do cavalo. - Vai-te vestir direito, Damião - gritou o Sipaúba, ao vê-lo sair da rampa levando o jerico. Mas Damião, com o espanto nos olhos, não apressou muito o passo, parando mais adiante e voltando-se para trás, intrigado com o mulato corpulento, quase negro, a quem o Dr. Lustosa apertava a mão. - É o padre que vem com o Bispo - concluiu. E gente de cor podia ser padre? Podia: ali estava a prova. O mulato seria mesmo o padre? Ou seria o Bispo? - O Bispo só pode ser o senhor mais baixo que está agora com o Doutôr - reconheceu. E outra vez por trás do limoeiro, sempre segurando a rédea do jumento, esperou que o Dr. Lustosa subisse devagar a rampa acompanhando o Bispo, seguido logo depois pelo major e pelo padre - enquanto o Chico Laurentino contornava a casa-grande, puxando a égua escura que trazia os dois baús de couro. Desapontado, Damião levou o jumento para a cocheira, sem pressa de chegar à senzala. E ele que fizera outra idéia do Senhor Bispo! Um homem como os outros, e de calças compridas, com um chapéu de feltro na cabeça - era o que tinha visto. Chegou mesmo a rir da comitiva do prelado, reduzida ao mulatão robusto, de muitos dentes, e que ria com facilidade, exibindo a dentadura. - Tu tá te rindo sozinho, Damião? E como ele não respondesse, a Miduca insistiu: - Fala cuns pobre. A mode que tu não gostou de mim. Óia pra eu, Damião. Oiar não tira pedaço. Ele a olhou de relance, enquanto tirava a rédea do jumento, já na cocheira. A saia estampada, que lhe descia até os pés, fazia-a mais velha. Trazia uma flor nos cabelos. Por baixo da blusa branca, que caía por cima da saia, os seios soltos balançavam. E de olhos baixos, como envergonhada do pedido, ela baixou a voz: - Eu quero que tu me faça um fio, Damião. O primeiro não pegou. Quando tu me chamar, eu vou. - Deixa de ser assanhada, Miduca. Eu não quero saber de filho. Filho pra quê? Pra ficar debaixo do chicote? Como tu? Como eu? Vai, vai embora - ralhou ele, de rosto fechado. E ela, magoada, olhando-o de lado: - Eu vou, eu vou. Não percisa me bater. Não era a primeira vez que ela volvia a aparecer-lhe de surpresa, ali perto da senzala. De outra feita, correra-a dos arredores da lagoa, 64 à primeira claridade do dia. Cair noutra, depois do susto que tinham levado, com o Doutôr passando perto? Não, não era maluco. Ela passara a esperá-lo de noite, quando ele terminava o seu dia, faminto, de corpo moído, só pensando em comer e se deitar. Tornara a aborrecer-se, repelindo-a. E ela, exaltando-se: - Tá bem, tá bem. Fica sabendo que home é que não farta. E mio que tu, Damião. Mio que tu. - Se é melhor do que eu, por que é que tu me procuras? - reagiu ele, melindrado. - Também não sei. Mas tem. Fica sabendo que tem. Agora, lá ia ela, na roupa nova cheirando a alfazema, a caminho da casa-grande, pisando o chão com raiva. Ele próprio, ao certo, não sabia bem por que a repelia. Ali na senzala, não havia outra crioula mais jeitosa, mais bem-feita de corpo. Fazia uma semana que se tinha deitado com a Gertrudes, no chão por trás da capela; noutra noite, dormira com a Teresona, que todo mundo gabava como mulher, no jeito e gosto com que dava prazer aos seus machos. Uma e outra, juntas, não valiam a Miduca. E ele a mandava embora. Por quê? Talvez por ser ela que se oferecia. Ao entrar na capela, levado pelo Sarará, Damião deu com a Miduca, a um canto, de véu na cabeça, apertada contra o Bené Serafim, que lhe roçava o seio esquerdo com a ponta do cotovelo manhoso. Ela, assim que o viu, virou-lhe o rosto, com ar agressivo - mas Damião se esgueirou para o fundo da nave, afastando-se do Sarará. Aliainda havia um pouco de espaço, e ele pôde acomodar-se a gosto. Como era alto, via perfeitamente o altar, por cima das cabeças à sua frente. A figura meã do Bispo, de frente para o altar, nada tinha do tipo vulgar e empoeirado que ele vira na véspera. A capa solene, que lhe descia até os pés, fazia-o mais alto, sobre o fundo de ouro do altar iluminado. Sua voz cheia, recitando o latim da missa, ajustava-se ao mistério do rito, como que acompanhada pelo movimento das mãos, tão brancas que pareciam transparentes. Depois de uma vista de relance, que abrangeu toda a capela, Damião se fixou de novo no altar. Tudo, ali, lhe parecia imponente: a talha doirada, o reflexo das velas, os enormes castiçais de prata, a imagem da santa no seu nicho azul-celeste, o grande cálice de ouro, o sacrário com a cortininha de veludo, o Evangelho de letras iluminadas junto às três sacras reluzentes. Até o padre mulato, que julgara abrutalhado para seu ofício, condizia agora com a cerimônia, na elegância com que sacudia o turíbulo, repetindo os duetos de incenso, após ter dobrado o joelho defronte da Virgem do Rosário. Era ele também que tangia uma sineta, obrigando o Dr. Lustosa a levantar e a ajoelhar, prontamente seguido pela mãe, a mulher, a cunhada e os demais parentes e convidados. Só os negros permaneciam de pé, à revelia das ordens da sineta, no estreito espaço que lhes era destinado. 65 Quando Dom Manuel começou a sua predica, voltado agora para os fiéis, Damião veio um pouco mais à frente, redobrando de atenção. Como trazia na lembrança a imagem tosca da capelinha do quilombo, com o Quincas Nicolau paramentado com um trapo roxo que lhe descia dos ombros nus, o Bispo lhe dava agora a impressão de um ser sobrenatural, sobre o fundo de ouro da talha do altar. Ouvia-lhe as palavras, qual se estas saíssem dos lábios de um santo. A despeito do ar abafado, que fazia muita gente abanar-se com a mão, ele se mantinha atento à predica, de cenho contraído, sem tirar a vista do pregador. E assim permaneceu até o momento em que o Bispo traçou no ar uma cruz e novamente se voltou para o altar, retomando a celebração da missa. Acercando-se um pouco da porta, para atenuar o calor que começava a sentir, Damião viu aproximarem-se as negras que traziam os filhos para serem batizados. À direita do- altar, já estavam as escravas que iriam casar, todas de branco, com uma flor no cabelo, umas a se esconderem por trás das outras. E foi ao olhá-las que Damião descobriu, no meio da nave, também à sua direita, a mãe e a irmã. A irmã saíra mais à mãe que ao pai, cheia de corpo, seios rijos empurrando a blusa, o rosto redondo, os olhos grandes e vivos. - Não sei como foi que ela não quis casar agora - refletiu Damião, olhando-a de perfil, e lembrando-se de seu namoro com o Floriano, que lhe parecia adiantado. A mãe, de ar cansado, apoiava as mãos nos ombros da filha, e movia o busto para um lado e para o outro, sempre que mudava o apoio do corpo, ora no pé direito, ora no pé esquerdo, ambos inchados. Devia sentir-se exausta, assim de pé. E embora sobrasse ao fim da nave um banco vazio, nenhum negro pensaria em sentar-se ali. Sobretudo ela, com seu semblante acossado, sempre com receio de apanhar. E de repente numa reação impulsiva de seu brio, Damião voltou a fixar o pensamento na miséria de sua condição. Por que era escravo? E por que também eram escravos os negros que enchiam a capela? Agora, ali estava o Bispo, como emissário de Deus. Deus estaria de acordo com aquela distinção? Uns livres, outros escravos? Uns sentados, outros de pé? No entanto, ali na fazenda, os brancos constituíam a minoria privilegiada, que oprimia a multidão de negros, sem lhes dar direito a nada, nem mesmo ao banco vazio da capela. E os negros eram a maioria e a força, o vigor e o trabalho. Não seria o caso de perguntar ao Bispo o que fazia Deus que não tirava os pretos do cativeiro? Ou o Deus era dos brancos e não dos negros? Em verdade, desde que o Bispo ali chegara, tudo havia mudado. Já fazia dois dias que o sino da fazenda não chamava os negros para o trabalho. Os carros de bois, que iam aos canaviais ao clarear do dia, e que de lá voltavam rangendo pela estrada, jaziam com os varais por terra, adiante do curral, enquanto os bois pastavam no capinzal extenso. Certo, o trabalho na casa-grande não tinha descanso, com as 66 mesas que se sucediam, a arrumação dos quartos, o forno aceso antes de raiar a manhã; mas trabalhava-se com alegria, e todo mundo se mostrava contente diante do Senhor Bispo. As chibatas, as palmatórias, o tronco, as gargalheiras, o libambo, as máscaras de flandres, tudo tinha sido escondido, para evitar que sobre esses instrumentos de castigo resvalasse o olhar de Sua Reverendíssima. Na véspera, pelo fim da tarde, o Chico Laurentino tinha vindo à senzala dizer aos negros, da parte do Doutôr, que, à noite, se quisessem, podiam dançar no terreiro. E até tarde, sob a claridade do luar, no terreiro bem varrido, os pés descalços marcaram o compasso das danças, ao som frenético dos tambores africanos. Os hóspedes da casa-grande vieram ver os negros dançando, e até o Doutôr, em companhia do Senhor Bispo e do padre mulato, ali aparecera, com uma fisionomia bondosa. Na volta, um toque ríspido do sino, que o próprio Doutôr bateu, fez calar os tambores e sustar as danças, e outra vez o silêncio da noite caiu gravemente sobre a fazenda. Quando o Bispo fosse embora, as chibatas, as palmatórias e o tronco voltariam aos seus lugares, e bem visíveis, para que os negros se atemorizassem só em olhá-los. Novamente o trabalho no campo, de manhã à noite, e que só se atenuava quando estrondavam as grandes chuvas. O Doutôr, de cara fechada, na sua cadeira de balanço do alpendre. As moendas triturando as canas, com a garapa a escorrer cá embaixo. O cheiro do melaço nos grandes tachos de cobre. O calor do forno na casa da farinha. A Sinhá Velha tilintando pelos corredores a sua cambada de chaves. O estalo da taça no couro dos escravos. E ele a subir e a descer a rampa, entre o tanque e a lagoa, com a sua carga de água. Na certa, o Chico Laurentino, de ordem do Doutôr, lhe tomaria o jumento, e ele teria de suportar no ombro o peso das latas de água. E até quando duraria o seu tormento? Cinco anos? Dez? Vinte? A vida toda? Seria possível agüentar o mesmo suplício, até ficar de cabeça branca, como o Tolentino e o Barnabé? Ou cederia ao impulso do desespero, como o irmão do Sarará? Nesse momento o olhar de Damião voltou a fitar a mãe, que também olhava para o filho com uma expressão alvissareira. com um gesto, ela lhe disse que, depois da missa, queria falar-lhe. Ele moveu a cabeça, para responder que a tinha entendido, e apontou para o adro, indicando o lugar onde deveriam encontrar-se. Viu-a baixar a cabeça, logo depois, no momento da elevação, ainda apoiando-se nos ombros da filha. Assim contrita, tornava-se mais velha, mais acabada- No entanto, quando estava com ele, jamais lhe transmitia o seu desânimo. Pelo contrário: animava-o sempre, na sua doce voz cochichada. Agora, que lhe quereria dizer? Ao fim da missa, Damião não esperou pelos casamentos e batizados. Veio para fora, e ali aguardou a mãe. Por seu gosto, tiraria a camisa de baeta encarnada e volveria às suas velhas calças de todos os dias, sabendo bem que era falsa, no seu corpo, aquela roupa nova. 67 O Sipaúba veio fazer-lhe companhia: - Tu gostou da missa? Damião confirmou com a cabeça, sem olhar o companheiro. - Eu também gostei. Amanhã de manhã, o Bispo vai embora. Adeus boa vida. Tudo isto vai acabar, e nós vorta outra vez pra enxada e pró chicote. Até morrer. Damião levantou o olhar para o outro, querendo dar-lhe uma palavra de conforto; mas sentiu em tempo que não saberia mentir-lhe. Bateu-lhe de leve no ombro, sem nada dizer. E o Sipaúba, logo depois: - Nem drumindo a gente é livre. Ontem de noite, sonhei que tava no tronco, apanhando. Acordei gemendo, molhado de suo. - Também já tive um sonhoassim - confessou Damião, de vista baixa, após um silêncio. Sempre de cabeça baixa, pôs-se a riscar o chão com o dedo grande do pé direito, e ele próprio se espantou com a palavra que dali saiu: MIDUCA. Embora o outro não soubesse ler, apagou-a depressa, correndo a planta do pé sobre a terra, e viu que a Miduca ia descendo a rampa, na direção da lagoa, ao lado do Caetano. Ela passara por ali de propósito, para ser vista por ele. E lá adiante, antes de desaparecer na volta do caminho, voltou-se para olhá-lo, como a dizer-lhe que ia entregar- se. Damião tornou a riscar o chão com raiva, calcando bem a terra: VAI, conseguiu escrever, decidido a bani-la de seu pensamento. No entanto, à medida que ela se distanciava, ele mentalmente a seguia, até vê-la despida sobre a relva, no mesmo lugar em que se tinham encontrado. Tornou a correr o pé sobre a terra fofa, tentando dominar- se. De repente as suas narinas se dilataram, sua respiração se fez mais curta. Sentia crescer no seu corpo a vontade de saciar a carne exacerbada. E pôs-se a dizer a si mesmo, sem ouvir o que lhe dizia o Sipaúba: - Fiz bem em mandar embora aquela cadela. Se não mandasse, acabava tendo um filho com ela. E isso eu não quero. Filho, não. Não vou aumentar os negros do Dr. Lustosa. Filho meu não há de ser escravo de ninguém. E o Sipaúba, desconfiado: - Tu tá ouvindo o que eu tou dizendo, Damião? - Não, Sipaúba. Tu me desculpa. Eu tava pensando uma coisa, aqui comigo. Me distraí. Mas vou te dizer o que eu tava pensando. Se um dia eu botar um filho no mundo, meu filho não há de ter senhor. O Sipaúba recuou um passo, de olhos crescidos, abrindo a dentadura falhada. E baixando a voz, quase na orelha do Damião: - Antão, meu nego, só há um jeito: cumo a Sinhá Miloca já tá veia e não dá mais cria, faz um fio em Nhá-Biló. Só assim teu fio não nasce escravo. Doutro jeito, cum as negra daqui, o negrinho tá no chichoíe, cumo eu, cumo tu. 68 E recolheu o riso, ao ver que, pela porta da capela, vinha saindo o Dr. Lustosa, em companhia do Bispo. Adiante, a Sinhá Velha, com o padre mulato. Depois a Sinhá Dona e a Sinhá Miloca. Por fim os parentes e convidados - ao mesmo tempo que, pelas portas laterais, ao fundo da nave, saíam os negros, primeiro os noivos, depois as mães com os filhos já batizados, em seguida os outros escravos, e todos rindo, a trocarem pilhérias, numa animação de domingo vadio. A Inácia veio vindo devagar, sempre a amparar-se no braço da filha. Dava alguns passos e parava. O corpo lhe pesava, as pernas tinham inchado ainda mais com a posição forçada na capela. Mas, ao ver o filho, procurou acelerar os pés, com um ar de alegria no rosto cansado. Novamente parou, sem forças, deixando cair o corpo para a borda da calçada. Só aí Damião deu por ela, e correu ao seu encontro. E a velha, depois de beijá-lo, prendendo-lhe as mãos: - Te pega com o Bispo. Vê se ele quê te levar pra ser padre. Já tem padre escuro, quase preto. Cum a cabeça que tu tem, ele é capaz de te querer. Vê se tu fala cum ele. Eu pensei nisso a missa toda. E pedi muito pra Nossa Senhora. Ele olhou a mãe, com emoção. Como resposta, correu de leve a mão sobre seus cabelos grisalhos, ouvindo-a dizer: - Pra Deus nada é impossível, Damião. Ele vê o que tu tem sofrido. Fala, fala cum o Bispo. Uma coisa me diz aqui dentro que ele vai te levar. O MELHOR QUE FAZIA ERA ESPERAR pela noite, quando a casa-grande e a senzala já estivessem quietas, de luzes apagadas, cada hóspede no seu quarto, e os negros na sua rede ou na sua esteira de piaçaba. Pelo fim da tarde, com os primeiros pirilampos sobre as moitas de avencas e samambaias, ele tornara a rodear a casa-grande, de longe, para ver se surpreendia o Bispo a sós, a jeito de lhe falar. Depois da missa, tinha sido o almoço na varanda, com muita gente em redor do prelado, sobretudo o Doutôr, que dele não se afastara um só momento. Viera depois a sesta, com a modorra da tarde. Nessa hora, como entrar na casa-grande, se as mucamas continuavam a transitar pelos corredores? Por outro lado, 'não iria acordar o Bispo, para lhe 69 falar de seu caso. Tinha de ter paciência: de um momento para outro, surgiria a oportunidade propícia. Quem sabe se Dom Manuel, depois da sesta, não daria uma volta pelo quintal, antes que o Doutôr acordasse? - O que tem de ser traz força - argumentara, procurando acalmar-se, sentado numa raiz de ingazeira, num ponto que lhe permitia abranger a casa-grande. Por volta das três horas, ainda com o sol alto, chegou a levantar-se, alvoroçado, vendo o Bispo aparecer no alpendre. Mas, logo depois, surgiu também o Doutôr, e os dois ficaram de conversa, cada qual na sua cadeira de balanço. Chegou depois o padre. Em seguida, outros hóspedes se aproximaram. Daí a pouco apareceu a mucama com a bandeja do café. E nisto ele deu com a Miduca à sua frente: - Quê que tu tá ispiando aí, faz mais de hora, Damião? Tou te vendo, não é de hoje. O susto que ela lhe dera aumentou nele a ira de sua presença. Num impulso, levantou-se e correu para ela, segurando-lhe o braço, já de mão erguida para bater-lhe. - Bate, que tu vai ver - desafiou a Miduca, de cabeça inclinada, a fitar-lhe o rosto pelo canto dos olhos. Ele susteve o gesto, limitando-se a empurrá-la: - Vai-te embora, diaba. Eu não quero perder a cabeça contigo. - Tu tá cum arguma coisa no pensamento, Damião. Se tu me bate, tu ia ver o que era bom. Tu quis judiar comigo, agora chegou a minha vez. Caetano é mio que tu. Mais home. Não adiante me oiár cum essa cara feia. Não me mete medo. E ela própria, depois de olhá-lo de frente, ainda de rosto inclinado, seguiu devagar o seu caminho, descendo na direção da senzala, enquanto ele volvia à raiz da ingazeira, de lábios apertados, as mãos frias, tentando reprimir a cólera que o atordoava. Não se deixou ficar ali por muito tempo, certo de que a Miduca continuaria a espioná-lo: orientou-se para a lagoa, ruminando o seu ódio. Ah, puta! Ah, vagabunda! Caminhou tanto, seguindo o contorno das águas, que as pernas lhe doeram. Sentou numa pedra lisa, com a camisa de baeta sobre os joelhos, os olhos alongados para a lagoa, arrepiada agora pela viração da tarde. Dali via o pasto, com os bois soltos na relva, e também a casa-grande, longe, no seu cômoro sobranceiro. Do outro lado, um bando de garças, à luz da tarde alta e que já queria esmorecer. Mais longe ainda, as filas cerradas dos algodoeiros. Do outro lado, avançando mata adentro, com as suas lâminas em riste, o canavial denso, muito verde, protegido pela cerca de arame farpado. Aos poucos, derramando a vista pelo cenário que o cercava e ouvindo cantarem as siricoras nos aguaçais, sentiu atenuar-se a sua ira. Que lhe custava ter um pouco mais de paciência? A Miduca, no seu íntimo, sentia-se machucada pela maneira por que ele a tratara. Se 70 ele lhe confiasse as suas razões, ela não as compreenderia. O melhor que fazia era dar tempo ao tempo, mantendo-a a distância, sem cair na fraqueza de se deitar com ela. De coração apertado, lembrou-se de Nhá-Biló. Numa de suas voltas em torno da casa-grande, tinha-a visto de relance, pela fresta da janela de seu quarto, a olhar para fora, no vestido roxo que mandara fazer para receber o Senhor Bispo. Desde a chegada dos primeiros hóspedes, mantinha-se fechada, não querendo que ninguém a visse. Como os primos da Serra Negra insistissem em querer vê-la, batendo-lhe na porta cerrada, pusera-se a gritar que não queria ver ninguém. Nem mesmo a mucama entrava agora no aposento para a limpeza diária. Deixavam-lhe a comida à porta, o urinol lavado, e também a água morna para seu banho. Todas as noites, antes de recolher-se, Sinhá Velha lhe dava sempre uma palavra, através da porta fechada, para saber como estava ou se precisava de alguma coisa. Ela respondia por monossílabos, ou então cantarolava baixinho, embalando-se na rede. O próprio Bispo, ao saber de sua reclusão doentia, tentara convencê-la a abrir-lhe a porta. O Doutôr, que o acompanhava, chegaraa exaltar-se, ameaçando pôr a porta abaixo. O mesmo silêncio. Depois o vaivém da rede. E por fim um grito: - Eu vou para o Inferno! Eu vou para o Inferno! O mais acertado era deixá-la no seu canto, quieta, recortando figuras de velhas revistas, cuidando das antigas bonecas, ou tocando a sua guitarra. A rigor, não dava trabalho. Só queria que a deixassem em paz. Mesmo assim, o Bispo, assistido pelo padre, andara a sacudir água benta pelos cantos da casa, sobretudo na porta e nas janelas do quarto de Nhá-Biló. E a verdade é que, na madrugada desse dia, só a ouviram cantar baixinho, embalando-se na rede. Quando a tarde entrava a esmorecer, com as nuvens de andorinhas retornando aos seus abrigos e os sabiás cantando no ramo mais alto das pitombeiras, Damião subiu a rampa, para rodear de novo a casa-grande. O alpendre estava deserto, já com o lampião aceso no seu gancho de parede, à espera da noite que ia cair. Uns restos de luz escarlate para os lados do poente. O recorte da mata, projetado contra o fundo claro do horizonte, ia-se enegrecendo gradativamente, até converter-se numa silhueta quase negra, de tons arroxeados. Da varanda vinha o tinido dos talheres, já com o jantar chegando ao fim. E Damião viu quando o Bispo e o Doutôr passaram para a sala de visitas, iluminada pelos candeeiros de opalina. Como a noite estava abafada, tinha sido aberta aquela parte da casa, que Damião admirava pela primeira vez, embora de longe. Chegou-se mais para perto, o máximo que lhe era possível sem que da sala pudessem vê-lo, e observou os grandes retratos nas paredes, o imenso espelho de moldura doirada, os dois grupos de cadeiras, os consolos com tampos de mármore, as cortinas que guarneciam as janelas, e tudo lhe pareceu de uma riqueza tão grande, que outra igual não poderia existir. 71 Sentado numa das pontas da marquesa de palhinha, o Bispo ria alto, equilibrando nas mãos a sua xícara de café, enquanto o Dr. Lustosa, também rindo, segurava o cachimbo que acabara de acender. Nas duas cadeiras de braços, a Sinhá Velha e a Sinhá Dona. Os primos da Serra Negra, a um canto, ouvindo o padre. E Sinhá Miloca, de pé, o olhar para o retrato de um menino, que se destacava na parede ao fundo. Logo o Bispo recolheu o riso, o Dr. Lustosa contraiu a testa, e houve um silêncio demorado, e tão profundo, que deu para que Damião ouvisse, cá fora, a tosse seca de Sinhá Velha. - Hoje, já Seu Dê estaria tomando conta da fazenda, no meu lugar - adiantou o Dr. Lustosa, dirigindo-se ao Bispo. E Dom Manuel, entrelaçando as mãos por cima do joelho cruzado, no tom grave e lento com que proferira a sua predica na capela: - Se Deus o chamou, ainda menino, é porque considerou que ele estava amadurecido para a sua santa glória. O Senhor sabe o que faz. Nada se passa neste mundo que não seja uma emanação da vontade divina. E só nos compete curvar a cabeça ante as decisões do Criador - concluiu, inclinando-se um pouco para a frente, depois de endireitar o joelho. A noite já havia fechado. E como a lua só ia aparecer por volta das oito horas, a escuridão se adensara em toda a volta da casa-grande, destacando o retângulo das janelas nos aposentos iluminados. No terreiro, uma fogueira começava a arder, crepitando as primeiras faíscas, e breve se ouviu a batida tímida de um tambor. Em seguida, quando o fogo estralejou, com as labaredas dançando sobre os toros de madeira, outros tambores retumbaram, no compasso ligeiro de ferraduras nas cavalhadas. Damião ficou um momento absorto. Dir-se-ia que aquele batecum nervoso, que só os negros sabem tocar, restituía-o a si mesmo, numa noite africana. Ficou assim uns momentos, como suspenso no ar, vendo o fogaréu, a mata, os vultos que imitavam as labaredas, por entre o tantantã dos tambores. Depois, caiu em si. Porque logo lhe veio, com a rapidez de uma punhalada, a consciência de sua condição. Àquela hora, com certeza, a mãe andaria à sua procura, para lhe dar o jantar. E só então ele se lembrou de que, após o almoço na senzala, nada mais havia comido. Olhou para o lado da lagoa. Uma linha de luz pálida estendia-se por cima do negror da mata, com a lua querendo aparecer. Antes que a lua apontasse, ele se decidiu: - Não adianta nada eu ficar aqui esperando vez para falar ao Bispo. Besteira minha. Sozinho, não deixam ele ficar. Para falar mesmo só com ele, tenho de deixar todo o mundo se deitar: aí entro na casa-grande, pelo corredor dos fundos, e bato na porta do quarto dele. Não há outro jeito. 72 E com a consciência do risco que ia correr, apalpou a cintura, por cima da camisa, para sentir o cabo da faca. Depois, esgueirando-se na sombra, subiu a calçada que acompanhava o oitão da casa-grande. Já as mucamas tinham cerrado as janelas dos quartos dos hóspedes, para evitar que ali entrassem os besouros, os maruins e as muriçocas; mas a claridade resvalava para fora pelas frestas das rótulas. Lá adiante, defronte do cajueiro frondoso, era o quarto de Nhá-Biló. No mesmo correr, o quarto do Bispo, de esquina, o mais amplo da casa. Dentro, sentiu passos. com certeza, a Brígida andaria a preparar o aposento, com a moringa de água, o lençol dobrado sobre a cama, o óleo no candeeiro, a vela no castiçal, a toalha de rosto, o sabonete novo. Quando ele chegou à senzala, a Inácia parecia aflita: - Adonde tu te escondeu, Damião? Tou cansada de andar atrás de ti. Tua comida te esperou tanto que tá fria. Eu vou esquentar. A Inácia tinha o seu quarto, juntamente com a filha, ao fundo da senzala. Era uma peça estreita, apenas com o espaço para as duas redes, a tábua de engomar junto à única janela, o cesto de roupas para passar, dois baús pintados e um mocho de pau. Na parede, o espelhinho da Leocádia. Sentado no mocho, Damião ficou esperando que a mãe voltasse da cozinha da senzala. Quase todos os negros tinham ido para o terreiro. Os tambores agora batiam forte, acompanhados pelos chocalhos e os agogôs. A despeito de ser domingo, a Inácia adiantava o seu trabalho, passando roupa. Sobre a tábua de passar, o ferro quente ocupava o seu descanso de metal, ao lado da pilha de roupas já prontas. Adiante,' o abano. Ela não tardou a voltar, com o prato quente protegido por uma toalha de felpo. - Come direito - recomendou ao filho. Logo se pôs a abanar o ferro, avivando-lhe as brasas. E deslizando-o sobre a saia borrifada de água, que espichara ao comprido da tábua, perguntou a Damião: - Tu já falou com o Bispo? Fala. Não deixa de falar. Meu coração tá dizendo que tu vai ser feliz. Ele vai embora amanhã cedinho. Antes do dia amanhecer. Já o sinhô mandou dizer que cum pouca baíe o sino pra parar os tambô mode o Siô Bispo drumir. Tu tem de falar é hoje. Ou antão amanhã, antes dele levantar. Tem de ser no quarto dele. Sem ninguém ver. Tu tem boa cabeça, é que nem teu pai. Tu dá jeito pra tudo. Ele se limitou a ouvir, de cabeça baixa para o prato. Depois, mastigando devagar, voltou a olhar a mãe, vergada sobre a tábua, os enormes pés descalços plantados no chão de terra. - Tu vai ter de ir embora; mas é mio tu longe, livre da peia, do que perto de tua mãe, apanhando do sinhô. Parece mentira: Damião 73 padre. Só queria te ver de batina, e morrer. Era uma caridade que Deus me fazia. Ele mesmo lavou o prato, na gamela de água do lado de fora da senzala. E foi tomar a bênção à mãe, para despedir-se. - Vai com Deus. A lua tinha subido, estava agora por cima da mata, clareando tudo à sua volta - a casa-grande, a senzala, o terreiro, o engenho, a casa de farinha, a cocheira, a rampa da lagoa. Até a porteira da fazenda, longe, se podia divisar. Para que não o vissem, Damião passou ao largo do terreiro, por trás das toiceiras de um bananal, com a intenção de esconder-se num velho abrigo coberto de palha, à direita da casa-grande. Antes de lá chegar, parou a meio caminho, ao ver correrem em sua direção os dois cães rajados que o Dr. Lustosa tinha habitualmente ao pé de si quando estava no alpendre. Esperou por files castanholando os dedos, como receio de que não o reconhecessem; mas os cães sustaram a carreira, ainda a boa distância, e terminaram por sacudir a cauda, enquanto Damião lhes afagava a cabeça. Novamente correndo, os dois retrocederam ao alpendre, e Damião, agachando-se, avançou para o abrigo. Ali ouviu quando os tambores calaram, após a badalada ríspida do sino. Redobrou de atenção olhando a casa-grande, quando o candeeiro do alpendre foi retirado. Aos poucos as outras luzes se apagaram. Só ficou a claridade desmaiada que, esgueirando-se das rótulas cerradas, misturava-se aqui fora à luz do luar. Ele sabia que deveria bater de leve na porta do quarto antes que o Bispo estivesse deitado. Depois já seria tarde. Por isso veio-se aproximando devagar, sempre evitando que o luar lhe batesse em cheio. Contornando o alpendre, subiu à calçada, rente à parede, e foi acompanhando a orla de quartos, sempre à escuta, a mão pronta para agarrar o cabo da faca. Na senzala também as luzes tinham sido apagadas. Só restava o velho candeeiro da entrada, e de chama tão tênue, que se diluía na mansidão do luar. No silêncio, piava de vez em quando uma coruja. E como a viração era constante, sem pancadas bruscas de ventania, o sussurro das árvores lembrava o rolar dos rios largos que descem para o mar. Junto à janela do quarto do Bispo, Damião parou, de respiração suspensa. Ouvia- lhe os passos nas lajes do chão, a arrastar os chinelos. Depois o ruído da água despejada na bacia do lavatório. Chegou a escutar a zoada das mãos que molhavam o rosto repetidas vezes, por entre o sibilar das narinas repelindo a água. Esperou ainda uns minutos. Depois de um sopro forte, sentiu a vela apagar. - Tem de ser agora - decidiu-se. Cautelosamente, pisando de leve, atravessou o passadiço entre a casa-grande e o telheiro do tanque, para entrar pela cozinha. com a 74 ponta da faca, sempre redobrando de cuidados, conseguiu levantar a taramela que fechava a porta pelo lado de dentro, ao fundo da cozinha, e outra vez a cerrou, quase sem ruído. Daí seguiu por um pequeno corredor até à varanda. Embora só houvesse entrado ali duas vezes, tinha a lembrança nítida do lugar em que se achava cada móvel. Ajudado pela claridade do luar, que descia dos vidros das janelas, distinguiu nitidamente o relógio de pé, o guarda-louças, os dois aparadores de jacarandá, a grande mesa de almoço com seus pesados cadeirões de couro. Pé ante pé, contendo a respiração, dobrou à esquerda. Lá ao fundo, era o quarto do Bispo. E tanto dali quanto do quarto de Nhá-Biló, que o antecedia, saía um filete de luz, que se alongava para as lajes do chão. Mal deu um passo, ouviu que o chamavam, num sussurro, do lado da varanda: - Damião... De início, no relance assustado do olhar, não viu Nhá-Biló; mas a voz era dela, não tinha dúvida. Encostou-se à parede, lívido, firmando o olhar na direção da varanda. Por instinto, levou o dedo aos lábios, para impor silêncio. E só aí deu com o vulto esguio, parado à entrada do corredor que levava à sala de visitas. - Tu vieste me ver, Damião? Ela estava agora defronte dele, apanhada de perfil pela claridade que atravessava o vidro da janela. Vestida de roxo, parecia mais alta com os cabelos corridos, os pés no chão, muito branca, os olhos dilatados. - O Bispo mandou me chamar - mentiu Damião, num sussurro. - Ninguém deve saber. - Ah! Então vai. Ele ainda está acordado. Depois vem falar comigo. Estou-te esperando no meu quarto. - Sim, sim - concordou ele. - Vá para lá. Eu não demoro. Ela passou à frente, abriu de manso a porta de seu quarto, entrou na ponta dos pés, cerrou de novo a folha. Sem perda de tempo, Damião bateu de leve, com o nós dos dedos, na porta do quarto do Bispo. - Quem é? - perguntou Dom Manuel, aproximando-se. - Um escravo, Senhor Bispo. Preciso lhe falar. - Que é que queres, a esta hora? - volveu Dom Manuel, ainda com a porta cerrada. - Eu já ia me deitar. Podes falar, estou te ouvindo. - É muito importante o que eu vou lhe falar, Senhor Bispo. Não pode ser assim. Abra a porta, deixe eu falar com o senhor. É assunto muito importante - tornou a dizer, em tom mais implorativo. - Pelo bem de Nossa Senhora. Só o senhor pode me ajudar. A chave rodou áspera na fechadura, e Damião viu a figura meã de Dom Manuel, metida no chambre de dormir, com um barrete na cabeça, candeeiro na mão esquerda. De início o Bispo o olhou no rosto, 75 levantando mais a luz, como a sondar-lhe os olhos, e logo ordenou-lhe, retrocedendo um passo: - Entra. Já velho, Damião ainda via nitidamente a cena: o Bispo cerrou a porta, passou- lhe a chave, caminhou até à cômoda, deixou ali o candeeiro; depois, com um gesto, ao mesmo tempo que se aproximava de uma cadeira de balanço, chamou-o para perto de si, certo de que ia ouvi-lo em confissão: - Ajoelha-te aqui. E assim que Damião se ajoelhou: - Sabes o ato de confissão? - perguntou-lhe. - Não, Senhor Bispo. Mas eu não vim me confessar, vim foi-lhe fazer um pedido. Eu quero ser padre. Damião falara depressa, com receio de que o Bispo o mandasse embora antes de ouvi-lo, e logo sorriu, vendo que Dom Manuel lhe sorria, entrando a balançar-se na cadeira: - Nesse caso, senta-te ali. E indicou-lhe a cadeira ao pé da janela. - Mas vem mais para perto de mim. Damião trouxe a cadeira, sempre sem ruído, e sentou-se em frente ao Bispo, que ainda lhe sorria, com a cabeça jogada para trás, buscando o centro das lentes para olhá-lo melhor. - Então queres ser padre - disse Dom Manuel, ainda com uma expressão de riso no rosto lavado, balançando-se na cadeira. Ora muito bem. Queres ser padre. Não é isso? - É como diz, Senhor Bispo. - Pelo que vejo, já és um homem feito. Tens mais de vinte anos. - Dezoito - emendou Damião. - Por acaso sabes ler? E onde aprendeste? Aqui? - Não, no quilombo de meu pai. E aprendi depressa. Tudo quanto me ensinam eu não esqueço. Agora mesmo, se o Senhor Bispo quiser, posso repetir o sermão que o Senhor Bispo pregou hoje de manhã na capela. Dom Manuel parou de balançar-se. E desencostando-se do espaldar, veio para a frente, com uma expressão de espanto: - Tu podes repetir o meu sermão? Do começo ao fim? - Posso, Senhor Bispo. E sem esperar pela ordem de Dom Manuel, Damião entrou a repetir, palavra por palavra, corridamente, a predica de Sua Reverendíssima. As frases se sucediam, como se ele as tivesse diante dos olhos, enquanto o Bispo, já na ponta da cadeira, abria mais os olhos, no auge do assombro. Chegou a segurar o queixo, sem tirar os olhos do negro, e todo ele era pouco para o espanto com que o escutava. De repente, segurou-lhe o braço: 76 - Pára, meu filho. O que disseste me basta. Nunca vi uma coisa igual. Levanta as mãos para o Céu. Tua memória é uma graça de Deus. Tens de tirar proveito dela, em benefício da obra divina. Foi Deus que me trouxe aqui para te ouvir. Tens razão em querer ser padre. É o Espírito Santo que está te inspirando. Levantou-se e pôs-se a andar ao comprido do aposento, a mão esquerda para trás das costas, a direita a mover-se ao compasso da perna, ora olhando para as lajes que ia pisando, ora olhando para Damião, até que voltou a parar diante do preto, com uma expressão resoluta: - Sabes que não vai ser fácil, mas o nosso dever é lutar. Além de negro, és escravo. Amanhã, cedinho, dou uma palavra ao teu senhor. E vamos rezar. A fé abala montanhas. E mandando-o embora: - Agora, vai. Que Deus te acompanhe. Não estás sozinho. A tua causa é também minha. Abriu a porta, deixou-o passar. - Vai com Deus - tornou a dizer. Damião viu a porta fechar-se, ouviu o ruído da chave na fechadura, E ia sair, radiante, esquecido de Nhá-Biló, quando a porta do quarto contíguo se abriu, e ela lhe apareceu, ainda de roxo, com uma flor no cabelo, muito vermelha, trazendo na mão o pedaço de papel com que se tinha pintado. O primeiro impulso de Damião foi tentar esquivar-se dela, fugindo para a varanda o mais rápido possível, para daí alcançar a cozinha e deixar a casa-grande, antes que dessem por ele ali dentro, em companhia deNhá-Biló; mas temeu-lhe a reação desvairada, e deixou-se ficar um momento, para ver se conseguia sair com a sua concordância. - Está tarde - sussurrou-lhe. - É hora de dormir. Vá-se deitar. E ela, com energia, segurando-o pela mão: - Vem comigo. Me conta o que o Bispo te disse. Quero saber tudo. Ele falou de mim? Disse que eu vou para o Inferno? Falava depressa, sem esperar pela resposta, e o ia trazendo consigo, vencendo- lhe a relutância, até que o viu dentro do quarto. com rapidez, cerrou a porta e tirou a chave da fechadura. Segurando a chave, pôs-se a rir, vergada para a frente, com as mãos entre os joelhos, enquanto ele a fitava, atônito, depois de ter-se aproximado da janela sobre o quintal. - Agora eu não deixo tu saíres. Ela parecia resoluta, embora continuasse rindo. Desconfiada de que ele quisesse fugir-lhe, ameaçou-o: - Tu agora não sais daqui. Se quiseres sair, eu grito. E postou-se contra a janela, de cenho contraído, sempre segurando 77 a chave. A luz do candeeiro batia-lhe em cheio na figura magra, destacando a mancha escura que lhe cercava os olhos crescidos. Damião decidiu mudar de tática, sabendo o perigo que o cercava. E como estava ao lado de uma cadeira, sentou-se, cruzando os braços e as pernas, o ouvido atento. Ela voltou a sorrir-lhe, ainda encostada à janela. E na sua voz sussurrada: - Agora, sim. Voltou a colocar-se diante dele, e pôs a mão direita no seu ombro, meio curvada: - Tu sabes que eu vou para o Inferno? vou. Já sei que vou. Não adianta padre, Bispo, Papa, ninguém no mundo, querer evitar que eu vá. Eu vou. Sei que vou. Há muito tempo que eu estou perdida. E um dos culpados és tu, Damião. Sim Senhor: tu. Eu estava dormindo, tu entraste aqui no meu quarto, te deitaste na rede comigo e abusaste de mim. Quando eu acordei, ias saindo do quarto. Só não gritei porque sabia que o meu pai te matava, e eu não queria que tu morresses. Não adianta negares. E batendo com a mão no sexo, de barriga empinada: - Tenho a marca aqui, dentro de mim. Foste tu. Eu vi quando tu ias saindo. Só peço a Deus que eu não esteja prenha. Eu, de barriga. Até que ia ser gozado. Olha Nhá-Biló com um filho no bucho. Agora me conta o que o Bispo te disse. Quero saber "tudo. Ele deve ter dito muita coisa, porque tu ficaste trancado com ele mais de hora. Sim senhor. Mais de hora. Fui olhar no relógio da varanda. Não adianta dizer que não. Ele não te disse que o Diabo já veio aqui? Ele sabe que veio. Tanto sabe que andou sacudindo água benta na porta de meu quarto. Tou doida para ele ir embora. Já vai tarde. Não gosto de Bispo. Tenho horror a padre. E tu? Padre não presta. Nem Bispo. Eu, se visse o Papa, dava-lhe uma cusparada. Assim de perto, parecia ainda mais velha, com os cabelos grisalhos, os vincos fortes que lhe cortavam o rosto: sua vida estava nos olhos rutilantes, cheios de uma luz desvairada. Damião pôde perceber, olhando-a contra a luz, que ela apenas trazia o vestido em cima do corpo. Apesar de magra, tinha os seios volumosos, que lhe enchiam o busto, e esses seios estavam soltos, balançando-se com a gesticulação das mãos transparentes. - Estou com vontade de ir embora daqui, para longe, muito longe. E tu vais comigo, Damião. Agora, não te deixo mais. Ficas aqui escondido, sem ninguém saber. Foi ao fundo do quarto, abriu um armário, de costas para Damião, e trouxe dali um embrulho. - Sabes o que é isto? Uma rede. A tua rede. E ela própria, abrindo o pacote, tirou dali a rede branca, de largas varandas, que armou num dos ângulos do quarto. A luz do candeeiro sobre a cômoda iluminava bem toda a peça, e Damião via o canto com as bonecas de pano, a guitarra pendente de 78 um gancho na parede, a mesa com o prato de comida e a moringa de água. Tudo permanecia ali de acordo com as imagens que tinha na lembrança. E ao mesmo tempo que se inquietava com o passar do tempo, sem saber como sairia dali, sentia crescer no seu espírito uma profunda piedade por Nhá-Biló, ainda bem feita de corpo, a envelhecer naquela obstinada reclusão. - Vem ver se a rede está boa - pediu ela, puxando-o pelo braço. Ele sentou na rede, aprovou-a com um gesto. E ia levantar-se, quando ela o reteve, com a mão sobre seu ombro: - Fica aí mesmo. E novamente curvando-se sobre ele para lhe falar: - Quando derem por tua falta, vão te procurar em todo lugar, menos aqui. Não precisas ter receio. Papai vai ficar furioso. Sabes como foi que ele perdeu o braço esquerdo? Um negro que mordeu ele. Tia Miloca me contou. Os negros são ruins. Mas tu não és. Tu és diferente. Te conheço desde menino. Te lembras quando eu te trouxe aqui no meu quarto? Eu também me lembro. Como se fosse hoje. Estás com calor? Eu tenho um leque. Ou então te embala na rede. Sabes o que eu faço quando estou com calor? Vais achar graça. Tiro a roupa. Fico nua me embalando. Riu baixinho, com a mão diante da boca. E Damião, levantando-se: - Por que não abre a janela? com a janela aberta, não faz calor aqui dentro. Assim como está, fica muito abafado: o vento não corre. Ela lhe sustou o gesto, tirando-lhe a mão do ferrolho: - Não, não abre: eu tenho medo. O Diabo pode entrar. Só se pode abrir uma fresta, bem pequenininha. Senão ele entra. Deixa a janela fechada. Tu tens vergonha de mim? Então tira a roupa. Eu também tiro a minha. Assim não se sente calor. Olha. E segurando a barra do vestido, ergueu-a à altura dos olhos, para tirá-lo por cima da cabeça, ao mesmo tempo que toda a sua nudez se descobriu, muito branca, apenas resguardada pela seda da calça. Nesse momento, Damião torceu rápido o ferrolho, escancarando a rótula, e deu um salto para fora, enquanto Nhá-Biló, ainda a debater-se com o vestido, que se embaraçara nos seus cabelos, pôs-se a chamar por ele, bem alto, debruçando-se sobre o poial da janela: - Damião! Damião! Outras luzes se acenderam na casa-grande. Os cães, assustados, puseram-se a latir, saindo do alpendre. E Damião desceu a rampa, acompanhado pela claridade do luar, que ia seguindo seu vulto, como se o perseguisse, até que ele desapareceu, longe, escondido pela senzala. 79 A A LAGOA MANSA, levemente crispada pelo frio vento matinal, começava a clarear com a luz do sol, ainda rubro por trás da mata. Ao longo da várzea, ia-se desfazendo a cerração alvacenta que tudo cobria. Já se distinguiam, como manchas impacientes, as garças e os guarás que bordejavam as águas, prontos para alçar vôo, assim que a claridade restituísse o verde das árvores. Só as siricoras, longe, junto à floresta, na região molhada dos mangues, soltavam seus gritos estrídulos, que os primeiros bem-te-vis prontamente respondiam, com todo o alarido de que eram capazes. Alguns minutos mais, e o disco vermelho do sol apontaria no amplo céu de raras nuvens esgarçadas. com pouco rolariam as moendas, rangeriam os carros de bois na estrada, as espirais de fumaça subiriam da chaminé da casa de farinha, enquanto levas de negros, de dorso nu, enxada ao ombro, desceriam às extensas plantações de cana e algodão, para abrir os regos por onde se escoariam as chuvas do inverno. Ao despejar no tanque quase seco as primeiras latas de água, Damião viu que o Bispo descia a rampa da porteira, envolto no seu guarda-pó escuro, ladeado pelo Dr. Lustosa. Logo atrás, vinha o padre, também de guarda-pó. O Sarará e o Sipaúba puxavam os quatro cavalos de sela, já arreados, e mais a égua pintada, com os baús de couro nas cangalhas. Preparado para descer novamente a rampa da lagoa, com o cabresto do jumento na mão molhada, Damião acompanhou o grupo com os olhos atentos, certo de que o Bispo já se teria entendido com o Doutôr a respeito de seu caso. Reparou quando os dois pararam, do lado de fora da porteira, e se abraçaram, depois que o Doutôr, curvando-se, beijou a mão do prelado. Em seguida, o padre mulato apertou a mão do Doutôr, baixando de leve a cabeça. O Doutôr aproximou-se novamente do Bispo e o ajudou a subir, enquanto o padre subia sozinho, um pouco mais atrás. O Sipaúba e o Sarará subiram logo depois nassuas cavalgaduras, e foi o Bispo que rompeu a marcha, depois de tirar o chapéu para o Doutôr. Nesse momento, o Sipaúba 80 passou-lhe à frente, levantando uma nuvem de poeira no seu tordilho nervoso, muito sensível à roseta das esporas. Parado no meio da estrada, a olhar para as nuvens de pó que se iam levantando, o Dr. Lustosa esperou uns momentos, depois sacudiu o braço, com o chapéu na mão. Antes que ele começasse a subir a rampa, de volta ao alpendre da casa-grande, Damião tratou de descer à lagoa, tangendo apressadamente o jerico com uma cipoada. A bem dizer, não tinha dormido. Só passara de leve pelo sono, uma ou duas horas, em meio da madrugada, sempre com a sensação de que, a cada momento, ia ser retirado da senzala. Saltou da rede com as sombras da noite dentro do quarto, receando perder a hora de acordar. Ainda apanhara cá fora o clarão do luar, que não tardou a empalidecer, à medida que a lua se ia apagando, muito branca. Estava escuro quando tirou o jumento da cocheira. E foi na lagoa que viu o dia clarear. Na subida da rampa, ouviu rumor de vozes e passos na casa-grande. Chegou a pensar em fugir. Logo se lembrou de que, se tal fizesse, todo o castigo desabaria sobre a mãe enferma. Não, não tinha o direito de fazê-la sofrer por sua causa. Nem tampouco a irmã, que tinha agora quinze anos, e já parecia mulher feita. - Quem tem de agüentar o tronco sou eu - decidiu-se. E ficou-lhe à espera, para o que desse e viesse. Estava preparado para suportar o castigo, qualquer que ele fosse; mas antes, de cabeça erguida, diria o que se tinha passado. Nada temia. Tinha a consciência tranqüila. Infelizmente, já agora, não poderia invocar o testemunho do bispo. Mesmo assim, todas as vezes que se acercava da casa-grande, seu coração se acelerava, no pressentimento de ter chegado a hora do chamado do Doutôr. Antevia-lhe os olhos duros fixados no seu rosto, e uma sensação de frio, que não conseguia reprimir, lhe gelava a espinha e a palma das mãos. Ah, Nhá-Biló de uma figa! Por que o tinha chamado pelo nome? E à piedade da véspera, superpunha-se agora, no seu espírito, a raiva surda, que lhe fazia tremer os lábios. Lembrava-se perfeitamente de ter visto as luzes se acenderem em dois pontos diferentes da casa-grande. Uma janela chegara mesmo a abrir-se, enquanto ele corria. Tê-lo-iam visto fugindo? com certeza. E a doida da Nhá-Biló, debruçada no peitoril da janela, a esgoelar-se, chamando por ele, enquanto os cães latiam! - Ah, miserável! Ah, maluca! No entanto, toda a manhã passou sem que o chamassem. A cada momento, via partirem outros cavalos, levando os hóspedes da casagrande. Os últimos, já depois do meio-dia, tinham sido os parentes da Serra Negra. Todas as vezes, a cena se repetia, com a mesma descida à porteira; depois, o galope dos animais, as nuvens de pó 81 subindo da estrada, e o Dr. Lustosa, ao pé da rampa, tirando largamente o chapéu. A tarde avançou pela hora da sesta, com as redes armadas na casa-grande, depois o café foi servido no alpendre pela mucama, e Damião subiu e desceu a rampa, sempre assustado, tangendo o seu jerico, sem receber qualquer chamado. Dir-se-ia não ter acontecido a cena da noite. Um susto apenas, que seus nervos tensos exageravam. Mas, antes que o sol quebrasse, o feitor ordenou a Damião, em nome do Doutôr, que recolhesse o jumento na cocheira, passando a fazer o seu trabalho como sempre o fizera. - No ombro - acentuou o Chico Laurentino. A primeira subida da rampa, com as duas latas no pau de carga, não custou a Damião apenas o esforço físico, que às vezes o obrigava a ziguezaguear o passo na ascensão difícil - custou-lhe sobretudo a ira calada, com a sensação "de que até se riam de sua desventura. De longe, com efeito, viu a Miduca a rir-se dele, e também outros negros, que voltavam dos canaviais. - Agora tu aprendeu que o jumento é só pra quando tem visita - comentou o Ludovino Careca, mostrando as gengivas murchas. E foi então que, acercando-se do tanque de cabeça baixa, a morder o lábio inferior, Damião firmou consigo a determinação de voltar ao quarto de Nhá-Biló, assim que a noite fechasse, para deitar-se com ela, saciando-lhe a sensualidade doentia. Depois, antes que o dia raiasse, iria embora para sempre, deixando ali, na carne da filha de seu senhor, a desforra da humilhação que este lhe infligia. - Além de trepar com ela, faço-lhe um filho - jurou, com o lume do ódio nas pupilas, tornando à ladeira da lagoa. E a sua mãe? E a sua irmã? Deu de ombros, na exaltação da cólera. Perdido por pouco, perdido por muito. O que tivesse de vir, viria. Já estava cansado de ser maltratado. No entanto, quando a noite caiu, escura, de luar tardio, encontrou-o mais sereno, embora ainda remoesse de tal modo a sua raiva, que só com algum esforço conseguia fazer descer, garganta abaixo, a comida que levava à boca, isolado no seu canto, os olhos apertados contra a luz da lamparina. Quando acabou de comer, deixou o prato vazio sobre o mocho de pau, e deitou-se um pouco, vencido pela exaustão. Só despertou muitas horas depois, já com os primeiros galos cantando para o dia que ia nascer. Enquanto Damião dormia pesadamente, a Sinhá Miloca tinha batido à porta do quarto de Nhá-Biló. - É a Tia Miloca, Biló - avisou. E como a outra não respondesse, insistiu em bater e chamar, desta vez dizendo que tinha para ela uma boneca de pano. - Tu vais gostar. 82 Nhá-Biló entreabriu de leve a porta: - Quero ver primeiro a boneca - preveniu. E quando viu que a tia lhe trazia mesmo uma boneca de pano, toda vestida, com chapéu na cabeça, escancarou o resto da folha, sobre o corredor caiado de luar, mandando que ela entrasse. Sinhá Miloca entrou até o meio do quarto, premindo a boneca contra o peito, sem esquecer de ocultar a mão mirrada no velho xale de borlas de linha. Trazia uma touca na cabeça, os pés nas sandálias, o corpo magro duplamente protegido pela camisola de dormir e ainda por outro xale, que lhe cobria as costas e os ombros, caindo para a frente até à altura dos joelhos. Cheirava a pó de arroz e água-de- colônia, a que se misturava certo travo de vela derretida. E defendendo a boneca com os dois braços cruzados por cima do peito, olhou de frente a sobrinha: - Antes de eu te dar a boneca, tu vais me dizer uma coisa, mas só para mim. Que foi que o Damião veio fazer aqui, ontem de noite? E ela, com uma expressão desconfiada: - Sem a senhora me dar a boneca, eu não falo - replicou, pondo a mão em cima da boca, de lábios bem cerrados. - Pronto, já dei - apressou-se em dizer Sinhá Miloca, entregando-lhe a boneca. - Agora, me conta. Seus olhos pequenos, muito negros e redondos, pareciam querer sair das órbitas, fixados no rosto de Nhá-Biló, que examinava atentamente a boneca, olhando-lhe os sapatos, as meias, erguendo-lhe a saia, puxando-lhe a calcinha, sempre com um ar espantado e brejeiro. - Estou esperando tu contares o que te perguntei. Que foi que o Damião veio fazer aqui ontem de noite? E Nhá-Biló, divertida: - Ela tem tudo, Tia Miloca. Direitinha a gente. Até o peitinho. até os cabelinhos daqui de baixo. Eu já tive uma boneca assim. Não sei que fim levou. Sinhá Miloca impacientava-se. De sobrancelhas contraídas, continuava com os olhos fixados na sobrinha. E ameaçando-a, depois de um silêncio longo: - Se não me responderes o que eu te perguntei, eu te tomo a boneca. Anda, responde. Nhá-Biló tinha dobrado o braço esquerdo, para ninar ali a bruxa de pano, indiferente à ameaça da tia. Todo o seu instinto materno exteriorizava-se agora na ternura das mãos, no enlevo do olhar, no leve balanço do corpo que acalantasse junto do peito a filha que ia adormecendo. - Ela é linda, Tia Miloca. Um amor de boneca. Já tenho um nome para ela: Celuta! Vai-se chamar Celuta! E nisto sentiu que a mão irada da tia, com os dedos recurvos, tentava arrebatar- lhe a boneca. Retrocedeu um passo, de rosto 83 desfigurado, a testa franzida, agarrando-se firmemente à bruxa, enquanto Sinhá Miloca, de olhos duros, lhe indagava, colérica:- Responde: o que foi que o Damião veio fazer aqui? - Ele já tinha vindo antes, Tia Miloca. Deitou na rede comigo. Me fez um filho. O filho está aqui, crescendo na minha barriga. Sinhá Miloca ergueu as sobrancelhas até o meio da testa, lívida. O espanto e o nojo subiram-lhe ao rosto. E quando conseguiu falar: - Aquele negro deitou contigo, Biló? - Deitou, Tia Miloca. Eu estava dormindo quando ele entrou. Senti ele dentro de mim, me rasgando. Eu adorei. Sempre pensei ter um filho. Um filho mesmo. Sinhá Miloca havia recuado um passo, com a mão na boca. E ao ver as duas redes armadas: - Por que estas duas redes, Biló? - Uma é minha, outra é dele. Damião gostou da rede. Eu queria que ele ficasse aqui comigo, escondido. Ele não quis. Sinhá Miloca deixara cair os braços, olhando a sobrinha com uma expressão de ira, piedade e nojo. E juntando novamente as mãos, no esforço para dominar-se: - Biló, tu és uma branca. Uma branca não se mistura com um negro. O Damião é um patife. O que ele fez contigo não se faz. Ele abusou de ti, minha filha. E saindo do quarto, destroçada, sem saber ao certo o que ia fazer, apertava a cabeça entre as mãos frias, caminhando às tontas pelo corredor banhado de luar, sem conseguir achar a porta de seu quarto: - Que horror, meu Deus! Que horror! Abusar de uma doida! Negro canalha! com a filha de seu senhor! Mas foi só na tarde seguinte que ela apareceu no alpendre, com a sua caixa de costura, o semblante pálido, as olheiras crescidas, para retomar o velho crochê com que tentava distrair-se, todas as vezes que um problema lhe atormentava o pensamento. Passara a nova noite em claro, ora a embalar-se na rede, ora a caminhar ao comprido do quarto, com um ardor nos olhos, a boca amarga, não querendo crer no que tinha escutado. Imaginara o pior, e o pior tinha acontecido. Seria possível, meu Deus, que tudo aquilo fosse mesmo verdade? A pobre da Biló violentada por um negro? Na véspera, havia escutado o grito dela chamando pelo Damião. Ainda estava de pé, defronte do espelho, a compor os cabelos dentro da touca de dormir. Quando abrira a janela, vira o preto correndo na direção da senzala. Pensara ir imediatamente ao quarto da sobrinha e dar o alarme; mas de pronto imaginara o escândalo, com o Bispo na fazenda, os parentes e os convidados nos outros aposentos, e contivera- se. O mal já estava feito. Primeiro devia esperar que os 84 hóspedes partissem, para então ouvir a sobrinha, à noite, e decidir a providência a tomar. Não podia precipitar-se. Devia ter calma. Muita calma. Mas só Deus sabia como tinha passado a manhã e a tarde, para não deixar transparecer a sua aflição. Afinal, quando o último hóspede se foi, trancara-se no quarto, exausta, à espera da casa aquietar-se, noite alta, para'bater no quarto da Biló. E pela manhã, já ciente de tudo, quase não tivera forças para levantar-se da rede. Doíam-lhe os braços e as pernas, a cabeça lhe pesava. O banho morno tinha-a melhorado um pouco. Mas só pudera sossegar quando se trancara na alcova, com a cunhada e a mãe, contando-lhes tudo. A Sinhá Velha fora prudente: - Primeiro quero ouvir Biló. Eu mesma. Para ver se ela confirma o que te disse. Voltara alguns minutos depois, de sobrolho carregado. Não podia afirmar nem negar. A Biló baralhava tudo, só fazendo bater na barriga para dizer que estava grávida. Podia não ser verdade. E a Sinhá Dona, exaltando-se: - Como pode não ser verdade, se a Miloca viu o Damião saindo do quarto da Biló e ela gritando por ele? A Sinhá Velha espichou o beiço, pensativa. E depois de um momento de silêncio, alteando os ombros: - Mas vejam bem como vão contar tudo isso ao Agostinho. Ele vai perder a cabeça. Conheço meu filho. - Não há outro jeito senão contar - ponderou Sinhá Dona. Do contrário a responsabilidade é nossa. E aquele negro ainda vai rir da gente. A Miloca, que viu tudo, vai falar ao Agostinho. Se não quiser falar, eu falo. Sinhá Miloca formalizou-se: - Pode deixar. Eu converso com o Agostinho. A Sinhá Velha afastou-se, arrastando nas tábuas compridas os pés cansados; parou um momento defronte do oratório, riscou um fósforo, acendeu o pavio de uma vela aos pés do crucifixo, e passou para o seu quarto, depois de um suspiro, sempre a tilintar o seu molho de chaves. Agora, ali no alpendre, Sinhá Miloca tirou da caixa de madeira o crochê interrompido, sem descobrir a mão mirrada, e retomou o ponto com uma laçada nervosa. O Dr. Lustosa, depois de ler os últimos números do Constitucional, que de São Luís lhe mandara o Dr. Sotero dos Reis, deixou os jornais ao pé da cadeira de balanço e recostou a cabeça no espaldar de palhinha, alongando a vista para a porteira da fazenda. Só agora, livre de seus hóspedes, voltava a sentir-se à vontade na casagrande. Em vez das "botinas que lhe aqueciam os pés, tornara às sandálias de trança, com os dedos bem arejados. Já na manhã seguinte, podia sair, cedo, no seu cavalo. O pior de tudo é que os negros, com 85 os poucos dias de festas, estavam mal acostumados. Urgia repô-los no bom caminho. Instruíra o Chico Laurentino para apertar com eles. Nada de lhes passar a mão pela cabeça. Negro, sem chicote, não conhecia mais o seu senhor. As palmatórias, as chibatas, os troncos, as gargalheiras, os libambos, as correntes de ferro, tudo já estava nos seus antigos lugares, bem à vista, para exemplar quem mijasse fora do caco. Ouviu bem, Seu Chico Laurentino? Quem fosse da roça, que pegasse logo a enxada, antes que as chuvas voltassem. E por que os fornos ainda não estavam acesos? Já era hora de se sentir na casagrande o cheiro do melaço nos grandes tachos de cobre! Que faziam os carreiros que não punham os bois nos carros? Queria ouvir o chiado das rodas na estrada, e o ranger das moendas mordendo a cana! Vamos, Seu Chico Laurentino! O Senhor está aqui para isso! Faça os negros trabalharem, se não quer que eu mude de feitor! Malandro não fica na minha fazenda! Quando viu a mana sentar no alpendre, com a caixa de costura, a poucos passos de sua cadeira, ficou a esperar que ela começasse a contar-lhe os prejuízos que tinham tido com gente estranha em casa. Na certa, vinha falar-lhe dos talheres de prata que tinham sumido, dos guardanapos de linho que faltavam, da colcha inglesa com dois buracos de brasa de charuto. Ninharias. Os negros furtavam, os hóspedes levavam a culpa. Não era ingênuo. Só não admitia que lhe mijassem nas bacias de louça dos lavatórios. Por causa disso, o Major Lisboa nunca mais recebera convite seu para vir à Bela Vista. Ou aquela besta não sabia que se mija é no penico? E penico que está sempre por baixo da cama? Pela fresta das pálpebras, pôs-se a observar as laçadas da agulha da Miloca. Pelo jeito, estava nervosa. Já sabia o que era: vinha trazer-lhe mexericos de mulher. Coisas de moça-velha. Que o Alderico tinha ido meter-se na senzala. Ou o Januário saíra a esfregar-se por trás da casa com a vagabunda da Miduca. Isso acontece em toda fazenda, Miloca! Pior é ouvir os peidos do padre mulato, como eu ouvi, e ainda por cima ter de ser amável com ele, na manhã seguinte! Por essa eu não esperava! Sinhá Miloca quase não enxergava o vão da laçada na volta da linha; mas a agulha sempre acertava em cheio, saindo do outro lado. Já tinha feito uma carreira, agora ia começar a outra. Pelo canto dos olhos, ela observava de vez em quando o irmão, esperando a vaza para atirar-lhe a bomba que tinha na boca. Coitado! Ia ter a maior raiva de toda a sua vida! Quem tivesse perto, que saísse! Mas não havia outro jeito senão contar-lhe tudo. A mãe tirara o corpo; a mulher, também. Que mal havia em lhe dizer a verdade? Era pai, tinha de saber o que se passara com a filha. Ela, Miloca, estava na obrigação de não lhe esconder nada. Mas tinha de ir aos poucos, para não soltar tudo de uma vez. Primeiro, preparar-lhe o espírito. Do contrário poderia ter um choque. Depois, sim, lhe contaria tudo. 86 E de repente, embora ainda visse o cunhado com a cabeça reclinada no espaldar de palhinha, crioucoragem: - Agostinho, tu não estás dormindo, pois não? - Acordei com a tua pergunta - resmungou ele, correndo a mão pela barba, a modo de estremunhado. - Não tens notado nada de anormal aqui na fazenda? O Dr. Lustosa deu à voz molhada um tom arreliado: - E tu querias que tudo estivesse normal, com tantos hóspedes dentro de casa, a começar por um Bispo e um padre? Sinhá Miloca formalizou-se. E com a agulha no ar, sem levantar de todo a vista: - Não estou me referindo aos hóspedes, embora tivesse alguma coisa para te dizer, com relação a dois de nossos parentes. O Dr. Lustosa endireitou o busto, os pés firmados no chão, a mão aborrecida em cima do joelho: - Miloca, olha pra mim: quando é que tu vais acabar com essa mania de falar com a gente por meio de rodeios? Se tens alguma coisa para contar, desembucha! Não fique aí com o diabo dessas voltas, que só me fazem dar cabo da paciência! Sem melindrar-se, Sinhá Miloca deu mais um ponto no crochê. E rematando a laçada: - Não tens notado nenhuma mudança no Damião? - E era para falar desse negro que estavas fazendo todo esse rodeio? Ora essa, Miloca! Não, não tinha notado. Mas quem me fez abrir os olhos, hoje de manhã, quase na hora de despedir-se, foi o Bispo. Cheguei a pensar que Dom Manuel estava pilheriando; depois vi que não, que era a sério que ele estava falando. Tu não viste quando ele me levou para o fundo do alpendre, com o braço no meu braço? Pois foi aí. Junto daquela coluna, ele me olhou, chamou-me mais para perto, como se fosse me abraçar, e saiu-se com este disparate: "Dr. Lustosa, tenho uma grande notícia a lhe dar: um de seus escravos quer ser padre, e eu queria que o senhor concordasse com esse chamado de Deus. O Seminário de Santo Antônio está passando por uma grande reforma, e nós precisamos recolher por toda a Província as vocações sacerdotais." Fiquei olhando o Bispo, sem saber a que escravo, com cara de padre, aqui na fazenda, ele queria se referir. Perguntei, intrigado: "A quem é que Vossa Reverendíssima se refere, Dom Manuel? Eu, para lhe ser franco, não conheço, entre os meus pretos, nenhum com vocação religiosa. Só se for para a religião deles, com tambor e pajelança." Dom Manuel fez-me um ar de riso, e perguntou: "E o Damião, Dr. Lustosa?" Não agüentei a gargalhada, e fui franco: "Senhor Bispo, esse Damião é um pedaço de patife, e 87 tem a quem sair. O pai dele, que eu sempre tratei bem, pagou-me a bondade com o maior coice que já recebi até hoje: fugiu-me da fazenda, com a mulher e os filhos, de madrugada, depois de me tocar fogo na casa-grande, no engenho e no canavial. Quase que tudo o que é meu ia pelos ares, destruído pelo incêndio. Eu e minha família escapamos por um verdadeiro milagre. Foi Deus que nos salvou. Nossa sorte é que, na hora do fogo, desabou uma bendita chuva. Se não fosse isso, estávamos todos no chão da capela, com uma pedra em cima, sem o prazer de receber Vossa Reverendíssima neste momento. O Damião é o preto mais perigoso que tenho hoje na fazenda. É desses que não baixam a vista diante do senhor. Basta olhar para ele. É um preto arrogante. Não há chicote que lhe quebre a crista. Tal qual o pai, que era uma peste. Para Vossa Reverendíssima fazer um juízo do pai do Damião, basta lhe dizer que, quando o agarraram no quilombo, ele preferiu se atirar no rio, para ser comido pelas piranhas, a voltar para a minha fazenda. Me deu esse prejuízo, ainda por cima. Ele era meu escravo, tinha custado meu dinheiro, não podia se matar. O filho vai pelo mesmo caminho - mas não me apanhará desprevenido. Estou de olho nele." O Bispo se pôs a limpar os óculos, pensando no que eu lhe tinha dito. E voltou à carga, assim que botou os óculos no nariz: "O que o senhor está me dizendo, Dr. Lustosa, dá mais força ao chamado de Deus. Muitos dos grandes santos foram grandes pecadores. A começar por São Paulo. O Damião pode ter sido tocado pela graça." Resolvi encerrar de vez o assunto: "É fingimento puro, Senhor Bispo. Não vá atrás da conversa daquele negro. Conheço ele como a palma de minha mão. Posso-lhe dar outro escravo: ele, não. O que ele quer é livrar-se do meu chicote e mudar-se para São Luís." Senti que o Bispo não gostou. Para ter uma saída, já que ele era meu hóspede, amaciei o contra que lhe dei: "Em todo caso, já que Vossa Reverendíssima me falou com tanto empenho, vou ficar observando o seu projeto de padre, com vontade de lhe servir. Se ele se comportar direito, sem me dar trabalho, nem me obrigar a encostar-lhe o chicote, no período de um ano, despacho-lhe o preto para São Luís. Mas veja bem, Senhor Bispo: só daqui a um ano. Antes, não." Ele aceitou a proposta, e ficamos entendidos. Mas tenho certeza de que, já na semana que entra, estou com o Damião na chibata. Não me esqueço daquele jumento que ele soltou na rampa, bem na hora do Bispo chegar. Foi de propósito, Miloca. Foi de propósito. Ninguém me tira isso da cabeça. Sinhá Miloca voltou a parar a laçada, agora olhando o irmão: - Tu prometes não perder a cabeça com o que eu vou te contar? - Como é que vou te fazer semelhante promessa, se já não sei mais onde tenho a cabeça, com essa tua mania de dizer as coisas? Se 88 queres falar, fala; se não queres falar, vai para o diabo que te carregue! Irra! Pela estrada, na tarde já declinante, vinha subindo um carro de bois atulhado de canas, e era tão fino o seu gemido que parecia furar o ar com um espinho longo. Antes de tornar a abrir a boca muito pequena, que dava a impressão de encolher- se para dentro da cara, Sinhá Miloca esperou que o Dr. Lustosa, agora de pé, fosse ao fim do alpendre e voltasse. Quando o sentiu aproximar-se, espetou a agulha no crochê: - Agostinho: se eu pudesse, me calava; mas não posso. Tenho de falar, mesmo sabendo que vou dar o maior desgosto de tua vida. Imagina tu que o Damião - esse mesmo Damião que o Bispo queria levar para ser padre - foi visto, anteontem à noite, saindo do quarto da Biló. - Do quarto da Biló? Aquele negro? E quem foi que viu? - Eu, Agostinho. - Não, Miloca. Tu te enganaste. Aquele negro não seria tão louco que chegasse a ponto de entrar no quarto da Biló! Não! Ele conhece o seu lugar! Tu te enganaste, Miloca! Muito pálido, permaneceu de lábios entreabertos, com a vista fixada na irmã, imóvel, a mão no ar. E ela, sustentando o olhar que a trespassava: - Eu vi, Agostinho. E depois falei com a Biló. A mamãe também falou. Ele esteve lá. Aliás, já tinha estado antes. E o pior eu ainda não te disse: parece que a Biló está grávida. - Não! - gritou o Dr. Lustosa, arregalando muito os olhos, ainda mais pálido, como se um golpe certeiro o houvesse apanhado em cheio na cabeça, e o aluísse. Sentindo que as pernas lhe faltavam, buscou a cadeira com a mão aflita, sem desfitar a Miloca, os lábios trêmulos, não podendo falar. Ficou assim uns momentos, lívido, a respiração suspensa. E sempre a olhar a mana, que recolhia depressa o crochê na caixa de costura, intimidada pelas pupilas crescidas que não se afastavam de seus olhos, pôde levar um pouco de ar aos pulmões. Duas vezes correu a mão no rosto, da testa ao queixo, uma atrás da outra. - Não, Miloca, Deus não ia permitir que eu vivesse até hoje, para ouvir o que acabas de me dizer. Aquele negro tocar no corpo de minha filha? E desonrá-la ainda por cima? Não, Miloca. Tu estás mentindo. Pelo amor de Deus me diz que tu estás mentindo! Ela se havia levantado, amedrontada, querendo esquivar-se dali, e já por trás da cadeira, pronta para correr, quando ele se firmou no chão, com um ar desvairado, e entrou a gritar, chamando pelo feitor: - Chico Laurentino! Chico Laurentino! Aqui! Aqui! Quero você aqui! Chico Laurentino! 89 E' ERA UMA PEÇA RETANGULAR, de altas paredes sem janelas, cobertura de zinco, servida apenas por uma porta lateral, que se fechava pelo lado de fora com um ferrolho e um cadeado. A claridade que ali penetrava, coada pelo viso das paredes ou pela fresta da porta, reduzia-se a uma luz escassa, que mal dava para atenuar a escuridãocerrada, mesmo nas horas altas do dia. A cafua parecia anterior à senzala e à primitiva casa-grande, no seu todo abrutalhado, na argamassa de suas paredes sem reboco, no seu chão de terra solta. Constava ter sido construída pelo primeiro dono daquelas terras, Padre Luís Antônio Serrano, para prisão de escravos, na época em que a fazenda não passava de dois barracões de palha, nos lugares em que eram agora a senzala e a casa-grande. Muito escravo havia morrido ali, não resistindo à fome e à sede a que eram reduzidos depois de açoitados, e ali mesmo uns tinham enterrado os outros, abrindo as covas com as mãos. Isso explicava as ossadas humanas que vinham ao lume do solo, todas as vezes que a vassoura de talos varria com mais força a camada de terra que lhe servia de piso. Toda fechada, com um metro e meio de largura por outro tanto de comprimento, recebia sol durante todo o dia. E como não tinha janela ou respiradoiro por onde o vento circulasse, fazia ali dentro um calor insuportável, desde que a manhã raiava até que a noite se fechava. Mesmo à noite, com o calor armazenado pelas paredes, os negros suavam em bica, buscando as frestas da porta, na ânsia de respirar melhor. Quando Damião se viu lá dentro, levou uns momentos atordoado, com a sensação de que havia ficado cego. Depois de defrontar um retângulo de luz, com a porta aberta para lhe dar passagem, só percebeu à sua volta a treva densa. Aos poucos ajustou as pupilas à claridade escassa, e pôde ver, num relance, que a peça não tinha mobília alguma. Mesmo uma velha esteira para deitar-se, não a encontrou. Ensaiou um passo, depois outro, amparando-se na parede, e parou, quando seu pé tocou numa coisa que se movia, no ângulo do chão. Receou que fosse uma cobra, enrolada sobre si mesma, 90 de cabeça levantada, e logo buscou um pau com que se defender. Retrocedeu para a porta, sem tirar a vista dos olhos miúdos que o seguiam, e nisto o vulto se moveu para direita, correndo depressa, e desapareceu, ainda com Damião atarantado. - É um rato - reconheceu, aliviado, enquanto tratava de escorregar para o chão, à esquerda da porta. A terra solta obrigou-o a endireitar o corpo, sentando-se nos calcanhares. Assim de cócoras, permaneceu largo tempo, sem noção precisa das horas. Parecia-lhe que estava à boca de um forno, tão grande era o calor que o deprimia. Sentia o suor descer-lhe da testa, escorregando para o pescoço e o peito. Ainda bem que trazia as calças molhadas da última carga que levaria ao tanque. Em breve, porém, tinham secado. Tirou-as, para ficar mais à vontade, e não voltou a sentar nos calcanhares. Permaneceu de pé, durante alguns minutos, como em busca de uma ocupação, as calças pendentes do braço. Depois de tatear as paredes, repetindo as voltas no cubículo, deu com uma saliência na madeira da porta. Pareceu-lhe a cabeça de um prego. Aí pendurou as calças. Como o corpo exausto lhe pedia descanso, voltou a agachar- se, terminando por sentar na terra, as costas apoiadas na parede, o ouvido afiado para os rumores que vinham de fora. Ele sabia que também seu pai tinha estado ali, e essa concordância com o destino paterno ajudou-o a suportar o castigo. - Um dia, faço também como ele, e vou embora, deixando minhas lembranças - jurou, com as mãos sob as axilas. Não vendo mais o tímido traço de luz que se esgueirava pela fresta da porta, reconheceu que já era noite, embora o calor dentro da cafua ainda não houvesse de todo arrefecido. E como havia passado por um cochilo, não sabia dizer ao certo se o sino da fazenda já havia batido. Presumiu que sim. Ainda com a cabeça contra a parede, deixou-se ficar quieto, de olhos semicerrados, e mais uma vez o sentimento de ódio crispou-lhe os punhos, acentuou-lhe a sensação de secura nos lábios. - Largue isso e venha comigo. A voz do Chico Laurentino ainda lhe ressoava aos ouvidos, e era como se voltasse a vê-lo, gordo, ancas avantajadas, o bigode ralo caído para os lados, o chicote pendente do punho, a perna das calças engolida pelo cano das botas, o passo cheio fazendo reunir a roseta das esporas. A princípio, quando lhe ouvira a ordem, imaginara que fosse chamado do Doutôr. Logo viu que não. Em vez de seguirem para o alpendre, iam tomando direção oposta, contornando a senzala. De repente o Chico Laurentino parou, esperou por ele, deu-lhe um safanão que o atirou ladeira abaixo, ordenando-lhe, em tom mais áspero: - Em frente, em frente. 91 Na passagem, tomou-lhe a faca. E sacudindo no ar o chicote, ameaçou-o com a ponta da sola. Caminhando depressa, Damião só lhe ouvia o ruído dos passos e o tinido das esporas. Afinal, aonde iam? Quando queria abrandar a marcha, não sabendo o caminho que devia seguir, novamente o relho sibilava, roçando-lhe a costa nua, e ele aumentava o passo, temendo a chibatada. Já perto da cafua foi que lhe veio a certeza de que ia ser jogado ali. - Aqui - berrou-lhe o feitor. E abrindo o cadeado, descerrou a porta. Depois, segurando Damião pelo braço, atirou-o contra a parede fronteira, logo cerrando a porta, que tornou a fechar com o ferrolho e o cadeado. Agora começava a sentir fome e sede. Havia almoçado cedo, por volta das nove horas. No resto do dia limitara-se a comer um bacuri e chupar umas pitombas. Como só jantava ao fim do trabalho, de volta à senzala, o estômago vazio entrava a reclamar alimento. Àquela hora, já a mãe saberia que ele estava na cafua. Não pediria a ninguém pelo filho, sabendo que de nada adiantaria a sua súplica ou o seu pranto: passaria a noite em claro, emendando orações, depois de ter acendido uma vela à Virgem do Rosário, à porta da capela. Vergado para a frente, com a cabeça entre as mãos, volvia a interrogar-se, apreensivo, se seu castigo ia limitar-se à reclusão na cafua. Concluiu que não. Conhecia bem o Dr. Lustosa. Na certa, tinham ido contar ao Doutôr a cena da noite, com Nhá-Biló a chamar por ele, Damião, na janela de seu quarto. O que estranhava é que o Doutôr não o houvesse interpelado. Em vez de ouvi-lo, tinha-o mandado meter na cafua. Dali sairia para o tronco. O próprio Doutôr faria questão de açoitá-lo. - Do chicote eu não me livro. E quantas chicotadas receberia? Vinte? Trinta? Cinqüenta? Amarrado ao tronco, de costas para o seu algoz, acabaria perdendo a conta das chibatadas sucessivas. Ainda bem que já sabia como apanhar: enrijaria os músculos, como se seu corpo fosse uma só peça, e todo ele tenso, para que as lapadas não se lhe aprofundassem na carne. De cabeça, ouvia o zinido do relho tendendo o ar, logo seguido pelo bater da relhada segura, e baixava mais o rosto, contraindo-se, como se já estivesse recebendo no dorso nu as lapadas do couro torcido, lapte, lapte, lapte, para que aprendesse a conhecer o seu lugar. - Ou então ele me deixa aqui uma porção de dias, sem comer, nem beber, até que eu morra. E que mal cometera para estar ali? Nada. Podia ter-se aproveitado de Nhá-Biló, e não o fizera. Pelo contrário: fugira dela, já nua. Só Deus sabia o quanto isso lhe custara. Chegara a ver-lhe o sexo, apenas coberto pela seda leve da calça, e os seios nus, caindo para o ventre, no momento em que ela tirava o vestido, e resistira à animalidade que lhe afogueara o instinto. Por um momento apenas, teria cedido ao sexo exacerbado. E dera o salto por cima da janela, movido 92 por um impulso de medo e piedade, antes que a virilidade bravia pudesse mais que a sua compaixão. A consciência do castigo imerecido dava-lhe ímpetos de reação desatinada, e ele se antevia saltando sobre o senhor, com a mão no cabo da faca, na primeira ocasião propícia em que se defrontassem. Era questão de tempo e paciência. O momento da vingança tinha de aparecer-lhe, como aparecera no caso do Samuel. E ele saberia esperar - mesmo que fosse um ano, ou dois, ou mais ainda. Daria tempo ao tempo. Agora, não. Tinha de ser realista. Como reagir, de faca desembainhada, com o Chico Laurentino ao lado do Doutôr? Preso depois ao tronco, de mãos e pés atados, só devia preocupar-seem sobreviver ao castigo. Também sabia que de nada adiantaria jurar inocência. Se o fizesse, quem acudiria em seu favor? A Sinhá Velha? Os outros negros? Pois sim! Diriam todos que ele estava mentindo. O melhor mesmo era suportar as chicotadas cegas, na esperança de chegar ao fim dos açoites, sem perder os sentidos. - vou até o fim - afirmou, para animar-se. E levantou a cabeça, contraindo as sobrancelhas. Chegou a firmar as mãos no solo para levantar-se; mas logo a seguir amoleceu os braços, tomado de pavor, os olhos aumentados. Só então refletiu que, se o Doutôr o houvesse condenado a morrer na cafua, já a pena estava sendo executada. No mesmo instante, sentiu que lhe cresciam a sede e a fome, sobretudo a sede. Um calor estranho, que o pavor acentuava, tomava-lhe a garganta, a boca, os lábios, e ele se ergueu, um pouco às tontas, obedecendo apenas à necessidade de movimentarse. Deu uns passos, e esbarrou com a parede; andou noutra direção, e novamente a parede o bloqueou. Pôs-se a caminhar às apalpadelas, à maneira de um cego, já agora inteiramente desnorteado. Veio-lhe a vontade de gritar, pedindo que o socorressem. E nisto se lembrou de seu pai. Ficou parado, como se tentasse apoderar-se da imagem paterna. Que faria seu pai, numa situação assim? - Ele também esteve aqui - lembrou-se. Contraiu os punhos, enchendo devagar o tórax, no ingente esforço para não fraquejar, e aos poucos reconheceu que o ânimo lhe voltava. Seu coração batia tanto, que ele lhe sentia as pancadas contra o peito e as têmporas. Mas a taquicardia foi cedendo, e Damião tornou a tatear à sua volta, até que deu com a porta, e novamente sentou, com a sensação de que não estava só. - Deus não vai deixar que eu morra nesta cafua - terminou por dizer, correndo a mão pela boca sedenta. Lá fora, silêncio, tudo estranhamente quieto. Embora a noite fosse livre, sem os costumeiros serões na casa de farinha, permaneciam calados os tambores do terreiro. Da casa-grande não vinha o rumor compassado das pesadas mãos de pilão triturando os grãos de café. Só o vento continuava a ramalhar as árvores: sibilava forte, numa arrancada instantânea, e depois se aquietava, enquanto as folhas 93 caíam; tornava a sibilar, e outra vez amainava, perdendo-se para os lados da lagoa. À medida que a noite avançava, o calor ia-se atenuando. No entanto, como o vento não circulava no interior da cafua, continuava ali dentro a atmosfera abafada, que agravava a sede de Damião. Ah, se chovesse! A água da chuva certamente escorreria pelo piso, entrando por baixo da porta, e ele poderia molhar os lábios num fio de enxurrada. Aquele vento que corria e parava, corria e parava, não seria o indício de que o tempo ia mudar? com essa esperança, conseguiu permanecer quieto, apoiando-se num ângulo das paredes. Várias vezes cabeceou de sono, vencido pela exaustão, e sempre volvia a si, correndo a mão aflita pelos lábios secos. De madrugada, pareceu-lhe ouvir o pleque-pleque da chuva na folha de zinco sobre a sua cabeça, de mistura com o cheiro de terra molhada. Pôs-se à escuta, animado, e novamente correu a mão pelos lábios ressequidos, ao verificar que o pleque-pleque não se repetia. Daí a pouco começou a notar que a escuridão esmorecia, querendo abrir o fio de luz da porta, ao mesmo tempo que uma vaga claridade parecia aflorar no vão entre o alto das paredes e a folha de zinco. Baixando o olhar para o chão, pôde ver que o rato reluzia na sombra, no canto fronteiro, os seus olhinhos apertados, dando a impressão de que o observava. Daí a pouco escutou o canto de um galo, que outros galos responderam. Longe, nos mangais da lagoa, cantaram as siricoras, e ele ficou a imaginar a manhã raiando por cima das águas, com as primeiras garças alvejando nos alagados. Também o Dr. Lustosa, na alcova da casa-grande, viu a primeira luz do dia insinuar-se por baixo da porta, ao fim da longa noite atormentada. Tinha custado recolher-se. Ficara andando no alpendre, à luz do contravento, sem saber o que fazer da mão impaciente. Depois de mandar recolher o Damião na cafua, a custo reprimindo a vontade de matar o negro imediatamente, havia tornado à cadeira de balanço, ainda pálido, contraindo os maxilares, a veia do pescoço pulada. De vez em quando corria a mão pelo rosto, como a tirar dos olhos uma sombra que o torturava, e escancelava mais os olhos, no esforço para conter a ira que o cegava. - Tem que ser devagar - repetia, para dominar-se. Quando vieram dizer-lhe que o jantar ia ser servido, fez um gesto com a mão, mandando que a mucama fosse embora. E repetiu o gesto, daí a momentos, quando foi a mulher que o veio buscar. Não queria que o incomodassem. À própria mãe, que lhe veio trazer o prato feito, replicou com aspereza. Se quisesse comer, tinha ido à mesa. Mas aceitou o café que, pouco depois, ela lhe trouxe, um tanto assustada, redobrando de esforço para diminuir o tremor da mão solícita, sempre com o molho de chaves na cintura. Andando no alpendre, ele vira a noite cair - uma noite de estio, sem promessa de chuva, pejada de estrelas. Para lhe fazer companhia, 94 só a luz do contravento, na cantoneira da parede, ou algum besouro erradio, que ficava a zumbir em volta do bocal de vidro. Já tarde, quando ia recolher-se, bateu no quarto da filha, e ali ficou mais de hora. Quando saiu, tinha o rosto mais cavado, um lume de desvario no olhar. Tão desorientado ficara que não acertou com a porta da alcova, só se lembrando da figura lívida da Biló, encolhida num dos cantos do quarto, as mãos entre as coxas, toda de roxo, e que lhe dizia, querendo rir: - Não me bate, não me bate. Eu tenho um filho no bucho. Entrara na alcova ainda tonto. Não compreendia aquela nova provação, depois da morte de seu filho. Por que, meu Deus? Na rede branca, a mulher dormia o seu sono profundo, como se nada houvesse acontecido. A candeia de azeite, sobre o mármore da cômoda, tremeluzia a sua chamazinha azulada, que se irradiava por todo o aposento. Na claridade mitigada, avultava o oratório de pau-preto, cheio de santos, com o crucifixo de marfim ao meio. No castiçal de prata, um coto de vela, de pavio muito negro, derramava a cera derretida no bocal que o segurava. Depois de olhar em volta, esmagado pela consciência de sua vergonha, o Dr. Lustosa aproximou-se da rede vazia, armada noutro ângulo do aposento, e deitou- se sem trocar de roupa, apenas descalçando as chinelas, decidido a não teimar com o sono. Sabia que ia passar a noite em claro. De nada adiantaria tomar o chá de erva-cidreira, que a mãe lhe deixava no mármore do consolo, todas as noites. Abriu a camisa, buscando desoprimir o peito, enquanto impulsionava a rede para o balanço lento, conformado de antemão com a vigília penosa. Que vida a sua! Naquele fim de mundo, e novamente castigado! E logo agora, quando tinha hospedado o Senhor Bispo, e até um padre mulato! Longe de acalmar-se, para ao menos descansar o corpo no côncavo da rede, sentiu crescer-lhe o ódio, e era uma cólera concentrada, que se voltava sobre si mesma, aprofundando-lhe ainda mais a consciência do infortúnio e o instinto de revolta, e que trazia consigo, quase como um lenitivo, certa volúpia fria, que ele jamais havia experimentado com intensidade igual. Antes da meia-noite, calçou devagar as chinelas, passou ao corredor, e daí à varanda, iluminado pela chama aflita de uma lamparina, que erguia um pouco acima da cabeça. Entrou na despensa onde guardava ferramentas e trastes velhos, e de lá saiu sobraçando a navalha com que se castravam os animais da fazenda. - É esta mesma que vai servir para ele - disse baixinho, com um brilho feroz nos olhos iluminados, deixando a navalha sobre a cômoda. com um sopro forte, apagou a lamparina, que ficou ainda fumaçando, só com a brasa do pavio. Irritado, premiu a brasa entre o indicador e o polegar, e tornou a deitar-se, desta vez cobrindo o corpo 95 com as varandas da rede. Não tardou a dar um cochilo. Quando voltou a si, ainda ardia em cimada cômoda a candeia de azeite, fustigada agora pela viração da madrugada. De pálpebras entreabertas, com a cabeça alteada na rodilha do lençol, viu então a primeira claridade do dia esgueirar-se por baixo da porta. Sentado na rede, com os pés nas chinelas, esperou que a claridade aumentasse dentro da alcova. Quieto, como se estivesse dormitando, viu pela fresta das pálpebras a mulher despertar, esticar o corpo, mudar de roupa, benzer-se defronte do oratório, soprar a luz da candeia e deixar a alcova na ponta dos pés, fechando cautelosamente a porta. Da cozinha vinha o ruído das escravas preparando o café. De mistura com o arruino dos pombos no beiral, ouvia-se a algazarra dos passarinhos, ao mesmo tempo que as rótulas e portadas, em vários pontos da casa-grande, iam rangendo nos gonzos e batendo contra as paredes. Senhor de si, o Dr. Lustosa foi ao banheiro e de lá saiu com o rosto úmido, os olhos levemente vermelhos, as sobrancelhas travadas. Calado, ocupou o seu lugar à mesa. Tanto a Sinhá Dona quanto a Sinhá Miloca, ladeando a cabeceira, também se mantiveram em silêncio. Somente a Sinhá Velha, habitualmente atrasada por causa de suas orações na capela, deu bom dia ao filho e à nora, bateu de leve no ombro da Miloca, e foi ocupar a outra cabeceira, depois de deixar a bengala com a mucama que a ajudou a sentar-se. - Obrigada, minha filha - agradeceu à negra solícita, que lhe acomodou também a saia fofa entre os braços da cadeira. Como sempre comia devagar, concentrada no regalo de sua fatia de bolo e da sua xícara de chá inglês, a velha não deu atenção à mudez do filho, nem reparou quando este se levantou: permaneceu quieta no seu canto, mastigando com os poucos dentes que lhe restavam, enquanto o Dr. Lustosa passava para o alpendre, com o relho pendente do punho, depois de ter apanhado a navalha na alcova. Já a vida da Bela Vista ia entrando no seu ritmo costumeiro, com o ranger das moendas, o cheiro do melaço nos imensos tachos de cobre, o rangido da velha bolandeira, o gemer fatigado dos carros de bois, o tilintar dos cincerros no pescoço das vacas leiteiras, debaixo do límpido céu sem nuvens, muito azul, extremamente luminoso, a ponto de doer na vista, e que se arqueava pelo sem-fim das terras da fazenda. O Chico Laurentino tinha vindo ao encontro do senhor nas sombras do alpendre: - Às suas ordens, Doutôr - apresentou-se, de chapéu na mão. O Dr. Lustosa tinha descido a rampa até à porteira da fazenda, a pretexto de olhar as obras da estrada. Na verdade queria ganhar tempo, sabendo que a demora era uma tortura a mais para o negro na cafua. Por vezes vinha-lhe a vontade de gritar pelo feitor, para ', que pusesse o Damião no tronco, e logo se coibia. 96 - Aquele patife tem de me pagar caro. Desta vez ele me paga por ele e pelo pai. Negro é negro. Subiu a rampa de cabeça baixa, esquecido da estrada, da porteira que pedia dobradiça nova, e o que ele via era a filha quase nua, só com o vestido em cima do corpo, os cabelos soltos, os olhos grandes, e que lhe dizia, olhando-o pelo espelho: - O senhor deixa eu casar com o Damião, pai? Tia Miloca lhe contou que ele me fez um filho? Tá aqui dentro de mim. Ele chegou a crescer para ela, fora de si. Mas ainda bem que se viu no espelho, de olhos pulados, a mão erguida, e deixou cair o braço, arrasado, vencido, lembrando-se da insanidade dela. Coitada, não sabia o que tinha feito. A luz do candeeiro batia-lhe no rosto, quase de frente, e ele via no espelho o rosto pintado que ainda lhe sorria, ela sentada no tamborete, meio curvada para a frente, de mão no queixo. - Se o senhor me bater, eu grito. Eu agora sou mãe, pai. Meu filho não vai ser branco, nem preto. Vai ser moreninho. Bem mo- reninho. - Não diga bobagem. Você não sabe o que está dizendo. - Sei, pai. Damião me disse que nosso filho vai ser parecido com ele. Mas menos escurinho. Eu disse que, se fosse escurinho, não fazia mal. O Dr. Lustosa, muito pálido, sentia as pernas trêmulas, como se fosse cair. Amparou-se no punho da rede, com os olhos molhados, tudo toldado à sua frente. Se falasse, romperia a chorar. Doía-lhe o peito, como se o apertassem por dentro. - Essa rede é de Damião, pai - adiantou a Biló, rindo, com a mão diante da boca. Ele chegou a sentir o cheiro do negro entranhado nos fios da rede, principalmente nas varandas. E todo ele se crispou, tenso, no impulso do ódio. O negro deitava ali onde ele estava sentado. Ali mesmo, meu Deus. Que horror! E conseguiu firmar-se no punho à sua direita, levantando-se. Até o punho tinha o cheiro do negro! - Deus devia ter pena de você, Biló - conseguiu dizer-lhe. E ela, no meio do quarto, contorcendo-se de riso, à feição de uma juçareira na ventania: - O senhor vai ter um neto escurinho, papai. - Cala-te, doida! Tu não sabes o que estás dizendo. Tu não tens juízo. És uma pobre doida. Por isso é que o negro se deitou contigo! E deu por si já perto da filha, outra vez de braço levantado. Foi então que ela se refugiou no canto do quarto, com as mãos entre as coxas, vergada para a frente, como a proteger a barriga, e a suplicar que ele não lhe batesse, porque tinha um filho no ventre. Já no alpendre, viu aproximar-se o Chico Laurentino, de cabeça descoberta, pedindo-lhe as ordens. 97 E apanhando a navalha, que deixara no descanso do alpendre: - Vá buscar a palmatória. E ponha o negro no tronco. Entrançado, espadaúdo, capaz de derrubar um boi virando-lhe os chifres, o Chico Benedito cerrava um tronco de peroba, para ajustar a tora ao eixo da roda de um carro, quando o Chico Laurentino passou por ele, com o seu tinido de esporas, a caminho da cafua, enquanto o Doutôr ia-se aproximando do velho tronco de aroeira que servia de pelourinho para o açoite dos escravos. Viu-lhe o relho pendente do punho, a mão fechada sobre a navalha. Adivinhando o que ia ocorrer, largou depressa o serrote e tratou de descer a rampa da lagoa, antes que o chamassem para ajudar. Já longe, com efeito, ouviu que o próprio senhor lhe gritava pelo nome. E rápido, sem olhar para trás, o passo leve e fofo, meteu-se pelo mato, disposto a só voltar quando não precisassem mais da sua força. Em cima de um banco de pau, a poucos passos do tronco de aroeira, o Dr. Lustosa tinha deixado a navalha e um clavinote carregado. Andando de um lado para outro, a céu descoberto, ficou à espera do Damião - que não demorou a aparecer, seguido de perto pelo feitor, que lhe vigiava os passos, trazendo na mão direita um chicote, na outra a palmatória - uma palmatória de ferro, com um orifício no centro, o cabo também de ferro. Ao dar com o senhor, Damião tardou o andar, sem conseguir disfarçar de todo o medo que lhe subiu aos olhos crescidos, e logo o Chico Laurentino lhe atirou no dorso uma chicotada, obrigando-o a aligeirar o passo. O Dr. Lustosa travou mais as sobrancelhas, os olhos duros no rosto do feitor, e quando este lhe entregou a palmatória: - Não se meta. Este caso é só meu. Só quem bate sou eu. Não se meta. E noutra ordem: - Veja onde anda o Chico Benedito. - Estava aqui agora mesmo - informou o Chico Laurentino, tornando a relancear em seu redor o olhar desapontado. - Quando se precisa desse negro, ele some. - Então chame outro. Chame dois. É melhor. Damião, numa vista de olhos, viu-se perdido. Se corresse, um tiro do clavinote o derrubaria; se ficasse, teria de apanhar, e muito, tanto da palmatória quanto do relho. Nisto, deu com a navalha; mas não atinou, no primeiro momento, com o emprego que ela ia ter no seu castigo. Raspar-lhe-iam a cabeça e as sobrancelhas? O Chico Laurentino tinha-se afastado, e gritou na direção da casa de farinha pelo Lourenço e o João Brito. 98 Os dois negros apareceram quase no mesmo instante, ambos empoados de mandioca, e vieram se aproximando, um ao lado do outro, retardando o passo, amedrontados. - Depressa! - ordenou o feitor. Eles obedeceram, sempre assustados, e afinal pararam, ainda sem saber o que vinham fazer ali. Damião tinha cruzado os braços, com as mãos nas axilas, acabeça levantada. Só os seus olhos se moviam, tentando antever o que se ia passar. A palmatória de ferro deu-lhe uma sensação de frio na espinha. Já ouvira falar dela, mas nunca a tinha visto. Sabia de negros a quem ela havia mutilado. E viu quando o Dr. Lustosa a segurou pelo cabo, depois de ter deixado o chicote no banco de pau ao lado da navalha. - Vem apanhar, patife! - gritou-lhe o senhor, firmando os dedos no cabo de ferro, os olhos nos olhos de Damião. O negro veio vindo, ainda com as mãos nos sovacos, e parou a uma distância de dois passos. Só aí estendeu a mão, sem alongar de todo o braço, o cotovelo roçando o tórax, como em busca de um apoio. De músculos retesados, mordendo os maxilares, esperou a pancada. Prendera a respiração, apertando os dedos da mão estendida, na esperança de assim preservar a dilaceração da palma. E a palmatória desceu, firme, dando-lhe a sensação de uma placa de fogo sobre a carne enrijada. De cabeça erguida, olhando nos olhos o seu algoz, foi mudando de mão, no revezamento dá bordoada, sem descer a vista para as palmas empapadas de sangue. Só calculava o estado delas pelas dores que sentia e pelos salpicos de sangue que lhe vinham ao rosto e ao peito, na repetição dos bolos implacáveis. Pela altura da nona palmatoada, já as mãos de Damião escorriam sangue, e ele mantinha a cabeça alta, sem desfitar o senhor, que por sua vez recrudescia a sua cólera ante esse olhar iracundo e viril. Quase ao fim da dúzia, a palmatória caía em cheio na posta vermelha, e o sangue saltava para os lados. Apenas para não exaurir o braço, que ainda ia empunhar o chicote, o Dr. Lustosa não foi além, reconhecendo que havia cumprido a primeira parte de seu programa, destroçando as mãos do cabra que lhe infelicitara a filha. - É para que aprendas a respeitar a filha do teu senhor. Mas isto é apenas o começo - preveniu, arquejante. E para o Chico Laurentino: - Agora, amarre ele no tronco, nu, com as mãos para cima, e de frente. vou descansar um pouco. Damião quis esboçar um passo, os olhos arregalados de pavor, com a repentina certeza de que ia ser castrado. Olhou os dois 99 negros, mudamente implorando que o protegessem; mas ambos baixaram a vista, intimidados pela presença do senhor, que sentara mais adiante, e já o João Brito se aproximava, meio contrafeito, para ajudar o feitor. - Tu também - advertiu o Dr. Lustosa, dirigindo-se ao Lourenço. - Ajuda o Chico Laurentino, antes que eu te mande meter no tronco. Num relance, antes que pudesse escapar, Damião se viu agarrado por quatro mãos potentes, ao mesmo tempo que o feitor, com um safanão, lhe descia as calças. Assim nu, veio andando de costas, quase arrastado, até o tronco de aroeira. Uma corda atou-lhe os pulsos por cima da cabeça, enquanto outra o cingia pelos pés, firmemente, tirando-lhe os movimentos, e ele tiritava de medo, com os bogalhos crescidos, olhando de vez em quando a navalha, que permanecia em cima do banco. De longe, alguns negros contemplavam a cena, estatelados, lívidos, atarantados, e várias crianças e mulheres tinham deixado a senzala, para olhar o castigo do Damião, atraídas pela novidade do espetáculo. Também da casa-grande vieram vindo outras negras, e ficaram também olhando, a distância, ao mesmo tempo que duas moendas pararam de ranger. E nisto Damião sentiu a primeira chicotada, que o apanhou de lado, à altura do rosto, resvalando para o ombro. Uma fúria desumana erguia o braço do Dr. Lustosa, e a taça subia, passando-lhe por cima da cabeça, para voltar logo depois, com a mesma cólera vindicativa. Cinco vezes a tira de couro torcido subiu e desceu, subiu e desceu, governada pelo braço brutal que lhe empunhava o cabo de madeira, e parecia antes crescer que abrandar, à medida que as lapadas se repetiam, retalhando a cara, o peito, o pescoço, os ombros, os quadris do negro, todo ele agora manchado de sangue. Uma nova chicotada desceu-lhe ao ventre e alcançou o membro, que balançava com a violência da pancada, e Damião tentou contrair-se, num urro de dor. - Agora tu aprendes, negro! - exclamou o Dr. Lustosa, tornando a erguer o braço. Estava pálido, muito pálido mesmo, com os lábios arroxeados, as veias do pescoço dilatadas, e toda a sua energia se concentrava na mão que vinha voltando com a taça em riste, descrevendo a curva da chicotada cega. E essa mão cruel pareceu perder de repente a sua força, afrouxando os dedos que seguravam o cabo do relho, enquanto o resto do corpo aluía, desequilibrando-se para a frente, sem dar tempo a que o feitor e os negros lheacudissem - para cair precisamente aos pés de Damião, que escancelou os olhos banhados de sangue, sem compreender direito o que se estava passando. 100 DEPOIS DE PROLONGADOS DIAS DE ESTIO, ineXplicáveis para aquela época do ano, as chuvas desabaram por semanas consecutivas, sem que o pesado céu cinzento clareasse uma só vez. Parecia mesmo um dilúvio. Pequenos riachos, que no verão se atravessavam com água um pouco acima dos tornozelos, eram agora rios agressivos, que arrastavam árvores, bois, cobras, galhos quebrados. No Maracaçumé, as águas tinham engrossado tanto, desde as nascentes distantes, que não se lhe viam mais as pedras do leito, cobertas pela enxurrada barrenta que descia dos contrafortes da serra de Piracambu. Essa enxurrada tinha saltado das margens, devastando matas, destruindo casebres, esbarrondando barreiras por entre o fuzilar dos raios e o estrondo das trovoadas repetidas. Já se falava em fim do mundo. - com pouco, não tem mais terra - observou o Chico Benedito, vendo a chuva recrudescer, depois de breve estiada. -- Tá parecendo - confirmou o canoeiro, de pé na proa, a manobrar a vara comprida com que livrava a canoa de bater nos barrancos e nas pedras do caminho, sem se distanciar muito da margem. Cedo, debaixo da chuva miúda, tinham deixado o trapiche, ao fim da trilha sinuosa que ia dar na Bela Vista. A cobertura da canoa, toda de pindoba trançada, pareceu-lhes um abrigo providencial, depois de três dias a cavalo nos lameiros da floresta, sobretudo para Damião, que ainda trazia as mãos enfaixadas, só podendo segurar as rédeas com a ponta dos dedos. Ao saírem da fazenda, o tempo dava a impressão de que ia suspender. Havia relampejado menos que nas noites anteriores; a chuva chegara a parar de cair, só ficando o vento esfuziante, que parecia não ter fim. Ao fim da madrugada, a estiada se alongou, entrando pelo dia. - O mio que nós faz é pruveitar o descanso da chuva - recomendou o Chico Benedito. Mas, antes do meio-dia, já em plena mata, com as montarias a chapinharem nos lameiros da picada, o tempo tornou a escurecer, e outra vez o temporal desabou, feio e forte. 101 - Agora, não adianta vortar. Tamo aqui, vamo em frente. Pra frente é que se anda - decidiu o Chico Benedito. O abrigo de couro, que lhe caía sobre os ombros largos, escorria água como calha, e assim também o chapéu de vaqueiro, amarrado por baixo do queixo. Damião, em silêncio, vinha logo atrás, na égua baia de passo firme, seguindo o caminho que o outro ia rompendo. Foi à noite, quando pararam no pouso do Riacho Fundo, diante do fogo aceso para esquentar o corpo e afugentar os mosquitos e besouros, que Damião perguntou ao companheiro: - O Doutôr foi enterrado na capela, Seu Chico? - Bem no meio defronte do altar, e com a roupa de Doutô, como ele deixou escrito no pape - replicou o outro, agachado, a picar o pedaço de fumo para o cachimbo. - Quem mais sentiu foi a Sinhá Veia. Ela, sim, chorou com vontade, quando eu e o João Brito deixamo o caixão fechado no fundo da cova. Dava pena. Quiseram levar ela dali, mas a veia não deixou. Ficou até o fim. Esperou Sinhá Miloca fechar a capela e fez questão de guardar a chave, que meteu no chaveiro. Damião esquece a noite à sua volta, a chuva que bate forte na palha da cobertura, os relâmpagos que se sucedem, e novamente se vê amarrado ao tronco de aroeira, enquanto levam o Doutôr para a casa-grande. Chico Benedito mete o fumo picado no cachimbo,põe o taquari na boca, depois se curva sobre a fogueira. E ainda envolto na fumaça da primeira cachimbada: - Foi Deus que te sarvou, Damião. Bota as mão pró céu. Se não fosse Deus, tu tava castrado, como os capado do chiqueiro. O Chico Laurentino ainda falou pra Sinhá Veia que ele fazia o serviço no lugar do Doutô. Ela mandou ele se calar. Magina se ela diz que sim pra peste do feito. Tu tava perdido. Chico Benedito dá outra cachimbada. E na mesma voz lenta e grossa, que lhe vem molhada do fundo da garganta: - Agora, toma juízo: não levanta mais os óio assanhado pra fia de branco. Fica no teu lugar. Tá aí no que deu. Prós preto cumo nós, não farta preta. Neste mundo de meu Deus, tem mais preta que branca. É só escoiê, Damião. O riso alto, que estala por cima do ruído da chuva nas árvores, alonga-lhe a frase, e ele demora o olhar em Damião, que se encolhe no banco de varas, já deitado para dormir: - Tou vendo que falei besteira. Tu não vai ser padre? Padre não percisa de muié. Muié de padre é cavalacanga. Padre Damião! Só vendo! Damião não sabe ao certo quando o velho Chico' Benedito graceja ou fala sério, debaixo do cabelo grisalho, cortado rente, e que 102 contrasta com o negro retinto de sua pele sem rugas. Deixa passar um silêncio, e confirma: - Eu vou mesmo ser padre, Seu Chico. - Já tou lhe tomando a bênção, Seu Vigário. Ambos riem, enquanto o vento sacode as árvores no alto das ramagens, por entre os relâmpagos que se repetem. Desta vez é o Chico Benedito que recolhe o riso: - A carta de Sinhá Veia pró Sinhô Bispo tá bem guardada, Damião? Inté me assustei. Tu guardou dentro da mala, bem no fundo, pra não moiá? Antão, tá bem. A vida inteira tu não vai te esquece de Sinhá Veia. Abaixo de Deus, tu deve a vida a ela. Coração grande. Mais grande do que ela. Por vontade de Sinhá Dona e de Sinhá Miloca, tu não saía da cafua. Morria lá dentro, como morreu o Bento, como morreu o Simeão, gente que tu não conheceu. Sinhá Veia foi que mandou te tirar de lá. Bateu cum pé. Falo arto. Eu ouvi. Damião aprova com a cabeça as palavras do Chico Benedito, enquanto as paredes se fecham à sua volta, na manhã alta, e é tudo escuro diante de seus olhos feridos. Doem-lhe as mãos, doem-lhe as costas, doem-lhe os ombros, e também o seu pênis, que a ponta do chicote feriu. Ao deixar-se cair na terra do chão, sente que o sangue lhe desce do peito, das coxas, do rosto, dos braços, do ventre, e vai-se coagular à altura das nádegas. Ele ainda não sabe que o senhor está morto. Viu que lhe levaram o corpo, gritando pelo Simão Quintino, que sabia benzer e afugentar as doenças. - Depressa, Quintino! Ainda amarrado, Damião viu passar o velho preto capenga, cego de um olho, a arrastar a perna curta, sobraçando o seu embrulho de ervas. O mundo se escurece diante de suas retinas atordoadas; mas ele ainda percebe quando o Simão Quintino entra na casa-grande pela porta da cozinha, seguido pela Andjeza Bibiana, que também sabia rezar. Depois, sentindo que as forças lhe faltavam, pendeu a cabeça, como o Cristo da capela, e só deu por si quando o Chico Benedito o trazia nos braços, a caminho da senzala. - Nada de senzala! Ele vai é pra cafua! - gritou o Chico Laurentino, saindo da casa-grande, ainda de chapéu na mão. E foi na cafua que o Chico Benedito o deixou, depois de lhe dizer, para animá- lo: - Deus tá te ajudando. Sentado na poça de sangue, Damião ouviu correr o ferrolho da porta, depois o estalo do cadeado, e perdeu a noção das horas, vencido pelas dores e a exaustão, o espírito meio confuso, uma vontade invencível de cerrar os olhos, como se voltasse a desfalecer. Chegou a pensar se a morte, naquele momento, não era preferível. Conseguiu dormir ali mesmo, a despeito das dores que o retalhavam, conservando as mãos com a palma voltada para cima e descansadas nos joelhos. Só despertou quando já cantavam os galos na alvorada do novo 103 dia. Entreabrindo as pálpebras, viu um traço de luz por baixo da porta e um vislumbre de claridade acima das paredes. Dores por todo o corpo. E o mesmo desânimo. Levou uns momentos parado. - Tenho de reagir - acabou por dizer-se. - Assim é que não posso ficar. Ao tentar levantar-se, esqueceu de repente as mãos dilaceradas. Chegou a apoiar- se nelas. E a dor que de repente o penetrou, subindo-lhe pelos braços também retalhados, fê-lo cerrar os dentes, no esforço para conter o grito que lhe subiu à boca ressecada. Tentou devassar as sombras circundantes. Onde encontraria água para beber? Só viu sobre o montículo de terra os dois olhinhos do rato, a espiá-lo de seu canto, com as patinhas para a frente. A sede apertando, Damião tornou a pretender levantaf-se, agora sem o apoio das mãos. Retraiu as pernas, alteando os joelhos, e foi obrigado a imobilizar-se, até que se atenuassem as novas dores do corpo em movimento. Afinal, apoiando-se na planta dos pés, pôde erguer-se, e outra vez as dores se açaimaram, com intensidade maior. Pôs-se a soprar o peito, as mãos, os braços; mas o rosto também lhe doía. Ensaiou uns passos, com a vista turva, e logo parou, nauseado, buscando equilibrar-se. Dir-se-ia que todo o seu corpo era uma chaga viva. Sentiu vontade de urinar, mas a urina não lhe veio, com a dor que lhe apertava os testículos. Ficou imóvel, a testa apoiada na parede, as pernas abertas. A sede que o abrasava era tanta que pensou em beber a própria urina. Como faria para recolhê-la, se não podia valer-se da concha das mãos? A sensação de que uma labareda o queimava por dentro, subindo-lhe para a garganta e o céu da boca, voltara a torturá-lo, mais intensa, mais obsessiva. Tornando a sentir-se tonto, amparou as costas na parede. Por que não volvia a sentar-se? Devagar, devagarinho, fletiu as pernas, deslizando o dorso na aspereza do barro. Onde estariam as suas calças? Já sentado, tateou o chão à sua volta com a costa das mãos, e não tardou a encontrá-las perto da porta. Conseguiu rasgá-las com os dentes, segurando-as com os punhos, e envolveu as mãos nas tiras de pano, com a esperança de que assim pudesse preservar as palmas dilaceradas. Sempre sedento, tentava umedecer os lábios com a ponta da língua, e logo cerrava a boca, sentindo-a rachar-se. Procurou aquietar-se, de pernas estiradas, tentando ganhar tempo na intermitência dos cochilos. Mas era debalde: a sede agora lhe tirava o sono, e ele olhava em redor, tentando descobrir um filete de água. Se dispusesse das mãos, cavaria a terra até encontrá-la. - E agora, meu Deus? No entanto, em meio de sua agonia, esboçava um sorriso, agradecido à misericórdia de Deus, enquanto revia a navalha em cima do banco e o senhor a erguer o braço que empunhava o chicote. Como a sede teimasse, esbraseando-lhe a boca, ensaiou cavar a terra com os dedos dos pés. Sentia-se a ponto de endoidecer. Por fim, arrastou-se 104 até à porta, e entrou a repetir, para ver se alguém o ouvia pelo lado de fora: - Água. Água. Por volta do meio-dia, quando maior era o calor dentro da cafua, ouviu passos junto da porta. E logo a voz do Tônico Sarará: - Tou vendo como te levo água. Espera. Tem paciência. Daí a pouco Damião viu que um talo de folha de mamoeiro se insinuava por baixo da porta. Não tardou muito, a água entrou a borbulhar pelo orifício da taboca, quase ao mesmo tempo que ele se deitava ao comprido do solo, chupando-a aos gorgolões. - Bebe devagar - recomendou-lhe o outro, na mesma voz sussurrada. - Tou pruveitando que todo mundo tá na capela vendo o enterro do Doutô. Só aí soube que o senhor tinha morrido. Veio-lhe então uma sensação repentina de alívio. Parecia-lhe que a sua vida tinha mudado. Deitado na terra úmida, continuou a chupar a água, molhando o rosto, o pescoço, o peito, e ainda a sede não se lhe havia passado quando sentiu a água secar, quase ao mesmo tempo que o talo era puxado para fora. Deixou-se ficar deitado, sem forças para levantar-se, a boca roçando a terra. - Deus continua a me ajudar - reconheceu. Durante a tarde, não ouviu um só dos rumores habituais dafazenda. Mas percebeu o movimento dos parentes e amigos que tinham vindo para o enterro e agora estavam de volta. Até tarde repetiu-se o galope dos cavalos. Depois a noite fechou, e o silêncio se estendeu à casa-grande e à senzala, só restando o ruído do vento nas árvores. Pelo meio da noite, Damião supôs ouvir, por baixo da porta, um ruído apressado de terra revolvida, como se um tatu estivesse a cavar ali o seu buraco. E novamente reconheceu a voz do Tônico Sarará: - vou passar tua comida - avisou. - Depois, tapa o buraco daí, que eu tapo daqui. Damião ensaiou tocar a terra com as mãos protegidas pelas tiras das calças, e não agüentou as dores. Recorreu mais uma vez aos punhos, e pôde levar à boca um pedaço de bolo de mandioca. Enquanto mastigava, ia atirando na vala a terra mexida, com a planta do pé direito, até sentir o chão igualado, e mais uma vez sorriu, com a certeza de que, assistido assim pelo Tônico Sarará, suportaria por largo tempo a reclusão da cafua. No entanto, ao fim de dezesseis dias, tinha os nervos tensos, só pensando em livrar-se dali pela fuga, tão logo pudesse cavar a terra com as mãos. Todas as manhãs, ele as experimentava, para ver se já podiam- suportar o contacto com a terra. Ainda lhe doíam, e muito. Em alguns pontos, as feridas abertas exalavam mau cheiro, e a dor era forte, quase insuportável, sempre que ele ensaiava abrir e fechar os dedos. Mesmo assim, repetia os exercícios. Por outro lado ia 105 crescendo na cafua o odor da urina e das fezes acumuladas. Por mais que abrisse valas fundas no chão com a ponta dos pés, para ali recolher os excrementos, o fedor subia ao lume do solo, e empestava o ar à sua volta. Seu cabelo crescido e sua barba por fazer tinham-no envelhecido. Apalpando o rosto com a costa das mãos, sentia a face funda, as órbitas cavadas, os pômulos salientes. O que mais o atormentava era a inhaca de seu próprio corpo. Sentia-se feder, principalmente nas axilas. No estado em que se achava, somente um demorado banho afugentaria de si o bodum nauseante, e era em vão que procurava habituar as narinas à catinga de chiqueiro que adensava o ambiente. Foi pela madrugada que as chuvas voltaram. Primeiro os relâmpagos, depois os golpes de ventania, e por fim o toró desabando, como se o céu viesse abaixo. Damião já estava acordado quando otempo mudou. Deitado no chão, aspirou o primeiro cheiro da terra molhada. Não tardou que a água se insinuasse por baixo da porta para dentro da cafua. E ele, no escuro, abriu com os pés o rego para ela entrar, saindo pelo outro lado. Quando a luz da manhã rompeu, atenuando as sombras do cubículo, Damião desprendeu as tiras de pano que lhe envolviam as mãos e lavou as feridas na água barrenta que ia passando. Depois, utilizando-se da costa das mãos, molhou os sovacos, o tronco, o rosto, e acabou por sentar na vala para que a água corrente o lavasse. De tarde, num dos intervalos da chuva, distinguiu uns passos pesados nos lameiros do chão. Pelo tinido das esporas, adivinhou o Chico Laurentino. Ouviu mexer no cadeado, depois no ferrolho. Quando a porta se abriu, projetando a luz da tarde alta para o interior da cafua, Damião pôs a mão diante dos olhos, protegendo-os contra a claridade. Nos primeiros momentos, não se moveu, agachado contra a parede. - Saia - ordenou-lhe o feitor. - Estou sem roupa. Preciso de uma calça. Devagar, apoiando-se na parede, ficou de pé. A figura magra, só pele e osso, parecia ter crescido, e mostrava os olhos fundos, a barba rala cobrindo-lhe a ponta do queixo, o bigode falhado por cima dos lábios. Ao ensaiar os primeiros movimentos, no esforço para levantar-se, sentiu reavivar-se o mau cheiro que ainda se desprendia de seu corpo nu. Para manter-se de pé, abriu bem as pernas, com os cotovelos firmados na parede. Num começo de tontura, o chão oscilou-lhe, ao mesmo tempo que a figura do Chico Laurentino se toldava no vão da porta. com esforço, enchendo bem o peito, conseguiu vencer a vertigem, enquanto passava na cintura, apenas com a ajuda do polegar e o indicador de ambas as mãos, a toalha que lhe tinham trazido para cobrir-se. Embora quisesse rir para a luz que o envolvia, mantinha- se sério, andando devagar, passo a passo. 106 - Saia, já lhe disse que saia - trovejou o feitor, numa voz impaciente. Ele deu outro passo inseguro, mais outro, sempre a apoiar-se na parede com o ombro ou o cotovelo, e saiu por fim na moldura da porta, com a sensação do doente que deixa o leito no seu primeiro dia de alta, ensaiando a primeira volta insegura no corredor do hospital. Sentiu bater-lhe no rosto a chuva fina, e viu de longe a mãe e a irmã, que lhe acenavam chorando, na companhia de outros negros, à entrada da senzala. Comovido, tratou de reprimir a emoção, não sabendo que direção ia seguir. - Vá-se banhar e vestir; depois a Sinhá Velha quer lhe falar adiantou o feitor, fechando a porta da cafua. Ele foi andando, de passo ainda trôpego, o rosto mais aberto. O Chico Benedito, saindo do meio dos outros negros que o olhavam da porta da senzala, segurou-o pelo braço: - No começo é assim mesmo. Damião sentiu que o esforço o fatigava, mas prosseguiu, pisando firme, a despeito da curiosa sensação de que um bando de agulhas lhe picavam as pernas dormentes. Parou um momento, novamente tonto, a vista escura. E aí foram a mãe e a irmã que o ampararam. Mais tarde, ao subir os degraus do alpendre, já de cara raspada, banhado, a roupa limpa, para falar com a Sinhá Velha, a sua respiração ainda era curta e repetida, denunciando-lhe a fraqueza. Estacou no patamar, e deu com ela: parecia adormecida na cadeira de balanço, a cabeça branca apoiada no recosto de palhinha, as mãos no regaço, os pés envoltos em grossas meias de algodão. A idade avolumara-lhe a papada, dera-lhe uns fios doidos de barba grisalha pelos lados do queixo. Mas tinha muito do filho - na testa, nos olhos empapuçados, nas rugas do canto da boca. Dormitava de lábios entreabertos, cedendo ao leve acalanto da chuva, que não parara de cair. E erguendo as sobrancelhas, com ar de surpresa: - Estavas aí há muito tempo? - perguntou ela, endireitando-se na cadeira, os olhos em Damião. - Cheguei agora mesmo - mentiu ele. E como trazia as mãos envoltas no curativo que o Simão Quintino tinha acabado de fazer, escondera-as por trás das costas, constrangido. Mas seu rosto ainda conservava, bem à mostra, por cima dos olhos, na face esquerda, na têmpora direita, a marca nítida do relho do senhor. Também no pescoço, descendo para o peito, lá estava, em diagonal, o risco da taça enfurecida. Sinhá Velha, de vista levantada, firmou-a nos olhos do negro, que também a fitava: - Damião, você sabe que foi por sua causa que meu filho morreu. A Miloca e a Sinhá queriam vender você para Donana Jansen, em São Luís. Eu não deixei. Quero lhe pagar o mal com o bem. Aqui você não pode mais ficar. Tem de ir embora, e para longe. Já falei 107 ao Chico Benedito para levar você daqui. Quanto mais depressa você for, melhor. Ele entrega você ao Senhor Bispo, com uma carta minha. Não se preocupe com a sua mãe e a sua irmã. Elas continuarão a ser bem tratadas. Pelo menos enquanto eu for viva. As longas chuvas contínuas retardaram-lhe a partida. Foi melhor assim. Se de todo ainda não podia usar as mãos, que persistiam em doer-lhe sempre que tentava segurar algum objeto, em compensação já se lhe tinham fechado, com as ervas do Simão Quintino e as rezas da Andreza Bibiana, muitas das feridas do peito e dos braços. Podia andar firme, as tonturas tinham desaparecido. Na primeira estiada, o Chico Benedito preveniu-lhe: - Amanhã a gente sai daqui, cedo. Sinhá Veia já me deu a carta para o Senhor Bispo. É mio é a gente sair com o dia clareando. Agora, ali no pouso do Riacho Fundo, olhando o fogo lutar com as achas molhadas, Damião não precisa se Voltar para saber que o Chico Benedito continua a pitar o seu cachimbo, sentado na tábua corrida que duas pedras seguram. A chuva não pára de fustigar a cobertura depalha do rancho, enquanto a enxurrada vai descendo pelos meandros da mata. As duas éguas, amarradas numa das traves que seguram a cobertura, aproximam-se do fogo, protegendo-se contra os insetos e a umidade da noite. E sempre o vento a zinir por entre as altas ramagens. - Foi mesmo a Sinhá Veia que fez questão de fechar a carta. A Geminiana trouxe o pedacinho de lacre, a velha esquentou a ponta do pedacinho na luz da lamparina e fechou tudo bem fechado; despois me entregou a carta, dizendo pra eu só entregar ela na mão do Sinhô Bispo. E o Chico Benedito remata a fala pausada com uma pergunta repentina, que faz o Damião olhá-lo de frente: - Me diz uma coisa, Damião: tu te despediu de Sinhá Veia? - Ela não quis me receber. Fui à casa-grande ver se falava com ela. Falei com a Geminiana, e ela voltou dizendo que a Sinhá Velha não queria mais me ver. Que eu fosse embora. Que desaparecesse da fazenda. - Ha. Se foi assim, tá bem. Tu fez o que devia. Depois que o Chico Benedito guardou o cachimbo e se estendeu ao comprido da tábua, Damião ainda ficou largo tempo no outro banco, pensando na carta fechada. Que teria escrito Sinhá Velha ao Senhor Bispo? E por que aquele cuidado de lacrar a carta, com o sinete do Dr. Lustosa? Em redor do rancho, de mistura com o ruído da chuva e do vento, o coaxar dos sapos e das rãs nos charcos dos arredores. De vez em quando um dos sapos saltava para dentro do rancho, e ali ficava, agachado, de olhinhos pontudos. Ainda bem que o vento se encarregava de avivar as brasas da fogueira, atenuando o frio da noite alta. 108 Pela manhã, quando Damião despertou, já o Chico Benedito mascava o seu pedaço de fumo, com as éguas encilhadas, preparado para continuar a longa viagem. O tempo levantara um pouco. Mas, em redor, continuavam a correr os rios das enxurradas, dando a impressão de que toda a mata era um, labirinto de cursos de água barrenta, que iam saltando por cima das raízes das árvores. Em certos pontos, tinham-se formado lagos extensos, difíceis de atravessar, sendo preferível contorná-los, embora alongando a caminhada. Antes de saírem, Chico Benedito quis ver como iam as mãos do companheiro. Tirou- lhes devagar as ataduras, e abriu o sorriso, vendo que as feridas estavam fechadas. -Eu não tava acreditando que elas iam sarar. Levanta as mãos pró céu, Damião. Mas tem cuidado com elas. Em riba das feridas, tá só uma pele fininha. Tu vai levar muito tempo sem poder pegar nas coisa. Pra pegar, só com as ponta dos dedo. E tornou a envolvê-las nas tiras de pano, depois de untá-las mais uma vez com o óleo que o Simão Quintino recomendara: - Deixa passar mais uma semana. Assim tu não te esquece de ter sentido nelas. Foi só na canoa, descendo cautelosamente o rio cheio, sempre com a chuvinha teimosa tamborilando na cobertura de pindoba, que o Chico Benedito voltou a olhar as mãos do Damião: - Agora, não precisa botar mais os pedaço de pano. Tão saradas memo. Parece mentira que tu ficou bom. Retalhadas de cicatrizes, as palmas tinham perdido os calos e as linhas de outrora; eram lisas, com pontos vermelhos, um pouco repuxadas nos cantos, e ainda doíam, muito sensíveis a qualquer movimentação dos dedos. O rio agora é largo. As águas barrentas não permitem ver as pedras do leito nem os cardumes de piranhas que rabeiam rio acima ou rio abaixo. Damião conhece essas águas viageiras, sempre lerdas, sem pressa de chegarem ao fim de seu caminho. Ele sabe que, por baixo delas, misturados à areia do fundo do leito, estão os ossos de seu pai, e é como se tornasse a ver, boiando na torrente que a chuvinha encrespa, a mancha de sangue que lhe ficou na memória, de mistura com o estrondo dos tiros. E enquanto o canoeiro, com a ponta da vara, desvia a canoa da sinuosidade de um barranco solapado, ele pergunta ao companheiro: - Quando a gente vai chegar a São Luís, Seu Chico? - Bota tempo nisso. Daqui a mais um pouco a gente muda de canoa, pra fugir da cachoeira. E lá mais longe, quando o rio fica mais fundo, passa pró barco. Aí a viagem é mio. No barco, depois que a gente sai do rio, vem o marzão bonito, que tu nunca viu. Te prepara pra encher os óio. Quem nunca viu o mar, como tu, fica banzando, de boca aberta. 109 Olhando a canoa avançar, rio abaixo, Damião alonga a vista, de pálpebras entrecerradas, como se quisesse alcançar mais longe ainda o caminho cheio de voltas das águas barrentas. Na verdade ele está vendo a figura miúda do Barão, no terreiro do quilombo, e que lhe diz, com a mão espalmada sobre a capa de sua velha Bíblia: - Damião, o mar é do tamanho de Deus: não acaba nunca! NA ESQUINA DO LARGO DO QUARTEL, Damião tornou a parar, com o cigarro entre os dedos, à espera de alguém que lhe cedesse o lume. Mais uma vez, antes de passar para a calçada fronteira, olhou para trás. Lá adiante, o lampião sonolento, já quase apagado. No céu estrelado, a mesma fatia de lua nova, a espreitá-lo por cima dos telhados escuros. E o vento da noite a varrer a rua com o seu sopro constante, enquanto voltavam a bater, mais fortes, mais frenéticos, os tambores rituais da Casa-Grande das Minas. Depois de levar o cigarro ao canto da boca, espraiou o olhar pela imensidão do largo, rodeado de casas fechadas, sem vivalma. De um lado a outro, a massa compacta do prédio acachapado do Quartel do 5.° Batalhão de Infantaria, com o soldado de sentinela quase oculto pela pilastra. Longe, no começo da Rua dos Remédios, a igreja de Santaninha, caiada de novo. Conhecera aquela praça, já fazia mais de sessenta anos, quando ali ainda existia um bonito chafariz da Companhia das Águas. Que fim teria levado o presépio campal do Tomás Rosas, armado também ali no começo do século? O que se via agora eram as árvores plantadas pelo Mariano Lisboa, e os canteiros floridos, e os bancos de ferro, e os lampiões de gás. Dava gosto sentar naqueles bancos, horas inteiras, nas noites de luar. - E com o Quinquim tocando no violão as serenatas de Raiol... Damião repõe no seu lugar a praça de outrora, mais singela, mais romântica, apenas calçada com pedras de cantaria, e onde se dançavam as cheganças, os fandangos e os baralhos, nos três dias de carnaval. Atravessa a rua, no mesmo passo firme, e sente que as velhas pernas lhe pedem uns minutos de descanso. Senta-se no primeiro banco, em frente à casa do Maneco Jansen, e volta a ver os 110 dois corpos, como se ainda estivesse no botequim da esquina, debaixo da luz do candeeiro. - Pelo paletó de xadrez, o preto deve ser gente de fora conjetura, novamente distinguindo, na claridade escassa, a mancha do sangue nas costas do morto. - com certeza levou a facada depois que o outro foi assassinado. O criminoso parece que é um só. Primeiro, matou o dono do botequim com uma paulada, utilizando-se da tranca da porta; em seguida, quando o preto ia sair, talvez para pedir socorro, enfiou-lhe a faca. Nos dois casos, agiu para roubar. Tirou o cigarro da boca, voltou a recolhê-lo ao bolso do paletó, satisfeito com a limpidez de seu raciocínio. Esteve um momento com as mãos nos joelhos, procurando pensar no trineto, que talvez já houvesse nascido, mas os dois corpos teimaram na sua memória. No esforço instintivo para livrar-se deles, sacudiu os ombros. Era bastante velho para saber que esta vida é cheia de horrores. Nem ele tinha mais idade para mortificar-se com as tragédias alheias. Bastavam as que Deus lhe dera. E nisto reparou que uma figura alta, forte, barba cerrada, olhos levemente estrábicos, ia até perto de uma das janelas, na sala do Palácio do Bispo, e dali voltava, vermelho, fazendo estremecer as velhas tábuas do soalho com seus passos irritados. Mais perto, parou diante de Dom Manuel, sacudindo na mão iracunda uma folha de jornal amarfanhada: - Se Vossa Reverendíssima não leu este Estandarte, deixou de tomar conhecimento de um dos artigos mais reles que já se publicaram no Maranhão. Nunca vi tanto ódio em letra de imprensa. O papel parece que foi impresso, não com tinta, mas com bílis, e bílispodre. Se me permite, eu leio o artigo para Vossa Reverendíssima. Dom Manuel pôs-se a rodar os polegares, com uma fisionomia mais doce, a cabeça meio inclinada, sentado na sua cadeira austríaca: - E o meu caro Presidente acha que vale a pena dar-se esse cuidado? - Sim, sim. Vossa Reverendíssima, como titular da Diocese, precisa conhecer toda a miséria de que são capazes os meus inimigos - apressou-se em replicar o Dr. Eduardo Olímpio Machado, arrastando uma cadeira para perto do Bispo. - Se é assim, faça-me mais esse favor - concordou Dom Manuel, puxando as mãos para o peito, os olhos baixos, como a concentrar toda a sua atenção na orelha esquerda, que ouvia melhor. O Presidente da Província, já sentado, torceu um pouco o tronco, de modo a recolher mais luz para a folha de jornal. - A mofina é longa, mas não vou ler tudo - advertiu. - Um trecho basta: "Os exemplos de imoralidade pululam nesta malfadada Província, depois que as rédeas do Governo caíram nas mãos do Sr. Eduardo Olímpio Machado. Não bastavam, para assinalar a mais torpe e corrupta das administrações, os excessos e desatinos de todo o gênero, as contínuas prevaricações, os esbanjamentos dos dinheiros 111 públicos, as desgraçadíssimas nomeações de homens indignos e corruptos para os mais importantes cargos, a proteção dada a criminosos conhecidos como tais, a conivência com poderosos assassinos, etc. Era preciso que os casos de ofensa aos nossos costumes e às nossas virtudes domésticas viessem esmaltar o belíssimo e variado quadro de nossas felicidades. É glória que ninguém poderá tirar do Sr. Olímpio Machado a de haver poderosamente contribuído para implantar e fazer medrar entre nós a doutrina do comunismo, por ele correta e aumentada." O Presidente tirou a vista do papel para olhar o Bispo: - Vossa Reverendíssima entendeu a última frase? Nem eu. Mas ouça agora o motivo real dos insultos que me são dirigidos por este pasquim. E voltando a ler: "No dia 8 do mês próximo passado, uma menina pertencente a uma das principais famílias desta cidade foi tirada por justiça da casa de seus pais pelo Sr. Dr. Domingos da Silva Porto, amigo íntimo e privado do Sr. Olímpio Machado, o qual, em paga dos jantares e pagodes do bom Gosto, o elevou à posição de Vice-Presidente da Província e Comandante Superior da Guarda Nacional." O Dr. Olímpio Machado tornou a levantar-se, muito vermelho, quase apoplético. E curvando-se, a dois passos do prelado: - É ainda o caso da Ana Amélia Ferreira Vale. Vossa Reverendíssima sabe de tudo, não? Pensei que já soubesse. O nosso Gonçalves Dias, amigo íntimo do Dr. Teófüo Leal, apaixonou-se por uma cunhada deste, a Ana Amélia, e a pediu em casamento à Dona Lourença Vale, mãe da moça, e que Vossa Reverendíssima também conhece. O Gonçalves Dias não é um homem qualquer - é o maior poeta do Brasil e amigo pessoal do Imperador. O Maranhão não tem glória mais alta. Pois nada disso teve o menor significado para a nossa Dona Lourença, diante deste fato, de que o Gonçalves Dias não tem culpa: - ser ele mestiço e filho bastardo. E respondeu ao poeta, numa carta seca, com um não redondo. Não dava a filha a um mestiço. Mas a verdade é que o Gonçalves Dias, se quisesse, podia vir a São Luís, e levar a Ana Amélia, que estava disposta a fugir com ele. E não foi isso que fez. Humilhado, guardou a mágoa. E ao chegar ao Rio, casou numa das mais importantes famílias da Corte. A Ana Amélia, coitada, não perdoou a família. E quando o Domingos Porto, que é também bastardo e mestiço, lhe arrastou a asa, não hesitou em casar com ele, amparada pela Justiça. Vossa Reverendíssima já sabe que o casamento dela, aqui em São Luís, foi um deus-nos- acuda. Parecia que o mundo estava vindo abaixo. As amigas de Dona Lourença passaram a andar de preto, solidárias com o luto fechado da família Vale. O pai da Ana Amélia, instigado por Dona Lourença, foi ao cartório do Raimundo Belo e deserdou a filha, sob a alegação de que a moça 112 tinha casado com o neto da negra Eméria, antiga escrava do Coronel Antônio Furtado de Mendonça. O Dr. Olímpio Machado estava agora debruçado sobre a cadeira, com os antebraços apoiados na madeira do espaldar. E procurando os olhos de Dom Manuel, depois de uma pausa: - Vossa Reverendíssima já sabia desse fato? Asseguro-lhe que é absolutamente verdadeiro. O Domingos Vale deserdou a filha, por escritura pública, apenas porque o genro, Vice-Presidente da Província e Comandante da Guarda Nacional, é neto de uma escrava! Coisas deste nosso Maranhão, Senhor Dom Manuel da Silveira! Coisas deste nosso Maranhão! E endireitando o busto, após outra pausa: - Vossa Reverendíssima pensa que a família Vale se deu por satisfeita? De modo algum. Fez mais. Decidiu levar o Domingos Porto à ruína, na sua casa de comércio. De um dia para o outro, o Porto se viu com todos os seus créditos cortados. Ninguém quis mais negociar com ele. O resultado foi a falência, e o pobre do Porto obrigado a sair do Maranhão as pressas, para não cair nas unhas de seus perseguidores! Um horror, Senhor Bispo! Um verdadeiro horror! Eu, como Presidente da Província, nada pude fazer para amparálo. Só encontrei negativas. Era a cidade inteira contra um homem. E tudo por quê? Porque o Domingos Porto, que é um homem de primeira ordem, culto, educado, finíssimo, tem a desgraça de ser neto de uma escrava! Que é que Vossa Reverendíssima me diz a isto, Senhor Dom Manuel? Em que século estamos? E que terra é esta? Na luta, estou levando as sobras, com os insultos deste pasquim! Na saleta contígua, sentado num comprido banco de pau, de ouvido atento à conversa da sala, Damião esperava a vez de ser atendido para entregar ao Senhor Bispo a carta da Sinhá Velha. O Chico Benedito tinha-o deixado à porta do Palácio: - Sinhá Veia mandou eu te deixar aqui. Daqui eu vorto. Sobe a escada, o Bispo tá lá em riba, diz que tu quer falar com ele. Fica com Deus. E Damião, atarantado: - A gente não volta a se ver? - Deus é que sabe. Hoje mesmo pego o barco que vai pró Turiaçu. Damião, parado à porta do sobrado, a segurar pela alça a sua maleta de couro, esteve para pedir ao velho que esperasse o resultado de seu encontro com o Bispo; mas, não querendo deixar transparecer a inquietação que o afligia, limitou-se a segui-lo com os olhos assustados, até vê-lo desaparecer ao fim do Largo do Palácio. Agora estava só, na cidade desconhecida, entregue a si mesmo. Tinha no bolso uns dobrões de cobre e duas moedas de prata, que a mãe lhe dera, à porta da senzala, para a eventualidade de alguma despesa. Como nunca tivera oportunidade de lidar com dinheiro, ainda não 113 sabia o que havia de fazer com ele. Seria o que Deus quisesse. com o tempo, venceria as dificuldades de seu caminho. Mais cedo ou mais tarde teria de dispensar a ajuda alheia. Ao pé da escada, receou subir com a maleta. Olhou em volta, buscando um lugar onde deixá-la. Acabou por levá-la consigo, escada acima, já com a carta na mão. Lá no alto, não encontrou a quem falar. Ouvindo vozes na sala, achou melhor esperar no patamar, com a maleta ao pé da cadeira de couro tauxiado que ladeava um consolo. Intimidado pelo ambiente estranho, que em nada se parecia com o da casa-grande, na fazenda, permaneceu de pé, sem saber se podia sentar ou não. O menor ruído, vindo do interior do sobrado, punha-o de sobreaviso, de mãos frias, parado junto à maleta. Passara dois dias a bordo de um barco e não se cansara de contemplar o mar imenso, a perder de vista, muito verde aqui, azul lá longe, e que parecia um ser vivo, que se movia e arquejava. Por que não havia de reconhecer que lhe tivera medo? Mas soubera conter os olhos crescidos, e viera olhá-lo de perto, recebendo no rosto pasmado os borrifos de água que as ondas arremessavam para dentro da embarcação. Depois, na luz sangüínea da alvorada, ao lado do Chico Benedito, que lhe ia explicando tudo, assistira à gradativa aparição de São Luís, meio escondida numa névoa violácea, depois mais nítida,com seu casario equilibrado no flanco das ladeiras, as janelas escancaradas para a claridade matutina. Quando pisara na Rampa de Palácio, quase caíra, não sabendo como dividir a atenção - entre os pés, que pisavam as pedras do calçamento, e os olhos, que tudo queriam ver, ladeira acima. Instintivamente segurara o braço do companheiro, em busca de apoio. E só lá no alto, já no Largo do Palácio, tinha-se desprendido do Chico Benedito. Ainda bem que, não estando o Bispo no Paço pela manhã, tivera tempo de dar um giro pelos arredores, levado ainda pelo companheiro, e assim começara a familiarizar-se com a vida da cidade - o ruído das ruas, as carroças, as pipas de água, as carruagens, os pregões dos vendedores ambulantes, os sobrados rente às calçadas, os mirantes, as lojas, as pessoas debruçadas nas janelas, e tudo o deslumbrara. Agora, entregue a si próprio, voltava a sentir-se atônito. Afinal, decidindo-se, resolveu sentar, com a carta na mão. Ouviu o chão ranger, na peça vizinha, e sentiu que seu coração se acelerava, ao mesmo tempo que se lhe esfriavam as mãos. Um senhor gordo, de beiço caído, olhos mortos, apareceu no vão da porta. E Damião, de pé, apresentando-se: - Estou chegando de Turiaçu, e trago uma carta de Sinhá Lustosa para o Senhor Bispo. O outro adiantou a mão fofa e cabeluda: - Se é só para entregar a carta, deixe ela comigo. 114 - Tem resposta - replicou Damião, apertando mais a carta, como no receio de que o gordo lha quisesse tomar. Mas este, em vez de lhe tomar a carta, segurou-o pelo braço, levando-o por um corredor comprido. E deixando-o na saleta: - O Senhor Bispo está na sala aqui ao lado, em conferência com o Presidente Olímpio Machado. Depois que o Presidente sair, o amigo entra e fala com Dom Manuel. Sente-se neste banco, para esperar a sua vez. Deu-lhe as costas - umas costas de homem fatigado, muito curvas, e que pareciam forçar-lhe a cabeça grisalha para o chão - e recomendou, antes de tornar a oprimir as tábuas do soalho com seus passos preguiçosos: - Não demore muito. O Senhor Bispo ainda vai sair. - Sim senhor. Damião sentou na ponta do banco, juntando os pés e os joelhos, com a maleta de couro ao seu lado. Na posição em que se achava, via uma parte da sala contígua, e não tardou a dar com o senhor alto, meio estrábico, que ia até à janela e voltava, com um jornal na mão. Enquanto lhe ouvia a voz agastada, observou que, na casa velha, de caiação falhada, quase tudo estava a pedir conserto urgente. Em alguns pontos do forro descascado, a tábua cedera, mostrando as telhas sobre os caibros. As marcas das goteiras sujavam o chão de tábuas corridas. Dois baldes, um em cada ponto, esperavam a chuva cair. Na janela que abria para um quintal arborizado, uma rótula fora pregada, à falta do ferrolho respectivo. No entanto, contrastando com essas mostras de ruína, havia limpeza no soalho, nos móveis, na imagem de Nossa Senhora da Luz que guarnecia um consolo do tempo de Dona Maria L Tornando a alongar os olhos para a sala, observou que Dom Manuel, ao responder ao Presidente Olímpio Machado, falava-lhe em segredo, numa voz cochichada. Damião só lhe apanhava uma ou outra palavra solta, que não fazia sentido. Acabou por se fixar, mais uma vez, no envelope que ia entregar ao Bispo. Que diria a Sinhá Velha naquela carta? E por que o cuidado em lacrá-la? Se era em seu favor, por que não a mandara aberta? No barco, assim que o tempo levantara, andara a olhá-la contra a luz, para ver se conseguia ler-lhe ao menos um trecho; mas o linho encorpado da sobrecarta apenas deixava perceber a mancha leve da escrita nas pautas do papel epistolar. Bem podia ser que a Sinhá Velha, ainda com a ferida aberta pela morte do filho, o houvesse despachado a ele, Damião, para ser passado adiante, no mercado de negros de São Luís, revertendo o dinheiro da venda para a caixa da Diocese. - Não, não pode ser - argumentava consigo mesmo, guardando a carta na maleta de couro. - Sinhá Velha não ia fazer isso comigo. No fundo, ela sabe que eu estou inocente. E nisto voltou a ouvir a voz cheia do Dr. Olímpio Machado: 115 - O resto do Brasil - fique Vossa Reverendíssima sabendo, para sua orientação como Bispo da Diocese - não leva a palma ao Maranhão, em matéria de preconceito de cor. Ou se é branco, e tem todas as graças e regalias, ou não se é, e tem todas as desgraças. Pode-se ser o maior poeta do Brasil, bacharel em Coimbra, membro do Instituto Histórico e amigo pessoal do Imperador, como o nosso Gonçalves Dias, e isso não vale coisa alguma, aqui no Maranhão, se o pobre de Cristo nasceu mestiço. Vossa Reverendíssima não faz uma idéia da quantidade de cartas anônimas que recebo diariamente no Palácio, pretendendo me abrir os olhos quanto ao Dr. Beltrano ou a Dona Beltrana - que têm negros no sangue. Já não agüento mais! Este caso do Porto foi a gota de água que fez entornar o copo. Um dia destes, largo tudo, vou embora para o Sul, e passem bem! E como havia elevado muito o tom da voz, no impulso da exaltação, caiu em si de repente e voltou a sentar-se, já com o lenço aberto para enxugar o suor que lhe bolhava das têmporas: - Vossa Reverendíssima me perdoe, se me exaltei além da conta. Só com Vossa Reverendíssima é que me abro, aqui no Maranhão, e eu já estava a ponto de estoirar, se não desabafasse com um amigo. Ao recolher o lenço, notou que o Bispo, com as mãos nos braços da cadeira de balanço, o olhava sorrindo, ainda de cabeça inclinada. - Vossa Reverendíssima acha graça? - estranhou, sem dar à voz um tom de reprimenda. - Eu também recebo muitas cartas anônimas, meu caro Presidente, tal como Vossa Excelência. Os maranhenses ainda não me perdoaram eu ter feito do Padre Policarpo, que é mulato, o arcediago da Diocese. Quase todos os dias encontro na minha correspondência uma carta de protesto, e sempre anônima, chamando de bode o pobre do padre. Hoje mesmo recebi uma, perguntando-me se o bode tinha berrado muito nos campos de Turiaçu. Sabe o que faço nessas ocasiões? Rasgo a folha de papel, atiro-a ao fogo, e rezo a Deus, pedindo-lhe que perdoe e ilumine o autor da carta. Faça o mesmo, meu caro Presidente. Um dia a coisa muda. O importante é ter paciência para esperar. - Obrigado pelo conselho. Mas não esqueça que há uma diferença muito grande entre nós dois: Vossa Reverendíssima é um santo, e eu, não. Fico fervendo por dentro, com vontade de fazer uma estralada. Mas, como não sei a quem pegar, para aplicar a merecida lição, a raiva incha aqui no peito, até que não posso mais, e venho despejar minha ira no ouvido cristão de Vossa Reverendíssima. - Venha quando quiser - replicou o Bispo, vendo que o Presidente apanhava do sofá de palhinha o chapéu e a bengala para ir embora. E levantando-se, com a expressão de quem forceja para reprimir o sorriso, aproximou-se: 116 o meu caro Presidente sabe guardar segredo? Pois então vou-lhe fazer uma confidencia. Eu também, no começo, fervia: hoje não fervo mais. Riram os dois, olhando-se mutuamente. E como o Bispo fizesse menção de acompanhá-lo, o Presidente reteve-o no seu lugar, depois de curvar-se para beijar-lhe o anel: - Não se incomode. Eu conheço o caminho. Damião viu a mão do Bispo acabar de puxar a cortina, para dar espaço ao vão da porta, e por ali passou a figura alta do Dr. Olímpio Machado, logo seguida por Dom Manuel. Os dois passaram por ele, dando o Bispo a impressão de que não o tinha visto. Caminharam pelo corredor, sempre estalando as tábuas do soalho, e ainda conversaram alguns minutos no patamar da escada. - Até outro dia, Dom Manuel. - Deus o acompanhe, Senhor Presidente. E enquanto, na rua, em frente ao Paço, rolava a carruagem', ao galope dos cavalos, o Bispo tornou a atravessar o corredor, depois passou pela saleta, de volta à sala. Só aí deu com o Damião, de pé, à sua espera, com a carta na mão. Firmando o olhar no rosto do negro, perguntou, prendendo-lhe a mão: - Tu não és o escravo do Dr. Lustosa que queria ser padre? Logo vi que a tua fisionomianão me era estranha. Como te prometi, falei ao teu senhor. Ele me disse que não podia abrir mão de teus serviços. Precisava de ti na fazenda. Em todo caso, como eu insisti, prometeu que ia ver. Pelo que vejo, não faltou com a palavra. É dele esta carta? - Não, Senhor Bispo. É de Sinhá Lustosa, mãe do Doutôr replicou Damião, com um ríctus de dor, retraindo a mão que o prelado segurava. E Dom Manuel, com estranheza, reparando na palma cicatrizada: - Andaste te queimando? O que foi isso? Damião baixou os olhos, embaraçado. E Dom Manuel, adivinhando: - Palmatória? - Sim, Senhor Bispo. - Foi teu senhor? E Damião, depois de confirmar com a cabeça: - Primeiro, apanhei de palmatória; depois, de relho, amarrado ao tronco. A intenção do Doutôr era me surrar muito e em seguida me castrar. Mas morreu de repente, quando me batia. - Teu senhor morreu? O Doutôr Lustosa? E foi tão grande assim a tua falta? - Não, Senhor Bispo. Eu estava inocente. E Dom Manuel, travando-lhe do braço, levou-o para a sala: 117 - Vem comigo. Preciso saber o que se passou. Não me escondas nada. Estás falando com um sacerdote. com um Bispo - acentuou. Fez Damião sentar numa cadeira, ao mesmo tempo que ocupava a outra, com uma fisionomia fechada, os movimentos nervosos: - Não te envergonhes de me dizer a verdade, toda a verdade, só a verdade, sabendo que Deus também está te escutando. Podes falar. E em silêncio, a mão em concha na orelha esquerda, de vista baixa, sisudo, ouviu o relato de Damião, sem interrompê-lo uma só vez, ainda com a carta fechada na mão direita. Sombreara mais o rosto, de sobrancelhas contraídas, apertando de vez em quando os maxilares. E quando Damião se calou: - Que horror! O que tu acabas de me contar me enche de amargura. Como é possível conciliar tanta crueldade com o sentimento cristão? Os homens precisam muito da misericórdia divina. Mais do que se pensa. Todos os dias, ouço crueldades como essa, aqui mesmo em São Luís. Isso precisa acabar! Não se pode continuar assim! Depois de um suspiro profundo, que lhe tufou o peito, rasgou um dos cantos do envelope, devagar, e levou o rasgão até o outro canto, sem pressa de tirar dali a carta. Como o vento entrasse da rua ao golpe de uma rajada, batendo uma das janelas, foi até lá, prendeu-a à taramela do caixilho, e voltou para a sua cadeira austríaca a um canto da sala, com a carta fora do envelope. Correu os olhos pelas primeiras linhas do papel tarjado, foi até o fim da página, a apertar de vez em quando o meio do lábio inferior, e depois repetiu a leitura, voltando lentamente a folha, sempre de sobrancelhas travadas. Pelas quatro janelas sobre a rua, podia-se abranger quase todo o Largo do Palácio, com seu duplo renque de sobradinhos de azulejos e suas árvores ainda novas, reviçadas pelas chuvas do inverno. Mais adiante, depois da fachada comprida do Palácio do Governo, era a amurada sobre o Cais da Sagração, com a rampa de pedra que ia até o mar. Tudo deserto, àquela hora de sol forte. Mas Damião, desde que ali entrara, só de relance alcançava a paisagem, na intensa luz da tarde: todo ele se concentrava na atenção com que observava a figura do Bispo. Via-o agora concluir a leitura da carta, fechado em si, com uma ruga mais funda subindo-lhe pela testa; tardou uns momentos com os olhos baixos, pensativo, como a refletir sobre a providência a tomar; por fim, dobrou o papel tarjado, recolheu-o ao envelope, pôs-se a bater com a ponta dos dedos nos braços da cadeira. A pedra de seu anel falseou na claridade, descrevendo um círculo de luz mais viva que alcançou o teto e terminou por aquietar-se ao meio da parede, ao mesmo tempo que a mão nervosa se imobilizava, e ele ergueu o olhar para Damião, ainda sem lhe falar. O espelho grande da sala, por cima de um velho consolo de jacarandá, repetia a figura magra do negro, que parecia agora sustentar com o prelado o jogo do siso, na imobilidade das pálpebras e das 118 pupilas. Vestido com simplicidade, a camisa de algodão por cima das calças de riscado, os pés espalhados nas sandálias abertas, tinha contudo uma dignidade natural, própria de sua figura esguia, com os antebraços caídos para as coxas, sem apoiar o dorso no espaldar da cadeira. E como o espelho o apanhava mais de lado que de frente, destacava-lhe a orelha pequena, o pescoço rijo alongando-se para o ombro, os lábios carnudos levemente avermelhados, o nariz meio achatado, o queixo quase sumido, o cabelo aparado rente, e a pele muito negra, de um negro tirando a fosco, confirmativa da estirpe superior de sua raça africana - raça de guerreiros insubmissos, muito ciosos de sua agilidade e de sua força, só por traição jogados um dia no porão de um navio negreiro, a caminho do exílio e da escravidão. - Queres mesmo ser padre, Damião? - perguntou o Bispo, sempre segurando a carta. - Torno a te dizer que não é padre quem quer, mas quem tem inclinação para o ministério de Deus. Esse ministério exige sacrifício, e sacrifício constante, de todos os dias. Sinhá Lustosa usou de franqueza nas informações a teu respeito. Tu não te dobras com facilidade, tens um gênio obstinado e és altivo. O ministério de Deus exige sobretudo humildade. Muita humildade mesmo. - Sim, Senhor Bispo. - Além do mais, já és um homem feito, e é quase sempre no menino que principia o sacerdote. - O esforço que for preciso fazer, eu faço - interrompeu Damião, no temor de uma negativa. - Não há sacrifício maior do que ser escravo, e escravo eu sou. Só que, em vez de ser escravo de outro homem, quero ser escravo de Deus - acrescentou, de olhar iluminado. Dom Manuel aprovou com a cabeça, satisfeito. E tornando a anuviar o rosto, depois de um silêncio: - Não te esqueças de que tens outro obstáculo no teu caminho, e muito sério: és negro. Não há sacerdote negro. O Padre Policarpo, que é mulato, teve de vencer uma corrida de obstáculos para poder ordenar-se, e fora daqui. Contigo, que és mesmo negro, a luta vai ser maior, muito maior. E Damião, numa voz suplicante: - Vamos tentar, Senhor Bispo. Talvez eu consiga vencer, como venceu o Padre Policarpo. Dom Manuel levantou-se, deixou a carta no tampo do consolo, caminhou até o fim da sala. Passou por Damião, tornou a passar, foi até à janela. E quando voltou, parando defronte do preto, que também se levantara, preocupado: - Farei a experiência contigo - decidiu. - Não vai ser fácil. E não depende apenas de ti. Em todo caso, vamos tentar. Antes dos estudos maiores, tens de estudar coisas elementares, em companhia de meninos. Como és preto e homem feito, não vão te receber bem. Mas já estás avisado. Terás também a ajuda do Padre Policarpo, com quem vou conversar a teu respeito, ainda hoje. 119 Damião sorria, mostrando a fileira alva dos dentes, com uma luz úmida no olhar, enquanto outra lufada entrava na sala, tufando as cortinas puídas, sacudindo as janelas e trazendo da rua uma nuvem de pó, ao mesmo tempo que irrompia nas árvores do largo a bulha dos bem-te-vis. - Mas há ainda uma condição, imposta por Sinhá Lustosa na sua carta - acrescentou o Bispo, descansando a mão direita no ombro de Damião e olhando-o de frente. - Não te poderás preparar para ser padre, sendo escravo. Ela também concorda com a tua alforria mas desde que me ajudes (vê bem!) a rezar trezentas missas, sendo uma por dia, pela paz da alma do Dr. Lustosa. Eu, por mim, aceito a proposta. E tu? Apanhado pela surpresa da condição estranha, Damião demorou o olhar nos olhos do Bispo. Trezentas missas? Durante quase um ano? Para ajudar a dar o Céu à alma do senhor que morrera de chicote em punho, castigando-o? E depois de encher o peito, no esforço para reprimir o impulso da revolta: - Eu também aceito, Senhor Bispo. D1 DE SEUS TEMPOS DE INICIAÇÃO ECLESIÁSTICA, que lhe tinham parecido um céu aberto, depois dos anos de humilhação e tortura na fazenda, o que Damião mais lembrava, de mistura com as imagens do quintal arborizado do Paço Episcopal, era a figura meio tosca do Padre Tracajá, sempre de batina sovada, um livrodebaixo do braço e o cabelo crescido a cair para as orelhas. - Tu vens morar aqui - tinha-lhe dito o Bispo, na tarde em que o recebera. - Vai falar, de minha parte, lá embaixo, com o Padre Policarpo, para que dê um jeito de te acomodar num dos quartos que dão para o quintal. Não te espantes, que ele vai resmungar, coçar a cabeça, amarrar a cara, dizendo que os quartos estão todos ocupados; mas, no fim, descobrirá um canto onde possas armar a tua rede e guardar a tua maleta. E tomando por um corredor largo, que ia dar ao fundo do sobrado, levou Damião até o patamar da escada de madeira: 120 - Desce por aqui. Lá embaixo, segue pela calçada. É na segunda porta, à direita. A estas horas, o Padre Policarpo deve estar lendo. Primeiro, espera que ele feche o livro; depois, fala com ele. Na casa velha, de dois pavimentos, atulhada de trastes antigos, com severos retratos nas paredes, imagens de santos por toda parte, castiçais azinhavrados, um forte cheiro de mofo e estearina, reinava uma espaçosa paz de convento, sobretudo para os lados do parque. As velhas árvores esgalhadas, que sombreavam o terreno coberto de folhas caídas, pareciam esperar pelos velhos monges meditativos, que se aconchegariam nos bancos de pedra, ao pé do muro enramado de trepadeiras, com a sua Bíblia ou o seu Breviário, à hora do entardecer.. Embora Damião batesse, repetidas vezes, na segunda porta à sua direita e que encontrou fechada, ninguém saiu a recebê-lo. Descansou a maleta no chão, sentindo que a mão lhe doía, e foi caminhando até o fim do sobrado, para ver se dava com alguém que lhe dissesse onde andava o Padre Policarpo. Dentro do quarto é que não podia estar. Já vinha de volta, disposto a ir de novo ao encontro do Senhor Bispo, quando descobriu um senhor escuro, metido numas calças caseiras, com um chapéu de palha a cobrir-lhe a cabeça, e que corria o gadanho pelas folhas caídas, limpando o caminho que ia ter à carranca de pedra de um chafariz. - Boa tarde, amigo - saudou Damião, aproximando-se. Podia me dizer onde posso encontrar o Padre Policarpo? - Está falando com ele. Desconcertado com a resposta, que talvez fosse uma pilhéria, Damião olhava o outro ensaiando o riso, sem saber se devia aceitar ou pôr em dúvida o que acabara de ouvir. Veio-se chegando mais para perto, e pôde identificar, a poucos passos, na figura compacta, pelo rosto queimado e cortado de pequenas rugas, o padre que havia acompanhado o Bispo na visita à fazenda. E essa impressão se confirmou quando ele, deixando o gadanho, avançou no sentido de Damião, tirando o chapéu e sacudindo o suor que lhe banhava a testa. E Damião, sério: - Estou chegando de Turiaçu, trouxe uma carta para o Senhor Bispo, e ele me mandou falar com o senhor, para ver se acha um lugar onde eu possa ficar, aqui mesmo no Palácio. - Aqui? Não estou entendendo mais o Senhor Bispo. Não há mais espaço para nada, aqui embaixo. Todos os quartos estão cheios de alfaias de igreja, que o Senhor Bispo trouxe do interior. Quando não são as alfaias, são os santos, as pratas e os trastes velhos. Tudo tomado. E ainda por cima com o sobrado em petição de miséria. No meu quarto, já não posso me mexer. Mal tenho espaço para a minha rede. De noite, sou obrigado a fechar a porta e a janela, por causa dos morcegos. Mas ficam os ratos, que se enfiam por baixo da porta. Um deles, semana passada, já chegou ao cúmulo de roer as solas de 121 meu chinelo. E é aqui que o Senhor Bispo mandou que eu achasse lugar para mais uma pessoa? Será que o Senhor Bispo pensa que eu, com os quartos do Paço Episcopal, posso fazer o milagre de Nosso Senhor Jesus Cristo com os pães e os peixes? Não, não pode ser. E arrastando as sandálias no capacho da porta, para sacudir a terra da sola, meteu a chave na fechadura, sempre de cara trombuda: - Espere aqui, que eu já volto. Entrou no quarto, cerrando a porta com uma pancada aborrecida. Atônito, Damião estava vendo o momento em que seria posto no olho da rua, com a sua maleta de couro, para que se arranjasse como pudesse. E que ia fazer na cidade estranha, sem conhecer ninguém, nem saber onde podia alojar-se, com as poucas moedas que trazia no bolso? Toda a sua aflição tinha-lhe subido aos olhos, que se fixavam, cheios de medo, na porta fechada à sua frente. E quando esta voltou a abrir, já o Padre Policarpo estava de batina, com um livro sobraçado, trazendo nas mãos uma cambada de chaves, ainda de rosto amarrado. - Venha comigo - disse ele a Damião. E defronte da porta seguinte, contígua à janela de seu quarto, procurou a chave na cambada, tentou enfiá-la na fechadura. Como não girasse, resmungou, aborrecido, e experimentou outra. A fechadura cedeu, e logo uma nuvem de pó dançou na luz que invadiu o aposento, ao mesmo tempo que a folha da porta corria para dentro, batendo na parede. Era um quarto estreito, atafulhado de armários e cadeiras, numa desordem de acomodação precipitada. Um Santo Inácio de gesso, todo escalavrado na cabeça e nos braços, parecia presidir, com seu ar reflexivo, de caveira em punho, aquele pandemônio de belchior, imóvel no meio da peça. Mais adiante, quase do tamanho natural, um Santo Antônio de madeira, despojado do Menino Jesus, guardava a porta de uma alta estante envidraçada, repleta de alfarrábios e encimada por uma mitra solene, picada pelas traças. - Acha que pode ficar aqui? - perguntou o padre, com o lenço no nariz, para se defender da poeira, e sem se voltar. - Posso - respondeu prontamente Damião. Num relance do olhar, tinha visto que, se dispusesse melhor os bregueços e santos ali deixados, poderia abrir a janela, arejando o aposento, e ter espaço para armar a sua rede. - Se pode, o quarto é seu - afirmou o padre, já agora interessado em saber como o preto se meteria ali dentro. - Precisa dar-lhe uma limpeza em regra - acrescentou. - Vassoura e pá de lixo o amigo encontra no último quarto. É só empurrar a porta, que está encostada. Como é seu nome? - Damião. E enquanto o Padre Policarpo, meio curvo, o cabelo liso descendo para as orelhas, saía ao quintal, no seu passo preguiçoso, em 122 direção ao banco onde sempre lia, Damião abriu de par em par a janela do quarto, depois de arredar um dos armários, e começou a conquistar o espaço de que necessitava para alojar-se. Aos poucos, embora lhe doesse a palma das mãos, foi abrindo caminho, com uma melhor disposição dos velhos trastes ao fundo do aposento, e o certo é que, pelo fim da tarde, quando o padre voltou, ainda sobraçando o seu livro, com os olhos mais empapuçados pelo esforço da leitura, não pôde deixar de espantar-se, ao ver que a metade do quarto estava livre, de chão varrido, a rede armada, a estante dos alfarrábios desafogada da vigilância de Santo Antônio. Até mesmo uma pequena mesa de tampo corrido, que teria vindo de alguma sacristia com o fecho emperrado, sobressaía junto à estante, com a cadeira competente, recebendo luz direta. Parado à porta, a olhar por cima dos óculos, o padre sorria, aprovando com a cabeça. E levantando a vista para o preto, que descansava as duas mãos na extremidade do cabo da vassoura: - Não há a menor dúvida, Damião: começaste bem. Acabas de dar um peido cheiroso. Meus parabéns. À noitinha, logo após o jantar, indo e vindo pela calçada de pedra que perlongava o quintal, o padre indagou a Damião, sem alterar o ritmo vagaroso das passadas digestivas: - Queres mesmo ser padre? Vê lá o que vais fazer. Estás trocando um cativeiro por outro. Queira Deus dê certo. Duvido muito. E duvido mais ainda que, preto retinto como és, te deixem abrir uma coroa nessa cabeça de carapinha. Tomara que eu esteja enganado. E já nessa noite, fez que Damião, à hora de recolher-se, lhe providenciasse a bilha de água e o copo de leite, além de lhe trazer, convenientemente lavado, o penico de louça inglesa, que lhe servia para mijar e cuspir. Depois, como custasse a dormir, escanchou-se na rede, metido no seu camisolão folgado, que lhe ia até os pés, e mandou que Damiãoocupasse a cadeira de palhinha, ao pé da porta. - Senta-te aí. Enquanto o sono não me vem, vou-te pôr a par dos hábitos da casa. Nosso Bispo acorda cedo. Às cinco horas, quando os galos estão cantando, já se ouvem as passadas dele, aqui por cima de minha cabeça. Tens de te regular por ele. Às sete horas, depois da missa, que é rezada por Dom Manuel, serve-se o café, lá em cima, na copa. Somos cinco à mesa, à hora das refeições: o Bispo, eu, o arcipreste, o chantre e o mestre-escola. Vai-te habituando a servir. Naturalmente Dom Manuel vai mandar que te ensinem a servir. Dos dignitários da catedral, só eu moro aqui, por bondade do Senhor Bispo, que me deixou ficar no quarto onde me pôs Dom Carlos, já faz muitos anos, quando vim fazer companhia aos ratos e aos morcegos. Agora, vens tu, e passas a ser meu vizinho. Como Dom Manuel quer fazer de ti padre, despachou-te para cá. Podia ter-te mandado para a parte dos fundos do sobrado, onde moram os subalternos e um artista. Os subalternos são dois: o cozinheiro e o sineiro. O cozinheiro 123 é o mestre Ambrósio, a quem devemos tratar muito bem, porque, no fim das contas, é quem nos alimenta. Quanto ao sineiro, o Vivi, tem um talento especial para bater o sino na hora em que estamos dormindo. É o tipo perfeito do desmancha-prazer. O organista Teodoro, que se diz educado na Itália, mora também com eles: é um velho rosado, sempre de olho no vinho da missa, e ora toca bem, ora toca como a cara dele, sem perder a mania de tocar peças profanas, todas as vezes que o Senhor Bispo anda longe. Há ainda o pessoal avulso, que não dorme aqui. Começo pelo Firmino, que se diz secretário do Senhor Bispo, e fica lá em cima, repimpado numa cadeira, todas as vezes que Dom Manuel recebe visitas. bom sujeito. Alma pura, cheia de bondade. Mas com a mania de se confessar todos os dias, para aliviar-se de pecados que Nosso Senhor não pode levar a sério: - que não dobrou direito a cabeça quando o Senhor Bispo passava; que teve vontade de soltar um traque quando estava ajoelhado; que arrotou na hora de receber a hóstia, e outras coisas parecidas. Conto-te essas coisas porque ele, além de contá-las quando se confessa, passa-as adiante, com o mesmo ar pesaroso, para quem quiser ouvi-las, logo que sai do confessionário. Não sabe guardar segredo. Nem os dele. Mas boa pessoa. De vez em quando aparecem aqui várias beatas. Conheço-as pelo cheiro de formiga e a fita no pescoço. Não me dou ao trabalho de saber o nome delas. Chamo a umas de minha filha, e a outras de minha velha, conforme o cheiro e a idade. Apanhou do chão, ao pé da rede, o maço de cigarros e a caixa de fósforos, e ficou a balançar-se, com o cigarro pendurado no canto da boca. E enquanto a rede ia e vinha, prosseguiu, com a cabeça envolta pela fumaça do cigarro forte: - Não vou te dizer, uma a uma, as batinas da Sé, que são muitas. Ficadas tonto. Por enquanto, fica sabendo que há nomes que só com o tempo te entrarão na cabeça. Por exemplo: prioste-geral, prioste das benesses, mestre-de-cerimônia do sólio, mestre-de-cerimônia do cabido, penitenciário da Diocese. De modo especial, recomendo-te que guardes este nome comprido: tesoureiro da mitra, do cofre das cauções e das obras pias, e tesoureiro-mor da fábrica da catedral. Tudo isso, que daria pano para as mangas, pertence a um cônego magrinho, baixinho, apertadinho, o Cônego Pinto. Nunca vi nome mais apropriado. Não merecia outro. Quando ele passar por ti, não te esqueças de exagerar nas reverências. É ele quem guarda o dinheiro. Um dia, querendo Deus, tens de te haver com ele. Não lhe esqueças o nome nem o título: é o Arcipreste Pinto. Vem aqui todas as tardes, com a chave do cofre. Entre os defeitos com que a natureza o distinguiu, sobressai este: pensa que o dinheiro da mitra é mesmo dele, e que todos nós somos seus dependentes. Mas já vejo que estás com sono como eu também, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. - Não, não estou com sono, Padre Policarpo - negou Damião. 124 - Estás bocejando com a boca fechada. Conheço o truque. Não se ensina padre- nosso a vigário. Pede perdão a Deus pelo pecado. E levantando-se da rede, olhou em volta: - Tenho que te dar um candeeiro. Espera um momento. Foi ao fundo do quarto, com os pés nos chinelos cambados, a barra do camisolão arrastando nas tábuas do soalho, espiou pelos cantos, arrastou um armário, riscou meia dúzia de fósforos e voltou com um castiçal e uma vela por acender. - Deram sumiço no candeeiro. Não foi o primeiro. Contenta-te com este castiçal. Olha que é de prata portuguesa, coisa fina, de luxo, e que só se usa para iluminar o Cristo nos velórios graúdos. Está é sujo. De passagem pela estante, encheu a mão de livros. - Leva estes livros, para que aprendas a te desemburrar por ti mesmo. Queima as pestanas de noite, se puderes afugentar o sono, ou então lê de madrugada, quando a cabeça está fresca. Damião ia saindo, já com o castiçal de vela acesa e os livros sobraçados, quando o padre o chamou, de novo na rede: - Se ouvires falar aí por fora, ou mesmo aqui dentro, no Padre Tracajá, fica sabendo que sou eu. Me botaram esse apelido num dos pasquins de nossa terra, e a coisa pegou. Há beatas que só me chamam assim. Pensam que sou mesmo Tracajá. Podes me chamar de Tracajá, mas pelas costas; na minha presença, me chama de Padre Policarpo. Padre Policarpo Soares. E com um gesto, que mandava Damião sair: - Quando passares, bate a porta. Até amanhã. Deus te abençoe. No seu quarto comprido, assim que passou a chave na porta, Damião descansou o castiçal sobre a pequena mesa de tampo corrido e ficou olhando em volta, com a consciência de sua nova vida. Só agora, quando ia deitar-se, exausto das emoções do longo dia, podia ajuizar com nitidez o passo que tinha dado. Nunca tivera um canto como aquele, unicamente seu. E nisto começou a ouvir, por cima do sussurro do vento nas árvores do quintal, o bater de tambores rituais. Como não conhecia ainda a cidade, senão pela volta da Praia Grande e do Cais da Sagração, na companhia do Chico Benedito, não sabia dizer ao certo de onde vinham aqueles tantantãs compassados, tocados por mãos de negros. Era o mesmo batecum inconfundível, que todos os ouvidos podem ouvir, mas que só os negros realmente escutam, com as vivências nostálgicas de sua origem africana. E aos poucos, devagarinho, sentado na rede, depois de soprar a vela, deixou-se envolver pela saudade da mãe, da irmã, dos companheiros da fazenda, na senzala banhada de luar. O contrãvento de manga esfumaçada arregalava o seu olho vermelho sobre a bandeira da porta, como que vigiando os negros que dançavam no terreiro, ao som dos tambores e das cabaças. Mas não eram apenas essas imagens nítidas que lhe afluíam à consciência alvoroçada. Sentiu 125 que não estava só. Um sentimento indefinível, que parecia desprendê-lo do mundo e do tempo, crescia em seu espírito, e ele teve a impressão de quê se fundia ainda mais à sua raça, longe, muito longe, do outro lado do mar, nas infindáveis selvas primitivas, ao mesmo tempo que se lembrou da figura alta do pai, no remanso e na paz do quilombo. Quando acordou, madrugada alta, já os tambores estavam calados. Só ouviu o sibilo do vento, que subia as ladeiras da cidade e trazia consigo o sussurro do mar. De manso, sem ruído, entreabriu a porta, ergueu o olhar para ver a altura das estrelas. com certeza, o dia não tardaria a raiar. De orelha atenta, debalde esperou, durante alguns minutos, as passadas do Senhor Bispo nas velhas tábuas do soalho. Como havia perdido o sono, levantou-se, saiu ao quintal. Ainda encontrou cá fora a noite fechada. Uma aragem fresca, úmida de orvalho, veio ao seu encontro, batendo-lhe no rosto repousado, e ele foi pisando as folhas caídas, por entre o tronco das árvores, até o muro coberto de musgo ao fundo do quintal, a cavaleiro da ladeira que escorregava para o Cais da Sagração. Ali, trepado no banco de pedra junto à carranca do chafariz, alongou a vista no sentido do mar.Longe, o farol da Ponta da Areia. Mais longe ainda, o farol de Alcântara. E por cima das águas que a escuridão encobria, as lanternas dos barcos ancorados. A claridade veio vindo devagar, à sua direita, e foi-se abrindo em leque, a misturar tons vermelhos e róseos; a massa cinzenta do mar se destacou, imóvel a princípio, depois levemente ondulante, imersa na luz desmaiada que ia esbranquecendo as últimas sombras da noite. Quando o sol apontou, por cima da orla escura dos telhados, a sangrar como um olho ferido, toda a paisagem repentinamente se coloriu, e alvejaram as fachadas, as torres das igrejas, os mirantes dos sobrados, enquanto velas azuis, pardas, cor de terra, se recortavam contra o horizonte, com as primeiras gaivotas roçando a crista das vagas. E nisto Damião ouviu a voz pastosa do Padre Policarpo por cima do ruído da água que rolava do chafariz: - Fui ao teu quarto e não te achei. Pensei que tinhas fugido. Por descargo de consciência, resolvi dar uma volta no quintal. Anda, desce daí. Temos missa na Sé, oficiada por Dom Manuel, e não vai demorar. Fungou forte, limpando ruidosamente as narinas. E enxugando-se na toalha de felpo que lhe pendia dos ombros: - Mas, antes da missa, bota ordem no meu quarto. Não te esqueças de despejar o penico. O padre ainda estava no camisolão de dormir, com um ar mais cansado que na véspera - os cabelos em desalinho, a barba por fazer, os olhos empapuçados. E sempre a enxugar-se, esfregandoa 126 papada, ao ver que Damião se afastava, ergueu a voz, sem interromper os movimentos da toalha: - Na privada velha há uma vassoura de talos para a limpeza do penico. Está por baixo da pia, do lado direito. Se os ratos não levaram. Damião voltou a encontrá-lo na nave da catedral, depois de dar uma volta longa para descobrir o passadiço que, por dentro, atravessando um jardim maltratado, ia ter à sacristia. Entrou assustado, vendo a missa começada, e ficou de pé, à esquerda das duas orlas de bancos, com as mãos nas axilas. Atarantou-se um momento, tanto com a nave imensa quanto com o fulgor das velas no ouro dos ornatos: deixou cair o lábio inferior, relanceando o olhar pasmado para os nichos, os bancos, as imagens, o teto pintado, a grade do coro, antes de fixar-se na figura ancha do Bispo, revestido de uma casula cintilante, com uma cruz nas costas. Ajoelhado defronte do altar-mor, o Padre Policarpo só não se confundia com as beatas de preto, que salpicavam os bancos da nave àquela hora matutina, porque abrira recentemente a coroa. E era a sua voz potente que ressoava a cada instante, respondendo em latim, sem olhar para o missal, o latim corrido que Dom Manuel ia cantando por entre mímicas e genuflexões. Por mais que ensaiasse concentrar-se, para dar toda a atenção possível à cerimônia, Damião acabava por distrair-se com o próprio culto, sem poder alcançar o sentido de seus mistérios. Volvia aos poucos ao espanto da capelinha da fazenda, até que a musicalidade das palavras, o tinido da sineta, o som do órgão, a atitude prosternada dos fiéis, o cheiro suave do incenso queimado, a luz que incendiava os vitrais, como que lhe penetraram o espírito, e ele se acercou da ponta do banco mais próximo, meio encabulado, sem saber se fazia bem ou se fazia mal, e também se ajoelhou. Ao fim da missa, parou à porta da sacristia, esperando que o Bispo lhe desse ordem para entrar. Havia ali outros padres. Do meio deles destacou-se o Padre Policarpo, que o chamou: - O Senhor Bispo quer te falar - disse e afastou-se. E foi o Bispo que veio ao seu encontro, com surpresa dos outros padres, que logo se entreolharam, num esboço de reprovação, sobretudo quando viram que Dom Manuel punha a mão no ombro do negro: - Logo que estejas preparado - preveniu-lhe Dom Manuel, olhando-o nos olhos com uma expressão de bondade - podemos começar as missas pela paz da alma de teu senhor. O Padre Policarpo vai te ensinar o que tens de fazer. Ele me falou de ti com grande simpatia. 127 PARA DAR A SUA AULA MATUTINA, todos OS dias, no Convento de Santo Antônio, o Padre Tracajá podia escolher vários itinerários. Ele, entretanto, desde que ali entrara, para ensinar português e história sagrada no Seminário, insistia no mesmo caminho, que poderia percorrer de olhos fechados: contornava a calçada da Sé, provia-se de cocadas no tabuleiro da Genoveva Pia, descia a ladeira da Rua dos Afogados, tomava adiante a Rua de São João, e não tardava a chegar ao Largo de Santo Antônio, que sempre lhe parecia muito limpo, com a igreja alvejando ao fundo, caiada de novo, e mais os dois renques de janelinhas do Convento, logo ao lado, debaixo das telhas risonhas de um beiral. Ainda na Rua dos Afogados começava a comer as cocadas, sempre de modo discreto e disfarçado, que não lhe quebrava a circunspeção, e que consistia em meter a mão no bolso da batina, quebrar ali dentro o pedaço que ia ser comido e levá-lo à boca com extrema rapidez. Ao chegar ao Largo de Santo Antônio, só lhe restava uma cocada, que reservava para a volta, quando precisava distrair a fome impaciente, debaixo do sol quase a pino. Dia sim, dia não, nesse regresso metódico, mudava de caminho, e ia pela Rua de São João até o Largo de Santiago. Almoçava numa meia-morada pintada de ocre, e ali também dormia a sua sesta, para estar de novo no Paço pelo meio da tarde. Nos outros dias, quando voltava diretamente para o Paço, trocava a Rua dos Afogados pela Rua do Sol, para evitar o esforço de subir a ladeira, e ainda apanhava a Genoveva Pia no seu ponto, já com o tabuleiro quase vazio. Tornava a prover-se de cocadas, que a negra sempre deixava de reserva para ele, e ia direto para o seu quarto. Metia-se depois no banheiro, mergulhava na tina de água, e saía outro. Ainda de cabelos molhados, subia para o almoço. Já ali estavam o Padre Lula, Monsenhor Tavares e o Cônego Pinto, à espera do Senhor Bispo. Às vezes aparecia um ou outro vigário do interior, que também sentava à mesa, um tanto desabituado do talher e do guardanapo. Se havia visita, o ambiente era austero, pouco expansivo. Mas mudava muito, com risos derramados e ditos chistosos, quando eram 128 somente os quatro, na companhia de Dom Manuel. Até mesmo o Cônego Pinto, que tinha a cara fechada, ensaiava rir de lado, escondendo com a mão canhota a falha da dentadura. Foi à mesa, numa dessas ocasiões, pelo fim do almoço, que o Senhor Bispo perguntou pelo Damião ao Padre Policarpo, enquanto se desfazia o riso provocado por Monsenhor Tavares, que terminara de contar o último rompante de Donana Jansen, ocorrido à saída da missa, na igreja de Santo Antônio - quando a velha foi vista soltando um muxoxo, depois de uma rabanada de desdém, ao passar pelo nicho de São Benedito. Padre Policarpo respondeu de boca cheia, correndo o guardanapo pelos cantos da boca, para limpar a farinha da farofa: - Vossa Reverendíssima já pode chamá-lo para ajudar a missa. O preto tem ótima cabeça. Basta ensinar uma vez, que ele guarda tudo. Um assombro de memória. Semana que vem, vou passar a leválo comigo para as primeiras aulas no Seminário. O Padre Lula, depois de um silêncio, voltou-se para o Senhor Bispo, sem esconder de todo o seu assombro: - Vossa Reverendíssima pensa encaminhá-lo mesmo para o sacerdócio? Os outros padres, com exceção do Padre Policarpo, que ainda não cruzara o talher, ergueram a vista para Dom Manuel, interessados na resposta. E o Bispo, confirmando também com a cabeça: - Estou com essa intenção. Monsenhor Tavares começou por dobrar o guardanapo. E no silêncio que se alongou pela varanda: - Mas ele não é preto? Preto retinto? - Acabado de sair da senzala - replicou o Padre Tracajá, com uma cara meio gaiata. - Muito mais preto do que eu. O Padre Pinto encarou o Padre Tracajá por cima dos óculos: - O colega não se esqueceu da humilhação por que passou, aqui em São Luís, no começo de sua carreira, pois não? O episódio da igreja do Rosário ficou famoso. Ao que Monsenhor Tavares acrescentou, como se quisesse avivar-lhe a memória:- No momento em que o colega se aproximou do altar, para dizer a sua primeira missa, as pessoas que enchiam a nave, ocupando as fileiras de bancos, de repente se levantaram e foram embora. - Mas eu disse a minha missa, como se a igreja estivesse repleta, e sei que Nosso Senhor a assistiu - contraveio o Padre Tracajá, chamando para perto de si a compoteira de doce de jaca. - E eu, quando aqui cheguei, fiz do Padre Policarpo meu arcediago, e até hoje não me arrependi da escolha - adiantou Dom Manuel, subindo o tom da voz para interromper a discussão. O Padre Lula ergueu-se um pouco da cadeira, curvado para a frente, a cabeça baixa: 129 - A caridade de Vossa Reverendíssima não tem limites, Senhor Bispo. O que Vossa Reverendíssima faz, com a sua bondade e a sua sabedoria, não pode deixar de ser uma inspiração da graça divina. - Apoiado - aprovou Padre Policarpo. Mas tanto Monsenhor Tavares quanto o Cônego Pinto se fecharam em silêncio, de vista baixa, as mãos entrelaçadas, enquanto crescia no sobrado o ruído do relógio, ao fundo da varanda. E foi Dom Manuel que reatou a conversa: - A luta contra o preconceito de cor, aqui no Maranhão, tem de começar pela Igreja. Somos nós que devemos dar os exemplos de compreensão e tolerância. A fraternidade, acima do pigmento de cada ser humano, está na essência de nossa religião. E como o Senhor Bispo se calasse, circulando o olhar pela mesa, para sentir o efeito de suas palavras, o Cônego Pinto deu a impressão de que ia levantar, depois tornou a esparramar-se na cadeira, e ponderou: - De acordo, Dom Manuel. Mas, com a devida vênia de Vossa Reverendíssima, devemos ter em mente a preocupação de não contribuir para agravar os conflitos sociais. Eu posso, com a minha autoridade de sacerdote branco, pregar a fraternidade humana, do alto de meu púlpito, procurando harmonizar o senhor e o escravo, o branco e o preto. Mas, se eu sou preto e ocupo o púlpito para pregar as mesmas idéias, deixo de ser o sacerdote, aconselhando, para ser o advogado em causa própria, e é aí que meu sermão perde a força. Sem me contrapor às recomendações de Vossa Reverendíssima, creio que esse é o puncíum dolens.. Eu sempre cito, sobre o assunto, as palavras de São Mateus: "Ai do mundo por causa dos escândalos! Eles são inevitáveis; mas ai do homem que os causa!" Monsenhor Tavares não se conteve: - Muito bem - apoiou. Até o Padre Lula, que se mantinha de cabeça baixa, com a testa franzida, saiu de seu silêncio: - O Cônego Pinto falou como um iluminado. Nosso dever é não escandalizar. Atuaremos nas consciências, a pouco e pouco, devagarinho, e quando menos se esperar, brancos e negros estarão de braços dados. Tudo depende do tato em conduzir a questão. E enquanto o Cônego Pinto, o Padre Lula e o Monsenhor Tavares sorriam um para o outro, vitoriosos, o Padre Tracajá se limitava a olhar para o Senhor Bispo, muito sereno, como se quisesse rir, enquanto esfarelava migalhas de pão sobre o linho da toalha. O Padre Lula, agastado, decidiu esmagar de vez o Tracajá: - O colega, ainda hoje, com o seu título de arcediago, nunca ouviu a confissão de uma só das grandes damas maranhenses. Nem delas, nem das filhas. Nenhuma o quer como confessor. Nem tampouco o chamam para casamentos, batizados e extrema- unções. 130 - Em compensação, com a gente do povo, não chego para as encomendas - objetou o Padre Policarpo. - No princípio, quando as madames me desfeiteavam, eu me consolava com Nosso Senhor Jesus Cristo, que mais tinha sofrido, e era filho de Deus. Depois, dei de ombros. Que se lixem. Tenho mais o que fazer. Passei a dizer minhas missas na igreja do Rosário dos Pretos, aos sábados e domingos, e a casa fica tão cheia que se derrama pela calçada. - Só pretos - esclareceu Monsenhor Tavares. - Só cristãos - corrigiu-Padre Policarpo. Monsenhor Tavares, vendo que o Tracajá enchia o prato com a massa muito alva da compota de bacuri, achou apropriado o momento para atirar-lhe um gracejo: - O colega, por igual motivo, só devia servir-se da compota de ameixa, que veio também para a mesa, e até agora ninguém provou. Todos riram, inclusive Dom Manuel. E o Padre Tracajá, acabando de servir-se: - Um momento, Monsenhor - pediu, repondo a tampa na compoteira. - Quem foi que lhe disse que eu tenho preconceito de cor? Depois da compota de bacuri, irei à compota de ameixa. E com o mesmo apetite, louvado seja Deus. Tudo tem o seu tempo, como está nas Sagradas Escrituras. Toda a mesa voltou a rir, mais alto, derramadamente, enquanto a compota de ameixa passava de mão em mão, servida primeiro pelo Senhor Bispo, que desejou dar o exemplo, como lhe competia. Quando o Padre Policarpo desceu ao seu quarto, já de olhos apertados pela sonolência da digestão, amparando-se no corrimão da escada rangente, encontrou tudo limpo, com os livros na estante, o óleo no candeeiro, a mesa espanada, a escarradeira de louça ao pé da rede e mais espaço no aposento com uma nova disposição dos móveis. Parado à porta, o padre quase não reconhecia o seu velho quarto. Onde as teias de aranha que ensombreciam as quinas das paredes? E as pilhas de jornais velhos? Que fora feito do penico? E nisto viu aproximar-se o Damião, que tinha ido guardar a vassoura, o espanador e a pá de lixo. - Está a seu gosto, Padre Policarpo? - Saíste melhor do que a encomenda, Damião. Nunca entrei num quarto mais asseado. Até parece que vou receber a visita do Senhor Bispo. E entrou pisando com cautela, depois de esfregar as solas das botinas no capacho de ferro, repetidas vezes. Assim como estava, caiu na rede, só tirando as botinas, que deixou ali mesmo. Antes de cerrar a porta, Damião ouviu-lhe o ressonar profundo, bufando alto, como se repetisse cachimbadas. Dali saiu para acabar de arear dois tocheiros de bronze, que o Firmino lhe viera trazer na véspera, da parte do Senhor Bispo. 131 Aos poucos iam-lhe transferindo obrigações e encargos, que lhe tomavam boa parte do dia. Já era ele que limpava e polia as pratas da catedral, e ainda quem sacudia o pó dos paramentos, guardados no pesado arcaz da sacristia. Também no Paço não lhe faltavam serviços. Além de tratar do quintal imenso, que já não parecia mais o mesmo, com o chão varrido e capinado, cabia-lhe limpar as salas da frente, tirar a poeira dos móveis, sacudir os tapetes, e a tudo ele acudia de boa vontade, porque sempre lhe davam novo encargo pedindo-lhe que dele se ocupasse. Mesmo assim, aproveitando as horas que lhe restavam pelo meio da tarde, ia dando conta das lições que o Padre Policarpo lhe passava. Embora interessado em ensinar-lhe, o velho Tracajá, ainda sonolento após a sesta, reduzia as aulas a menos de meia hora, e assim mesmo entre bocejos, com os olhos entrefechados, o cigarro pendurado do canto da boca. Damião não lhe exigia mais. O resto ele o fazia por si, com o livro na mão. Menos afeito à escrita que à leitura, começara com tão má letra, que mais parecia um garrancho; mas, de noite, com as aparas de papel que juntava do lixo, tratou de melhorá-la, e o certo é que, em poucos dias de esforço, entrando pela madrugada, à luz escassa do candeeiro, conseguiu dar desembaraço aos dedos, de modo que o cursivo já começava a sair-lhe mais corrido e regular. No último sábado, enquanto o Padre Policarpo dormia a sua sesta, o Vivi Sineiro, que puxava de uma perna, tinha-o levado ao campanário, ainda em reparos. Lá no alto, derramando o olhar pela cidade, Damião pôs-se a rir, não sabendo para que lado se voltar. Olhava os telhados, os mirantes, as casas, as ruas, o mar, o cais, as igrejas, até onde a vista podia alcançar, e escancarava mais os dentes, com os olhos crescidos, querendo ver mais, sempre mais, através das quatro aberturas da torre. Chegava a supor que poderia passar ali dias e dias, só olhando a cidade. E dali só desceu quando a tarde começava a declinar. Daí em diante, sempre que tinha tempo disponível, e sem prejuízo de seus estudos, subia ao campanário, e lá ficava, como esquecido das horas, a admirar acidade, mesmo nos dias de chuva e ventania. Alertado pelo sineiro, descia. E era como se continuasse a ver São Luís em toda volta do horizonte, desde a Praia Grande ao Largo dos Amores, e ainda a baía ampla, pontilhada de barcos e igarités de pesca, e tudo lhe parecia de uma beleza incomparável, sobretudo ao pôr-do-sol. Ficava absorto, com os olhos no ar, e mais de uma vez lhe viera a vontade, que logo reprimira, de escrever à mãe e à irmã, para lhes dizer como era a cidade. Por que haveria de escrever-lhes, se ambas não sabiam ler? Quando o Padre Tracajá terminou a sua sesta, já o Damião tinha voltado do campanário, de cara contente, com muito brilho nos olhos. Vira passar, lá embaixo, uma cadeirinha de arruar, toda doirada, que dois negros iam levando pelos varais, um atrás, outro à frente, ambos 132 de uniforme, luvas, chapéu na cabeça. E debruçara-se tanto, para seguir a cadeirinha, que vinha do Palácio do Governo e tomava a direção do Largo do Carmo, que o Vivi Sineiro gritara com ele, temendo que perdesse o equilíbrio e caísse na calçada da Sé. Embora já lhe tivessem dito várias vezes, contando horrores, que os negros, ali em São Luís, também apanhavam, chegava a ter sobre isso as suas dúvidas, ao vê-los andando livres nas ruas, sem um feitor a vigiá-los. Dali do alto vira também negras bem vestidas, de sandálias de cetim, pente comprido nos cabelos, xale por cima dos ombros, e concluíra que nem a Sinhá Dona nem a Sinhá Miloca, na fazenda, se trajavam com tanto luxo. Mais tarde, à hora da lição, tornou a surpreender o Padre Tracajá, que dessa vez lhe havia passado quase um terço da Gramática Latina, do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, certo de que o preto, por mais memória que tivesse, não poderia decorar tantas declinações e tantos verbos, no intervalo apenas de três dias entre uma lição e outra. - Estudou tudo, Damião? - Sim, Senhor Padre. - E fez os exercícios? - Sim, Senhor Padre. Escanchado na rede, em ceroulas, a batina levantada acima das pernas, os pés nas meias de algodão, o padre recebeu o caderno que Damião lhe entregava, e foi-lhe virando as folhas, a princípio com ar de riso e dúvida, depois de testa franzida e sobrancelhas arrepeladas, até que o lábio inferior lhe caiu. - Está tudo ótimo, Damião - aprovou, balançando a cabeça pasmada. - Preciso mostrar este teu caderno ao Senhor Bispo. Deixa ele comigo. E ao passar à argüição oral, com a leitura do texto latino, só precisou corrigir-lhe duas silabadas, que ele próprio, já agora um tanto desconfiado de seu saber, tratou de conferir logo depois, numa olhadela prudente ao Dicionário. - Estás me dando orgulho, Damião - confessou, entrando a calçar as botinas, curvado para o soalho. - Não vejo, aqui em São Luís, quem te possa fazer sombra. No Seminário, vais passar todos aqueles brancos para trás. E com um pé nas costas. Ainda de beiço caído, levantou-se, tomou entre as mãos emocionadas a cabeça de Damião, que se conservava sentado na cadeira ao pé da mesa, e beijou-lhe a testa: - Tens idade de ser meu filho - explicou-se, endireitando a cabeça. - Nosso Senhor que te proteja. Hás de ir longe, muito longe, com o favor da Divina Graça. Ao mesmo tempo que experimentava um aperto na garganta, num começo de sufocação, Damião sentia os olhos úmidos, e teve de redobrar de esforços para não chorar. Desde que perdera o pai, nunca se identificara tão profundamente com outro homem, mesmo com o Chico Benedito, que lhe salvara a vida. E a verdade é que fazia 133 pouco mais de um mês que convivia com o Padre Policarpo. Aos poucos sentia voltar-lhe a confiança nos outros homens - que havia perdido de repente com a consciência da traição do Samuel. Ali no Paço, só via amigos. O mutismo em que se fechara nos. primeiros dias, metido consigo, cedia lugar ao diálogo que ele-mesmo provocava, na cozinha, no campanário, nos corredores, na sacristia, e todos pareciam querer-lhe bem, inclusive o Cônego Pinto, que nunca deixava de lhe pôr na mão uma moeda de vintém, sempre que lhe entregava o chapéu para pendurar no cabide. De noite, depois de terminado os deveres que Padre Policarpo lhe passara para o dia seguinte, Damião apagou o candeeiro e estirou-se na rede. Entrou a balançar- se de leve, indo e vindo, para chamar o sono. Custou a acalmar-se, ainda alvoroçado com as emoções da tarde, e acabou por fixar-se, mais uma vez, nas imagens que recolhera do campanário, sobretudo da cadeirinha de arruar. Haveria uma cidade maior que São Luís? E com os sobrados tão bonitos? Duvidava muito. E ao embalo da rede, sentiu-se de novo no campanário, senhor negro da velha cidade, dominando-lhe as ruas em ladeira, os mirantes de azulejos, os telhados escuros, as grades de ferro das sacadas, os lampiões nas esquinas. Nunca se sentira tão feliz. Para trás, ficara o seu passado de muitos tormentos. Agora era uma outra vida, sem o braço do senhor a erguer a palmatória e dilacerar-lhe as mãos. Para que fosse plenamente feliz, só lhe faltava ter a mãe e a irmã ali ao seu lado. Um dia, com o favor de Deus, viveria com elas. E imaginou a Sé toda iluminada e florida, com a nave apertada de gente, na manhã em que ele, Padre Damião, fosse dizer a missa nova. Foi o Padre Policarpo, já noite velha, quem o tirou desse enlevo, batendo-lhe com força na porta do quarto: - Damião, te veste depressa e vem comigo. POR ESSE TEMPO já não se armava o patíbulo, no Largo da Forca Velha, para a execução dos negros escravos. O velho largo era agora uma praça tranqüila, rodeada de casas geminadas, e onde as crianças brincavam ao cair da tarde. Nas noites quentes, viam-se cadeiras nas calçadas, se havia luar. 134 A designação primitiva, ajustada ao patíbulo, acabou substituída por outra, que lhe deu o povo:. Praça da Alegria. A nova denominação inspirou-se na circunstância de que os pobres condenados, vistos de longe, pareciam pular de contente, logo que eram soltos no espaço com a corda no pescoço. À medida que a cidade se expandia e povoava, entraram a aumentar os protestos contra os enforcamentos de negros na Praça da Alegria. A Rua de Santana, com seus sobrados aristocráticos, passava por lá. Também por lá passava a Rua da Imprensa. A Santa Casa de Misericórdia era-lhe quase vizinha. Área essencialmente residencial, com muitas crianças nas ruas, uma escola mais adiante, convinha evitar que o patíbulo continuasse a ser armado ali. Como o castigo da forca recaía habitualmente em negros assassinos, que se vingavam de seus senhores, houve quem alvitrasse que o cadafalso fosse erguido no próprio lugar do delito, tornando assim mais exemplar o suplício do criminoso. Mas se viu logo ser isso impossível, visto que os crimes freqüentemente ocorriam no interior das casas. Optou-se então por uma solução volante. A forca passou a ser armada, não mais na Praça da Alegria, mas na Praia Grande, no Largo da Cadeia, no Largo de Santiago, no Largo do Desterro, e mesmo no chão baldio do Apicum, por trás da quinta do Barão. Todos os sinistros apetrechos necessários às execuções passaram a ser guardados no Arsenal de Marinha, de onde eram retirados à calada da noite, e logo armados no local escolhido pelo Tribunal da Relação, para que, nessa mesma noite, ocorresse o enforcamento. Padre Policarpo dormia o melhor de seu sono, com o corpo coberto pelas varandas da rede, quando o Quirino Porteiro, que ficava de plantão num pequeno quarto ao pé da escada, veio bater-lhe na porta, para lhe dizer que, lá fora, estava um carro à sua espera. - Vão enforcar outro preto - adivinhou o padre, acendendo o candeeiro, ainda a ouvir os passos do Quirino rangendo alto nos degraus da escada. E lá iria ele, mais uma vez, cumprir a piedosa incumbência de dar assistência ao condenado. Só atribuía ao fato de ser mulato a freqüência com que, nos últimos anos, era chamado para essa missão pungente, que sempre lhe destroçava os nervos. Sentia-se nauseado, a cabeça lhe doía, passava alguns dias de cara trombuda, falando pouco. Mas nuncapensara, uma só vez sequer, em fugir ao seu dever de sacerdote, e de sacerdote que tinha sangue negro nas veias. A despeito do sentimento de comiseração e revolta, que lhe vincava ainda mais as rugas do rosto tenso, mantinha-se junto ao condenado, procurando confortá-lo, até o momento final. Nesse instante, cerrava os olhos, e era, com Deus que se comunicava, implorando misericórdia para a fraqueza e a estupidez dos homens, enquanto ouvia deslizar a roldana da corda que ia suspender o enforcado. Depois de chamar o Damião, tornou ao quarto pisando alto, 135 bochechou um pouco de água sobre o penico, banhou o rosto no lavatório de ferro, sempre resmungando, sem se olhar no espelho meio carcomido, pendente da parede, e que lhe servia para fazer a barba e olhar a língua. - É preciso acabar com isto. Já não basta o que sofrem os negros, debaixo do chicote dos senhores, todo santo dia? Quando um deles se revolta, no impulso do desespero, paga na forca, e sempre me chamam para ajudá-lo a morrer. Se a Justiça é mesmo Justiça, por que não castiga também os brancos? Aqui mesmo em São Luís, quantos senhores já mataram os seus negros, sem que nada lhes acontecesse? Ainda resmungando, ia de um lado para outro do aposento, por vezes esquecido do que ia fazer. E seu vulto ancho, em ceroulas, fazia mover a chama do candeeiro, ao mesmo tempo que as tábuas do chão rangiam sob seus pés. Afinal, depois de enfiar os dedos na cabeleira, calcando-a para trás, vestiu a batina surrada, enfiou as botinas. E disse ao Damião, que aparecera na fresta da porta, com ar intrigado: - Vão enforcar um escravo, e eu tenho de confortá-lo. Vem comigo. Damião alargou a fresta, dando mais um passo para dentro do quarto, no momento em que o padre apanhava do cabide o seu chapéu preto: - Enforcar? Vão enforcar um escravo? E era tão grande o seu espanto, com a vista fixada no semblante do padre, que as suas sobrancelhas tinham subido para o meio da testa, ao mesmo tempo que os olhos cresciam, esbugalhando-se. - Sim - confirmou o Padre Policarpo, já de chapéu na cabeça, trazendo os paramentos. - Tens de te acostumar com a morte, se queres mesmo ser padre, e também com a estupidez dos homens, para aprenderes a perdoá-los, em nome de Deus. Vamos embora. Na rua morta, de casas fechadas, até mesmo a parelha de cavalos castanhos, atrelada ao carro, parecia cochilar, imóvel, com o cocheiro gordalhufo dormitando na boléia, junto à calçada do Paço. Mais ninguém no largo mal iluminado. Só de longe em longe, para os lados do Palácio do Governo, luzia a chamazinha azulada de um lampião de azeite. O padre fez Damiao entrar primeiro, depois deixou cair pesadamente o corpo aborrecido no assento traseiro da carruagem, e só então o cocheiro deu mostras de ter acordado, bocejando. - Podemos ir - ordenou Padre Policarpo. O cocheiro torceu o pino da lanterna, para clarear melhor o caminho, e em seguida soltou a rédea. Deu uma volta contornando a Sé, devagar, cautelosamente, para descer adiante a Rua de Nazaré, na direção da Praia Grande, ao toque-toque dos cavalos, que ia estimulando apenas com sacudidelas das rédeas e estalos da língua no céu da 136 boca. No silêncio largo, que a escuridão tornava mais denso, soavam alto as ferraduras e as rodas nas pedras do calçamento. A luz da boléia só dava para clarear desmaiadamente o vão da rua, à medida que a parelha avançava, passo a passo, perlongando agora o Largo do João do Vale. Embora a figura do cocheiro, esparramada no banco da boléia, impedisse que a luz da lanterna chegasse ao banco traseiro, Damiao pôde ver, numa das oscilações do carro, que o Padre Policarpo, em vez de ir cochilando, torcia as contas do terço, com as mãos descansadas no regaço, por cima do Breviário. Na esquina da Rua da Palma com a Rua de Nazaré, os cavalos dobraram à direita, obedecendo ao repuxo das rédeas, e o carro resvalou pela ladeira, com o cocheiro inclinado para trás, no esforço para conter a parelha, que tendia a precipitar- se declive abaixo, galopando no sentido da escuridão. Mas, ao pé da ladeira, o homem voltou a endireitar-se no banco, sustendo fortemente as rédeas, e o carro tornou a rolar com lentidão preguiçosa, por entre alas de sobradões de azulejos. Naquele ermo, tiniam mais alto as ferraduras e as rodas, numa atmosfera carregada de mistério. Damiao olhava para um lado e para o outro, no trânsito da luz da lanterna, de sobrancelhas franzidas, o coração acelerado, sem saber ao certo onde se achava. Teria andado por ali em companhia do Chico Benedito? Parecia-lhe que não. E mais viva era a curiosidade de suas pupilas, que só viam portas e janelas cerradas, calçadas desertas, um ou outro cão assustado, e mais adiante a escuridão compacta, debaixo do céu estrelado. O carro tinha entrado na Rua da Estrela, dando a impressão de que rolava mais devagar, puxado pela parelha sonolenta. Estavam agora no coração da Praia Grande, cercados de sobradões de pedra e cal, alguns de quatro andares, outros de sacadas de ferro, vários de mirante, e todos fechados, sem vivalma. Adiante, na Rua do Trapiche, luzia uma tocha vermelha, que o vento esbofeteava, obrigando-a a mudar de direção a cada momento. Sua luz sangüínea, abrindo um claro nas sombras da noite, mostrava o caminho do Cais da Sagração. Ali, encolhidos nos portais ou estirados nas calçadas, dormiam negros seminus, apenas com pedaços de estopa a protegê-los contra a viração úmida que vinha do mar. Passado o casarão da Alfândega, que outra tocha iluminava, o carro tardou ainda mais a marcha na subida da ladeira, parecendo que ia parar, tão lento era o toque-toque das ferraduras nas pedras do chão. Padre Policarpo alteou a voz para o cocheiro: - Afinal de contas, aonde nos levas? - Ao Desterro, Senhor Padre. - Não podíamos ir mais depressa? E o outro, depois de um risinho finório: 137 - Neste passo, a gente dá um pouco mais de vida ao preto replicou. - O coitado vai pra forca, assim que o Senhor Padre chegar. Só estão esperando pelo senhor. - Então vai mesmo devagar. O mais devagar que puderes concordou o padre, voltando a concentrar-se nas contas de seu terço. Damião mantinha-se em silêncio, na outra extremidade do banco. À medida que o carro avançava, sentia crescer na sua consciência a revolta e o medo. Onde seria o Desterro? E que teria feito o negro para ser enforcado? Por vezes um gato passava defronte dos cavalos e engolfava-se novamente na treva, só ficando de sua passagem a imagem fugidia e espantada. E lá ia o carro, toque-toque, tardo, pesado, rua acima, quebrando com o ruído áspero das rodas o sono da noite fechada. Ao fim da ladeira, os cavalos dobraram à esquerda, e uma luz apontou na esquina. Dois quarteirões adiante, viraram à direita, e logo Damião viu luzes nas casas, ao mesmo tempo que sentia a vigília curiosa da multidão na rua, à espera do enforcamento. - Estamos chegando - preveniu o cocheiro. Já agora não lhe era possível tardar a marcha do carro. Sacudindo as rédeas, animou os cavalos, duro no banco, o chicote em riste. - Não precisa correr - advertiu Padre Policarpo, agastado. E foi ele que primeiro deu com a forca, armada no meio do largo, com as duas traves de madeira, uma vertical, outra horizontal, unidas na extremidade superior da primeira, já com o laço de corda pendente da roldana de ferro. Quatro tochas, uma em cada extremidade da praça, davam à cena uma luz desvairada e que não tinha sossego. Uma escadinha de madeira levava ao cadafalso onde o condenado esperava pelo padre, com o carrasco ao seu lado, baixo, entrançado, a cabeça envolta pelo sambenito que lhe escondia o rosto, só com dois buracos no lugar dos olhos. Em redor, soldados de lanças perfiladas, contendo o povo que se tinha aglutinado em toda a volta do largo e que tentava aproximar-se cada vez mais, para olhar de perto o escravo que ia morrer. Ao fundo, avultava a fachada da igreja do Desterro, de portas e janelas fechadas, como a esquivar-se de testemunhar a execução. À aproximação docarro, a multidão abriu caminho, e várias vozes murmuraram em tom de alvoroço e excitação: - O padre chegou! Logo os cavalos avançaram pela nesga de rua, novamente devagar, passo a passo, e foram parar debaixo de um ramo de oitizeiro, junto da grade de ferro que protegia um dos lados da praça. - Tu me esperas aqui mesmo - recomendou Padre Policarpo ao Damião. - Não precisas sair. E depois de enfiar-se na sobrepeliz, segurou o Breviário e o crucifixo, adiantando o pé para fora do carro, sem conseguir disfarçar 138 de todo a sua emoção. Cortou o largo em diagonal, aproximando-se do cadafalso, e subiu depressa os degraus da escadinha, com os olhos no condenado, que também o fitava, tomado de pavor. - Soltem-lhe as mãos - ordenou Padre Policarpo, ao ver-lhe os punhos atados por uma corda. Era um preto forte, espadaúdo, a barba crescida, as mãos enormes desproporcionadas aos punhos. Trazia no corpo apenas uma sunga rasgada nas pernas. Devia ter sido vergalhado na cadeia porque ainda trazia no dorso e nos braços as marcas das lapadas recentes. Mesmo assim, não queria morrer. Dir-se-ia em guarda, pronto para defenderse ou fugir, embora não pudesse dar um passo com a corda que lhe atava os tornozelos. Seus olhos não tinham sossego, com um lume de pavor nas pupilas. Ao lhe soltarem as mãos, não procurou livrar-se da peia: caiu de joelhos, alongando os braços suplicantes na direção do padre: - Não deixe eu morrer, Seu Padre. É uma caridade que o sinhô me faz. Pelo amor de Deus. Pelo bem de São Benedito. As mãos vingativas, que tinham estrangulado o filho mais velho de seu senhor, estavam agora unidas, no gesto da humildade mais patética, e toda a figura vigorosa, de músculos retesados, torso de ébano, como que se desfazia e destroçava, vencida pelo medo da morte. Não obstante o vento frio que corria no largo, o preto suava, e o suor que lhe bolhava a testa e as têmporas descia-lhe pelos sulcos do rosto luzidio. Além do mais, tremia, batendo os dentes, como nas convulsões de um calafrio. Padre Policarpo tentou levantá-lo, erguendo-o por um dos braços; mas o preto teimou em permanecer de joelhos, e agora chorava, repetindo a súplica: - Não deixe me enforcar, Padre. Pelo bem de Nossa Senhora do Rosário. Pelo amor de Jesus. Os branco pode me bater, Seu Padre, e eu juro que não levanto a mão. Os soldados mantinham-se atentos, com as lanças enristadas, quase a formarem um círculo em volta do condenado. com um gesto, Padre Policarpo ordenou que se afastassem. Só o carrasco não se movera, metido no seu sambenito, as mãos segurando o laço da corda. E Padre Policarpo, mais perto do negro: - Me dá as tuas mãos. E ungiu-as depressa, derramando os santos óleos sobre o dorso de cada uma, mesmo erguidas na insistência da súplica. Como a luz de uma das tochas batia em cheio no rosto do condenado, viam-se-lhe as lágrimas descendo pela cara cintilante, a cabeça meio inclinada. Agora chorava em silêncio, de lábio pendente, os olhos erguidos para o sacerdote. Sempre depressa, Padre Policarpo fez o sinal-da-cruz sobre a testa, a boca e o peito do preto, pedindo que Deus lhe perdoasse os pecados e lhe desse a vida eterna: 139, -, Misereatur fui omnipotens Deus, et dimssis peccatis tuis perducat te ad vitam aeternam. E de repente, como tocada pela magia dessas palavras, a figura corpulenta do negro desabou para o chão, desfeita num desmaio. Logo o carrasco acudiu, aproveitando-lhe a síncope, e ainda teve tempo de atar-lhe novamente os punhos e enfiar-lhe o laço na cabeça. Quando o condenado voltou a si, já com a corda a apertar-lhe o pescoço, deu um salto, mesmo sem apoio das mãos, e ficou de pé, na posição atarantada de quem vai correr e procura um caminho. Embora a peia lhe prendesse os tornozelos, conseguiu equilibrár-se numa agilidade de gato, e saltou para trás com os pés unidos, ao ver que o carrasco começava a puxar a corda. E esta esticou, rangeu, deslizou na roldana, arrastando o preto sobre as tábuas do patíbulo, sem lhe dar tempo de ensaiar outro salto. Padre Policarpo tinha retraído um passo, querendo sair dali o mais rápido possível; mas conseguiu dominar-se. Não, não podia ir embora, tinha de ficar até o fim. E abrindo o Breviário, implorou a misericórdia de Deus: - Ostende nobis Domine misericordiam tuam. Impelido para fora do estrado, o corpo ficou suspenso no ar, com os músculos do pescoço retesados, no esforço para conter o arrocho da corda. E esta ia subindo, puxada pelo giro da roldana. Nisto o negro conseguiu partir o nó que lhe atava os pulsos e levou as mãos acima da cabeça, tentando segurar-se na corda. Como não podia mover os pés, ainda peados, contorcia-se todo, iluminado pelo clarão vermelho das quatro tochas, enquanto a multidão, cá embaixo, de respiração suspensa, lhe acompanhava os movimentos, com um brilho de júbilo nos olhos espantados. Conseguindo agarrar a corda, o negro ensaiou puxar o corpo para cima, tentando afrouxar o laço que o sufocava, mas as forças lhe faltaram. Tentou outra vez, estimulado pelos gritos do povaréu que se pôs a aplaudi-lo, e novamente falhou. De dentes cerrados, pescoço endurecido, quis insistir na luta desigual, contorcendo-se e pulando, a balançar-se no espaço, sempre puxado pela corda, e de pronto os braços lhe caíram, com os ombros curvos, a cabeça pendida, a língua para fora da boca. Logo um toque leve de corneta vibrou no ar, anunciando o fim da cerimônia. Padre Policarpo cerrou de golpe o Breviário, sem esperar que o aparato lúgubre se desfizesse, e correu para o carro. - Vamos embora, vamos embora - gritou para o cocheiro, caindo pesadamente no banco, sem despir a casula. E enquanto o cocheiro manobrava, soqueando as rédeas, curvou-se para a frente, com as mãos cobrindo o rosto, e assim ficou até quase o fim da rua, sem poder esquecer que, de relance, ao deixar o cadafalso, tinha dado com o senhor do escravo, dentro de uma carruagem aparatosa, a assistir-lhe à execução. 140 FELIZMENTE, JÁ NO COMEÇO DE MAIO, ÚlStruído pelo Padre Policarpo, pôde Damião começar a ajudar o Senhor Bispo a rezar as missas pela paz da alma do Dr. Lustosa. Parecia-lhe, ao termo de cada uma, que tinha acabado de pôr num cofre, sob os olhos de nossa Senhora da Luz, padroeira da igreja, a nova moeda com que ia pagando a sua carta de alforria. Vinha-lhe essa sensação no momento em que, na sala da sacristia, se despia de suas vestes, depois de ter recolhido os paramentos do Senhor Bispo à pesada arca de jacarandá lavrado, que se estendia por quase toda uma parede, com severos argolões de prata, debaixo de um grande retrato de Pio IX, pintado por Domingos Tribuzzi. O Bispo, vez por outra, antes de voltar ao Palácio, perguntava-lhe, com mostras de interesse verdadeiro: - Quantas, com a de hoje, Damião? Ele dava o número, com a mais absoluta segurança, alargando a cara no riso feliz, e o certo é que, pouco a pouco, se ia sentindo mais senhor de si, tanto no Paço quanto na Sé. Embora as aulas do Seminário já tivessem começado, Padre Policarpo achara melhor continuar a dar-lhe as lições ali mesmo no Paço, meio hábil para não lhe dizer que, a despeito de todo o empenho do Senhor Bispo, Sua Reverendíssima encontrara resistências intransponíveis para matriculá-lo como aluno regular. Padre Lucas, com a sua autoridade de reitor, usara da maior franqueza, na conversa que tivera com Dom Manuel: - Quando se soube, no Seminário, que Vossa Reverendíssima ia enviar-nos um preto, saído da senzala, para encaminhá-lo ao sacerdócio, até parece que estava ardendo Tróia. Dois dos nossos melhores professores, o Padre Severo e o Monsenhor Soares, entraram no meu gabinete, muito nervosos, para declarar que deixavam de ensinar. E hoje, pela manhã, recebi um grupo de pais de alunos, com um abaixoassinado, onde deixam claro que, se o preto for matriculado, preferem trancar a matrícula de seus filhos. Estou nas pontas de um dilema, que só Vossa Reverendíssima pode resolver: se acato a recomendação de meu Bispo, crio umproblema para o Seminário; se deixo de acatá-la, 141 crio um problema grave para mim, como sacerdote. Venho aqui rogar de joelhos a Vossa Reverendíssima que me tire desta dificuldade. Foi o Padre Policarpo que acabou por encontrar a solução: - Nem Damião se matricula nem deixa de estudar. Assim que passarem os comentários, levo-o comigo, faço-o sentar ao fundo da sala, e dou a lição. com o tempo, os outros seminaristas acabarão por acostumar-se com ele. Aí lhe pomos a batina. Do Palácio do Bispo, depois que acompanhara o Padre Policarpo para assistir ao enforcamento do escravo, Damião só voltara a sair uma vez. Contornara a igreja, sem se afastar da calçada, para entrar na Travessa da Sé, e ali comprar, no tabuleiro da Genoveva Pia, as cocadas do Padre Policarpo, que estava impedido de deixar a rede, com um começo de febre manhosa, atribuída a um resfriado. A preta, no momento de embrulhar as cocadas, demorara o olhar no rosto de Damião, franzindo a testa. E com as mãos paradas nas dobras do papel: - Me diz uma coisa, meu nego: tu não é filho do Julião? Eu logo vi. Não podia deixa de ser. Tu é ele, escrito e escarrado. Vejo um, tou vendo o outro. Que fim levou ele? - Morreu - replicou Damião, intrigado. - Morreu? - espantou-se a preta. - Nós veio da África no mesmo barco, meu fio. Ele era novinho, como tu. Brabo que só ele. Bateram nele o tempo todo da viage; e ele firme, sem dobrar a cabeça. Home como o Diabo. Nós veio de contrabando. Ele foi pró sertão, eu fiquei aqui. Uma sinhá me comprou, deixou eu trabaiar até ter dinheiro pra comprar minha liberdade. Trabaiei como uma doida nos meus tachos de doce, e hoje tou aqui, dona do meu nariz. Riu alto, mostrando a fileira de dentes do maxilar inferior, a sacudir as voltas que lhe pendiam do pescoço comprido. Sentada no banco, junto ao muro do quintal da Sé, mantinha o corpo direito, sem se encostar, muito magra, o rosto comprido, uma luz de bondade no olhar. - E tu? Quê que tu faz aqui? - perguntou a Damião, antes de entregar-lhe as cocadas. E ao saber que ele morava ali ao lado, no Palácio do Bispo, e ia ser padre, orientado pelo Padre Policarpo, não pôde reprimir o riso: - Eu logo vi que tanta cocada de uma vez só podia ser pró Padre Tracajá. Quê qu'ele tem? Tá doente? Hum, já sei. Macacoa de veio. É assim mesmo. Antão tu vai ser padre? Eu até quero ver. Pretinho assim como tu, dentro da batina, fazendo sermão prós branco, que bom! Só quero ver pra crer. Mas tu precisa ir no tambor de mina. Vai lá. É na Casa das Mina, na Rua de São Pantaleão. De noite, não tem errada: basta ouvi o tambô tocando. Lá eu sou noviche, tenho o meu vodum, que anda comigo. Vai conhecer Mãe Hosana. É a nochê de nós todo. Tu é preto, e preto puro, de boa raça, como teu pai. Te chega aos preto. Mãe Hosana vai gostar de te ver. 142 Fez outro embrulho de cocadas enquanto falava. E entregando-o a Damião: - Este é teu. Não custa nada. Tu é preto grande, Damião. Eu sei quem tu é. Vai cum Deus. E ficou a olhá-lo, embevecida, até vê-lo sumir na dobra da rua, de volta ao Paço, magro, esguio, o passo certo e cheio, a cabeça alta, com a certeza de que ele era bem o filho de seu pai, homem de mando e força, que ela conhecera do outro lado do mar, na sua selva africana. A luz da manhã de sol, depois de uns dias de céu fosco, de chuvinha aborrecida, parecia alargar a cidade, que refulgia na claridade intensa, com as suas fachadas de azulejos muito limpas. Em vez de voltar logo ao Paço, Damião retrocedeu junto à porta da Sé, e passou para a calçada do Largo do João do Vale, que lhe ficava quase fronteiro. Foi indo devagar, contornando o gradil que protegia a praça arborizada. E ia vendo cadeirinhas doiradas, suspensas no ombro dos negros, e carruagens puxadas pelo galope das parelhas, e cavalos de sela garbosamente montados, e transeuntes que iam e vinham pela calçada - uns senhores de preto, com bengala, cartola e luvas; umas senhoras de chapéu de palha, vestidos de cauda e sombrinha de cor, e também negras com panos-da-costa, batendo na cantaria do chão o pleque-pleque das sandálias de cetim. Mas via também negros de ganho, achatados pelos fardos que levavam na cabeça, subindo o aclive das ladeiras, e escravos com máscaras de flandres, e aguadeiros de rua, com suas pipas transbordantes, e que pingavam nas pedras do calçamento, levadas pelas carroças barulhentas. Num relance, a visão da fazenda refluiu-lhe ao espírito, e ele se viu na rampa da lagoa, com a sua carga de água ao ombro, ouvindo o ruído da bolandeira, o ranger das moendas e o gemido dos carros de bois carregados de cana. Não obstante tudo quanto ali sofrera, vinha-lhe agora um vago apego nostálgico ao cheiro da terra úmida, ao canto dos pássaros, à mãe, à irmã, a alguns companheiros, ao bater dos tambores no terreiro da senzala, a luz da tarde desfazendo-se sobre a lagoa que a primeira viração da noite levemente arrepiava. com quem andaria agora a Miduca? Que estaria fazendo Sinhá Velha, com seu molho de chaves na cintura? Por onde andaria o Chico Benedito? Da mãe e da irmã continuava a não ter notícias. Um dia, com o favor de Deus, tirá-las-ia do cativeiro, dando-lhes a liberdade, para que ambas, já alforriadas, ouvissem a missa nova do Padre Damião, ali na Sé. E como estaria a pobre da NháBiló? Com certeza vaguearia de noite pela casa às escuras, toda de roxo, muito pintada, ou então faria gemer a sua guitarra, no silêncio da casa-grande, só aplacando a ansiedade da sua carne, no fundo da rede, com os machos a quem em sonhos se entregava. Sempre acompanhando o gradil do largo, Damião chegou à esquina da Rua de Nazaré. Lembrava-se de que entrara ali, tomando a sua 143 esquerda, quando fora assistir, à noite, ao enforcamento do preto. Instintivamente olhou na direção contrária. Viu de longe outro largo e uma rua estreita que parecia não ter fim. Pensou ir até lá. E se se perdesse? Não, o melhor era voltar, que Padre Policarpo estava à sua espera. Encontrou-o de pé, com as mãos para as costas, cabeça baixa, a andar ao comprido do quarto, os cabelos despenteados pelo atrito da rede, a barba por fazer. - Está melhor, Padre? - perguntou-lhe. Calado, sem responder, Padre Policarpo recebeu o pacote das cocadas. E abrindo o embrulho, com irreprimível sofreguidão: - Ficaste de conversa com a Genoveva Pia, e eu aqui bestando, com o estômago a doer - desabafou, em tom de reprimenda. Comeu a primeira cocada, começou a mastigar a segunda, e foi adoçando o semblante, de novo escanchado na rede. Depois, de boca cheia, mastigando alto, gulosamente, voltou para Damião os olhinhos risonhos: - Ninguém faz cocadas, aqui no Maranhão, como aquela preta. Podes também te servir, Damião. Tira uma para ti. Não faças cerimônia. E Damião, mostrando-lhe o outro embrulho: - Estas ela me deu. Mas também são suas, Padre Policarpo. - Põe junto das outras, aí mesmo na mesa. Obrigado. E ainda deleitado, já agora mastigando devagar, degustando cada pedaço que os dentes fortes iam trincando, Padre Tracajá chegou ao fim da quarta cocada, com a boca suja de farelos de açúcar e coco, o semblante satisfeito, os olhos cheios de luz. Passou a costa da mão canhota pelos lábios úmidos, sem desfitar Damião. E após um silêncio, farto, a mão sobre o ventre, com uma fisionomia apaziguada: - Levaste quase uma hora, entre o Paço e a Travessa da Sé. Por quê? Não mintas. A um padre não se mente. - Mesmo que o senhor não fosse padre, eu lhe diria a verdade. Conversei um pouco com a Genoveva Pia, que chegou a São Luís no mesmo barco em que veio meu pai, e depois dei uma volta no largo. Daqui do Paço, só saí uma vez, à noite, com o senhor. Eu ainda não conheço a cidade. E o padre, depois de outro silêncio, sentindo-lhe a queixa: - Tudo tem seu tempo, Damião. Diz o Eclesiasíes. E acrescenta que todas as coisas passam debaixo do Céu, segundo o termo que a cada uma foi prescrito. Não perdes por esperar. E no domingo, depois da sesta preguiçosa, mandou que Damião se vestisse com a sua melhorroupa. Quando o preto voltou, já encontrou o padre de chapéu na cabeça, pronto para sair. Na tarde fosca, com o sol querendo abrir, disse este a Damião, travando-lhe o braço, ainda na calçada da Sé: - O mais importante de São Luís tu já conheces: é a vista da 144 cidade, do alto do campanário. Quanto ao mais, quem vê uma rua vê as outras: todas se parecem, com casas de um lado e casas do outro. A novidade maior aqui são as moças nas janelas, criando calos nos cotovelos, para ver quem passa. Mas a verdade é que, embora Damião já conhecesse a cidade pelos seus telhados e horizontes, sentia uma curiosidade mais viva para olhá-la de perto. Tinha na memória todos os seus bairros e muitos nomes de ruas, e perguntava a si mesmo, nos seus momentos de devaneio, como seriam o Largo do Carmo, a Madre Deus, o Pertinho, o Largo dos Amores, o Largo do Quartel, a Rua do Sol, o Largo de Santo Antônio, a Rua Formosa, a Rua de São Pantaleão, a Gamboa, a Rua da Paz... De guarda-chuva sobraçado, o Padre Policarpo mantinha o passo curto e cheio, sem mudar de calçada. Adiante, na Travessa da Sé, passou para o outro lado, sem se desprender do braço de Damião, enquanto este, de olhos atentos, ia guardando tudo o que via, desde o nome da rua à forma das casas. E foi ele que disse, com ar de alvoroço, querendo adivinhar, assim que entraram por uma ampla praça arborizada, rodeada de sobrados, quase todos de azulejos: - Aqui é o Largo do Carmo, Padre? O outro confirmou com a cabeça, parado na ponta da calçada, para deixar que se atenuasse o assombro do preto, que envolvia no mesmo olhar feliz os transeuntes, as casas, as árvores, os bancos de ferro, os lampiões, os balcões dos sobrados. Mais que no Largo de João do Vale, via ali negras altas, de cintura fina, quadris fartos, sandálias de cetim. Num relance do olhar, notou mais pretos que brancos - mas já o Padre Policarpo voltava a travar-lhe do braço atravessando a rua. Lá adiante tornaram a parar, desta vez defronte da coluna de mármore que dominava a praça, quase em frente ao Convento do Carmo: era alta, elegante, de base retangular, subindo para o capitel em feixes espiralados. - Sabes o que é isso? - indagou o padre, espichando o beiço inferior na direção da coluna. - É o Pelourinho. Nunca ouviste falar nesse nome? Guarda-o bem na memória. Essa coluna foi erguida para o castigo público dos negros cativos. Os escravos eram amarrados à coluna, de bunda de fora, para serem açoitados. Hoje, já está fora de uso. Os pretos não apanham mais na praça pública; só apanham dentro das casas, e alguns apanham tanto que morrem de apanhar. E enquanto o sol se abria, banhando com a sua luz intensa a espiral de mármore, o padre deu à voz um tom mais grave: - Se os negros se unissem, não havia mais escravos. Um silêncio se alongou, quebrado logo depois pelo ruído de uma carruagem que passava para a Rua da Paz. Mas Damião pareceu não ouvir o rolar das rodas e o tinido das ferraduras, concentrado em si mesmo, as pálpebras apertadas. A opinião de seu pai 145 coincidia com a opinião do Padre Policarpo. Ali no Maranhão, os negros eram muitos, talvez mais que os brancos, e todos cativos, com o seu senhor e a sua sujeição. Não se dizia que Donana Jansen, para atravessar o alagadiço à entrada de seu sítio no Cutim, ia pisando sobre os corpos dos pretos, que se deitavam na lama para que a senhora não sujasse os sapatos? Já ele havia assistido, mais de uma vez, à entrada repentina de negros fugidos, que saltavam o muro do fundo da Sé, por cima da crista de cacos de garrafas, para implorar ao Senhor Bispo, de joelhos, ainda sangrando, que os livrassem das iras de seus senhores. Um deles ficara escondido, durante toda uma noite, dentro da própria Sé, por baixo do altar-mor, para escapar ao famigerado Cabo Machado, que o perseguia a cavalo, de chicote em punho, e chegara a querer agarrar o preto dentro da igreja. Só não o fizera porque de pronto Dom Manuel acudira, ameaçando o cabo de excomunhão, se desse mais um passo dentro da nave. - O senhor tem razão, Padre Policarpo. É preciso que os negros se unam. Se não se unirem, continuam apanhando, como eu apanhei. Na outra esquina, passada a igreja do Carmo, principiava a Rua Grande, com as suas casas de modas, os seus bazares, a sua farmácia homeopática, o seu barbeiro sangrador. Da janela de um sobrado, pendia uma placa de metal, com esta indicação: M. Ory, cabeleireiro francês. Noutra placa, mais adiante, José Adriano Moreira da Rocha informava que vendia instrumentos musicais e livros em todas as línguas. Havia ainda um professor de dança, um afinador de pianos, dois armadores de galas e funerais, várias lojas de fazendas, um armazém de vinhos e uma chapelaria, além de um atelier fotográfico "muito bem aparelhado para tirar retratos pelo novíssimo sistema de ambrótipo, sobre cristal, malacacheta e encerado". Pela altura da Rua de São João, dobraram à esquerda, até à Rua da Paz, e de novo passaram pelo Largo do Carmo, de volta ao Palácio do Bispo, já querendo entardecer. E como o sol rutilava, bafejado pela viração que subia do mar, irrompeu das árvores do caminho a estralada dos bem-te-vis, como se uns respondessem aos outros, e todos radiantes, enquanto a luz se decompunha, para os lados do poente, em vivos tons escarlates, suspensa sobre as águas da baía. Padre Policarpo parou à porta do Palácio do Bispo, resvalando o' olhar pela tarde em agonia, e comentou, antes de começar a subir, apoiado no braço do Damião: - E ainda há por aí quem não acredite em Deus... De noite, repassando o passeio, já deitado, Damião ia vendo os transeuntes nas calçadas, e negros, muitos negros, ao mesmo tempo que avultava a espiral de mármore do Pelourinho. Era o seu povo disperso, entregue a muitos senhores, e estes o castigavam. E por que ele, Damião, não se consagrava, assim que se formasse, à causa de seus irmãos de raça? No vaivém da rede, no quarto as escuras, pôs-se a pensar 146 que talvez ele fosse um enviado de Deus para essa missão redentora. Daí a morte de seu senhor, quando injustamente o castigava. E tudo o mais que lhe acontecera, salvando-lhe a vida, conduzindo-o para São Luís, aproximando-o do Senhor Bispo, parecia obedecer a um desígnio secreto, que só agora entrevia e alcançava. Deus escrevia direito por linhas tortas. O pensamento que orientara seu pai, insurgindo-se contra o cativeiro e levando-o a construir o seu quilombo, o filho haveria de continuar, já agora na grande cidade, com a sua batina de sacerdote. E tanto se embalou na rede, insone, madrugada adentro, que Padre Policarpo lhe observou, quando se encaminhavam, muito cedo, para a missa na Sé: - Tu, esta noite, dormiste pouco, se é que dormiste. Nas duas vezes em que acordei, pela madrugada, ouvi o rangido de tua rede nos armadores. Na tua idade, também passei minhas noites em claro. E vou-te dar um aviso, com a minha experiência de padre: a vida inteira terás noites assim, se fores sacerdote, e sacerdote às direitas. Essas noites compridas fazem parte de nossa vida de sacrifícios. Sempre que nos recusamos a ceder às tentações da carne, ela nos maltrata, não nos deixando dormir. Quando a tentação for muito forte, mergulha numa tina de água fria, seja de dia, seja de noite. Ou então trata de caminhar. Anda, anda muito. Dá uma volta atrás da outra, muitas e muitas vezes, no terreno do quintal. Anda, até o corpo cansar. Era assim que eu fazia, na tua idade. Hoje, já estou velho, a carne fraca já me deixa dormir o meu sono, quer de dia, quer de noite. Louvado seja Deus. Bendito seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas não penses que fui santo. Não, não fui. Mas sempre encontrei os braços do Senhor Jesus, para me envolver e perdoar, quando me ajoelhei diante dele, arrependido de meus pecados. E no domingo seguinte, Padre Policarpo levou-o em sua companhia para que também lhe acolitasse a missa na igreja do Rosário. De longe, já na Rua do Egito, Damião viu a calçada cheia de negros. Uns estavam vestidoscom ar de senhores, e eram solenes até na maneira de andar, a roupa bem passada, óculos de aro de metal, chapéu alto. Também viu negras trajadas com esmero, pose de brancas, a gaforinha espichada a ferro, saia nos tornozelos, sapatos de verniz, a blusa cavada mostrando o começo dos seios. Mas a grande maioria era constituída de negros descalços, a camisa arremangada, o rosto assustado. Um deles, dentro da igreja, chamava a atenção, muito magro, alto - com a máscara de flandres a lhe subir do pescoço, fechada do lado da nuca por um cadeado. No correr da missa, com o turíbulo aceso a espalhar os duetos de incenso em volta do altar, Damião sentiu volver-lhe ao espírito, mais nítida, mais ambiciosa, a consciência da missão que Deus lhe reservava. A multidão de negros que enchia a nave, e ainda se alastrava para a calçada da rua, indo quase ao outro lado, não tinha um chefe 147 que os guiasse. Uns mais afortunados, outros menos, não chegavam a constituir um rebanho. Eram ovelhas dispersas, cada qual vivendo a sua vida, sem um pastor que as aproximasse e conduzisse, ali no meio grande, onde só os brancos podiam mandar, como amos e senhores. Era-lhe difícil aceitar que as pessoas se cruzassem nas ruas, sem se falar, como se não morassem na mesma cidade nem se encontrassem todos os dias. Ali mesmo na igreja, ao contrário do que se passava na fazenda, os negros lhe davam a impressão de que não se falavam: permaneciam isolados, cada qual no seu canto, embora reunidos na mesma nave. Era preciso que todos se unissem, como no quilombo. E seria ele, Damião, já revestido de sua autoridade de sacerdote, que por fim os aglutinaria, com o favor e a graça de Deus! Padre Policarpo entrava agora na consagração da missa: - Per omnia saecula saeculorum. - Amen - respondeu Damião. „ - Dominus vobiscum. - Ei cum spiritu tuo. Já agora não somente podia repetir, sem um erro, corridamente, o latim da missa, como lhe conhecia o sentido e a significação. Havia terminado a Arte Latina, do Padre Figueiredo, que em parte sabia de cor. Aos poucos, orientado pelo Padre Policarpo, ia lendo um livro atrás de outro, até tarde, à fraca luz do velho candeeiro. Ultimamente, dera-lhe o padre seus antigos cadernos de seminarista, e era por eles que Damião ia disciplinando melhor o que estudava. Quando tinha uma dúvida, recorria ao Tracajá, e este, mesmo sonolento, levantava a pálpebra espantada: - Já andas por aí, Damião? - Sim, Senhor Padre. No entanto, ao ajudar pela primeira vez o Senhor Bispo, na celebração da santa missa, duas vezes se havia atrapalhado: uma, ao deixar de responder a Dom Manuel, no início da consagração; outra, ao esquecer de tanger a sineta, antes da elevação. Em ambas as ocasiões, o Bispo o ajudara a corrigir-se, com um tom de leve reprimenda. Mas Padre Policarpo, que lhe acompanhava cada palavra e cada gesto, ajoelhado no primeiro banco da nave, tratara logo de sorrir-lhe, animando-o. E, ao fim da missa, entrara rindo na sacristia: - Saíste melhor do que eu, quando ajudei Dom Nazaré. Na hora do vinho, a galheta estava vazia. E várias vezes deixei o Bispo falando sozinho. Aqui mesmo levei um pito, que me fez a orelha arder. Damião ainda sentia as pernas trêmulas. Mais de uma vez tivera receio de que a voz lhe faltasse. Suara tanto, a despeito da manhã friorenta, que molhara as costas da batina. A noite toda ele a havia passado em claro, angustiado. Cedo, na véspera, por mão do Padre Policarpo, fizera a sua primeira comunhão. Antes, tinha-se confessado. E aflitivo havia sido o debate consigo mesmo, 148 hesitando se deveria contar também que fora ele que matara o Samuel. Afinal, decidira-se: não, não contaria. Se o padre soubesse que ele havia matado um homem, mudaria de idéia a seu respeito, e não o encaminharia para o sacerdócio. O melhor que fazia era calar-se. Deus o perdoaria. com certeza, já o tinha perdoado. De repente, à hora da missa, sentira volver-lhe o problema de consciência. Instintivamente erguera o olhar para a imagem de Nossa Senhora, buscando o seu amparo, e esquecera de tanger a sineta. Agora, ali na igreja do Rosário, sentia-se mais firme, mais seguro, limpo de espírito, confiado na graça de Deus. Tudo quanto ocorria no mundo obedecia a um desígnio divino. Mesmo um grão de areia não se deslocava, sem a concordância do Senhor. E ele, Damião, nada mais era, na sua pequenez e na sua humildade, do que um instrumento dessa vontade suprema, a que todo o Universo obedecia. A voz grossa do Padre Policarpo enchia a nave: - Graccias agamus Domino Deo nostro. E Damião, compenetrado de que Deus o olhava: - Dignum et justum est. Passou o.resto do dia no mesmo estado de espírito. Como o Padre Tracajá tinha ido almoçar fora, só devendo regressar ao Palácio pelo fim da tarde, subiu à torre do campanário, e ali se deixou ficar olhando a cidade, com o mesmo sonho no pensamento. Agora não podia perder tempo. Tinha de começar, o mais rápido possível, as suas aulas no Seminário. Quanto mais cedo principiasse, mais cedo se ordenaria. Metido na sua batina de sacerdote, só teria este ideal: livrar do cativeiro os outros negros. Do púlpito, no momento da predica, não falaria aos escravos no tom contemporizador e manso do Padre Policarpo. Seria mais rude, mais objetivo. Por que os negros teriam de suportar, durante toda a vida, o chicote de seus senhores? E onde estava a determinação de Deus, para que os brancos escravizassem os pretos? Longe, por cima do mar, o céu se avermelhava, e seu tom escarlate ensangüentava a crista das ondas, na tarde que "ia esmorecendo. E o que Damião revia, alongando o olhar para a amplidão da barra, era o rio barrento, que se tingia com o sangue de seu pai. De noite, no quarto do Padre Policarpo, esperou o momento propício para perguntar a este quando pensava levá-lo ao Seminário para iniciar o seu curso. O padre, sonolento, parecia ter mergulhado num cochilo, com a cabeça descansada no punho da rede. Daí a pouco, vendo-o erguer as pálpebras, Damião repetiu a pergunta, já de pé para sair. E o velho, depois de um bocejo longo, como se procurasse com os pés os chinelos para levantar-se: - Quando chegar a hora, eu te aviso. Por enquanto, vai estudando aqui mesmo. Deixa o resto comigo. Mas só quando se levantou, ainda com o Damião a olhá-lo de sobrancelhas travadas, foi que lhe veio o argumento manhoso, que 149 evitava revelar-lhe a sua luta para que aceitassem um negro no Seminário: - Primeiro, precisas ter a tua carta de alforria. O Senhor Bispo já te disse que, como escravo, não podes pensar em ser padre. Só te podes matricular no Seminário depois que fores livre. Tem um pouco mais de paciência. Deus sabe o que faz. Só NO ANO SEGUINTE, pelo meado de agosto, o senhor Bispo pôde afinal dizer ao Damião, ao fim da derradeira missa pela paz da alma do Dr. Lustosa: - Agora, vamos tratar de tua carta de alforria. Hoje mesmo vou escrever à Dona Sinhá Lustosa. E como estavam na sacristia o Padre Lula, o Monsenhor Tavares e o Padre Pinto, além do Padre Policarpo, todos se aproximaram do Damião, depois que Dom Manuel o abraçou". Enquanto Padre Pinto e Monsenhor Tavares apenas lhe bateram no ombro, felicitando-o, o Padre Lula, mais efusivo, apertou-lhe a mão. Padre Policarpo, de propósito, deixou que os outros lhe tomassem a frente, tardando o passo. E quando chegou a sua vez, segurou o rosto de Damião com as mãos frias, beijando-lhe a testa. Em seguida, depois de olhá-lo nos olhos, comovidamente, apertou-o contra o peito. E quando pôde falar, ainda a abraçá-lo: - Tu conquistastes a tua liberdade trabalhando para o Céu, Damião. com a tua ajuda, a alma de teu senhor há de ter chegado diante de Deus. Meus parabéns. Que Nossa Senhora continue a te proteger. Depois, no palácio do Bispo, à mesa do café, apareceram o Chantre Soares, o Cônego Leite, o Padre Abreu, o Cônego Damasceno e Monsenhor Prado, que também felicitaram Damião, de modo formal, ao verem que o Bispo o fizera sentar à sua esquerda, em frente ao Padre Policarpo.