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Título original: In The Dark Copyright © Cara Hunter, 2018 Os direitos morais da autora foram assegurados. Copyright © Editora Nova Fronteira Participações S.A., 2022 mediante acordo com Johnson & Alcock Ltd. Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Trama, selo da E������ N��� F�������� P������������ S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite. E������ N��� F�������� P������������ S.A. Rua Candelária, 60 — 7.º andar — Centro — 20091-020 Rio de Janeiro — RJ — Brasil Tel.: (21) 3882-8200 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) H945e Hunter, Cara Em um porão escuro / Cara Hunter ; traduzido por Edmundo Barreiros. – 2.ed. – Rio de Janeiro : Trama, 2022. 376 p. Formato: e-book epub com 3,6 MB Título original: In The Dark ISBN: 978-65-89132-75-2 1. Literatura americana – suspense. I. Barreiros, Edmundo. II. Título. CDD: 808.8 CDU: 82-32 André Queiroz – CRB-4/2242 www.editoratrama.com.br /editoratrama http://www.editoratrama.com.br/ Para “Burke e Heath” Pelos muitos dias felizes SUMÁRIO Capa Folha de rosto Créditos Dedicatória Prólogo Início Epílogo Agradecimentos Colofão kindle:embed:001G?mime=image/jpg PRÓLOGO Ela abre os olhos e se depara com uma escuridão tão cerrada que sente como se estivesse vendada. Sente o peso de um ar estagnado e úmido que não era respirado em muito tempo. Seus outros sentidos despertam bruscamente. O silêncio gotejante, o frio, o cheiro. Mofo e mais alguma coisa que ela não consegue identificar ainda, algo animal e fétido. Ela movimenta os dedos, sentindo terra e umidade sob a calça jeans. Agora está lembrando — como chegou ali, por que isso aconteceu. Como ela pôde ter sido tão burra? Ela contém a torrente ácida de pânico e tenta se sentar, mas é impossível. Ela enche os pulmões e grita, sua voz ecoando nas paredes. Grita, grita e grita até sua garganta arder. Mas ninguém vem. Porque ninguém consegue escutar. Ela fecha os olhos outra vez, sentindo lágrimas quentes de raiva escorrerem pelo rosto. Ela está rígida de indignação e recriminação, e não tem consciência de nada mais até que, aterrorizada, ela sente as primeiras patinhas afiadas começarem a se movimentar sobre sua pele. Alguém disse que abril é o mês mais cruel, não foi? Bem, quem quer que tenha sido não era detetive. A crueldade pode ocorrer a qualquer hora — eu sei, eu já vi. Mas o clima frio e os dias escuros de algum modo amortecem sua contundência. Luz do sol, o canto de passarinhos e céus azuis podem ser brutais nesse trabalho. Talvez o problema seja o contraste. Morte e esperança. Esta história começa com esperança. É o primeiro dia de maio, o início da primavera de verdade. E se você já esteve em Oxford, vai saber: é tudo ou nada neste lugar — quando chove, as pedras ficam com cor de xixi, mas sob a luz, quando as faculdades parecem ter sido esculpidas em nuvens, não há lugar mais belo na Terra. E eu sou só um policial velho e cínico. Em relação à tradicional festa de May Morning, bom, isso é a cidade em sua personalidade mais excêntrica e desafiadora. Pagã e cristã e um pouco louca; é difícil dizer, em grande parte do tempo, qual é qual. Corais de meninos cantam ao nascer do sol no alto de uma torre. Bandas de zanfonas disputam espaço com food trucks de hambúrguer que funcionam a noite inteira. Os bares abrem às seis da manhã, e metade da população estudantil ainda está bêbada da noite anterior. Até os cidadãos sóbrios de North Oxford surgem em massa com flores no cabelo (e você acha que estou brincando). Havia mais de 25 mil pessoas aqui no ano passado. Uma delas era um homem vestido de árvore. Acho que você captou a ideia. Então, de um jeito ou de outro, é um dia especial no calendário da polícia. E é um dia longo para os policiais uniformizados, não curto. O início do turno logo cedo pela manhã pode ser um problema, mas costuma ser tranquilo, e em grande parte ficamos bebendo café e comendo sanduíches de bacon. Ou pelo menos ficávamos, na última vez que fiz isso. Mas isso era quando eu ainda usava uniforme. Antes de me tornar detetive; antes de me tornar inspetor detetive. Mas este ano é diferente. Este ano o problema não é apenas acordar muito cedo. *** Quando Mark Sexton chega a casa, está quase uma hora atrasado. Devia ser uma viagem rápida àquela hora da manhã, mas o trânsito na M40 estava completamente congestionado, e o engarrafamento se estendia até a Banbury Road. E quando ele entra na Frampton Road, há a caminhonete de um empreiteiro bloqueando a entrada da sua garagem. Sexton xinga, engrena a ré no Cayenne e recua cantando pneu. Então abre a porta e sai para a rua, evitando por pouco uma poça de vômito no asfalto. Ele olha enojado, verificando seus sapatos. O que está acontecendo com a droga da cidade esta manhã? Ele tranca o carro, vai andando até a porta da frente, então enfia as mãos nos bolsos procurando pelas chaves. Pelo menos tinham tirado o andaime. A negociação demorou muito mais do que o esperado, mas as obras deveriam terminar até o Natal, se eles tivessem sorte. Ele perdeu um leilão por uma casa do outro lado da Woodstock Road e teve que aumentar o lance para comprar essa, mas, quando estiver pronta, vai ser uma mina de ouro. O mercado imobiliário no restante do país podia estar em baixa, mas, com os chineses e os russos, os preços nunca pareciam baixar nessa cidade. A casa ficava a apenas uma hora de Londres e tinha uma escola particular de primeira para meninos a apenas três ruas de distância. Sua mulher não gostou da ideia de uma casa geminada, mas ele disse a ela, dê só uma olhada — é enorme. Estilo vitoriano legítimo, com quatro andares e um porão que ele planeja reformar e transformar em uma adega moderna e em um complexo cinematográfico (não que ele já tenha contado isso para a mulher). E só um velho idiota morando na casa ao lado — ele não vai fazer muitas festas de arromba, não é? E, sim, o jardim dele é descuidado, mas eles sempre podem botar umas treliças. O paisagista disse alguma coisa sobre árvores entrelaçadas. Mil libras por unidade, mas é uma cobertura instantânea. Embora nem isso resolva o problema da frente. Ele olha para o Cortina enferrujado e apoiado em tijolos em frente ao número 33 e para as três bicicletas acorrentadas a uma árvore; a pilha de paletes apodrecidos e os sacos plásticos pretos derramando latas de cerveja vazias na calçada. Eles estavam ali na última vez que ele foi até lá, duas semanas atrás. Ele enfiou um bilhete pela porta pedindo ao velho idiota para tirá-los dali. Ele nitidamente não tinha feito isso. A porta se abre. É Tim Knight, seu arquiteto, com um rolo de plantas nas mãos. Ele dá um sorriso largo e acena para que seu cliente entre. — Sr. Sexton, é bom vê-lo outra vez. Acho que vai ficar satisfeito com o progresso que fizemos. — Tomara — diz Sexton, com uma ironia pesada. — Esta manhã não tem como ficar muito pior. — Vamos começar pelo último andar. Os dois homens sobem, e seus pés trovejam na madeira nua. No andar de cima, a rádio local está a todo volume, e há operários na maioria dos aposentos. Dois gesseiros no último andar, um bombeiro hidráulico no banheiro da suíte e um especialista em restauração de janelas trabalhando nas vidraças. Um ou dois dos trabalhadores olham para Sexton, mas ele não faz contato visual. Ele está anotando cada serviço em seu tablet, e perguntando sobre a maioria deles. Eles terminam na ampliação nos fundos, onde a antiga estrutura de alvenaria foi derrubada e um espaço enorme de metal e vidro de pé- direito duplo está sendo construído em seu lugar. Além das árvores que descem até a base do jardim, eles podem ver a elegância georgiana da Crescent Square. Sexton desejava poder ter comprado uma daquelas casas, mas o mercado cresceu cinco por cento desde que ele comprou esse lugar,então ele não pode reclamar. Ele pede que o arquiteto lhe mostre o projeto da cozinha (“Nossa, não se consegue muita coisa por sessenta mil libras, não é? Eles não botaram nem a droga de uma lava- louça.”), então se vira e procura pela porta da escada que leva até a adega. Knight parece um pouco apreensivo. — Ah, eu ia chegar a isso. Houve um pequeno problema na adega. Os olhos de Sexton se estreitam. — O que você quer dizer com problema? — Trevor me telefonou ontem. Eles encontraram um problema com a parede compartilhada. Talvez precisemos de um acordo jurídico antes que possamos consertá-la. Qualquer coisa que façamos vai afetar a estrutura da casa vizinha. Sexton faz uma careta. — Ah, pelo amor de Deus, não podemos nos dar ao luxo de envolver advogados. O que houve? — Eles começaram a tirar o reboco para poderem instalar a nova fiação, mas parte da alvenaria estava em condições muito ruins. Deus sabe quanto tempo fazia que a sra. Pardew não ia lá embaixo. — Velha idiota — murmura Sexton, o que Knight decide ignorar. Esse é um trabalho muito lucrativo. — De qualquer forma — continua o arquiteto —, um dos rapazes não percebeu rápido o suficiente com o que estava lidando. Mas não se preocupe, amanhã vamos trazer o engenheiro estrutural aqui e… Mas Sexton já o afastou e passou por ele. — Quero ver por mim mesmo. A lâmpada na escada do porão tremeluz friamente enquanto os dois descem. Todo o lugar cheira a mofo. — Cuidado onde pisa — avisa Knight. — Alguns desses degraus não são seguros. Você pode quebrar o pescoço aqui no escuro. — Você tem uma lanterna? — pergunta Sexton, alguns metros à frente. — Não consigo ver nada. Knight passa uma para ele, e Sexton a acende. Ele vê o problema imediatamente. A pintura está estufada no que resta do velho reboco amarelado e, por baixo, a maioria dos tijolos está se desfazendo com mofo seco e cinza. Há uma rachadura da largura de seu dedo do chão ao teto que não estava ali antes. — Cacete, será que vamos precisar escorar a casa inteira agora? Como o inspetor não viu isso? Knight parece querer se desculpar. — A sra. Pardew tinha várias coisas empilhadas junto daquela parede. Ele não deve ter conseguido olhar atrás delas. — E, mais importante: como ninguém estava monitorando o cretino que arrancou um pedaço da minha parede, porra? Ele pega uma das ferramentas no chão e começa a futucar os tijolos. O arquiteto dá um passo à frente e intervém. — Sério, eu não faria isso… Um tijolo cai, depois outro, e então um pedaço de cantaria se solta e cai a seus pés em meio à poeira. Dessa vez, os sapatos de Sexton não escapam da sujeira, mas ele não percebe. Ele está olhando, de boca aberta, para a parede. Tem um buraco, talvez com cinco centímetros de largura. E do outro lado, no escuro, um rosto. *** No distrito policial da St. Aldate’s, o recém-promovido sargento detetive Gareth Quinn está em seu segundo café e terceira rodada de torradas, com a gravata cara jogada por cima do ombro para protegê-la de farelos. A gravata cara que combina com o terno caro e com a aura de ser um pouco inteligente demais para ser um policial comum. O departamento de investigação criminal está praticamente vazio; só Chris Gislingham e Verity Everett chegaram até agora. A equipe não está com nenhum caso grande no momento, e o inspetor detetive Fawley ficará o dia inteiro fora em uma conferência, então todo mundo apreciou a indulgência rara de poder chegar mais tarde ao trabalho seguida pela perspectiva sempre sedutora de botar a papelada em dia. Há um momento, com a poeira flutuando nos feixes de luz do sol que entram enviesados através das persianas, o farfalhar do jornal de Quinn, o cheiro de café. Então o telefone toca. São 9h17. Quinn estende a mão e atende. — Departamento de Investigação Criminal. — Então: — Merda. Tem certeza? Gislingham e Everett erguem os olhos. Gislingham é sempre descrito como “robusto” e “sólido”, e não só porque engordou alguns quilos nos últimos anos. Ele, ao contrário de Quinn, não foi promovido a sargento detetive e, considerando sua idade, agora provavelmente não vai mais ser. Mas não o julgue por isso. Toda equipe de investigação criminal precisa de um Gislingham e, se você estivesse se afogando, era ele que ia querer na outra ponta da corda. Quanto a Everett, ela é outra pessoa que você não pode se dar ao luxo de julgar pelas aparências: Ev pode se parecer com Miss Marple quando tinha 35 anos, e é igualmente rígida. Ou, como Gislingham sempre diz, ela com certeza foi um cão de caça em uma vida anterior. Quinn ainda está falando ao telefone. — E ninguém está atendendo na casa ao lado? Certo. Não, nós vamos cuidar disso. Diga ao policial para nos encontrar lá, e cuide para que eles mandem pelo menos uma policial mulher. Gislingham já está pegando seu paletó. Quinn desliga o telefone e dá uma última mordida em sua torrada enquanto se levanta. — Era a central. Alguém ligou da Frampton Road. Diz que tem uma garota no porão da casa ao lado. — No porão? — pergunta Everett, arregalando os olhos. — Alguém quebrou a parede por engano. Tem um velho vivendo na casa, aparentemente. Mas ele não está atendendo a porta. — Ah, merda. — É. É mais ou menos isso. Quando os três estacionam em frente à casa, uma multidão já está se formando. Alguns deles são nitidamente os operários do número 31, felizes por qualquer desculpa para parar de trabalhar que não lhes crie mais problemas com Sexton; outros são provavelmente vizinhos, e há um punhado de pessoas que estavam na festa com flores nos chapéus e latas de cerveja na mão que sem dúvida parecem ter bebido além da conta. A atmosfera já um pouco surreal é complementada pela vaca de plástico em tamanho real parada junto ao meio-fio, coberta com uma toalha de mesa floral e com narcisos amarrados aos chifres. Alguns dançarinos de Morris, uma tradicional dança folclórica inglesa, começaram uma performance improvisada na calçada. — Minha nossa — diz Gislingham quando Quinn desliga o motor. — Você acha que podemos multá-los por estacionar aquela coisa sem autorização? Eles saem e atravessam a rua, no momento em que dois carros de polícia estacionam em frente ao número 33. Uma das mulheres na multidão assovia para Quinn e começa a rir quando ele se vira para olhá-la. Três policiais uniformizados saem dos carros e se juntam a eles. Um tem um aríete; a policial é Erica Somer. Gislingham percebe uma troca de olhares entre ela e Quinn, e vê o sorriso nos olhos dela pelo embaraço dele. Ah, então eu estava certo, pensa. Ele desconfiava que podia haver alguma coisa rolando entre aqueles dois. Como disse para Janet na outra noite, ele pegou os dois conversando perto da máquina de café vezes demais para ser apenas coincidência. Não que ele possa culpar Quinn — Erica é mesmo muito bonita, mesmo usando uniforme e coturnos. Ele só torce para que ela não espere demais: se Quinn fosse um cachorro, ninguém ia chamá-lo de Fido. — Nós sabemos o nome da pessoa que mora aqui? — pergunta Quinn. — O nome dele é William Harper, sargento — responde Somer. — Nós chamamos uma ambulância, caso haja mesmo uma garota ali. — Eu sei muito bem o que eu vi, cacete. Quinn se vira. É um homem usando o tipo de terno que Quinn compraria se tivesse dinheiro. Bem-cortado e acinturado, feito de seda e com um forro de cetim vermelho que se destaca com a camisa xadrez roxa e a gravata rosa. Ele tem “mauricinho” escrito por todo ele. Assim como “muito furioso”. — Vejam — diz o homem. — Quanto tempo isso vai levar? Tenho uma reunião com meu advogado às três da tarde, e se o trânsito estiver tão ruim quanto estava vindo para cá… — Desculpe, o senhor é? — Mark Sexton. Da casa ao lado. Sou o proprietário. — Então foi o senhor que nos telefonou? — É, fui eu. Eu estava no porão com meu arquiteto, e parte da parede cedeu. Tem uma garota ali dentro. Eu sei o que vi e, diferente dessa gente, não estou bêbado. Perguntem a Knight, ele também viu. — Certo — diz Quinn, gesticulando para que o policial com o aríete fosse até a porta.— Vamos em frente. E controle aquele pessoal na calçada, está bem? Eles estão parecendo o pessoal de O sacrifício. Quando Quinn se afasta, Sexton o chama outra vez. — Ei, e os meus operários? Quando eles podem entrar novamente? Quinn o ignora, mas quando Gislingham passa, ele lhe dá um tapinha no ombro. — Desculpe, parceiro — diz com um sorriso. — Essa reforma elegante vai ter que esperar. Na escada da frente, Quinn bate na porta. — Sr. Harper? Polícia de Thames Valley. Se estiver aí, por favor, abra a porta, ou vamos ser forçados a arrombá-la. Silêncio. — Está bem — diz Quinn, acenando com a cabeça para o policial uniformizado. — Vá em frente. A porta é mais forte do que parece, considerando o estado do resto da casa, mas as dobradiças se soltam no terceiro golpe. Alguém na multidão aplaude de um jeito embriagado. O restante chega para a frente, se esforçando para ver. Quinn e Gislingham entram e fecham a porta às suas costas. Dentro da casa, tudo está imóvel. Eles ainda podem ouvir os sinos dos dançarinos de Morris, e moscas estão zumbindo em algum lugar no ar bolorento. O lugar nitidamente tinha parado no tempo décadas atrás; o papel de parede está todo descascado, e o teto, solto e estufado com manchas marrons. Há jornais espalhados pelo chão. Quinn segue lentamente pelo corredor, as velhas tábuas rangendo, os sapatos se arrastando sobre papel. — Tem alguém aqui? Sr. Harper? É a polícia. Então ele escuta. Um barulho de choro. Perto. Ele para por um momento, tentando descobrir de onde vem aquele som, então sai correndo e abre bruscamente uma porta embaixo da escada. Tem um velho sentado no vaso sanitário vestindo apenas um colete. Há tufos de cabelo preto crespo grudados em seu couro cabeludo e seus ombros. Sua cueca está em torno de seus tornozelos, e seu pênis e seus testículos pendem inertes entre suas pernas. Ele tenta se esconder de Quinn, ainda resmungando, os dedos ossudos agarrados ao assento da privada. Ele está imundo, e há cocô no chão. Somer chama da porta: — Sargento detetive Quinn? Os paramédicos chegaram, se precisar deles. — Graças a Deus por isso. Traga-os para cá, está bem? Somer se afasta para deixar dois homens de macacão verde passarem pela porta. Um se agacha em frente ao senhor de idade. — Sr. Harper? Não precisa ficar nervoso. Vamos só dar uma olhada no senhor. Quinn gesticula para Gislingham, e os dois se afastam na direção da cozinha. Gislingham dá um assovio quando eles entram no cômodo. — Alguém ligue para o Museu Victoria & Albert. Um fogão a gás antigo, azulejos marrom e laranja dos anos 1970, uma pia de metal. Uma mesa de fórmica com quatro cadeiras que não combinam entre si. E todas as superfícies cobertas de louça suja, garrafas de cerveja vazias e latas de alimentos parcialmente comidas cheias de moscas. Todas as janelas estão fechadas, e o linóleo sob seus pés gruda na sola dos sapatos. Tem uma porta de vidro com uma cortina de contas que leva a uma estufa, e outra porta que deve levar ao porão. Ela está trancada, mas há várias chaves em um prego. Gislingham as pega e precisa de três tentativas para encontrar a certa, mas, embora a chave esteja enferrujada, ela gira sem resistência. Ele abre a porta e acende a luz, então chega para o lado e deixa Quinn entrar primeiro. Eles descem devagar, degrau por degrau, a faixa de néon sibilando acima de suas cabeças. — Olá? Tem alguém aqui embaixo? A luz é fraca, mas suficiente para eles verem. O porão está vazio. Há caixas de papelão, sacos de plástico preto, uma luminária antiga, uma banheira de metal cheia de lixo. Mas, fora isso, nada. Eles ficam ali parados, olhando um para o outro, com o coração batendo tão alto que eles mal conseguem ouvir qualquer outra coisa. Então: — O que foi isso? — sussurra Gislingham. — Parece o som de unhas arranhando algo. Ratos? Quinn olha involuntariamente para o chão ao redor dos seus pés, nervoso. Se há uma coisa que ele não suporta são os malditos ratos. Gislingham olha em volta novamente, os olhos se ajustando à escuridão, desejando ter pegado a lanterna no carro. — O que é aquilo ali? Ele abre caminho através das caixas e percebe de repente que o porão é muito maior do que eles imaginavam. — Quinn, tem outra porta aqui. Você pode me dar uma mão? Ele tenta abrir a porta, mas ela não se mexe. Tem um trinco no alto, e Quinn, depois de algum tempo, consegue puxá-lo, mas a maldita porta não abre. — Deve estar trancada — sugere Gislingham. — Você ainda está com aquelas chaves? É ainda pior encontrar a chave certa à meia-luz, mas eles conseguem. Forçam a porta com o ombro e lentamente a empurram para a frente até que uma onda de ar estagnado os atinge, e eles precisam levar a mão à boca por causa do fedor. Há uma jovem deitada no chão de concreto usando uma calça jeans rasgada no joelho e um cardigã esfarrapado que provavelmente tinha sido amarelo. A boca dela está aberta, e os olhos, fechados. Sua pele está muito pálida sob a luz fraca. Mas tem outra coisa. Algo para o qual nada os preparou. Sentada ao seu lado, puxando seu cabelo. Uma criança. *** E onde eu estava quando tudo isso aconteceu? Eu adoraria dizer que estava envolvido com algo impressionante feito a Agência Especial da polícia ou com ações de contraterrorismo, mas a triste verdade é que eu estava em um curso de treinamento em Warwick. “Policiamento comunitário no século XXI.” Para inspetores e seus superiores; nós não somos sortudos? Com a tortura por PowerPoint e o início ridiculamente cedo, eu estava começando a achar que os policiais uniformizados incumbidos do May Morning tinham sem dúvida se dado melhor. Mas então recebi o telefonema. Seguido rapidamente por uma carranca da organizadora obsequiosa que tinha insistido para que desligássemos os celulares, e por um suspiro audível quando escapei para o corredor. Ela provavelmente está preocupada que eu nunca volte. — Eles levaram a garota para o hospital John Radcliffe — diz Quinn. — Ela está muito mal. Não come há algum tempo e está seriamente desidratada. Ainda havia uma garrafa de água por lá, mas, acho que ela estava dando a maior parte para a criança. Os paramédicos vão conseguir nos dizer depois de fazerem um exame adequado. — E o menino? — Ainda não está dizendo nada. Mas, meu Deus, ele não pode ter muito mais que dois anos, o que ele vai conseguir nos contar, afinal? O coitado não deixava que Gis e eu chegássemos nem perto dele, então Somer foi na ambulância. Nós prendemos Harper em flagrante, mas, quando tentamos tirá-lo da casa, ele começou a espernear e a resistir. Acho que é Alzheimer. — Olhe, sei que não preciso dizer isso, mas, se Harper é um adulto vulnerável, é mais importante do que nunca fazermos tudo de acordo com as regras. — Eu sei. Já me adiantei e liguei para o serviço social. E não só por causa dele. O menino também vai precisar de ajuda. Há um silêncio, e desconfio que nós dois estejamos pensando a mesma coisa. É bem possível que estejamos lidando com uma criança que não conhece nada além daquele porão. Que nasceu lá embaixo, no escuro. — Está bem — digo. — Estou saindo agora. Chego por volta do meio- dia. *** BBC Midlands Today Segunda-feira, 1º de maio de 2017 | Atualizado pela última vez às 11h21 URGENTE: Garota e criança encontradas em um porão em North Oxford Recebemos informações da descoberta de uma jovem e uma criança pequena, supostamente seu filho, aparentemente trancados no porão de uma casa na Frampton Road, em North Oxford. A casa ao lado está passando por uma reforma, o que levou, esta manhã, à descoberta da garota no porão. A garota não foi identificada, e a Polícia de Thames Valley ainda não emitiu um pronunciamento. Mais notícias sobre o assunto assim que forem apuradas. *** São 11h27. Na sala de testemunhas em Kidlington, Gislingham está observando Harper na imagem de vídeo. Ele agora está de camisa e calça, e está sentado encurvado no sofá. Há um assistente social ao lado dele em uma cadeira de espaldar reto, falando com ele atentamente, e uma mulherda equipe de saúde mental observando a alguns metros de distância. Harper parece irrequieto — ele está se remexendo, movendo uma perna para cima e para baixo —, mas dá para perceber, mesmo com o som desligado, que está coerente. Pelo menos por enquanto. Harper está olhando para o assistente social com irritação, desdenhando do que ele diz com acenos de uma mão rígida e enrugada. A porta se abre, e Gislingham se vira e vê Quinn se aproximar, jogar uma pasta na mesa e se encostar na escrivaninha. — Everett foi direto para o hospital, então ela vai entrevistar a garota assim que tivermos permissão. — Eric… — Ele enrubesce. — A policial Somer voltou para a Frampton Road para coordenar o porta a porta. E Challows foi com a equipe da perícia forense. Ele faz uma anotação no arquivo e bota a caneta atrás da orelha. Do jeito que sempre faz. Então aponta com a cabeça na direção do monitor de vídeo. — Alguma coisa? Gislingham balança a cabeça. — O assistente social dele já está ali há meia hora. O nome dele é Ross, Derek Ross. Tenho certeza de que já o encontrei antes. Alguma notícia de quando Fawley vai voltar? Quinn verifica seu relógio. — Por volta de meio-dia. Mas ele disse que devíamos começar se a médica e o assistente social o liberarem. Tem uma advogada a caminho, também. O assistente social está se protegendo. Acho que não se pode culpá-lo. — Conheço bem o tipo — diz Gislingham secamente. — Mas eles têm certeza de que ele está bem para ser interrogado? — Aparentemente, ele tem intervalos lúcidos, e nesses momentos podemos interrogá-lo, mas, se ele começar a se perder, vamos ter que parar. Gislingham olha para o monitor por um momento. Há um fio de baba escorrendo do queixo do velho; já está ali faz dez minutos, mas ele não o limpou. — Você acha que ele fez isso, que ele conseguiria? O rosto de Quinn está desgostoso. — Se aquela criança realmente nasceu lá embaixo, então sim, com certeza. Sei que Harper agora parece patético, mas há dois ou três anos? Ele podia ser completamente diferente. E foi esse outro homem que cometeu o crime… não esse velho triste ali dentro. Gislingham estremece, embora a sala esteja bem quente, e Quinn olha para ele. — O que aconteceu? — Estava só pensando. Ele não ficou assim da noite para o dia, ficou? Isso está acontecendo há meses. Anos, até. E ela não tinha como saber. Que ele estava ficando senil, quero dizer. Ela está presa lá embaixo, fora de vista. Aposto que ele começou a esquecer que ela estava ali. A comida começa a escassear, depois a água, ela precisa pensar no filho e, mesmo que ela grite, o velho não consegue escutá- la… Quinn balança a cabeça. — Minha nossa, nós chegamos lá bem a tempo. Na tela, Derek Ross se levanta e sai de quadro. No momento seguinte, a porta se abre e ele aparece. Gislingham fica de pé. — Então você é o assistente social dele? Ross assente. — Pelos últimos dois anos, mais ou menos. — Então você sabia da demência? — Ele foi formalmente diagnosticado alguns meses atrás, mas eu desconfio que estivesse acontecendo há muito mais tempo que isso. E você sabe tão bem quanto eu como isso é imprevisível, como tem acessos e sobressaltos. Ultimamente eu estava preocupado que isso tivesse começado a acelerar. Ele sofreu algumas quedas e se queimou no fogão há cerca de um ano. — E ele anda bebendo, não é? Dá para sentir o cheiro emanando dele. Ross respira fundo. — Sim. Isso virou um grande problema nos últimos tempos. Mas eu simplesmente não consigo acreditar que ele possa ter feito uma coisa dessas, nada tão terrível… Quinn não está convencido. — Nenhum de nós sabe do que somos capazes de verdade. — Mas no estado em que ele está… — Olhe — interrompe Quinn; há uma dureza em sua voz agora. — A médica diz que não há problema em interrogá-lo, e ela é a especialista. Em relação a acusações, bom, isso é outra questão, e a promotoria vai ter o que dizer se e quando chegarmos a essa fase. Mas havia uma garota e uma criança trancadas naquele porão, e nós precisamos ES: IF ES IF ES IF ES IF ES descobrir como elas foram parar lá. O senhor entende isso, não, sr. Ross? Ross hesita, então assente. — Posso participar? Ele me conhece, isso pode ajudar. Ele pode ser um pouco… difícil. Como vocês estão prestes a descobrir. — Certo — diz Quinn, recolhendo seus papéis. Os três homens se dirigem para a porta, mas Ross para de repente e põe a mão no braço de Quinn. — Peguem leve, por favor. Quinn olha para ele, então ergue a sobrancelha. — Igual ele fez com aquela garota? *** Entrevista com Isabel Fielding, realizada na Frampton Road, 17, Oxford. 1º de maio de 2017, 11h25 Presente: policial E. Somer Há quanto tempo mora aqui, sra. Fielding? Só há alguns anos. É uma casa da universidade. Meu marido é professor em Wadham. Então conhece o sr. Harper, o senhor que mora no número 33? Não somos próximos. Logo depois que nos mudamos, ele apareceu um pouco transtornado e perguntou se tínhamos visto a capa de seu carro. Aparentemente, tinha desaparecido. Foi um pouco estranho, já que seu carro, na verdade, não vai a lugar nenhum. Mas achamos que ele fosse só um pouco, sabe, excêntrico. Tem muito disso. Por aqui, quero dizer. Muitos “personagens”. Alguns deles eram acadêmicos, então viveram aqui por muito tempo. Acho que muitos deles simplesmente chegaram a um estágio roxo e gatos e não estão mais nem aí. “Roxo e gatos”? Ah, sabe, igual ao poema. “Quando envelhecer, vou começar a usar roxo”, ou seja lá como for. Quando se chega à idade em que você simplesmente não se importa mais com nada. E o sr. Harper não se importava? Ele estava sempre andando por aí. Falando sozinho. Usando roupas estranhas. Luvas de lã no meio do verão. Pijamas na rua. Esse tipo de coisa. Mas ele é basicamente inofensivo. [pausa] Desculpe, isso saiu errado, eu não quis… Está tudo bem, sra. Fielding. Sei o que a senhora quis dizer. *** — Então, sr. Harper, meu nome é sargento detetive Gareth Quinn, e meu colega aqui é o detetive Chris Gislingham. O senhor já conhece Derek Ross, e essa senhora vai atuar como sua advogada. A mulher na outra extremidade da mesa ergue os olhos brevemente, mas Harper não reage. Não parece sequer ter registrado a sua presença. — Então, sr. Harper, o senhor foi preso hoje às dez da manhã, suspeito de sequestro e cárcere privado. O senhor foi detido, e seus direitos foram explicados, o que o senhor disse ter entendido. Nós agora vamos conduzir um interrogatório formal, que está sendo gravado. — Isso significa que eles estão filmando tudo, Bill — diz Ross. — Você compreende? Os olhos do velho se estreitam. — Claro que compreendo. Não sou a droga de um idiota. E é dr. Harper para você, rapaz. Quinn olha para Ross, que assente. — O dr. Harper foi professor da Universidade de Birmingham até 1998. Sociologia. Gislingham vê Quinn corar um pouco; três vezes em uma manhã, devia ser algum tipo de recorde. Quinn abre sua pasta. — Creio que o senhor mora em seu endereço atual desde 1976, não? Mesmo trabalhando em Birmingham? Harper olha para ele como se estivesse sendo deliberadamente estúpido. — Birmingham é uma merda. — E o senhor se mudou para cá em 1976? — Nada disso. Foi em 11 de dezembro de 1975 — diz Harper. — O aniversário da minha mulher. — A primeira esposa do dr. Harper morreu em 1999 — explica Ross rapidamente. — Ele se casou novamente em 2001, mas infelizmente a segunda sra. Harper morreu em um acidente de carro em 2010. — Vaca idiota — diz Harper alto. — Só sabia beber, aquela lá. Ross olha para a advogada; ele parece envergonhado. — O legista descobriu que a sra. Harper tinha níveis elevados de álcool no sangue no momento do acidente. — O dr. Harper tem algum filho? Harper estende a mão e bate na mesa em frente a Quinn. — Fale comigo, rapaz. Fale comigo. Não com esse idiota. Quinn se volta para ele. — Então, o senhor tem? Harper faz uma careta. — Annie. Vaca gorda. Quinn pega a caneta. — Sua filha se chama Annie? — Não — interrompe Ross. — Bill fica um pouco confuso. Annie era uma vizinha que morava nonúmero 48. Uma mulher muito simpática, aparentemente. Ela costumava aparecer para ver se Bill estava bem, mas se mudou para o Canadá em 2014 para ficar mais perto do filho. — Ela quer usar o escape, a vaca besta. Eu disse a ela que não teria uma daquelas coisas em casa. Quinn olha para Ross. — Ele quer dizer “Skype”. Mas ele não usa computador, por isso não havia a menor chance. — Mais nenhuma família? O rosto de Ross fica inexpressivo. — Não que eu saiba. *** — Sem dúvida tem um filho. Mas não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome. Somer está na porta do número sete há pelo menos quinze minutos. Ela está desejando, agora, ter aceitado a oferta de chá, mas se tivesse feito isso talvez ficasse ali o dia inteiro — a sra. Gibson praticamente ainda não tinha nem tomado fôlego. — Um filho, a senhora acha? — diz Somer, folheando suas anotações até o início. — Mais ninguém o mencionou. — Bom, isso não me surpreende. As pessoas por aqui não gostam de “se envolver”. Não como quando eu era pequena. Naquela época as pessoas cuidavam umas das outras, todo mundo sabia quem eram seus vizinhos. Eu não tenho ideia de quem são esses yuppies. — Mas a senhora tem certeza de que sem dúvida há um filho? — John… É isso! Eu sabia que ia acabar lembrando. Mas não o vejo por aqui há um bom tempo. Um sujeito de meia-idade. Cabelo grisalho. Somer faz uma anotação. — E quando a senhora acha que o viu pela última vez? Tem um barulho no vestíbulo por trás, e a sra. Gibson se vira para fazer um som e pedir silêncio antes de fechar um pouco mais a porta. — Desculpe, querida. A droga da gata sempre tenta sair pela frente se eu deixo. Ela tem uma portinhola nos fundos, mas você sabe como são os gatos, sempre fazem o que não devem, e siameses são ainda piores… — O filho do sr. Harper, sra. Gibson? — Ah, é, bom, agora que você mencionou, acho que deve ter sido há alguns anos. A sra. Gibson faz uma careta. — E a senhora sabe se o sr. Harper recebe algum outro visitante? — Bom, tem o assistente social, eu acho. Ele não serve para muita coisa. *** Quinn respira fundo. Harper olha para ele. — O que foi, rapaz? Diga logo, porra, pelo amor de Deus. Não fique só aí sentado com cara de quem está tentando cagar. Nesse momento, até a advogada parece envergonhada. — Dr. Harper, o senhor sabe por que a polícia foi a sua casa esta manhã? Harper se encosta na cadeira. — Não tenho a mínima ideia. Provavelmente aquele babaca do lado reclamando das latas de lixo. Imbecil. Quinn e Gislingham trocam um olhar. Os dois já estiveram em interrogatórios suficientes para saber que esse é o momento. Muito poucas pessoas culpadas, mesmo os melhores e mais treinados mentirosos, conseguem controlar seu corpo tão bem para não darem nenhum sinal. Seja um tremor nos olhos, uma contorção repentina das mãos, quase sempre tem alguma coisa. Mas agora não. O rosto de Harper está inexpressivo, nenhum recuo cauteloso, nenhuma tentativa de demonstrar excesso de confiança. Nada. — E eu não tenho a porra de uma TV. Quinn olha para ele. — Desculpe? Harper chega para a frente na cadeira. — Imbecil. Eu não tenho a porra de uma TV. Ross lança um olhar nervoso para Quinn. — Acho que o que o dr. Harper está tentando dizer é que ele não precisa de uma licença de TV. Ele acha que foi por isso que vocês o trouxeram para cá. Harper chega bruscamente para a frente e mete o dedo na cara de Gislingham. — Eu não tenho a porra de uma TV. Quinn vê a expressão de alarme nos olhos de Ross; isso está começando a sair de controle. — Dr. Harper — diz ele. — Havia uma garota em seu porão. O que ela estava fazendo lá? Harper se encosta. Ele olha de um dos policiais para o outro. Pela primeira vez, ele parece enrolado. Gislingham abre sua pasta e pega uma foto que tirou da garota. Ele se vira para encarar Harper. — Essa é a garota. Como ela se chama? Harper lança um olhar atravessado para ele. — Annie. Vaca gorda. Ross está balançando a cabeça. — Essa não é Annie, Bill. Você sabe que essa não é Annie. Harper não está olhando para a fotografia. — Dr. Harper — insiste Gislingham. — Precisamos que o senhor olhe para a foto. — Priscilla — diz Harper, e saliva escorre por seu queixo. — Sempre foi bonita. A vaca do mal. Circulando pela casa com os peitos de fora. Ross parece desesperado. — Também não é Priscilla. Você sabe que não é. Harper estende uma mão recurvada e, sem tirar os olhos do rosto de Gislingham, joga a foto para fora da mesa, junto com o telefone de Gislingham, que bate com um estrondo na parede e cai em pedaços no chão. — Mas por que diabos você fez isso?! — grita Gislingham, se levantando da cadeira. — Dr. Harper — diz Quinn, agora com os dentes cerrados. — Essa jovem está atualmente no hospital John Radcliffe, onde os médicos vão fazer nela um exame completo. Assim que conseguir falar, vamos descobrir quem ela é, e como ela acabou trancada no porão da sua casa. Essa é sua chance de nos contar o que aconteceu. O senhor entende isso? Entende o quanto isso é sério? Harper se levanta e cospe em seu rosto. — Vá se foder. Está me ouvindo? Vá se foder! Há uma pausa terrível. Gislingham não ousa olhar para Quinn. Então ele o escuta tirar algo do bolso e ergue os olhos para vê-lo limpando o rosto. — Acho que devíamos parar agora, policial — diz a advogada. — O senhor não acha? — Entrevista encerrada às 11h37 — diz Quinn, com uma calma gelada. — O dr. Harper agora vai ser levado sob custódia e posto nas celas… — Ah, pelo amor de Deus! — diz Ross. — Você com certeza consegue ver que ele não está em condições para isso. — O dr. Harper — diz Quinn, tranquilamente, recolhendo seus papéis e os empilhando com cuidado exagerado — pode muito bem representar um perigo para o público, assim como para si mesmo. E, de qualquer modo, sua casa agora é a cena de um crime. Ele não pode voltar para lá. Quinn se levanta e anda na direção da porta, mas Ross sai em seu encalço e o segue até o corredor. — Vou encontrar um lugar para ele ficar — diz ele. — Um lar de idosos. Algum lugar onde possamos ficar de olho nele… Quinn se vira tão repentinamente que os dois ficam a poucos centímetros de distância. — Ficar de olho nele? — diz com raiva. — É isso o que você tem feito todos esses meses, ficar de olho nele? Ross recua, com o rosto branco. — Olhe… Mas Quinn não desiste. — Há quanto tempo você acha que ela estava lá embaixo, hein? Ela e aquela criança? Dois anos, três? E durante esse tempo todo, você foi àquela casa, ficando de olho nele, uma semana atrás da outra. Você é a única droga de pessoa que estava indo lá. Você está me dizendo seriamente que não sabia? — Ele enfia o dedo no peito de Ross. — Na minha opinião, não é só Harper que devíamos estar prendendo. Você tem perguntas muito sérias para responder, sr. Ross. Isso está muito além de negligência profissional… Ross ergue a mão, para afastar Quinn. — Você tem alguma ideia de quantos clientes eu tenho? Quanta papelada tenho que preencher? Com isso e o trânsito, tenho sorte de conseguir uma visita de quinze minutos. O máximo que consigo fazer é ver se ele está comendo e não está sentado na própria merda. Se acha que tenho tempo de fazer uma visita e também uma inspeção da casa, você está completamente enganado. — Você nunca ouviu nada… nunca viu nada? — Quinn… — diz Gislingham, que agora está parado na porta. — Eu nunca estive naquela droga de porão — insiste Ross. — Eu nunca nem soube que ele tinha um… Quinn, agora, está com o rosto vermelho. — Você está me pedindo seriamente que acredite nisso? — Quinn — diz Gislingham com urgência. E, quando Quinn o ignora de novo, Gislingham segura seu ombro e o força a se virar. Tem alguém chegando pelo corredor na direção deles. É Fawley. *** Na Frampton Road, Allan Challow segue pelo caminho até a porta da frente e para por um momento para que o policial uniformizado levante a fita que obstrui a entrada. É o dia mais quente do ano até agora, e ele está suando em seu traje de proteção. A multidão no fim da entrada mais do que duplicou detamanho, e sua constituição mudou. A maioria dos retardatários de May Morning tinha ido embora, e os construtores também encerraram o dia. Um ou dois vizinhos ainda permaneciam ali, mas a maioria dos observadores agora está em busca de uma emoção mórbida ou de uma boa história. Ou das duas coisas: pelo menos metade deles são repórteres. Na cozinha, que fica nos fundos, duas profissionais da equipe da perícia forense de Challow estão empoando o aposento em busca de impressões digitais. Uma delas gesticula com a cabeça para Challow e abaixa a máscara para falar com ele. Há uma linha de suor sobre seu lábio superior. — Essa é uma daquelas vezes em que você fica realmente agradecida por usar uma dessas. Só Deus sabe quando alguém fez uma limpeza adequada aqui dentro. — Onde é o porão? Ela aponta. — Atrás de você. Nós puxamos uma luz melhor. O que só serve para deixar as coisas piores. — Ela dá de ombros, de cara fechada. — Mas você sabe disso. Challow faz uma careta. Ele faz esse trabalho há 25 anos. Ele se abaixa um pouco para evitar a lâmpada que agora está pendurada no alto da escada do porão e desce, projetando sombras gigantes e trêmulas sobre as paredes de tijolos aparentes. Ali embaixo, dois outros peritos forenses estão esperando por ele, olhando ao redor para o lixo acumulado. — Está bem — diz Challow. — Sei que é um aborrecimento, mas precisamos levar tudo isso de volta com a gente. Onde estava a garota? — Por ali. Challow entra em um aposento interno. Há uma lâmpada de arco voltaico jogando um brilho impiedoso sobre o chão imundo, forrado de sujeira, e o vaso sanitário cheio até a borda com detritos fétidos. Mais caixas de lixo. Há uma caixa de papelão que continha garrafas de água, mas restava apenas uma, e embora haja um saco plástico cheio de embalagens e latas vazias, não há sinal de comida. E nos fundos, em um dos cantos, uma cama de criança, enroscada como um ninho de ratos. — Certo — disse Challow por fim, no silêncio. — Precisamos levar todas essas coisas embora, também. Uma das peritas vai até a rachadura na parede que divide o porão das duas casas. Alguns tijolos estão quebrados, e o reboco foi removido. — Alan — diz ela após um instante, voltando-se para Challow. — Veja. Challow se junta a ela, em seguida se abaixa para ver mais de perto. O reboco úmido está coberto de marcas vermelhas. — Meu Deus — diz ele por fim. — Ela estava tentando escapar cavando com as unhas. *** Eu não via Derek Ross desde o caso Daisy Mason. Ele acompanhou o irmão dela quando nós o interrogamos; então, por um motivo ou por outro, na época, encontrei Ross muitas vezes. Isso aconteceu menos de um ano atrás, mas, olhando para ele, você diria que se passaram cinco. Ele perdeu mais cabelo, ganhou mais peso e tem um tique sob o olho direito. Mas desconfio de que Quinn possa ter alguma coisa a ver com isso. — Sargento detetive Quinn — digo, voltando-me para ele. — Por que não vai buscar café para nós todos? E não estou falando do da máquina. Quinn olha para mim, abre a boca e torna a fechá-la. — Senhor, eu… — começa a dizer ele, mas Gislingham o toca no cotovelo. — Vamos. Eu te dou uma ajuda. É uma amostra excelente daquela dupla: Gis, que sempre foi excepcionalmente bom em saber quando parar de cavar; e Quinn, que carrega seu próprio jogo de pás. Eu levo Ross para o escritório ao lado. A tela está muda, agora, mas ainda mostra a sala de interrogatório. A advogada está de pé, preparando-se para ir embora, e Harper está encolhido na cadeira, abraçando os joelhos. Ele parece muito pequeno e muito velho, e muito assustado. Ponho um copo de água na frente de Ross. Então me sento na cadeira no lado oposto da mesa e a empurro um pouco mais para trás. Ele tem grandes manchas úmidas embaixo dos braços, e a melhor maneira de descrever seu cheiro seria “pungente”. Acredite em mim, você não quer chegar tão perto. — Como você anda? Ele olha para mim. — Mais ou menos — diz ele, desconfiado. Eu me encosto na cadeira. — Então, conte-me sobre Harper. Ele se enrijece, só um pouco. — Eu sou algum tipo de suspeito? — Você é uma testemunha importante. Deve saber disso. Ele dá um suspiro. — É, acho que sei. O que você quer saber? — Você disse a meus policiais que só ia lá uma vez por semana. Há quanto tempo fazia isso? — Dois anos, talvez um pouco mais. Eu precisaria olhar no arquivo. — E não ficava muito tempo? Ele dá um gole na água; um pouco dela se derrama sobre sua calça, mas Ross não parece perceber. — Não posso. Não tenho tempo. Sério, não tem nada que eu gostaria mais do que me sentar lá por uma hora e conversar sobre o clima, mas com os cortes orçamentários que tivemos ultimamente… — Eu não estava acusando você. — Aquele seu sargento detetive acusou. — Desculpe por isso. Mas você precisa lembrar… ele viu o estado em que a garota estava. Sem falar na criança. E se ele estava achando difícil imaginar como você podia ir lá por todo esse tempo sem saber que ela estava lá, bom, não posso dizer que o culpo. Para ser sincero, eu mesmo estou me esforçando para acreditar nisso. Porque, apesar do que acabei de dizer, estou a um passo de interrogá-lo como suspeito. E até eu ter certeza absoluta de que ele não está envolvido, Harper vai precisar de outra pessoa para acompanhá-lo. Já vai ser muito difícil conseguir uma condenação nesse caso. A última coisa de que preciso é uma investigação problemática. Ross passa a mão pelo cabelo. O que lhe resta dele. — Olhe, essas casas têm paredes grossas. Não me surpreende que eu não tenha ouvido nada. — Você nunca foi lá embaixo? Ele me olha direto nos olhos. — Como eu disse, nem sabia que ele tinha um porão. Achei que aquela porta fosse só um armário. — E o andar de cima? Ele balança a cabeça. — Bill praticamente morava no térreo desde que eu o conheci. — Mas ele consegue subir e descer as escadas? — Se precisar, sim. Mas não faz isso muito. Annie preparou uma cama na sala antes de partir, e tem um banheiro nos fundos. É bem básico, mas tem. Tenho medo de pensar qual o estado do segundo andar agora. Deve fazer anos que ninguém sobe lá. Provavelmente ninguém desde que Priscilla morreu. — Nenhuma faxineira? O conselho não manda ninguém? — Nós tentamos, mas Bill apenas gritou que ela estava abusando dele e ela se recusou a voltar. Eu de vez em quando passo um pano e jogo água sanitária no vaso. Mas tem um limite para o que podemos fazer no tempo que temos. — E comida… compras? Você também faz isso? — Quando tiraram sua carteira de motorista, eu consegui que uma obra de caridade local para idosos organizasse para ele uma entrega regular do supermercado. Isso foi há cerca de um ano e meio. Há uma ordem permanente em sua conta bancária. Ele tem muito dinheiro. Bom, talvez não “muito”, mas o suficiente. — Por que ele não se muda dali? Aquela casa deve valer uma fortuna. Mesmo naquele estado. Ross faz uma careta. — O idiota da casa ao lado pagou mais de três milhões. Mas Bill se recusa a ir para um lar de idosos. A artrite dele piorou bastante no último mês, e agora o médico vai começar a medicá-lo para o Alzheimer, e Harper vai precisar ser monitorado para garantir que tome os remédios direito. Eu não tenho como fazer isso. Se ele ficar naquela casa sozinho, é só questão de tempo antes que haja algum tipo de acidente. Como eu disse, ele já se queimou uma vez. — Ele sabia que você queria que ele se mudasse? Derek respira fundo. — Sabia, sim. Eu conversei com ele há cerca de um mês e meio e tentei explicar tudo. Infelizmente ele não reagiu muito bem. Ficou violento, gritou comigo, jogou coisas. Então eu desisti. Estava planejando falar com ele outra vez esta semana. Acabou de abrir uma vaga no Lar Newstead, em Witney. É um dos melhores. Mas só Deus sabe o que vai acontecer agora. Há uma pausa. Ele termina sua água. Eu sirvo mais. — Você já pensou — digo, com cuidado — que a razão para ele não querer se mudar fosse a garota? O rosto de Ross fica branco, e ele põe o copo de água sobre a mesa. — Ele não podia deixar a casa com ela lá dentro, porqueela seria descoberta. E ele não podia soltá-la, exatamente pela mesma razão. — Então o que ele ia fazer? Dou de ombros. — Não sei, esperava que você pudesse… De repente, há uma comoção no corredor, e Gislingham abre bruscamente a porta. — Chefe — diz ele. — Eu acho… Mas eu já o afastei para o lado e sigo para o corredor. Na sala ao lado, dois policiais estão tentando conter Harper. É difícil de acreditar que seja o mesmo homem — ele está arranhando o rosto deles, chutando e gritando com uma policial. — Vadia! A mulher está visivelmente abalada. E eu a conheço — ela não é nenhuma novata. Há um arranhão em seu rosto, e a frente de seu uniforme está ensopada. — Eu só ofereci uma xícara de chá — gagueja ela. — Ele disse que estava quente demais, que eu estava tentando queimá-lo. Eu não estava… eu de verdade não estava… — Eu sei. Olhe, vá se sentar um pouco. E peça a alguém para dar uma olhada nesse corte. Ela leva a mão ao rosto. — Eu nem percebi… — Acho que é só um arranhão. Mas vá cuidar dele mesmo assim. Ela assente, e quando estou saindo da sala atrás dela, Harper parte para cima dela outra vez. — Vadia! É ela que você devia estar prendendo, seu retardado. Ela tentou me escaldar, porra. Vaca do mal! Ross está com os olhos fixos na tela quando eu volto para a sala ao lado, e fico ali de pé parado por um instante. — Então, qual é o verdadeiro Bill Harper? — pergunto por fim. — O que estava encolhido como uma criança assustada ou o que acabou de atacar uma de minhas policiais? Ross balança a cabeça. — É a doença. É isso o que ela faz. — Talvez. Ou talvez tudo o que essa doença esteja fazendo seja acabar com o autocontrole que ele costumava ter. Talvez ele sempre tenha sido raivoso, mas não deixava que isso saísse de controle. Ele sabia como lidar com isso. Até mesmo esconder. Ross se virou para olhar para mim, mas de repente não está mais me olhando nos olhos. Tem alguma coisa acontecendo, alguma coisa que ele não quer me contar. Deixo que o silêncio se prolongue. Então dou um passo em sua direção. — O que é, Derek? Ele me encara, então afasta os olhos. Seu rosto está vermelho. — O que mais William Harper está escondendo? *** No hospital John Radcliffe, a detetive Verity Everett está esperando há mais de duas horas. A maioria das pessoas odeia hospitais, mas ela estudou enfermagem antes de entrar para a polícia, e lugares como esse nunca a deixam nervosa. Ela, na verdade, acha a atmosfera bastante reconfortante — mesmo em uma emergência, as pessoas aqui sabem o que devem fazer, onde devem estar. Os jalecos brancos, o ruído branco, tudo é estranhamente calmante. Somando-se isso ao corredor um pouco aquecido demais e ao quanto ela tem dormido mal ultimamente, não é surpresa que esteja se esforçando para permanecer acordada, mesmo sentada em uma cadeira de plástico dura. Na verdade, ela devia estar cochilando, porque o toque em seu braço faz com que sua cabeça se mova bruscamente para trás, e ela se apruma imediatamente na cadeira. — Detetive Everett? Ela abre os olhos. O rosto do médico é simpático. Preocupado. — Você está bem? Ela se sacode para acordar. Seu pescoço está doendo. — Estou bem, sim. Desculpe, devo ter cochilado por um minuto. O médico sorri. Ele é muito bonito. Tipo um Idris Elba com um estetoscópio. — Acho que foi bem mais de um minuto. Mas não havia razão para incomodá-la. — Como ela está? — Infelizmente, não tenho muitas notícias. Como os paramédicos desconfiavam, ela está muito desidratada e subnutrida. Não acho que haja mais nada seriamente errado, mas ela estava muito nervosa quando chegou, por isso ainda não fizemos um exame completo. Nesse estágio, isso pode causar mais mal que bem. Nós a sedamos, para que ela possa dormir. Everett se levanta com movimentos rígidos da cadeira de plástico e percorre os poucos passos até a janela que dá para o quarto da garota. Ela se sente com uns cem anos. No quarto do outro lado do vidro, a garota está deitada imóvel na cama, com o cabelo comprido e escuro emaranhado sobre o travesseiro e o cobertor apertado na mão. Há sombras profundas sob seus olhos, e os ossos se destacam sob a pele, mas Everett vê que ela era bonita. É bonita. — E o menino? — pergunta a detetive, voltando-se outra vez para o médico. — O pediatra está com ele agora. Apesar das circunstâncias, ele está em uma condição surpreendentemente boa. Everett torna a olhar para a garota. — Ela disse alguma coisa? Um nome? Há quanto tempo ela estava lá? Qualquer coisa? Ele balança a cabeça. — Sinto muito. — Quando vou conseguir falar com ela? Isso é muito importante. — Eu sei. Mas o bem-estar de minha paciente tem que ser minha prioridade. Pode demorar um pouco. — Mas ela vai ficar bem? Ele vai até a janela e olha para o rosto ansioso de Everett. — Para ser honesto, estou mais preocupado com a saúde mental dela. Depois de tudo pelo que ela passou, agora o sono é o melhor remédio. Depois disso, bom, simplesmente vamos ter que esperar para ver. *** — Derek, fale comigo. Se você viu alguma coisa, alguma coisa que possa nos ajudar… Ele ergue os olhos. Ross está apertando o copo com tanta força que o plástico racha de repente. A água despenca sobre suas mãos e em sua calça. — Está bem — diz ele por fim, se enxugando. — Foi há cerca de seis meses. Em dezembro, eu acho. Uma das vizinhas disse que o viu na rua só de chinelo, por isso dei uma olhada para ver se conseguia encontrar seus sapatos. Ele tinha começado a perder coisas, deixava em um lugar e se esquecia onde. Imaginei que provavelmente estivessem embaixo da cama. — E estavam? Ele balança a cabeça. — Não. Mas encontrei uma caixa. A maior parte do conteúdo eram revistas. Eu não preciso de uma insinuação. — Pornografia? Ele hesita, então assente. — Coisa pesada. Bondage. S&M. Tortura. Ou, pelo menos, era o que parecia. Não fiquei olhando muito de perto. Ao contrário do que Harper deve ter feito. Não que Ross diga isso. Há um silêncio. Não surpreende que ele estivesse cauteloso em me contar. — Onde você acha que ele conseguiu isso? — digo por fim. Ele dá de ombros. — Não na internet, isso eu sei. Mas provavelmente dá para conseguir esse tipo de coisa em pequenos anúncios nas revistas masculinas. Na época, ele ainda fazia compras de vez em quando. — A caixa ainda está lá? CG LF — Provavelmente. Eu apenas a empurrei de volta para o lugar onde a encontrei. Se ele percebeu, nunca disse nada. Mas, mesmo aceitando que ele tinha esse tipo de… de… gosto, há uma grande diferença entre ver revistas pornográficas e sequestrar uma garota e trancá-la na droga do porão. Pessoalmente, não tenho tanta certeza. Eu também já vi o estrago da demência e torno a me perguntar sobre os meses em que a doença surgiu pela primeira vez e ninguém, nem mesmo Harper, sabia que ela estava lá. Quando ele ainda tinha sua força de vontade, sua força física, mas sua personalidade tinha começado a se encolher e endurecer. Ele se tornou mesmo um homem completamente diferente ou apenas uma versão mais fria e cruel do que era antes? Eu me levanto e vou para o corredor, deixando Ross sozinho na sala. Gis está perto da máquina de refrigerante e vem até mim. — Descobriu alguma coisa? — pergunta. — Não muito. Ross disse que encontrou uma pilha de revistas de pornografia barra-pesada na casa há alguns meses, então fale com Challow e se assegure de que eles verifiquem a casa inteira, não só o porão e o térreo. É possível que haja outras coisas lá. — Está bem. — E vamos começar a verificar os antecedentes de Harper. Falar com a universidade onde ele trabalhou; 1998 não é assim tanto tempo atrás, ainda deve haver alguém que se lembre dele por lá. *** Entrevista por telefone com Louise Foley, gerente de recursos humanos da Universidade de Birmingham. 1º de maio de 2017, 13h47 Na ligação, detetive C. Gislingham :Desculpe por incomodá-la em um feriado bancário, mas esperamos que a senhora possa nos dar alguma informação sobre William Harper. Acho que ele lecionou em Birmingham até o fim dos anos 1990. :É,isso mesmo. Eu não estava aqui na época, mas sei que o dr. Harper fazia parte do departamento de Ciências Sociais. O tema de sua especialização era teoria dos jogos. CG LF CG LF CG LF CG LF CG LF CG LF CG LF CG LF CG Aparentemente, ele escreveu um artigo bastante famoso sobre RPGs. Acredito que estava bem à frente de seu tempo. :Além de o que ele faria em um jogo de Senha, o que mais a senhora pode me dizer? :Ele se aposentou em 1998. Isso é muito tempo atrás, policial. :Eu sei, mas também não é pré-histórico, é? Quer dizer, vocês já tinham computadores na época. Devem ter algum tipo de registro. :É claro, mas há um limite do que eu posso lhe contar. Tenho que respeitar nossa política interna de proteção de dados. O senhor, dentre todas as pessoas, sem dúvida entende isso. O dr. Harper lhe deu seu consentimento para liberar suas informações pessoais? :Não, mas, como tenho certeza de que a senhora sabe, na verdade não preciso do consentimento dele se a informação solicitada estiver relacionada com a prisão ou processo de um infrator. Lei de Proteção de Dados, seção 29(3). Se quiser conferir. :O que ele fez? Ele deve ter feito alguma coisa. O senhor não teria esse trabalho por uma multa de estacionamento, teria? [pausa] Espere um minuto. Não é aquele caso no noticiário, o da garota no porão, é? Aquele homem deve ser mais ou menos da mesma idade… :Infelizmente não tenho liberdade para discutir isso, srta. Foley. Talvez a senhora possa simplesmente me enviar um e-mail com os arquivos relevantes. Isso pouparia o tempo de todo mundo. :Eu preciso da permissão do diretor de RH da universidade para fazer isso. Mas se tiver perguntas específicas agora, posso tentar respondê-las. :[pausa] Está bem. Talvez a senhora possa começar me contando por que ele se aposentou tão cedo. :Como assim? :Bom, se minha matemática rudimentar me serve de alguma coisa, ele tinha 57 anos em 1998. Qual a idade habitual de aposentadoria dos acadêmicos? Uns 75 ou setenta anos? :[pausa] Vendo o arquivo, parece que foi de comum acordo entre todas as partes que o dr. Harper se aposentasse antecipadamente. :Está bem. Então qual foi o verdadeiro motivo? :Não sei o que o senhor está querendo dizer… :Ah, srta. Foley, a senhora sabe tão bem quanto eu que isso é um discurso mentiroso de RH para dizer “nós tivemos que nos livrar dele”. :[pausa] Infelizmente isso é tudo o que estou preparada para dizer. Vou falar com o diretor e obter sua permissão para lhe enviar o arquivo. Mas o senhor precisa saber que nesse momento ele está na China. Pode levar algum tempo até eu conseguir falar com ele. :Então é melhor começar logo. *** BBC Midlands Today Segunda-feira, 1º de maio de 2017 — Atualizado pela última vez às 14h52 Garota e criança em porão em Oxford: polícia faz pronunciamento A Polícia de Thames Valley emitiu um breve pronunciamento sobre a garota e um menino pequeno encontrados em um porão na Frampton Road, em Oxford, mais cedo esta manhã. Eles confirmaram que uma jovem foi levada para o hospital John Radcliffe e que ela e a criança estão sob os cuidados de equipes médicas e assistência social. A identidade da jovem não foi divulgada, e, embora seja dito que a criança é seu filho, isso ainda não foi confirmado. Pessoas que testemunharam os acontecimentos na casa afirmam que ela estava consciente quando os paramédicos a puseram na ambulância. Vizinhos contaram à BBC que a casa em questão pertence ao sr. William Harper, que vive no bairro há pelo menos vinte anos. O sr. Harper foi visto deixando a casa esta manhã na companhia de policiais e parecia um tanto nervoso. *** Nos andares superiores do número 33 da Frampton Road, todas as cortinas estão fechadas. Poeira paira no ar, e teias de aranha deixam os cantos indistintos. Alguma coisa tinha roído o carpete da escada, e Nina Mukerjee, a perita forense, desvia cuidadosamente de pequenas fezes, então para na porta do quarto principal. Não há lençol na cama, apenas um colchão nu com uma grande mancha mofada no centro. Na parede da direita há uma cristaleira vazia, e a penteadeira está cheia de batons, perfumes, um pote de creme facial deixado aberto e seco como cimento, e alguns lenços de papel espalhados ainda marcados com uma boca vermelha esmaecida. Um segundo policial se junta à mulher na porta. — Minha nossa — diz ele. — Parece O navio fantasma. — Ou a srta. Harvisham. Esse filme sempre me dá medo. — Quando a segunda mulher morreu mesmo? — Em 2010. Acidente de carro. O homem olha ao redor, então vai até a mesa de cabeceira e passa um dedo enluvado pela superfície coberta com uma camada grossa de poeira. — Aposto que ele não vem aqui desde então. — A tristeza às vezes deixa as pessoas desse jeito. Elas não conseguem jogar nada fora. Minha avó era assim. Levou anos para a gente convencê-la a se livrar das coisas do meu avô. Mesmo tanto tempo depois, ela disse que ainda parecia um sacrilégio. O homem gesticula na direção de um porta-retrato virado para baixo na mesa de cabeceira. Ele ergue a foto e olha para ela, então a vira na direção da colega. — Tem uma parecida lá embaixo. Atraente. Pessoalmente, não é meu tipo, mas atraente. Priscilla Harper está olhando diretamente para a câmera, com uma das mãos no quadril e uma sobrancelha arqueada. Ela parece confiante, dona de si mesma. Com gostos caros. Nina vai até o armário e começa a retirar coisas aleatoriamente. Um vestido vermelho e decotado, um casaco de cachemira com gola de pele, uma blusa verde-clara com gola de babados. — Isso é seda de verdade. Ela tinha bom gosto. O homem se aproxima e dá uma olhada. — Uma pena que as traças chegaram primeiro. Dava para vender todo o lote no eBay. Nina faz uma careta para ele. — Valeu, Clive. — Ela então põe as roupas novamente no lugar. — O Departamento de Investigação Criminal quer mesmo que embalemos todas essas coisas? Vamos ficar aqui a semana inteira. — Acho que Fawley estava interessado em pornografia. Então, por enquanto, acho que basta verificarmos se não existe uma caixa cheia de equipamentos de bondage embaixo da cama e tudo bem. Eu vou dar uma olhada lá em cima. Mas, pelo que parece, o último andar está praticamente vazio. Só um estrado de metal em um quarto e uma pilha de exemplares velhos do Daily Telegraph. Nina vai até a mesa de cabeceira e abre a gaveta, chacoalhando ruidosamente frascos plásticos. — Nossa, é um estoque e tanto — diz Clive enquanto ela abre um saco de provas e começa a pegá-los. Todos os rótulos estão em nome de Priscilla Harper; a maioria são comprimidos para dormir. — Encontrou algum papel lá embaixo? — Você quer dizer além da pornografia? Há uma mesa cheia de cartas e contas velhas, embora duvide que alguma coisa vá ser de grande serventia. Mas vamos encaixotar tudo só por garantia. O porão está praticamente limpo, agora. Nina estremece. — Não consigo tirar da minha cabeça. Aquelas marcas de arranhão no reboco. O desespero que ela devia estar sentindo para fazer isso. Não consigo nem pensar. — Acho que ela podia escutá-los. Ela se vira para ele. — O que você quer dizer com isso? O rosto dele está com uma expressão séria. — É só uma ideia. A casa ao lado era habitada pela mesma velhota desde os anos 1980. Então de repente, algumas semanas atrás, chegam os trabalhadores. Havia gente ali pela primeira vez em anos. Era isso o que ela estava fazendo. Ela podia escutá-los. *** 15h15. Levando em conta as questões que estamos enfrentando para interrogar Harper, resolvi não falar com ele outra vez até termos conversado com a garota. E ela ainda está sedada. Ninguém está esperando conseguir nada do garoto, e os peritos forenses ainda vão precisar de algumas horas para apresentarem as descobertas preliminares. Tudo isso significa que, neste momento, estou com o superintendente na minha cola, uma assessora de imprensa em crise e toda uma equipe com muita energia para gastar e nada para fazer. Gislingham está tentando localizar qualquer um que tenha trabalhado com Harper nos anos 1990, outra pessoa estáem contato com o supermercado para ver se podemos falar com o pessoal da entrega, e Baxter está checando a lista de pessoas desaparecidas à procura de alguém que seja remotamente parecida com a garota. É um trabalho que tem o nome dele escrito — ele não precisa cavar tão fundo para encontrar seu geek interior —, mas, quando olho para ele uma hora depois, há uma ruga fatigada de preocupação em sua testa. — Sem sorte? Ele ergue os olhos na minha direção. — Na verdade, nenhuma. Nós não temos um nome, não sabemos de onde ela veio, não sabemos há quanto tempo ela estava lá embaixo. Não sabemos nem se deram queixa do desaparecimento. Eu podia passar um mês nisso e não chegar a lugar nenhum. Nem o reconhecimento facial consegue encontrar uma pessoa que não esteja ali. *** Enviado: Seg., 1/5/2017, 15h45 De: annieghargreaves.montreal@hotmail.com Para: d.ross@socialservices.ox.gov.uk Assunto: Bill Obrigada pelo e-mail. Estou vendo o noticiário neste momento e há fotos da Frampton Road — até na TV canadense. Eles estão comparando com aquele homem na Áustria que manteve a filha no porão por muitos anos. Mas Bill, fazendo algo assim? Ele sempre foi um sujeito encrenqueiro, mas não era violento. Eu não conheci Priscilla, mas, até onde sei, ele não teve nenhum relacionamento com outra mulher desde então. Se teve, nunca me contou. E, está bem, um psiquiatra poderia dizer que estou sendo ingênua e que pessoas como ele são muito boas em ocultar essas coisas, mas com certeza haveria algum tipo de sinal, não? Desculpe, provavelmente não estou fazendo muito sentido. É cedo aqui, e ainda não consigo acreditar. Eu provavelmente pareço aquelas pessoas que a imprensa entrevista em momentos como esse que ficam ali paradas dizendo coisas inúteis como “ele parecia um sujeito tão tranquilo”. Diga se houver mais alguma coisa que eu possa fazer. *** mailto:annieghargreaves.montreal%40hotmail.com?subject= mailto:d.ross%40socialservices.ox.gov.uk?subject= Somer está na esquina, em Chinnor Place. De onde está parada, pode ver a equipe de perícia forense retirando caixas do número 33 da Frampton Road e botando-as na van. Há duas vans de emissoras de TV estacionadas do outro lado da rua. Ela vai até a porta novamente e toca a campainha pela terceira vez. Parece que essa casa está vazia, embora pelas bicicletas, pela quantidade de latões de lixo e por seu estado geral provavelmente seja uma república de estudantes. Uma das poucas que restavam por ali. Trinta anos atrás, essas casas eram dinossauros. Ninguém as queria: grandes demais, de manutenção difícil demais. A maioria foi dividida em apartamentos ou comprada barato por cursos preparatórios ou departamentos de universidades. Não é mais assim. Agora estão aos poucos tornando a ser as casas de família que os construtores vitorianos as ergueram para ser, completas, com alojamentos adequados para criados e tudo. Mark Sexton é apenas o último exemplo de uma tendência muito maior. Ela toca uma última vez e está prestes a ir embora quando a porta finalmente se abre. Ele aparenta cerca de vinte anos, tem o cabelo ruivo e está esfregando a nuca e bocejando. Parece que acabou de sair da cama. Há uma fileira de garrafas vazias no corredor, e o cheiro de cerveja choca empesteia o lugar. Ele dá uma olhada para Somer e toma um susto que quase parece ensaiado. — Merda. Somer sorri. — Policial Erica Somer, Polícia de Thames Valley. O garoto engole em seco. — Aqueles velhos estão reclamando do barulho outra vez? Sério, não estava tão alto assim… — Não é isso, senhor… — Danny. Danny Abrahams. — Está bem, Danny. É sobre a casa na outra rua. O número 33. Você conhece o homem que mora lá, o sr. Harper? Ele torna a coçar o pescoço. Sua pele está manchada e vermelha. — É aquele maluco? — Você o conhece? Ele balança a cabeça. — Ele só circula por aí falando sozinho. Deu umas cervejas para a gente uma vez. Parece um cara legal. Somer pega o celular e mostra a ele uma foto da garota. — E essa jovem, você alguma vez a viu pelo bairro? O garoto olha para a tela. — Não tenho ideia. — Algum de seus colegas está em casa? — Não tenho certeza. Não vi ninguém. Provavelmente estão na biblioteca. As provas finais estão chegando. Sabe como é. Ela guarda o celular e entrega um cartão a ele. — Se algum deles tiver qualquer informação sobre o sr. Harper, por favor, peça que ligue para esse número. — O que ele fez? Começou a se exibir para essas fofoqueiras? — O que faz você dizer isso? O garoto fica completamente vermelho. — Nada. Eu só pensei… — Por favor, apenas transmita a mensagem. Ela lhe dá as costas e o deixa parado na escada, se perguntando do que aquilo tudo se tratava. Um estado de ignorância que dura aproximadamente um minuto e meio, depois que ele fecha a porta e pega o celular. — Merda — diz ele enquanto desce pelo feed de notícias. — Merda, merda. *** UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO FORENSE Representação da cena do crime Endereço: 33 Frampton Road, OX2 Referência do caso: KE2308/17J NÃO OBEDECE A UMA ESCALA Peritos: Alan Challow, Nina Mukerjee, Clive Keating Data: 1º de maio de 2017 Hora: 10h Assinatura: Perito 1808 JJ Gethins Data: 1º de maio de 2017 Página 1 de 2 RESTRITO (QUANDO PREENCHIDO) FIU/SCR/03 UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO FORENSE Representação da cena do crime Endereço: 33 Frampton Road, OX2 Referência do caso: KE2308/17J NÃO OBEDECE A UMA ESCALA Peritos: Alan Challow, Nina Mukerjee, Clive Keating Data: 1º de maio de 2017 Hora: 10h Assinatura: Perito 1808 JJ Gethins Data: 1º de maio de 2017 Página 2 de 2 RESTRITO (QUANDO PREENCHIDO) FIU/SCR/03 REGISTRO DAS PROVAS CK/1 a 3 Variedade de embalagens vazias recuperadas para realce químico de impressões digitais em sacos plásticos perto da escada no porão, Quarto A. CK/4 a 5 Impressões digitais parciais obtidas na fita que fechava uma caixa encontrada ao lado da escada no porão, Quarto A. CK/6 Impressões digitais obtidas na tampa brilhante de uma caixa encontrada no porão, Quarto A. CK/7 a 10 Impressões digitais obtidas em múltiplas superfícies externas de itens recuperados em uma velha banheira de metal no porão, Quarto A. CK/11 Impressão digital parcial obtida no cadeado na Porta B do porão (exterior, no lado do Quarto A). CK/12 Impressões digitais parciais obtidas em um jogo de chaves no mecanismo de tranca da Porta B do porão (exterior, lado do Quarto A). NM/1 a 5 Variedade de embalagens, caixas de alimentos e recipientes vazios recuperados para realce químico de impressões digitais em um saco de lixo no porão, Quarto B. NM/6 a 8 Impressões digitais obtidas em recipientes plásticos vazios recuperados em um saco de lixo no porão, Quarto B. NM/9 Fronha escura com mancha branca (provável teste positivo para saliva) recuperada em colchão de solteiro no porão, Quarto B. NM/10 Lençol cinza com várias manchas brancas (provável teste positivo para sêmen) recuperado em colchão de solteiro no porão, Quarto B. NM/11 Edredom branco com mancha vermelha (provável teste positivo para sangue) recuperado em colchão de solteiro no porão, Quarto B. NM/12 a 13 Roupa íntima feminina com mancha branca (provável teste positivo para sêmen) recuperada em colchão de solteiro no porão, Quarto B. NM/14 Peça de roupa de cama com pequena mancha vermelha (provável teste positivo para sangue) recuperada na cama da criança no porão, Quarto B. NM/15 Amostras vermelhas úmidas e secas (provável teste positivo para sangue) obtidas em parede no porão, Quarto B. NM/16 Caixa de itens variados incluindo alguns livros velhos no porão, Quarto B. NM/17 Lanterna com pilhas descarregadas no porão, Quarto B. *** Estou na cantina comprando um sanduíche quando o detetive Baxter me aborda. — Acho que encontrei uma pista — diz ele, um poucosem fôlego. Sua esposa sempre lhe diz para usar as escadas; é o único exercício que ele faz. — Sobre a garota? — Não, sobre Harper. Desisti da Delegacia de Pessoas Desaparecidas, mas, enquanto estava fazendo isso, achei que valia a pena passar o nome de Harper pelo sistema. — E? — Nenhuma prisão. Nem mesmo uma multa por excesso de velocidade, e, se ele pegava prostitutas na rua, não o flagramos fazendo isso. Mas encontrei dois chamados atendidos na casa da Frampton Road. Um em 2002 e outro em 2004. Não foi apresentada nenhuma acusação, e as anotações são um pouco incompletas, mas com certeza era uma acusação de violência doméstica. — Qual foi o policial que cuidou do caso? — Jim Nicholls, as duas vezes. — Veja se consegue localizá-lo. Pelo que lembro, ele se aposentou e foi para Devon. Mas o RH deve ter o endereço. Peça para ele me ligar. *** Merda, viu as notícias? Aquele cara que mora na outra rua é um tipo de psicopata ou sei l garota no porão. A polícia acabou de bater aqui. Será que a gente não devia contar pra eles? Porra, de jeito nenhum. É a última coisa q precisamos. Não diz nada, tá? Vc reconheceu a garota N, nunca vi ela antes Então só fica quieto, tá bem *** — Bill Harper? Nossa, esse saiu direto do túnel do tempo. Russel Todd é o quarto ex-colega de Harper para quem Gislingham ligou, e os resultados até então foram morto, morto e sem memória, nessa ordem. Mas Todd não só está vivo e bem, mas também gosta de falar. — Então o senhor se lembra dele? — pergunta Gislingham, tentando não soar muito esperançoso. — Ah, lembro. Nós fomos colegas por algum tempo, mas isso já faz alguns anos. Por que pergunta? — O que o senhor pode me contar sobre ele? Há uma expiração longa do outro lado da linha. — Bom… — começa Todd. — Ele não era exatamente um professor de primeira. Estou dizendo academicamente. Não que ele concordasse com isso, claro. Na verdade, ele provavelmente considerava que acabar em Brum estava sem dúvida abaixo de sua dignidade, mas sua esposa vinha de algum lugar perto de lá, então isso pode ter decidido a questão. Comprar aquela casa em Oxford sempre me pareceu uma negação clássica, mas ele era bastante sólido. Sabia o que dizia. Na verdade, ele escreveu um artigo que teve certa repercussão… — Essa coisa dos RPGs? — Ah, você sabe disso, não é? Cá entre nós, foi um pouco um caso de “lugar certo na hora certa”. Quer dizer, o pensamento não era lá muito original, mas Bill teve a ideia de aplicá-lo a jogos da internet. Ou seja lá como se chamam essas coisas. Isso foi em 1997, no início do boom da internet. De repente, ele passou a ser importante. O tom de voz de Todd ficava cada vez mais irascível, e Gislingham detecta um cheiro claro de inveja entre colegas de trabalho. Esses acadêmicos, sempre esfaqueando uns aos outros pelas costas. Ele se pergunta quantas pessoas teriam considerado Todd “de primeira”. — Enfim… — prossegue ele. — Depois de muita labuta e suor nos contrafortes poeirentos do mundo acadêmico por quase trinta anos, o velho Bill de repente se vê cortejado por instituições como Stanford e o MIT. Havia até um boato sobre Harvard. — Então o que aconteceu? Todd ri de um jeito não muito agradável. Ele está começando a irritar Gislingham. — Foi quase shakespeariano. O herói derrubado no exato momento de seu triunfo. A casa tinha sido posta à venda, as malas estavam praticamente prontas e, de repente, bum. Tudo começou a explodir ao redor dele. Ou talvez ao redor de uma parte específica de sua anatomia. Nas circunstâncias, seria uma metáfora mais adequada. — Posso imaginar — diz Gislingham. Todd está nitidamente se divertindo. — É, infelizmente Bill foi flagrado com a boca na botija. A história toda foi abafada, é claro, mas os americanos desapareceram. Um homem casado se envolvendo com as alunas pega muito mal por lá. Os ianques são muito pudicos com essas coisas. — O senhor manteve contato com ele depois? — Na verdade, não. Soube que a esposa morreu de câncer de mama, acho. Não sei se ele voltou a trabalhar. Ela tinha algum dinheiro, a esposa, então ele pode não ter precisado fazer isso. — E essa foi a única vez? Ou ele tinha a reputação de assediar as alunas? — Ah, não. Essa foi a questão. Foi completamente fora do personagem. A ironia é que, se as autoridades quisessem fazer alguém de exemplo, havia vários casos muito mais flagrantes que eles podiam ter escolhido, dos dois lados da casa. Não era como agora, com processos judiciais assim que você tira a calça. Os bons e velhos tempos em que se podia assediar à vontade; Gislingham articula com os lábios “punheteiro” sem emitir som ao telefone. — Na verdade — prossegue Todd —, Bill era um cara do tipo certinho, sabe? Isso só mostra que nunca temos como conhecer de verdade uma pessoa. — Não — diz Gislingham entre dentes cerrados. — Não temos mesmo. *** Revista Americana de Ciências Sociais e Cognitivas Vol. 12, n. 3, outono de 1988 Masmorras e donzelas RPGs na internet William M. Harper, phD, Universidade de Birmingham Resumo Este artigo aborda o potencial da participação múltipla em RPGs na rede eletrônica de telecomunicações conhecida como internet. Apesar de pouquíssimos entusiastas terem acesso a essa tecnologia, ela tem a capacidade de permitir que vários jogadores interajam em tempo real através de terminais de computadores em outras geografias e fusos horários. O artigo explora as implicações cognitivas e psicossociais desse “jogar remoto”, incluindo questões como o impacto da “persona” anônima no computador sobre a confiança e o efeito em seus processos de tomada de decisões. Também examina as possíveis consequências neurológicas de exposição prolongada a um mundo “virtual” violento, incluindo a erosão da empatia, um aumento na agressão interpessoal e a ilusão de onipotência pessoal. *** Passa pouco das quatro da tarde, e Everett está de pé com uma das enfermeiras, olhando através de uma divisória de vidro para o menino. As persianas estão abaixadas, e ele está sentado sozinho em um cercadinho no meio do quarto, olhando fixamente para uma pilha de brinquedos. Blocos, um avião, um trem verde e vermelho. De vez em quando, ele toca um deles. Seu cabelo escuro cai em cachos, comprido como o de uma menina. Há uma mulher sentada no quarto com ele, mas ela escolheu a cadeira no canto mais distante. — Ele ainda não deixa ninguém se aproximar? A mulher balança a cabeça. Há uma plaqueta em seu uniforme que diz ���������� ����� ��������. — Pobrezinho. O médico o examinou, e fizemos alguns testes, mas estamos nos restringindo ao mínimo, por enquanto. Não queremos afligi-lo mais que o absolutamente necessário. Especialmente depois de sua mãe reagir do jeito que reagiu. Ela vê a pergunta nos olhos de Everett. — Nós o levamos até ela depois que demos um banho nele, mas, assim que ela o viu, começou a gritar. E estou falando gritar de verdade. Então o menino ficou completamente rígido e começou a gritar também. No fim, eles precisaram sedá-la. Foi por isso que o trouxemos outra vez para cá. Esse tipo de estresse não vai fazer bem para nenhum dos dois. — Ele disse alguma coisa? — Não. Não temos certeza nem se ele sabe falar. O ambiente em que ele estava, o que deve ter testemunhado, não seria surpresa se seu desenvolvimento tivesse sido afetado. Everett se volta outra vez para a janela. O menino ergue os olhos e, por alguns breves segundos, os dois olham um para o outro. Ele tem olhos escuros, bochechas levemente coradas. Então lhe dá as costas e se encolhe encostado à lateral do cercado, tampando o rosto com o braço. — Ele tem feito muito isso — comenta a enfermeira. — Ele pode estar só se acostumando à luz, mas seus olhos talvez tenham sido afetados por ficar no escuro por tanto tempo. É melhor prevenir que remediar. Foi por isso que baixamos as persianas. Everett observa por um momento. — Dá vontade de abraçá-lo e fazer com que tudo desapareça. Jenny Kingsley dá um suspiro. — Eu sei. É de partir o coração. *** Temos a primeira reunião
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