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Em um porao escuro - Cara Hunter

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Prévia do material em texto

Título original: In The Dark
Copyright © Cara Hunter, 2018
Os direitos morais da autora foram assegurados.
 
Copyright © Editora Nova Fronteira Participações S.A., 2022 mediante acordo com Johnson
& Alcock Ltd.
 
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Trama, selo da
E������ N��� F�������� P������������ S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte
desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo
similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a
permissão do detentor do copirraite.
 
E������ N��� F�������� P������������ S.A.
Rua Candelária, 60 — 7.º andar — Centro — 20091-020
Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel.: (21) 3882-8200
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
H945e Hunter, Cara
Em um porão escuro / Cara Hunter ; traduzido por Edmundo Barreiros. – 2.ed. – Rio
de Janeiro : Trama, 2022.
376 p.
 
Formato: e-book epub com 3,6 MB
Título original: In The Dark
 
ISBN: 978-65-89132-75-2
 
 
1. Literatura americana – suspense. I. Barreiros, Edmundo. II. Título.
CDD: 808.8
CDU: 82-32
André Queiroz – CRB-4/2242
www.editoratrama.com.br
 /editoratrama
http://www.editoratrama.com.br/
Para “Burke e Heath” 
Pelos muitos dias felizes
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Início
Epílogo
Agradecimentos
Colofão
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PRÓLOGO
Ela abre os olhos e se depara com uma escuridão tão cerrada
que sente como se estivesse vendada. Sente o peso de um ar
estagnado e úmido que não era respirado em muito tempo.
Seus outros sentidos despertam bruscamente. O silêncio
gotejante, o frio, o cheiro. Mofo e mais alguma coisa que ela não
consegue identificar ainda, algo animal e fétido. Ela movimenta os
dedos, sentindo terra e umidade sob a calça jeans. Agora está
lembrando — como chegou ali, por que isso aconteceu.
Como ela pôde ter sido tão burra?
Ela contém a torrente ácida de pânico e tenta se sentar, mas é
impossível. Ela enche os pulmões e grita, sua voz ecoando nas
paredes. Grita, grita e grita até sua garganta arder.
Mas ninguém vem. Porque ninguém consegue escutar.
Ela fecha os olhos outra vez, sentindo lágrimas quentes de raiva
escorrerem pelo rosto. Ela está rígida de indignação e recriminação,
e não tem consciência de nada mais até que, aterrorizada, ela sente
as primeiras patinhas afiadas começarem a se movimentar sobre
sua pele.
Alguém disse que abril é o mês mais cruel, não foi? Bem, quem quer
que tenha sido não era detetive. A crueldade pode ocorrer a qualquer
hora — eu sei, eu já vi. Mas o clima frio e os dias escuros de algum
modo amortecem sua contundência. Luz do sol, o canto de passarinhos
e céus azuis podem ser brutais nesse trabalho. Talvez o problema seja
o contraste. Morte e esperança.
Esta história começa com esperança. É o primeiro dia de maio, o
início da primavera de verdade. E se você já esteve em Oxford, vai
saber: é tudo ou nada neste lugar — quando chove, as pedras ficam
com cor de xixi, mas sob a luz, quando as faculdades parecem ter sido
esculpidas em nuvens, não há lugar mais belo na Terra. E eu sou só um
policial velho e cínico.
Em relação à tradicional festa de May Morning, bom, isso é a cidade
em sua personalidade mais excêntrica e desafiadora. Pagã e cristã e
um pouco louca; é difícil dizer, em grande parte do tempo, qual é qual.
Corais de meninos cantam ao nascer do sol no alto de uma torre.
Bandas de zanfonas disputam espaço com food trucks de hambúrguer
que funcionam a noite inteira. Os bares abrem às seis da manhã, e
metade da população estudantil ainda está bêbada da noite anterior.
Até os cidadãos sóbrios de North Oxford surgem em massa com flores
no cabelo (e você acha que estou brincando). Havia mais de 25 mil
pessoas aqui no ano passado. Uma delas era um homem vestido de
árvore. Acho que você captou a ideia.
Então, de um jeito ou de outro, é um dia especial no calendário da
polícia. E é um dia longo para os policiais uniformizados, não curto. O
início do turno logo cedo pela manhã pode ser um problema, mas
costuma ser tranquilo, e em grande parte ficamos bebendo café e
comendo sanduíches de bacon. Ou pelo menos ficávamos, na última
vez que fiz isso. Mas isso era quando eu ainda usava uniforme. Antes
de me tornar detetive; antes de me tornar inspetor detetive.
Mas este ano é diferente. Este ano o problema não é apenas acordar
muito cedo.
 
***
 
Quando Mark Sexton chega a casa, está quase uma hora atrasado.
Devia ser uma viagem rápida àquela hora da manhã, mas o trânsito na
M40 estava completamente congestionado, e o engarrafamento se
estendia até a Banbury Road. E quando ele entra na Frampton Road,
há a caminhonete de um empreiteiro bloqueando a entrada da sua
garagem. Sexton xinga, engrena a ré no Cayenne e recua cantando
pneu. Então abre a porta e sai para a rua, evitando por pouco uma poça
de vômito no asfalto. Ele olha enojado, verificando seus sapatos. O que
está acontecendo com a droga da cidade esta manhã? Ele tranca o
carro, vai andando até a porta da frente, então enfia as mãos nos
bolsos procurando pelas chaves. Pelo menos tinham tirado o andaime.
A negociação demorou muito mais do que o esperado, mas as obras
deveriam terminar até o Natal, se eles tivessem sorte. Ele perdeu um
leilão por uma casa do outro lado da Woodstock Road e teve que
aumentar o lance para comprar essa, mas, quando estiver pronta, vai
ser uma mina de ouro. O mercado imobiliário no restante do país podia
estar em baixa, mas, com os chineses e os russos, os preços nunca
pareciam baixar nessa cidade. A casa ficava a apenas uma hora de
Londres e tinha uma escola particular de primeira para meninos a
apenas três ruas de distância. Sua mulher não gostou da ideia de uma
casa geminada, mas ele disse a ela, dê só uma olhada — é enorme.
Estilo vitoriano legítimo, com quatro andares e um porão que ele planeja
reformar e transformar em uma adega moderna e em um complexo
cinematográfico (não que ele já tenha contado isso para a mulher). E só
um velho idiota morando na casa ao lado — ele não vai fazer muitas
festas de arromba, não é? E, sim, o jardim dele é descuidado, mas eles
sempre podem botar umas treliças. O paisagista disse alguma coisa
sobre árvores entrelaçadas. Mil libras por unidade, mas é uma cobertura
instantânea. Embora nem isso resolva o problema da frente. Ele olha
para o Cortina enferrujado e apoiado em tijolos em frente ao número 33
e para as três bicicletas acorrentadas a uma árvore; a pilha de paletes
apodrecidos e os sacos plásticos pretos derramando latas de cerveja
vazias na calçada. Eles estavam ali na última vez que ele foi até lá,
duas semanas atrás. Ele enfiou um bilhete pela porta pedindo ao velho
idiota para tirá-los dali. Ele nitidamente não tinha feito isso.
A porta se abre. É Tim Knight, seu arquiteto, com um rolo de plantas
nas mãos. Ele dá um sorriso largo e acena para que seu cliente entre.
— Sr. Sexton, é bom vê-lo outra vez. Acho que vai ficar satisfeito com
o progresso que fizemos.
— Tomara — diz Sexton, com uma ironia pesada. — Esta manhã não
tem como ficar muito pior.
— Vamos começar pelo último andar.
Os dois homens sobem, e seus pés trovejam na madeira nua. No
andar de cima, a rádio local está a todo volume, e há operários na
maioria dos aposentos. Dois gesseiros no último andar, um bombeiro
hidráulico no banheiro da suíte e um especialista em restauração de
janelas trabalhando nas vidraças. Um ou dois dos trabalhadores olham
para Sexton, mas ele não faz contato visual. Ele está anotando cada
serviço em seu tablet, e perguntando sobre a maioria deles.
Eles terminam na ampliação nos fundos, onde a antiga estrutura de
alvenaria foi derrubada e um espaço enorme de metal e vidro de pé-
direito duplo está sendo construído em seu lugar. Além das árvores que
descem até a base do jardim, eles podem ver a elegância georgiana da
Crescent Square. Sexton desejava poder ter comprado uma daquelas
casas, mas o mercado cresceu cinco por cento desde que ele comprou
esse lugar,então ele não pode reclamar. Ele pede que o arquiteto lhe
mostre o projeto da cozinha (“Nossa, não se consegue muita coisa por
sessenta mil libras, não é? Eles não botaram nem a droga de uma lava-
louça.”), então se vira e procura pela porta da escada que leva até a
adega.
Knight parece um pouco apreensivo.
— Ah, eu ia chegar a isso. Houve um pequeno problema na adega.
Os olhos de Sexton se estreitam.
— O que você quer dizer com problema?
— Trevor me telefonou ontem. Eles encontraram um problema com a
parede compartilhada. Talvez precisemos de um acordo jurídico antes
que possamos consertá-la. Qualquer coisa que façamos vai afetar a
estrutura da casa vizinha.
Sexton faz uma careta.
— Ah, pelo amor de Deus, não podemos nos dar ao luxo de envolver
advogados. O que houve?
— Eles começaram a tirar o reboco para poderem instalar a nova
fiação, mas parte da alvenaria estava em condições muito ruins. Deus
sabe quanto tempo fazia que a sra. Pardew não ia lá embaixo.
— Velha idiota — murmura Sexton, o que Knight decide ignorar. Esse
é um trabalho muito lucrativo.
— De qualquer forma — continua o arquiteto —, um dos rapazes não
percebeu rápido o suficiente com o que estava lidando. Mas não se
preocupe, amanhã vamos trazer o engenheiro estrutural aqui e…
Mas Sexton já o afastou e passou por ele.
— Quero ver por mim mesmo.
A lâmpada na escada do porão tremeluz friamente enquanto os dois
descem. Todo o lugar cheira a mofo.
— Cuidado onde pisa — avisa Knight. — Alguns desses degraus não
são seguros. Você pode quebrar o pescoço aqui no escuro.
— Você tem uma lanterna? — pergunta Sexton, alguns metros à
frente. — Não consigo ver nada.
Knight passa uma para ele, e Sexton a acende. Ele vê o problema
imediatamente. A pintura está estufada no que resta do velho reboco
amarelado e, por baixo, a maioria dos tijolos está se desfazendo com
mofo seco e cinza. Há uma rachadura da largura de seu dedo do chão
ao teto que não estava ali antes.
— Cacete, será que vamos precisar escorar a casa inteira agora?
Como o inspetor não viu isso?
Knight parece querer se desculpar.
— A sra. Pardew tinha várias coisas empilhadas junto daquela
parede. Ele não deve ter conseguido olhar atrás delas.
— E, mais importante: como ninguém estava monitorando o cretino
que arrancou um pedaço da minha parede, porra?
Ele pega uma das ferramentas no chão e começa a futucar os tijolos.
O arquiteto dá um passo à frente e intervém.
— Sério, eu não faria isso…
Um tijolo cai, depois outro, e então um pedaço de cantaria se solta e
cai a seus pés em meio à poeira. Dessa vez, os sapatos de Sexton não
escapam da sujeira, mas ele não percebe. Ele está olhando, de boca
aberta, para a parede.
Tem um buraco, talvez com cinco centímetros de largura.
E do outro lado, no escuro, um rosto.
 
***
 
No distrito policial da St. Aldate’s, o recém-promovido sargento
detetive Gareth Quinn está em seu segundo café e terceira rodada de
torradas, com a gravata cara jogada por cima do ombro para protegê-la
de farelos. A gravata cara que combina com o terno caro e com a aura
de ser um pouco inteligente demais para ser um policial comum. O
departamento de investigação criminal está praticamente vazio; só Chris
Gislingham e Verity Everett chegaram até agora. A equipe não está com
nenhum caso grande no momento, e o inspetor detetive Fawley ficará o
dia inteiro fora em uma conferência, então todo mundo apreciou a
indulgência rara de poder chegar mais tarde ao trabalho seguida pela
perspectiva sempre sedutora de botar a papelada em dia.
Há um momento, com a poeira flutuando nos feixes de luz do sol que
entram enviesados através das persianas, o farfalhar do jornal de
Quinn, o cheiro de café. Então o telefone toca. São 9h17.
Quinn estende a mão e atende.
— Departamento de Investigação Criminal. — Então: — Merda. Tem
certeza?
Gislingham e Everett erguem os olhos. Gislingham é sempre descrito
como “robusto” e “sólido”, e não só porque engordou alguns quilos nos
últimos anos. Ele, ao contrário de Quinn, não foi promovido a sargento
detetive e, considerando sua idade, agora provavelmente não vai mais
ser. Mas não o julgue por isso. Toda equipe de investigação criminal
precisa de um Gislingham e, se você estivesse se afogando, era ele que
ia querer na outra ponta da corda. Quanto a Everett, ela é outra pessoa
que você não pode se dar ao luxo de julgar pelas aparências: Ev pode
se parecer com Miss Marple quando tinha 35 anos, e é igualmente
rígida. Ou, como Gislingham sempre diz, ela com certeza foi um cão de
caça em uma vida anterior.
Quinn ainda está falando ao telefone.
— E ninguém está atendendo na casa ao lado? Certo. Não, nós
vamos cuidar disso. Diga ao policial para nos encontrar lá, e cuide para
que eles mandem pelo menos uma policial mulher.
Gislingham já está pegando seu paletó. Quinn desliga o telefone e dá
uma última mordida em sua torrada enquanto se levanta.
— Era a central. Alguém ligou da Frampton Road. Diz que tem uma
garota no porão da casa ao lado.
— No porão? — pergunta Everett, arregalando os olhos.
— Alguém quebrou a parede por engano. Tem um velho vivendo na
casa, aparentemente. Mas ele não está atendendo a porta.
— Ah, merda.
— É. É mais ou menos isso.
 
 
Quando os três estacionam em frente à casa, uma multidão já está se
formando. Alguns deles são nitidamente os operários do número 31,
felizes por qualquer desculpa para parar de trabalhar que não lhes crie
mais problemas com Sexton; outros são provavelmente vizinhos, e há
um punhado de pessoas que estavam na festa com flores nos chapéus
e latas de cerveja na mão que sem dúvida parecem ter bebido além da
conta. A atmosfera já um pouco surreal é complementada pela vaca de
plástico em tamanho real parada junto ao meio-fio, coberta com uma
toalha de mesa floral e com narcisos amarrados aos chifres. Alguns
dançarinos de Morris, uma tradicional dança folclórica inglesa,
começaram uma performance improvisada na calçada.
— Minha nossa — diz Gislingham quando Quinn desliga o motor. —
Você acha que podemos multá-los por estacionar aquela coisa sem
autorização?
Eles saem e atravessam a rua, no momento em que dois carros de
polícia estacionam em frente ao número 33. Uma das mulheres na
multidão assovia para Quinn e começa a rir quando ele se vira para
olhá-la. Três policiais uniformizados saem dos carros e se juntam a
eles. Um tem um aríete; a policial é Erica Somer. Gislingham percebe
uma troca de olhares entre ela e Quinn, e vê o sorriso nos olhos dela
pelo embaraço dele. Ah, então eu estava certo, pensa. Ele desconfiava
que podia haver alguma coisa rolando entre aqueles dois. Como disse
para Janet na outra noite, ele pegou os dois conversando perto da
máquina de café vezes demais para ser apenas coincidência. Não que
ele possa culpar Quinn — Erica é mesmo muito bonita, mesmo usando
uniforme e coturnos. Ele só torce para que ela não espere demais: se
Quinn fosse um cachorro, ninguém ia chamá-lo de Fido.
— Nós sabemos o nome da pessoa que mora aqui? — pergunta
Quinn.
— O nome dele é William Harper, sargento — responde Somer. —
Nós chamamos uma ambulância, caso haja mesmo uma garota ali.
— Eu sei muito bem o que eu vi, cacete.
Quinn se vira. É um homem usando o tipo de terno que Quinn
compraria se tivesse dinheiro. Bem-cortado e acinturado, feito de seda e
com um forro de cetim vermelho que se destaca com a camisa xadrez
roxa e a gravata rosa. Ele tem “mauricinho” escrito por todo ele. Assim
como “muito furioso”.
— Vejam — diz o homem. — Quanto tempo isso vai levar? Tenho
uma reunião com meu advogado às três da tarde, e se o trânsito estiver
tão ruim quanto estava vindo para cá…
— Desculpe, o senhor é?
— Mark Sexton. Da casa ao lado. Sou o proprietário.
— Então foi o senhor que nos telefonou?
— É, fui eu. Eu estava no porão com meu arquiteto, e parte da parede
cedeu. Tem uma garota ali dentro. Eu sei o que vi e, diferente dessa
gente, não estou bêbado. Perguntem a Knight, ele também viu.
— Certo — diz Quinn, gesticulando para que o policial com o aríete
fosse até a porta.— Vamos em frente. E controle aquele pessoal na
calçada, está bem? Eles estão parecendo o pessoal de O sacrifício.
Quando Quinn se afasta, Sexton o chama outra vez.
— Ei, e os meus operários? Quando eles podem entrar novamente?
Quinn o ignora, mas quando Gislingham passa, ele lhe dá um tapinha
no ombro.
— Desculpe, parceiro — diz com um sorriso. — Essa reforma
elegante vai ter que esperar.
Na escada da frente, Quinn bate na porta.
— Sr. Harper? Polícia de Thames Valley. Se estiver aí, por favor, abra
a porta, ou vamos ser forçados a arrombá-la.
Silêncio.
— Está bem — diz Quinn, acenando com a cabeça para o policial
uniformizado. — Vá em frente.
A porta é mais forte do que parece, considerando o estado do resto
da casa, mas as dobradiças se soltam no terceiro golpe. Alguém na
multidão aplaude de um jeito embriagado. O restante chega para a
frente, se esforçando para ver.
Quinn e Gislingham entram e fecham a porta às suas costas.
Dentro da casa, tudo está imóvel. Eles ainda podem ouvir os sinos
dos dançarinos de Morris, e moscas estão zumbindo em algum lugar no
ar bolorento. O lugar nitidamente tinha parado no tempo décadas atrás;
o papel de parede está todo descascado, e o teto, solto e estufado com
manchas marrons. Há jornais espalhados pelo chão.
Quinn segue lentamente pelo corredor, as velhas tábuas rangendo,
os sapatos se arrastando sobre papel.
— Tem alguém aqui? Sr. Harper? É a polícia.
Então ele escuta. Um barulho de choro. Perto. Ele para por um
momento, tentando descobrir de onde vem aquele som, então sai
correndo e abre bruscamente uma porta embaixo da escada.
Tem um velho sentado no vaso sanitário vestindo apenas um colete.
Há tufos de cabelo preto crespo grudados em seu couro cabeludo e
seus ombros. Sua cueca está em torno de seus tornozelos, e seu pênis
e seus testículos pendem inertes entre suas pernas. Ele tenta se
esconder de Quinn, ainda resmungando, os dedos ossudos agarrados
ao assento da privada. Ele está imundo, e há cocô no chão.
Somer chama da porta:
— Sargento detetive Quinn? Os paramédicos chegaram, se precisar
deles.
— Graças a Deus por isso. Traga-os para cá, está bem?
Somer se afasta para deixar dois homens de macacão verde
passarem pela porta. Um se agacha em frente ao senhor de idade.
— Sr. Harper? Não precisa ficar nervoso. Vamos só dar uma olhada
no senhor.
Quinn gesticula para Gislingham, e os dois se afastam na direção da
cozinha.
Gislingham dá um assovio quando eles entram no cômodo.
— Alguém ligue para o Museu Victoria & Albert.
Um fogão a gás antigo, azulejos marrom e laranja dos anos 1970,
uma pia de metal. Uma mesa de fórmica com quatro cadeiras que não
combinam entre si. E todas as superfícies cobertas de louça suja,
garrafas de cerveja vazias e latas de alimentos parcialmente comidas
cheias de moscas. Todas as janelas estão fechadas, e o linóleo sob
seus pés gruda na sola dos sapatos. Tem uma porta de vidro com uma
cortina de contas que leva a uma estufa, e outra porta que deve levar
ao porão. Ela está trancada, mas há várias chaves em um prego.
Gislingham as pega e precisa de três tentativas para encontrar a certa,
mas, embora a chave esteja enferrujada, ela gira sem resistência. Ele
abre a porta e acende a luz, então chega para o lado e deixa Quinn
entrar primeiro. Eles descem devagar, degrau por degrau, a faixa de
néon sibilando acima de suas cabeças.
— Olá? Tem alguém aqui embaixo?
A luz é fraca, mas suficiente para eles verem. O porão está vazio. Há
caixas de papelão, sacos de plástico preto, uma luminária antiga, uma
banheira de metal cheia de lixo. Mas, fora isso, nada.
Eles ficam ali parados, olhando um para o outro, com o coração
batendo tão alto que eles mal conseguem ouvir qualquer outra coisa.
Então:
— O que foi isso? — sussurra Gislingham. — Parece o som de unhas
arranhando algo. Ratos?
Quinn olha involuntariamente para o chão ao redor dos seus pés,
nervoso. Se há uma coisa que ele não suporta são os malditos ratos.
Gislingham olha em volta novamente, os olhos se ajustando à
escuridão, desejando ter pegado a lanterna no carro.
— O que é aquilo ali?
Ele abre caminho através das caixas e percebe de repente que o
porão é muito maior do que eles imaginavam.
— Quinn, tem outra porta aqui. Você pode me dar uma mão?
Ele tenta abrir a porta, mas ela não se mexe. Tem um trinco no alto, e
Quinn, depois de algum tempo, consegue puxá-lo, mas a maldita porta
não abre.
— Deve estar trancada — sugere Gislingham. — Você ainda está
com aquelas chaves?
É ainda pior encontrar a chave certa à meia-luz, mas eles
conseguem. Forçam a porta com o ombro e lentamente a empurram
para a frente até que uma onda de ar estagnado os atinge, e eles
precisam levar a mão à boca por causa do fedor.
Há uma jovem deitada no chão de concreto usando uma calça jeans
rasgada no joelho e um cardigã esfarrapado que provavelmente tinha
sido amarelo. A boca dela está aberta, e os olhos, fechados. Sua pele
está muito pálida sob a luz fraca.
Mas tem outra coisa. Algo para o qual nada os preparou.
Sentada ao seu lado, puxando seu cabelo.
Uma criança.
 
***
 
E onde eu estava quando tudo isso aconteceu? Eu adoraria dizer que
estava envolvido com algo impressionante feito a Agência Especial da
polícia ou com ações de contraterrorismo, mas a triste verdade é que eu
estava em um curso de treinamento em Warwick. “Policiamento
comunitário no século XXI.” Para inspetores e seus superiores; nós não
somos sortudos? Com a tortura por PowerPoint e o início ridiculamente
cedo, eu estava começando a achar que os policiais uniformizados
incumbidos do May Morning tinham sem dúvida se dado melhor. Mas
então recebi o telefonema. Seguido rapidamente por uma carranca da
organizadora obsequiosa que tinha insistido para que desligássemos os
celulares, e por um suspiro audível quando escapei para o corredor. Ela
provavelmente está preocupada que eu nunca volte.
— Eles levaram a garota para o hospital John Radcliffe — diz Quinn.
— Ela está muito mal. Não come há algum tempo e está seriamente
desidratada. Ainda havia uma garrafa de água por lá, mas, acho que ela
estava dando a maior parte para a criança. Os paramédicos vão
conseguir nos dizer depois de fazerem um exame adequado.
— E o menino?
— Ainda não está dizendo nada. Mas, meu Deus, ele não pode ter
muito mais que dois anos, o que ele vai conseguir nos contar, afinal? O
coitado não deixava que Gis e eu chegássemos nem perto dele, então
Somer foi na ambulância. Nós prendemos Harper em flagrante, mas,
quando tentamos tirá-lo da casa, ele começou a espernear e a resistir.
Acho que é Alzheimer.
— Olhe, sei que não preciso dizer isso, mas, se Harper é um adulto
vulnerável, é mais importante do que nunca fazermos tudo de acordo
com as regras.
— Eu sei. Já me adiantei e liguei para o serviço social. E não só por
causa dele. O menino também vai precisar de ajuda.
Há um silêncio, e desconfio que nós dois estejamos pensando a
mesma coisa.
É bem possível que estejamos lidando com uma criança que não
conhece nada além daquele porão. Que nasceu lá embaixo, no escuro.
— Está bem — digo. — Estou saindo agora. Chego por volta do meio-
dia.
 
***
 
BBC Midlands Today
Segunda-feira, 1º de maio de 2017 | Atualizado pela última vez às 11h21
 
URGENTE: Garota e criança encontradas em um porão em North Oxford
 
Recebemos informações da descoberta de uma jovem e uma criança pequena,
supostamente seu filho, aparentemente trancados no porão de uma casa na Frampton
Road, em North Oxford. A casa ao lado está passando por uma reforma, o que levou,
esta manhã, à descoberta da garota no porão. A garota não foi identificada, e a Polícia
de Thames Valley ainda não emitiu um pronunciamento.
Mais notícias sobre o assunto assim que forem apuradas.
 
***
 
São 11h27. Na sala de testemunhas em Kidlington, Gislingham está
observando Harper na imagem de vídeo. Ele agora está de camisa e
calça, e está sentado encurvado no sofá. Há um assistente social ao
lado dele em uma cadeira de espaldar reto, falando com ele
atentamente, e uma mulherda equipe de saúde mental observando a
alguns metros de distância. Harper parece irrequieto — ele está se
remexendo, movendo uma perna para cima e para baixo —, mas dá
para perceber, mesmo com o som desligado, que está coerente. Pelo
menos por enquanto. Harper está olhando para o assistente social com
irritação, desdenhando do que ele diz com acenos de uma mão rígida e
enrugada.
A porta se abre, e Gislingham se vira e vê Quinn se aproximar, jogar
uma pasta na mesa e se encostar na escrivaninha.
— Everett foi direto para o hospital, então ela vai entrevistar a garota
assim que tivermos permissão. — Eric… — Ele enrubesce. — A policial
Somer voltou para a Frampton Road para coordenar o porta a porta. E
Challows foi com a equipe da perícia forense.
Ele faz uma anotação no arquivo e bota a caneta atrás da orelha. Do
jeito que sempre faz. Então aponta com a cabeça na direção do monitor
de vídeo.
— Alguma coisa?
Gislingham balança a cabeça.
— O assistente social dele já está ali há meia hora. O nome dele é
Ross, Derek Ross. Tenho certeza de que já o encontrei antes. Alguma
notícia de quando Fawley vai voltar?
Quinn verifica seu relógio.
— Por volta de meio-dia. Mas ele disse que devíamos começar se a
médica e o assistente social o liberarem. Tem uma advogada a
caminho, também. O assistente social está se protegendo. Acho que
não se pode culpá-lo.
— Conheço bem o tipo — diz Gislingham secamente. — Mas eles
têm certeza de que ele está bem para ser interrogado?
— Aparentemente, ele tem intervalos lúcidos, e nesses momentos
podemos interrogá-lo, mas, se ele começar a se perder, vamos ter que
parar.
Gislingham olha para o monitor por um momento. Há um fio de baba
escorrendo do queixo do velho; já está ali faz dez minutos, mas ele não
o limpou.
— Você acha que ele fez isso, que ele conseguiria?
O rosto de Quinn está desgostoso.
— Se aquela criança realmente nasceu lá embaixo, então sim, com
certeza. Sei que Harper agora parece patético, mas há dois ou três
anos? Ele podia ser completamente diferente. E foi esse outro homem
que cometeu o crime… não esse velho triste ali dentro.
Gislingham estremece, embora a sala esteja bem quente, e Quinn
olha para ele.
— O que aconteceu?
— Estava só pensando. Ele não ficou assim da noite para o dia,
ficou? Isso está acontecendo há meses. Anos, até. E ela não tinha
como saber. Que ele estava ficando senil, quero dizer. Ela está presa lá
embaixo, fora de vista. Aposto que ele começou a esquecer que ela
estava ali. A comida começa a escassear, depois a água, ela precisa
pensar no filho e, mesmo que ela grite, o velho não consegue escutá-
la…
Quinn balança a cabeça.
— Minha nossa, nós chegamos lá bem a tempo.
 
 
Na tela, Derek Ross se levanta e sai de quadro. No momento
seguinte, a porta se abre e ele aparece.
Gislingham fica de pé.
— Então você é o assistente social dele?
Ross assente.
— Pelos últimos dois anos, mais ou menos.
— Então você sabia da demência?
— Ele foi formalmente diagnosticado alguns meses atrás, mas eu
desconfio que estivesse acontecendo há muito mais tempo que isso. E
você sabe tão bem quanto eu como isso é imprevisível, como tem
acessos e sobressaltos. Ultimamente eu estava preocupado que isso
tivesse começado a acelerar. Ele sofreu algumas quedas e se queimou
no fogão há cerca de um ano.
— E ele anda bebendo, não é? Dá para sentir o cheiro emanando
dele.
Ross respira fundo.
— Sim. Isso virou um grande problema nos últimos tempos. Mas eu
simplesmente não consigo acreditar que ele possa ter feito uma coisa
dessas, nada tão terrível…
Quinn não está convencido.
— Nenhum de nós sabe do que somos capazes de verdade.
— Mas no estado em que ele está…
— Olhe — interrompe Quinn; há uma dureza em sua voz agora. — A
médica diz que não há problema em interrogá-lo, e ela é a especialista.
Em relação a acusações, bom, isso é outra questão, e a promotoria vai
ter o que dizer se e quando chegarmos a essa fase. Mas havia uma
garota e uma criança trancadas naquele porão, e nós precisamos
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descobrir como elas foram parar lá. O senhor entende isso, não, sr.
Ross?
Ross hesita, então assente.
— Posso participar? Ele me conhece, isso pode ajudar. Ele pode ser
um pouco… difícil. Como vocês estão prestes a descobrir.
— Certo — diz Quinn, recolhendo seus papéis.
Os três homens se dirigem para a porta, mas Ross para de repente e
põe a mão no braço de Quinn.
— Peguem leve, por favor.
Quinn olha para ele, então ergue a sobrancelha.
— Igual ele fez com aquela garota?
 
***
 
Entrevista com Isabel Fielding, realizada na Frampton Road, 17, Oxford.
1º de maio de 2017, 11h25
Presente: policial E. Somer
 
Há quanto tempo mora aqui, sra. Fielding?
Só há alguns anos. É uma casa da universidade. Meu marido é professor em Wadham.
Então conhece o sr. Harper, o senhor que mora no número 33?
Não somos próximos. Logo depois que nos mudamos, ele apareceu um pouco
transtornado e perguntou se tínhamos visto a capa de seu carro. Aparentemente, tinha
desaparecido. Foi um pouco estranho, já que seu carro, na verdade, não vai a lugar
nenhum. Mas achamos que ele fosse só um pouco, sabe, excêntrico. Tem muito disso. Por
aqui, quero dizer. Muitos “personagens”. Alguns deles eram acadêmicos, então viveram
aqui por muito tempo. Acho que muitos deles simplesmente chegaram a um estágio roxo e
gatos e não estão mais nem aí.
“Roxo e gatos”?
Ah, sabe, igual ao poema. “Quando envelhecer, vou começar a usar roxo”, ou seja lá como
for. Quando se chega à idade em que você simplesmente não se importa mais com nada.
E o sr. Harper não se importava?
Ele estava sempre andando por aí. Falando sozinho. Usando roupas estranhas. Luvas de
lã no meio do verão. Pijamas na rua. Esse tipo de coisa. Mas ele é basicamente inofensivo.
[pausa]
Desculpe, isso saiu errado, eu não quis…
Está tudo bem, sra. Fielding. Sei o que a senhora quis dizer.
 
***
 
— Então, sr. Harper, meu nome é sargento detetive Gareth Quinn, e
meu colega aqui é o detetive Chris Gislingham. O senhor já conhece
Derek Ross, e essa senhora vai atuar como sua advogada.
A mulher na outra extremidade da mesa ergue os olhos brevemente,
mas Harper não reage. Não parece sequer ter registrado a sua
presença.
— Então, sr. Harper, o senhor foi preso hoje às dez da manhã,
suspeito de sequestro e cárcere privado. O senhor foi detido, e seus
direitos foram explicados, o que o senhor disse ter entendido. Nós agora
vamos conduzir um interrogatório formal, que está sendo gravado.
— Isso significa que eles estão filmando tudo, Bill — diz Ross. —
Você compreende?
Os olhos do velho se estreitam.
— Claro que compreendo. Não sou a droga de um idiota. E é dr.
Harper para você, rapaz.
Quinn olha para Ross, que assente.
— O dr. Harper foi professor da Universidade de Birmingham até
1998. Sociologia.
Gislingham vê Quinn corar um pouco; três vezes em uma manhã,
devia ser algum tipo de recorde.
Quinn abre sua pasta.
— Creio que o senhor mora em seu endereço atual desde 1976, não?
Mesmo trabalhando em Birmingham?
Harper olha para ele como se estivesse sendo deliberadamente
estúpido.
— Birmingham é uma merda.
— E o senhor se mudou para cá em 1976?
— Nada disso. Foi em 11 de dezembro de 1975 — diz Harper. — O
aniversário da minha mulher.
— A primeira esposa do dr. Harper morreu em 1999 — explica Ross
rapidamente. — Ele se casou novamente em 2001, mas infelizmente a
segunda sra. Harper morreu em um acidente de carro em 2010.
— Vaca idiota — diz Harper alto. — Só sabia beber, aquela lá.
Ross olha para a advogada; ele parece envergonhado.
— O legista descobriu que a sra. Harper tinha níveis elevados de
álcool no sangue no momento do acidente.
— O dr. Harper tem algum filho?
Harper estende a mão e bate na mesa em frente a Quinn.
— Fale comigo, rapaz. Fale comigo. Não com esse idiota.
Quinn se volta para ele.
— Então, o senhor tem?
Harper faz uma careta.
— Annie. Vaca gorda.
Quinn pega a caneta.
— Sua filha se chama Annie?
— Não — interrompe Ross. — Bill fica um pouco confuso. Annie era
uma vizinha que morava nonúmero 48. Uma mulher muito simpática,
aparentemente. Ela costumava aparecer para ver se Bill estava bem,
mas se mudou para o Canadá em 2014 para ficar mais perto do filho.
— Ela quer usar o escape, a vaca besta. Eu disse a ela que não teria
uma daquelas coisas em casa.
Quinn olha para Ross.
— Ele quer dizer “Skype”. Mas ele não usa computador, por isso não
havia a menor chance.
— Mais nenhuma família?
O rosto de Ross fica inexpressivo.
— Não que eu saiba.
 
***
 
— Sem dúvida tem um filho. Mas não consigo de jeito nenhum me
lembrar do nome.
Somer está na porta do número sete há pelo menos quinze minutos.
Ela está desejando, agora, ter aceitado a oferta de chá, mas se tivesse
feito isso talvez ficasse ali o dia inteiro — a sra. Gibson praticamente
ainda não tinha nem tomado fôlego.
— Um filho, a senhora acha? — diz Somer, folheando suas anotações
até o início. — Mais ninguém o mencionou.
— Bom, isso não me surpreende. As pessoas por aqui não gostam de
“se envolver”. Não como quando eu era pequena. Naquela época as
pessoas cuidavam umas das outras, todo mundo sabia quem eram seus
vizinhos. Eu não tenho ideia de quem são esses yuppies.
— Mas a senhora tem certeza de que sem dúvida há um filho?
— John… É isso! Eu sabia que ia acabar lembrando. Mas não o vejo
por aqui há um bom tempo. Um sujeito de meia-idade. Cabelo grisalho.
Somer faz uma anotação.
— E quando a senhora acha que o viu pela última vez?
Tem um barulho no vestíbulo por trás, e a sra. Gibson se vira para
fazer um som e pedir silêncio antes de fechar um pouco mais a porta.
— Desculpe, querida. A droga da gata sempre tenta sair pela frente
se eu deixo. Ela tem uma portinhola nos fundos, mas você sabe como
são os gatos, sempre fazem o que não devem, e siameses são ainda
piores…
— O filho do sr. Harper, sra. Gibson?
— Ah, é, bom, agora que você mencionou, acho que deve ter sido há
alguns anos.
A sra. Gibson faz uma careta.
— E a senhora sabe se o sr. Harper recebe algum outro visitante?
— Bom, tem o assistente social, eu acho. Ele não serve para muita
coisa.
 
***
 
Quinn respira fundo. Harper olha para ele.
— O que foi, rapaz? Diga logo, porra, pelo amor de Deus. Não fique
só aí sentado com cara de quem está tentando cagar.
Nesse momento, até a advogada parece envergonhada.
— Dr. Harper, o senhor sabe por que a polícia foi a sua casa esta
manhã?
Harper se encosta na cadeira.
— Não tenho a mínima ideia. Provavelmente aquele babaca do lado
reclamando das latas de lixo. Imbecil.
Quinn e Gislingham trocam um olhar. Os dois já estiveram em
interrogatórios suficientes para saber que esse é o momento. Muito
poucas pessoas culpadas, mesmo os melhores e mais treinados
mentirosos, conseguem controlar seu corpo tão bem para não darem
nenhum sinal. Seja um tremor nos olhos, uma contorção repentina das
mãos, quase sempre tem alguma coisa. Mas agora não. O rosto de
Harper está inexpressivo, nenhum recuo cauteloso, nenhuma tentativa
de demonstrar excesso de confiança. Nada.
— E eu não tenho a porra de uma TV.
Quinn olha para ele.
— Desculpe?
Harper chega para a frente na cadeira.
— Imbecil. Eu não tenho a porra de uma TV.
Ross lança um olhar nervoso para Quinn.
— Acho que o que o dr. Harper está tentando dizer é que ele não
precisa de uma licença de TV. Ele acha que foi por isso que vocês o
trouxeram para cá.
Harper chega bruscamente para a frente e mete o dedo na cara de
Gislingham.
— Eu não tenho a porra de uma TV.
Quinn vê a expressão de alarme nos olhos de Ross; isso está
começando a sair de controle.
— Dr. Harper — diz ele. — Havia uma garota em seu porão. O que
ela estava fazendo lá?
Harper se encosta. Ele olha de um dos policiais para o outro. Pela
primeira vez, ele parece enrolado. Gislingham abre sua pasta e pega
uma foto que tirou da garota. Ele se vira para encarar Harper.
— Essa é a garota. Como ela se chama?
Harper lança um olhar atravessado para ele.
— Annie. Vaca gorda.
Ross está balançando a cabeça.
— Essa não é Annie, Bill. Você sabe que essa não é Annie.
Harper não está olhando para a fotografia.
— Dr. Harper — insiste Gislingham. — Precisamos que o senhor olhe
para a foto.
— Priscilla — diz Harper, e saliva escorre por seu queixo. — Sempre
foi bonita. A vaca do mal. Circulando pela casa com os peitos de fora.
Ross parece desesperado.
— Também não é Priscilla. Você sabe que não é.
Harper estende uma mão recurvada e, sem tirar os olhos do rosto de
Gislingham, joga a foto para fora da mesa, junto com o telefone de
Gislingham, que bate com um estrondo na parede e cai em pedaços no
chão.
— Mas por que diabos você fez isso?! — grita Gislingham, se
levantando da cadeira.
— Dr. Harper — diz Quinn, agora com os dentes cerrados. — Essa
jovem está atualmente no hospital John Radcliffe, onde os médicos vão
fazer nela um exame completo. Assim que conseguir falar, vamos
descobrir quem ela é, e como ela acabou trancada no porão da sua
casa. Essa é sua chance de nos contar o que aconteceu. O senhor
entende isso? Entende o quanto isso é sério?
Harper se levanta e cospe em seu rosto.
— Vá se foder. Está me ouvindo? Vá se foder!
Há uma pausa terrível. Gislingham não ousa olhar para Quinn. Então
ele o escuta tirar algo do bolso e ergue os olhos para vê-lo limpando o
rosto.
— Acho que devíamos parar agora, policial — diz a advogada. — O
senhor não acha?
— Entrevista encerrada às 11h37 — diz Quinn, com uma calma
gelada. — O dr. Harper agora vai ser levado sob custódia e posto nas
celas…
— Ah, pelo amor de Deus! — diz Ross. — Você com certeza
consegue ver que ele não está em condições para isso.
— O dr. Harper — diz Quinn, tranquilamente, recolhendo seus papéis
e os empilhando com cuidado exagerado — pode muito bem
representar um perigo para o público, assim como para si mesmo. E, de
qualquer modo, sua casa agora é a cena de um crime. Ele não pode
voltar para lá.
Quinn se levanta e anda na direção da porta, mas Ross sai em seu
encalço e o segue até o corredor.
— Vou encontrar um lugar para ele ficar — diz ele. — Um lar de
idosos. Algum lugar onde possamos ficar de olho nele…
Quinn se vira tão repentinamente que os dois ficam a poucos
centímetros de distância.
— Ficar de olho nele? — diz com raiva. — É isso o que você tem feito
todos esses meses, ficar de olho nele?
Ross recua, com o rosto branco.
— Olhe…
Mas Quinn não desiste.
— Há quanto tempo você acha que ela estava lá embaixo, hein? Ela
e aquela criança? Dois anos, três? E durante esse tempo todo, você foi
àquela casa, ficando de olho nele, uma semana atrás da outra. Você é a
única droga de pessoa que estava indo lá. Você está me dizendo
seriamente que não sabia? — Ele enfia o dedo no peito de Ross. — Na
minha opinião, não é só Harper que devíamos estar prendendo. Você
tem perguntas muito sérias para responder, sr. Ross. Isso está muito
além de negligência profissional…
Ross ergue a mão, para afastar Quinn.
— Você tem alguma ideia de quantos clientes eu tenho? Quanta
papelada tenho que preencher? Com isso e o trânsito, tenho sorte de
conseguir uma visita de quinze minutos. O máximo que consigo fazer é
ver se ele está comendo e não está sentado na própria merda. Se acha
que tenho tempo de fazer uma visita e também uma inspeção da casa,
você está completamente enganado.
— Você nunca ouviu nada… nunca viu nada?
— Quinn… — diz Gislingham, que agora está parado na porta.
— Eu nunca estive naquela droga de porão — insiste Ross. — Eu
nunca nem soube que ele tinha um…
Quinn, agora, está com o rosto vermelho.
— Você está me pedindo seriamente que acredite nisso?
— Quinn — diz Gislingham com urgência.
E, quando Quinn o ignora de novo, Gislingham segura seu ombro e o
força a se virar. Tem alguém chegando pelo corredor na direção deles.
É Fawley.
 
***
 
Na Frampton Road, Allan Challow segue pelo caminho até a porta da
frente e para por um momento para que o policial uniformizado levante
a fita que obstrui a entrada. É o dia mais quente do ano até agora, e ele
está suando em seu traje de proteção. A multidão no fim da entrada
mais do que duplicou detamanho, e sua constituição mudou. A maioria
dos retardatários de May Morning tinha ido embora, e os construtores
também encerraram o dia. Um ou dois vizinhos ainda permaneciam ali,
mas a maioria dos observadores agora está em busca de uma emoção
mórbida ou de uma boa história. Ou das duas coisas: pelo menos
metade deles são repórteres.
Na cozinha, que fica nos fundos, duas profissionais da equipe da
perícia forense de Challow estão empoando o aposento em busca de
impressões digitais. Uma delas gesticula com a cabeça para Challow e
abaixa a máscara para falar com ele. Há uma linha de suor sobre seu
lábio superior.
— Essa é uma daquelas vezes em que você fica realmente
agradecida por usar uma dessas. Só Deus sabe quando alguém fez
uma limpeza adequada aqui dentro.
— Onde é o porão?
Ela aponta.
— Atrás de você. Nós puxamos uma luz melhor. O que só serve para
deixar as coisas piores. — Ela dá de ombros, de cara fechada. — Mas
você sabe disso.
Challow faz uma careta. Ele faz esse trabalho há 25 anos. Ele se
abaixa um pouco para evitar a lâmpada que agora está pendurada no
alto da escada do porão e desce, projetando sombras gigantes e
trêmulas sobre as paredes de tijolos aparentes. Ali embaixo, dois outros
peritos forenses estão esperando por ele, olhando ao redor para o lixo
acumulado.
— Está bem — diz Challow. — Sei que é um aborrecimento, mas
precisamos levar tudo isso de volta com a gente. Onde estava a garota?
— Por ali.
Challow entra em um aposento interno. Há uma lâmpada de arco
voltaico jogando um brilho impiedoso sobre o chão imundo, forrado de
sujeira, e o vaso sanitário cheio até a borda com detritos fétidos. Mais
caixas de lixo. Há uma caixa de papelão que continha garrafas de água,
mas restava apenas uma, e embora haja um saco plástico cheio de
embalagens e latas vazias, não há sinal de comida. E nos fundos, em
um dos cantos, uma cama de criança, enroscada como um ninho de
ratos.
— Certo — disse Challow por fim, no silêncio. — Precisamos levar
todas essas coisas embora, também.
Uma das peritas vai até a rachadura na parede que divide o porão
das duas casas. Alguns tijolos estão quebrados, e o reboco foi
removido.
— Alan — diz ela após um instante, voltando-se para Challow. —
Veja.
Challow se junta a ela, em seguida se abaixa para ver mais de perto.
O reboco úmido está coberto de marcas vermelhas.
— Meu Deus — diz ele por fim. — Ela estava tentando escapar
cavando com as unhas.
 
***
 
Eu não via Derek Ross desde o caso Daisy Mason. Ele acompanhou
o irmão dela quando nós o interrogamos; então, por um motivo ou por
outro, na época, encontrei Ross muitas vezes. Isso aconteceu menos
de um ano atrás, mas, olhando para ele, você diria que se passaram
cinco. Ele perdeu mais cabelo, ganhou mais peso e tem um tique sob o
olho direito. Mas desconfio de que Quinn possa ter alguma coisa a ver
com isso.
— Sargento detetive Quinn — digo, voltando-me para ele. — Por que
não vai buscar café para nós todos? E não estou falando do da
máquina.
Quinn olha para mim, abre a boca e torna a fechá-la.
— Senhor, eu… — começa a dizer ele, mas Gislingham o toca no
cotovelo.
— Vamos. Eu te dou uma ajuda.
É uma amostra excelente daquela dupla: Gis, que sempre foi
excepcionalmente bom em saber quando parar de cavar; e Quinn, que
carrega seu próprio jogo de pás.
Eu levo Ross para o escritório ao lado. A tela está muda, agora, mas
ainda mostra a sala de interrogatório. A advogada está de pé,
preparando-se para ir embora, e Harper está encolhido na cadeira,
abraçando os joelhos. Ele parece muito pequeno e muito velho, e muito
assustado.
Ponho um copo de água na frente de Ross. Então me sento na
cadeira no lado oposto da mesa e a empurro um pouco mais para trás.
Ele tem grandes manchas úmidas embaixo dos braços, e a melhor
maneira de descrever seu cheiro seria “pungente”. Acredite em mim,
você não quer chegar tão perto.
— Como você anda?
Ele olha para mim.
— Mais ou menos — diz ele, desconfiado.
Eu me encosto na cadeira.
— Então, conte-me sobre Harper.
Ele se enrijece, só um pouco.
— Eu sou algum tipo de suspeito?
— Você é uma testemunha importante. Deve saber disso.
Ele dá um suspiro.
— É, acho que sei. O que você quer saber?
— Você disse a meus policiais que só ia lá uma vez por semana. Há
quanto tempo fazia isso?
— Dois anos, talvez um pouco mais. Eu precisaria olhar no arquivo.
— E não ficava muito tempo?
Ele dá um gole na água; um pouco dela se derrama sobre sua calça,
mas Ross não parece perceber.
— Não posso. Não tenho tempo. Sério, não tem nada que eu gostaria
mais do que me sentar lá por uma hora e conversar sobre o clima, mas
com os cortes orçamentários que tivemos ultimamente…
— Eu não estava acusando você.
— Aquele seu sargento detetive acusou.
— Desculpe por isso. Mas você precisa lembrar… ele viu o estado em
que a garota estava. Sem falar na criança. E se ele estava achando
difícil imaginar como você podia ir lá por todo esse tempo sem saber
que ela estava lá, bom, não posso dizer que o culpo. Para ser sincero,
eu mesmo estou me esforçando para acreditar nisso.
Porque, apesar do que acabei de dizer, estou a um passo de
interrogá-lo como suspeito. E até eu ter certeza absoluta de que ele não
está envolvido, Harper vai precisar de outra pessoa para acompanhá-lo.
Já vai ser muito difícil conseguir uma condenação nesse caso. A última
coisa de que preciso é uma investigação problemática.
Ross passa a mão pelo cabelo. O que lhe resta dele.
— Olhe, essas casas têm paredes grossas. Não me surpreende que
eu não tenha ouvido nada.
— Você nunca foi lá embaixo?
Ele me olha direto nos olhos.
— Como eu disse, nem sabia que ele tinha um porão. Achei que
aquela porta fosse só um armário.
— E o andar de cima?
Ele balança a cabeça.
— Bill praticamente morava no térreo desde que eu o conheci.
— Mas ele consegue subir e descer as escadas?
— Se precisar, sim. Mas não faz isso muito. Annie preparou uma
cama na sala antes de partir, e tem um banheiro nos fundos. É bem
básico, mas tem. Tenho medo de pensar qual o estado do segundo
andar agora. Deve fazer anos que ninguém sobe lá. Provavelmente
ninguém desde que Priscilla morreu.
— Nenhuma faxineira? O conselho não manda ninguém?
— Nós tentamos, mas Bill apenas gritou que ela estava abusando
dele e ela se recusou a voltar. Eu de vez em quando passo um pano e
jogo água sanitária no vaso. Mas tem um limite para o que podemos
fazer no tempo que temos.
— E comida… compras? Você também faz isso?
— Quando tiraram sua carteira de motorista, eu consegui que uma
obra de caridade local para idosos organizasse para ele uma entrega
regular do supermercado. Isso foi há cerca de um ano e meio. Há uma
ordem permanente em sua conta bancária. Ele tem muito dinheiro.
Bom, talvez não “muito”, mas o suficiente.
— Por que ele não se muda dali? Aquela casa deve valer uma
fortuna. Mesmo naquele estado.
Ross faz uma careta.
— O idiota da casa ao lado pagou mais de três milhões. Mas Bill se
recusa a ir para um lar de idosos. A artrite dele piorou bastante no
último mês, e agora o médico vai começar a medicá-lo para o
Alzheimer, e Harper vai precisar ser monitorado para garantir que tome
os remédios direito. Eu não tenho como fazer isso. Se ele ficar naquela
casa sozinho, é só questão de tempo antes que haja algum tipo de
acidente. Como eu disse, ele já se queimou uma vez.
— Ele sabia que você queria que ele se mudasse?
Derek respira fundo.
— Sabia, sim. Eu conversei com ele há cerca de um mês e meio e
tentei explicar tudo. Infelizmente ele não reagiu muito bem. Ficou
violento, gritou comigo, jogou coisas. Então eu desisti. Estava
planejando falar com ele outra vez esta semana. Acabou de abrir uma
vaga no Lar Newstead, em Witney. É um dos melhores. Mas só Deus
sabe o que vai acontecer agora.
Há uma pausa. Ele termina sua água. Eu sirvo mais.
— Você já pensou — digo, com cuidado — que a razão para ele não
querer se mudar fosse a garota?
O rosto de Ross fica branco, e ele põe o copo de água sobre a mesa.
— Ele não podia deixar a casa com ela lá dentro, porqueela seria
descoberta. E ele não podia soltá-la, exatamente pela mesma razão.
— Então o que ele ia fazer?
Dou de ombros.
— Não sei, esperava que você pudesse…
De repente, há uma comoção no corredor, e Gislingham abre
bruscamente a porta.
— Chefe — diz ele. — Eu acho…
Mas eu já o afastei para o lado e sigo para o corredor.
Na sala ao lado, dois policiais estão tentando conter Harper. É difícil
de acreditar que seja o mesmo homem — ele está arranhando o rosto
deles, chutando e gritando com uma policial.
— Vadia!
A mulher está visivelmente abalada. E eu a conheço — ela não é
nenhuma novata. Há um arranhão em seu rosto, e a frente de seu
uniforme está ensopada.
— Eu só ofereci uma xícara de chá — gagueja ela. — Ele disse que
estava quente demais, que eu estava tentando queimá-lo. Eu não
estava… eu de verdade não estava…
— Eu sei. Olhe, vá se sentar um pouco. E peça a alguém para dar
uma olhada nesse corte.
Ela leva a mão ao rosto.
— Eu nem percebi…
— Acho que é só um arranhão. Mas vá cuidar dele mesmo assim.
Ela assente, e quando estou saindo da sala atrás dela, Harper parte
para cima dela outra vez.
— Vadia! É ela que você devia estar prendendo, seu retardado. Ela
tentou me escaldar, porra. Vaca do mal!
 
 
Ross está com os olhos fixos na tela quando eu volto para a sala ao
lado, e fico ali de pé parado por um instante.
— Então, qual é o verdadeiro Bill Harper? — pergunto por fim. — O
que estava encolhido como uma criança assustada ou o que acabou de
atacar uma de minhas policiais?
Ross balança a cabeça.
— É a doença. É isso o que ela faz.
— Talvez. Ou talvez tudo o que essa doença esteja fazendo seja
acabar com o autocontrole que ele costumava ter. Talvez ele sempre
tenha sido raivoso, mas não deixava que isso saísse de controle. Ele
sabia como lidar com isso. Até mesmo esconder.
Ross se virou para olhar para mim, mas de repente não está mais me
olhando nos olhos. Tem alguma coisa acontecendo, alguma coisa que
ele não quer me contar.
Deixo que o silêncio se prolongue. Então dou um passo em sua
direção.
— O que é, Derek?
Ele me encara, então afasta os olhos. Seu rosto está vermelho.
— O que mais William Harper está escondendo?
 
***
 
No hospital John Radcliffe, a detetive Verity Everett está esperando
há mais de duas horas. A maioria das pessoas odeia hospitais, mas ela
estudou enfermagem antes de entrar para a polícia, e lugares como
esse nunca a deixam nervosa. Ela, na verdade, acha a atmosfera
bastante reconfortante — mesmo em uma emergência, as pessoas aqui
sabem o que devem fazer, onde devem estar. Os jalecos brancos, o
ruído branco, tudo é estranhamente calmante. Somando-se isso ao
corredor um pouco aquecido demais e ao quanto ela tem dormido mal
ultimamente, não é surpresa que esteja se esforçando para permanecer
acordada, mesmo sentada em uma cadeira de plástico dura. Na
verdade, ela devia estar cochilando, porque o toque em seu braço faz
com que sua cabeça se mova bruscamente para trás, e ela se apruma
imediatamente na cadeira.
— Detetive Everett?
Ela abre os olhos. O rosto do médico é simpático. Preocupado.
— Você está bem?
Ela se sacode para acordar. Seu pescoço está doendo.
— Estou bem, sim. Desculpe, devo ter cochilado por um minuto.
O médico sorri. Ele é muito bonito. Tipo um Idris Elba com um
estetoscópio.
— Acho que foi bem mais de um minuto. Mas não havia razão para
incomodá-la.
— Como ela está?
— Infelizmente, não tenho muitas notícias. Como os paramédicos
desconfiavam, ela está muito desidratada e subnutrida. Não acho que
haja mais nada seriamente errado, mas ela estava muito nervosa
quando chegou, por isso ainda não fizemos um exame completo. Nesse
estágio, isso pode causar mais mal que bem. Nós a sedamos, para que
ela possa dormir.
Everett se levanta com movimentos rígidos da cadeira de plástico e
percorre os poucos passos até a janela que dá para o quarto da garota.
Ela se sente com uns cem anos. No quarto do outro lado do vidro, a
garota está deitada imóvel na cama, com o cabelo comprido e escuro
emaranhado sobre o travesseiro e o cobertor apertado na mão. Há
sombras profundas sob seus olhos, e os ossos se destacam sob a pele,
mas Everett vê que ela era bonita. É bonita.
— E o menino? — pergunta a detetive, voltando-se outra vez para o
médico.
— O pediatra está com ele agora. Apesar das circunstâncias, ele está
em uma condição surpreendentemente boa.
Everett torna a olhar para a garota.
— Ela disse alguma coisa? Um nome? Há quanto tempo ela estava
lá? Qualquer coisa?
Ele balança a cabeça.
— Sinto muito.
— Quando vou conseguir falar com ela? Isso é muito importante.
— Eu sei. Mas o bem-estar de minha paciente tem que ser minha
prioridade. Pode demorar um pouco.
— Mas ela vai ficar bem?
Ele vai até a janela e olha para o rosto ansioso de Everett.
— Para ser honesto, estou mais preocupado com a saúde mental
dela. Depois de tudo pelo que ela passou, agora o sono é o melhor
remédio. Depois disso, bom, simplesmente vamos ter que esperar para
ver.
 
***
 
— Derek, fale comigo. Se você viu alguma coisa, alguma coisa que
possa nos ajudar…
Ele ergue os olhos. Ross está apertando o copo com tanta força que
o plástico racha de repente. A água despenca sobre suas mãos e em
sua calça.
— Está bem — diz ele por fim, se enxugando. — Foi há cerca de seis
meses. Em dezembro, eu acho. Uma das vizinhas disse que o viu na
rua só de chinelo, por isso dei uma olhada para ver se conseguia
encontrar seus sapatos. Ele tinha começado a perder coisas, deixava
em um lugar e se esquecia onde. Imaginei que provavelmente
estivessem embaixo da cama.
— E estavam?
Ele balança a cabeça.
— Não. Mas encontrei uma caixa. A maior parte do conteúdo eram
revistas.
Eu não preciso de uma insinuação.
— Pornografia?
Ele hesita, então assente.
— Coisa pesada. Bondage. S&M. Tortura. Ou, pelo menos, era o que
parecia. Não fiquei olhando muito de perto.
Ao contrário do que Harper deve ter feito. Não que Ross diga isso.
Há um silêncio. Não surpreende que ele estivesse cauteloso em me
contar.
— Onde você acha que ele conseguiu isso? — digo por fim.
Ele dá de ombros.
— Não na internet, isso eu sei. Mas provavelmente dá para conseguir
esse tipo de coisa em pequenos anúncios nas revistas masculinas. Na
época, ele ainda fazia compras de vez em quando.
— A caixa ainda está lá?
CG
LF
— Provavelmente. Eu apenas a empurrei de volta para o lugar onde a
encontrei. Se ele percebeu, nunca disse nada. Mas, mesmo aceitando
que ele tinha esse tipo de… de… gosto, há uma grande diferença entre
ver revistas pornográficas e sequestrar uma garota e trancá-la na droga
do porão.
Pessoalmente, não tenho tanta certeza. Eu também já vi o estrago da
demência e torno a me perguntar sobre os meses em que a doença
surgiu pela primeira vez e ninguém, nem mesmo Harper, sabia que ela
estava lá. Quando ele ainda tinha sua força de vontade, sua força física,
mas sua personalidade tinha começado a se encolher e endurecer. Ele
se tornou mesmo um homem completamente diferente ou apenas uma
versão mais fria e cruel do que era antes?
Eu me levanto e vou para o corredor, deixando Ross sozinho na sala.
Gis está perto da máquina de refrigerante e vem até mim.
— Descobriu alguma coisa? — pergunta.
— Não muito. Ross disse que encontrou uma pilha de revistas de
pornografia barra-pesada na casa há alguns meses, então fale com
Challow e se assegure de que eles verifiquem a casa inteira, não só o
porão e o térreo. É possível que haja outras coisas lá.
— Está bem.
— E vamos começar a verificar os antecedentes de Harper. Falar com
a universidade onde ele trabalhou; 1998 não é assim tanto tempo atrás,
ainda deve haver alguém que se lembre dele por lá.
 
***
 
Entrevista por telefone com Louise Foley, gerente de recursos humanos da Universidade de
Birmingham.
1º de maio de 2017, 13h47
Na ligação, detetive C. Gislingham
 
:Desculpe por incomodá-la em um feriado bancário, mas esperamos que a senhora possa
nos dar alguma informação sobre William Harper. Acho que ele lecionou em Birmingham
até o fim dos anos 1990.
:É,isso mesmo. Eu não estava aqui na época, mas sei que o dr. Harper fazia parte do
departamento de Ciências Sociais. O tema de sua especialização era teoria dos jogos.
CG
LF
CG
LF
CG
LF
CG
LF
CG
LF
CG
LF
CG
LF
CG
LF
CG
Aparentemente, ele escreveu um artigo bastante famoso sobre RPGs. Acredito que estava
bem à frente de seu tempo.
:Além de o que ele faria em um jogo de Senha, o que mais a senhora pode me dizer?
:Ele se aposentou em 1998. Isso é muito tempo atrás, policial.
:Eu sei, mas também não é pré-histórico, é? Quer dizer, vocês já tinham computadores na
época. Devem ter algum tipo de registro.
:É claro, mas há um limite do que eu posso lhe contar. Tenho que respeitar nossa política
interna de proteção de dados. O senhor, dentre todas as pessoas, sem dúvida entende
isso. O dr. Harper lhe deu seu consentimento para liberar suas informações pessoais?
:Não, mas, como tenho certeza de que a senhora sabe, na verdade não preciso do
consentimento dele se a informação solicitada estiver relacionada com a prisão ou
processo de um infrator. Lei de Proteção de Dados, seção 29(3). Se quiser conferir.
:O que ele fez? Ele deve ter feito alguma coisa. O senhor não teria esse trabalho por uma
multa de estacionamento, teria?
[pausa]
Espere um minuto. Não é aquele caso no noticiário, o da garota no porão, é? Aquele
homem deve ser mais ou menos da mesma idade…
:Infelizmente não tenho liberdade para discutir isso, srta. Foley. Talvez a senhora possa
simplesmente me enviar um e-mail com os arquivos relevantes. Isso pouparia o tempo de
todo mundo.
:Eu preciso da permissão do diretor de RH da universidade para fazer isso. Mas se tiver
perguntas específicas agora, posso tentar respondê-las.
:[pausa]
Está bem. Talvez a senhora possa começar me contando por que ele se aposentou tão
cedo.
:Como assim?
:Bom, se minha matemática rudimentar me serve de alguma coisa, ele tinha 57 anos em
1998. Qual a idade habitual de aposentadoria dos acadêmicos? Uns 75 ou setenta anos?
:[pausa]
Vendo o arquivo, parece que foi de comum acordo entre todas as partes que o dr. Harper
se aposentasse antecipadamente.
:Está bem. Então qual foi o verdadeiro motivo?
:Não sei o que o senhor está querendo dizer…
:Ah, srta. Foley, a senhora sabe tão bem quanto eu que isso é um discurso mentiroso de
RH para dizer “nós tivemos que nos livrar dele”.
:[pausa]
Infelizmente isso é tudo o que estou preparada para dizer. Vou falar com o diretor e obter
sua permissão para lhe enviar o arquivo. Mas o senhor precisa saber que nesse momento
ele está na China. Pode levar algum tempo até eu conseguir falar com ele.
:Então é melhor começar logo.
 
***
 
BBC Midlands Today
Segunda-feira, 1º de maio de 2017 — Atualizado pela última vez às 14h52
 
Garota e criança em porão em Oxford: polícia faz pronunciamento
 
A Polícia de Thames Valley emitiu um breve pronunciamento sobre a garota e um
menino pequeno encontrados em um porão na Frampton Road, em Oxford, mais cedo
esta manhã. Eles confirmaram que uma jovem foi levada para o hospital John Radcliffe
e que ela e a criança estão sob os cuidados de equipes médicas e assistência social. A
identidade da jovem não foi divulgada, e, embora seja dito que a criança é seu filho,
isso ainda não foi confirmado. Pessoas que testemunharam os acontecimentos na casa
afirmam que ela estava consciente quando os paramédicos a puseram na ambulância.
Vizinhos contaram à BBC que a casa em questão pertence ao sr. William Harper,
que vive no bairro há pelo menos vinte anos. O sr. Harper foi visto deixando a casa
esta manhã na companhia de policiais e parecia um tanto nervoso.
 
***
 
Nos andares superiores do número 33 da Frampton Road, todas as
cortinas estão fechadas. Poeira paira no ar, e teias de aranha deixam os
cantos indistintos. Alguma coisa tinha roído o carpete da escada, e Nina
Mukerjee, a perita forense, desvia cuidadosamente de pequenas fezes,
então para na porta do quarto principal. Não há lençol na cama, apenas
um colchão nu com uma grande mancha mofada no centro. Na parede
da direita há uma cristaleira vazia, e a penteadeira está cheia de
batons, perfumes, um pote de creme facial deixado aberto e seco como
cimento, e alguns lenços de papel espalhados ainda marcados com
uma boca vermelha esmaecida.
Um segundo policial se junta à mulher na porta.
— Minha nossa — diz ele. — Parece O navio fantasma.
— Ou a srta. Harvisham. Esse filme sempre me dá medo.
— Quando a segunda mulher morreu mesmo?
— Em 2010. Acidente de carro.
O homem olha ao redor, então vai até a mesa de cabeceira e passa
um dedo enluvado pela superfície coberta com uma camada grossa de
poeira.
— Aposto que ele não vem aqui desde então.
— A tristeza às vezes deixa as pessoas desse jeito. Elas não
conseguem jogar nada fora. Minha avó era assim. Levou anos para a
gente convencê-la a se livrar das coisas do meu avô. Mesmo tanto
tempo depois, ela disse que ainda parecia um sacrilégio.
O homem gesticula na direção de um porta-retrato virado para baixo
na mesa de cabeceira. Ele ergue a foto e olha para ela, então a vira na
direção da colega.
— Tem uma parecida lá embaixo. Atraente. Pessoalmente, não é meu
tipo, mas atraente.
Priscilla Harper está olhando diretamente para a câmera, com uma
das mãos no quadril e uma sobrancelha arqueada. Ela parece
confiante, dona de si mesma. Com gostos caros.
Nina vai até o armário e começa a retirar coisas aleatoriamente. Um
vestido vermelho e decotado, um casaco de cachemira com gola de
pele, uma blusa verde-clara com gola de babados.
— Isso é seda de verdade. Ela tinha bom gosto.
O homem se aproxima e dá uma olhada.
— Uma pena que as traças chegaram primeiro. Dava para vender
todo o lote no eBay.
Nina faz uma careta para ele.
— Valeu, Clive. — Ela então põe as roupas novamente no lugar. — O
Departamento de Investigação Criminal quer mesmo que embalemos
todas essas coisas? Vamos ficar aqui a semana inteira.
— Acho que Fawley estava interessado em pornografia. Então, por
enquanto, acho que basta verificarmos se não existe uma caixa cheia
de equipamentos de bondage embaixo da cama e tudo bem. Eu vou dar
uma olhada lá em cima. Mas, pelo que parece, o último andar está
praticamente vazio. Só um estrado de metal em um quarto e uma pilha
de exemplares velhos do Daily Telegraph.
Nina vai até a mesa de cabeceira e abre a gaveta, chacoalhando
ruidosamente frascos plásticos.
— Nossa, é um estoque e tanto — diz Clive enquanto ela abre um
saco de provas e começa a pegá-los. Todos os rótulos estão em nome
de Priscilla Harper; a maioria são comprimidos para dormir.
— Encontrou algum papel lá embaixo?
— Você quer dizer além da pornografia? Há uma mesa cheia de
cartas e contas velhas, embora duvide que alguma coisa vá ser de
grande serventia. Mas vamos encaixotar tudo só por garantia. O porão
está praticamente limpo, agora.
Nina estremece.
— Não consigo tirar da minha cabeça. Aquelas marcas de arranhão
no reboco. O desespero que ela devia estar sentindo para fazer isso.
Não consigo nem pensar.
— Acho que ela podia escutá-los.
Ela se vira para ele.
— O que você quer dizer com isso?
O rosto dele está com uma expressão séria.
— É só uma ideia. A casa ao lado era habitada pela mesma velhota
desde os anos 1980. Então de repente, algumas semanas atrás,
chegam os trabalhadores. Havia gente ali pela primeira vez em anos.
Era isso o que ela estava fazendo. Ela podia escutá-los.
 
***
 
15h15. Levando em conta as questões que estamos enfrentando para
interrogar Harper, resolvi não falar com ele outra vez até termos
conversado com a garota. E ela ainda está sedada. Ninguém está
esperando conseguir nada do garoto, e os peritos forenses ainda vão
precisar de algumas horas para apresentarem as descobertas
preliminares. Tudo isso significa que, neste momento, estou com o
superintendente na minha cola, uma assessora de imprensa em crise e
toda uma equipe com muita energia para gastar e nada para fazer.
Gislingham está tentando localizar qualquer um que tenha trabalhado
com Harper nos anos 1990, outra pessoa estáem contato com o
supermercado para ver se podemos falar com o pessoal da entrega, e
Baxter está checando a lista de pessoas desaparecidas à procura de
alguém que seja remotamente parecida com a garota. É um trabalho
que tem o nome dele escrito — ele não precisa cavar tão fundo para
encontrar seu geek interior —, mas, quando olho para ele uma hora
depois, há uma ruga fatigada de preocupação em sua testa.
— Sem sorte?
Ele ergue os olhos na minha direção.
— Na verdade, nenhuma. Nós não temos um nome, não sabemos de
onde ela veio, não sabemos há quanto tempo ela estava lá embaixo.
Não sabemos nem se deram queixa do desaparecimento. Eu podia
passar um mês nisso e não chegar a lugar nenhum. Nem o
reconhecimento facial consegue encontrar uma pessoa que não esteja
ali.
 
***
 
Enviado: Seg., 1/5/2017, 15h45
De: annieghargreaves.montreal@hotmail.com
Para: d.ross@socialservices.ox.gov.uk
Assunto: Bill
 
Obrigada pelo e-mail. Estou vendo o noticiário neste momento e há fotos da Frampton Road
— até na TV canadense. Eles estão comparando com aquele homem na Áustria que manteve a
filha no porão por muitos anos. Mas Bill, fazendo algo assim? Ele sempre foi um sujeito
encrenqueiro, mas não era violento. Eu não conheci Priscilla, mas, até onde sei, ele não teve
nenhum relacionamento com outra mulher desde então. Se teve, nunca me contou. E, está bem,
um psiquiatra poderia dizer que estou sendo ingênua e que pessoas como ele são muito boas
em ocultar essas coisas, mas com certeza haveria algum tipo de sinal, não? Desculpe,
provavelmente não estou fazendo muito sentido. É cedo aqui, e ainda não consigo acreditar. Eu
provavelmente pareço aquelas pessoas que a imprensa entrevista em momentos como esse
que ficam ali paradas dizendo coisas inúteis como “ele parecia um sujeito tão tranquilo”. Diga se
houver mais alguma coisa que eu possa fazer.
 
***
 
mailto:annieghargreaves.montreal%40hotmail.com?subject=
mailto:d.ross%40socialservices.ox.gov.uk?subject=
Somer está na esquina, em Chinnor Place. De onde está parada,
pode ver a equipe de perícia forense retirando caixas do número 33 da
Frampton Road e botando-as na van. Há duas vans de emissoras de TV
estacionadas do outro lado da rua. Ela vai até a porta novamente e toca
a campainha pela terceira vez. Parece que essa casa está vazia,
embora pelas bicicletas, pela quantidade de latões de lixo e por seu
estado geral provavelmente seja uma república de estudantes. Uma das
poucas que restavam por ali. Trinta anos atrás, essas casas eram
dinossauros. Ninguém as queria: grandes demais, de manutenção difícil
demais. A maioria foi dividida em apartamentos ou comprada barato por
cursos preparatórios ou departamentos de universidades. Não é mais
assim. Agora estão aos poucos tornando a ser as casas de família que
os construtores vitorianos as ergueram para ser, completas, com
alojamentos adequados para criados e tudo. Mark Sexton é apenas o
último exemplo de uma tendência muito maior.
Ela toca uma última vez e está prestes a ir embora quando a porta
finalmente se abre. Ele aparenta cerca de vinte anos, tem o cabelo ruivo
e está esfregando a nuca e bocejando. Parece que acabou de sair da
cama. Há uma fileira de garrafas vazias no corredor, e o cheiro de
cerveja choca empesteia o lugar. Ele dá uma olhada para Somer e toma
um susto que quase parece ensaiado.
— Merda.
Somer sorri.
— Policial Erica Somer, Polícia de Thames Valley.
O garoto engole em seco.
— Aqueles velhos estão reclamando do barulho outra vez? Sério, não
estava tão alto assim…
— Não é isso, senhor…
— Danny. Danny Abrahams.
— Está bem, Danny. É sobre a casa na outra rua. O número 33. Você
conhece o homem que mora lá, o sr. Harper?
Ele torna a coçar o pescoço. Sua pele está manchada e vermelha.
— É aquele maluco?
— Você o conhece?
Ele balança a cabeça.
— Ele só circula por aí falando sozinho. Deu umas cervejas para a
gente uma vez. Parece um cara legal.
Somer pega o celular e mostra a ele uma foto da garota.
— E essa jovem, você alguma vez a viu pelo bairro?
O garoto olha para a tela.
— Não tenho ideia.
— Algum de seus colegas está em casa?
— Não tenho certeza. Não vi ninguém. Provavelmente estão na
biblioteca. As provas finais estão chegando. Sabe como é.
Ela guarda o celular e entrega um cartão a ele.
— Se algum deles tiver qualquer informação sobre o sr. Harper, por
favor, peça que ligue para esse número.
— O que ele fez? Começou a se exibir para essas fofoqueiras?
— O que faz você dizer isso?
O garoto fica completamente vermelho.
— Nada. Eu só pensei…
— Por favor, apenas transmita a mensagem.
Ela lhe dá as costas e o deixa parado na escada, se perguntando do
que aquilo tudo se tratava. Um estado de ignorância que dura
aproximadamente um minuto e meio, depois que ele fecha a porta e
pega o celular.
— Merda — diz ele enquanto desce pelo feed de notícias. — Merda,
merda.
 
***
 
UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO FORENSE
Representação da cena do crime
 
Endereço: 33 Frampton Road, OX2
Referência do caso: KE2308/17J NÃO OBEDECE A UMA ESCALA
Peritos: Alan Challow, Nina Mukerjee, Clive Keating
Data: 1º de maio de 2017 Hora: 10h
 
 
Assinatura: Perito 1808 JJ Gethins Data: 1º de maio de 2017
Página 1 de 2 RESTRITO (QUANDO
PREENCHIDO) FIU/SCR/03
UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO FORENSE
Representação da cena do crime
 
Endereço: 33 Frampton Road, OX2
Referência do caso: KE2308/17J NÃO OBEDECE A UMA ESCALA
Peritos: Alan Challow, Nina Mukerjee, Clive Keating
Data: 1º de maio de 2017 Hora: 10h
 
 
Assinatura: Perito 1808 JJ Gethins Data: 1º de maio de 2017
Página 2 de 2 RESTRITO (QUANDO
PREENCHIDO) FIU/SCR/03
REGISTRO DAS PROVAS
CK/1 a
3
Variedade de embalagens vazias recuperadas para realce químico de impressões digitais em sacos plásticos perto da escada no
porão, Quarto A.
CK/4 a
5
Impressões digitais parciais obtidas na fita que fechava uma caixa encontrada ao lado da escada no porão, Quarto A.
CK/6 Impressões digitais obtidas na tampa brilhante de uma caixa encontrada no porão, Quarto A.
CK/7 a
10
Impressões digitais obtidas em múltiplas superfícies externas de itens recuperados em uma velha banheira de metal no porão,
Quarto A.
CK/11 Impressão digital parcial obtida no cadeado na Porta B do porão (exterior, no lado do Quarto A).
CK/12 Impressões digitais parciais obtidas em um jogo de chaves no mecanismo de tranca da Porta B do porão (exterior, lado do
Quarto A).
NM/1 a
5
Variedade de embalagens, caixas de alimentos e recipientes vazios recuperados para realce químico de impressões digitais em
um saco de lixo no porão, Quarto B.
NM/6 a
8
Impressões digitais obtidas em recipientes plásticos vazios recuperados em um saco de lixo no porão, Quarto B.
NM/9 Fronha escura com mancha branca (provável teste positivo para saliva) recuperada em colchão de solteiro no porão, Quarto B.
NM/10 Lençol cinza com várias manchas brancas (provável teste positivo para sêmen) recuperado em colchão de solteiro no porão,
Quarto B.
NM/11 Edredom branco com mancha vermelha (provável teste positivo para sangue) recuperado em colchão de solteiro no porão,
Quarto B.
NM/12 a
13
Roupa íntima feminina com mancha branca (provável teste positivo para sêmen) recuperada em colchão de solteiro no porão,
Quarto B.
NM/14 Peça de roupa de cama com pequena mancha vermelha (provável teste positivo para sangue) recuperada na cama da criança no
porão, Quarto B.
NM/15 Amostras vermelhas úmidas e secas (provável teste positivo para sangue) obtidas em parede no porão, Quarto B.
NM/16 Caixa de itens variados incluindo alguns livros velhos no porão, Quarto B.
NM/17 Lanterna com pilhas descarregadas no porão, Quarto B.
 
***
 
Estou na cantina comprando um sanduíche quando o detetive Baxter me aborda.
— Acho que encontrei uma pista — diz ele, um poucosem fôlego. Sua esposa
sempre lhe diz para usar as escadas; é o único exercício que ele faz.
— Sobre a garota?
— Não, sobre Harper. Desisti da Delegacia de Pessoas Desaparecidas, mas,
enquanto estava fazendo isso, achei que valia a pena passar o nome de Harper
pelo sistema.
— E?
— Nenhuma prisão. Nem mesmo uma multa por excesso de velocidade, e, se
ele pegava prostitutas na rua, não o flagramos fazendo isso. Mas encontrei dois
chamados atendidos na casa da Frampton Road. Um em 2002 e outro em 2004.
Não foi apresentada nenhuma acusação, e as anotações são um pouco
incompletas, mas com certeza era uma acusação de violência doméstica.
— Qual foi o policial que cuidou do caso?
— Jim Nicholls, as duas vezes.
— Veja se consegue localizá-lo. Pelo que lembro, ele se aposentou e foi para
Devon. Mas o RH deve ter o endereço. Peça para ele me ligar.
 
***
 
Merda, viu as notícias? Aquele cara que mora na outra rua é um tipo de psicopata ou sei l
garota no porão. A polícia acabou de bater aqui. Será que a gente não devia contar pra eles?
 
Porra, de jeito nenhum. É a última coisa q precisamos. Não diz nada, tá? Vc reconheceu a garota
 
N, nunca vi ela antes
 
Então só fica quieto, tá bem
 
***
 
— Bill Harper? Nossa, esse saiu direto do túnel do tempo.
Russel Todd é o quarto ex-colega de Harper para quem Gislingham ligou, e os
resultados até então foram morto, morto e sem memória, nessa ordem. Mas Todd
não só está vivo e bem, mas também gosta de falar.
— Então o senhor se lembra dele? — pergunta Gislingham, tentando não soar
muito esperançoso.
— Ah, lembro. Nós fomos colegas por algum tempo, mas isso já faz alguns anos.
Por que pergunta?
— O que o senhor pode me contar sobre ele?
Há uma expiração longa do outro lado da linha.
— Bom… — começa Todd. — Ele não era exatamente um professor de primeira.
Estou dizendo academicamente. Não que ele concordasse com isso, claro. Na
verdade, ele provavelmente considerava que acabar em Brum estava sem dúvida
abaixo de sua dignidade, mas sua esposa vinha de algum lugar perto de lá, então
isso pode ter decidido a questão. Comprar aquela casa em Oxford sempre me
pareceu uma negação clássica, mas ele era bastante sólido. Sabia o que dizia. Na
verdade, ele escreveu um artigo que teve certa repercussão…
— Essa coisa dos RPGs?
— Ah, você sabe disso, não é? Cá entre nós, foi um pouco um caso de “lugar
certo na hora certa”. Quer dizer, o pensamento não era lá muito original, mas Bill
teve a ideia de aplicá-lo a jogos da internet. Ou seja lá como se chamam essas
coisas. Isso foi em 1997, no início do boom da internet. De repente, ele passou a
ser importante.
O tom de voz de Todd ficava cada vez mais irascível, e Gislingham detecta um
cheiro claro de inveja entre colegas de trabalho. Esses acadêmicos, sempre
esfaqueando uns aos outros pelas costas. Ele se pergunta quantas pessoas teriam
considerado Todd “de primeira”.
— Enfim… — prossegue ele. — Depois de muita labuta e suor nos contrafortes
poeirentos do mundo acadêmico por quase trinta anos, o velho Bill de repente se
vê cortejado por instituições como Stanford e o MIT. Havia até um boato sobre
Harvard.
— Então o que aconteceu?
Todd ri de um jeito não muito agradável. Ele está começando a irritar Gislingham.
— Foi quase shakespeariano. O herói derrubado no exato momento de seu
triunfo. A casa tinha sido posta à venda, as malas estavam praticamente prontas e,
de repente, bum. Tudo começou a explodir ao redor dele. Ou talvez ao redor de
uma parte específica de sua anatomia. Nas circunstâncias, seria uma metáfora
mais adequada.
— Posso imaginar — diz Gislingham.
Todd está nitidamente se divertindo.
— É, infelizmente Bill foi flagrado com a boca na botija. A história toda foi
abafada, é claro, mas os americanos desapareceram. Um homem casado se
envolvendo com as alunas pega muito mal por lá. Os ianques são muito pudicos
com essas coisas.
— O senhor manteve contato com ele depois?
— Na verdade, não. Soube que a esposa morreu de câncer de mama, acho. Não
sei se ele voltou a trabalhar. Ela tinha algum dinheiro, a esposa, então ele pode
não ter precisado fazer isso.
— E essa foi a única vez? Ou ele tinha a reputação de assediar as alunas?
— Ah, não. Essa foi a questão. Foi completamente fora do personagem. A ironia
é que, se as autoridades quisessem fazer alguém de exemplo, havia vários casos
muito mais flagrantes que eles podiam ter escolhido, dos dois lados da casa. Não
era como agora, com processos judiciais assim que você tira a calça.
Os bons e velhos tempos em que se podia assediar à vontade; Gislingham
articula com os lábios “punheteiro” sem emitir som ao telefone.
— Na verdade — prossegue Todd —, Bill era um cara do tipo certinho, sabe?
Isso só mostra que nunca temos como conhecer de verdade uma pessoa.
— Não — diz Gislingham entre dentes cerrados. — Não temos mesmo.
 
***
 
 
 
Revista Americana de Ciências Sociais e Cognitivas
Vol. 12, n. 3, outono de 1988
 
Masmorras e donzelas
RPGs na internet
 
William M. Harper, phD,
Universidade de Birmingham
Resumo
Este artigo aborda o potencial da participação múltipla em RPGs na rede eletrônica
de telecomunicações conhecida como internet. Apesar de pouquíssimos
entusiastas terem acesso a essa tecnologia, ela tem a capacidade de permitir que
vários jogadores interajam em tempo real através de terminais de computadores
em outras geografias e fusos horários. O artigo explora as implicações cognitivas e
psicossociais desse “jogar remoto”, incluindo questões como o impacto da
“persona” anônima no computador sobre a confiança e o efeito em seus processos
de tomada de decisões. Também examina as possíveis consequências
neurológicas de exposição prolongada a um mundo “virtual” violento, incluindo a
erosão da empatia, um aumento na agressão interpessoal e a ilusão de
onipotência pessoal.
 
***
 
Passa pouco das quatro da tarde, e Everett está de pé com uma das
enfermeiras, olhando através de uma divisória de vidro para o menino. As
persianas estão abaixadas, e ele está sentado sozinho em um cercadinho no meio
do quarto, olhando fixamente para uma pilha de brinquedos. Blocos, um avião, um
trem verde e vermelho. De vez em quando, ele toca um deles. Seu cabelo escuro
cai em cachos, comprido como o de uma menina. Há uma mulher sentada no
quarto com ele, mas ela escolheu a cadeira no canto mais distante.
— Ele ainda não deixa ninguém se aproximar?
A mulher balança a cabeça. Há uma plaqueta em seu uniforme que diz
���������� ����� ��������.
— Pobrezinho. O médico o examinou, e fizemos alguns testes, mas estamos nos
restringindo ao mínimo, por enquanto. Não queremos afligi-lo mais que o
absolutamente necessário. Especialmente depois de sua mãe reagir do jeito que
reagiu.
Ela vê a pergunta nos olhos de Everett.
— Nós o levamos até ela depois que demos um banho nele, mas, assim que ela
o viu, começou a gritar. E estou falando gritar de verdade. Então o menino ficou
completamente rígido e começou a gritar também. No fim, eles precisaram sedá-la.
Foi por isso que o trouxemos outra vez para cá. Esse tipo de estresse não vai fazer
bem para nenhum dos dois.
— Ele disse alguma coisa?
— Não. Não temos certeza nem se ele sabe falar. O ambiente em que ele
estava, o que deve ter testemunhado, não seria surpresa se seu desenvolvimento
tivesse sido afetado.
Everett se volta outra vez para a janela. O menino ergue os olhos e, por alguns
breves segundos, os dois olham um para o outro. Ele tem olhos escuros,
bochechas levemente coradas. Então lhe dá as costas e se encolhe encostado à
lateral do cercado, tampando o rosto com o braço.
— Ele tem feito muito isso — comenta a enfermeira. — Ele pode estar só se
acostumando à luz, mas seus olhos talvez tenham sido afetados por ficar no
escuro por tanto tempo. É melhor prevenir que remediar. Foi por isso que baixamos
as persianas.
Everett observa por um momento.
— Dá vontade de abraçá-lo e fazer com que tudo desapareça.
Jenny Kingsley dá um suspiro.
— Eu sei. É de partir o coração.
 
***
 
Temos a primeira reunião

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