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SINOPSE No Império Cyriliano, as Afinidades são insultadas. Seus variados dons para controlar o mundo ao seu redor são de natureza... perigosa. E Anastacya Mikhailov, a princesa da coroa, tem um segredo aterrador. Sua Afinidade mortal com o sangue é sua maldição e a razão pela qual ela viveu sua vida escondida atrás das paredes do palácio. Quando o pai de Ana, o Imperador, é assassinado, seu mundo é despedaçado. Emoldurada como sua assassina, Ana deve fugir do palácio para salvar sua vida. E, para limpar seu nome, ela deve encontrar o assassino de seu pai por conta própria. Mas a Cyrilia além dos muros do palácio é muito diferente daquela que ela pensava conhecer. A corrupção governa a terra, e uma conspiração maior está em ação – uma que ameaça o próprio equilíbrio de seu mundo. E há apenas uma pessoa corrupta o suficiente para ajudar Ana a chegar ao seu núcleo: Ramson Quicktongue. Um astuto senhor do crime do submundo Cyriliano, Ramson tem planos sinistros – embora ele possa ter encontrado seu par em Ana. Porque, nesta história, a princesa pode ser a jogadora mais perigosa de todas. GLOSSÁRIO Afinidade: pessoa com uma habilidade especial ou uma conexão com elementos físicos ou metafísicos; varia de um senso elevado do elemento à capacidade de manipular ou gerar o elemento. Pedra-Negra: pedra extraída do Triângulo Krazyast; o único elemento imune à manipulação de Afinidade e conhecido por diminuir ou bloquear Afinidades. bratika: irmão. chokolad: doce à base de cacau. contessya: condessa. copperstone: moeda de menor valor. dacha: casa. dama: senhora. deimhov: demônio. Deys: Divindade. Deys'voshk: veneno que afeta Afinidades e é usado para subjugá-los; também conhecido como Água das Divindades. Fyrva'snezh: Primeiras Neves Folha-de-ouro: moeda de maior valor guzhkyn gerbil: roedor de estimação da região de Guzhkyn no sul de Cyrilia Imperator: Imperador Imperatorya: Imperatriz Imperya: Império kapitan: capitão kechyan: manto tradicional Cyriliano tipicamente feito de seda estampada kologne: perfume aromático kolst: glorioso kommertsya: comércio konsultant: consultor mamika: “mãezinha”; termo carinhoso para “tia” mesyr: senhor pelmeny: bolinhos com recheio de carne picada, cebola e ervas pirozhky: torta frita com recheio doce ou salgado pryntsessa: princesa. ptychy'moloko: bolo de leite de pássaro. Manto Vermelho: rebeldes; uma brincadeira com o coloquialismo “Manto Branco”. silverleaf: moeda de valor médio sistrika: irmã Vinho do Sol: vinho quente feito no verão com mel e especiarias valkryf: raça de cavalo; um valioso corcel com pés fendidos e uma habilidade incomparável para escalar montanhas e clima de temperaturas frias. Varyshki: couro de touro caro Manto Branco: coloquialismo para “Patrulha Imperial” Vyntr’makt: mercado de inverno; mercados ao ar livre geralmente estabelecidos nas praças das cidades antes da chegada do inverno Yaeger: Yaeger raro cuja conexão é com a Afinidade de outra pessoa; eles podem sentir Afinitas e controlar sua Afinidade 1 A prisão tinha uma forte semelhança com as masmorras da infância de Anastacya: escura, úmida e feita de pedra inflexível que vazava sujeira e miséria. Havia sangue aqui também; ela podia sentir tudo, puxando-a dos degraus de pedra irregulares para as paredes enegrecidas por tochas, permanecendo nos limites de sua consciência como uma sombra sempre presente. Levaria tão pouco, um movimento de sua vontade, para ela controlar tudo. Com o pensamento, Ana enrolou os dedos enluvados mais apertados em torno das peles gastas de seu capuz e voltou sua atenção para o guarda distraído vários passos à frente. Suas botas de couro de touro variashki estalavam em passos suaves e nítidos, e se prestasse atenção o suficiente, ela poderia ouvir o leve tilintar das folhas de ouro que usou para suborná-lo em seus bolsos. Ela não era uma prisioneira desta vez; era sua cliente, e aquele doce chocalho de moedas era um lembrete constante de que ele estava, por enquanto, do lado dela. Ainda assim, a luz da tocha lançava sua sombra bruxuleante nas paredes ao redor deles; era impossível não ver este lugar como o tecido de seus pesadelos e ouvir os sussurros que vinham consigo. Monstra. Assassina. Papai teria dito a ela que este era um lugar cheio de demônios, onde os homens mais malignos eram mantidos. Mesmo agora, quase um ano depois de sua morte, Ana ficou com a boca seca ao imaginar o que ele diria se a visse aqui. Ana afastou esses pensamentos e manteve o olhar fixo à frente. Monstra e assassina ela poderia ser, mas isso não tinha nada a ver com sua tarefa em mãos. Ela estava aqui para limpar seu nome de traição. E tudo dependia de encontrar um prisioneiro. — Estou te dizendo, ele não vai te dar nada. — A voz áspera do guarda a tirou dos sussurros. — Ouvi dizer que ele estava em uma missão para matar alguém de alto perfil quando foi pego. Ele estava falando sobre o prisioneiro. Seu prisioneiro. Ana se endireitou, agarrando-se à mentira que havia ensaiado várias vezes. — Ele vai me dizer onde escondeu meu dinheiro. O guarda lhe lançou um olhar solidário por cima do ombro. — É melhor você passar seu tempo em algum lugar mais agradável e ensolarado, meya dama. Mais de uma dúzia de nobres subornaram seu caminho para Quedas Fantasma para vê-lo, e ele não lhes deu nada ainda. Ele fez alguns inimigos poderosos, esse Quicktongue. Um gemido longo e prolongado perfurou o final de sua frase, um grito tão torturado que os cabelos da nuca de Ana se arrepiaram. A mão do guarda voou até o punho de sua espada. A luz da tocha cortou seu rosto, metade em laranja bruxuleante, metade em sombra. — As celas estão ficando cheias desses Afinitas. Os passos de Ana quase vacilaram; sua respiração prendeu bruscamente, e ela a soltou novamente, lentamente, forçando-se a manter o ritmo. Sua inquietação deve ter transparecido em seu rosto, pois o guarda disse rapidamente: — Não se preocupe, meya dama. Estamos armados até os dentes com Deys'voshk, e os Afinita são mantidos trancados em celas especiais de pedra- negra. Não vamos chegar perto deles. Esses deimhovs estão trancados em cofres. Deimhov. Demônio. Uma sensação doentia se agitou na boca do estômago, e ela enfiou os dedos enluvados na palma da mão enquanto apertava o capuz sobre a cabeça. Afinitas eram, geralmente, falados em sussurros abafados e olhares temerosos, acompanhados por contos de um punhado de humanos que tinham Afinidades com certos elementos. Monstros que poderiam fazer grandes coisas com seus poderes. Empunhar fogo. Lançar relâmpagos. Cavalgar o vento. Moldar a carne. E depois havia alguns, diziam os rumores, cujos poderes se estendiam para além do físico. Poderes que nenhum ser mortal deveria ter. Poderes que pertenciam às Divindades ou aos demônios. O guarda estava sorrindo para ela, talvez para ser amigável, talvez imaginando o que uma garota como ela, vestida com peles e luvas de veludo – usadas, embora claramente uma vez luxuosa – estava fazendo nesta prisão. Ele não estaria sorrindo para ela se soubesse o que ela era. Quem ela era. Seu mundo afiou em foco severo ao redor dela, e pela primeira vez desde que entrou na prisão, ela estudou o guarda. A insígnia Imperial Ciriliana, o rosto de um tigre branco rugindo, esculpida orgulhosamente em seu peitoral reforçado com pedra-negra. Espada em seu quadril, afiada de modo que as bordas cortassem o ar, feita do mesmo material de sua armadura – uma liga meio metálica, meio de pedra-negra, impermeável à manipulação de Afinidade. E, finalmente, seu olhar pousou no frasco de líquido tingido de verde que pendia da fivela do cinto, sua ponta curvada como a presa de uma cobra. Deys'voshk, ou Água das Divindades,o único veneno conhecido por subjugar uma Afinidade. Ela havia pisado, mais uma vez, no tecido de seus pesadelos. Masmorras esculpidas em pedra-negra fria e mais escura que a noite, e o sorriso branco como osso de seu zelador enquanto ele forçava Deys'voshk tingido de especiarias pela garganta dela para purgar a monstruosidade com a qual ela nasceu – uma monstruosidade, mesmo em termos dos Afinitas. Monstra. Sob as luvas, as palmas das mãos estavam escorregadias de suor. — Temos uma boa seleção de contratos de trabalho à venda, meya dama. — A voz do guarda parecia muito distante. — Com a quantidade de dinheiro que você ofereceu para ver Quicktongue, seria melhor assinar um ou dois Afinitas. Eles não estão aqui por nenhum crime sério, se é essa sua preocupação. Apenas estrangeiros sem documentos. Fazem mão de obra barata. Seu coração gaguejou. Ela tinha ouvido falar dessa corrupção. Afinidades estrangeiras atraíram Cyrilia com promessas de trabalho, apenas para se verem à mercê dos traficantes quando chegassem. Ela até ouviu sussurros de guardas e soldados em todo o Império caindo nos bolsos dos corretores de Afinidade, folhas-de-ouro fluindo em seus bolsos como água. Ana simplesmente nunca esperava encontrar um. Ela tentou manter a voz firme ao responder: — Não, obrigada. Ela tinha que sair desta prisão o mais rápido possível. Era tudo o que ela podia fazer para continuar plantando um pé à frente do outro, para manter as costas retas e o queixo erguido como havia sido ensinada. Como sempre, na névoa cega de seu medo, ela voltou seus pensamentos para seu irmão – Luka seria corajoso; ele faria isso por ela. E ela tinha que fazer isso por ele. As masmorras, o guarda, os sussurros e as memórias que eles trouxeram de volta – ela suportaria tudo, e suportaria cem vezes, se isso significasse que poderia ver Luka novamente. Seu coração doeu ao pensar nele, mas sua dor era um buraco negro sem fim; não seria bom afundar nele agora. Não quando ela estava tão perto de encontrar o único homem que poderia ajudá-la a limpar seu nome. — Ramson Quicktongue — latiu o guarda, parando do lado de fora de uma cela —, alguém aqui para cobrar. — Um barulho de chaves; a porta da cela se abriu com um rangido relutante. O guarda virou-se para ela, erguendo a tocha, e ela viu os olhos dele passarem novamente pelo capuz. — Ele está lá dentro. Eu estarei aqui... me dê um grito quando estiver pronta para ser solta de novo. Respirando fundo para reunir coragem, Ana jogou os ombros para trás e entrou na cela. O cheiro rançoso de vômito a atingiu, junto com o fedor de excremento humano e suor. No canto mais distante da cela, uma figura caiu contra a parede coberta de sujeira. Sua camisa e calções estavam rasgados e ensanguentados, seus pulsos esfolados pelas algemas que o prendiam à parede. Tudo o que ela podia ver era cabelo castanho emaranhado até que ele levantou a cabeça, revelando uma barba cobrindo metade de seu rosto, imunda com pedaços de comida e sujeira. Este era o mentor criminoso cujo nome ela forçou da boca de quase uma dúzia de condenados e bandidos? O homem em quem ela depositou todas as suas esperanças nas últimas onze luas? Ela congelou, no entanto, quando os olhos dele focaram nela com intenção afiada. Ele era jovem, muito mais jovem do que esperava para um renomado senhor do crime do Império. Surpresa vibrou em seu estômago. — Quicktongue — ela disse, testando sua voz, e então mais alto —, Ramson Quicktongue. Esse é o seu nome verdadeiro? Um canto da boca do prisioneiro se curvou em um sorriso. — Depende de como você define “verdadeiro”. O que é verdadeiro e o que não é tende a ser distorcido em lugares como esses. — Sua voz era suave, e ele tinha um leve sotaque Cyriliano de alta classe. — Qual é o seu nome, querida? A pergunta a pegou desprevenida. Fazia quase um ano desde que ela trocou gentilezas com alguém além de May. Anastacya Mikhailov, queria dizer. Meu nome é Anastacya Mikhailov. Exceto que não era. Anastacya Mikhailov era o nome da princesa herdeira de Cyrilia, afogada há onze luas em sua tentativa de escapar da execução por assassinato e traição contra a coroa Ciriliana. Anastacya Mikhailov era um fantasma e um monstro que não existia e não deveria existir. Ana fechou as mãos com força sobre o fecho do capuz. — Meu nome não é da sua conta. Quão rápido você pode encontrar alguém dentro do Império? O prisioneiro riu. — Quanto você pode me pagar? — Responda à pergunta. Ele inclinou a cabeça, sua boca em uma curva zombeteira. — Depende de quem você está procurando. Várias semanas, talvez. Vou rastrear minha rede de espiões perversos e bandidos perversos até sua preciosa pessoa de preocupação. — Ele fez uma pausa e juntou as mãos, suas correntes tilintando ruidosamente com o movimento. — Hipoteticamente, é claro. Há limites até para o eu que posso fazer dentro de uma cela de prisão. Já parecia pela conversa que ela estava andando na corda bamba, e uma única palavra mal colocada poderia fazê-la mergulhar. Luka tinha repassado o básico da negociação com ela; a memória se acendeu como uma vela dentro da escuridão da cela. — Eu não tenho várias semanas — disse Ana —, e não preciso que você faça nada. Eu só preciso de um nome e um local. — Você conduz um negócio difícil, meu amor. — Quicktongue sorriu, e Ana estreitou os olhos. Pela maneira desprezível que falou e o brilho de alegria em seus olhos, ficou claro que ele achava diversão em seu desespero, embora não tivesse ideia de quem ela era e por que estava aqui. — Felizmente, eu não. Vamos fazer um acordo, querida. Liberte-me dessas algemas, e sou seu para comandar. Encontrarei seu belo príncipe ou pior inimigo em duas semanas, seja nos confins do deserto de Aramabi ou nos céus do Império Kemeiran. Seu sotaque deixou os nervos de Ana no limite. Ela podia adivinhar como esses criminosos coniventes trabalhavam. Dê a eles o que queriam e eles te apunhalariam pelas costas mais rápido do que você poderia piscar. Ela não cairia em sua armadilha. Ana enfiou a mão nas dobras de sua capa gasta, tirando um pedaço de pergaminho. Era uma cópia de um dos esboços que fizera nos primeiros dias após a morte de papai, quando os pesadelos a acordavam no meio da noite e aquele rosto a assombrava a cada segundo de seus dias. Em um movimento rápido, ela desdobrou o pergaminho. Mesmo na penumbra da luz bruxuleante da tocha do guarda do lado de fora, ela podia distinguir os contornos de seu esboço: aquela cabeça calva e aqueles olhos melancólicos e grandes demais que faziam o assunto parecer quase infantil. — Estou procurando um homem. Um alquimista Cyriliano. Ele praticou medicina no Palácio Salskoff há algum tempo. — Ela fez uma pausa, e ousou uma aposta. — Diga-me o nome dele e onde encontrá-lo, e eu te libertarei. A atenção de Quicktongue foi atraída para a imagem no segundo em que ela a mostrou, como um lobo faminto para caçar. Por um momento, seu rosto ficou imóvel, ilegível. E então seus olhos se arregalaram. — Ele — ele sussurrou, e a palavra floresceu em esperança em seu coração, como o calor do sol nascendo em uma longa, longa noite. Finalmente. Finalmente. Onze luas de solidão, de esconderijos, de noites escuras nas frias florestas boreais de Cyrilia e dias solitários vasculhando cidade após cidade – onze luas, e ela finalmente, finalmente encontrou alguém que conhecia o homem que assassinou seu pai. Ramson Quicktongue, os bartenders, os rastreadores de pub e os caçadores de recompensas haviam sussurrado para ela quando cada um deles voltou de mãos vazias de sua busca por um alquimista fantasma. O mais poderoso senhor do crime do submundo Cyriliano, a mais vasta rede. Ele poderia rastrear o guzhkyn gerbil de uma nobre do outro lado do Império em uma semana. Talvezeles estivessem certos. Era tudo o que Ana podia fazer para manter as mãos firmes; ela estava tão concentrada na reação dele que quase se esqueceu de respirar. Os olhos de Quicktongue permaneceram fixos no retrato, em transe, enquanto o pegava. — Deixe-me ver. Seu coração batia descontroladamente enquanto se apressava, tropeçando um pouco em sua pressa. Ela estendeu o esboço e, por um longo momento, Quicktongue se inclinou para frente, seu polegar roçando um canto do desenho dela. E então ele pulou para ela. Sua mão se estendeu ao redor do pulso dela em um de uma mão de ferro, a outra batendo a mão sobre sua boca antes que ela tivesse a chance de gritar. Ele lhe deu um forte puxão para frente, girando-a e segurando-a perto de si. Ana fez um som abafado em sua garganta quando o fedor de seu cabelo sujo a atingiu. — Isso não precisa acabar mal. — Seu tom era baixo quando ele falou, sua indiferença anterior substituída por um senso de urgência. — As chaves estão penduradas do lado de fora, perto da porta. Ajude-me a sair, e eu lhe darei qualquer informação sobre quem você quiser. Ela libertou seu rosto livre de sua mão imunda. — Solte-me — ela rosnou, lutando contra seu aperto, mas seu aperto só aumentou. De perto, sob a luz das tochas, o brilho duro de seus olhos castanhos, de repente, assumiu um olhar selvagem, quase enlouquecido. Ele iria machucá-la. O medo aumentou nela, e de anos de treinamento, um único instinto cortou sua névoa de pânico. Ela poderia machucá-lo também. Sua Afinidade se agitou, atraída pelo pulso quente de seu sangue, correndo por ela e enchendo-a com uma sensação de poder. À vontade dela, cada gota de sangue em seu corpo poderia ser dela para comandar. Não, pensou Ana. Sua Afinidade deveria ser usada apenas como último recurso absoluto. Como acontece com qualquer Afinidade, seu poder vinha com sinais. O mais leve movimento de seu poder transformaria suas írises em carmesim e escureceria as veias em seus antebraços – uma indicação clara do que ela era, para aqueles que sabiam como procurá-la. Ela pensou no guarda do lado de fora, na curva de seu frasco de Deys'voshk, no brilho perverso de sua espada de pedra-negra. Ela estava tão focada em reprimir sua Afinidade que não viu isso chegando. A mão de Quicktongue disparou e tirou o capuz de sua cabeça. Ana cambaleou para trás, mas o estrago estava feito. Quicktongue olhou para os olhos dela, a antecipação em seu rosto dando lugar ao triunfo. Ele tinha visto o carmesim de suas írises; ele sabia que tinha que procurá-lo - pelo testemunho de sua Afinidade. Um sorriso torceu sua boca mesmo quando ele a soltou e gritou: — Afinita... socorro! Antes que pudesse perceber completamente que ela havia caído em sua armadilha, passos afiados soaram atrás dela. Ana girou. O guarda irrompeu na cela, sua espada de pedra-negra levantada, o tom verde de Deys'voshk que ele derramou sobre a lâmina refletindo a luz da tocha. Ela se esquivou. Não rápido o suficiente. Ela sentiu a mordida afiada da lâmina em seu antebraço quando tropeçou para o outro lado da cela, sua respiração irregular. A espada cortou sua luva, o tecido se abriu para revelar um tênue fio de sangue. O mundo se estreitou, por um momento, naquelas gotículas de sangue, a curva lenta de seu caminho pelo pulso dela, o brilho das contas quando pegaram a luz das tochas, brilhando como rubis. Sangue. Ela sentiu sua Afinidade despertando para o chamado de seu elemento. Ana arrancou a luva, assobiando com a picada do ar livre em sua ferida. Começou... as veias que subiam por seu braço escureceram para um roxo machucado, saindo de sua carne em estrias irregulares. Ela sabia como isso parecia; ela se olhou no espelho por horas a fio, os olhos inchados de chorar e os braços sangrando por ter tentado coçar suas veias. Um sussurro a encontrou no escuro. Deimhov. Ana olhou para cima e encontrou o olhar do guarda assim que ele ergueu sua tocha. Horror torceu suas feições quando ele recuou para o canto de Quicktongue e apontou sua espada para ela. Ana passou um dedo pela ferida. Saiu molhada, com uma mancha de líquido esverdeado que se misturou com seu sangue. Deys'voshk. Seu coração disparou, e memórias passaram por sua mente: as masmorras, Sadov forçando o líquido amargo em sua garganta, a fraqueza e tontura que se seguiram. E, inevitavelmente, o vazio onde antes estivera sua Afinidade, como se tivesse perdido o sentido da visão ou do olfato. Os anos que ela passou engolindo esse veneno na esperança de limpar sua Afinidade de seu corpo, em vez disso, resultou em uma tolerância a Deys'voshk. Enquanto o veneno bloqueava as habilidades da maioria dos Afinitas quase instantaneamente, Ana tinha quinze, às vezes vinte, minutos antes de tornar sua Afinidade inútil. Em uma tentativa desesperada de sobreviver, seu corpo se adaptou. — Você se move e eu vou te cortar de novo — o guarda rosnou, sua voz instável —, sua Afinita imunda. Um tilintar de metal, um lampejo de cabelo castanho emaranhado. Antes que qualquer um deles pudesse fazer qualquer coisa, Quicktongue prendeu suas correntes no pescoço do guarda. O guarda soltou um suspiro engasgado enquanto agarrava as correntes que agora cravavam em sua garganta. Das sombras atrás dele, o sorriso de Ramson Quicktongue ficou branco. A bile subiu na garganta de Ana, e uma onda de tontura a atingiu quando o veneno começou a percorrer seu caminho. Ela agarrou-se à parede, suor escorrendo em sua testa apesar do frio. Quicktongue virou-se para ela, segurando o guarda lutando próximo. Sua expressão era agora predatória, sua indiferença anterior aguçada para a fome de um lobo. — Agora, vamos tentar isso de novo, querida. As chaves devem estar penduradas em um prego do lado de fora da porta da cela... protocolo padrão antes de um guarda entrar na cela. O conjunto para minhas correntes são as de ferro em forma de garfo, quarta abaixo na fileira. Liberte-me, tire nós dois daqui ilesos, e podemos falar sobre seu alquimista. Ana se firmou contra os tremores em seu corpo, seu olhar passando entre Quicktongue e o guarda. Os olhos do guarda rolaram para trás em sua cabeça, e saliva borbulhava em sua boca enquanto ele engasgava por ar. Ela sabia o quão perigoso Quicktongue era quando veio procurá-lo. No entanto, ela nunca esperava que ele, um prisioneiro algemado às paredes de pedra de Quedas Fantasma, chegasse tão longe. Soltá-lo seria um erro terrível, terrível. — Venha, agora. — A voz de Quicktongue a fundamentou para a escolha horrível. — Não temos muito tempo. Em cerca de dois minutos, o próximo turno estará aqui. Você será jogada em uma dessas celas e vendida em algum contrato de trabalho... e todos nós sabemos como isso acontece. E eu ainda estarei aqui. — Ele deu de ombros e apertou suas correntes. As bochechas do guarda incharam. — Se esse é o cenário que você prefere, devo dizer que estou desapontado. As sombras na cela estavam balançando, se contorcendo. Ana piscou rapidamente, tentando estabilizar seu pulso acelerado contra o primeiro estágio do veneno. Em seguida viriam os calafrios e os vômitos. E então a seiva em sua força. O tempo todo, sua Afinidade estaria diminuindo como uma vela queimando até o fim do pavio. Pense, Ana, disse a si mesma, cerrando os dentes. Seus olhos percorreram a cela. Ela poderia torturar o homem enquanto ainda tivesse sua Afinidade. Ela poderia tirar seu sangue, machucá-lo, ameaçá-lo e obter a localização de seu alquimista. Lágrimas picaram em seus olhos, e ela os fechou contra as imagens que ameaçavam se amontoar em sua mente. Em meio a todas as suas memórias, uma queimava tão brilhantemente quanto uma chama no caos. Você não é um monstro, sistrika. Era a voz de Luka, firme e forte. Sua Afinidade não a define. O que a define é como você escolhe manejá-la.Isso mesmo, ela pensou, respirando fundo e tentando se ancorar nas palavras de seu irmão. Ela não era uma torturadora. Não era um monstro. Ela era boa, e não iria sujeitar este homem – não importa quão obscuras fossem suas intenções – aos mesmos horrores pelos quais ela havia passado. O que a deixou com uma opção. Antes que percebesse, ela atravessou a cela e pegou as chaves da parede, e estava tateando nas correntes do prisioneiro. Elas caíram com um estalo. Quicktongue saltou para longe deles e disparou pela cela em um piscar de olhos, esfregando os pulsos esfolados. O guarda caiu no chão, inconsciente, sua respiração ofegante pela boca entreaberta. Uma nova onda de náusea rolou sobre Ana. Ela se agarrou à parede. — Meu alquimista — disse ela —, nós tínhamos um acordo. — Ah, ele. — Quicktongue caminhou até a porta da cela e espiou para fora. — Eu vou ser honesto com você, amor. Não faço ideia de quem seja esse homem. Adeus. Em um piscar de olhos, ele estava do outro lado das grades. Ana cambaleou para frente, mas a porta da cela se fechou com um estrondo. Quicktongue sacudiu as chaves para ela. — Não leve muito para o lado pessoal. Afinal, eu sou um criminoso. Ele fez uma saudação simulada, girou nos calcanhares e desapareceu na escuridão. 2 Por um momento, Ana apenas ficou parada, olhando para as costas dele, sentindo como se o mundo estivesse desaparecendo sob seus pés. Enganada por um criminoso. Uma risada amarga saiu de sua garganta. Ela não esperava isso? Talvez, depois de todos esses meses que passou aprendendo a sobreviver sozinha, ela fosse realmente apenas uma princesa ingênua que não poderia sobreviver além dos muros do Palácio Salskoff. Seu ferimento latejava, um fio de sangue e Deys'voshk deslizando suavemente por seu braço, enchendo o ar com seu cheiro metálico. Sua Afinidade se agitou. Não, pensou Ana de repente, tocando um dedo em sua ferida. As gotas de sangue pareciam pulsar na ponta de seus dedos. Não, ela não era apenas uma princesa ingênua. As princesas não tinham o poder de controlar o sangue. Princesas não matavam pessoas inocentes em plena luz do dia no meio de uma praça da cidade. Princesas não eram monstros. Algo estalou dentro de si, e de repente ela estava engasgada com anos de ira acumulada, agitando-se com uma familiaridade nauseante. Não importa o que fizesse, não importa quão boa tentasse ser, ela sempre acabava como a monstra. O resto do mundo escureceu, e então havia apenas o sangue escorrendo por seu braço e no chão em gotas lentas e singulares. Você quer que eu seja o monstro? Ana ergueu o olhar para o corredor onde Ramson havia desaparecido. Eu serei o monstro. Alcançando aquele lugar retorcido dentro de si, Ana esticou sua Afinidade. Era como acender uma vela. As sombras que estavam puxando seus sentidos explodiram em luz quando sua Afinidade alcançou o elemento que a tornava monstruosa: sangue. Estava em toda parte: dentro de cada prisioneiro nas celas que a cercavam, respingado e riscado nas paredes imundas como tinta, de vermelho vivo a ferrugem desbotada. Ela podia fechar os olhos e não ver, mas sentir, moldando o mundo ao seu redor e, gradualmente, vários corredores abaixo, desaparecendo no nada além de seu alcance. Ela o sentiu correndo pelas veias, tão poderoso quanto rios e tão quieto quanto riachos, ou quieto e rançoso como a morte. Ana esticou as mãos, sentindo como se estivesse respirando profundamente pela primeira vez em muito tempo. Todo esse sangue. Todo esse poder. Tudo dela para comandar. Ela encontrou o criminoso facilmente, a adrenalina bombeando através de seu corpo iluminando-o como uma tocha ardente entre velas bruxuleantes. Ela focou sua Afinidade em seu sangue e puxou. Uma estranha sensação de alegria a encheu enquanto o sangue obedecia, cada gota no corpo de Quicktongue saltando ao seu desejo. Ana respirou fundo e percebeu que estava sorrindo. Monstrinha, uma voz sussurrou em sua mente – só que, desta vez, era a dela. Talvez Sadov estivesse certo, afinal. Talvez houvesse alguma parte distorcida dela que fosse monstruosa, não importa o quanto ela tentasse lutar contra isso. Um grito soou no corredor, seguido por um baque, então sons de briga. E então, lentamente, da escuridão, um pé surgiu. Depois uma perna. E então um torso imundo. Arrastou-o para ela por seu sangue, saboreando a forma como ele saltou em seu controle, a forma como ele se sacudiu como uma marionete sob seu poder. Fora de sua cela, Quicktongue se contorcia no chão. — Pare — ele ofegou. Uma mancha vermelha apareceu em sua túnica manchada de suor, encharcando o tecido e a sujeira —, por favor... o que quer que você esteja fazendo... Ana estendeu um braço pelas barras da cela e agarrou seu colarinho, puxando-o tão perto que seu rosto bateu contra o metal. — Silêncio. — Sua voz era um rosnado baixo. — Você escuta a mim. De agora em diante, você obedecerá a cada palavra minha, ou esta dor que você sente agora... — ela puxou seu sangue novamente, soltando um gemido baixo — será apenas o começo. — Ela ouviu as palavras como se outra pessoa estivesse falando através de seus lábios. — Estamos entendidos? Ele estava ofegante, suas pupilas dilatadas, seu rosto pálido. Ana reprimiu qualquer culpa ou pena que pudesse ter sentido. Era sua vez de comandar. Sua vez de controlar. — Agora abra a porta. O criminoso despertou-se em arrancos e paradas, tremendo visivelmente. Um brilho de suor cobriu seu rosto. Ele se atrapalhou com a fechadura, e a porta da cela se abriu. Ana saiu da cela e se virou para ele. O mundo balançou um pouco quando outro ataque de tontura a atingiu, mas seu estômago se apertou em prazer retorcido quando Quicktongue se encolheu. Manchas vermelhas estavam se espalhando em sua camisa, onde os vasos de sua pele haviam se rompido. Amanhã, estes se tornariam hematomas feios que marcariam seu corpo como uma doença hedionda. O trabalho do diabo, Sadov chamou. O toque do deimhov. Ana se virou antes que pudesse sentir repulsa pelo que havia feito. Sua mão disparou automaticamente para o capuz, puxando-o para trás sobre a cabeça para esconder os olhos. Suas mãos e antebraços pareciam pesados, com veias irregulares ingurgitadas de sangue. Ela enfiou a mão sem luva dentro de sua capa, os dedos torcendo contra o tecido frio, sentindo-se exposta sem a luva. Os cabelos de sua nuca se arrepiaram quando ela percebeu que a prisão estava completamente silenciosa. Algo estava errado. Os gemidos e sussurros dos outros prisioneiros haviam se acalmado, como a calmaria antes de uma tempestade. E então, vários corredores abaixo, um tinido alto soou. Ana ficou tensa. Seu coração começou a bater em seu peito. — Precisamos sair daqui. — Divindades — amaldiçoou Quicktongue. Ele se ergueu do chão e sentou-se fortemente encostado na parede, ofegante, os músculos tensos de seu pescoço apertando e relaxando —, quem é você? A pergunta surgiu do nada; ela podia pensar em mil maneiras de responder. Espontaneamente, memórias passaram por sua mente como as páginas de um livro empoeirado. Um castelo de mármore branco em uma paisagem invernal. Uma lareira, um fogo bruxuleante e a voz profunda e firme de pai. Seu irmão, de cabelos dourados e olhos de esmeralda, sua risada tão radiante quanto o sol. Sua tia, com olhos de corça e adorável, cabeça baixa em oração com sua trança escura caindo sobre o ombro... Ela pressionou as memórias de volta, substituindo a parede que, cuidadosamente, construiu no ano passado. Sua vida, seu passado, seus crimes, esses eram seus segredos, e a última coisa que ela precisava era que este homem visse qualquer fraqueza nela. Antes que ela pudesse responder, Quicktongue saltou. Ele se moveu tão rápido que ela mal soltou um grunhido de surpresa quando sua mão apertou sua boca novamentee ele a girou atrás de um pilar de pedra. — Guardas — sussurrou. Ana enfiou o joelho entre as pernas dele. Quicktongue se dobrou, mas além de seus sussurros furiosos, ela ouviu o som de passos. Botas ressoaram no corredor da masmorra, a batida rítmica dos passos de vários guardas. Ela podia distinguir a luz fraca de uma tocha distante, cada vez mais brilhante. Vozes ecoaram no corredor e, a julgar pelo som das risadas, os guardas contavam piadas. Ana soltou um suspiro. Eles não tinham sido descobertos. Esses guardas estavam apenas fazendo suas rondas. Quicktongue se endireitou e se inclinou para ela enquanto se pressionava contra o pilar. Agrupados, seus corações batendo na mesma oração, eles poderiam ter sido parceiros no crime, ou mesmo aliados. No entanto, o brilho em seus olhos a lembrou de que eles eram tudo, menos isso. Ela tentou não respirar enquanto os guardas passavam pelo pilar. Eles estavam tão perto que ela ouviu o farfalhar de suas ricas capas de pele, o arrastar de suas botas no chão sujo. Uma percepção repentina a atingiu. O guarda. Eles o deixaram inconsciente na cela de Quicktongue. Ao lado dela, Quicktongue também ficou tenso, como se tivesse chegado à mesma conclusão. Ele assobiou uma maldição. Um grito de pânico soou, seguido pelo rangido sinistro da porta da cela. Ana fechou os olhos com força, o medo florescendo frio em seu peito. Eles haviam descoberto o guarda inconsciente. — Escute-me. — A voz de Quicktongue era baixa e urgente. — Estudei os planos desta prisão... conheço a estrutura tão bem quanto conheço as folhas-de-ouro em minha bolsa. Nós dois sabemos que você não vai sair daqui sem minha ajuda, e eu preciso da sua Afinidade também. Então eu estou pedindo que você confie em mim por enquanto. Assim que estivermos fora deste maldito lugar, podemos voltar a rasgar a garganta um do outro. Parece bom? Ela o odiava, odiava o fato de que ele a tinha enganado, e o fato de que estava certo. — Tudo bem — ela murmurou —, mas se você pensar em usar algum truque, lembre-se do que posso fazer com você. O que eu vou fazer com você. Quicktongue esquadrinhava o corredor à frente, a cabeça inclinada enquanto ouvia. — Justo. Além do pilar, um dos guardas entrou na cela e sacudiu desesperadamente seu companheiro caído. Os outros dois vasculharam as profundezas das masmorras com suas espadas desembainhadas, tochas erguidas. Caçando. A barba de Quicktongue fez cócegas em sua orelha. — Quando eu falar “corra ... A luz da tocha ficou mais fraca. — Corra. Ana disparou do pilar. Ela não achava que já tinha corrido tão rápido antes. Células voaram em ambos os lados dela em faixas escuras de cor. No final do corredor, tão pequeno que poderia bloqueá-lo com o polegar, estava a lasca de luz da saída. Ela se atreveu a olhar para trás para encontrar Quicktongue correndo em sua direção. — Vai! — ele gritou. — Não pare! A luz era brilhante à sua frente, o chão de pedra duro sob seus pés batendo. E antes que percebesse, ela estava na escada, subindo dois degraus de cada vez, sua respiração irregular em sua garganta. Ela emergiu na luz do dia brilhante e inflexível. Imediatamente, seus olhos começaram a lacrimejar. Tudo era branco, do piso de mármore às paredes altas e aos tetos abobadados. A luz do sol entrava pelas janelas estreitas e altas acima de suas cabeças, ampliadas pelo mármore. Isso, Ana lera, fazia parte do projeto da prisão. Os prisioneiros teriam permanecido na escuridão subterrânea por tanto tempo que ficariam cegos assim que saíssem das masmorras. E apesar de toda sua cuidadosa leitura e pesquisa, ela não tinha como escapar dessa armadilha a não ser esperar que seus olhos se ajustassem. Um tinido alto soou atrás dela. Através de suas lágrimas, ela viu Quicktongue girando a chave para trancar as portas da masmorra no lugar. Ele subiu os degraus, três de cada vez, e quando chegou ao topo, fechou as mãos sobre os olhos com uma maldição. Além desse salão, em algum lugar que Ana não conseguiu localizar, ecoaram gritos. Um leve som de estrépito ressoou ao longo do piso de mármore e reverberou nas paredes cegamente brancas... o som de botas batendo e armas sendo sacadas. O alarme havia sido disparado. Ana olhou para Quicktongue. Através do borrão de suas lágrimas, ela podia ver o olhar de puro pânico que passou pelo rosto dele – e Ana percebeu que, apesar de toda sua astúcia e bravura, Ramson Quicktongue não tinha um plano. O medo aguçou sua inteligência, e o mundo mudou de foco quando a ardência em seus olhos desapareceu. Corredores se espalhavam em todas as direções a partir deles: três à sua esquerda, três à sua direita, três à sua frente, três atrás dela, todos idênticos, todos brancos. Sua cabeça latejava com os efeitos do Deys'voshk; ela nem conseguia se lembrar por onde tinha entrado. Este lugar era um labirinto, projetado para prender prisioneiros e visitantes como uma pedreira em uma teia de aranha. Ana agarrou a camisa de Quicktongue. — Qual caminho? Ele espiou por uma fenda entre os dedos e gemeu. — A saída dos fundos — ele murmurou. Ela respirou fundo. Claro, nenhuma de suas leituras de Quedas Fantasma, que já havia sido escassa o suficiente para começar, mencionou uma saída pelos fundos. A frente, Ana sabia, tinha três conjuntos de portas trancadas e vigiadas, para não falar de um pátio vigiado por arqueiros que as cravariam como alvos de tiro se eles sequer pisassem fora. Ela absorveu tudo silenciosamente enquanto seguia o guarda para dentro... naquela época como visitante. Nunca, em sua imaginação mais selvagem, ela pensou que estaria fugindo da prisão com um criminoso condenado a reboque e uma dúzia de guardas em seu encalço. A fúria cravava nela; ela agarrou Quicktongue pela túnica suja de sujeira e o sacudiu. — Você nos colocou nessa bagunça — rosnou —, agora você nos tira daqui. Qual caminho para a saída dos fundos? — Segunda porta... segunda porta à nossa direita. Ana o puxou para uma corrida atrás de si. Botas batiam ao longo de um dos corredores, ela não sabia dizer qual. A qualquer momento, os reforços estariam lá. Eles estavam no meio do corredor quando um grito soou atrás deles. — Pare! Pare em nome do Kolst Imperator Mikhailov! O Glorioso Imperador Mikhailov. Eles lançaram o nome de Luka tão casualmente, tão autoritário. Como se soubessem alguma coisa sobre seu irmão. Como se tivessem o direito de comandar pelo nome dele. Ana virou-se para os guardas da prisão. Havia cinco deles, tigre Cyriliano prateado estampado em uniformes brancos, suas espadas de pedra- negra desembainhadas e brilhando à luz do sol. Eles vieram totalmente equipados, com capacetes também; seus trajes brilhavam com a liga reveladora em tons de cinza. Eles rosnaram para ela, espalhando-se como caçadores cercando uma fera indomável. Houve um tempo em que eles poderiam se ajoelhar na presença dela, quando teriam levado dois dedos ao peito e desenhado um círculo em sinal de respeito. Kolst Pryntsessa, eles teriam sussurrado. Isso já passou há muito tempo. Os dedos de Ana se enrolaram sobre o capuz, puxando-o para mais perto. Ela ergueu a outra mão, ferida e sem luva, para os guardas. O sangue escorria por seu braço em uma espiral de amante, um vermelho vivo contra a azeitona escura de sua pele. A náusea se agitou na boca do estômago, e sua garganta doeu de repulsa. Ao contrário dos Afinitas aprendizes ou empregados que aprimoraram suas habilidades por anos, Ana tinha apenas um controle básico e bruto sobre ela. Lutar contra tantas pessoas ao mesmo tempo poderia facilmente significar perder completamente o controle de sua Afinidade. Já tinha acontecido antes, quase dez anos antes, e a deixou doente só de pensar nisso. Um arqueiro se ajoelhou em posição, as pontas de suas flechas brilhando com Deys'voshk.Ana engoliu. — Me dê cobertura — ela disse para Quicktongue, e sua Afinidade rugiu para a vida. Mostre a eles o que você é, minha monstrinha. Mostre a eles. Ela deixou sua Afinidade livre e a percorreu, cantando e gritando e se contorcendo em suas veias. Através da névoa de seu frenesi, ela se agarrou aos contornos dos cinco guardas, seu sangue correndo por seus corpos com uma combinação de adrenalina e medo. Ela segurou essas amarras e deu um puxão forte e violento... A carne rasgou. O sangue encheu o ar. Sua Afinidade estalou. O mundo físico voltou em uma torrente de pisos de mármore branco e luz solar fria. De alguma forma ela estava de quatro, seus membros tremendo enquanto lutava para respirar. As veias bege-douradas do piso de mármore giravam diante de seus olhos, o Deys'voshk percorrendo sua cabeça. Em menos de dez minutos, o início estaria completo; sua Afinidade teria desaparecido. Ela se inclinou para frente, arqueando as costas em um ataque de tosse. O carmesim respingou no chão de mármore branco. Uma mão se fechou em seu ombro. Ana estremeceu. Quicktongue agachou-se ao lado dela, a boca aberta enquanto observava a cena. O corredor estava estranhamente vazio. Além da escada, espalhadas pelo corredor, havia cinco formas amassadas. Elas ficaram imóveis em poças de seu próprio sangue, as manchas escuras avançando sobre o chão e rastejando em seus sentidos. O toque do deimhov. — Incrível — Quicktongue murmurou, olhando-a com uma mistura de admiração e prazer —, você é uma bruxa. Ela ignorou o insulto e caiu sobre o piso de mármore polido, ofegante. O uso de sua Afinidade havia drenado sua energia, como sempre acontecia. — Fique aqui — Quicktongue ordenou. Então ele se foi. Ana empurrou-se sobre os joelhos. De repente, ela estava muito consciente dos corpos ao seu redor, frios e imóveis em suas mortes. O sangue deles pairava em sua consciência, rios rugindo transformados em poças de água morta, assustadoramente silenciosas. O mármore branco brilhava em contraste com o carmesim, a luz do sol se derramando sobre o sangue como se dissesse: Olhe. Olhe o que você fez. Ana se curvou para frente, envolvendo os braços em volta de si mesma para parar de tremer. Eu não queria. Eu perdi o controle. Não pedi essa Afinidade. Eu nunca quis machucar ninguém. Talvez os monstros também nunca tivessem a intenção de machucar os outros. Talvez os monstros nem soubessem que eram monstros. Ela contou até dez para se dar tempo de parar de chorar e sair do chão. O sangue se espalhou sob suas palmas enquanto se levantava. Ela se encostou na parede e respirou fundo, fechando os olhos para evitar a visão diante de si. — Bruxa! Ana encarou. Quicktongue estava diante do segundo corredor à sua direita, uma corda pendurada no ombro. Ele acenou para ela e virou pelo corredor, desaparecendo de vista. Quanto tempo ele ficou ali, vendo-a quebrar? Ela o olhou, a inquietação filtrando a maré de sua exaustão. — Rápido! — Sua voz voltou, ecoando levemente. Levou cada grama de sua força de vontade para endireitar a coluna e mancar atrás dele. *** A prisão foi construída como um labirinto. Kapitan Markov havia ensinado Ana sobre projetos de prisão quando ela era apenas uma menina. Seu rosto enrugava sob seu cabelo grisalho quando ele sorria para ela, e o cheiro familiar de seu creme de barbear e armadura de metal cresceram para acalmá-la. Em seu firme tom de barítono, ele a disse que as prisões Cirilianas eram labirintos que aprisionavam detentos que tentavam escapar, de modo que o pânico e a incerteza os faziam perder a cabeça quando eram recapturados. Os anéis externos dessas prisões-labirinto eram fortemente vigiados, mas os guardas do lado de dentro eram mais escassos, simplesmente porque atiravam em qualquer prisioneiro que conseguisse vagar pelas camadas externas. Ela só podia esperar que esta saída de trás do Quicktongue não prometesse uma morte tão rápida. À frente, o criminoso se movia com uma graça predatória que a lembrava de uma pantera que ela vira uma vez em um show de animais exóticos em Salskoff. Ela pegou a piscadela de uma adaga roubada em suas mãos, o símbolo de um tigre branco piscando no punho. Como se ouvisse seus pensamentos, ele poupou-lhe um olhar. — Cansada? — ele sussurrou. — Esse é o preço que vocês, Afinitas, pagam por suas habilidades, não é? Além disso, nosso amigo lá atrás deu a você um pouco de Deys'voshk. Um guarda dobrou a esquina, poupando-a da dor de pensar em uma resposta contundente. Em três passos leves, Quicktongue estava em sua garganta. Um lampejo de metal e o guarda caiu, o punho de tigre branco saindo de seu peito. Mesmo através de sua névoa de fadiga, Ana podia dizer que havia uma precisão treinada nos movimentos de Quicktongue, uma ciência na maneira como ele inclinava sua lâmina. Quicktongue embainhou sua adaga em um golpe praticado. — Quase lá — disse ele. Ficou mais escuro, arandelas fixadas cada vez mais esparsamente ao longo das paredes. O mármore transformou-se em pedra rústica e, uma ou duas vezes, Ana pensou que ia ficar completamente escuro. Ela manteve sua Afinidade acesa como uma tocha, o tempo todo consciente de seu alcance cada vez menor à medida que o Deys'voshk assumia o controle. Até Quicktongue, cujo sangue fluindo rápido deveria ser fácil para ela rastrear, entrava e saía de sua consciência como um fantasma. Através do estalo rítmico de seus saltos, outro som emergiu – fraco, mas cada vez mais alto, como o sussurro do vento roçando os altos lariços congelados do lado de fora de suas janelas. O som da... água. Eles tinham que estar nos fundos da prisão, então, onde os corpos dos prisioneiros mortos eram jogados junto com esgoto e lixo. Ao contrário da maioria das prisões Cirilianas, que foram construídas sobre rios para fácil eliminação, Quedas Fantasma foi construída no topo de um penhasco cortado por uma cachoeira, ganhando seu nome. Houve até uma reviravolta na velha piada: os prisioneiros estavam presos entre um penhasco e uma cachoeira. Um penhasco e uma cachoeira. Suas pernas pareciam aquosas. — Quicktongue — Ana engasgou, e então ela estava gritando —, Quicktongue! Ele desapareceu na esquina. Ana empurrou-se em uma corrida, a água agitada ficando mais alta até que até seus passos foram abafados pelo som apressado. O próximo corredor terminava abruptamente em uma estreita porta em arco feita de pedra-negra. Sua leveza fria e misteriosa sussurrou para ela. Quicktongue ajoelhou-se diante da porta, sua túnica cinza um borrão fantasmagórico contra a pedra-negra. Na penumbra, suas mãos trabalhavam com a precisão dos físicos do Palácio com quem Ana estudara. Algo brilhou entre seus dedos; ele fez um movimento rápido para baixo, e a porta se abriu. As batidas abafadas se transformaram em um som estrondoso que reverberou entre as paredes de pedra e o teto baixo. Quicktongue empurrou a porta e Ana sentiu seu estômago revirar. Além da porta de pedra-negra, o corredor terminava abruptamente, como se alguém tivesse pegado uma faca de manteiga e a cortado com cuidado. Dois grandes pilares enraizaram o final do corredor no afloramento de penhascos abaixo. O céu azul-acinzentado de Cyrilia se estendia por quilômetros sobre suas cabeças, até encontrar a extensão da paisagem coberta de neve brilhante. Abaixo, águas brancas como gelo espumavam e mergulhavam para baixo. As pernas de Ana ficaram fracas quando o medo familiar de água agitou dentro dela, esculpido nos ossos de sua memória de um incidente muito, muito tempo atrás. As águas impiedosas de um rio, um muito diferente, quase a mataram não uma, mas duas vezes muitos anos atrás. Quicktongue já estava em movimento. Ele soltou o grosso pedaço de corda que estava puxando. Com fluida facilidade, ele enrolou uma ponta da corda emtorno de um pilar. Seus dedos teceram algum tipo de nó complicado. Divindades. Ana pressionou-se contra a parede dos fundos e desejou que seus joelhos não dobrassem. Esta era a saída dos fundos de que Quicktongue havia falado: o esgoto a céu aberto onde eles jogavam excrementos e cadáveres. E eles iam pular. — Eu não vou pular lá com você — ela gritou, voltando para a curva dos corredores, atrás da porta de pedra-negra. Quicktongue ajoelhou-se junto à saliência. — Não tenho certeza de quão longe você chegou em sua escola, querida, mas aqui está um pouco de sabedoria das ruas. Qualquer um que tentar pular ali, vai morrer. O impacto vai quebrar seus ossos. A cachoeira mergulhou como uma fera rugindo, desaparecendo em uma névoa branca tão espessa que ela nem conseguia ver o fundo. Quicktongue testou seu nó. A corda esticada. — Você vem, Bruxa? Ana estava quase convencida de que ele estava louco. — Você acabou de dizer que qualquer um que tentar pular lá vai morrer. Quicktongue se endireitou. Delineado contra o céu azul Cyriliano enevoado, acima das águas brancas espumantes, ele parecia quase heroico. — Eu disse. Mas, querida, não vamos pular. — Ele gesticulou para o comprimento da corda, a maioria enrolada em uma pilha entre eles como uma cobra. A outra extremidade enrolou em torno do pilar. — Planejo nos baixar até o rio abaixo. Já fiz os cálculos. Vai funcionar. — Ele sorriu e aproximou o dedo indicador e o polegar. — Será um passo pequeno e delicado. Como descer de uma carruagem. Exceto... de um parapeito. Seus olhos brilharam com alegria, e ela queria sufocá-lo. Divindades, ela ia morrer. Atrás de si: guardas que iriam aprisioná-la e vendê-la em regime de servidão. Ante à dela: um criminoso louco que, provavelmente, pularia para a morte. — Então? — Quicktongue inclinou a cabeça. Com seus dedos de trapaceiro, ele já havia amarrado a outra ponta da corda firmemente ao redor de sua cintura e estava balançando o último pedaço dela para ela. — Passamos uns bons cinco minutos para chegar aqui. Eles soaram o alarme, então mais guardas estarão sobre nós como abelhas no mel. Você está desperdiçando meu tempo, querida. Ana voltou seu olhar para a cachoeira, observando as águas brancas espumantes baterem em velocidades que quebrariam os ossos. E, de repente, ela se imaginou presa naquelas correntes como tinha estado dez anos atrás, a espuma e as ondas esmagando seu peito e torcendo seus membros e pressionando seus lábios e nariz. Não posso. Em algum lugar naquele labirinto, acima do bater da cachoeira, gritos soaram. Ela empurrou sua Afinidade para fora, mas ela enfraqueceu a ponto de tudo o que sentiu foram os mais fracos fios de sangue. A ferida em seu braço deu um latejar particularmente desagradável. Mais alguns minutos e não sobraria nada de sua Afinidade com o que lutar. Não havia como voltar atrás agora. Ela queria chorar, mas sabia de seus anos em Sadov, nas masmorras, que chorar não levava a nada. Diante do medo, pode-se optar por correr ou se levantar. Então Ana engoliu a náusea, engoliu as lágrimas e ergueu o queixo ao passar pela porta de pedra-negra. O chão era irregular e molhado, e um cheiro – como se algo, ou muitas coisas, tivesse apodrecido aqui – a sufocou enquanto se aventurava mais longe. — Eu não vim aqui para morrer, criminoso — ela retrucou enquanto caminhava até ele —, se você tentar qualquer coisa, eu vou te matar antes que a água o faça. E acredite em mim, você me imploraria para deixá-lo se afogar em vez disso. Quicktongue estava se equilibrando na beirada do piso de mármore branco, segurando a corda. Seus lábios se curvaram quando ele começou a prendê-la firmemente contra seu peito com o último pedaço de corda em sua ponta. — Justo. Ana respirou fundo quando a corda cortou suas costas e cintura. Quicktongue deu-lhe um sorriso torto. — Eu sei que fede, amor, mas você vai me agradecer mais tarde, quando ainda estiver viva. O vento chicoteou contra seu rosto enquanto ela se arrastava até a borda, onde o chão terminava e o nada começava. Seu cabelo se soltou de seu nó austero, mechas castanhas escuras esvoaçando contra um céu azul aberto. Quicktongue deu outro puxão na corda. — Segure firme — ele gritou, e apesar de tudo, Ana envolveu os dois braços em torno de sua túnica imunda, mantendo o rosto o mais longe possível de seu peito sem forçar o pescoço. Ele os balançou para fora da borda. Qualquer repulsa que sentia por Quicktongue se dissolveu, e ela se viu agarrada a ele com força como se sua vida dependesse disso. Ele balançou. Eles balançavam logo abaixo da borda de Quedas Fantasma, espiralando suavemente. A cachoeira rugiu em seus ouvidos, tão perto que ela podia estender a mão e tocá-la. O pedaço de corda que os ligava ao pilar caiu embaixo deles em um longo laço, desaparecendo na névoa branca. Lentamente, Quicktongue começou a abaixá-los. Seus músculos estavam tensos, veias saltando de seu pescoço quando colocou uma mão abaixo da outra. Ana ousou olhar para baixo. A visão a fez agarrar Quicktongue com mais força, engolindo seu pânico. Ela poderia ter enviado mil orações para suas Deidades, mas nenhuma teria importância. Neste instante, havia apenas ela e o criminoso. Ana olhou para cima. A névoa era tão espessa que mal conseguia distinguir a borda da prisão. Aquilo era uma coisa boa. — Quanto tempo mais? — ela gritou, mal ouvindo sua própria voz sobre a cachoeira. — Quase lá! — Ele estava gritando, mas suas palavras eram quase inaudíveis. — Precisamos chegar ao fim desta corda, ou a queda vai nos matar. Ana apertou os olhos. Algo, um movimento na névoa, a fez instintivamente agarrar sua Afinidade. Lá estava ela: o mais leve fiapo, um eco de seus poderes, ainda lutando sob o Deys'voshk. Ela franziu a testa quando sentiu algo através de suas amarras, tão fraco que quase passou por ela. Uma rajada de vento os atingiu e Ana fechou os olhos, tentando bloquear a sensação vertiginosa do balanço. Quando os abriu novamente, o vento havia dissipado um pouco da névoa. No topo, sobre a borda de Quedas Fantasma, estava o contorno de um arqueiro, seu arco e flecha virados para eles. — Tenha cuidado! — ela gritou, e a primeira flecha zuniu sobre suas cabeças. A segunda atingiu Quicktongue. Ele grunhiu de dor quando ela roçou seu ombro, cortando sua manga e tirando sangue. Ana engoliu um grito quando o aperto de Quicktongue deslizou contra a corda escorregadia. Eles cambalearam, girando descontroladamente, a um palmo de distância de serem espancados até a morte pela cachoeira. Acima, o arqueiro encaixou outra flecha. Abaixo, ela viu a ponta da corda, enrolando-se para se conectar à cintura de Quicktongue. A ponta da corda. Eles tinham que chegar ao fim da corda, ou morreriam. Ana alcançou dentro de si mesma, cavando até que não era nada além de sangue e osso. E ela o encontrou, os últimos resquícios de sua Afinidade, tão fracos quanto uma vela se apagando, ainda lutando contra os Deys'voshk. Ana estendeu a mão e agarrou o sangue do arqueiro. E empurrou. O arqueiro ficou tenso e balançou por um segundo, como se uma súbita rajada de vento o tivesse atingido. Ana deixou cair a mão. Calor escorreu por seu lábio e ela provou seu próprio sangue. Era isso. O Deys'voshk havia vencido; ela não tinha mais para dar. Mas foi o suficiente para distrair o arqueiro e levá-los até o fim da corda. Quicktongue a soltou e alcançou seu quadril. Sua adaga brilhou prata fosca. Ele se inclinou em direção a Ana, seus olhos estreitados, sua expressão afiada para uma calma mortal e letal. — Não lute, não se mova. Apenas segure-se em mim. Pés à frente, dedos dos pés apontados. Ela mal tinha processado suas palavras, mal deixou um gosto de medo chegar à ponta de sua língua. Quicktongue ergueu o braço. —O primeiro passo para se tornar um rufião 1 — disse ele —, é aprender a cair. Sua lâmina brilhou. Ele abaixou o braço com força implacável. E então eles estavam caindo. 1 Uma pessoa violenta, especialmente uma pessoa envolvida em crimes. 3 O rio os reivindicou assim que eles o atingiram, puxando-os para baixo com vingança em seus fluxos brancos e os golpeando como folhas em um vendaval. Ramson deixou-se levar pelas marés. Ele conhecia as águas, sabia quando se deixar levar e quando forçar contra elas. O rio não cedeu. Era tudo sobre aprender a nadar com a corrente. Essas águas eram diferentes dos mares abertos da infância de Ramson. Em Bregon, as águas eram azul-cobalto, as calotas salpicadas de sol. Ele havia nadado por horas, mergulhando abaixo da superfície e olhando para o céu distante em seu próprio mundo azul e abafado. Em Cyrilia, os rios eram brancos, espumantes e frios. Ramson lutou para manter os olhos abertos enquanto a correnteza o lançava de um lado para outro. A pressão em seu peito aumentou. A água subiu em seu nariz e boca. A garota Afinita ainda estava amarrada ao peito dele pela corda. Ele podia senti-la se debatendo contra ele, chutando e lutando enquanto a corrente a golpeava. Ramson cortou a corda. As chances de sobrevivência eram maiores sem alguém pesando sobre você. Ele estava pensando apenas em si mesmo quando fez isso, mas enquanto observava a corrente arrastar a bruxa para longe, ele supôs que poderia ter sido verdade para ela também. Fique quieta, ele queria dizer a ela. Quanto mais você luta, mais rápido se afoga. Mas seus próprios pulmões estavam doendo, e aquela sensação familiar de fraqueza estava rastejando em seus membros. Ele precisava respirar, ou arriscar se tornar parte da corrente para sempre. Ramson rompeu. Assim que ele se endireitou, a corrente o empurrou novamente. O pânico borbulhou em seu peito. Sua cabeça parecia leve. A água pressionava seu nariz e seus lábios, mas parte dele se lembrava de que não conseguia abrir a boca. Seus membros estavam ficando mais pesados. Sua visão era um turbilhão de branco. Estava frio. Nade, veio uma voz. Ele soube instantaneamente de quem era a voz... aquela voz calma e fina que definiu sua infância e o perseguiu todos os dias depois disso. Aqui, no caos estrondoso, parecia tão perto. Nade, ou nós dois morremos. Ramson forçou as pernas para trás dele, arqueando as costas. Ele sentiu a corrente ceder um pouco. Em algum lugar acima de si, em algum lugar próximo, havia luz. Nade. A luz ficou mais brilhante. Atravessou a superfície, tossindo e engolindo baforadas atrás de baforadas do ar fresco e invernal de Cyril, sentindo o poder retornar a seus membros. Ele se arrastou para a margem, cravando as unhas na terra semicongelada e arrastando os pés pela grama coberta de neve. Ele estava tremendo incontrolavelmente, movendo-se em partidas e paradas, seus braços e pernas sacudindo em movimentos desajeitados enquanto ele tentava estimular seu fluxo sanguíneo. O rio os levara a uma boa distância; Quedas Fantasma era um pontinho distante, pouco maior que o tamanho de sua palma. Seu estômago revirou quando ele viu a altura dos penhascos, a cachoeira que não era mais do que um trecho enevoado que terminava no rio. Não importava seus cálculos e o planejamento meticuloso que fizera na escuridão de sua cela; foi preciso um milagre e uma mão dos deuses para eles terem sobrevivido. Não que Ramson acreditasse nos deuses de qualquer maneira. Ele virou as costas para a prisão. Uma floresta coberta de neve se estendia diante dele, iluminada em uma névoa dourada empoeirada sob o sol do fim da tarde. E ao longe, montanhas cobertas de gelo subiam e desciam até onde a vista alcançava. Mas Ramson sentiu apenas o frio nos ossos e viu apenas as sombras que se estendiam longas e escuras sob os pinheiros. Isso era Cyrilia, o Império do Norte, onde as noites de outono eram mais frias do que qualquer dia de inverno nos outros reinos. E se não encontrasse abrigo antes do pôr do sol, morreria. Uma tosse atrás dele o fez girar, adaga na mão. Ele sentiu uma leve pontada de surpresa ao avistar a Afinita subindo a margem como um animal moribundo. Ela estava de quatro, a cabeça caída, os cabelos escuros colados ao rosto e pingando água. Ela não ficaria de pé novamente. Não sem a ajuda dele. Ramson se virou. A neve abafou seus passos quando ele se aventurou na floresta, e logo os sons da garota cuspindo e do rio correndo se desvaneceram em silêncio. As árvores cresciam densas o suficiente para bloquear o sol, e o frio o pressionava a cada passo que dava. Ele correu pelo terreno ao redor de Quedas Fantasma em sua mente, mas uma crescente sensação de dúvida começou a atrapalhar seu progresso. Ele foi trazido para cá algemado e com os olhos vendados, a carroça viajando por dias antes de ser puxado para fora e jogado em sua cela. Até onde Ramson sabia, a área ao redor da prisão era estéril... um deserto de tundra coberta de gelo e a Syvern Taiga, a floresta que cobria metade do Império Cyriliano. De alguma forma, seus pensamentos foram atraídos de volta para a bruxa. Era uma pena que sua fuga a tivesse enfraquecido tanto. Considerando que poderia ter sido uma aliada útil com sua poderosa Afinidade, ela seria apenas um obstáculo no futuro. Ele duvidava que ela fosse capaz de ficar de pé, muito menos sair da floresta. Mas, novamente, ele pensou sombriamente, para onde ela iria? Algo estalou em sua mente, e ele parou bruscamente. É claro. Como pode ter sido tão estúpido? Ele se virou e meio cambaleou, meio correu para onde havia deixado a bruxa. A garota tinha ido a Quedas Fantasma só para vê-lo. O que significava que ela tinha que ter uma saída. Um meio de transporte. Ele a encontrou agachada a vários metros do rio, a cabeça inclinada, os braços em volta de si mesma e movendo-se rigidamente enquanto tentava esfregar o calor de volta em seu corpo. Ela o olhou com os olhos semicerrados quando ele se aproximou. Em apenas alguns minutos, a parte inferior de seus cabelos molhados congelou. Ramson ajoelhou-se ao lado dela, colocando a mão em seu pescoço e sentindo seu pulso. Ela se contorceu, mas não fez mais nenhum movimento para resistir. — Como você está se sentindo? — Injetando preocupação em seu tom, ele tomou suas bochechas em suas mãos. Elas estavam geladas. — Você pode falar? Ela abriu os lábios rachados. Eles estavam tingidos de azul. — S-sim. — Você se sente tonta? Sonolenta? — N-não. — Era claramente uma mentira, mas quando ela ergueu o queixo teimosamente e o encarou com aquele olhar, Ramson não pôde deixar de admirar sua determinação. — Precisamos encontrar abrigo antes do pôr do sol. — Ramson lançou um olhar sobre as copas das árvores, onde o sol pairava, obscurecido pelas nuvens cinzentas e pela névoa. — De onde você veio? Como chegou aqui? — A-andei. Seu coração quase cantou com essa palavra. Isso significava que tinha que haver abrigo a uma curta distância. Ele fez a escolha certa, voltando para ela. — De onde? Há uma cidade próxima? Um aceno de cabeça. — A d-dacha. Eu moro lá. — Quão longe? Seu corpo deu um espasmo, e ele a puxou para mais perto de si. Suas roupas molhadas poderiam muito bem ser compressas de gelo, mas ele sabia que o calor do corpo ajudaria. Sua resposta veio em uma respiração que nublou o ar. — Duas horas. Ramson olhou para o sol coberto de neblina que pairava precariamente baixo sobre a borda das árvores. Pela primeira vez, parecia esperança. Ele se levantou, ajustando suas roupas geladas e testando seus músculos. Eles não estavam com cólicas ainda, o que era um bom sinal. — Você pode andar, querida? A bruxa começou a se levantar, ficando de pé, mas quase caiu com o esforço. Ramson a pegou pelos cotovelos antes quecaísse. — Eu a peguei. — Ganhe a confiança dela, alcance o abrigo. Ele a içou em suas costas, imediatamente sentindo a rigidez gelada de sua capa. — Coloque suas mãos em volta do meu pescoço. Quanto mais contato com a pele, menor a probabilidade de você ter hipotermia. Ela obedeceu, e ele deslocou seu peso mais alto. Já, seu sangue estava fluindo da tensão em seus músculos. Isso era bom. Ramson cerrou os dentes. Colocando um pé ante do outro, ele começou a andar. O silêncio abafado da paisagem branca os pressionava, quebrado apenas pelo ranger da neve sob suas botas e o ocasional estalar de um galho enquanto entrava na floresta. A bruxa lhe deu instruções, sua voz irregular enquanto ela tremia de frio. Logo eles estavam no coração da floresta, cercados por pinheiros de Syvern e lariços de gelo que projetavam suas sombras sobre eles. Um silêncio se instalou no ar. Parecia que a floresta estava viva e observando, o frio rastejando constantemente por suas roupas, sob sua pele, em seus ossos. A bruxa ficou em silêncio, seu corpo ainda contra o dele. Várias vezes, ele teve que sacudi-la para mantê-la consciente. — Fale comigo, querida — ele disse finalmente —, se você adormecer agora, nunca mais acordará. — Ele a sentiu se animar um pouco com isso. — Qual o seu nome? — Anya — ela disse, rápido demais para ser verdade. Outra mentira, mas Ramson fingiu assentir seriamente. — Anya. Eu sou Ramson, embora você já soubesse disso. De onde você é, Anya? — Dobrysk. Ele riu. — Falante, não é? — Ele conhecia a cidade de Dobrysk... um pequeno e insignificante ponto no mapa no sul de Cyrilia. No entanto, apesar de seus melhores esforços para mascarar, ela tinha um tom de sotaque do norte em seu discurso, junto com a cadência fraca da nobreza Ciriliana. — O que você fazia em Dobrysk? Ele a sentiu ficar tensa contra ele, e por um momento desejou poder retirar sua pergunta. Parecia uma boa oportunidade, em seu estado semicongelado e semiconsciente, para descobrir mais sobre ela. Descobrir seus segredos e usá-los como alavanca contra ela mais tarde. Que ela era uma Afinita era sua primeira, e única, por enquanto, pista. Certamente uma Afinidade tão forte quanto a dela teria merecido um lugar entre as Patrulhas Imperiais? As rodas em sua mente giraram, e ele pensou no comando em seu tom, o olhar crítico em seus olhos quando falou com ela pela primeira vez, a inclinação de seu queixo afiado. Definitivamente havia uma educação nobre em seu sangue, talvez ela simplesmente tivesse mantido sua Afinidade escondida para se proteger. Não era incomum em Cyrilia, uma vez que a Afinidade de uma criança se manifestasse, a habilidade de ser mantida escondida ou subjugada. Essa era a proteção que o poder e o privilégio ofereciam aos ricos. Uma segurança, pensou Ramson, que os pobres simplesmente não podiam pagar. Afinitas sem meios para subornar os funcionários ao silêncio eram obrigados a registrá-los em uma seção de seus documentos de identificação. Como cidadãos legais do Império, eles tinham permissão para procurar emprego, mas a marca em seus papéis os marcava como diferentes, como outros, como algo a ser evitado e, muitas vezes, temido. Cyrilia procurou controlar esses seres com habilidades dadas pelos deuses com pedra-negra e Deys'voshk. À medida que estrangeiros de outros reinos começaram a chegar à Cyrilia, em busca de oportunidades no império mais rico do mundo, os mercadores rapidamente viram a chance de explorá- los. E então os corretores apareceram. Eles começaram a atrair trabalhadores estrangeiros para Cyrilia sob falsas promessas de melhor trabalho e melhor remuneração, apenas para forçá-los a contratos desfavoráveis e prendê-los em um império distante, sem saída. Com o tempo, a prática do tráfico de Afinitas prosperou, à sombra das leis. Nobreza ou não, essa garota era Afinita e fugia. E Ramson não queria nada com isso. Era simplesmente mais fácil olhar para o outro lado. De qualquer forma, essa garota tinha algo a esconder. E se Ramson tinha uma habilidade, era desenterrar segredos, não importa quão profundamente enterrados. Seu silêncio teimoso estava se arrastando, então ele voltou a uma pergunta relativamente inócua: — O Vinho do Sol realmente tem um gosto melhor no Sul? Eles continuaram assim, Ramson falando e provocando respostas de uma ou duas palavras da garota. Apesar da conversa que manteve, ele podia sentir suas mãos e pés ficando dormentes e seus músculos ficando cansados. A escuridão tinha se aproximado constantemente deles, e Ramson teve que piscar para distinguir quais eram as árvores e quais eram as sombras. O tempo parecia andar em círculos, e ele começou a se perguntar se ele próprio andava em círculos. O frio insuportável estava confundindo seu cérebro; ele ficava olhando por cima do ombro, imaginando o estalar ocasional de um galho ou o estalar da neve. O Império Cyriliano abrigava perigos diferentes dos de sua terra natal; ele ouvira falar de espíritos de gelo “syvint'sya” que se ergueram das neves, de modo que viajantes perdidos foram descobertos anos depois sob o gelo permanente. Lobos de gelo que surgiram do nada e caçavam em bandos. Ramson nunca tinha viajado sem um globo de fogo que queimava continuamente durante a noite para afastar as criaturas da Syvern Taiga. Agora a escuridão parecia pressioná-lo. Ramson parou. Seu coração batia forte em seus ouvidos... mas havia algo mais. Ele escutou, as palmas das mãos vazias sem o calor reconfortante de uma bola de fogo repousando nelas e iluminando o caminho. A escuridão tendia a ceder a pensamentos mais sombrios. E então ele ouviu, aquele snap-snap-snap de galhos e o farfalhar da vegetação rasteira, várias dezenas de passos atrás dele. Alguém – ou alguma coisa – os estava seguindo. O medo o picou. Ramson se escondeu atrás da árvore mais próxima, e depois de reequilibrar a bruxa em suas costas, ele se acalmou e se esforçou para ouvir sobre o martelar de seu próprio coração. Ali. Farfalhar e estalar se aproximaram, como se algo grande estivesse se movendo entre as árvores. Prendendo a respiração, ele ousou olhar por trás da árvore e sentiu suas pernas virarem algodão. Uma enorme forma escura passou, tão perto que seu cheiro mofado de animal molhado flutuou por ele. Ele parou para cheirar o ar e soltou um rosnado profundo. Ao virar a cabeça para examinar a periferia, o coração de Ramson afundou. Ele reconheceu o corpo maciço, o rosto pálido, os olhos brancos brilhantes. Um urso lunar. O temível predador do Império do Norte era apenas um sussurro nos lábios dos caçadores, uma oração para que eles mesmos nunca encontrassem um. A mente de Ramson entrou em ação. O urso lunar dependia de sua visão e audição para caçar, o que significava que, enquanto permanecesse quieto e fora de vista, ele teria uma chance de sobrevivência. No entanto, não havia como esperar; eles congelariam até a morte. Ele sentiu o corpo da bruxa escorregando em suas costas. Uma ideia lhe veio à mente – uma ideia tão feia que ele se envergonhou dela, mas a considerou mesmo assim. Se jogasse a garota para o urso e corresse, ele sobreviveria? Ela já estava inconsciente e era improvável que se recuperasse a menos que chegassem a algum lugar quente em breve. Uma parte dele quase soltou um meio soluço, meio riso, enquanto pensava inevitavelmente na popular piada Ciriliana. Ele foi, literalmente, pego entre o Urso e o Louco. O urso lunar ergueu sua cabeça desgrenhada, seu corpo enorme parando. Ele ergueu as orelhas. E virou-se para eles. Ramson captou o brilho de seus olhos brancos como uma tumba e o corte de suas presas na noite. Apesar do tremor em suas pernas, ele se agachou em uma postura defensiva. Sua adaga apareceu em sua mão livre. Não havia nenhuma chance no inferno de que ele ganhasse uma luta como essa, friae apertada e sobrecarregada por uma garota inconsciente. No entanto, apesar do que ele era, apesar de todas as vidas que arruinou e tudo que fez, Ramson sabia que não poderia viver consigo mesmo se pelo menos não tentasse. A uma dúzia de passos de distância, os arbustos chacoalharam de repente, como se um animal assustado tivesse disparado para eles. Ramson congelou. A atenção do urso lunar mudou. Sua cabeça, maior que o torso de um homem, girou lentamente. Os arbustos balançaram novamente. Algo disparou, indo na direção oposta. Ramson podia ouvir a criatura desajeitadamente quebrando galhos e farfalhando entre os arbustos em seu caminho. O urso lunar deu um rosnado baixo. Ele girou seu corpo gigantesco e se arrastou em direção ao barulho sem olhar para trás. Ramson esperou que o som de batidas e grunhidos desaparecesse antes de perder o fôlego. Ele se inclinou contra a árvore, deslocando o peso da garota Afinita entre seus ombros. A noite havia caído, seu abrigo não estava à vista. Um galho estalou atrás dele. Ramson se virou, apertando sua adaga com mais força. E olhou. Havia uma silhueta ao lado da árvore, delineada contra a neve e a lua. Não, não uma silhueta... uma criança. Ela levantou a mão e acenou para eles. Ramson o seguiu. Se ele ia se defender, imaginou que suas chances eram melhores com uma criança que mal tinha metade do seu tamanho do que com o urso lunar. *** A caminhada parecia durar uma eternidade e Ramson se viu tropeçando cada vez mais à medida que sua fadiga se tornava cada vez mais insuportável. A garotinha serpenteava pelas sombras como um espírito da floresta. Mais algumas dezenas de passos se passaram. A neve parecia ficar prateada, e as árvores tornaram-se contornos sólidos novamente. Luz, Ramson percebeu. Havia luz vindo de algum lugar próximo. Gradualmente, a floresta se abriu para revelar uma pequena dacha de madeira enfiada em um anel de árvores. A luz de uma janela se derramava sobre a neve intocada, e os joelhos de Ramson quase se dobraram de alívio. À sua frente, a criança abriu a porta fina de madeira e entrou. Um fogo crepitava na lareira e o calor o envolveu como um abraço de mãe. Ramson gemeu quando colocou a bruxa no chão em frente ao fogo e começou a remover as roupas geladas de suas costas. Seus dedos deslizaram nos botões, e ele mal conseguiu reunir energia suficiente para tirar a camisa. Ele caiu no chão em uma pilha seminua, absorvendo o calor do piso de madeira seco. Ele desejou nunca se levantar de novo, desejou nunca mover outro músculo. Mas, eventualmente, ele ouviu farfalhar e passos pequenos e leves. Ramson abriu um olho. A criança estava agachada próximo à bruxa, suas mãos esvoaçando pelo corpo da Afinita como um par de pássaros nervosos. Ele observou seu cabelo escuro que caía macio sobre seus ombros, o turquesa brilhante de seus olhos – uma cor que o lembrava dos mares quentes do sul. Filha de um dos Reinos Asáticos, pensou Ramson, com um estranho acorde de simpatia ressoando nele. Ele tinha mais ou menos a idade dela, talvez alguns anos mais velho, quando chegou pela primeira vez às costas Cirilianas, faminto, assustado e totalmente perdido. No entanto, uma crescente sensação de mau presságio fez sua pele arrepiar quanto mais ele a olhava. Como Mestre Portuário do maior posto comercial de Cyrilia, ele poderia pensar em uma razão mais sinistra para uma criança de um reino estrangeiro estar aqui sozinha. A região Asática, em particular, era conhecida por seu grande número de migrantes que procuravam oportunidades de trabalho em outros reinos, especialmente o Império de Cyrilia, impiedosamente impulsionado pelo comércio. Ramson tinha visto os navios fantasmas atracarem em seu porto em noites sem lua, observado as figuras – homens, mulheres e crianças – furtivas através das sombras. Os Afinitas se tornariam fantasmas neste império estrangeiro, sem identidade, sem lar e sem ninguém a quem recorrer, seus apelos lavados pelo arrastar das ondas sob uma lua cruel. Ramson também se virou. A criança pressionou dois dedos no pescoço da bruxa. Preocupação ondulou em suas feições. Ramson respirou fundo. — Ela está viva? — Sua voz arranhou. A terna preocupação moldando as feições da criança desapareceu em um instante, como se alguém tivesse fechado um livro. Ela o olhou de uma forma notavelmente semelhante à bruxa, sua pequena boca franzida. Ramson tentou novamente. — Quem é você? Como nos encontrou? Seus olhos se estreitaram em fendas. Ramson não conseguia entender como essa pessoa diminuta podia parecer ainda mais feroz que a bruxa. — Quem é você? — ela atirou de volta. — Eu sou um amigo. — Você está mentindo. Ana e eu não temos outros amigos. Mas está tudo bem — ela adicionou presunçosamente —, se você for ruim, eu vou te matar. Ramson suspirou. O que havia com ele e conhecer mulheres assassinas hoje? — Olha — ele disse —, ela está tremendo. É um bom sinal. Precisamos aquecê-la lentamente. — Ele avaliou a sala. Havia uma prancha de uma cama encostada na parede oposta, um canto dela empilhado com cobertores. A lareira estava em frente a ela, o fogo crepitando alegremente na pequena sala. Ao lado da porta havia uma velha mesa de madeira repleta de pergaminhos e canetas. — Pegue para ela alguns cobertores e roupas secas, e vamos colocá-la perto do fogo. Acho que ela está meio adormecida. Aqueça um pouco de água do banho para ela. A criança o avaliou por mais alguns momentos, como um gato decidindo se o atacava ou confiava nele. Eventualmente, ela decidiu pelo último, e se arrastou em direção ao lavabo no fundo do cômodo. Ele ouviu o som de água espirrando. E isso o deixou com... apenas uma tarefa. Gemendo, Ramson forçou-se a ficar de joelhos, de pé. Ele se abaixou e, com um esforço para trás, levantou a bruxa em seus braços. Ele estava tremendo enquanto atravessava a sala em várias passadas, abrindo a porta do pequeno banheiro. Uma vela solitária ardia lá dentro, iluminando a banheira de madeira úmida. Gentilmente, ele baixou a garota para dentro. Ela murmurou algo e estremeceu quando ele se afastou. Ele franziu a testa enquanto afastava uma mecha de seu cabelo escuro, lançando um olhar desconfiado para as linhas afiadas de suas maçãs do rosto e o traço ousado de sua boca contra sua pele. Ela se parecia com os Cyrilianos do Sul de pele marrom que moravam nas montanhas Dzhyvekha, nas fronteiras do Império Cyriliano e da Coroa Nandjian. Uma minoria entre os Cyrilianos do Norte predominantemente justos que detinham a maior parte do poder e privilégio em todo o Império. E... ele teve a estranha sensação de que ele... a tinha visto em algum lugar antes. Balançou sua cabeça. O frio estava chegando até ele. Ele a deixou com a criança Asática e cinco baldes de água morna. Ele se inclinou contra a porta trancada, ouvindo os sons de respingos e silêncio. Como água, seus pensamentos giravam. Por que a salvou do urso lunar, mesmo quando ela estava meio congelada e inútil e um peso morto para ele? O Ramson Quicktongue que ele conhecia, aquele que toda a rede criminosa desconfiava, mantinha apenas os fortes e úteis ao seu lado; os fracos eram rapidamente descartados ou sacrificados. No entanto, na escuridão e solidão da floresta Ciriliana coberta de neve, o frio o mudou, espremendo todo cálculo lógico dele até que não era nada além de instinto cru. E o instinto guiou suas ações esta noite. Ele apertou os olhos. Ele pensou que tinha apagado aquela pequena lasca de bondade dentro de si sete anos atrás. Ele jurou a si mesmo que nunca seria um dos fracos novamente, que nunca daria mais do que recebia. Ele respirou fundo. Abriu os olhos. A sala voltou com uma visão cristalina. Ele tinha ajudado a bruxa até aqui. Ele tinha dado. Agora era sua vez de tomar. 4 Ana quasese afogou duas vezes na vida. A primeira vez foi há dez anos, no auge do inverno. A neve havia pintado o mundo com uma extensão brilhante de branco, salpicado com os vermelhos rubi, verdes esmeralda e azul safira do Mercado de Inverno Salskoff. Ornamentos brilhavam em prata e ouro como pequenos espíritos de gelo enquanto a família Imperial passava em seu desfile anual da cidade para dar as boas-vindas à chegada de sua Divindade Patrona. Pandeiros tilintavam, música tocava, pessoas giravam do lado de fora em rajadas de gaze branca e faixa prateada. A empolgação diminuiu até a dor de cabeça que mantinha Ana na cama nos últimos dias. Ela segurava a mão de Luka enquanto esperavam que a carruagem parasse, para a caminhada pela cidade quase de conto de fadas, anunciada e amada e repleta de presentes pelos cidadãos de seu império. No entanto, quando as portas se abriram e os cheiros de carne assada, legumes temperados e peixe assado entraram, Ana sentiu uma onda de náusea. Havia algo se contorcendo sob todo o barulho da multidão, os ornamentos coloridos, as peles e as joias apertadas no pescoço das pessoas, os cheiros e as visões. Batia em sua cabeça, latejava em suas têmporas. Ela se lembrava distintamente da panela de sopa de beterraba, grossa e borbulhante e tão vivamente vermelha. E então aquela energia vibrante dentro dela explodiu, um carmesim afiado que encharcou cada canto de sua visão, correndo por suas veias. A batida quente e pulsante do sangue varreu seu mundo, abafando todo o resto. Ela só se lembrava das consequências. Os corpos na frente de sua carruagem, retorcidos nos paralelepípedos; o vermelho, florescendo como flores de papoula em uma tela de neve incolor. Ana havia matado oito pessoas naquele dia. O alquimista do Palácio, um estranho careca com olhos excessivamente grandes e um comportamento quieto, a diagnosticou naquela mesma noite. Ela se lembrou do brilho frio de seu Deys'krug prateado quando ele levantou a mão trêmula para sussurrar no ouvido do Imperador. Uma Afinita, ele disse a papai. Uma Afinita de sangue. Papai baixou a cabeça e o mundo de Ana desmoronou. Em uma janela do outro lado de seu quarto, ela viu seu reflexo. O rosto ainda manchado de sangue e lágrimas do mercado, o cabelo coberto de suor e cobrindo parcialmente os olhos... seus monstruosos olhos vermelhos. Seus braços estavam pesados, a pele esticada sobre veias inchadas e irregulares. Naquele dia, Ana se olhou no espelho e viu um monstro. Ela tentou correr atrás disso. Passando pelas empregadas que gritavam com sua aproximação; passando pelos guardas que se afastaram, perplexos e sem saber o que fazer. Ela não sabia para onde estava indo; tudo o que sabia era que tinha que fugir, longe do Palácio, longe de mamãe e papai e Luka e mamika Morganya, para que ela não pudesse machucá-los. A Ponte Kateryanna surgiu do borrão de suas lágrimas, estátuas de Divindades vigiando-a como guardiões conscientes. A ponte recebeu o nome de Mama, e Ana a observava todos os dias das janelas de seus aposentos, atravessando o rio gelado Cauda do Tigre que contornava o Palácio. Era um sinal. Tinha que ser. Lágrimas escorriam pelo rosto de Ana quando ergueu o olhar para o céu. Eu te amo, Mama, ela pensou. Leve-me para algum lugar seguro. Ana escalou o corrimão de pedra e se jogou no rio. O frio sacudiu seus ossos assim que ela atingiu a água, e a corrente implacável a puxou para baixo. Imediatamente, ela percebeu que qualquer esperança que tivesse de ser transportada para terras distantes pelas águas do rio, tinha sido tola. A água espumava ao redor dela, golpeando-a de uma forma que despertou um tipo diferente de terror dentro de si: incontrolável e tumultuado. Instintivamente, ela abriu a boca para gritar, mas a água entrou, espremendo o ar de seus pulmões. O pânico embranqueceu sua mente, e manchas floresceram diante de seus olhos enquanto ela lutava contra a água. Ela não queria morrer. Mas, talvez, as Divindades pretendessem reclamá-la hoje, afinal. Algo a agarrou em seu diafragma – algo diferente da pressão em seu peito e do frio em seus pulmões. O mundo girou em um turbilhão de correntes de gelo branco e caos mudo, mas percebeu que a corrente não a carregava mais. Ela estava sendo arrastada para cima, para cima e para a luz. Ela irrompeu na superfície, seus pulmões ofegando em doces e preciosas respirações de ar. Seus membros flutuavam fracamente nas águas violentas, mas havia um braço firme em volta de seu peito e alguém a puxava para a margem com movimentos fluidos e experientes. Seu salvador lutou na margem e, por fim, a depositou no chão coberto de gelo que se estendia por quilômetros ao redor. O sangue de Ana congelou quando se viu olhando nos olhos de seu irmão – olhos que ardiam de raiva. Todos os vestígios de alegria anterior haviam desaparecido do rosto de Luka, e ela pensou ter visto um vestígio do príncipe, o futuro Imperador Luka Aleksander Mikhailov. Seu irmão estava ofegante, o cabelo grudado na testa e encaracolado na nuca. O hálito escapou de seus lábios, pálidos de frio. — Pirralha — ele rosnou, e bateu com o punho no chão congelado com tanta força que rachou —, o que diabos você estava pensando? Seu tom a golpeou mais afiado do que a mordida de um chicote, e ela se encolheu. Seu irmão – gentil e calmo Luka – nunca gritou com ela assim. Ela pensou nos oito corpos mortos florescendo em vermelho no Vyntr'makt e baixou o olhar. — Eu sou um monstro — murmurou, seus lábios dormentes. Luka se curvou sobre ela, seu peso apoiado nos cotovelos. Seus ombros tremeram, e quando ergueu o olhar para ela, ele estava chorando. Em um movimento súbito, ele a puxou em seus braços e a abraçou apertado. — Nunca mais me assuste assim. Você poderia ter morrido. O turbilhão de seus pensamentos clareou, deixando apenas um: a percepção de que Luka estava com medo de que ela quase tivesse morrido. Ele não... ele não queria que ela morresse. — Eu sinto muito. — Sua voz estava alta e quebrada. — Eu... O Vyntr'makt... — Silêncio — Luka sussurrou, embalando-a —, não é sua culpa. Não é sua culpa. Ela se soltou então, a torrente de tristeza e culpa e desamparo, e por alguns momentos, os braços dele a seguraram juntos e suas palavras foram sua salvação. Quando ele se afastou, seus olhos – ela sempre pensara neles como a grama que florescia nos jardins do Palácio a cada primavera – endureceram com determinação, um fogo ardente, enquanto ele segurava o rosto dela com as mãos. — Você não é um monstro, sistrika. Um lampejo do Deys'krug prateado do alquimista. A cabeça baixa de papai. A resposta saltou para seus lábios. Uma Afinita. O alquimista sussurrou. Uma Afinita de sangue. — Minha Afinidade... — Sua Afinidade não a define. — Seu olhar cauterizou no dela; suas palavras cortando como metal batendo em pedra. — O que a define é como escolhe manejá-la. Você só precisa de alguém para ensiná-la a controlá-la. Ela adorava o jeito que ele dizia aquelas coisas – você não é um monstro; você só precisa de alguém para ensiná-la a controlá-la – como se fossem verdades simples. Era como se ele acreditasse nelas, e ela pudesse começar a acreditar também. — Como Yuri? — perguntou ela, pensando no amigo, um Afinita do fogo vários anos mais velho que ela, que trabalhava nas cozinhas do palácio como aprendiz do chefe. Sua Afinidade o tornou valioso. — Certo. Como Yuri. Luka se levantou e a puxou para cima. Estavam na margem do rio logo abaixo das muralhas do Palácio, um terreno abandonado. O rio os levara até os fundos do Palácio Salskoff; bem em frente a eles, Syvern Taiga começava em uma linha de pinheiros coloridos de inverno. Luka pegou a mão dela e se afastou da direção da ponte. — O que deveríamos fazer? O medo floresceu nela enquanto pensava em voltar ao Palácio,em enfrentar seu pai e a realidade do que havia feito. Mas o aperto de seu irmão aumentou e ele levou os dedos dela aos lábios, beijando suas unhas manchadas de sangue. Suas sobrancelhas estavam franzidas, seus olhos tempestuosos, mas gentis ao mesmo tempo. — Vamos voltar por uma passagem secreta que Markov me mostrou. Você vai se lavar em seus aposentos. A verdade do incidente no Vyntr'makt se perdeu na multidão e na confusão. Ninguém tem que saber. Sua mandíbula cerrou e ele ergueu o queixo ligeiramente, daquele jeito teimoso que ela conhecia tão bem. — Vou falar com papai. Direi a ele que você precisa de um tutor, como os que ensinam os Afinitas empregados no Palácio a aprimorar suas Afinidades. No entanto, naquela noite, papai tinha ido a seus aposentos, com as sobrancelhas franzidas. Ele muitas vezes vinha com mamãe para colocá-la na cama, mas desta vez, ele estava ao pé da cama dela, a distância entre eles se estendia por um oceano. Silenciosamente, ele a disse que ela teria que ficar dentro de casa por um tempo, pelo menos até que sua “condição” fosse embora. A história oficial para o mundo exterior era que a princesa estava doente, e sua saúde frágil tinha que ser preservada dentro dos muros do palácio. Ana caiu de joelhos, estendendo a mão para ele – e ele permaneceu onde estava, seu rosto esculpido em gelo. Isso a tinha quebrado um pouco mais. — Por favor — ela sussurrou —, não vai acontecer de novo. Eu nunca vou usar minha... minha Afinidade. Serei sua boa filha. Os olhos de papai estavam nublados. — É... não é aceitável que você seja uma Afinita — ele disse —, especialmente considerando sua Afinidade particular... Ela não deve ser amplamente conhecida, nem registrada em seus papéis. Tomaremos medidas para curar sua condição. É... para o seu próprio bem. Ana agarrou-se a essa pequena lasca de esperança. Talvez, se ela fosse curada, papai a amasse novamente. Dentro de uma lua, Papa contratou um tutor para “curar” Ana de sua Afinidade. Konsultant Imperator Sadov, eles o chamavam, e desde o momento em que Ana o conheceu, ela sabia que ele era feito de nada além de pesadelos. Ele parecia ter saído das sombras: uma silhueta alta e esguia, com cabelos e olhos escuros como pedra-negra, e dedos longos e brancos doentios. Sua cura centrou-se na teoria de que o medo e o veneno lavariam a Afinidade dela. E assim o mundo de Ana encolheu até os cantos do Palácio e as profundezas das masmorras, onde as paredes de pedra-negra sugavam toda a luz e calor do ar, e a escuridão a pressionava como uma coisa viva. — A maioria das Afinidades se manifesta lentamente, como uma consciência dos elementos de uma Afinita — disse Sadov, sua voz suave e fria como seda —, mas a sua explodiu, completamente fora de seu controle. Sabe por que isso acontece? Ana estremeceu. — Por que, Konsultant Imperator? — Porque você controla o sangue. — Ele tocou um dedo em seu queixo, e precisou de toda sua força de vontade para não recuar. — Porque você é um monstro. Naquela época, Mama adoeceu e, um ano após o incidente de Vyntr'makt, ela faleceu. Os cortesãos do palácio haviam sussurrado que havia sido um erro o Imperador tomar uma esposa de uma das etnias do sul de Cyrilia; algo em sua pele morena e cabelos escuros a fazia diferente. Algo que sua descendência havia herdado. Já havia murmúrios velados sobre a aparência distintamente Sulista do príncipe e da princesa, que se destacava entre os Cyrilianos do Norte de rosto pálido e cabelos louros que dominavam as classes dominantes de Cyrilia. Com a morte da mamãe e o confinamento de Ana, os rumores ficaram mais altos. Os humanos, ao que parecia, tendiam a temer coisas que eram diferentes. No entanto, foram as palavras de seu irmão naquele dia terrível que ficaram com Ana ao longo desses longos anos, nos trechos de escuridão e solidão, durante as piores raivas de Sadov e a frieza insensível de papai. Sua Afinidade não define você. O gosto amargo de Deys'voshk, queimando sua garganta e revirando seu estômago. O que a define é como você escolhe manejá-la. O medo nauseante, o frio da pedra-negra, o sangue pulsando nos pequenos coelhos que Sadov usava para testar suas habilidades, que nunca diminuíram nos dez anos seguintes. Você não é um monstro, sistrika. Ela queria desesperadamente acreditar nisso. Talvez as Divindades tivessem desejado que ela vivesse afinal de contas - e se não as Deidades, então Ana havia desejado viver. Era a esse pensamento que ela se agarrava agora, meio congelada e meio morta pela forte corrente do rio de Quedas Fantasma. Isso, e a memória de seu irmão, como uma chama firme e inabalável em seu coração, guiando-a adiante. Pois havia uma razão para ela viver, percebeu Ana, enquanto começava a emergir através dos acessos de sono e vigília grogue que, por sua vez, a reclamavam. Seus pensamentos surgiram através da escuridão e do frio, teimosamente, deliberadamente, como ela tinha feito naquele dia das profundezas geladas do rio. Sim, havia uma razão para ela viver. E era para encontrar o assassino de papai. *** A segunda vez que Ana quase se afogou, foi sob uma lua branca como osso, não muito diferente daquela que pairava sobre a Syvern Taiga esta noite, que esculpiu o mundo em monocromático. A noite de inverno de onze luas passadas tinha sido lançada na cor da morte. Ela entrou nos aposentos de seu pai para vê-lo convulsionando, seu rosto sem cor, seus olhos rolando em sua cabeça, o veneno e o sangue rugindo através dele como o grito distorcido de um rio. Ela tinha visto seu assassino, vestido com vestes brancas de oração, curvado sobre seu pai e derrubando o frasco de veneno. Ela avistou o rosto do homem momentos antes de ele correr: um rosto peculiar, mas familiar, como o de um homem morto, com olhos esbugalhados e careca. Ao luar, seu Deys'krug havia cortado prata como uma foice. O alquimista do Palácio. Alquimista. Assassino. Traidor. Ele era a razão de ela ter sido presa naquela noite. Ela foi encontrada muito tempo depois de ele ter fugido, ainda agarrada ao corpo de pai, coberta de sangue – o sangue envenenado que tentou tirar de seu corpo para salvá-lo. No final, ela perdeu o controle de sua Afinidade, e papai ainda morreu, bem na frente dela. E ela deveria ter morrido também, acusada de assassinar o Imperador e de ser uma traidora da Coroa. Enrolada contra as barras frias das masmorras do Palácio naquela noite, o sangue de seu pai ainda manchando suas mãos, nunca desejou tanto que ela não existisse, que ela nunca existisse. Porque você é um monstro. E mais uma vez, naquela noite, o destino, ou as Divindades, ou qualquer ditador perverso do curso das vidas, decidiu poupá-la. Ela acordou com o barulho das chaves e o ranger da porta de sua cela se abrindo. Um rosto envelhecido na escuridão com olhos cinzentos como nuvens e cabelos grisalhos. — Eu a sigo desde o dia em que você nasceu, então não me peça para ficar de lado e apenas assistir enquanto você morre — Markov disse a ela. — Não fui eu, não fui eu — ela balbuciou, agarrando-se a ele e caindo de joelhos. O rosto de Markov suavizou. — Eu acredito em você. Pegue o túnel e corra, princesa. Vou dizer a eles que você escapou quando eu estava te escoltando até aqui, e que você se afogou no Cauda do Tigre. — Ele acariciou suas lágrimas com seus polegares calejados. — Corra e viva. Viver. Isso parecia uma tarefa impossível. Mas Ana fechou os olhos, e aquele rosto voltou a ela: pálido como a lua, com grandes olhos de coruja. O alquimista, que havia deixado o Palácio tantos anos atrás, após seu diagnóstico. Parecia um sonho – não, um pesadelo – vê-lo ali novamente, um fantasma do passado. Mas um fantasma era toda a razão pela qual ela havia partido para viver. Aquele alquimista foi a razão pela qual ela correupor aquela passagem secreta nas masmorras naquela noite e se jogou no Cauda do Tigre pela segunda vez em sua vida; a razão pela qual se arrastou para a margem do Syvern Taiga, meio congelada por fora e morta por dentro, esperando que as Divindades a reivindicassem. No entanto, ele também era o motivo pelo qual estava de pé novamente naquela noite, olhando para o Palácio e a Ponte Kateryanna à distância e jurando que só voltaria quando o encontrasse. Sim, ela tinha uma razão para viver depois de todos esses longos anos, Ana percebeu de repente, seus pensamentos se aguçando em lucidez. Ela viveu para encontrar o dono daquele rosto, para caçar a pessoa que assassinou seu pai e a diagnosticou com essa aflição maligna, selando seu destino dez anos atrás. Ela viveu para se redimir, para provar que, além da monstruosidade de seu poder, ela poderia ser boa. Eu vou te encontrar, alquimista, pensou uma e outra vez, como um juramento. Eu vou te encontrar. 5 Ana acordou sobressaltada e o fantasma de um rosto se dispersando de seus sonhos. Levou vários momentos para ela compreender o que a cercava: o crepitar de um fogo queimando baixo na lareira, o cheiro de mofo de velhos pisos de pinho e o arranhar de um travesseiro de pano grosso sob sua bochecha. Ela se lembrava de lampejos da noite – o frio, a escuridão, o cheiro e a prata da neve, uma banheira quente. Ela tinha conseguido. Ela conseguiu voltar para a dacha. Ana agarrou o cobertor de pele esfarrapado com mais força, a surpresa latejando em seu estômago. Como ela tinha voltado? Lembrou-se da queda no rio, da sensação de total impotência sob a forte correnteza e depois rastejar para uma margem vazia e congelada. Suas roupas estavam mais frias que gelo, e ela mal conseguia se mexer. Você pode andar, querida? Ana piscou. A voz veio do nada – de uma memória nebulosa e distante. Havia uma floresta, um grama de calor, e aquela voz constantemente, irritada, a arrastava do conforto do sono. O medo tomou conta dela. Agora ela reconhecia os sintomas de quase hipotermia que estava experimentando, e quão perto da morte estava. Aquela escuridão quente tinha sido uma ameaça... e a voz a salvou. Ramson Quicktongue, pensou, seu cérebro sonolento subitamente alerta enquanto ela examinava a cabana. Tudo estava exatamente como ela havia deixado. Sua mochila estava encostada na parede, seus pertences espalhados pela pequena mesa de trabalho. Nenhum sinal de perturbação; nenhum sinal de qualquer intruso. Ana soltou um suspiro e se empurrou para uma posição sentada. Alguém havia lavado o sangue de seu braço, mas a ferida ainda estava crua e fresca. Ela se lembrava agora, uma garotinha de cabelo escuro, as pontas suavizadas pelo brilho das velas, quase como uma auréola. — May? — chamou suavemente. A cabana estava completamente quieta. Ela se recostou na parede, tentando acalmar sua ansiedade. O criminoso também não estava à vista. Os restos do Deys'voshk ainda estavam em seu sistema; ela podia sentir sua Afinidade começando a retornar, entrando e saindo de seu alcance. Tentar usá-la agora era como tentar atear fogo em gravetos molhados. Da porta do lavabo no canto mais distante veio o som de água espirrando. Os movimentos eram muito descuidados para ser May. Uma tosse masculina confirmou suas suspeitas. O criminoso ainda estava aqui. Ana cerrou os dentes contra um gemido de frustração. Ela passou meses procurando por este homem. Depositou todas as suas esperanças, e mais, nele. E ele a enganou, e admitiu que não tinha a menor ideia de quem era seu alquimista. E agora ela estava presa a ele. A porta da cabana se abriu. Seus pensamentos se dispersaram enquanto uma criança lutava com um balde de neve fresca. Assim que May viu Ana, seus olhos se arregalaram e ela largou o balde, saltando para o lado de Ana. Ana suspirou de alívio enquanto se enterrava no abraço de May. — Ei, você — ela murmurou. Estar com May sempre, de certa forma, era como estar em casa. A escuridão na floresta boreal tinha sido absoluta na noite em que Ana se deparou com a Syvern Taiga, embora não fosse nada comparado às sombras em seu coração. Mas May a encontrou e a abrigou sob o brilho suave de um globo de fogo. May estava vinculada por um contrato na época, mas isso não a impediu de tentar salvar Ana, sem o conhecimento de seu empregador. May se endireitou e encarou Ana com um olhar severo. Seus olhos eram a surpreendente água-marinha das águas oceânicas das Ilhas Asática que Ana tinha visto certa vez em uma pintura, beijadas pelo sol e quentes. Ana tocou sua testa brevemente na da criança, seus lábios puxando em um sorriso. — Você conseguiu o alquimista? — May exigiu. Onze luas atrás, quando elas se conheceram, ela estava muito mais quieta, suas palavras um sussurro leve. Apenas seus olhos rápidos diziam a Ana que ela bebia do mundo e o recolhia em seu coração, e retribuía com uma bondade que nunca havia sido demonstrada a ela. — Quase. — Ver May sempre clareava sua mente e acalmava seus nervos, e a palavra quase parecia real. — Você estava bem sozinha? May assentiu e uma pedra de cobre apareceu em suas mãos. — Eu tenho três moedas sobrando. Você os quer de volta? — A pedra de cobre captou o brilho da luz do fogo, uma pequena folha gravada no centro da moeda. Ana hesitou. Ela sabia o que aquelas moedas significavam para May, que passara a vida acumulando parcas somas de dinheiro para pagar a quantia impossível do contrato que fora obrigada a assinar. No passado, Ana poderia ter gasto dezenas de moedas em um pedaço de bolo de leite ptychy'moloko, moedas escorrendo por seus dedos como água sem se importar com o valor. O encontro com May havia mudado isso. Ana gentilmente enrolou uma mão em torno da mão de May, colocando a moeda de volta no punho da garota. — Nós conquistamos isso juntas. Fique com ele, e vamos comprar uma guloseima na próxima cidade. May colocou a moeda cuidadosamente de volta em sua túnica. — Você acha que vamos encontrar Ma-ma na próxima cidade? — ela perguntou. Ana fez uma pausa, estudando o rosto de May cuidadosamente, mas o olhar esperançoso da criança não vacilou. Assombrava Ana que essa garota amasse tão facilmente depois do que passou. Com o tempo, Ana juntou a história da criança: uma longa jornada do reino de Chi'gon, sua casa na região Asática, com sua mãe em busca de um futuro melhor, apenas para encontrar esses sonhos desfeitos e sua mãe mandada para longe por um contrato separado. E May havia sido explorada por sua Afinidade com a terra e presa a uma dívida que não parava de crescer. A cada dia, a percepção ficava cada vez mais alta na cabeça de Ana: poderia ter sido eu. — Vamos — respondeu Ana —, encontraremos sua mãe, mesmo que eu tenha que bater em todas as portas deste império. O sorriso de May se alargou, e ela jogou os braços ao redor de Ana, enterrando o rosto contra a camisa de Ana. — Você não vai sair de novo, certo? — Sua voz saiu abafada, e quando Ana olhou para baixo, ela pegou um par de olhos brilhantes do oceano olhando-a timidamente. — Não vá para onde eu não posso seguir. Um nó se formou na garganta de Ana. Ela conhecia a dor de ter perdido uma mãe em uma idade tão jovem. A sensação de que você tinha feito algo errado, que poderia ser abandonada por aqueles que amava novamente, nunca foi embora. Então Ana apertou May com força nos braços e sussurrou: — Estarei sempre aqui. O som de água espirrando chamou a atenção de ambas para o lavabo. Os olhos de May se estreitaram. — Aquele homem estranho trouxe você para casa, e porque ele meio que salvou sua vida, eu o disse que ele poderia tomar um banho quente antes de sair — disse ela. Ana sentiu seus lábios se curvando apesar de si mesma. — Garota esperta — ela disse conspiratoriamente. — Ele estava fedendo. E sujo.— Eu sei — disse Ana —, ele é nojento, estúpido e feio. — Era imaturo, mas era bom dizer de qualquer maneira. A porta do lavabo se abriu. Em um piscar de olhos, Ana se levantou da cama e empurrou May atrás de si. Seu braço ferido latejou com o movimento repentino, mas toda a sua atenção estava focada em Ramson Quicktongue. Ele se barbeou e limpou a sujeira do rosto. Agora podia ver que ele era muito mais jovem do que ela imaginava, talvez apenas alguns anos mais velho do que ela. Seu cabelo ruivo desgrenhado enrolado na testa, gotas de água traçando um caminho por suas bochechas esculpidas. O contraste de seu estado imundo e desleixado anterior o fez parecer surpreendentemente bonito, o tipo de rosto de boa aparência malandro mais condizente com um fuzileiro Bregoniano ou uma patrulha Imperial Ciriliana do que um bandido subterrâneo sombrio. Quicktongue atirou um sorriso para May. Ana imaginou que tinha presas. — Olá, querida. — Não fale com ela — Ana rosnou. Ela se virou e disse rapidamente: —, May, por favor, vá tomar um banho. A criança pegou o balde de neve e deslizou para dentro do lavatório. Ela se virou e, olhando para Ramson, passou um dedo pelo pescoço antes de fechar a porta. Um clique satisfatório soou quando a porta se fechou, e o coração de Ana se acalmou. Ela virou para Quicktongue. Ele estava machucado; em seus pulsos, onde terminavam as mangas de sua túnica, manchas vermelhas raivosas brotavam de onde ela havia rompido os vasos sanguíneos. A culpa se agitou em seu estômago, mas ela a forçou para baixo. Ele não hesitou em usá-la e traí-la. A culpa era uma emoção desperdiçada neste tipo de homem. A boca de Quicktongue se curvou em um sorriso que era ao mesmo tempo desonesto e encantador. — Bem, Ana, amor — disse ele, e suas entranhas ficaram frias —, aqui estamos. Você pediu minha ajuda, e eu pedi uma saída de Quedas Fantasma. Se, ao menos, os desejos se realizassem todos os dias. Ana engoliu uma resposta afiada. Esta não era uma discussão que ela estava tendo com Luka ou Yuri. Esta era uma postura calculada contra um inimigo. Não havia como saber o que ele estava planejando e o que estava escondendo dela – até mesmo seu sotaque, notou, havia mudado um pouco da noite anterior. Ela tinha que andar com muito cuidado. — Eu entreguei minha parte do trato — disse ela em vez disso. — Agora é sua vez. — Ela reprimiu o desejo de lembrá-lo de sua Afinidade, apenas para provar que poderia machucá-lo se quisesse. Que ela ainda tinha algum poder sobre ele. Que seu plano não tinha ido para... nada. — Eu não me importo se você não tem ideia de quem ele é ou onde está. Você vai me ajudar a encontrar o alquimista, e vai fazer isso em duas semanas. Já ouvi o suficiente de sua reputação e sei que você é capaz disso. Ele tinha que ser. Todas as outras buscas, caçadores de recompensas ou rastreadores pagos, levaram a becos sem saída. Ramson Quicktongue era sua última chance. Ana não disse isso. Quicktongue ergueu as sobrancelhas. — Você ouviu o suficiente da minha reputação — ele repetiu, como se saboreando as palavras em sua língua. Ele quase parecia satisfeito, mas então seus olhos se estreitaram —, e o que te faz pensar que eu vou te ajudar, agora que estou livre como um pássaro? Criminoso, conivente e traiçoeiro. Se ele queria jogar sujo, que assim fosse. Ela poderia ameaçá-lo. O pensamento permaneceu em sua mente por um tempo: uma coisa feia e distorcida que não queria trazer à luz. Mostre a ele o que você pode fazer, meu monstrinho. — Você se lembra do que eu fiz na prisão? — A memória do carmesim se acumulando nos corredores de mármore branco passou por sua mente. Enojou-a trazer isso à tona, mas ela forçou. — Eu poderia fazer o mesmo com você. — Ela deu um passo mais perto, a alegria empurrando-a para frente, a emoção do perigo atraindo-a para ele. — Você pode imaginar como seria morrer com sangue vazando de você, gota a gota? — Eu admito, isso doeu. — Ele molhou os lábios. — Mas há coisas piores a temer na vida. Seja qual for a tortura que você está pensando, eu provavelmente já passei por isso. Suponho que isso torna extremamente difícil me ameaçar, não é? Ana respirou fundo. Ele estava blefando... tinha que estar. E ele a estava desafiando a gritar seu blefe. Seus olhos se enrugaram enquanto a observava, esperando por sua resposta. Aqueles olhos eram olhos astutos, rápidos e inteligentes... mas não eram olhos de covarde. Eles não tinham medo. Ele aprenderia a temê-la. Assim como todo mundo aprendeu. Ana lhe lançou seu sorriso mais feroz. Sua Afinidade se agitou. Contra os remanescentes do Deys'voshk, ainda era fraca, mas cada vez mais forte. — Muitos outros cantaram a mesma música no início. Eu os tinha rastejando aos meus pés em poucos minutos. — Parece que você tem experiência. — Você não sabe nada do que eu passei. Vou perguntar mais uma vez, e espero, para o seu bem, que dê a resposta certa. Você vai me ajudar a encontrar meu alquimista? — Eu vou. Ana piscou. Os pensamentos sinistros, as memórias distorcidas e a atração de sua Afinidade se dissolveram. Tudo o que restou foi o crepitar do fogo na lareira, os sons de respingos do lavatório e o zumbido abafado de uma criança. — Você parece assustada. — Ramson Quicktongue ergueu as sobrancelhas. Se ela tinha conseguido o que queria, por que parecia que ele tinha vencido? Ana cruzou os braços, seu cérebro zumbindo enquanto ela falava. O que ela havia perdido? — Eu não acredito em você. — O que você está jogando? — Uma decisão sábia. Afinal, sou um homem de negócios. — Seu olhar se aguçou. — Nunca dou nada sem pedir algo em troca. A raiva cresceu nela, afiada e quente. — Em troca? Eu tirei você daquela prisão. Eu salvei você de apodrecer naquela cela. Você me deve. — Eu não pedi para você me libertar. Sugeri uma troca, mas não concordamos com nada. — Quicktongue falou em tom de conversa, como se estivessem negociando o preço das beterrabas em um mercado. Ana estava negociando por sua vida. — Então, eu não devo nada a você, Bruxa — ele continuou, cutucando uma unha —, mas eu estaria disposto a falar a linguagem dos negócios. Sua voz saiu em um rosnado. — Você acha que está em posição de pedir alguma coisa? — Ah, eu sei. Você tem me ameaçado com tortura nos últimos minutos. Se realmente quisesse fazer isso, você já teria feito isso. Claramente, você precisa de mim. Então, vamos parar de dançar em torno do assunto e vamos ao acordo, certo? Ele a havia chamado de blefe. O coração de Ana disparou quando ela olhou para o criminoso, recusando-se a quebrar o contato visual primeiro. Papai sempre lhe ensinara que o contato visual forte era uma demonstração de confiança. Mas mesmo enquanto ela lutava por uma resposta, percebeu que sua confiança estava diminuindo. Pirralha. Ela ouviu a voz de seu irmão em sua cabeça, viu o brilho de inteligência em seus olhos quando ele se inclinou sobre o jogo de xadrez. Pense. Luka havia dito a ela que uma negociação era como um jogo de xadrez. Para ter sucesso, era preciso considerar o fim do jogo acima de tudo. Parecia uma lição tão óbvia na época, mas Ana se viu agarrando-a com força agora. Seu objetivo, seu objetivo final, era fazer com que ele encontrasse o alquimista, o verdadeiro assassino. E agora o criminoso queria algo mais dela em troca. Por que não? Afinal, o que mais ela tinha a perder? Talvez nem todos os movimentos precisassem ser triunfantes, desde que ela estivesse se movendo em direção ao seu fim de jogo. — O que é que você quer? — ela perguntou, levantando o queixo. Dessa forma, era fácil fingir que ela era uma princesa concedendo um favor, não um ninguém implorando por ajuda. — Vingança — disse o criminoso. — E você acha que eu posso ajudá-lo a conseguir isso? — Talvez. Você está, afinal, me ameaçandocom seu poder sobre meu ser mortal. Claro, claro que ele queria usá-la por sua Afinidade. Ana estreitou os olhos. A voz de Luka sussurrou para ela, gentilmente a empurrando. Seja específica. Acerte os detalhes. — Diga-me o que seu esquema de vingança implica. E seja específico. O sorriso de Quicktongue se alargou como se ele encontrasse algo delicioso em sua resposta. — Tudo bem, serei específico. Planejo destruir meus inimigos um por um e retomar minha posição e o que era meu por direito. Para isso, vou precisar de um aliado. Alguém poderoso. E pelas Divindades... — ele deu a ela um olhar que era de alguma forma ao mesmo tempo carinhoso e calculista — você deve ser a Afinita de carne mais poderosa que eu já vi. Afinita de Carne. Ana quase soltou um suspiro de alívio. Carne, não sangue. Ela tinha guardado bem o seu segredo, e era imperativo que Ramson Quicktongue continuasse a pensar que ela era uma Afinita de carne. Porque enquanto havia centenas de Afinitas de carne, trabalhando como açougueiros, soldados ou guardas, havia apenas uma Bruxa de Sangue de Salskoff. Ramson Quicktongue não era tão inteligente quanto pensava. — Eu não vou matar ninguém por você, se é isso o que quer. — Matar? Eu nunca disse “matar”. Disse “destruir”. Há muitas maneiras de destruir um homem além de tirar sua vida. Os bartenders e caçadores de recompensas descreveram Ramson Quicktongue como astuto e implacável. Ela não os tinha entendido, até agora. Ana endureceu seus nervos. Ela ditava os termos, não ele. E ela nunca escolheria prejudicar pessoas inocentes. Sério? Sadov sussurrou em sua cabeça. Pequeno monstro, você se acha tão justa? Realmente acha que está acima desse criminoso, quando você tem tanto sangue em suas mãos... — Sem tortura — disse Ana em voz alta —, sem matar. Eu devo decidir como usar minha Afinidade em nossa aliança. Vou garantir que nenhum mal aconteça a você e que você possa despachar seus inimigos como desejar. Se concordar com esses termos, prometerei minha aliança a você por duas semanas. Depois de encontrar meu alquimista. Ele estreitou os olhos, batendo um dedo no queixo pensativo. — Três semanas — disse —, e em troca, quero três semanas para encontrar seu alquimista também. — Concordamos em duas. — Nunca concordei; eu considerei. — Não se prenda a detalhes técnicos. — Não seja teimosa. Nós dois sabemos que você precisa de mim, e eu preciso de você. É por isso que ainda estamos aqui, conversando de forma civilizada. Três semanas, Bruxa, isso é justo. Olha, vou fazer uma troca com você, para mostrar minha boa vontade. Ele parecia sincero, o que a deixou ainda mais cautelosa. — O quê? — Uma Troca. A promessa de um criminoso. — Você percebe que acabou de se contradizer, não é? Os cantos de seus olhos se enrugaram. — Acredite ou não, existe um código de honra entre os ladrões do submundo. A Troca. É um contrato de troca mutuamente benéfica. Pense nisso mais como um... um tipo de moeda, para nós. Uma vez que você invocar a Troca, não há como negar, caso contrário, você enfrentará consequências terríveis. — Por que isso importa? Você enfrentará consequências terríveis se renegar sua oferta, com Troca ou sem Troca. O criminoso suspirou. — Olha. Eu vou encontrar seu alquimista — ele disse, e Ana sentiu a esperança farfalhar suas asas dentro de si —, farei isso em três semanas. Eu poderia rastrear o jetsam2 de volta ao navio, se quisesse. E em troca, você jurará fidelidade a mim por três semanas. Parecia bastante simples. 2 Material ou mercadorias indesejadas que foram jogadas ao mar de um navio e lavadas em terra, especialmente material que foi descartado para aliviar o navio. — Tudo bem — disse Ana. Sua mente estava trabalhando rápido, procurando buracos no acordo, abotoando o último dos termos —, então você concorda com meus termos? Ramson Quicktongue a olhou daquele jeito calculista e inescrutável dele, mas Ana sentiu algo mais em seu olhar. Algo como... curiosidade. — Muito bem — disse ele finalmente, e se empurrou para fora da parede, jogando a toalha no chão —, eu concordo com seus termos. Seis semanas juntos, durante as quais eu mantenho meu nariz fora de seus negócios e você mantém seu nariz fora do meu. Você terá sua vingança, eu terei a minha, e nos separaremos com nada além de boas lembranças um do outro. — Ele abriu os braços. — O que você diz, Bruxa? Troca feita? Sua cabeça estava leve com júbilo e descrença. Era como se um peso enorme tivesse saído de seu peito. Ela sobreviveu a uma fuga de uma das prisões mais seguras do Império e conseguiu que um dos bandidos mais infames do Império Cyriliano concordasse com uma barganha em seus termos. E, o mais importante, dentro de três semanas, ela teria o verdadeiro assassino daquela noite inesquecível. Levou quase um ano inteiro para ela chegar aqui. Várias luas para sair do buraco negro que a morte de papai havia deixado em seu coração; vários outras desperdiçadas em caçadores de recompensas e rastreadores que não chegaram a lugar algum; mais algumas para encontrar Quicktongue e formar um plano para entrar em Quedas Fantasma. Ela estava perto. Tão perto. Quase um ano atrás, papai foi assassinado e tudo em sua vida desmoronou. E, em três semanas, ela estaria a caminho de Salskoff para limpar seu nome. Esse era seu jogo final. Ana olhou para a mão de Quicktongue. No sorriso torto em seu rosto. No brilho de intenção em seus olhos. — Troca feita — ela repetiu, e agarrou sua palma. 6 Ramson acordou muito antes da primeira luz do amanhecer, seus frios raios azuis filtrando-se pelas cortinas esfarrapadas e beirando a janela fina. Ele se inclinou contra as paredes de madeira do barraco, passando os dedos pela parte interna do pulso esquerdo. Uma tatuagem do tamanho de seu polegar ocupava aquele local: um desenho simples e elegante de um único talo de lírio do vale, com três pequenas flores em forma de sino e um caule afiado. A tinta era negra como a noite, esculpida tão profundamente em sua pele que se tornou parte de sua carne viva, assim como a Ordem do Lírio consumiu sua vida. E depois a destruiu. A visão da tatuagem trouxe de volta memórias tão vívidas quanto dolorosas. Era como se nenhum tempo e todo o tempo do mundo tivesse passado desde que ele tropeçou nos degraus de mármore reluzentes da casa de Alaric Esson Kerlan. Kerlan foi o fundador da maior empresa de negócios em Cyrilia. O extenso Grupo de Negociações Água-Dourada detinha monopólios sobre a maioria das indústrias proeminentes do Império – madeira, metais não ferrosos, armamento e a preciosa pedra-negra extraída no extremo norte do Triângulo de Krazyast –, bem como a propriedade privada do porto comercial mais movimentado de Cyrilia, Porto Água- Dourada. O porto comercial que Ramson tinha dirigido, até várias luas atrás. Mas poucos associavam o Grupo de Negociações Água-Dourada à organização criminosa mais notória de Cyrilia: a Ordem do Lírio, que administrava negócios clandestinos com traficantes e comércios afins ilegais. O trabalho contratado era a espinha dorsal do Grupo de Negociações Água- Dourada, e os contratos de trabalho baratos que ele comprou da organização criminosa de seu proprietário ajudaram a manter seus preços mais baixos nos mercados Cyrilianos. Em meio a tudo isso estava Alaric Kerlan: empresário bem-sucedido que havia construído seu império comercial como estrangeiro em Cyrilia com apenas uma pedra de polícia em seu nome, e implacável Senhor dos Lírios no submundo escuro de Cyrilia. No dia da iniciação de Ramson, Kerlan o amarrou a uma dura mesa de ferro em seu porão e esmagou uma pinça incandescente na carne de seu peito. Você sente isso, garoto? ele gritou para um Ramson gritando e meio delirante. Você só sentirá dor assim duas vezes na vida. A primeiravez, quando ganhou minha confiança e passou pelos portões do inferno para a Ordem do Lírio. A segunda vez, quando você quebrar essa confiança e eu te jogar de volta no inferno. Então, lembre-se deste momento, e lembre-se bem. E pergunte a si mesmo se você quer sentir esse tipo de dor novamente. Kerlan jogou as pinças de ferro no chão e pediu ao mestre de estêncil para tatuar Ramson. Ramson fechou a mão sobre o pulso, bloqueando a visão da tatuagem e a memória da dor lancinante da marca. No brilho azul-prateado de um amanhecer invernal iminente, ele podia apenas distinguir os contornos das duas garotas adormecidas, encolhidas sob um cobertor de pele esfarrapado, seus peitos subindo e descendo a cada respiração. O que significava que era hora de ele se mover. Ele atravessou a dacha, cuidadosamente plantando os pés perto das paredes onde as velhas tábuas de madeira tinham menos flexibilidade. Ele notou a pequena mesa de trabalho ao lado da porta assim que entrou na noite passada. Sua superfície desgastada estava coberta de papéis, pergaminhos e canetas. A vida havia ensinado a Ramson que ele nunca se permitiria pegar a ponta mais curta do bastão. Mesmo quando as condições para o fim da Troca haviam saído de sua língua, suaves como bolas de gude, outro plano rapidamente tomou forma em sua mente. Esta garota era, de longe, a Afinita mais poderosa que ele tinha visto neste império durante todos os seus anos de trabalho para a organização de Kerlan. Ele estudou o suficiente sobre Afinitas para supor que, a dela era, provavelmente, uma Afinidade com a carne. Ele poderia elaborar uma lista interminável de pessoas que matariam por seus talentos. E era por isso que ela era a chave para ele recuperar sua posição na Ordem do Lírio. Alaric Kerlan era uma pessoa dura e brutal, o tipo de demônio de olhos frios e de pedra de um homem que precisava ser para ter sucesso em seu vasto império criminoso, mas também era lógico. Ele tinha visto o incrível talento de Ramson para comércios e negociação desde o início, e o treinou desde pequenos recados até o gerenciamento gradual de partes de sua empresa. Aos dezoito anos, Ramson tornou-se um deputado da Ordem com o precioso Porto Água-Dourada sob sua alçada. Controlar o maior porto de Cyrilia significava que ele segurava uma mão e um corte generoso no sangue vital de comércio exterior de Cyrilia, de qualquer coisa tão inofensiva quanto peixe Bregoniano e cacau nandjian ao poderoso armamento kemeirano. Também significava que ele tinha o poder de começar a se distanciar da Ordem do Lírio. Durante a maior parte de seu emprego sob Kerlan, Ramson tinha sido um grumete executando tarefas domésticas e conduzindo esquemas paralelos para aumentar as margens da organização criminosa. Ele tinha ouvido falar dos negócios de sangue que eles realizavam, mas com a pouca liberdade que teve para escolher seus projetos, ele continuou a enganar homens ricos e empresários trapaceiros: derrubar concorrentes do Grupo de Negociações Água-Dourada para permitir que mantivesse seu monopólio no Império. Os atos mais sombrios da Ordem – assassinatos e tráfico – estavam além do que Ramson podia suportar, e ele se esforçou para evitar ser designado para tais tarefas. Até um ano atrás, quando Kerlan o escolheu para uma missão suicida que resultou em sua prisão, despojado de sua classificação e jogado em Quedas Fantasma. Ele falhou com Kerlan de muitas maneiras: estragou o trabalho mais importante de sua vida, deixou a Ordem sem um representante e deixou seu traidor vagando livre durante sua prisão. Ele consertaria tudo isso; com a ajuda da bruxa, ele acabaria com a toupeira nas fileiras de Kerlan e abriria caminho de volta como legítimo Deputado da Ordem, Mestre Portuário do Porto de Água-Dourada. E quando tudo isso estivesse feito... ele a entregaria para Kerlan. Ter uma Afinita tão poderosa quanto ela sob o controle da Ordem seria a cereja no topo do bolo. Ele pegaria de volta, pegaria tudo de volta. Seu título. Sua fortuna. Seu poder. Mas Ramson não se tornou o ex-deputado da rede criminosa mais notória do Império apenas por sorte. Ele era meticuloso e calculista em todos os aspectos de seu trabalho, e fazia um esforço para entender tudo, até as cores das cortinas das janelas e lençóis de seus associados. Não havia nada que não valesse a pena conhecer. E se havia alguma diligência a ser feita nesta pequena dacha em ruínas, tinha que ser na mesa de trabalho. A mesa estava repleta de objetos – uma riqueza de informações. Ele espalmou alguns globos de fogo empoeirados que haviam queimado, reduzidos a esferas de vidro vazias cheias de cinzas, e cuidadosamente empurrou para o lado alguns pergaminhos em branco e lápis de carvão. A primeira coisa que descobriu foi um livro, com a capa gasta a ponto de ele mal conseguir distinguir o título: Histórias de Crianças Asáticas. Alguém havia escrito várias linhas de um poema na capa interna; a caligrafia elegante lembrava a de um escriba profissional. Minha criança, somos apenas poeiras e estrelas. Ramson deixou o livro de lado. Ele pegou uma dúzia de pergaminhos em branco antes de encontrar o tesouro na forma de um mapa. Com dedos experientes, ele o soltou. O mapa se abriu com um suspiro. Como o livro infantil, mostrava sinais de desgaste: alguém havia feito anotações a lápis por todo o contorno do Império com a mesma bela caligrafia. Algumas das notas estavam manchadas pelo tempo, enquanto outras eram tão novas quanto um contrato recém-cunhado. As notas eram breves, mas diretas, escritas em Cyriliano formal. Buzhny, lia-se, diretamente em cima de onde a pequena cidade de Buzhny poderia estar no mapa. Investigação; nenhum sinal do alquimista. Pyedbogorozhk, disse outro; Inquérito para caçador de recompensas. Nome recebido do comerciante. O mapa era ouro. A bruxa – se isso fosse, de fato, seu mapa e sua caligrafia – escrevera a história de sua missão misteriosa por todo o mapa como um conjunto de pegadas. Ramson o colocou de lado com cuidado para examinar o resto dos itens na mesa antes de retornar a ele. Seus olhos se detiveram em algo no canto de uma página: o contorno de meio rosto, espiando da pilha. Ramson estendeu a mão para ele com muita ansiedade. As mangas de sua túnica ficaram presas em um pergaminho. Os papéis deslizaram, caindo em cascata em uma graciosa piscina na mesa de trabalho. Como se quisessem ser vistos. Eram esboços. Dezenas deles, espalhando-se umas sobre as outras na superfície áspera da mesa. Ele vislumbrou um cachorro de pelo desgrenhado, encolhido perto de uma fogueira; partes de um castelo abobadado no que parecia ser uma paisagem invernal; uma linda mulher de olhos de corça com longas madeixas... Mas seus olhos pousaram em um, esvoaçando na beirada da mesa como se tivesse vida própria. Um menino, em sua adolescência, pego no meio da risada, a alegria em seus olhos quase palpável. Tanto cuidado e esforço foram colocados neste desenho, as linhas traçadas com perfeição, cada detalhe gravado nas rugas de seus olhos e na curva de sua boca. Ainda assim, estava incompleto, apenas metade de um rosto. Parecia que o artista só queria capturar a vida no momento da risada. — Saia daí. Ramson praguejou e se virou. A bruxa estava de pé, seu contorno rígido de fúria. No quarto semi- iluminado, ele podia ver o aperto de sua mandíbula e o brilho de seus olhos semicerrados. — Abaixe isso, a menos que você queira que eu te rasgue em pedaços neste instante. Quaisquer desculpas que havia planejado se dissiparam em fumaça. Ele já havia sido pego em flagrante antes; Ramson descobriu que a melhor tática era admitir a culpa e mentir para sair dali. Até agora, ele teve sorte. Ele deslizou os esboços cuidadosamente de volta para a mesa. Os olhos da garota seguiram cada movimento dele.— Me desculpe — disse, injetando tanta sinceridade em seu tom quanto podia —, eu estava procurando um mapa. — Saia daí — ela estalou novamente, e ele obedeceu. Ela estava à mesa em um instante, seus dedos correndo pelos papéis, verificando para ter certeza de que nada estava faltando. Ela pegou o esboço do menino e olhou para Ramson, lívida. Por um segundo, pensou que ela mudaria de ideia e o mataria na hora. Mas, então, ela respirou fundo e tirou uma mecha de cabelo escuro de seu rosto. Como se tivesse limpado uma lousa, a fúria em sua expressão se foi, substituída por uma severidade fria —, fizemos uma Troca ontem à noite. Você tem um jeito engraçado de mostrar diplomacia. — Bem, você sabe o que dizem sobre diplomacia. É a única maneira adequada de duas partes mentirem na cara uma da outra e ficarem felizes com isso. — Não me dê sermão. Ramson ergueu as mãos. — Tudo bem, eu estava bisbilhotando. Mas, como você disse, fizemos uma Troca, então qual é o sentido de ficarmos presos um ao outro pelas próximas seis semanas se não podemos confiar um no outro? Atrás deles, na cama, May havia se sentado e escutava com a cabeça inclinada para o lado. Os olhos da bruxa se voltaram para a garota e sua expressão suavizou momentaneamente. — Tudo bem — disse ela, baixando a voz enquanto se voltava para Ramson —, já que você mencionou “confiança”. Aqui. Ramson pegou o desenho que ela lhe ofereceu. Este esboço foi envolto em sombras. Enquanto os outros pareciam capturar momentos e memórias, este capturou o assunto como um retrato. Ele reconheceu o homem na página: careca, com olhos grandes e desconfiados que estavam bem afastados de seu nariz fino. Era um esboço do mesmo homem que ela lhe mostrara na prisão. Seu alquimista. Este esboço tinha os mesmos detalhes meticulosos do outro, que provavelmente havia sido destruído em sua escapada na cachoeira. Ramson estudou o desenho mais de perto, observando as vestes brancas de sacerdote do homem e a argola das quatro Divindades penduradas em seu pescoço. — Este é um bom começo, Bruxa. Eu preciso que você me diga tudo o que sabe sobre ele. — Ele trabalhou no Palácio Salskoff dez anos atrás. Ele desapareceu e estava de volta em... em Salskoff onze luas atrás. Ele esperou por mais, mas ela fechou a boca com força. — É isso? — Eu não sei mais nada — disse ela secamente. Seus olhos ardiam, e suas mãos se fecharam em punhos enquanto falava. Quem quer que fosse esse homem, essa garota tinha uma dívida a pagar com ele. Ele descobriria o porquê em breve. Por enquanto, Ramson decidiu fazer uma pergunta diferente. — Um alquimista, você diz — ele meditou —, ele era um Afinita? Muitos alquimistas possuíam Afinidades únicas e foram contratados pela crosta superior de Cyrilia para prolongar e fortalecer vidas com suas práticas peculiares. Alguns dos alquimistas mais poderosos, Ramson ouvira falar, tinham Afinidades metafísicas. Dor. Calma. Felicidade. Intangíveis, cobiçados por quem tinha moedas de sobra. — Eu não tenho certeza — disse a bruxa, enrolando uma mecha de seu cabelo atrás da orelha. Ramson já havia percebido isso como um tique nervoso dela, como o jeito que mexia com o capuz —, ele preparava Deys'voshk e outros elixires. Provavelmente um Afinita, então. Sua mente se deteve em outro detalhe, no Deys'krug e nas vestes de oração. — Ele era um padre... ou um homem devoto? Você já tentou começar a partir daí? — Ele não era um homem devoto — ela disse amargamente, e então suspirou —, eu tentei isso. Procurei por ele por todo o Império, mas não encontrei nada. Os caçadores de recompensas que contratei nunca chegaram perto. — Amadores. Ela parecia querer dar um tapa nele. — Eu não estaria tão confiante. Se este homem não estiver na minha frente em três semanas, eu irei sangrá-lo até secar. — Relaxe — ele disse preguiçosamente, acenando com o desenho na frente dela —, eu tenho um plano. Ramson tamborilou os dedos no esboço. Dois avistamentos, com dez anos de diferença – a trilha estava mais fria que a morte agora. Mas ele tinha duas pistas: primeiro, esse homem trabalhava no Palácio. E que o homem provavelmente era um Afinita em fuga significava que ele poderia ter que reinventar sua identidade e se restabelecer. Mas se havia uma fonte que rastreava os movimentos dos Afinitas tão de perto quanto uma águia rastreava sua presa, eram os corretores de Kerlan. O pensamento de passear em seu território era algo que ele não gostava. Ramson olhou para a feiticeira e para a criança, com um aperto no estômago. Será que elas foram vítimas dos mesmos corretores de que precisavam para encontrar esse alquimista? — Bom. — Ana se lançou da mesa e marchou em direção à cama, onde pegou uma pequena bolsa debaixo das peles. May olhou para Ramson e logo começou a dobrar as poucas peças de roupa na cama e a enfiá-las na bolsa. — Nós partimos em uma hora. Suponho que você já tenha descoberto para onde estamos indo até lá. — Eu descobri. — Havia apenas uma cidade nas proximidades de Quedas Fantasma que estava fervilhando de traficantes Afinitas implacáveis, famintos por informações e recompensas. — Nós vamos para Kyrov. 7 O ar da manhã estava fresco, a neve brilhando e polvilhada com ouro de um sol distante quando eles partiram. O silêncio foi quebrado apenas pelo sopro de sua respiração, que se nublou no ar frio, e o ranger de suas botas na neve. A floresta boreal se estendia do Triângulo Krazyast na ponta mais ao norte de Cyrilia até as montanhas Dzhyvekha que faziam fronteira com Nandji no sul. Aqui, no Norte, a neve nunca derretia, mas mais ao sul, Ana sabia, o verão via as pontas de grama verde e pinheiros coníferas espreitando por baixo de um véu branco. Ana ergueu a mochila mais acima nos ombros, o farfalhar de seus pergaminhos e o tilintar de seus globos restantes estranhamente calmantes. Ao seu lado, May se arrastava, virando a cabeça de um lado para o outro para quaisquer sensações que ela sentia vindo da terra enterrada bem abaixo. Ela segurava um globo de fogo recém-aceso entre as mãos, as chamas dentro rastejando ao longo do óleo que revestia o vidro, aquecendo as mãos e fornecendo luz durante as noites. Elas passaram muitas luas viajando assim, só ela e May, um globo de fogo, a bússola que ela segurava nas mãos e o silêncio eterno da floresta. O que, no momento, estava sendo interrompido da maneira mais irritante possível. — Então, como vocês, duas lindas damas, vieram parar aqui? — A voz alegre de Quicktongue chegou até elas uma dúzia de passos atrás. Ana cerrou os dentes. May lhe lançou um olhar conhecedor e revirou os olhos. — Muito ao norte para uma garota das Ilhas Asáticas — continuou o criminoso. Um bando de saqueadores de pinheiro irrompeu em voos de alguns arbustos à frente. Ana estava prestes a girar e bater nele, mas o significado por trás de suas palavras a atingiu com um calafrio. Tudo o que Ramson Quicktongue dizia era deliberado, cada palavra cuidadosamente escolhida... dificilmente poderia ser coincidência que ele estivesse questionando a origem de May. E a última coisa que Ana queria era que o criminoso soubesse do status de May: uma Afinita perdida, sem identidade e sem proteção. — Não é da sua conta — ela respondeu. — Ah, mas é — Quicktongue pressionou naquele tom de voz que fez Ana querer estrangulá-lo —, já que vamos fazer parceria por seis semanas. — Vamos mantê-lo assim. Uma parceria, onde não falamos uns com os outros a menos que seja absolutamente necessário. — Isso é necessário. — Ele as estava alcançando agora, sua voz ficando mais alta e mais desagradável a cada segundo. O ranger de neve sob suas botas se aproximava. — Eu vou ter que manter vocês duas seguras, especialmente se nos depararmos com Mantos Brancos. Ana se virou. Sua última frase havia desencadeadouma série de faíscas em sua cabeça que se transformaram em fúria. — Manter-nos seguras? — ela repetiu, ignorando a forma como a seta da bússola girou em suas mãos para se reajustar. — Ouça, seu arrogante. May e eu sobrevivemos tanto tempo sozinhas, e não precisamos de você para nos manter seguras ou o que acha que precisa fazer. Isso foi uma troca, e eu vou te obrigar a fazer sua parte nisso. Nem mais nem menos. Ela estava respirando com dificuldade quando terminou, e percebeu que havia diminuído a distância entre ela e Quicktongue de modo que eles estavam apenas a dois passos de distância. Ele parou onde estava, seu rosto uma máscara congelada como a floresta ao redor deles. Seus olhos castanhos, no entanto, a observavam com a intenção e astúcia de uma raposa. — Tudo bem — ele disse suavemente, sua respiração se desenrolando em uma pequena pluma entre eles —, mas deixe-me perguntar uma coisa: você já esteve em Kyrov? Ana pensou em tudo o que tinha lido sobre a cidade comercial que prosperava por sua proximidade com o Triângulo Krazyast e seu comércio de pedra-negra cobiçada. A verdade era que ela podia recitar um volume inteiro de fatos sobre Kyrov... mas nunca tinha visto por si mesma. — Não — ela admitiu amargamente —, mas eu estudei. O rosto de Quicktongue se contorceu em um sorriso, e não foi um sorriso agradável. — Os vencedores escrevem história, amor. Já se perguntou por que o tópico da contratação de Afinitas é tão pouco visto em um livro Cyriliano? Parecia um tapa em seu rosto. Ela se lembrou dos tapetes macios do Palácio Salskoff, o crepitar da lareira e o cheiro de cadeiras de couro e livros velhos no escritório de papai. Ela e Luka passaram metade de seus dias sentados em sua mesa alta de carvalho, ouvindo-o ler as histórias de Cyrilia com eles em sua voz baixa e firme. Antes de adoecer, papai cuidara pessoalmente de sua educação. Ele não foi capaz de amá-la como Afinita... mas a amou, à sua maneira. Ela realmente acreditava que ele tinha amado. — Se você tem um ponto, faça-o — ela se pegou dizendo, embora seu coração não estivesse mais na discussão. — Kyrov é um lugar perigoso. Eu normalmente avisaria qualquer Afinita para ficar longe, mas visto que estou sendo obrigado a fazer minha parte do Comércio, é um risco que estou disposto a correr. — Quicktongue deu de ombros e passou por ela, a neve voando na esteira de seus passos. — Especialmente porque eu não sou um Afinita. Ele falou como se pudesse haver uma grande cidade em seu próprio império que fosse perigosa para um Afinita cruzar. Ana sabia que existia corrupção em seu império, mas não era como se os Afinitas fossem tirados das ruas. A ponta da bússola girou instável quando ela se virou para seguir Quicktongue para nordeste, em direção a Kyrov. Faltava meio dia de viagem, pelos cálculos dela. De alguma forma, a floresta parecia menos pacífica, a luz do sol fria e as sombras dos pinheiros chocando enquanto se estendiam pela neve. Foi só quando May deslizou uma pequena mão na dela que a respiração de Ana se estabilizou um pouco. Uma pequena bola de lama subiu do chão, pairando acima da palma de May. Com um movimento de seus dedos, disparou em direção a Quicktongue, acertando-o diretamente nas costas. — Eu sei que você gosta de se ouvir falar, homem arrogante — disse May enquanto elas passavam por ele —, mas fale de novo e eu vou mirar para o seu rosto. — Ela fez uma pausa e sorriu maliciosamente. — Você ficaria melhor também. 8 O primeiro vislumbre que Ana teve de Kyrov foi um feixe de pináculos brancos prateados que subia acima das árvores cobertas de neve. Depois de quase um dia de viagem, o sol estava baixo no Oeste, pintando a cidade com um brilho de ouro fosco. Quando os tijolos castanho-avermelhados das casas de dacha ficaram à vista, Ana pensou nas casinhas de gengibre que costumava fazer quando criança todos os anos em comemoração à chegada da Divindade do Inverno. Ana puxou o capuz enquanto as estradas de terra gradualmente se transformavam em paralelepípedos cinza-ardósia e os sons da vida da cidade surgiam. May manteve-se ao seu lado, os olhos arregalados e a cabeça virando de um lado para o outro. Depois que fugiram do patrão de May, elas se mantiveram em pequenas aldeias e cabanas de caçadores abandonadas. A multidão, o barulho e os cheiros das grandes cidades deixavam Ana ansiosa e, mesmo agora, tentava acalmar a inquietação em seu estômago enquanto caminhavam. No entanto, ela percebeu que seus olhos se demoravam em objetos involuntariamente: o tradicional azul-prateado de um manto kechyan, o vermelho vivo de uma boneca de damashka, o brilho de brincos de argola de ouro branco. Ela podia, tão claramente em sua mente, ver esses objetos como os conhecia em seu mundo, no Palácio Salskoff. Luka, vestindo seu kechyan Imperial com o emblema do tigre branco; Papai, ajoelhado ao lado da cama com sua primeira damashka nas mãos grandes; Mamãe, sentada em um sofá sob uma janela alta do Palácio, seus brincos pegando o sol enquanto ela jogava seu lindo cabelo escuro sobre o ombro. Sua garganta queimava com a dor inesperada das lágrimas. Ela piscou e voltou sua atenção para o objeto de distração mais próximo: um armazém de portas abertas. O calor abafado rolou em ondas bem-vindas, e o golpe de um martelo contra o metal derretido ressoou contra os sons do início da noite da cidade. No entanto, nas sombras, havia algo mais. Um menino de cabelos pretos e olhos cansados estava ajoelhado perto de uma fornalha, as palmas das mãos viradas para cima, as costas curvadas como um gancho. A fuligem cobria seu rosto, mas mesmo daqui, suas feições o marcavam como vindo de uma das Ilhas Asáticas. Mas seus olhos de meia- noite pousaram sobre as bochechas afundadas, sem vida e reduzidas até os ossos. — Você, garoto! — gritou o ferreiro, seu martelo parando no ar. — O fogo precisa ser mais forte! Os olhos do menino se voltaram para o ferreiro. Curvando-se, ele virou as palmas das mãos para as chamas. Elas brilharam, dançando rajadas de ouro e laranja que derreteram em um núcleo vermelho-sangue. Um ano atrás, seu olhar poderia ter varrido essa cena como um aspecto comum da vida cotidiana em seu império. Apenas mais um Afinita trabalhando, ganhando a vida como Yuri e os outros Afinitas do Palácio. Ela se lembrou de como Yuri ia à cidade e trazia guloseimas para ela, entrando sorrateiramente em seus aposentos tarde da noite quando Markov pegava seu turno na porta dela. Yuri estava contente; estava ganhando o suficiente para alimentar uma mãe e uma irmã mais nova em algum vilarejo ao sul. Mas agora, observando o garoto das Ilhas Asáticas aconchegado sobre o fogo, seu rosto manchado de fuligem manchado de suor e miséria, ela encontrou uma sombra de dúvida rastejando sobre seus pensamentos. Há pouco menos de um ano, ela tinha visto a mesma tristeza nas linhas dos olhos de May, nas cavidades de suas bochechas, na queda de seus ombros magros que tentavam levantar a túnica suja e mal ajustada dado ao desgaste. O desespero silencioso nos olhos do menino Asático lançou uma imagem espelhada para May naquela época. Um pressentimento frio se espalhou por ela; Ana percebeu que seus passos diminuíam. As ruas estavam cheias de gente rindo, tagarelando, passando pela oficina do ferreiro sem nenhuma preocupação no mundo. Ela tinha sido como eles um ano antes? Ela queria alcançar o menino, falar com ele, fazer alguma coisa. Uma mão envolveu seu pulso, puxando-a de seus pensamentos. O mundo voltou em um turbilhão de cores e sons, e ela percebeu que Ramson Quicktongue estava dizendo seu nome. Antes que pudesse se afastar, ele puxou ela e May para a loja mais próxima. A porta se fechou atrás dela, um sino soou no alto, e o cheiro de madeira flutuou até eles de uma lareira nos fundos. Elesestavam em uma loja de arte em laca. Tigres e vasos cobriam as prateleiras enquanto cisnes, falcões de gelo e fênix giravam suavemente diante das janelas, todos pintados com padrões rodopiantes de folhas, flocos de neve e frutas. Instintivamente, Ana colocou-se entre May e Ramson, encarando o criminoso. — O que você está fazendo? Ele se abaixou, seus olhos treinados em algo se movendo do lado de fora das janelas. Além das figuras de aves laqueadas, nas ruas de paralelepípedos do lado de fora, passou uma procissão. Três cavalos trotavam pelas ruas, os mantos brancos como a neve de seus cavaleiros flutuando orgulhosamente atrás. Tigres prateados brilhavam no peito dos cavaleiros e espadas de pedra negra brilhavam em seus cintos. — Mantos Brancos — Ramson murmurou em seu ouvido. Patrulhas Imperiais – a mais alta ordem de soldados do Exército Imperial Cyriliano, eram mantenedores da paz, destinados a monitorar e reprimir quaisquer confrontos entre cidadãos e afins. Mais importante, porém, armados com pedra-negra e Deys'voshk, eles foram treinados para lutar contra Afinitas caso saíssem do controle. Ana lembrou-se de visitar cidades em sua infância, antes que sua Afinidade se manifestasse. Ela se sentiu inexplicavelmente segura na presença das capas esvoaçantes e capacetes reluzentes das Patrulhas do lado de fora da janela de sua carruagem. Ela se lembrou de pensar que os Mantos Brancos a protegeriam de qualquer monstro que pudesse machucá-la. Exceto que agora ela era o monstro. — Ramson — ela disse calmamente, observando a procissão —, antes, você disse que precisaria nos proteger das Patrulhas Imperiais. O que você quer dizer com isso? Ela não queria ouvir a resposta. Mas sabia que precisava. Ramson lhe lançou um olhar e, por um momento, pensou que ele faria um comentário sarcástico para ela. Em vez disso, ele sacudiu o pulso, e uma única pedra de cobre de bronze apareceu entre seus dedos. — Tudo se resume a isso — disse, e começou a jogar a moeda entre os dedos, fazendo-a aparecer em um momento e desaparecer no próximo —, em um sistema quebrado, para que lado a lâmina aponta? — Ramson apertou a pedra de cobre e a ergueu. — Quem você acha que os paga mais? O império? Ou negócios lucrativos que dependem deles para explorar Afinitas que precisam de trabalho? O coração de Ana disparou; ela sentiu como se estivesse em queda livre, como se o chão estivesse desaparecendo lentamente abaixo dela. — Mas você viu? O olhar de Ramson estava fixo na moeda, cujas bordas brilhavam como a lâmina curva de uma foice. — Como eu disse, sou um homem de negócios. Seus lábios se separaram, mas ela não tinha palavras nem fôlego para discutir. — Este império está desmoronando — continuou Ramson —, o Imperador e a Imperatriz anteriores morreram, a princesa morreu há um ano e os abutres estão simplesmente esperando para ver quanto tempo Luka Mikhailov dura. — Ele jogou a pedra de cobre no ar; piscou à luz do fogo e desapareceu em suas palmas. — É cada um por si; o tempo dos aproveitadores e ceifeiros. Você sempre ganha se escolher o lado vencedor. O resto do mundo parecia distante e silencioso enquanto ela o observava se virar para a porta. Os Mantos Brancos haviam desaparecido. Multidões continuavam a se misturar nas ruas do lado de fora, mas tudo parecia diferente. — Olha, apenas me faça um favor — disse Ramson —, e fique longe dos Mantos Brancos, especialmente se eles tiverem um Afinita com eles. — A campainha tocou novamente quando ele abriu a porta. — Suspeito que você e a garota não estejam em posse de identificação... e tenho certeza que você sabe as consequências de ser pega. Arrepios subiram nos braços de Ana, e não tinha nada a ver com o vento frio que varreu a loja. Ele tinha que estar exagerando, ele falou como se pudessem estar em perigo, em plena luz do dia, no meio de seu império. No entanto, pedir-lhe para elaborar significava jogar em sua mão e revelar uma lacuna em seu conhecimento, uma fraqueza. Ana apertou os lábios e o seguiu. — É aqui que nos separamos por enquanto — disse Ramson —, o lugar que estou indo não é amigável para os Afinitas. Felizmente, o Mercado de Inverno está logo à frente nesta estrada. — Ele piscou para May. — Você gostaria de alguns doces, não é, amor? May mostrou os dentes para ele. — Ana me disse para nunca aceitar doces de estranhos — disse ela. Ramson parecia desanimado. — Espere. — Ana olhou para ele. — Você tem que nos dizer para onde está indo. — Ah, sempre o voto de confiança de você. — Ramson apontou para um beco lateral, longe do fluxo geral da multidão. — A Fortaleza do Urso Cinzento. Bem ali, com os telhados de telhas vermelhas. Trinta minutos é tudo que preciso; te encontro de volta aqui. Ana o observou passear pela rua. Se quisesse traí-la, ele poderia simplesmente tê-la deixado para morrer na margem do rio em Syvern Taiga. Ela não gostou, mas teria que deixá-lo ir por enquanto. — Ana! — May apontou, sua voz subindo de excitação. — O Vyntr'makt! As ruas diante delas se abriram e, por um momento, Ana pensou que estava olhando para uma das esculturas em miniatura que recebera de presente na infância. Dachas de cores vivas brilhavam como um crepúsculo dourado contra um sol de fim de tarde, lonas forradas de lantejoulas erguidas sobre barracas exibindo bugigangas e comida que fariam uma criança gritar. May o fez, apertando a mão de Ana e puxando-a para frente, ziguezagueando pela multidão. Uma bandeira com a cabeça de um tigre branco ondulou na entrada. Vyntr'makt, anunciou. E, abaixo, o lema do Império Cyriliano: Kommertsya, Deysa, Imperya. Comércio, Divindades, Império. O Mercado de Inverno, Vyntr'makt em Cyriliano antigo, era uma tradição em todas as cidades Cirilianas. Cada cidade decorava sua maior praça até o final do outono para aguardar a Fyrva'snezh – a Primeira Neve, uma noite que marcava o início do inverno e o despertar de sua Divindade Padroeira. O Vyntr'makt de Kyrov rivalizava com o Salskoff's com a riqueza de sua comida flutuando das barracas, a opulência de joias iridescentes e sedas espalhadas em expositores, a complexidade das estatuetas Cirilianas sagradas esculpidas em ouro branco. As vitrines das padarias forradas de pão assado com peixe, e as barracas ao ar livre ostentavam sopas frias de repolho, tortas de batata bovina e espetos de cordeiro assados com azeitonas. Inevitavelmente, no meio de toda a alegria, seu olhar foi atraído para uma única panela de sopa de beterraba fervendo ao lado de uma barraca de madeira. Vapor quente subiu de sua superfície carmesim, enchendo o ar com um cheiro pungente. Náusea torceu em seu estômago quando uma imagem familiar passou por sua mente. Oito corpos, espalhados como obras de arte retorcidas. Sangue, escuro e vermelho na neve. Deimhov. Monstro. — … Ana! Ela saiu da memória, as poças e os gritos carmesins se desvanecendo quando o Vyntr'makt de Kyrov voltou. May estava puxando sua mão. Seus olhos estavam fixos em uma barraca à frente, cheia de fileiras de tortas de maçã com mel, massa frita de caramelo e uma variedade de outras guloseimas. Ana examinou a escassa quantia que economizou. Elas tinham o suficiente para pelo menos mais duas noites de hospedagem e refeições, e ela estava relutante em gastar uma única pedra de cobre acima do orçamento deles... e ainda assim. Ela pensou na primeira vez que viu May, seu choque com o quão magricela a garota parecia. Mesmo assim, May tinha dividido suas rações insignificantes de seu patrão com Ana, andando um quilômetro na neve todos os dias até o celeiro onde ela tinha escondido Ana e a manteve viva. Ela merecia tudo o que queria no mundo. — Vamos pegar um — disse ela, puxando May para frente, mas a criança balançou a cabeça. — Não, olhe — ela sussurrou, seu olhar se lançando entre Anae a baia —, a menina. Demorou um pouco para Ana perceber que May estava se referindo à vendedora de doces, uma jovem que mal entrara na adolescência. Ela usava um capuz esfarrapado, seu rosto pálido e cabelos cor de areia aparecendo por baixo. — Ela é como eu — May disse suavemente, as palavras caindo de seus lábios como neve, muito em breve. Ela ficou parada, seus olhos um oceano de memórias silenciosas —, como nós. Ana olhou. Mais. E isso a atingiu de uma vez. A desleixada da vendedora de doces, enrolada em si mesma como se quisesse desaparecer deste mundo; o ar de desconfiança, beirando o medo, que emanava dela. E seus olhos... olhos que eram poços de tristeza, como os de May no auge do inverno. Exceto que os de May sempre trouxeram esperança. Antes que Ana pudesse responder, May se afastou e esgueirou-se pela multidão. Ana correu atrás dela, bem a tempo de ver a criança enfiar a mão nas dobras de sua capa de pele cinza e retirar uma única pedra de cobre. Era uma das moedas que Ana lhe dissera para guardar, prometendo que a usariam para comprar uma guloseima. Delicadamente, May pegou as mãos da vendedora de doces e dobrou a moeda nelas. — Fique com isso — May sussurrou, pressionando um dedo pequeno em seus lábios. Ela arriscou um olhar para Ana e, por um momento, seus olhos disseram tudo: lampejos de raiva e ondas quebrando de dor jogando e girando dentro. E Ana percebeu com uma dor angustiante que May tinha visto sua mãe nesta Afinita, que ela estava procurando por sua mãe quando viu essa vendedora de doces. De repente, os doces pareciam muito brilhantes, muito falsos, e o resto do mundo se desvaneceu em um borrão de ruídos e cores fracas. Era como se o mundo que ela tinha visto nos últimos dezoito anos estivesse lentamente se desfazendo para revelar a verdade do que era. Quantas vezes ela comprou algo de alguém que poderia ter sido forçado a um contrato ruim? Para quantos Afinitas sobrecarregados e explorados acenou na multidão quando viajou com seu pai para ver seu império quando criança? A lei Ciriliana declarava que o emprego sob contrato era um emprego justo... mas nunca se aprofundou nos termos reais desse acordo. Como um empregador deveria tratar um empregado. As condições de pagamento. Se esse contrato foi assinado voluntariamente... ou por coerção. — Aqui — a vendedora disse calmamente. Suas mãos correram sobre as fileiras de doces em exibição, e ela pegou um e estendeu para May. — É um ptychy'moloko. Bolo de leite de ave. Você pode ficar com ele. Ana reconheceu o silêncio na voz da garota, a maneira furtiva com que seus olhos corriam ao redor para verificar se ninguém mais percebeu essa transação. May sorriu ao dar sua primeira mordida, e Ana teria pago todas as folhas de ouro do mundo para ver sua amiga sorrir daquele jeito novamente. — É bom — disse May, e estendeu para Ana. Era difícil dar um sorriso diante da fria percepção que tinha acabado de semear em seu peito. — Era o meu favorito quando criança — disse Ana. Ela pensou em Yuri, seus olhos cinza-carvão brilhando enquanto entregava guloseimas para ela e Luka, fumegando das cozinhas. — Vá em frente, termine. O rosto de May estava radiante. — Eu gosto da camada marrom dura — ela disse entre mordidas. — Isso é chokolad. — A vendedora de doces observou May com um leve sorriso aquecendo seus olhos. — É feito de cacau de Nandji. — Ei! Um homem em peles exuberantes empurrou a multidão, seu olhar fixo em May. O rosto do homem estava mais pálido que farinha. — Ela pagou? — o nobre rosnou, invadindo e fazendo como se fosse arrebatar a massa das mãos de May. Algo estalou em Ana. — Não toque nela — ela rosnou. A raiva cintilou nos olhos do homem, mas ele se virou para a vendedora de doces, que o observava com uma expressão aterrorizada. — Vou contar meus livros esta noite, e se descobrir que você andou roubando... — Ele baixou a voz para um silvo. — Você vai receber o que está vindo para você, bruxa. — Ana. — A voz de May tremia enquanto ela puxava insistentemente a mão de Ana, afastando-a da barraca. — Nós temos que ir. Não há nada que possamos fazer aqui. Por favor. Mesmo seguindo May, os passos de Ana vacilaram. Parecia errado, em seu coração, virar e deixar alguém precisando de ajuda. Alguém cuja Afinidade os tornava diferentes, ostracizados. Alguém como ela. Um grito soou; Ana e May congelaram quando se viraram para olhar. E, com o resto da multidão, elas engasgaram quando o nobre golpeou com todas as suas forças a jovem vendedora de doces. O tapa ressoou na praça como o estalo de um chicote. A vendedora de doces cambaleou para trás e colidiu com a barraca de doces bem arrumados. A raiva envolveu Ana, incandescente. Ela era a princesa de Cyrilia. Houve um tempo em que escória como ele teria se curvado a ela, quando ela poderia ter ordenado sua morte com uma única palavra. Esse tempo tinha passado, mas ela ainda podia fazer a coisa certa. — Por favor, mesyr — a garota Afinita implorou. O nobre ergueu a mão novamente. Ana envolveu sua Afinidade ao redor dele. Ela só aprendeu a empurrar ou puxar, mas agora ordenou que o sangue em seu corpo permanecesse parado com cada grama de sua força. Por alguns segundos, o nobre ficou paralisado, seu braço erguido e sua expressão passando da fúria ao pânico. Ele começou a engasgar, seus olhos rolando na parte de trás de sua cabeça. Ela estava ciente de May puxando sua capa. Ela ouviu os suspiros da multidão quando finalmente soltou o sangue do nobre e seu corpo caiu no chão como um saco de batatas. Sons horríveis de chiado vieram de sua boca. — Ana — May gritou —, precisamos ir, antes... Alguém gritou. Quando o Vyntr'makt entrou em pânico, Ana percebeu que tinha ido longe demais. — May — ela engasgou, e a mão da criança estava na dela, e elas estavam tropeçando para longe do nobre desmaiado e da vendedora de doces. No entanto, a multidão tinha ficado estranhamente imóvel, e a pele das costas de Ana formigou. Levou um momento para ela perceber que um silêncio havia caído sobre toda a praça. Todos os vendedores e moradores da cidade olhavam para um ponto atrás de Ana com expressões de espanto e ansiedade. Lentamente, Ana se virou. E olhou para um esquadrão de Patrulhas Imperiais Cirilianas. 9 O interior do pub em ruínas estava escuro, iluminado apenas pelas chamas bruxuleantes dos tocos de vela nas mesas. Uma placa de madeira quebrada anunciava em caligrafia grosseira: A Fortaleza do Urso Cinzento. Ramson parou na porta apenas para passar a mão sobre a adaga que havia roubado, antes de pisar nas tábuas de madeira rangentes. Ele veio cobrar uma dívida. Levou alguns momentos para seus olhos se ajustarem à penumbra, e ele viu que várias mesas estavam postas, seus convidados curvados sobre suas bebidas e falando em voz baixa. Havia um ar de ameaça nas chamas lambendo a lareira de bronze e o tilintar de canecas entre as trocas murmuradas. Várias pessoas se viraram para olhar para Ramson enquanto passava por elas, e ele se viu avaliando a nova roupa que havia adquirido – de graça, embora desconhecida do vendedor – em uma barraca próxima. Uma túnica comum, colete preto, calções cinza, botas de montaria e um belo manto de pele Cyriliano para completar. Ele parecia o patrono perfeito para esses tipos de lugares: elegante, arrumado e totalmente inesquecível. Ramson examinou o bar. Apenas um olho experiente notaria o quadro de pôsteres de Afinitas de aluguel na parede oposta, a escada estreita ao lado do balcão com um sinal torto de Apenas Reservas, e a garrafa de Deys'voshk verde disfarçada entre as fileiras de licor na a prateleira de trás. Este não era um pub comum. Era um posto de tráfico de Afinitas. Ramson caminhou até o balcão e deslizou para um banco do bar, abaixando a cabeça atrás de um samovarde aparência cara. O barman se aproximou. Ele era de estatura e compleição baixinho, com uma grande barba grisalha – uma que tinha crescido em tamanho devido aos segredos que manteve ao longo de seu mandato na estalagem mais notória de Cyrilia. Embora ele usasse um avental grosseiro manchado de graxa e salpicado com vários tons de licores, não havia como perder o brilho de seu anel de ouro enquanto polia um copo. — Estimadas saudações a você, nobre mesyr, e posso expressar minha alegria por seu patrocínio de meu humilde pub! Igor, ao seu serviço. — Saudações a você, meu bom cavalheiro, e posso dizer que o prazer é... todo meu. — Ramson ergueu a cabeça. Igor quase deixou cair o vidro que estava limpando. — Maldito inferno, cara — ele murmurou, escorregando em um insulto Cyriliano de baixo nascimento. — Malditos infernos — Ramson o corrigiu, e deu um giro de seus dedos —, conhaque. E não se preocupe com a merda barata. Igor curvou-se ligeiramente, olhando para o rosto de Ramson. — Então realmente é você. Eu estava me perguntando quando voltaria. — Você estava se perguntando se eu voltaria. Igor riu, um som baixo e retumbante. — Não vou negar. A notícia se espalhou por todo este império maldito. Você fez uma bagunça, Quicktongue. Ele se virou, alcançando uma das prateleiras na parte de trás do bar. Ouviu-se um tinido agudo e o som de líquido sendo esguichado. Ramson observou as costas musculosas do barman enquanto preparava uma bebida. — Estou limpando, Igor. Meus traidores vão pagar. — Ele deslizou sua adaga. — Mas as primeiras coisas primeiro. Estou aqui para cobrar uma dívida. Igor se virou, segurando um copo e uma garrafa de conhaque Bregoniano. A preocupação penetrou em seus olhos turvos. — Olhe, Quicktongue. Os negócios estão ruins, com o Imperador Mikhailov doente e a economia desmoronando. — Ele passou a mão sobre a testa careca e acenou para a placa na parte de trás. Os papéis estavam presos caoticamente uns sobre os outros, alguns com desenhos toscos. — As vendas têm sido lentas. Ramson estava interessado o suficiente para dar uma olhada no quadro. Afinitas para Aluguel, declaravam os cartazes, quando, na verdade, sussurravam aos que sabiam que eram Afinitas estrangeiros cujos contratos estavam à venda. — Não quero seu dinheiro. Eu quero informação. — Ah. — Os ombros de Igor caíram com alívio, e ele colocou a bebida de Ramson diante dele. — Você sabe que meus fatos valem mais do que minhas folhas-de-ouro. — Ele fez uma pausa, e seus olhos deslizaram para a escada escura atrás do balcão. — Talvez isso exija uma discussão privada na Sala de Reservas. Ramson se levantou, pegando seu copo. Igor hesitou. — Eu já vou subir. Preciso fechar algumas contas, pegar uma bebida para mim, então serei todo seu. Não vai demorar um minuto. — Sem pressa. Eu vou me apresentar. A Sala de Reservas era um lance estreito de degraus construídos nas frias paredes de pedra do pub. Ramson escalou-os e abriu um conjunto de portas de madeira para um cômodo à luz de velas, bem mobiliado com sofás de veludo vermelho e uma cara mesa de carvalho. Ele não deixou de ver as garrafas de Deys'voshk alinhadas nas prateleiras no fundo da sala, brilhando à luz bruxuleante das velas. Ele empurrou os pensamentos de sua mente e levantou sua bebida, inalando bruscamente antes de tomar um gole. Igor não o havia enganado. Este era o verdadeiro brandy Bregoniano: pungentemente amargo e sutilmente doce, com um toque de rosas e o sabor cítrico que florescia no paladar e permanecia como um sabor residual. Passos soaram na escada, e Igor entrou com uma caneca em cada mão. Ele teve o cuidado de fechar a porta atrás de si. Ramson esperou pelo familiar clique de uma fechadura. Nenhuma conversa na Sala de Reservas era conduzida com a porta destrancada. Quando não veio, um fio de cautela apertou dentro dele. Com um grande suspiro, Igor colocou a segunda rodada de bebidas na mesa e se sentou em um dos sofás. A luz do fogo dançou em seu rosto. — Vejo que os guardas não tiraram o espírito de você. Você parece saudável como um fanfarrão jovem, apenas um tom mais pálido. O que foi, quatro luas? — Três luas e vinte e um dias. Eu estive contando. — Ramson recostou- se na almofada de veludo rechonchudo de seu sofá como um gato se aquecendo ao sol, observando Igor com os olhos semicerrados. — Eles não servem coisas assim na prisão. — Sim. — Igor ergueu o copo. — Isso custaria algumas folhas-de-ouro. — O que dizem na rua é que você me deve mais do que algumas folhas- de-ouro. — Ramson se inclinou para frente, esquecendo o conhaque, e em vez disso saboreou o olhar de pânico absoluto que atravessou o rosto de Igor. — Eu sei que você me entregou. Oh, não pareça tão lamentável, cara. Tenha algumas malditas bolas e assume isso. Era uma aposta da parte de Ramson, mas era seu melhor palpite até agora. Ele estava escondido para passar a noite no pub de Igor quando um esquadrão de Mantos Brancos invadiu e o prendeu por traição contra a Coroa. Ele passou suas luas na prisão vasculhando cada fio retorcido de sua rede até que conseguiu uma teoria: Igor o havia entregado, mas ele estava fazendo o trabalho sujo para outra pessoa. Alguém próximo a Kerlan que tinha informações sobre sua missão. O olhar de Igor voou nervosamente para a porta; ele enxugou uma camada de suor do rosto, espalhando mais graxa na testa. — Ramson, meu amigo, você deve saber... — Sem “Ramson, meu amigo” comigo. — Ramson deu um soco na mesa, finalmente deixando-se provar um pouco daquela raiva que se acumulou dentro dele enquanto apodrecia na prisão. — Se você quer viver, vai me dizer por que fez isso, e você vai me dizer quem o fez fazer isso. — E-ele costumava trabalhar para a Corte Imperial. — A respiração de Igor era ofegante e ele parecia fraco. — V-você tem que entender, R-Ramson... — Não há nada que eu entenda melhor do que a maldita picada da traição. — Você foi enviado para assassinar o Imperador! — exclamou Igor. — Divindades, cara, sua missão era impossível desde o início! Ramson fez uma pausa. Esta era a pergunta que ele revirava e revirava em sua mente em Quedas Fantasma, sem pistas para uma resposta: Por que o maior senhor do crime do Império queria assassinar o imperador Luka Mikhailov? Lembrou-se da tempestade naquela noite, a chuva açoitando as janelas com fúria. O sorriso pequeno e torcido de Kerlan, a cadência simples de suas palavras, como se ele tivesse acabado de pedir a Ramson para pegar sopa de beterraba para o jantar. Ramson soube, naquele exato momento, que este era o teste final. Se tivesse conseguido, Kerlan o teria nomeado sucessor da Ordem, consolidando o poder de Ramson de uma vez por todas. Tudo o que ele sempre quis em sua vida estava além dessa missão. No entanto, Ramson havia esquecido que em uma aposta em que você ganha tudo, pode perder ainda mais. E ele tinha perdido. Talvez a captura pela Corte Imperial tenha sido um destino mais gentil do que a morte nas mãos de Kerlan. — Eu era seu vice — Ramson rangeu —, ele confiou tudo a mim. A missão vazou. E vou rastrear esse vazamento e destruir todos os envolvidos nele, começando por você. — Ramson, por favor... — Cala a boca maldita. A única coisa que não suporto é um covarde. — Ramson estendeu as mãos sobre a mesa de carvalho polido. Sua voz era um grunhido baixo quando ele falou em seguida. — A única razão pela qual ainda está respirando é porque eu quero algo de você. Preciso de um nome, Igor. — Pyetr Tetsyev! — As palavras saíram em um suspiro agudo. — Ele veio perguntar sobre você e me pagou uma quantia para entregá-lo se você viesse ao meu pub. E uma semana depois, você apareceu. A boca de Igor era pequena, mas funcionou surpreendentemente rápido. Ele fixou Ramson com um olhar suplicante. — Isso étudo que sei, eu juro, cara. E era muito dinheiro. — Pyetr Tetsyev. — Ramson rolou o nome na língua; não tinha gosto de familiaridade. — Quem é ele e onde posso encontrá-lo? — Ele está sob o emprego de Kerlan, faz Deys'voshk para ele. Apareceu do nada com um passado mais escuro que o fundo da minha bota. — Hum. — Ramson se inclinou para trás, tomando um gole de seu copo e estalando os lábios. Igor o observou, seus olhos lacrimejantes fixos em cada movimento de Ramson. O fato de Ramson ter voltado à sua bebida pareceu confortar o barman, pois sua expressão tornou-se obsequiosa. — Vou precisar fazer uma viagem para Nova Mynsk, então. — Para Nova Mynsk? Mas isso é território de Kerlan! — A falsa preocupação de Igor foi ampliada por seu alívio. — Você acha... acha que Kerlan vai perdoá-lo por quebrar uma Troca? Ramson tomou um gole de conhaque, sentindo um puxão familiar nos lábios. Agora veio o verdadeiro espetáculo. — Oh, ele vai me implorar para voltar. Eu não rastejei para fora desse buraco de mãos vazias. Eu quebrei essa Troca, mas tenho algo melhor em mente para ele. — Ele deu uma pausa dramática. — Uma nova aliada em potencial. Os lábios de Igor se separaram ligeiramente, e Ramson quase podia vê- lo vasculhando as dezenas de perguntas que passavam por sua mente. Por fim, a curiosidade e a ganância venceram, iluminando seu rosto enrugado. — Quem? — A Afinita mais poderosa do Império. Igor de repente olhou ao redor da sala, como se esperasse que um Afinita saltasse de trás de uma das estantes. — Onde...? — Ela está ao virar da esquina, esperando por mim. Uma Afinita de carne. Ela derrubou cinco homens treinados com um movimento de um dedo. Ele sufocou um sorriso quando a boca do barman se abriu completamente. — Ela valeria uma fortuna — Igor sussurrou —, Divindades, não é de admirar que Kerlan não tenha contratado ninguém para substituí-los ainda. Seria uma perda difícil. Ramson guardou essa informação. Externamente, ele bufou. — Dinheiro. Isso é tudo que você pensa — disse, levantando seu copo de conhaque —, quanto você acha que pode conseguir por uma garrafa disso? Dez folhas-de-ouro? Pense, em vez disso, se eu cultivasse um vinhedo para Kerlan. Quantas garrafas de conhaque ele poderia fazer então? Quantas centenas de milhares de folhas-de-ouro ele receberia por ano? — Ramson bebeu sua bebida em um único gole e colocou o copo na mesa com um tilintar satisfatório. — Pense mais alto, Igor, meu amigo. Na verdade, essa foi a teoria que ele disse a Kerlan quando o senhor do crime lhe ofereceu uma participação no negócio de tráfico da Ordem. Ramson recusou. Ele disse a Kerlan que suas habilidades seriam melhor utilizadas em outros lugares – no porto, no comércio de armas, nos cassinos e em qualquer outro lugar. A verdade, porém, era que não tinha estômago para isso. Ele passou por crianças Afinitas nas ruas, forçadas à servidão, suas bocas costuradas pelo terror, seus olhos arregalados com uma súplica velada. E ele viu neles o fantasma de um amigo de infância que prometeu nunca trair. Talvez fosse por isso que Kerlan havia designado Ramson para a missão suicida de assassinar o Imperador de Cyrilia. Talvez Kerlan tivesse visto a semente da dúvida que crescia no peito de Ramson ao longo desses anos, e ele precisava de Ramson para provar sua lealdade até o fim. Ramson falhou. Ele empurrou esses pensamentos de sua cabeça agora, mantendo o sorriso brincando em seus lábios enquanto olhava friamente para Igor. Sem o conhecimento do barman, Ramson acabara de comprar um seguro. Igor venderia esse petisco para todos os comerciantes que frequentavam seu pub, e as notícias do retorno iminente de Ramson, junto com aquela Afinita de carne, se espalhariam como fogo. Quando Ramson chegasse a Nova Mynsk, Lorde Alaric Kerlan o receberia de braços abertos. Seria uma ótima Troca... dois coelhos com uma cajadada só. Ramson retornaria com o nome de seu traidor e apresentaria a bruxa a Kerlan de uma só vez. Sem dúvida, Kerlan o reintegraria como Vice da Ordem e Mestre Portuário de Água-Dourada. Ele simplesmente precisava de uma ocasião adequada para sua aparição: uma que pegasse esse Pyetr Tetsyev de surpresa. Não adiantaria simplesmente entrar no Estado de Kerlan... Valsa. Algo clicou em seu cérebro. — Igor, que dia é hoje? Igor piscou. — É o vigésimo dia da terceira lua. Do outono — acrescentou desnecessariamente. Em dez dias, seria inverno. Todos os anos, no primeiro dia de inverno, todo o Império Cyriliano celebrava a Primeira Neve com festividades. E em Nova Mynsk, não havia festa mais elaborada do que a que o próprio Lorde Alaric Kerlan dava na propriedade de Kerlan. A classe alta da cidade seria convidada... aqueles com poder, dinheiro e conexões com o mundo do crime. Agora, essa seria uma entrada digna de ser lembrada. Deixar todos os seus inimigos saberem que Ramson Quicktongue estava de volta aos negócios e que caçaria até o último homem que estivesse em seu caminho. O sorriso de Ramson voltou, mais afiado que sua lâmina. — Igor, preciso de dois cavalos para a estrada. — É claro, é claro. — Igor parecia tremendamente aliviado. — Tenho duas éguas que posso te emprestar. — Bom. — Ramson estava prestes a se levantar quando se lembrou de algo. — Mais uma coisa. — Ele bateu um pedaço de papel na mesa de carvalho. Com um baque, ele colocou o copo vazio em um canto do pergaminho e passou a palma da mão sobre as dobras, revelando o esboço do alquimista careca com o nariz fino e grandes olhos cinzentos. — Esse homem parece familiar para você? Igor congelou. — Isso é uma piada? — Seria uma piada ruim de se fazer. Me esclareça. Igor apontou um dedo para o esboço, olhando para Ramson, seu rosto contorcido em descrença. — Esse é Pyetr Tetsyev. 10 Ramson teve que olhar para Igor por cinco segundos inteiros para determinar se o barman estava mentindo. Mas a expressão do homem refletia a descrença de Ramson. Igor era muitas coisas terríveis, mas não era um grande mentiroso. Ele era simplesmente muito covarde. Aplique pressão suficiente no local certo e ele racharia. — Parece exatamente com ele — Igor balbuciou, franzindo a testa para o esboço. — Eu nunca vou esquecer a noite em que ele apareceu na minha porta. Encharcado de chuva, ele estava, mas veio direto para mim. Tipo de sujeito estranho. Disse que trabalhava no Palácio e me mostrou alguns papéis. Me perguntou seu nome e onde você estava. — Ele fez uma pausa, parecendo perceber que estava se incriminando novamente, e rapidamente mudou de assunto. — É um bom esboço. As perguntas explodiram na cabeça de Ramson como estrelas, mas ele se concentrou em um único pensamento: ele e a Afinita de carne tinham o mesmo inimigo. O inimigo do meu inimigo é meu amigo. O dia estava realmente sendo excelente. Tudo o que ele havia planejado – seu traidor, o alquimista e seu último comércio de bruxa com Kerlan – culminou em Nova Mynsk. Dois coelhos com uma cajadada era um bom negócio, mas três coelhos com uma cajadada era o tipo de negócio que colocava um sorriso genuíno no rosto de Ramson Quicktongue. — Igor, velho amigo. Você não me deu nada além de boas notícias hoje. O alívio de Igor era palpável quando ele exalou, as linhas de tensão derretendo em seus ombros. — Agradeça às Divindades, Quicktongue. Achei que você ia acabar comigo por... pelo que minha boca grande deixou transparecer... — Considere suas dívidas pagas. — Ramson se levantou e se espreguiçou. — Você tem sorte que estou me sentindo generoso hoje. Igor deu uma gargalhada trêmula. Ele olhou para a porta novamente. — Um brinde, então — disse, levantando-se e entregando a Ramson uma das duas canecas que ele trouxe. — Para dívidas pagas e trocas justas. — Tanta generosidade hoje, Igor. Normalmente, tenhodificuldade em conseguir um caneco de cerveja barata de você. — Ramson ergueu sua caneca de latão polido. — Para palavras honestas e homens honestos. — Ele levou sua bebida aos lábios e inalou o aroma do vinho do sol Cyriliano. Igor havia drenado metade dele em um único gole. Seus olhos se voltaram para Ramson sobre a borda de sua caneca. Ramson exalou profundamente. Lentamente, contando seus batimentos cardíacos, ele abaixou sua caneca, o sorriso ainda colado em seu rosto. — Estou realmente honrado por você ter escolhido me brindar com vinho de sol Myrkoff, velho amigo. — Ele fez uma pausa, listando sua cabeça. — E eu realmente acredito que o Myrkoff teria um sabor melhor sem o veneno que você colocou nele. Clam. A caneca de Igor rolou no chão, o vinho do sol se derramando nas tábuas polidas do piso. O barman correu atrás de seu sofá, o rosto contraído e os lábios apertados. Ramson recuou para o outro lado da sala. Ele ainda segurava sua caneca em uma mão; em outra, ele espalmou sua adaga. — Eu esqueci como você é bom com seu álcool — o barman rosnou. — E eu esqueci como você é bom com sua fachada de estupidez. Eu poderia ter caído nessa. — Ele quase teve. — Quem você está esperando, Igor? — Mesmo se me matar, você nunca vai conseguir sair daqui. — O barman estava olhando para a adaga de Ramson. — Kerlan estabeleceu o preço por sua cabeça assim que soube de sua fuga. Enviei meu pajem para os caçadores de recompensas no segundo em que você entrou. Eu só tive que entretê-lo enquanto eles chegavam aqui. É claro que a notícia de sua fuga da prisão chegou a Kerlan. Ramson não ficaria surpreso se o senhor do crime tivesse alguns dos guardas de Quedas Fantasma no bolso. Ramson inclinou a cabeça. Chamas de raiva tremeluziram dentro dele. Mas ele aproveitou essas chamas e as transformou em uma arma. Assim como Kerlan lhe ensinara. — Eu poderia matá-lo por diversão. Vê-lo se contorcer enquanto eu estripo você como um porco guinchando. O sangue sumiu do rosto de Igor. Sem aviso, ele soltou um grito. — Ele está fugindo! Ramson virou-se, estendendo a mão para a fechadura da porta para trancá-los dentro... um momento tarde demais. A porta da Sala de Reservas se abriu. Dois mercenários foram arremessados, atacando Ramson, espadas desembainhadas. Ramson jogou sua caneca de latão no primeiro homem com toda a sua força. Com um crack satisfatório, esmagou sua têmpora. O mercenário gritou e cambaleou para trás, comprando a Ramson os preciosos segundos de que precisava. Ele saltou no ar e atacou. Sua adaga penetrou no peito do mercenário em um esmagar doentio de tendões e carne. No mesmo movimento, ele pegou a espada do punho solto do homem e virou-se para aparar o ataque do segundo caçador de recompensas. Metal cantou enquanto suas lâminas se chocavam. Ramson grunhiu e se atirou para fora do caminho quando um terceiro mercenário apareceu na porta. Ramson virou-se para encarar o homem diretamente, espada na mão, avaliando o corpo do recém-chegado, suas roupas e sua arma. No entanto, nenhuma destreza de luta o teria preparado para o que viria a seguir. A dor explodiu em sua nuca, passando por seus nervos e membros e descendo até seus dedos. Estrelas explodiram em seus olhos quando ele caiu no chão. — Todo seu, rapazes. — A respiração de Igor estava irregular quando deixou de lado sua caneca de latão. — Isso vai ser um custo extra pela ajuda que te dei lá no final. Dê uma boa palavra a Lorde Kerlan por mim. Ramson lutou para recuperar a consciência, mas a escuridão nos limites de sua visão estava se aproximando. Ele estava vagamente consciente de uma mordaça sendo enfiada em sua boca e sentiu a picada de cordas apertando seus pulsos. Quando a escuridão subiu para reclamá-lo, ele percebeu que Igor o havia enganado, e que quando um acordo parecia bom demais para ser verdade, provavelmente era. 11 Quando criança, Ana ficou ao lado de papai nas ruas cobertas de neve de Salskoff, olhando para as Patrulhas Imperiais Cirilianas com admiração. Ela admirou a forma como sua armadura com infusão de pedra-negra brilhava à luz do sol e seus mantos brancos puros esvoaçavam contra o céu azul brilhante. Até mesmo seus cavalos eram um espetáculo para ser visto: os altos valkryfs do Norte, olhos azuis do gelo, criados para velocidade e resistência e valorizados por sua rara habilidade de escalar montanhas nevadas usando seus cascos fendidos. Ela aprendera a cavalgar nas costas dessas criaturas e sonhara com o dia em que teria um exército de valkryfs e seus mestres sob seu comando. Patrulhas Imperiais – heróicas, majestosas e honrosas. Ela olhou para eles agora, de pé nos destroços da barraca de doces, suas figuras escuras pairando sobre ela. Longe estavam seus olhares nobres e palavras benevolentes. O capitão, com o distintivo de tigre branco brilhando em seu peito, rosnou para baixo, sua pele enrugada como couro. Dois outros em seu esquadrão flanqueavam uma grande carroça de prisão reforçada com pedra-negra, cerca de uma dúzia de passos atrás. Um terceiro homem seguiu o capitão como uma sombra. Ao contrário dos mantos das Patrulhas, sua túnica e manto eram pretos, forrados de ouro; seu cabelo estava descolorido como trigo deixado por muito tempo ao sol, seus olhos o gelo das geleiras no Mar Silencioso do Norte. Havia algo duro em sua expressão que fez Ana apertar a mão de May com mais força. — Qual é a perturbação? — exigiu o capitão. Seus olhos frios passaram por Ana e May, demoraram-se no vendedor de doces e finalmente pousaram no nobre. — Mesyr? Ana deu um passo lento para trás, e depois outro, a mão de May apertada na dela. Se recuasse o suficiente, ela se misturaria à multidão de espectadores. Havia uma barraca de kechyans vários passos à sua direita que poderia se esconder atrás. Os Mantos Brancos nunca a encontrariam. A não ser que tivessem um Afinita... o que era extremamente raro. — A-Afinita — chiou o nobre, que se levantou e estava sacudindo trêmulos lascas de madeira de suas peles finas —, Bruxas imundas! Três, quatro passos. A barraca kechyan estava ao seu alcance... — Onde você está indo? O sangue de Ana virou gelo. Os olhos do capitão, tão sem emoção quanto sua voz, olharam diretamente para ela. — Fique onde está — ele continuou —, esta é uma verificação de rotina. Ao seu lado, May estava tremendo, sugando respirações rápidas e superficiais. Lenta e deliberadamente, o capitão estendeu a mão enluvada para a vendedora de doces. — Seu emprego e documentos de identificação. — Ana. — May estava começando a hiperventilar, suas palavras saindo rapidamente, desigualmente. — Nós temos que ir... eles são homens maus... Suor frio escorria pela nuca enquanto Ana observava a vendedora de doces procurar por pergaminhos em sua túnica e depois segurá-los. — Uma grã Afinita — observou o capitão com desinteresse. Ele correu um olhar superficial sobre os pergaminhos antes de jogá-los no chão. — Ana — May implorou. Ela estava encolhendo para trás, seus olhos arregalados, seu rosto sem sangue —, nós não temos identificação... O pavor afundou no estômago de Ana quando o capitão voltou seu olhar sem vida para ela e May. Ela se viu enraizada no lugar, sua mente vazia de medo e dispersando quaisquer pensamentos racionais que pudesse ter tido. As luvas pretas do capitão se estendiam em direção a elas. — Seu emprego ou documentos de identificação. Não, uma parte do cérebro de Ana gritou. Não, não, não, não, não... Ela se interrompeu, respirando fundo para estabilizar seu batimento cardíaco. Eram Patrulhas Imperiais... defensores da lei, vigilantes de seu império. Não podiam significar danos. No entanto... ela nunca os tinha visto checar por emprego e documentos de identificação. Inalando outro gole de ar, Ana lutou para manter o nível de voz enquantorespondia: — Não temos documentos. Os olhos do capitão se estreitaram e ele olhou para a carroça de pedra- negra. Só então Ana percebeu a sensação de estar sendo observada, os pelos dos braços e do pescoço se arrepiando. Um dos Patrulheiros a olhou ao lado da carroça da prisão. Vestido com o mesmo branco de seu kapitan, ele estava nas sombras, seus olhos penetrantes como punhais. Uma sensação estranha a percorreu: um puxão sutil, como se alguém estivesse puxando laços invisíveis da mesma forma que ela invocava o sangue dos outros. Yaeger, seus sentidos gritavam para ela. Ele é um Yager. Um caçador, em Cyriliano antigo: um tipo de Afinidade com o poder de sentir e controlar outras Afinidades. Kapitan Markov disse a ela que estes eram reconhecidos como os mais poderosos e raros dos Yaegers, frequentemente observados pelas Patrulhas Imperiais para manter a paz entre Afinitas e não Afinitas. O olhar do Yaeger cortou seu capitão e o homem estranho vestido de preto; ele deu um aceno curto. O capitão voltou-se para Ana. — É ilegal alguém ser encontrado sem os documentos de identificação adequados, especialmente os Afinitas. Precisamos levá-la para interrogatório. Nosso empreiteiro pode explicar isso para você. — Ele acenou para o homem de manto preto. — Não. — O soluço mal saiu dos lábios de May, alto o suficiente para apenas Ana ouvir. — Não dê ouvidos a eles, Ana. Ele é um homem mau. Um corretor. Um corretor. Ana olhou, sua mente cambaleando. Os Mantos Brancos, especificamente, foram feitos para encontrar e parar os corretores. Como duas figuras em lados opostos da lei acabaram trabalhando juntas? Quem você acha que paga mais? O Império? Ou as empresas lucrativas que dependem deles para empregar Afinitas? Ramson havia perguntado. De repente, tudo se encaixou com o peso de um mundo quebrado: a imagem que estava procurando no escuro, agora incrivelmente brilhante. Ana cambaleou para trás. Isso estava errado... estava tudo errado. Os homens maus eram os traficantes e corretores afins que sua mamika Morganya havia descrito para ela como vilões de contos de fadas. Não os soldados imperiais que serviram seu pai e irmão, que se comprometeram a proteger o Império. Que tipo de Império seu pai governava? — Nós não estamos... — Sua voz tremeu, e qualquer negação que estava prestes a expressar se dissipou em seus lábios. A vendedora de doces se retirou para o lado de seu empregador, agora apaziguada, com os olhos baixos, o rosto nas sombras, o contrato de trabalho tremendo em suas mãos. Eu sou Anastacya Kateryanna Mikhailov, Ana queria gritar, lágrimas queimando seus olhos. Eu sou a princesa herdeira de Cyrilia. No entanto, a coisa complicada sobre a verdade, Ana percebeu, de pé sob a sombra das Patrulhas Imperiais com as mãos vazias e uma capa puída, era que não significava nada se não pudesse ser provada. E ocorreu-lhe, neste exato momento, que não havia nada diferente entre ela e a grã Afinita. Vagamente, ela ouviu o capitão dando ordens ao resto de seu esquadrão. — Prepare-se para a prisão legal à força, caso os sujeitos não cumpram. O Yaeger avançou. May gritou. E Ana disparou. Ela pegou May em seus braços, engolindo um grito enquanto corria pela multidão. Ela podia sentir os Mantos Brancos atrás delas, o controle do Yaeger em sua Afinidade fluindo e diminuindo como ondas. Com sua manipulação, sua consciência do sangue ao redor dela cintilou, jogando fora seu senso de equilíbrio. Ele estava ganhando delas... rápido. E May era pesada. Ela tomou uma decisão em frações de segundo. Ana colocou May no chão e deu um forte empurrão na garota. May cambaleou. — Corra — Ana ordenou —, estarei bem atrás de você. — Não! — May gritou. — Ana... Naquele momento, o controle do Yaeger sobre ela caiu. Sua Afinidade se acendeu; ela aproveitou aquele momento para se apegar ao sangue de May. Eu te amo, Ana quis dizer, mas ela só conseguiu dizer: — Desculpe. Ela pegou o sangue do pequeno corpo de May e jogou a criança o mais longe que pôde. Ana virou-se para encarar o Yaeger. Ela estava tremendo, desesperadamente agarrando sua Afinidade enquanto entrava e saía de seu comando. A multidão ao redor dela se separou em pânico quando o Yaeger avançou sobre ela. Ele diminuiu a marcha, seus passos caindo nos paralelepípedos como a batida de um tambor de execução. O pânico embranqueceu sua mente enquanto ela continuava a recuar. Pare. Ela queria implorar. Eu sou sua princesa. Sou a princesa de Cyrilia. Mas ser princesa significava apenas uma coroa na cabeça e as paredes de um palácio para protegê-la desse destino. O destino de nascer uma Afinita. O Yaeger estava a apenas uma dúzia de passos agora. Ela podia ver as linhas esculpidas de seu rosto, as bordas duras de seus músculos como mármore cortado, treinado para ser letal. A Afinidade dele apertou a dela como uma parede mental indomável, e a Afinidade dela desapareceu. Ainda assim, Ana levantou uma mão trêmula... O chão explodiu. O rosto do Yaeger mal registrou surpresa antes que ele fosse jogado para trás, derrapando pela rua, paralelepípedos caindo ao seu redor. Uma rachadura havia dividido a estrada entre Ana e o Yaeger. A confusão dela se refletiu no rosto dele enquanto eles olhavam para as rochas e sujeira que vazavam da fissura, subindo lentamente no ar. De uma fileira de barracas atrás deles, uma pequena figura apareceu no meio da rua. Os punhos de May estavam cerrados, sua testa franzida em concentração. No silêncio mortal, sua voz soou nítida e clara do outro lado da rua: — Você não vai machucá-la. Ela inclinou a cabeça. Sem aviso, as rochas suspensas dispararam em direção ao Yaeger. Ele grunhiu quando uma dúzia de pedras do tamanho de um punho se chocou contra ele, jogando-o para trás. Seu domínio sobre a Afinidade de Ana vacilou. Ana agiu. Ela esmagou sua Afinidade nas amarras do Yaeger, agarrou- o e atirou-o mais longe pelas ruas de paralelepípedos, longe de May, longe de qualquer possibilidade de chegar a May. Ele teria que matar Ana primeiro. Ela sentiu um lampejo de triunfo quando ele bateu no chão e ficou ali, imóvel. Ela não viu o outro Manto Branco até que fosse tarde demais. Uma sombra caiu entre as barracas atrás de May: um Manto Branco com arco e flecha, apontado e pronto. Ana já estava gritando, e mesmo enquanto corria na direção de May, uma parte dela dizia a si mesma que aquilo não era real, não era real, não era real. O tempo parecia desacelerar enquanto corria com toda a força que seu corpo dava. A flecha disparou para frente. May cambaleou. E então, lentamente, ela caiu, suave e graciosa como uma folha de outono. O tempo havia parado. Ana estava em um daqueles sonhos em que, por mais que tentasse correr, estava se movendo muito devagar. Doze passos. Não. Basta. Das sombras das barracas, o corretor de manto preto emergiu, o forro dourado de seu colarinho brilhando ao sol poente enquanto ele se abaixava. A cabeça de May pendeu como a de uma boneca de pano em seus braços enquanto ele se virava e corria para a carroça da prisão. A fúria explodiu em Ana. — Não! — ela gritou, levantando a mão e invocando sua Afinidade. Mas não havia nada. Em vez disso, ela encontrou aquela parede desconhecida contra seu poder novamente, inflexível e absoluta. A vários passos dela, o Yaeger ficou de joelhos. Lama e sangue arruinaram seu manto branco perfeito; já, hematomas estavam começando a florescer em sua pele exposta. Mas Ana não sentiu satisfação, apenas fúria cega, quando ele ergueu os olhos para encontrar o olhar dela. Seus passos diminuíram. A uma distância atrás dele, o corretor quase alcançou a carroça. A forma inerte de May estava pendurada em seus ombros, e Ana podia distinguir o brilho de seu cabelo. Ela olhou para o Yaeger. Olhou para trás, para a cabeça que desapareciade May. E colocou uma explosão de velocidade em seus passos. O Yaeger disparou para a frente. Seus dedos agarraram seus tornozelos e a puxaram. Ana jogou as mãos para fora, se segurando antes de bater nos paralelepípedos. Ela se contorceu, cuspindo cabelo de sua boca e lutando para se apoiar no chão. — Me solte! — ela gritou, chutando o Yaeger, mas seu aperto era de aço contra suas pernas. Além do vasto trecho de estrada, a carroça da prisão assomava, suas portas abertas como a boca de um animal faminto. O corretor se inclinou em sua sombra enquanto depositava uma forma pequena e flácida na carroça. A cabeça de May pendeu uma vez e desapareceu atrás das paredes de pedra negra da carroça. O outro Manto Branco trancou as portas. Um desespero como ela nunca havia sentido antes envolveu Ana, tirando o ar de sua garganta e arrancando lágrimas de seus olhos. — MAY! — gritou, sua voz embargada. — MAY! Ao ouvir seu grito, alguém olhou para trás, mas não era May. O corretor de cabelos descoloridos pelo sol virou-se para ela. Seus olhos pálidos se encontraram com os dela. Eles se estreitaram por um momento, e então se virou e se foi. A mão de Ana se fechou em torno de algo duro, um pedaço de paralelepípedo, deslocado por May antes. Imaginando os olhos azuis odiosos do corretor, Ana esmagou a pedra no rosto do Yaeger. Ele soltou um gemido baixo, seu aperto em suas pernas afrouxando. Seu domínio sobre sua Afinidade vacilou novamente. Ana estava de pé antes mesmo do Yaeger rolar, agarrando o nariz escorrendo. Vagamente, ela o ouviu gritando algo para seu esquadrão, viu olhares de pânico nos rostos dos Mantos Brancos enquanto montavam em seus cavalos. Ela lançou sua Afinidade para fora e correu, lutando contra o bloqueio do Yaeger, suas pernas bombeando desesperadamente enquanto tentava fechar a lacuna entre ela e aquela carroça preta. O restante do Manto Branco esporeou seu cavalo, e a carroça entrou em movimento, ganhando velocidade. Apenas o capitão circulou em direção a eles, arco e flecha para fora e capa esvoaçando atrás dele. — Kais! — gritou. O grito de resposta do Yaeger foi interrompido quando Ana arremessou sua Afinidade contra o poder dele. Por um momento, sua parede se estilhaçou; ela sentiu um vislumbre dos laços no corpo do capitão e os agarrou... Os olhos do capitão se arregalaram e seu cavalo tombou bruscamente para um lado enquanto seu corpo estava sob seu controle. — O que diabos... Sua flecha caiu de sua mão, e um frasco de vidro se estilhaçou contra o chão. Mesmo a várias dezenas de passos, Ana conseguia distinguir o líquido verde escorrendo entre as rachaduras da estrada. — Capitão! — Atrás dela, o Yaeger soltou um grito sufocado. — Você deve recuar! Ela é perigosa! O capitão hesitou, seus olhos passando entre Ana e seu soldado caído. Ana aproveitou a oportunidade. — Venha me pegar, seu bastardo doente! — gritou. Deixe-o com raiva. Instigue-o. Qualquer coisa para impedir aquela carroça de pedra-negra de sair daquela praça. No entanto, quando Ana jogou sua Afinidade no capitão novamente, ele pareceu chegar a uma decisão. Com um último olhar para trás, ele virou seu cavalo e galopou atrás de seu esquadrão. — Não! — Ana engasgou. Mas a carroça e seus cavaleiros de flanco dispararam pelas baias, ficando cada vez menores. A desesperança apertou sua garganta. Ela não tinha ideia de quanto tempo correu, perseguindo a carroça mesmo depois que ela desapareceu entre as dachas de tijolos vermelhos de Kyrov. Foi só quando tropeçou em um paralelepípedo solto e caiu no chão, rasgando o tecido de suas luvas e cortando as palmas das mãos, que ela percebeu que estava chorando. E uma voz diferente encheu sua cabeça. Não vá para onde eu não posso seguir, May pedira a ela. Ela deixou acontecer o que jurou que nunca deixaria acontecer com May. May a salvou no momento em que ela mais desesperadamente precisava ser salva. E ela havia falhado com May. E... era culpa dela. Ana mordeu a mão para não gritar, suas lágrimas misturando-se com sangue e poeira. Em outra vida onde ela poderia ter nascido de forma diferente, normalmente, ainda seria a Kolst Pryntsessa Anastacya Mikhailov, segunda herdeira do trono de Cyrilia. E nessa vida, uma vida mais gentil, as leis seriam justas e as pessoas no poder seriam boas e as pessoas boas venceriam. Ela bateu nos paralelepípedos uma vez, manchando de vermelho o chão empoeirado. Ela podia sentir, através de sua Afinidade, pessoas circulando ao seu redor e diminuindo a velocidade para olhar, mas ninguém parou para ajudar. Este não era aquele mundo, pensou Ana. Este mundo não era justo, nem gentil, nem bom, e você escolhia continuar lutando ou se render. Ana ficou de pé, tirando o pó de sua capa esfarrapada enquanto se virava para encarar o Vyntr'makt. Sua Afinidade queimava a cada passo, o mundo fervilhando de sangue enquanto ela corria. Ela encontrou o Yaeger onde o havia deixado. Uma pequena multidão se reuniu e várias pessoas se ajoelharam ao seu lado com lenços e tiras de gaze. Como eles estavam ansiosos para ajudar o monstro envolto em um manto branco. Ana focou sua Afinidade e jogou vários espectadores para trás, com as mãos levantadas para um efeito dramático. — Vão embora — ela rosnou, sua voz cortando os gritos da multidão — , saiam, ou eu mato todos vocês. Ela se virou para encarar o Yaeger. O sangue escorria em riachos de onde ela esmagou a pedra em sua cabeça, escorrendo por suas bochechas. Ele a olhou com um olho machucado e ficou tenso. Ele era Nandjiano, Ana percebeu com surpresa surda, percebendo sua pele marrom e cabelos escuros. Ela pensou nos embaixadores que haviam agraciado a Grande Sala do Trono do Palácio durante as sessões da corte com papai. Ele havia atravessado Cyrilia por sua própria vontade? Ela sentiu o poder dele descendo sobre o dela, mas em vez do ferro de antes, era mais suave. Mais fraco. Ela deu de ombros facilmente e agarrou seu sangue, puxando-o para uma posição sentada. Ele tossiu, e o carmesim escorreu de seus lábios. — Aquele corretor. Para onde ele a está levando? O Yaeger apenas a olhou, apertando a boca. Ana jogou a cabeça para trás, inclinando-a para que ele mal pudesse respirar. Por alguma razão, o rosto de Ramson Quicktongue brilhou diante dela. Ele não ameaçaria cegamente... ele encontraria o ponto fraco de seu oponente, encontraria algum tipo de alavancagem... e empurraria. Ela não sabia quase nada sobre esse bastardo, mas era irreconciliável para ela que ele usasse o distintivo de honra do tigre Cyriliano no peito... e que ele tivesse deixado seu companheiro atirar uma flecha em uma criança de dez anos. Ana queria arrancar a insígnia de sua armadura. — Eu não vou perguntar de novo — disse ela. Suas próximas palavras a surpreenderam. — Você é a Bruxa Sangrenta de Salskoff — ele murmurou. A respiração de Ana ficou presa. Na lenda, a Bruxa Sangrenta apareceu no Mercado de Inverno de Salskoff em Fyrva'snezh e assassinou dezenas de pessoas inocentes. Vaporizou-as, de modo que não restava nada deles depois, a não ser sangue correndo rios vermelhos nas pedras do calçamento, manchando a neve. Ela tinha olhos vermelhos que brilhavam com sua magia de sangue e dentes mais afiados que os de um tigre. Uma deimhov do inferno; um monstro entre os humanos. Ninguém havia ligado a Bruxa de Sangue à princesa doente que estava trancada no Palácio Salskoff desde a infância. Ana apertou ainda mais o sangue do Yaeger. — Então você sabe o que eu posso fazer — ela disse calmamente. — Eu sei que você matou oito pessoas inocentes. Foi um acidente. Eu tinha sete anos. As palavras quase – quase – deixaram seus lábios. Em vez disso, ela disse: — E eu vou fazer isso de novo, a menos que você me dê o que eu quero. Ele hesitou. Ana inclinou a cabeça para o brilhovermelho-sangue do sol poente, de modo que o vermelho de seus olhos refletiu a luz. — Olha onde estamos. Olhe para todas essas pessoas ao seu redor... mães, pais e filhos. Eles podem estar todos mortos em segundos, e será por sua causa. Você se chama de soldado? Então proteja seus civis. — Ela apertou seu aperto em seu sangue, apenas para provar seu ponto. — Diga-me para onde ele está levando a criança. Um músculo se contraiu na mandíbula do Yaeger, e seus olhos pareceram queimar nos dela por uma eternidade. Então ele tossiu uma vez, e o fogo se apagou. — Nova Mynsk — disse calmamente. — Onde em Nova Mynsk? — ela forçou. Quando ele ficou em silêncio, ela ergueu o queixo para examinar os poucos vendedores e espectadores que ainda permaneciam atrás de suas barracas. — Devo provar a veracidade da minha promessa? Quem devo escolher primeiro? Uma criança? Ou sua mãe? E como vou torturá-los para que seus gritos... — O Playpen. Ele é um dos Lírios. Ele vai empregá-la lá como artista. Ela o soltou imediatamente, virando-se para que ele não a visse tremendo. Parecia que outra pessoa estava falando através de seus lábios, murmurando aquelas palavras cruéis e bárbaras. Como se a influência de Sadov permanecesse e ela tivesse falado seus pensamentos distorcidos. Enquanto tirava o capuz sobre a cabeça, ela se perguntou algo mais sombrio... se a voz de Sadov havia se tornado sua. — Não os machuque — disse o Yaeger —, por favor. A súplica foi suave, e ela desejou não a ter ouvido. Ana olhou para trás. O Yaeger ainda estava sentado no mesmo lugar, mas algo em sua expressão havia mudado. Ele estava implorando a ela. E estava com medo. Ana pensou no desamparo da grã Afinita, na tristeza que viu nos olhos de May quando a conheceu. E ela viu um eco disso nos olhos deste soldado. Sua raiva se dissipou como vapor no frio. — Por que você faz isso? — ela perguntou em vez disso. — Você é um deles. — Uma pausa. — Um de nós. — Você acha que eu tenho escolha? — Sua voz era crua. — Neste império, se eu não sou o caçador, então me torno a caça. Ela nunca esqueceria o jeito que ele a olhava, Yaeger e Afinita em um. Presos em um sistema corrompido. Suas escolhas, a voz de Luka sussurrou, mas algo nas palavras de seu irmão estava quebrado agora, mudado com o ano que ela passou longe do Palácio. As escolhas eram para aqueles com privilégio e poder. Quando você não tinha nenhuma, tudo o que podia fazer era sobreviver. Ela saiu antes que ele pudesse ver o quanto seu encontro com ele a abalou. Ela ameaçou matar pessoas inocentes. Ela torturou um homem. Fiz isso para salvar May, disse a si mesma. Mas talvez todos os monstros fossem heróis aos seus próprios olhos. 12 Vyntr'makt se espalharam por Kyrov como um incêndio. Ana correu pelas ruas que, momentos antes, celebravam a chegada do inverno. Agora os tijolos das dachas brilhavam vermelho-sangue ao sol poente, e as fachadas das lojas fechadas a olhavam boquiabertas como olhos vazios. Ela pegou trechos de conversas abafadas das pessoas da cidade correndo para casa depois de um dia de trabalho. Ana puxou o capuz para baixo e seguiu o fluxo constante de pessoas para longe do Vyntr'makt. A exaustão estava tomando conta dela, o cansaço profundo que vinha de usar sua Afinidade, e ela precisava sair, agora, antes que o esquadrão de Mantos Brancos trouxesse reforços. Ela, milagrosamente, derrotou um Manto Branco, mas ela estremeceu com o pensamento de ter que lutar contra um esquadrão inteiro. Sua Afinidade era um músculo, a ser exercitado diariamente, nunca levado ao extremo por medo de perder o controle. E ao longo dos últimos anos, Ana o exercitou muito pouco e, recentemente, o esticou muito. Dentro de uma vitrine de vidro, fênix lacadas e falcões de gelo giravam, captando a luz do crepúsculo. Ela e May estavam naquela loja há apenas meia hora, sussurrando sobre Mantos Brancos como se fossem uma ameaça distante. Ela virou a cabeça quando virou uma esquina, a dor das lágrimas queimando profundamente em seu coração. Ela estava em uma rua menor e mais vazia. Longe estavam as belas dachas residenciais, as vitrines decoradas e os postes de iluminação polidos. Prédios de pedra com telhados de madeira amontoados, dilapidados e em ruínas. E, no final da rua, havia um prédio com telhados de telhas vermelhas. Uma placa de madeira anunciava em letras douradas: A Fortaleza do Urso Cinzento. Algo na estalagem a surpreendeu – talvez fosse a falta de música ou conversa enquanto ela se aproximava, ou o fato de que, apesar de sua aparência surrada, suas portas eram feitas de carvalho polido. Seus passos diminuíram por vontade própria, e ela parou a vários prédios de distância. Ela começou a se convencer de que estava sendo paranoica quando as portas de carvalho se abriram e dois homens saíram. Ana se jogou na sombra de uma porta próxima e olhou para fora. Havia algo estranho sobre esses homens também. Um, vestido com uma capa preta de montaria e botas de couro, movia-se com uma graça antinatural e predatória. Ana captou o brilho não de uma, mas de duas adagas em seu cinto enquanto ele pegava uma bolsa volumosa de sua capa. Um mercenário. O outro, alto e pesado como um urso, usava um avental encardido de barman. Ele olhou ao redor furtivamente antes de pegar a bolsa, a ganância em seu rosto inconfundível mesmo a esta distância. O mercenário jogou a bolsa no barman. Moedas tilintaram quando o barman a pegou no ar. Ele perdeu, ou ignorou, o olhar irônico que o mercenário o lançou enquanto ele abria as cordas para examinar o conteúdo da bolsa. O mercenário inclinou a cabeça para a esquina vazia. Esperando. Um arrepio percorreu Ana. Exausta como estava, ela manteve sua Afinidade acesa. Como se fosse uma deixa, um terceiro homem apareceu na esquina, conduzindo dois cavalos. Este homem estava vestido como o primeiro: capa preta, botas pretas e capuz preto obscurecendo seu rosto. Ele virou os cavalos e, quando os mercenários montaram, o estômago de Ana caiu. Ela pensou que o segundo cavalo carregava um grande saco, mas ela percebeu agora que era na verdade uma pessoa. Uma sensação horrível de desânimo tomou conta dela quando os cavalos se mexeram e o rosto do cativo ficou à vista. Cabelo castanho, mandíbula esculpida e nariz quebrado. Ramson Quicktongue era a última viagem desses mercenários. O pânico torceu seu estômago. Ela pensou em pular com sua Afinidade ali mesmo, agora mesmo. Mas seus ossos estalaram em protesto, e ela agarrou a parede para se firmar. Não havia chance de vencer três pessoas em seu estado atual. Além disso, poderia haver mais deles. No entanto, ela também não podia se dar ao luxo de perder Ramson Quicktongue. Ela não poderia vencê-los pela força bruta. Ela teria que jogar com inteligência. Ataque por trás. Divindades, ela pensou. Uma noite com Quicktongue e ela já estava pensando como ele. A Ana de um ano atrás teria valorizado a honra e enfrentado seus inimigos de frente. Mas então, ela supôs, em um mundo de criminosos, senhores do crime e assassinos, não havia honra e não havia regras no jogo. Você só jogava para ganhar. Ana observou os dois mercenários virarem a esquina e prendeu a respiração, contando até dez. Quando ela saiu para a rua, apenas o barman permaneceu, segurando sua bolsa de moedas. Ele se virou quando ela estava vários passos atrás dele, mas já era tarde demais. A mão de Ana subiu e ele congelou, dor e choque passando por seu rosto enquanto ele inevitavelmente sentia o controle dela em seu sangue. Ana deu um puxão, só para dar ênfase, e a bolsa de ouro caiu de suas mãos. Folhas-de-ouro caíram no chão. — Você se move, e eu vou te matar antes que você possa levantar um dedo mindinho — disse Ana. O barman a olhou com medo renovado —, agora eu vou deixá-lo ir, porque preciso que você fale. Umanova onda de fadiga a invadiu quando o soltou. Ela precisava conservar a pouca força que lhe restava. O barman ficou imóvel como uma estátua. Ana inclinou a cabeça. — Diga-me. Quem eram aqueles homens? Seus olhos deslizaram para as ruas ao redor deles, como se temesse que os mercenários emergissem das sombras. O medo era bom, no entanto. O medo era uma arma, como Sadov a ensinara muito bem. — Caçadores de recompensas — disse o barman, suas palavras arrastadas com um sotaque Cyriliano de baixo nascimento. — E para onde eles o estão levando? — Kerlan — o barman sussurrou, ficando ainda mais pálido. O nome parecia lançar uma sombra sobre ele, apertando o medo em seu pescoço. — Quem? — Kerlan. Senhor Kerlan. — Quem é esse? E onde ele está? — O Chefe da Ordem, em Nova Mynsk. Ela queria perguntar de que Ordem ele falava, mas seu coração parou com as palavras Nova Mynsk. May estava indo para lá. Todos os outros pensamentos se dispersaram. Sua direção foi clara. — Preciso de um cavalo — disse Ana, fazendo uma aposta. O barman assentiu freneticamente. — Os estábulos. Escolha o que quiser. Ela o recompensou com um sorriso sem graça, como o que vira tantas vezes no rosto de Sadov. — Mais uma coisa. Eu vou levar isso. Ela pegou a bolsa de folhas-de-ouro que havia sido abandonada na estrada de terra. Ela não se sentiu mal por isso, Ana percebeu, enquanto girava nos calcanhares e caminhava em direção aos estábulos nos fundos. Afinal, os caçadores de recompensas haviam pago aquele ouro por Quicktongue, e como Quicktongue era seu prisioneiro, era lógico que ela deveria ficar com o ouro. — Fique aí até não poder mais ouvir meu cavalo — ela gritou por cima do ombro —, você se move, e eu vou fazê-lo sangrar até secar. Os estábulos eram surpreendentemente bem conservados. Ana escolheu uma valkryf com um casaco cor de leite, já selado, como se o dono esperasse uma breve parada. Quando saiu dos estábulos em um trote rápido, o barman ainda estava de pé onde ela o havia deixado. Ela manteve sua Afinidade afiada nele até que estivesse longe o suficiente para que o brilho de seu sangue se desvanecesse para um lampejo, e depois para nada. *** O sol estava quase se pondo, sua luz se espalhando pela extensão da Syvern Taiga como um último suspiro. Nuvens de tempestade se acumularam no horizonte, e o ar ficou mais denso com a promessa de chuva. Ana estendeu sua Afinidade, varrendo as redondezas em busca da trilha dos caçadores de recompensas. A Fortaleza do Urso Cinzento estava perto o suficiente da margem da cidade para que ela não tivesse que atravessar uma multidão de corpos antes de se aproximar dos caçadores de recompensas. Não havia dúvida; ela sentiu, borradas e distantes, três figuras: duas com sangue correndo rápido e uma lenta, várias centenas de passos à sua frente. Enquanto conduzia seu cavalo ao redor da última dacha, ela avistou dois cavaleiros à distância, correndo para as sombras da Syvern Taiga. De repente, ela desejou ter algum tipo de arma consigo. Ela nunca tinha aprendido a lutar, ou mesmo a manusear uma espada, e entrar em uma luta com uma Afinidade enfraquecida e mãos vazias a fazia se sentir extremamente vulnerável. Mas ela não tinha escolha. May se foi, seu alquimista ainda está desaparecido, e sua única esperança estava inconsciente nas costas de um dos cavalos dos mercenários. Ana não tinha arma nem plano, mas também não tinha mais nada a perder. Cem passos. Ela se aproximou cada vez mais. A qualquer momento, os mercenários poderiam se virar e avistá-la. Cinquenta passos. Ela podia vê-los claramente agora, movendo-se muito mais devagar do que ela com o criminoso inconsciente amarrado a um cavalo. E eles a viram. Eles diminuíram a velocidade de seus cavalos e contornaram a margem das árvores, as mãos demorando perto de suas espadas. Um vento frio agitou-se, sacudindo as folhas secas de inverno na grama morta. Sombras tremeluziram nos rostos dos homens. Ana deu um puxão no capuz. Seu coração batia dolorosamente em seu peito, e ela se viu estendendo a mão com sua Afinidade, mantendo-a equilibrada como se fosse uma lâmina. Uma sensação de calma a envolveu quando sua Afinidade se estabeleceu sobre o sangue pulsando pelos corpos dos mercenários. Dela para comandar, se ela desejasse. Ela agarrou esse pensamento, deixando-o alimentar sua coragem. — Liberte esse homem. Ele é meu encarregado — gritou. O mercenário cavalgando sozinho, o líder, falou primeiro. Mesmo em seu cavalo, Ana podia ver que era um homem incrivelmente alto. Ele era o de barba preta, aquele que ela tinha visto entregar a bolsa de folhas-de-ouro ao barman. Ela estava perto o suficiente para ouvir seu grunhido baixo. — Você tem coragem, moça, cavalgando atrás de nós sozinha. Tem um desejo de morte, ou o quê? — Você já deve ter ouvido — disse Ana —, o que aconteceu no Vyntr'makt em Kyrov? — O que? Você perdeu sua boneca damashka? — Barba Negra e seu companheiro gargalharam. Ana manteve o rosto em branco. Ela sabia das aulas com seu irmão que algumas negociações exigiam placidez. Outros pediam firmeza. E finalmente, no mais raro dos casos, você mostrava seu poder. Lentamente, Ana tirou a luva e esticou os dedos, levantando a mão bem alto. Ela convocou sua Afinidade. A zombaria nos rostos dos mercenários desapareceu, substituída por uma alternância de horror e desgosto, enquanto as veias em sua mão começaram a escurecer, das pontas dos dedos ao cotovelo. — Uma Afinita — zombou Barba Negra —, você acha que pode nos ameaçar só porque é um desses deimhovs? Oi, Stanys. Veja-me derrubar essa bruxa. — Precisa de ajuda, chefe? — seu companheiro gritou. — Leve a pedreira para um lugar mais seguro. — Barba Negra virou-se para Ana com um sorriso malicioso. — A bruxa é minha. Com a raiva entalada em sua garganta, mas ela a forçou para baixo, enquanto pensava em Luka. Seu bratika sempre lutou pela paz sempre que possível. Ana deu-lhe uma última tentativa. — Entregue-o agora, e ninguém precisa se machucar. A expressão de Barba Negra escureceu. — Eu vou te ensinar tudo sobre machucar — rosnou, e lançou seu cavalo em direção a ela. Seu cavalo gritou com o ataque repentino, saltando para trás. Ana teve tempo suficiente para sentir a mudança no equilíbrio antes que a sela se inclinasse embaixo de si e caísse. Por instinto, ela se agarrou ao sangue de Barba Negra e puxou. Seu xingamento soou, e ela o viu cair assim que suas costas sacudiram contra o chão, derrubando o vento dela. Perto, houve um baque quando Barba Negra amorteceu sua queda com um rolo. Ana respirou fundo, desejando que seus membros atordoados funcionassem novamente. Ela ouviu o schick da adaga de Barba Negra enquanto ele a tirava da bainha. — Maldita deimhov — rosnou, e saltou. Através da névoa em sua mente, ela agarrou sua Afinidade. Barba Negra baixou sua lâmina. Um estrondo de trovão abafou seu grito enquanto a dor queimava sobre seu ombro. O sangue floresceu em seus sentidos. O sorriso do mercenário ficou branco. Prendendo-a com seu corpo, ele trouxe sua adaga para sua bochecha. Na penumbra, ela podia distinguir o líquido esverdeado enquanto formava uma gota na ponta da lâmina. O terror a encheu. — Reconhece isso, sua bruxa? — O tom de Barba Negra era triunfante, zombeteiro. — Você acha que só porque você é uma Afinita, isso a torna mais poderosa do que nós? Lentamente, ela estava recuperando o controle de seu corpo; a névoa em sua mente estava se dissipando. Ana contraiu um dedo. — Pense de novo. Você fez uma escolha idiota, revelando-se para nós, Deimhov. Eu domino monstros como você. Eu troco monstros como você. — Barba Negra aproximou o rosto do dela. — Você não me assusta. Com a outra mão, ele empurrou um frasco de vidro de Deys'voshk aos lábios dela. Líquidoamargo encheu sua boca. Ela estava de volta às masmorras novamente, correntes de metal e tiras segurando-a no lugar, o sabor do veneno pungente inundando seus sentidos. Minha monstrinha, sussurrou Sadov. Ela engasgou agora, sua mente paralisada com medo, sua garganta engolindo o Deys'voshk como ela tinha sido condicionada. Algo espirrou em seu rosto. A princípio, Ana pensou que estava chorando, mas quando outra gota caiu em seu rosto, depois outra, ela percebeu que estava chovendo. O céu se iluminou com um relâmpago, e trovões bateram quando a chuva começou a cair. Um vento frio rasgou seu cabelo, incitando-a em sussurros raivosos. Ela não estava em uma masmorra, não era Sadov, e ela não era a garota indefesa e assustada que tinha sido. E ela havia desenvolvido uma tolerância aos Deys'voshk. Barba Negra jogou seu frasco na grama. Um relâmpago brilhou, refletindo no vidro, a um braço de distância de Ana. — Ainda se sentindo poderosa, sua bruxa? — ele sussurrou em seu ouvido. — Não tenho uma preferência particular pelo seu tipo, mas conheço algumas pessoas que têm. — Ele agarrou seu queixo com força suficiente para machucar. Ana forçou seus olhos a permanecerem em Barba Negra enquanto sua mão serpenteava ao longo da grama. — Muitas coisas que se pode fazer com um rosto bonito como o seu. Há muitas folhas-de-ouro que se pode pagar. — Seu sorriso se alargou, e sua mão vagou para o cinto. — Mas primeiro, eu vou ter que experimentar por mim mesmo... A mão de Ana se fechou em torno do frasco de vidro. Com toda sua força, ela o esmagou em seu rosto. Os estilhaços perfuraram sua palma, enviando rajadas afiadas de dor pelo braço, mas Ana só sentiu uma satisfação sombria quando o homem uivou, segurando seu rosto. O sangue escorria por suas bochechas, e quando ele tirou a mão, Ana viu que um caco de vidro havia se alojado em seu olho direito. Ela atacou. Sua Afinidade ainda estava lá, ainda forte apesar da névoa de Deys'voshk que começou a rastejar em seus sentidos. Ela bloqueou o sangue escorrendo pelo rosto de Barba Negra, agarrando isso e os laços dentro de seu corpo e dando a tudo um único puxão vicioso. Era como abrir uma garrafa de vinho; o sangue escorria da boca de Barba Negra por sua persuasão, correndo pela grama em riachos com a água da chuva. Morra, pensou Ana, a fúria envolvendo-a, incandescente. O que ele queria fazer com ela, o que ele provavelmente fez com dezenas de outras Afinitas impotentes – ela se certificaria de que ele nunca seria capaz de fazer nada disso novamente. Morra. Um relâmpago iluminou o rosto ensanguentado de Barba Negra e, por um momento, Ana viu o rosto do corretor que havia roubado May, seus olhos pálidos de gelo cravados nos dela. A ira queimava em suas veias; ela deu um puxão violento. Houve o som molhado de carne se rasgando. Barba Negra fez um som de asfixia quando seu peito se abriu; por um momento ele ficou suspenso no tempo, boca aberta, olhos arregalados, gotas de seu sangue brilhando como rubis na chuva. Então seus olhos se fecharam e ele tombou na grama com um baque surdo. A exaustão sufocou Ana, tão repentinamente que sua visão ficou turva. Seus membros eram de chumbo; sentiu como se estivesse afundando na lama. Ela não conseguia mais dizer se a tontura era por causa do efeito venenoso do Deys'voshk em seu sistema ou por esforço excessivo. Talvez fosse os dois. — O que... A vinte passos de distância, o segundo mercenário — Stanys — desmontou. Ele olhou para seu líder incrédulo antes de seus olhos pousarem em Ana. — O que diabos você fez, sua deimhov? Sua cabeça girava enquanto ela se levantava. A adaga de Barba Negra estava na lama ao lado de seu corpo, descartada, mas ela não achava que teria forças para pegá-la. — Vá embora, ou eu vou matar você também. — Sua voz mal carregava o som da chuva. Stanys espalmou sua adaga. Havia um desafio em seus olhos quando ele deu um passo à frente. Então outro. E outro. Ele estava testando as águas, vendo o quão perto poderia chegar antes que ela usasse sua Afinidade. Vendo se ela ainda podia. As pernas de Ana tremeram com o esforço de ficar de pé. O mundo balançou quando ela agarrou sua Afinidade. Por favor. Ela odiava sua Afinidade, a ideia de usá-la... mas agora ela precisava dela. Não havia mais nada entre ela e a lâmina na mão de Stanys. Sua cabeça se partiu de dor. Ana caiu de joelhos. Ao erguer a cabeça para olhar para Stanys, percebeu que sua Afinidade havia chegado ao limite. Ela poderia muito bem estar tentando agarrar o ar vazio, o vento retorcido. Não, pensou, tremendo, sua cabeça latejando a cada passo do homem que se aproximava. A sombra de Stanys caiu sobre si; ela podia ver a pele de suas botas de onde estava ajoelhada, a curva de sua lâmina de aço negro que separava a chuva. Suas mãos tremiam. Era isso? A adaga do mercenário brilhou. Relâmpagos riscaram o céu, iluminando sua lâmina... e a sombra atrás. Stanys balançou sua lâmina para baixo. E encontrou o metal. Um grito estridente soou na noite. Um grito de guerra. — Mexa-se! — gritou Ramson. Com um último jorro de força, Ana rolou para longe deles assim que Ramson se lançou para frente. Ana levantou a cabeça e viu como Ramson Quicktongue, criminoso e bastardo egoísta, lutar por suas vidas. 13 O mercenário atacou, duas adagas brilhando como os olhos de um demônio através da chuva pesada. Ramson aparou o golpe de frente, grunhindo enquanto se esquivava por pouco do golpe da segunda adaga. Ele girou e cortou para o lado. A ponta de sua espada desviou em um arco gracioso, mas nem perto do mercenário. Seu oponente atacou novamente, lâminas gêmeas implacáveis. Metal ressoou quando Ramson bloqueou uma adaga. Desta vez, o segundo o mordeu em um golpe vicioso em seu antebraço. Fazendo uma careta, ele girou para fora do caminho, recuando o máximo que pôde sem puxar o homem para mais perto da bruxa. O sangue escorria da ferida em seu braço, misturando-se com a chuva. Merda, ele pensou, reajustando seu aperto escorregadio e balançando a cabeça para limpar a tontura do golpe de Igor mais cedo. Merda. Seu oponente era mais alto e mais forte. E Ramson estava enferrujado. Pense, disse a si mesmo desesperadamente. Ele precisava ganhar tempo. Seu inimigo atacou. Ramson encontrou as lâminas gêmeas com um golpe próprio, cortando para baixo. Metal gritou. Ele torceu sua lâmina com força, usando uma técnica que aprendera com seu mestre espadachim, travando momentaneamente as duas adagas. O caçador de recompensas o olhou e mostrou os dentes. — Apenas um lembrete — Ramson gritou sobre suas lâminas emaranhadas —, Lorde Kerlan provavelmente me quer inteiro, certo? — Eu vou te levar inteiro — o mercenário rosnou —, depois de eu te cortar e costurá-lo novamente. Não era uma confirmação, mas era o mesmo: Kerlan o estava caçando. Embora Ramson, ironicamente, apostasse sua vida que Kerlan o queria de volta vivo. Se Kerlan o quisesse morto, você acordaria com um punhal contra seu pescoço e sua garganta cortada antes mesmo de poder gritar. A maioria das pessoas, de qualquer forma. Havia uma razão para Ramson ter sido vice de Kerlan. Enquanto Kerlan ainda o quisesse vivo, Ramson tinha uma moeda de troca. Com um grunhido, Ramson se virou e torceu sua lâmina, girando um círculo completo para que ele estivesse vários passos atrás, espada erguida. — Não precisa ficar tão bravo com seu parceiro morto. Sem ele, agora você terá o dobro da recompensa. — Eu não dou a mínima para ele. — O mercenário ergueu uma adaga, apontando por cima do ombro de Ramson. — Assim que eu cuidar de você, farei aquela bruxa se sentir no inferno antes de morrer. O sangue de Ramson ficou gelado. Ele conhecia esses tipos de homens: assassinos que não conheceram nada além de violência durante toda a vida. Para Ramson,a violência era um meio para um fim. Para esses homens, a violência não tinha fim. Você poderia correr, uma voz dentro dele insistiu. Deixe a garota com ele e aproveite a chance de escapar. Ele a mataria. Faria coisas piores com ela. Você não se importa, a voz insistiu. Você cometeu o erro de se importar antes. E eles acabaram mortos de qualquer forma. A lógica lhe dizia que escapar era o melhor curso de ação. O cálculo lhe disse que o mercenário era mais alto e mais forte, e que suas próprias chances de vencer eram menores do que uma lua nova. No entanto, algo mais poderoso que a lógica e mais convincente que o cálculo rugiu em suas veias enquanto ele apontava sua lâmina para o mercenário. Ramson cravou os calcanhares no chão. — Ela é minha — ele rosnou —, e eu não compartilho. Com um grunhido, seu inimigo avançou. Ramson disparou para trás, esquivando-se de cada golpe rápido das duas lâminas alternadas. Desviar, abaixar, girar, desviar, como se estivesse em uma dança mortal, seus movimentos leves e fluidos. As lições de sua juventude estavam voltando para ele e sentiu como se tivesse sido transportado para outro tempo e lugar, quando seu mestre de espadas estava caindo sobre ele sob o azul brilhante de um céu Bregoniano. Fluido como o rio, forte como o mar. Esta era apenas mais uma lição; apenas mais uma dança. Ramson saltou para fora do caminho quando as lâminas do mercenário o golpearam, tão rápido que eram um borrão cinza-prateado na chuva. Golpe após golpe, o mercenário se abateu, seus golpes ficando mais rápidos e mais fortes. Ramson se esquivou. Rosto, garganta, peito, pernas – volta e meia, o canto de suas lâminas subindo a um crescendo. Ramson fintou para a esquerda; seu oponente atacou. Ramson cortou para a direita; seu oponente se esquivou. Pouco a pouco, a exaustão de Ramson começou a aparecer. Seus membros doíam. Logo sua fraqueza lhe custaria. Ramson deu um pulo para trás quando o mercenário desceu as lâminas, mas sentiu a picada aguda de metal em seu peito. O sangue aqueceu suas roupas. Ele mal teve tempo de olhar para cima quando o punho do mercenário colidiu com seu rosto. A dor explodiu em sua mandíbula. Pontos pretos encheram sua visão e o mundo girou enquanto ele cambaleava. Ele mergulhou para trás na lama fria e úmida. Ofegante, rolou para o lado, pegando sua espada. Uma forma escura irrompeu da cortina de chuva, e o mercenário estava sobre ele, acertando um, dois, três socos violentos em seu abdômen. Ramson vomitou; estrelas irromperam diante dele. Um lampejo de metal. Ajoelhando-se em cima de Ramson, o mercenário baixou sua lâmina. As mãos de Ramson voaram para cima. Seus braços gritaram; suas pernas pareciam algodão; sua cabeça estava leve pelas respirações que não conseguia fazer. Um sorriso selvagem dividiu o rosto do mercenário enquanto ele jogava o peso de seu corpo para empurrar a adaga para baixo, sua ponta de aço brilhando como uma promessa perversa. O homem ia afundar a lâmina no coração de Ramson. Lentamente. Vou morrer. A ponta da adaga pressionou sua caixa torácica, tirando sangue. Um grito estrangulado rasgou da garganta de Ramson quando ele deu um empurrão final... E de repente, a pressão em seu peito e em seus braços desapareceu. A cabeça do mercenário voou para trás bruscamente, a garganta exposta. Por um momento, ele ficou paralisado, o contorno rígido na chuva como se estivesse lutando contra uma força invisível. E, então, caiu na lama. Ramson se agachou. Mesmo quando tropeçou para longe, o mercenário começou a levantar. Mas foi a figura dez passos atrás do mercenário, apenas um contorno na chuva que caía, que chamou a atenção de Ramson. A bruxa estava de quatro, o vermelho em seus olhos retrocedendo enquanto se afastavam do mercenário. O sangue escorria de seu nariz e boca. Por um momento, seus olhares se encontraram. E, então, ela desmoronou. Ramson tinha ouvido falar de Afinitas ultrapassando seus limites. As Afinidades extraíam energia de seus corpos, e o esforço excessivo poderia levar à inconsciência ou, nos casos mais raros, à morte. Por uma fração de segundo, olhando para o quadro imóvel da bruxa, ele se perguntou se ela havia morrido, e como ele se sentiria sobre isso. Ela era uma Troca e um ativo valioso, então isso seria uma perda... mas havia algo mais puxando sua consciência. Ela o salvou... de novo. Pela segunda vez, ele tinha uma dívida de sangue com a bruxa. Há muito tempo, seu pai, o demônio que se denominava pai, lhe ensinara o significado das dívidas de sangue, da honra e da coragem. Ramson se obrigou a esquecer quase todas as lembranças daquele homem. Mas hoje, com a chuva rugindo ao seu redor, formas fantasmagóricas se ergueram do chão, sussurrando para ele as palavras de seu pai. Um relâmpago brilhou, delineando a forma imponente do mercenário em meio à chuva cortante. Sua espada brilhava molhada quando ele se virou para a forma amassada de Ana. A cabeça de Ramson girou. O chão ficou borrado, entrando e saindo de foco. Mexa-se. Ramson cravou as unhas na lama, lutando para recuperar o controle de seus músculos. Algo áspero e duro cavou em sua palma. Ele levantou a mão. Meio enterrada na água lamacenta abaixo de si estava a corda áspera e molhada da qual ele facilmente se desvencilhou enquanto os mercenários estavam distraídos por Ana. As mãos de Ramson se fecharam ao redor da corda, grossa como a linha de âncora de um navio. A inspiração repentina atingiu. Ele estava enfraquecido e exausto, sem vantagem sobre esse mercenário em uma luta de espadas. No entanto, fora da esgrima, Ramson tinha uma vantagem. Antes de se tornar um senhor do crime Cyriliano, Ramson tinha sido um marinheiro. Um marinheiro Bregoniano de sangue-azul. Ele se levantou, segurando sua espada e esticando o longo comprimento de corda entre suas mãos. Em poucos segundos, as mãos de marinheiro haviam trabalhado a ponta em um bowline3 com um laço grande o suficiente para caber na cabeça de um homem. Tão fluido quanto o rio, pensou. A chuva caía tão forte agora que era difícil enxergar além de uma dúzia de passos. O rugido do dilúvio bloqueou qualquer outro som. Ele estava em um navio de novo, no meio de uma tempestade, navegando com nada além de uma bússola quebrada e aquele menino com a voz fina e aguda ao seu lado. Ramson apertou seu laço, seus músculos enrolados mais tensos que uma mola. 3 Um nó simples para formar um laço que não escorrega no final de uma corda. — Ei, cara de cavalo! — ele gritou. — Encontrar suas bolas e enfrentar alguém do seu tamanho, não quer, né? O mercenário virou. Um rosnado dividiu seu rosto feio quando espalmou suas adagas. — Eu vou quebrá-lo como um pedaço de pau — rosnou, e se arremessou em direção a ele. Ramson saltou para trás. Em uma extensão do mesmo movimento, ele sacou o comprimento da corda, amarrando-a em seu inimigo. O movimento era suave, familiar. Ele tinha feito isso mil vezes em uma vida muito passada. A corda encontrou sua marca. Como uma coisa viva, chicoteou em volta do pescoço do mercenário. Ramson jogou seu peso para trás e puxou, bruscamente e com toda sua força. O mercenário tropeçou fora de equilíbrio, suas pernas emaranhadas quando ele caiu no chão. Seus dedos arranharam o laço em volta do pescoço. Ramson saltou para frente, o cabo de sua adaga escorregadio, mas firme em suas mãos. Ele a mergulhou através de pele, tendões e carne, e cortou para cima. O mercenário estremeceu e, com mais algumas contrações, sua luta cessou. O sangue jorrou, silenciosamente se acumulando ao redor dele. Ramson caiu de joelhos. A chuva caía sem parar, já lavando o sangue de suas mãos. Ele respirou fundo, tentando acalmar o galope frenético de seu coração e seus membros trêmulos. Ele foi descuidado; quase morreu. Talvez a prisão o tivesse tornadomais lento, mais suave. Ele não podia pagar isso de novo, porque da próxima vez, a bruxa poderia não estar lá para ajudá-lo. Ele estava com frio, encharcado e ferido, e teria dado de bom grado metade das folhas-de-ouro em sua posse por uma cama macia, uma lareira quente e uma boa garrafa de conhaque Bregoniano naquele momento. Mas ele precisava se mover... rapidamente. Não havia como saber se os mercenários tinham aliados por perto. Gemendo, ele se levantou. A bruxa estava imóvel ao lado do tronco de uma árvore, mas não era para ela que ele olhava. Ramson parou no corpo do primeiro mercenário. A boca do homem estava aberta, seu rosto congelado em um grito silencioso, sua pele estranhamente sem cor, como se o sangue tivesse sido drenado dela. E tinha, Ramson percebeu com medo doentio. A água da chuva que se acumulava ao redor do corpo sangrava em carmesim, a cor se infiltrava na lama. Ele ouvira uma história uma vez: uma terrível assombração que ocorrera dez anos atrás com uma Afinita. Os corpos, retorcidos como uma obra de arte grotesca. Os olhares de terror nos rostos das vítimas. A falta de perfurações. E o sangue, todo o sangue... Eles a chamavam de Bruxa Sangrenta de Salskoff – uma história de uma década atrás, neste ponto, a culpada tendo desaparecido para nunca mais ser vista. Alguns tomaram isso como um sinal de que os Afinitas estavam ficando mais poderosos, que poderes mais sombrios enfeitavam esses monstros esculpidos pelas mãos de demônios. Ramson tinha pensado que tudo era uma pilha de besteira. Mas isso não o impediu de ficar de olho na poderosa Afinita que se tornou esse mito. Ele simplesmente nunca pensou que ela viria procurá-lo. Uma tosse chamou sua atenção. Ele correu para a bruxa. O sangue escorria de seu nariz. Ela estava tremendo, mas estava consciente. — Você está bem? — Ele tocou um dedo em sua bochecha; sua pele estava mais fria que gelo. Pela segunda vez desde que se conheceram, ele a examinou, passando o olhar sobre as maçãs do rosto elegantes, o rosto em forma de coração e o queixo pontudo que a tornava bonita, mas de aparência selvagem. Ela era jovem, jovem demais para ser a Bruxa Sangrenta de Salskoff, mas quando ele estendeu a mão e inclinou o rosto para cima, percebeu o tom vermelho desbotado de seus olhos. Algo se agitou em sua memória novamente – ela parecia levemente familiar, como um retrato que ele havia visto muitos anos atrás e que havia deixado uma impressão única e profunda. Mas isso era impossível. Ramson deixou cair a mão. — Como você me achou? — A Fortaleza do Urso Cinzento. O barman. — Ele te disse? — Ela assentiu. Ramson xingou. — Temos que nos mover. Ele enviará homens atrás de nós. Você consegue? Ela inclinou a cabeça em um movimento que poderia ter sido um aceno de cabeça ou uma sacudida. — Eu peguei um cavalo. — Sua voz era apenas um sussurro, e ela acenou para as árvores atrás de si. — Por ali. Os cavalos dos mercenários fugiram, o que os deixou com um único corcel – aquele que Ana havia roubado. Com um suspiro resignado, endireitou-se e foi à procura do cavalo. Encontrar a fera era o próprio inferno, com a chuva transformada em granizo reduzindo sua visão e suas botas chacoalhando a lama a cada passo. Quando viu seu contorno pálido, ele quase riu. — Uma valkryf? — perguntou quando ele levou o cavalo de volta. — Igor deve estar amaldiçoando as Deidades que você levou a criatura viva mais valiosa em sua taverna. A bruxa estava enrolada contra a árvore na mesma posição que ele a deixou. Quando ela não respondeu, ele largou as rédeas e se ajoelhou ao lado dela, levantando seu queixo e forçando seu rosto em direção ao dele. — Bruxa? — respirou. — Ana? Seus cílios tremularam. Ramson xingou. Ela ia desmaiar de novo, e isso tornaria extremamente inconveniente para ele içá-la no cavalo. — Ana — disse com urgência, balançando o ombro dela —, eu preciso que você fique acordada por mais um pouco. Você pode fazer isso? Sua cabeça mergulhou no mais fraco dos acenos. Ele se levantou e de repente percebeu o que estava errado. A ausência de curiosos olhos cor de oceano. — Onde está May? O rosto de Ana estava tenso e cansado anteriormente, mas uma faísca de aço apareceu em seus olhos. À menção de May, porém, qualquer determinação remanescente nela pareceu se dissolver. O rosto de Ana se contorceu, e tanta dor crua e vulnerabilidade cruzaram suas feições que Ramson desviou o olhar. Parecia que ele estava olhando para algo intensamente privado. Um soluço gorgolejou de sua garganta. — Eles a levaram. — Seus ombros caíram e ela envolveu seus braços trêmulos ao redor de si mesma. — Os Mantos Brancos. Eu não podia... eu não podia... — Nós vamos pegá-la de volta. — Ele agarrou a primeira frase reconfortante que veio à mente, e foi a primeira que não era intencionalmente uma mentira. — Mas agora, precisamos nos mover. Você consegue? Ela se mexeu fracamente. O sangue continuou a pingar de seu nariz. Ignorando o tremor em seus próprios membros, Ramson se abaixou, passou um braço em volta da cintura dela e a colocou de pé. Eles cambalearam desigualmente até o cavalo de Ana. Ficou em silêncio na chuva com a paciência por excelência de uma valkryf. Grunhindo, Ramson colocou a bruxa – Ana – na sela. Mantendo a mão nas costas dela para estabilizá-la, ele se levantou atrás dela. Quando tomou as rédeas em suas mãos, ele sentiu uma renovada sensação de poder através dele, apesar do estado desgastado de seu corpo. Ele estava vivo, com uma poderosa Afinita ao seu lado, cavalgando uma valkryf para se abrigar. As coisas melhoraram significativamente desde seu sequestro. Ana se mexeu, pegando algo em sua frente. Com o que parecia um tremendo esforço, levantou uma grande bolsa de couro para ele ver. — Eu peguei isso do barman — ela resmungou —, desde que ganhei você dos caçadores de recompensas, suponho que agora me pertença. Ramson olhou para a bolsa volumosa de folhas-de-ouro em suas mãos, uma risada presa em sua garganta. Pela primeira vez, ele não tinha interesse no ouro. Havia tantas coisas que ele queria dizê-la, tantas palavras na ponta da língua. Obrigado por vir atrás de mim. Obrigado por lutar por mim. Obrigado por salvar minha vida. Mas Ramson não conseguiu pronunciar nada disso. Em vez disso, deu uma risada rouca, bateu na bolsa e disse: — Eu te ensinei bem. 14 Ana acordou lentamente com o cheiro fresco de um mundo encharcado de chuva e o crepitar de uma fogueira. Tudo doía. Ela teve a estranha sensação de que cada parte dela havia se transformado em pedra – pedra pesada e fria – e ela nunca mais se moveria um centímetro. Embaçada, ela abriu os olhos. Com a mesma relutância, o mundo voltou ao foco em um borrão de luz e sombras. Estava deitada em um chão de pedra dura. Ao seu redor, grandes pilares se erguiam, curvando-se em tetos arqueados bem acima de sua cabeça. A pedra estava enfeitada com entalhes ornamentados, e ela pensou nos templos que frequentara em Salskoff. Homens e mulheres dançavam em um círculo sem fim em um interlúdio entrelaçado das quatro estações, das flores às folhas caídas e aos flocos de neve. Primavera. Verão. Outono. Inverno. Ela estava em um Templo das Divindades, no meio da Syvern Taiga, a julgar pelos sussurros das árvores lá fora. O luar escorria pelo vidro rachado das longas janelas, projetando o mundo em silhuetas e luz. No topo da cúpula, janelas circulares formavam um anel ao redor do centro. As janelas foram divididas em quadrantes, cada um com uma escultura dentro: uma flor, um sol, uma folha e um floco de neve. O Círculo das Divindades – o Deys'krug. A luz filtrava-se pelas esculturas e as projetava em sombras sobrepostas no piso de mármore branco. Um leve vento agitou-se e, como sempre, quando se encontrava em um templo, pensava em suatia. Mamika Morganya sempre adorou devotamente as Divindades, ajoelhada no templo do Palácio com seu cabelo escuro enrolado em uma trança, seus lindos olhos de corça fechados. Se Ana fechasse os olhos agora, quase podia ouvir o suspiro do kechyan de seda de sua mamika, o tilintar suave de um Deys'krug prateado em volta do pescoço. Seu coração doeu ao pensar em sua mamika. Foi sua tia quem a ensinou a interpretar as lendas das Divindades, a encontrar um pouco de alívio em um mundo que desprezava Ana e sua espécie. Ana empurrou-se para cima, respirando fundo e estremecendo ao sentir uma dor aguda na barriga. Uma mão correu para seu abdômen; a outra estendeu a mão para May. Sua mão apertou o ar vazio. Os detalhes da noite anterior voltaram a cair. A chuva. Os mercenários. O sangue. A bile subiu em sua garganta; ela esfregou os olhos para afastar a imagem de Barba Negra, seu rosto se contorcendo, vermelho derramando de sua boca. Literalmente sangrou a seco. O trabalho de deimhov. Mas... também havia algo mais. Alguém a ergueu em um cavalo, segurando-a firme durante toda a noite enquanto cavalgavam por uma floresta escura e castigada pela chuva. Ela perdeu a consciência em algum momento... e ainda assim... Ana tocou o linho áspero de sua túnica e calções, suas mãos automaticamente puxando para uma capa com capuz que não estava lá. Estava espalhada sobre uma pedra perto do fogo, secando. A bolsa dela estava ali perto. — Finalmente — veio uma voz familiar, assustando-a. Nas sombras sob um pilar com a escultura de um peixe saltitante, uma figura se moveu. Ramson Quicktongue inclinou-se para a luz do fogo, os olhos brilhando, a boca curvada naquele sorriso enfurecedor —, eu estava cansado de verificar se você tinha morrido. A inquietação a percorreu. Há quanto tempo ele estava sentado ali, observando-a? A noite passada tinha sido um erro... ela gastou demais sua Afinidade e se deixou indefesa. Ele poderia facilmente tê-la matado. Mas... ele não tinha. Ana estreitou os olhos. — Estou bem, obrigada por perguntar. — Sua voz saiu rouca, como se alguém estivesse esfregando uma lixa em sua garganta. Ramson riu e se levantou, segurando um odre. Quando ele se aproximou, ela percebeu que as manchas escuras em seu rosto não eram sombras, mas contusões florescentes que estavam ficando com um tom desagradável de roxo. — Obrigada por salvar minha vida, Ramson — ele recitou, estendendo as mãos e passeando —, obrigada por me manter aquecida e seca, Ramson. Obrigada por me dar água e garantir que eu permaneça viva, Ramson. — Ele fez uma pausa quando a alcançou e afundou em uma reverência. — De nada, meya dama. Ela o olhou, mas suavizou quando ele lhe passou o odre. Enquanto bebia a água fria da chuva, ela de repente percebeu como estava com sede e com fome. — Quanto tempo eu dormi? — Um dia. As palavras a atingiram como um soco. Eles tinham perdido um dia inteiro sem fazer nada - nada, quando deveriam estar indo atrás daqueles Mantos Brancos que tinham levado May. May. O pânico tomou conta dela. O mundo se inclinou bruscamente quando ficou de pé. Ela bateu na parede, a dor explodindo em seu ombro. — Nós precisamos ir — engasgou —, perdemos muito tempo, nós... Ramson estava falando por cima dela, sua voz elevada. — Acalme suas velas. Não podemos sair agora... — Eles a têm! — Sua voz elevou-se histericamente. — Eles têm à May. O Yaeger... ele disse que iam prendê-la... — Ana, pare! — Sua voz soou agudamente na câmara vazia do templo. O sorriso fácil havia sumido do rosto de Ramson, e suas mãos se ergueram em um gesto apaziguador. — Pare e pense. Um nó subiu em sua garganta quando ela pensou em May, sozinha naquela praça vazia, os punhos cerrados. Você não vai machucá-la. Lágrimas queimaram atrás de seus olhos. Ela havia prometido proteger May para sempre. — Tudo bem — disse, e embora sua voz tremesse um pouco, ela se fortaleceu. Ela ia recuperar May. E faria isso do jeito de Ramson... pensando bem e bolando um plano e dez planos de reserva — Sente. As sobrancelhas de Ramson se contraíram, mas ele deu de ombros aparentemente bem-humorado e se sentou em frente a ela. — Você vai me ajudar a recuperá-la, criminoso. — Eu? Divindades, quem teria pensado? — Eu não estou brincando. Eu não me importo se não for parte da nossa Troca. Eu o salvei de qualquer destino que aqueles caçadores de recompensas tinham em mente para você. Já que fala tão bem a linguagem da barganha, deixe-me colocar desta forma: você me deve e vai me pagar. — Já que você acha que fala tão bem a linguagem da barganha, deixe- me dizer isso. — Os olhos de Ramson tinham um brilho brincalhão, e ele se inclinou para frente enquanto falava. — Se não tivesse me salvado, você teria perdido sua Troca e seu precioso alquimista. Ela não se distrairia com as provocações que ele lançava em seu caminho. — Eu o deixei sozinho por trinta minutos e você foi enganado por um barman e dois mercenários. — Seu humor se animou um pouco com o olhar mal-humorado que passou pelo rosto dele. Ana se inclinou para frente, espelhando sua pose. Eles estavam a apenas um braço de distância um do outro. — Por que eles o sequestraram? Quem está caçando você? — Eu te disse. É a marca de um excelente senhor do crime ter muitos inimigos. — É também a marca de um excelente senhor do crime ser capaz de derrotar seus inimigos. — Ana nivelou um olhar uniforme sobre ele. — Você precisa de mim. Precisa da minha Afinidade. Eu sou sua Troca. E eu só vou defender isso se você me ajudar. Ramson passou a mão pelo cabelo. — Se você quiser salvar May, talvez não cheguemos a tempo de encontrar seu alquimista. A propósito, cujo nome e localização agora tenho. Ele havia roubado o fôlego dela novamente. No entanto, Ana se viu inclinada para frente, enrolada pela linha dele. — Onde ele está? Por que não vamos conseguir? — A única maneira de encontrá-lo — disse Ramson —, é chegarmos a Nova Mynsk antes do Fyrva'snezh. Há um evento que devemos... participar. — Nova Mynsk — ela repetiu sem fôlego —, é para lá que eles estão levando May. Eles vão fazê-la se apresentar em um lugar chamado Playpen. — Quem te contou? — O Yaeger... o Manto Branco. — Ah — Ramson disse lentamente —, isso... complica um pouco as coisas. — Não. Nosso destino é Nova Mynsk. Ramson suspirou. — Há um nome que você deveria saber. Alaric Kerlan. Lembre-se bem. Esse nome de novo. O barman de A Fortaleza do Urso Cinzento havia dito isso. Ele o chamou de “Lorde”, mas havia algo mais alarmante, algo que não havia conectado até agora... — Alaric Kerlan — ela sussurrou —, você quer dizer A. E. Kerlan? O fundador do Grupo de Negociações Água-Dourada? Era um nome que a maioria dos nobres do Império Cyriliano conhecia. Ana havia lido tomos inteiros da história de Cyrilia com o Grupo de Negociações Água-Dourada elogiado como um ponto de virada para a economia moderna de Cyrilia. No entanto, para o maior empresário do Império, A. E. Kerlan permaneceu recluso. O máximo que se sabia dele era que era um ninguém que viera das sarjetas de Bregon e construíra sozinho uma próspera rota comercial entre o então degradado Porto Água-Dourada e o resto do mundo. A cautela cintilou nos olhos de Ramson. — Sim — ele admitiu —, mas também o corretor Afinita mais poderoso do Império. — O que? — Seu mundo inclinou. Ana agarrou seu braço, unhas cravadas na carne. — Você está mentindo. — As palavras saíram afiadas como cacos de vidro. O fundador do Grupo de Negociações Água-Dourada, a maior corporação comercial do Império Cyriliano, um corretor Afinita? — Eu lhe asseguro, há muitas vezes que menti para você, mas esta não é uma delas — respondeu Ramson, inexpressivo. Algo nela estava se desenrolando, sua imagem de seu império desmoronando em pedaçose se reorganizando em algo sinistro, estranho e totalmente desconhecido. — Como você sabe? Parecia uma pergunta tão ingênua. Todos ao seu redor sabiam? Papai sabia? — É minha vocação saber das coisas — disse Ramson —, agora, como eu estava dizendo, Kerlan é a complicação do nosso plano. — Ele pegou a bolsa dela e a vasculhou, tirando o mapa. Com um floreio, ele o ergueu e apontou. — Nova Mynsk é território de Kerlan. Se May estiver sendo transportada para lá, o corretor deve estar sob a ordem de Kerlan. Você diz que ela vai se apresentar no Playpen? É propriedade de Kerlan. E acontece que seu alquimista é um colaborador próximo dele. Foi uma luta trazer seu foco de volta para ele. Ana sufocou o turbilhão de seus pensamentos, clareando sua mente. Ela poderia pensar em seu mundo quebrado mais tarde. No momento, seu único objetivo era salvar May. — Então, qual é a complicação? — ela perguntou cansada. — Vamos resgatar May e depois localizar o alquimista. Ramson continuou como se não a tivesse ouvido. — Kerlan organiza o maior baile do Fyrva'snezh todos os anos. Todos os seus associados – todos os senhores do crime, ladrões e traficantes do Império – farão uma aparição. E isso inclui seu alquimista. — Ele deu a ela um olhar aguçado. Seu estômago se apertou. — Eu posso nos colocar neste baile. Mas vai ser difícil. Perigoso, mesmo. — O tom de Ramson era um desafio. — Você está pronta para isso? Ela estava esperando por isso por quase doze longas luas. Ana nivelou um olhar frio em Ramson. — Eu estou. — Ela apontou um dedo para o mapa. — Então isso significa que teremos que encontrar May antes do Fyrva'snezh. Ramson baixou o mapa. — Você não pode ter as duas coisas. Resgatar May no Playpen é como bater na porta de Kerlan e sinalizar para ele que estamos lá. Precisamos do elemento surpresa quando aparecermos no Fyrva'snezh. — Isso não é negociável. — Um peixe na sua mão é melhor do que dois em... — A vida de May não é negociável! — Sua voz subiu para um grito. O silêncio caiu. Sombras dançavam no rosto de Ramson; as chamas refletiam em seus olhos, que se estreitavam. — Você precisa decidir — ele disse finalmente. — O que você quer? — Corrigir os meus erros. O que você quer? — Eu te disse. Vingança. — Vingança contra quem? — Ana se inclinou mais perto, recusando-se a deixar de lado seu olhar. Para seu crédito, Ramson não desviou o olhar. — Por que aqueles mercenários estavam levando você para Kerlan? Ramson igualou sua postura. Eles olharam um para o outro através do fogo, o calor enrolando em torno deles como uma coisa viva, brasas piscando entre eles. — Eu estraguei um trabalho para ele. Quebrou um comércio. Agora você vê as implicações? — Em seu silêncio, ele suspirou e se levantou. — Kerlan sabe tudo o que acontece em seu território. Se você tentar salvar May, corre o risco de perder seu alquimista. Pense sobre isso. — Ele fez uma pausa na saída. — E, Ana, lembre-se disso. Você não é uma Divindade. Você não é o Imperador. Não pode salvar todo mundo. Então pense no que é melhor para você. — Onde você está indo? — ela exigiu. — Limpar minha alma. Ela o observou recuar e de repente desejou que ele não tivesse ido embora. O silêncio pressionou, e foi como se todo o templo, com suas paredes de figuras de pedra, a observasse. Ana correu os olhos pelos entalhes da parede. As figuras podem ter sido pintadas em ouro, prata, lápis-lazúli e esmeralda, mas há muito tempo foram saqueadas por ladrões quando o templo caiu em abandono. Mesmo assim ficou lindo. Reverencial. Como sempre, ela se encolheu sob os olhares atentos das Divindades, muito consciente do que ela era. Monstra. Bruxa. Deimhov. Ela ouviu os gritos daquele dia há muito tempo no Mercado de Inverno de Salskoff enquanto estava paralisada em todo aquele sangue, afirmando ao mundo que ela era o demônio que todos acreditavam que era. Ainda outra parte dela, uma pequena parte, se inclinou para frente, ansiando pela luz, retidão e bondade. Era a pequena chama de esperança que sua tia acendera em seu peito todos aqueles anos atrás, com uma única frase. Tinha sido em um templo como este, a lua chorando sobre terrenos cobertos de neve e lançando uma luz fria sobre o novo túmulo de mamãe. Ela tinha oito anos. Ana ajoelhou-se sob as estátuas das quatro Divindades, suas expressões severas e implacáveis. Ela traçou os dedos sobre o mármore, esculpido nas características exatas do rosto de sua mãe, cílios longos que lançavam sombras de meia-lua sobre as maçãs do rosto altas e cachos vibrantes que sempre pareciam tão cheios de vida. A única coisa que o mármore não capturava, pensou Ana enquanto acariciava a pequena curva entre o nariz e as bochechas de mamãe, era o rico fulvo da pele de sua mãe quando estava viva; o brilho saudável de seu sorriso que parecia iluminar o mundo. Os dedos de Ana desenharam os mesmos padrões repetidamente na fria face branca do mármore, misturando-se com suas lágrimas. Tinha sido apenas uma lua, mas com a ausência de mamãe, o inverno que varreu Salskoff naquele ano era frio e rigoroso, a neve dura e implacável. — Por que? — O sussurro de Ana ficou no ar entre ela e as Divindades de mármore, pequenas e abandonadas. — Por que você a levou? Teimosamente, elas permaneceram quietas. Talvez fosse verdade que as Divindades não ouviam as orações de um Afinita. Uma mão quente deslizou sobre seus ombros, e Ana pulou. Instintivamente, ela passou a mão pelo rosto para limpar as lágrimas antes de se virar. Os olhos calmos da Grã Condessa, da cor de um chá claro, encontraram os dela. Passaram-se alguns momentos antes de Morganya falar. — Sua mãe significava o mundo para mim — ela sussurrou, e Ana não teve dúvidas de que era verdade. Foi mamãe quem encontrou Morganya todos aqueles anos atrás em uma aldeia, seu corpo espancado pelos torturadores que a sequestraram de seu orfanato e a espancaram. Mamãe trouxe Morganya para o Palácio, e elas se tornaram mais próximas do que irmãs. — Suas orações funcionaram? — Mesmo depois de todos aqueles anos, a voz de Morganya não havia perdido o timbre calmo e cauteloso dos oprimidos. Ana hesitou. — Eu não... elas não... eu não acho... — Você não acha que eles ouvem as orações dos Afinitas. — As palavras foram pronunciadas suavemente, mas cortaram mais fundo do que qualquer lâmina. Ana baixou a cabeça, a vergonha preenchendo o silêncio. Morganya prendeu o cabelo de Ana atrás da orelha de uma forma que a lembrou tanto de mamãe que ela quis chorar. — Vou lhe contar um segredo — continuou a Condessa —, elas também nunca responderam ao meu. — Mas você é... — Você não é uma Afinita. Morganya agarrou o queixo de Ana e levantou o rosto de Ana para encontrar seus olhos. — Não há diferença entre você e eu, Anastacya — ela disse suavemente —, as Divindades há muito me enviam uma mensagem através de seu silêncio. — Um brilho de aço aguçou o olhar de Morganya. — Não é seu dever nos conceder bondade neste mundo, Kolst Pryntsessa. Não, Pequena Tigresa... cabe a nós lutar nossas batalhas. O uso que sua tia fez do apelido de Mama para ela trouxe novas lágrimas aos seus olhos. Mas ela falou além do nó dolorido em sua garganta. — Cabe a nós lutar nossas batalhas — ela repetiu, sua voz pequena, mas um pouco mais firme. Morganya assentiu. — Lembre-se disso. Tudo o que quer, você tem que tomar para si mesma. E você, Kolst Pryntsessa, foi escolhida pelas Divindades para lutar as batalhas que elas não podem neste mundo. Tinha sido difícil entender as palavras de sua mamika naquela época. Confinada às duas janelas de seus aposentos e às quatro paredes de seu palácio, ela achava difícil entender que tinha a opção de lutar qualquer batalha, muito menos imaginar que as Deidades a marcaram. Mas talvez sua tia estivesse certa, Ana agorapercebeu enquanto se sentava sob o olhar frio e iluminado pela lua das mesmas Divindades silenciosas. As Divindades nunca responderam suas orações, mas talvez todos aqueles anos de silêncio fossem uma mensagem. Cabe a nós lutar nossas batalhas neste mundo. Seus olhos pousaram na escultura de uma criança sentada em um campo. Pétalas giravam ao redor dela em um vento fantasma, e seus olhos estavam enrugados de tanto rir. A primeira vez que Ana acordou naquele celeiro vazio, May estava agachada na neve lá fora, cuidando de uma pequena flor de volta à vida. Ana pensou em quando seguiu May de volta à casa de sua patroa; das palavras maldosas e das mãos afiadas da mulher. Ela pensou no corretor em Kyrov, em seus olhos frios e cabelos claros. Das Patrulhas Imperiais, mantos esvoaçando os brancos e azuis brilhantes de Cyrilia, insígnias de tigre rugindo orgulhosamente em seus peitos. Do Yaeger agachado diante dela em derrota, caçador virou vítima. De May cambaleando, olhos arregalados de surpresa, quando a flecha a atingiu. Das portas de vagão de pedra-negra se fechando. Como o Império caiu para isso? O Império Cyriliano que Ana sempre manteve tão feroz e fielmente em seu coração era tão orgulhoso e tão forte quanto seu sigilo de tigre branco, suas leis irrepreensíveis e seus governantes benevolentes. No entanto, o que ela havia testemunhado nos últimos dias lhe dizia o contrário. Sombras sinistras surgiram nos espaços entre as leis, atacando aqueles sem a proteção de status ou riqueza. Ou sempre foi assim? Gelo subiu por suas veias, e Ana pensou na rapidez com que mamika Morganya tinha sido dispensada quando mencionou o contrato de Afinidade. Da maneira como os cortesãos do palácio haviam sussurrado sobre as origens Cirilianas do sul de mamãe. De como Ana foi considerada um monstro apenas por causa de sua Afinidade. Talvez, pensou Ana, o mundo nunca tenha sido justo. Ela só percebeu tarde demais. Mas sua mamika estava certa. Se havia justiça neste mundo, não deveria ser concedida pelas Divindades. E começava um passo de cada vez. Quando os passos de Ramson soaram no corredor, Ana já tinha se decidido. — Nós vamos atrás de May — ela disse calmamente quando ele apareceu, segurando dois pães embrulhados em um lenço. Ramson sentou-se em frente a ela e colocou os pãezinhos no colo. — Você parece convencida. — Ele inclinou a cabeça para trás e acenou para as esculturas de parede ao redor deles. — Deixe-me adivinhar: sendo a dama devota que é, você provavelmente orou às Divindades, e é claro, elas a aconselharam a fazer a coisa certa, e não a coisa conveniente e egoísta. — As Divindades não respondem minhas orações — ela respondeu. Ramson deu-lhe um sorriso torto. — Que faz de nós dois. Ana estendeu a mão e pegou um rolo. O pão estava frio e duro, mas ela o rasgou em várias mordidas. — Por que as Divindades não gostam de você? O que você tem? — Era como se um peso enorme tivesse sido tirado de seu peito; enquanto antes ela teria se esquivado de um tópico de conversa tão ousado, agora as palavras fluíam facilmente dela. Ramson bufou. — O que há de errado comigo? — ele repetiu, arrancando um pedaço de seu pão. — Esta é uma pergunta retórica? Vamos ver. — Ramson coçou o queixo, fingindo um olhar de concentração enquanto começava a marcar os dedos. — O mais jovem senhor do crime do Império, egoísta, calculista, traidor, ah, e não vamos esquecer, pecaminosamente bonito... preciso continuar? — Você já responde alguma coisa a sério? — Eu respondo tudo a sério. Ana revirou os olhos e engoliu seu último pedaço de pão. Seu estômago deu um gorgolejo de fome, mas seus pensamentos se voltaram para May. Ela já tinha comido? Ela estava com frio? — Quero sair assim que o sol nascer. Ramson assentiu. — Boa ideia. — m pensamento silencioso e desconcertante passou entre eles: A Syvern Taiga era onde as criaturas mais perigosas de Cyrilia vagavam à noite. Ana tinha ouvido falar de luzes rústicas desviando viajantes cansados, de Ursos Lunares gigantes com três vezes a altura de um humano normal, de espíritos de lobos de gelo que surgiram do nada além da neve. — Levamos um dia inteiro para chegarmos a Kyrov de Quedas Fantasma — ela meditou em voz alta —, Nova Mynsk está quase dez vezes mais longe. — Nós temos uma valkryf — observou Ramson —, pelos meus cálculos, levaremos um pouco mais de cinco dias. Isso nos dá quatro dias antes da Fyrva'snezh para salvar May, colocar nossos nomes na lista de convidados de Kerlan e encontrar seu alquimista. — Ele suspirou e passou a mão pelo cabelo. — Estamos trabalhando com chances muito pequenas aqui. — Você é o criminoso mais infame de Cyrilia — Ana respondeu secamente —, pequenas chances são seus amigos. Você vai fazer funcionar. — Não tenho amigos. E se Kerlan souber do nosso Furto de Afinita, eu culpo você. Não vou deixar que ele me mate por causa da sua justiça. — Eu poderia muito bem matá-lo primeiro. — Ana observou-o escolher seu caminho até a pilha de toras. — Ramson? — Sim? Ela hesitou, e então as palavras a deixaram com pressa. — Qual o nome dele? O Alquimista. Você disse que tinha o nome verdadeiro dele. Por um momento, ela quase esperou que ele falasse sobre a Troca, lhe dissesse que era uma informação que ela precisaria negociar. Mas Ramson apenas a olhou e disse baixinho: — Pyetr Tetsyev. Pietr Tetsyev. Ela provou o nome em sua língua enquanto fechava os olhos. Pietr Tetsyev. Não soava como um nome maligno; poderia ter pertencido a qualquer pessoa... um estudioso, um professor, um homem que ela poderia ter conhecido na esquina de uma rua. Pietr Tetsyev. O alquimista do Palácio existia. Ela não passou o ano passado perseguindo um fantasma; ele era real. E estava perto. A peça que faltava no assassinato de seu pai estava a menos de uma semana de viagem. E ela repetiu o nome dele várias vezes até adormecer: um canto de oração, um voto de vingança. 15 Ao contrário dos oceanos abertos e dos pântanos cheios de chuva da infância de Ramson, Cyrilia era uma terra congelada no inverno perpétuo. A floresta mantinha seu silêncio eterno, a prata polvilhando os galhos de pinheiros altos e trechos ocasionais de neve branca em áreas onde ninguém mais havia viajado antes. Sua respiração enrolou em plumas, e a frieza do ar o manteve alerta enquanto ele conduzia a valkryf para frente, a Afinita sentada desconfortavelmente perto dele. Acima, o céu cinza enevoado prometia neve muito, muito em breve. Eles passaram o primeiro dia de suas viagens elaborando seu plano. Ele a contou os detalhes do Playpen, da propriedade de Kerlan e de seu baile – não todos, é claro, mas os que ela precisava saber – e eles finalmente, finalmente, depois de horas de questionamentos e discussões persistentes da teimosa menina, chegaram a um acordo. Eles montaram acampamento na segunda noite em uma dacha abandonada nos limites de uma pequena cidade chamada Vetzk. Depois de garantir que as cortinas estivessem fechadas, Ramson acendeu o fogo e se acomodou para tratar de seus ferimentos. A bruxa sentou-se à sua frente. Encolhida com os joelhos contra o peito, ela parecia menor, mais vulnerável. Quase como a jovem que era. Ramson sabia que ela era tudo, menos isso. Ele pretendia lhe perguntar sobre sua Afinidade depois daquela briga na chuva, depois que ele viu aquele mercenário que foi sangrado. Ao longo de seus anos trabalhando com Kerlan, ele pensou que tinha testemunhado tudo – monstruosidades, Afinidades estranhas e distorcidas –, mas aquele mercenário morto era algo completamente diferente. Algo de pesadelos. — Eu nunca agradeci por me salvar — disse ele, quebrando o silêncio. Ela o encarou, piscando como se estivesse saindo de um transe. Pela primeira vez, a defesa desapareceu de sua expressão. Ela baixou o queixoem um gesto régio. — De nada. — Você é a Afinita mais poderosa que eu já vi — disse ele —, qual, exatamente, é sua Afinidade? Ele podia ver a guarda subindo em seus olhos, a forma como seu rosto se fechou como se estivesse se preparando para uma briga. — Carne. Tinha sido uma mentira inteligente... e ela o enganou no início. Os efeitos dos dois podem ser quase intercambiáveis. Afinita de carne, embora potencialmente poderosos, eram vistos como aprendizes de açougueiros ou similares. Uma Afinidade com o sangue, por outro lado – bem, a Bruxa de Sangue de Salskoff era a única Afinita de sangue que se sabia. Ramson forçou. — Foi assim que você sangrou aquele mercenário? Com sua Afinidade de carne? Seus lábios se apertaram. — Há uma história — continuou Ramson —, de uma Afinita que apareceu em Salskoff há cerca de dez anos. — Seus olhos brilharam à luz do fogo, mas ela não entregou nada. — Ela matou oito pessoas com um único pensamento. — Eles a chamaram de Bruxa Sangrenta de Salskoff. Ela nunca foi vista novamente; sua maneira particular de matar, de sangrar suas vítimas, foi desconhecida por muito tempo. — O fogo crepitava entre eles. Ele estava andando na corda bamba; um único passo em falso poderia mandá-lo mergulhar. Ramson escolheu suas palavras com cuidado. — Sempre pensei que gostaria de conhecê-la. Algo mudou em seu olhar, suspeita ou surpresa, e ela desviou o olhar. — Por que? Ele quase soltou um suspiro. — Para que eu pudesse entendê-la. Perguntá-la por que ela fez isso. — Ela nunca quis. — Sua voz era suave como um suspiro, e, enquanto ela olhava para as chamas, seu rosto era um poço de tristeza. — Ela nunca quis machucar ninguém. A confissão foi inesperada, e tocou profundamente dentro dele, uma que manteve enterrada sob a grande lenda de Ramson Quicktongue que ele construiu para si mesmo ao longo dos anos. Ele conhecia, até os ossos, a sensação de ferir alguém e ser incapaz de fazer qualquer coisa a respeito. E aqueles que você machucava tendiam a ser os mais próximos de você. *** Ramson tinha sete anos quando conheceu Jonah Fisher, no primeiro dia de treinamento militar. Ele avaliou o garoto desengonçado de cabelos escuros que parecia ter sido esticado de uma sombra, andando pelos corredores de pedra com um andar firme e desleixado. Quando anunciaram seu nome, uma risadinha percorreu os meninos e as meninas. Fisher não era um sobrenome de verdade; Fisher era um sobrenome que colocavam em meninos Bregonianos dos orfanatos de Porto Safira. E isso aconteceu bem perto de casa. O próprio Ramson esteve perto de herdar esse nome. Tinha algo a ver com sua mãe não estar devidamente casada com seu pai, ele deduziu. Mas enquanto algumas crianças como Ramson nunca mais foram vistas, o pai de Ramson, o almirante Roran Farrald, o segundo homem mais poderoso do Reino de Bregon, em vez disso, tirou Ramson da pequena cidade de Elmford, onde sua mãe residia e o elegeu para colocação no Porto Azul, escola militar de elite de Bregon. Apenas os mais capazes foram selecionados, entre eles Afinitas, e Ramson tomou isso como um gesto de confiança. Ele jurou que nunca decepcionaria o pai que permaneceu tão distante quanto a lua no céu noturno, luz monocromática fria e brilhante. Mas as crianças eram as criaturas mais perspicazes, e os desprezos dissimulados que Ramson recebeu durante a maior parte de sua vida não passaram despercebidos para ele. Nem eram os sussurros de filho bastardo e packsaddle4. As zombarias de seus novos colegas de classe provocaram um tremor de medo dentro dele, e ele se juntou a eles, tornando suas provocações as mais desagradáveis e sua voz a mais alta entre eles. Jonah Fisher fez uma pausa. Olhou ao redor, expressão entediada, como se preferisse estar em qualquer lugar menos ali. — Você não tem nada melhor para fazer ou o quê? — perguntou. A classe caiu na gargalhada, incluindo Ramson. Ele já tinha ouvido as pessoas falarem com o sotaque de Jonah Fisher antes, nos mercados de peixe e nos arredores mais pobres de Porto Safira. Ramson era um menino criado na cidade, e seu pai pagava por suas aulas particulares desde que ele 4 O Antigo substantivo Francês, muito provavelmente, teve origem na frase fils de bast, que significava "filho de pacote" (sendo um "pacote de carga" uma espécie de cama de viagem em que se pensava que os bastardos seriam concebidos), e o sufixo -ard. Bast pode ser traçado a uma palavra latina que significa "carregar" completou cinco anos. Se orgulhava de ser o pensador mais rápido e o falante mais veloz de sua classe. Um estalo soou pelo corredor. Ele ecoou e reverberou quando o silêncio absoluto caiu. Jonah Fisher segurava uma vara de sparring das prateleiras ao lado da sala de treinamento. Ele parou diante da classe, ainda com aquela expressão desinteressada. — É melhor todos vocês falarem. — Sua voz estava calma, mas uma corrente de ameaça percorria suas palavras. — Mostrem que vocês sabem realmente lutar. Vão em frente — incitou, para a quietude morta das crianças. Ramson olhou ao redor. O treinador se afastou; não havia adultos por perto. Apenas uma classe de várias dezenas de crianças que um dia se tornariam os fuzileiros de elite de Bregon. Que lutariam pelo posto mais alto da marinha de seu pai. Filho packsaddle. Ele os mostraria. Mostraria a todos que não era um Fisher, um bastardo, um descartável evitado por seu próprio pai. Ele era filho do almirante Roran Farrald. Ele iria provar isso. Ramson deu um passo à frente. Sentiu que todos os olhos de seus colegas se voltaram para ele, e a atenção era o vento em suas velas, impulsionando-o para frente e levantando sua coragem. — Nós conversamos aqui no Forte Azul — disse friamente, pegando uma vara de sua preferência. Ele nunca tinha segurado uma antes daquele dia; era mais pesada do que esperava, a madeira áspera contra suas palmas. Fisher lançou seus olhos negros em Ramson. Ele ergueu sua vara de uma maneira inquietantemente familiar. Moveu-se frouxamente em suas mãos, fluindo como uma extensão de seu corpo. Ramson o imitou, levantando sua própria vara. Ela balançou instável, fora de equilíbrio. Seu coração batia forte no peito, e ele podia sentir sua coragem evaporando tão rápido quanto uma poça de água em um dia de verão Bregoniano. Jonah Fisher atacou. Ele lembrou Ramson de um pássaro – um corvo comum, escuro e despenteado e nada imponente, mas surpreendentemente rápido. A vara bateu em Ramson e ele cambaleou para trás, rangendo os dentes contra a dor que queimava em seu peito. Ele apontou um golpe desajeitado para Fisher, mas Fisher girou facilmente para fora do caminho. Outro golpe nas coxas de Ramson, e desta vez Ramson gritou. Um terceiro golpe dobrou seus joelhos, e antes que pudesse respirar, a luta acabou e ele estava deitado no chão de pedra, Jonah Fisher de pé sobre ele. Ramson estava ofegante, e podia sentir o gosto salgado das lágrimas subindo em sua garganta enquanto olhava para o outro garoto. O que aconteceu a seguir foi uma das maiores surpresas que Ramson se lembrava de ter encontrado em sua vida. Fisher estendeu a mão. Não havia nenhum traço de arrogância em seu rosto pálido e magro. Suas feições estavam dispostas na mesma expressão entediada, como se nada no mundo pudesse interessá-lo. Ramson fez a única coisa aceitável que conseguiu pensar. Ele deu um tapa na mão de Fisher. — Eu não preciso de sua ajuda — rosnou, se levantando —, nós não somos amigos. Nunca seremos. Enquanto Ramson se afastava mancando para se juntar à sua classe atordoada, deixando Fisher para trás, ele avistou uma figura na porta. Um vislumbre de pele bronzeada e cabelos castanhos arenosos, túnica azul- marinho adornada com ouro, espada reluzindo no quadril. Roran Farrald virou-se da entrada e foi embora. Decepçãoe vergonha queimaram nas bochechas de Ramson. Ele lançou um último olhar para Fisher, que estava sozinho do outro lado do corredor, e jurou que derrotaria aquele garoto nem que fosse a última coisa que fizesse. Tudo havia mudado com um barco, uma tempestade e uma voz. Os Bregonianos tinham a melhor marinha do mundo, mas antes de tudo eram marinheiros. E todas as crianças Bregonianas treinadas para a Marinha passavam metade de seus dias nos mares. Tinha sido um exercício noturno durante o segundo ano de treinamento de Ramson. O céu estava sem lua e as águas eram negras e frias, agitando-se inquietamente com o vento crescente. A tempestade caiu sobre eles nas primeiras horas da manhã. Os ventos uivavam e as ondas eram mais altas do que paredes, jogando o pequeno brigue5 de dez aprendizes Bregonianos como uma folha ao vento. Mesmo anos depois, Ramson acordava no meio da noite com a sensação de ser jogado no escuro, o gosto do terror cego forte em sua língua. Como capitão de seu pequeno brigue, ele estava gritando ordens das ratlines6 quando uma onda se ergueu da noite escura e o atingiu. Lembrou-se 5 Um navio de dois mastros, com um gaff adicional no mastro principal. 6 Uma série de pequenas cordas presas através das mortalhas de um veleiro, como os degraus de uma escada, usadas para escalar o cordame. de cair, o mundo um emaranhado giratório de mastros, velas e madeira. Ele caiu na superfície do oceano, e então houve apenas escuridão e silêncio. Os primeiros momentos foram de desorientação cega e aterrorizante. Ramson se debateu e chutou, sem saber se estava subindo, descendo ou de lado, o mundo ao seu redor se sacudindo e girando enquanto onda após onda caía sobre ele. Quase todo o ar havia deixado seus pulmões com o impacto, e quando a pressão cresceu em seu peito e seus membros começaram a queimar por falta de oxigênio, ele enviou uma oração aos deuses. Um braço se fechou em torno de sua cintura, e ele se sentiu sendo erguido e levantado pelas correntes e aquele braço. Ramson pensara que estava morrendo, até que rompeu a superfície e o mundo desabou em uma torrente de ondas, ventos e chuva. — Nade — disse uma voz calma em seu ouvido. Tossindo e cuspindo, ele se virou para ver que o órfão estava com o braço em volta dele e o arrastava pelas ondas agitadas. O menino se virou, seu cabelo preto grudado em seu rosto pálido. Naquele rosto magro e desnutrido, Ramson viu a verdadeira coragem pela primeira vez em sua vida —, nade — o menino repetiu —, ou nós dois morremos. Ramson nadou. A ira do oceano os levava para cima e para baixo e de volta como as pequenas e insignificantes vidas que eram, crepitando lampejos de luz de velas em uma ventania gritante. Mas Ramson segurou firme em Jonah Fisher e nadou, um chute pesado após o outro, uma braçada cansada após a outra. O frio deixou seus membros dormentes e drenou sua energia. O ritmo das ondas embalou os dois meninos em um estupor. Em algum momento, Ramson deve ter fechado os olhos ou adormecido nadando. A próxima coisa que percebeu, foram os gritos inconfundíveis de homens acima de sua cabeça e respingos na água. Alguém enrolou uma corda em volta dele e ele foi erguido, membros pendurados e pingando como uma esponja molhada, no navio. A madeira encharcada do convés parecia o paraíso, e apesar do balanço do navio e dos gritos e passos e mãos envolvendo cobertores em volta dele, ele poderia ter dormido ali mesmo. Ramson levantou a cabeça, sua visão embaçada. — Fisher — resmungou. Na escuridão, o rosto de um menino apareceu, branco contra a noite negra, lábios tingidos de azul e trêmulos. A pergunta se alojou na garganta de Ramson quando viu pela primeira vez o rosto de Fisher aparecendo como o de um fantasma nas violentas ondas negras. — Por que você me salvou? Fisher deu de ombros. — Porque eu podia. Não era uma resposta direta, mas era uma resposta suficiente. Meio congelado, seus pensamentos confusos, Ramson sentiu a vergonha aquecer suas bochechas e a culpa revirar seu estômago. Ele tratou Jonah Fisher de forma abominável... e Fisher salvou sua vida. — Obrigado. — As palavras eram tão baixas e a tempestade tão alta que ele achou que Fisher não o ouviu. Mesmo à beira da morte, Jonah Fisher parecia entediado. Mas então, fez algo que surpreendeu Ramson pela segunda vez em seu breve conhecimento. Jonah Fisher sorriu. Era um sorriso inquietante e desajeitado: mais uma careta, colocando seu rosto pontiagudo em desacordo com seus longos cabelos pingando e olhos escuros. — Me chame de Jonah — ele ofegou. Ramson logo descobriria que Jonah recebeu o nome do discípulo do deus do mar, que havia reencarnado como uma baleia fantasma mística. Daquele dia em diante, Jonah era o irmão que Ramson nunca soube que queria. O órfão parecia saber de tudo, desde a política de Bregon até as passagens secretas no Forte Azul e as melhores maneiras de trapacear nas provas. Não demorou muito para que ele voltasse sua mente para outras coisas – coisas que as crianças comuns que estavam aprendendo e treinando no Forte Azul não se importavam. Jonah parecia especialmente interessado na política dos adultos, nas táticas de guerra Bregonianas, no que continham os últimos carregamentos dos reinos das Ilhas Asáticas, nas novas leis Cirilianas sobre contratos e afins. Ele fugia para a cidade com frequência e voltava parecendo ocupado e distante por dias. — Você deveria se esforçar mais na escola — Ramson o repreendeu —, como vai acabar tendo uma classificação alta se não entregar suas tarefas? As garotas gostam dos recrutas mais inteligentes e fortes. — Ele sorriu. — Como eu. — As garotas vão gostar de mim pelo quão bonito eu sou — Jonah respondeu preguiçosamente. Ramson caiu na gargalhada. — Bonito? Você parece um corvo depenado, Jonah Fisher! — E você parece um peixe eviscerado, com essa sua constante expressão estúpida — Jonah brincou. Ele ficou solene novamente, considerando a pergunta de Ramson. — Acho que não vejo sentido em estudar histórias tão obsoletas quando há tragédias muito reais acontecendo à nossa porta. — Como o quê? — As pessoas passam fome, quando temos comida em abundância. As pessoas estão morrendo de doença, quando temos um armazém inteiro de medicamentos. — Porque somos importantes — disse Ramson —, eles nos escolheram para nos tornarmos futuros líderes de Bregon... — Não seja ingênuo, Ramson. Eu costumava ser uma dessas pessoas famintas. Não há nada diferente entre nós e eles. — Bem... — O pensamento inquietou Ramson, que sua vida programada de cursos e treinamento e um futuro como Comandante da Marinha poderiam estar errados e poderiam afetar alguém tão próximo a ele. — Assim que chegarmos ao topo, assim que formos almirantes, poderemos mudar as coisas. É por isso que você deve fazer suas tarefas, sabe. Caso contrário, você nunca vai conseguir. Ele não achava que suas palavras teriam impacto em Jonah, mas tiveram. Naquele ano, Jonah voltou sua atenção para seus estudos. E, é claro, ele se destacava irritantemente em tudo o que fazia, com uma graça sem esforço e uma taciturnidade característica. Ramson, no entanto, orgulhava-se de ser o melhor falador... na verdade, o melhor falador entre os recrutas da Marinha Bregoniana. — Qual é o sentido de ser bom em tudo se você não pode dizer a todos que é bom em tudo? — ele zombou de Jonah uma vez, quando eles estavam no quarto ano de treinamento. Jonah deu-lhe um olhar aguçado enquanto mastigava com a boca cheia de tudo o que havia roubado na cozinha. Ele ainda estava tão magro quanto no dia em que se conheceram, e não importa o quanto comia, ele parecia continuar assim. — A questão é que depois que você terminar de falar, Ramson Quicktongue7, eu vou chutar sua bunda. Isso calou Ramson. Jonah mergulhou o dedo na água e traçouum círculo preguiçoso. Eles estavam estendidos em uma barcaça de pesca, aquecendo-se ao sol do meio do verão que lançava as ondas de crista branca e fazia tudo brilhar nebulosamente. O oceano suspirou, o ar estava balsâmico, o estômago de Ramson estava cheio e eles cheiravam a suor, sal e madeira molhada. — Olhe — Jonah disse, e Ramson gemeu. Jonah tinha um jeito de ser brutalmente honesto, e Ramson recebeu o peso disso —, eu sei que você faz isso para compensar, de certa forma. — Compensar? Achei que palavras grandes eram minha praia, Fisher. — Seu pai — Jonah continuou, virando a cabeça para que seus olhos escuros cravassem em Ramson como ganchos. Olhos dos corvos. Mesmo agora, falava com aquele sotaque humilde; em vez de mudá-lo, ele o pegou e o tornou aceitável, até admirável. — Você está fazendo tudo isso por ele. Ramson sentou-se. — Isso não é verdade. — É — Jonah continuou calmamente —, ele tem uma filha agora, mas você ainda acha que tem uma chance de conquistar o título dele algum dia. Algo em Ramson se apertou com a menção de Jonah de sua meia-irmã. Rumores diziam que ela tinha idade suficiente para começar a treinar em Forte Azul em um ano, e ele ainda não a conhecia. Ramson duvidava que algum dia o fizesse. — Todo mundo tem uma chance no Almirante — ele retrucou, e as próximas palavras o deixaram antes que pudesse pensar —, até você. 7 O sobrenome dele, na tradução literal fica: Língua Rápida. O dedo de Jonah parou; os círculos pararam e Ramson congelou. Ele desejou poder engolir suas palavras. As ondas pareciam se acalmar, a madeira de repente queimando sob suas mãos. — A verdade é que eu provavelmente não vou — Jonah disse finalmente. Ramson olhou para Jonah, assustado, mas este continuou calmamente —, o mundo está dividido em dois, Ramson: os poderosos e os peões. Órfãos como eu? Sem família ou fortuna ou mesmo um nome? Nunca nos tornaremos nada. Poder gera poder, e poucos sem ele conseguem chegar ao topo. As ondas rugiam nos ouvidos de Ramson, e partículas de sal picavam seu rosto. — Isso não é verdade — ele conseguiu dizer finalmente —, o principal Comandante da Marinha torna-se almirante. Todos nós temos uma chance. — Eu tenho uma chance. — Isso é o que eles dizem a você. Você verá a verdade disso em alguns anos. — Jonas deu de ombros. — Está tudo bem. Eu fiz as pazes com isso. Só queria dizer, você não deve fazer algo por ninguém além de si mesmo. Especialmente para alguém que não dá a mínima para você. A garganta de Ramson estava apertada, as palavras de Jonah chacoalhando em seu crânio, negando o único objetivo ao qual ele se dedicou a cada hora extra de treinamento que passou no Forte Azul, aprimorando suas habilidades para se tornar o melhor dos melhores. Para se tornar Almirante. — Eu não acho... — ele começou, mas Jonah jogou algo nele. Por instinto, Ramson pegou o objeto no ar. Ele brilhava como bronze, maior que a palma de sua mão. Uma bússola. — Eles dizem que esta foi a única coisa que encontraram em mim quando cheguei ao orfanato — Jonah continuou —, eu não fazia ideia do que era, mas pensei nisso ao longo dos anos. A coisa é, Ramson, você pode conseguir tudo neste mundo, mas se for para outra pessoa, é inútil. Descubra o que você quer fazer nesta vida. Viva pra si mesmo. Você pode ser o navio de guerra mais forte do mundo, mas não pode navegar sem uma bússola. — Jonah se virou, fechando os olhos para os raios do sol. Um leve traço de um sorriso pairava em seus lábios quando ele mergulhou a mão no oceano e começou a fazer movimentos circulares novamente. — Fique com isso e lembre-se disso. Seu coração é sua bússola, Ramson da Quicktongue. A bússola era uma coisa velha e enferrujada, suas bordas de bronze escurecidas pelo tempo e pelo toque. O vidro estava amarelando, e o pequeno mapa de papel dentro parecia ter sido manchado por folhas de chá e parcialmente queimado. Ainda funcionava, porém, e Ramson o enfiou no bolso e a guardou consigo. Roçou os dedos contra ela para dar sorte e coragem, ou apenas para um pequeno lembrete de que ele tinha Jonah e tudo ficaria bem no mundo. A bússola viajou com Ramson até Jonah morrer, quase exatamente um ano depois. Ramson lembrou-se de ter arremessado a coisa contra a parede e depois apanhado para ver a flecha girando como um elmo quebrado em meio ao vidro estilhaçado, cada vez mais rápida até parecer virar um borrão selvagem. E a morte de Jonah deixou Ramson assim, quebrado e sem direção e girando fora de controle desde então. *** Ramson piscou e os traços de suas memórias desapareceram. Ele estava de volta na pequena dacha, o fogo se apagando, a garota Afinita – Ana – encolhida contra a parede oposta a ele, observando-o sobre as brasas bruxuleantes. Fantasmas dançavam ao redor deles nas formas de luz e sombras, e ele suspeitou que não era o único assombrado por fantasmas do passado esta noite. — Eu diria à Bruxa de Sangue que entendo — Ramson disse calmamente —, eu também nunca quis machucar ninguém. Era uma meia verdade. Após a morte de Jonah, Ramson decidiu garantir que essa verdade nunca mais se repetisse. Ele machucou qualquer um e todos que entrassem em seu caminho. E mesmo aqueles que não o fizeram. No entanto, quando Ana deu a ele um olhar arregalado, a curiosidade em seu rosto se abriu como um livro para ele, uma parte dele vacilou. O que você quer? Para corrigir meus erros. O que você quer? Eu te disse. Vingança. Tinha sido seu lema nos últimos sete anos, mesmo quando o fogo derretido de sua raiva se esfriou em aço frio. Vingança, pelo que seu pai tinha feito, por todas as falhas quebradas deste mundo tortuoso. Pelas próprias falhas de Ramson, que custaram a vida de Jonah Fisher. No entanto, quando virou a palma da mão contra a luz moribunda do fogo, ele quase podia ver o contorno fantasmagórico de uma bússola. As palavras de Jonah sussurraram em seus ouvidos. Você pode conseguir tudo neste mundo, mas se for para outra pessoa, é inútil. Viva pra si mesmo. Ramson quase se virou, como se esperasse ver Jonah encostado na parede ao lado dele, observando-o através daqueles olhos escuros e semicerrados. Ramson fechou o punho. Os fantasmas desapareceram e havia apenas a bruxa, sentada diante de si, a cabeça inclinada contra a parede enquanto adormecia. Uma presa tão fácil. Ele ganharia sua simpatia, a manipularia para confiar nele para seu próprio ganho. Isso tornaria mais fácil para ele entregá-la – a infame Bruxa de Sangue de Salskoff – para Alaric Kerlan. Uma Troca melhor, a melhor que Ramson já fizera, em troca de uma ficha limpa. No entanto, quando ele se acomodou no chão duro, usando seu próprio braço como travesseiro, se perguntou por que algo que deveria ter sido facilitado tinha, em vez disso, aparentemente se tornado mais difícil. 16 Levaram cinco dias para chegar a Nova Mynsk: uma grande massa de cidade no norte do Império. Era uma cidade de extremos, onde casas de mármore branco e telhados dourados exalavam opulência, elevando-se sobre becos escuros em que o cheiro úmido das sarjetas permanecia como a morte. As ruas de paralelepípedos estavam alinhadas com vitrines ostentando exuberantes kechyans de seda, joias de ouro incrustadas com pedras preciosas de todas as cores e tamanhos e bugigangas que piscavam e brilhavam enquanto passavam. Nobres vestidos de peles fervilhavam pelas ruas, barrigas e bolsas de moedas salientes, a poucos passos dos becos escuros em que mendigos seminus se agachavam. Ana manteve-se perto de Ramson enquanto eles serpenteavam pelas ruas. Era fim de tarde e o sol se inclinava sobre as mansões de mármore. Cinco dias de viagem a esgotaram; ela desabou agradecida na cama fria do quarto que eles alugaram em uma das centenas de pubs espalhados pela cidade. Ramson havia comprado roupas limpaspara eles com uma parte das moedas que ela havia tirado dos caçadores de recompensas. Depois de uma refeição rápida de tortas pirozhky de carne e cebola, Ana se limpou e, rapidamente, vestiu a nova roupa. O destino da noite: o Playpen. As sedas e chiffons deslizaram suavemente sobre sua pele, e Ana estremeceu ao se virar para se olhar no espelho de vidro rachado de seu quarto alugado. As roupas eram extravagantes, mais finas do que qualquer coisa que ela usara no ano anterior. Ramson havia mencionado que apenas os ricos podiam se dar ao luxo de um entretenimento tão luxuoso; para entrar, tinham que parecer e representar o papel. Seu vestido, em sua opinião, beirava o sugestivo. O vestido de noite preto meia-noite cobria as curvas de seu corpo como a carícia fresca da água, formando poças a seus pés. As costas desciam até a cintura, e estava grata pela cortina de pele que Ramson havia comprado para ela. Ainda assim, ela se sentia quase nua sem o capuz. Ana trançou o cabelo e o torceu em um coque, na tentativa de reproduzir um pouco do que suas empregadas do Palácio costumavam pentear para ela. Ela passou um pouco de rouge nos lábios, pó nas bochechas e traçou kohl sobre os olhos. Fazia tanto tempo que ela não se olhava no espelho, e vestir-se parecia um jogo estranho que estava tentando jogar, uma imitação de um passado que ela nunca mais poderia ter. Sua pele tinha ficado áspera ao longo do ano passado, entrecruzada com pequenas cicatrizes onde tinha caído ou onde galhos ou os elementos tinham lascado nela, seus lábios secos e rachados. Ela se inclinou para trás, e parecia que estava olhando para um fantasma no espelho: um eco da princesa herdeira Anastacya Kateryanna Mikhailov que ela tinha sido. Um nó se formou em sua garganta com todas as possibilidades de como sua vida poderia ter sido, o que poderia ter sido se a menor coisa tivesse sido diferente. Ana empurrou esses pensamentos para o fundo de sua mente. Ela colocou um novo conjunto de luvas de veludo preto. Respirou fundo. Elevou o queixo. Três batidas afiadas soaram em sua porta. E, assim, o plano deles estava em movimento. Ana mal reconheceu o jovem que estava em sua porta. Ramson estava bem barbeado, o cabelo penteado para trás, o casaco preto afiado ajustava-se perfeitamente à sua figura esguia. Vestido assim e sorrindo arrogantemente, ele poderia passar por filho de um nobre ou um jovem duque arrogante, vindo para uma noite de confusão em Nova Mynsk. Eles olharam um para o outro por um instante, e ela se perguntou se Ramson achou a visão dela em roupas finas igualmente estranha. Calor correu para suas bochechas; ela lutou por algo para dizer enquanto se virava. Não importa o quão bem o criminoso se limpasse, ela não podia cometer o erro de pensar que seu caráter havia mudado também. Ele ainda era perigoso: um lobo em pele de carneiro. Um deslize de seu foco, e ele teria suas mandíbulas ao redor de seu pescoço. — Você se arruma bem para um criminoso. — Querida, você faria bem em lembrar que muitas vezes os criminosos são os mais bem vestidos. — Ramson entrou e jogou o que estava carregando na cama dela. — Identificações — disse —, mantenha-as em você o tempo todo. Anna examinou um dos papéis. — “Elga Sokov, Afinita da água”? — leu com ceticismo. Para crédito de Ramson, porém, o documento parecia autêntico, carimbado e assinado com a formatação adequada dos documentos legais que ela estudou. — Achei que depois de Kyrov, seria melhor você ter a documentação adequada, só por precaução — respondeu ele, e então apontou para um segundo conjunto de itens. — Também comprei máscaras. É tradição no Playpen. Ana enfiou as identificações nas dobras de sua capa e pegou uma das máscaras, segurando-a contra a luz das velas. Brilhava com purpurina prateada, redemoinhos de ouro falso saindo de cada um dos buracos dos olhos. Os lábios pintados de dourado se esticaram em um sorriso cruel e zombeteiro. Ramson ergueu sua própria máscara. Um olhar pensativo passou por seu rosto enquanto a examinava. — Alguns acham que suas ações são mais perdoáveis se esconderem o rosto. — Você não pode esconder seus pecados das Divindades. — Era um fato que ela havia aceitado por seus próprios crimes. — Correto. — Ramson colocou a máscara no rosto, prendendo-a com precisão cirúrgica. — Mas, neste mundo, a vida é um disfarce. Todos usam máscaras. Talvez fosse verdade, pensou Ana enquanto colocava a máscara. Ramson virou-se para ela, uma mão na maçaneta. Sua máscara preta brilhava com ouro falso e joias falsas que pareciam reais. — Você já saiu para uma noite em Nova Mynsk, Ana? Algo em seu tom fez o coração dela bater forte – um arrepio de perigo sob a calma. — Não. Ele inclinou a cabeça em um aceno. — Então fique perto de mim. *** As ruas de Nova Mynsk se transformaram. Longe estavam as belas vitrines, os carrinhos de legumes e frutas, as carruagens douradas e as valkryfs brancas puras. Longe estavam as famílias que passeavam em peles finas, os mercadores cravejados de anéis que se apressavam em seus negócios. Era como se a cidade tivesse vestido uma máscara própria, substituindo sua idílica fachada diurna por um ato noturno sombrio e perigoso. Tochas ardiam nas ruas, lançando sombras bruxuleantes em grupos de espreitadores e foliões. Os pequenos pubs e estalagens apertadas nos becos escuros brilhavam com vida, rugindo com cantos e risos obscenos. Os aromas de fumaça e álcool pairavam no ar. Ana ficou logo atrás de Ramson, apertando a capa de pele contra o peito. Ela havia trocado sua bolsa por uma mais refinada, na qual carregava todos os seus esboços. Eles eram o único lembrete da vida que teve, e ela tinha o medo irracional de que, se os perdesse, perderia seu passado. Ela estava grata por eles terem colocado suas máscaras antes de sair da taverna. Mulheres com estranhas máscaras de animais e vestidos lúgubres caminhavam perigosamente perto dela e de Ramson, sorrindo e ronronando na direção deles. Homens de rosto pálido com adagas brilhando em seus cintos mostravam seus dentes de ouro enquanto acenavam com as mãos para ela em saudação. Parecia que ela havia entrado em um mundo subterrâneo surreal que não era nada parecido com a Cyrilia que conheceu toda a sua vida. Ramson baixou a cabeça para ela, e sua voz estava rouca quando murmurou em seu ouvido. — O Playpen é ostensivamente um clube com artistas Afinitas. Mas como a maioria dos aspectos deste mundo, não é o que parece ser. Os comerciantes são conhecidos por comprar contratos de trabalho Afinitas nos quartos dos fundos. As palavras a assombraram enquanto teciam através da multidão risonha, em direção a um clube que nunca deveria ter existido em primeiro lugar. Onde tudo deu errado? Ela se lembrava, nos últimos anos da vida de papai, como ele se tornara fraco e frágil; como seu julgamento e memória haviam sofrido com acessos de raiva induzidos pela febre; como seus momentos de lucidez se tornaram cada vez mais escassos ao longo dos anos. Ainda outra memória a agarrou. Papai, afastando-se dela enquanto ela implorava para ele não deixar Sadov levá-la novamente. Tomaremos medidas para curar sua condição. É... para o seu próprio bem. A mão de Ramson roçou seu ombro e ela pulou, seus pensamentos se dispersando. Eles estavam no meio de uma rua movimentada. As pessoas passavam por ela, cambaleando e gritando em sua embriaguez, garrafas de licor brilhando à luz das tochas. À frente deles estava o prédio mais iluminado da rua. Foi construído no estilo de uma catedral Ciriliana, cúpulas que se afilavam em pináculos afiados que assomavam no céu noturno. No entanto, em vez das paredes de mármore branco e vitrais representando Deys'krug, o exterior havia sido construído com tijolos marrom-avermelhados baratos e as janelas estavampintadas com figuras de mulheres se contorcendo em movimentos de dança grotescos – uma réplica ridícula de um reverenciado, edifício sagrado. Ana percebeu que enquanto estava olhando com desgosto para o pub diante deles, Ramson também não se moveu. Ele olhou para a taverna, seu contorno rígido. Com sua máscara, ele se parecia como um estranho e não o jovem senhor do crime com quem ela havia se associado na semana passada. Ele se virou para ela, seus rápidos olhos castanhos encontrando os dela. Não havia humor em seu tom quando disse: — Bem-vinda ao Playpen. — A voz de Ramson assumiu uma nova camada de urgência quando repetiu: — Fique perto de mim. Ana fez o seu melhor enquanto eles passavam pelas portas de mogno polido. À medida que seus olhos se ajustavam à escuridão, ela começou a distinguir as silhuetas de mulheres espalhadas em poltronas de dois lugares ou curvadas sobre bares, murmurando palavras nos ouvidos de seus clientes. Velas tremeluziam em invólucros magenta, lançando um tom sedutor ao redor do interior da taverna. Todas as garotas aqui eram Afinitas? Quantas foram trazidas de uma terra estrangeira com a promessa de oportunidade e se tornaram contratadas para este lugar vil? Ramson abriu caminho através de um labirinto de arcos curvos com cortinas de contas até que, por fim, chegaram a um vestíbulo com outro conjunto de portas de mogno. Duas mulheres estavam sentadas em um sofá vermelho, ambas usando máscaras pretas com feições felinas e muito pouco mais. Seus olhos se desviaram para Ramson. Uma se levantou, sorrindo, e se aproximou. Ana notou que ela tinha bigodes pintados em suas bochechas, e até mesmo um rabo falso preso em seu traseiro. — Se você está procurando um espetáculo, mesyr, eu posso te dar um. — Sua voz era um ronronar quando passou a mão pelo ombro de Ramson. — Eu odiaria perder isso — disse Ramson —, mas tenho certeza de que o espetáculo que procuro esta noite está além dessas portas. — Hmm — a cortesã mascarada de gato murmurou pensativa —, bem, talvez eu tenha minha parte de você outra noite, então. Pode prosseguir. Ana soltou um suspiro que não percebeu que estava segurando. Ela deu um passo à frente, ansiosa para deixar este quarto misterioso. — Espere. A segunda mulher no sofá havia falado. Ao contrário da primeira, sua voz era afiada, e seus olhos perfuravam como adagas enquanto ela se levantava. Eles foram treinados em Ana. Com uma sensação crescente de pavor, Ana observou sua aproximação. Ela sentiu Ramson endurecer em sua frente. Pelo canto dos olhos, ela viu a primeira cortesã dar um passo para trás. — Que negócio você tem? — A segunda mulher parou a vários passos de Ana. Seus olhos fixaram Ana como uma borboleta em um quadro de cortiça. A mente de Ana começou a percorrer todas as respostas possíveis para sua pergunta. Era um enigma? Haveria uma resposta certa, um código, que deveria dar, e que Ramson se esqueceu de dizer a ela? Ou havia outra razão mais sinistra para essa pergunta? O medo se instalou em seu estômago quando a primeira mulher se retirou para o lado de sua companheira, erguendo as mãos em direção a eles em uma postura defensiva. Duas pequenas lâminas de aço surgiram do nada, pairando acima de seus ombros, prontas para atacar. Afinita, Ana percebeu, e ela estendeu a mão para seus próprios laços. A segunda mulher rosnou, e Ana sentiu uma pressão estranha e fria em sua Afinidade: familiar, mas não tão forte quanto o bloqueio de parede que o Yaeger havia pressionado contra ela no Mercado de Inverno em Kyrov. Ana sufocou um suspiro. A mulher era uma Yaeger. Eles haviam sido descobertos. Os pensamentos de Ana se misturaram. Instintivamente, ela agarrou sua Afinidade, preparando-se para a onda de sangue e poder que fluiria através dela. Uma voz a interrompeu. — Divindades, que descuido de minha parte. — Ramson suspirou. Em um lampejo, ele se posicionou ao lado dela, sua mão segurando sua cintura enquanto a puxava contra ele. — Ela é minha. Ana tentou se desvencilhar dele, mas Ramson lhe deu um leve aperto. Um aviso... um sinal. Deixe-me cuidar disso. Ela parou de lutar. — Mostre sua identificação — a Yaeger rosnou. A pressão sobre a Afinidade de Ana não cedeu. Identificação, pensou Ana, engolindo em seco e tentando acalmar seu coração acelerado. É claro. Ramson devolvera as identificações a ela no hotel e dissera-lhe que as guardasse... por precaução. Com dedos trêmulos, ela as tirou e os entregou a Yaeger. — Hmm — a mulher ronronou, desgosto infiltrando em suas feições. Ela deu uma olhada rápida nos papéis, então deu de ombros e os jogou de lado. Ana os observou cair no chão —, não. — Não? — Ramson repetiu, mas o temperamento de Ana explodiu ao ver a indiferença da Yaeger, a forma como descartara tão casualmente as identificações de Ana. Essas identificações, Ana agora sabia, poderiam significar a diferença entre a vida e a morte para um Afinita. — Por que não? — ela exigiu. — Eu te mostrei minhas identificações! — Seus documentos são necessários para provar seu status. — Os olhos da Yaeger brilharam. — Mas não somos obrigadas a deixá-la entrar, bruxa. O insulto a atingiu mais forte do que nunca, vindo da boca de alguém que deveria estar do mesmo lado que ela. Por quê? Ana queria perguntar. Por que você faz isso? Mas ela sabia por quê: a mesma razão pela qual aquele Yaeger em Vyntr'makt de Kyrov lutou contra ela. Se eu não sou o caçador, então me torno a caça. Ramson pareceu chegar a uma decisão. — Você tem autoridade sobre essas decisões? — A arrogância e o descontentamento haviam desaparecido de seu tom, deixando apenas um cálculo frio. A Yaeger ergueu o queixo. — Sim. — Então você faria bem em se lembrar do seu lugar. — Ramson soltou Ana e caminhou até as duas mulheres, seus passos ágeis e poderosos. Ele estava de costas para Ana, mas o que as duas mulheres viram as fez arregalar os olhos com aro de kohl e olhar para Ramson com medo claramente escrito em seus rostos. — Por favor, mesyr — a mulher com máscara de gato sussurrou —, nós nunca quisemos... nós não sabíamos... — É o suficiente. — A brusquidão da voz de Ramson fez Ana pular. — Abra a porta agora. — Sim, mesyr — disse a primeira cortesã, enquanto sua companheira olhava para Ana com horror —, obrigada por sua gentileza, mesyr. Ela ergueu a mão e uma série de cliques metálicos soaram dentro das duas portas de mogno trancadas. Elas se abriram, revelando um conjunto de escadas sinuosas iluminadas por tochas. Ramson estendeu um braço, as sombras abaixo dele se alongando. — Venha — ele cantarolou. Ana se apressou, recolhendo as identificações caídas no chão. Ela se sentiu rígida sob os olhares das duas cortesãs, mas então o braço de Ramson se fechou ao redor dela e eles passaram. As duas portas se fecharam atrás deles, prendendo-os na escuridão. Só então Ramson parou e se encostou na porta. O braço dele ainda estava pendurado na cintura dela, como se ele tivesse se esquecido dela, e ela se viu encostada nele, seus corações batendo no mesmo murmúrio de alívio. Ramson exalou, seu peito arfando sob ele. Um segundo se passou, e depois outro, então ele pareceu perceber sua estranha proximidade. Ana se afastou assim que ele colocou os braços contra os lados. — Essa foi por pouco. — A voz de Ramson era áspera quando se virou para os degraus. Sua máscara brilhou, seus olhos brilhando enquanto captavam a luz estranha e distante. Ana olhou para o pulso dele, que estava coberto pela manga de seu casaco. — O que você mostrou a elas? — Os truques de um criminoso — disse rapidamente, e ela não podia dizer se ele ainda estava agindo ou falando a verdade —, vamos lá. Não queremos nos atrasar. Ao olhar para os degraus de pedra que desciam para o desconhecido, Ana de repente sentiu um medo frio e pesado se instalarem seu estômago. Além daquelas escadas estava a resposta para a pergunta que vinha se fazendo desde aquele dia em Kyrov. Além daquelas escadas estava a resposta que ela estava esperando e temendo ao mesmo tempo. May estava viva? Suas mãos correram para o peito em um sinal instintivo de oração. Ela tinha tanta certeza, no Templo das Divindades, que ela mesma seria capaz de salvar May. No entanto, agora daria qualquer coisa para que as Deidades respondessem suas orações. — Ana. — Ramson havia parado nos degraus. Por um momento, ele parecia estar lutando para encontrar as palavras. E então disse: — Estamos atrasados. Eles estavam, e May podia estar lá embaixo. Ela tinha que estar. Ana respirou fundo e endireitou os ombros. Ela deu um breve aceno de cabeça e seguiu Ramson escada abaixo, na escuridão. 17 A descida pareceu durar uma eternidade. Tochas ardiam de arandelas nas paredes, e a escada estava silenciosa, exceto pelo farfalhar das saias de Ana e o estalar das botas de Ramson. Gradualmente, ela começou a ouvir um som fraco: no início, não era mais alto que um zumbido, mas cresceu em volume até se tornar uma batida rítmica e pulsante. As escadas em espiral davam lugar a um corredor longo e escuro que se estendia diante deles, onde o ruído constante de batidas emanava como uma coisa viva. A máscara escura de Ramson brilhava à luz das tochas. Vestido em seu casaco preto e escondido atrás de sua máscara de joias, ele parecia uma criatura fantasmagórica da noite. Ana encontrou seus olhos – afiados e inteligentes. Seus olhares se encontraram, o fantasma de um sorriso passou por seu rosto, e ele deu um aceno quase imperceptível. Depois de você. Ana ergueu o queixo. Depois de mim. O corredor virou e se abriu. Além de uma porta de pedra em arco havia um vasto auditório com um palco amplo, iluminado por tochas bruxuleantes. Quatro pilares de pedra altos perfuravam cada canto do palco, com interpretações de mármore falso das Divindades no topo de cada um. Mais acima, assentos vazios na sacada cercavam o auditório. Uma sensação estranha – de frio, de vazio – envolveu-a como uma capa quase imperceptível. Por alguma razão, este lugar trouxe de volta memórias de escuridão, de desamparo. O tambor continuava batendo em algum lugar atrás do palco. As pessoas circulavam, a luz das tochas lançando as pedras preciosas em suas máscaras. Suas peles caras farfalhavam enquanto eles brindavam com taças de vinho, as joias de ouro em seus braços brilhando enquanto eles devolviam as bebidas em gargalhadas. — O que esse espetáculo implica? — Ana sussurrou para Ramson enquanto eles passavam por um casal mascarados de tigre. O palco, ela viu quando eles se aproximaram, era construído de mármore com veios azuis, suas bordas douradas. Os pilares estavam enfeitados com sedas caras e fitas de prata, as cortinas de safira feitas de veludo rico e pesado. O palco em si parecia ter uma qualidade estranha, quase surreal, algo que Ana não conseguia identificar, não importa o quanto ela o olhasse. — Eles fazem os Afinitas atuarem usando suas habilidades — Ramson respondeu, gentilmente separando duas nobres bêbadas. Sua mão escorregou para trás, travando em torno dela, e ela quase pulou. Seu coração disparou em uma batida desconhecida —, os nobres pagam por um bom entretenimento. E é um disfarce. Alguns nunca sabem sobre os negócios do contrato nas costas. Ana estremeceu. — Os Afinitas, eles nunca tentam fugir? Mesmo o mais fraco poderia lutar bem contra um não-Afinita. Ramson inclinou a cabeça e apontou, chamando sua atenção para as alcovas de observação vários níveis acima. — Em alguns minutos, um atirador vai aparecer em cada um deles. Eles têm flechas tingidas de Deys'voshk e atiram para matar. — Ele acenou com a cabeça para o palco. — Olhe bem ali. Ana apertou os olhos e de repente percebeu o que fazia o palco parecer tão estranho. Atrás dos quatro pilares, paredes de vidro com infusão de pedra negra quase tão altas quanto as alcovas de observação circundavam todo o palco, deixando uma área no centro da frente para um anfitrião. Pedra-negra. O frio, a sensação de vazio que ela sentiu ao entrar neste lugar fez mais sentido agora. O mesmo que sentia cada vez que Sadov a levava para aquela sala nas masmorras. O tom de Ramson era sombrio quando ele disse: — Se algum Afinita tentar alguma coisa, será baleado antes mesmo de quebrar o vidro. O projeto era cruel, mas eficiente; nenhum Afinita poderia ultrapassar o vidro infundido de pedra-negra, o que significava que os Afinitas estavam limitados aos recursos que recebiam para suas performances. Não admira que nenhum deles tenha tentado escapar. Ana lembrou-se de empurrar as portas de pedra-negra das masmorras de Salskoff, estendendo a mão com sua Afinidade e apenas sentindo o nada frio e negro. Quando sua garganta estava em carne viva de tanto gritar e suas lágrimas se esgotaram, ela foi reduzida a se aconchegar contra elas, tremendo e arranhando-as com unhas ensanguentadas. Ela sacudiu a memória, concentrando-se em uma pergunta diferente. — Como você sabe tudo isso? A mandíbula de Ramson se apertou. — Já estive em alguns desses espetáculos antes. Eu vi como funciona. As pessoas aqui podem negociar a compra de contratos de trabalho do Afinita à medida que a noite avança. Tudo é feito discretamente a portas fechadas. — Ele fez uma pausa. — É isso que precisamos tentar quando virmos May se apresentar. Ela puxou a mão dele, de repente fria. É claro que Ramson sabia desses programas... ele era um criminoso, um criminoso clandestino. Mas ela tinha que perguntar, tinha que saber. — Ramson — disse, e sua voz era apenas um suspiro —, você alguma vez... você já foi um deles? Um corretor? — Não. — A palavra cortou com a verdade, mas algo em seus olhos a deixou insuperavelmente triste quando ele os virou para ela. — Mas ver isso acontecer é outro crime em si, não é? Ela não tinha resposta para isso. Ana estremeceu e se virou assim que as batidas dos tambores pararam de repente. Como se fosse uma deixa, a multidão irrompeu em aplausos selvagens. Uma figura entrou no palco, em frente à parede de vidro com infusão de pedra-negra e cortinas de veludo dentro. Ele era um homem bem-acabado, de cabelos dourados, que usava seu charme como seu colete de seda azul-marinho: cravejado de diamantes e brilhantes e costurado no colarinho com brilhantes fios de ouro. Quando ele acenou, os anéis cravejados de joias em seus dedos brilharam enquanto refletiam a luz da tocha. — Mesyrs, meya damas e todos os outros convidados! — gritou em uma voz estrondosa que ressoou por todo o auditório. — Vocês estão prontos para o espetáculo de hoje à noite? Os gritos da multidão ficaram mais altos e se tornaram um cântico. — Bogdan! Bogdan! Bogdan! — Esse é o Penmaster — explicou Ramson. O Penmaster – Bogdan – ergueu as mãos, radiante. — Temos um excelente programa planejado para vocês esta noite! Assista a uma formidável Rainha do Gelo nos dar um prelúdio para o Fyrva'snezh! A Ninfa da Floresta faz crescer flores do ar! Um Marmorista cria estátuas impressionantes! E não perca: nosso Atirador de Aço luta contra um Espectro do Vento até a morte! Quem vai sair vivo? Há apenas uma coisa que sabemos, e é que todos vocês sairão felizes! A multidão explodiu em gritos e aplausos. O estômago de Ana apertou, mas ela ficou em silêncio enquanto observava uma cena que nunca deveria ter existido se desenrolar diante de seus olhos. Bogdan ergueu as mãos e a multidão ficou em silêncio. De repente, os tambores começaram novamente. Boom-ba-da-boom. O pulso de Ana trovejou com a batida, e ela se pegou prendendo a respiração enquanto olhava para o palco iluminado. As cortinas explodiram atrás dos limites do vidro. A multidão gritou quandouma enorme nuvem de névoa obscureceu o palco da vista por um momento, enrolando-se contra as paredes de vidro e derramando-se sobre o topo em plumas brancas. Quando o vapor se dissipou, uma figura ficou no meio dele. Alta, pálida e esbelta, com cabelos brancos esvoaçantes e um vestido azul-claro, ela era a encarnação do inverno. A Rainha do Gelo varreu as palmas das mãos em um arco ao redor dela. Gelo se espalhou a seus pés, impulsionando-a em um amplo círculo ao redor do interior do vidro. Cabelo voando, vestido ondulando, ela torceu as mãos e gelo disparou de seus pulsos para o chão, ancorando-a enquanto ela dava uma cambalhota no ar e aterrissava do outro lado do palco. A multidão explodiu; a Rainha do Gelo sorriu e fez uma reverência com toda a graça de uma artista. — Ela parece estar gostando — sussurrou Ana. — Ela é uma regular — Ramson murmurou ao seu lado, juntando as mãos em um aplauso lento. Ele estava olhando para o palco, sua mandíbula apertada, seus ombros rígidos —, ela trabalha com os corretores. — Sob contrato? — Sim, mas... — Ramson hesitou, e pela primeira vez desde que se conheceram, Ana o viu lutar para encontrar as palavras. — Ela não foi contratada contra sua vontade, se é isso que você está perguntando. Ela trabalha com os corretores. Não contra sua vontade, pensou Ana, virando-se para trás enquanto a Rainha do Gelo girava no palco, o gelo florescendo sob seus pés. A plateia vibrou quando a Rainha do Gelo começou a esculpir gelo com movimentos de seu pulso. Um respingo de gelo subiu no ar, tornando-se um cervo gracioso e galopante. Outra onda se cristalizou em uma matilha de lobos correndo. Um tigre Cyriliano rondando. Um cavalo valkryf. Isso era maior do que apenas um espetáculo, Ana percebeu. Esta era uma maldita exibição das Divindades de como o emprego dos Afinitas poderia parecer; uma garantia para aqueles que acreditavam cegamente em sua própria justiça e moralidade enquanto continuavam a perpetuar a violência e o abuso contra aqueles impotentes para resistir a ela. May. A grã Afinita em Kyrov. E os Afinitas que ficavam nos bastidores, esperando para serem exibidos como bonecos. Toda aquela dor e sofrimento, velados por trás de um único espetáculo chamativo de esculturas de gelo cintilantes e roupas brilhantes. A Rainha do Gelo bateu as mãos no chão. Uma coluna de gelo a lançou no ar, ficando cada vez mais alta até chegar ao nível do topo da parede de vidro... E ela saltou por cima do muro, aterrissando em dois pilares de gelo que encolheram rapidamente em direção ao lado de fora do palco onde Bogdan estava. Os arqueiros escondidos nas alcovas do teto não fizeram nenhum movimento para detê-la. A Rainha do Gelo pisou no mármore do palco e fez uma profunda reverência. — Eu lhes apresento — gritou Bogdan —, a Rainha do Gelo! — Enquanto a multidão gritava com aplausos, Bogdan pegou as mãos da Rainha do Gelo e levou-as aos lábios. Ela sorriu timidamente para ele antes de sorrir para a plateia e acenar. — A seguir, Ninfa da Floresta! — Ramson. — A voz de Ana estava baixa com urgência. — Ele não anunciou nenhuma Afinita da Terra hoje. — Bogdan escolhe os Afinitas que quer anunciar. — Ramson lhe lançou um olhar. — Paciência. Todas as coisas boas vêm para aqueles que esperam. Então Ana assistiu ao espetáculo em silêncio. Afinita após Afinita emergiu pelas cortinas para mostrar seus poderes. Em pouco tempo, o palco de mármore estava cheio de pétalas de flores, galhos e terra; o vidro estava manchado de névoa, gelo e água. A multidão aplaudiu ou vaiou dependendo do desempenho do Afinita. E, às vezes, por algumas folhas-de-ouro, Bogdan engajava o público, orientando o Afinita no palco a obedecer aos pedidos da multidão. Performances particularmente populares podem terminar com chuvas de folhas-de-ouro se acumulando a seus pés. A noite foi passando e não se via May. No entanto, Ana sentiu um calafrio se espalhando por ela. Ela não era diferente daqueles Afinitas no palco, cujo sofrimento o mundo escolheu esconder sob uma falsa camada de tinta e roupas brilhantes. Cuja existência alguns odiavam, mas continuavam a lucrar. Continuaremos a curar sua condição, papai lhe dissera. Para o seu próprio bem. Ela piscou para conter as lágrimas quando a percepção se enroscou em seu peito, deixando-a sem fôlego e cambaleando. Papai só amava a parte dela que não era uma Afinita, um monstro, um deimhov, em suas palavras. Ele só queria salvar uma parte dela, não toda. Assim como ele só queria salvar a parte de seu império que achava que valia a pena salvar. E por tanto tempo, ela amou apenas uma parte de si mesma, negando essa outra metade, escondendo o vermelho de seus olhos e as veias grotescas de suas mãos sob capuzes e luvas. Por tanto tempo, ela queria desesperadamente arrancar aquela outra parte de si mesma, para se transformar em algo totalmente merecedor de amor. Algo que pudesse entrar na luz, algo digno das bênçãos das Divindades. No entanto, quem foi... quem considerou as outras partes dela e de seu império indignas? Quem havia determinado que os Afinitas eram menos dignos de amor, de serem humanos, e por quê? Simplesmente porque eles eram... diferentes? E um novo pensamento veio a ela, perfurando os gritos selvagens da multidão e as batidas dos tambores. Eu tenho que consertar isso. — Mesyrs e meya damas! O espetáculo que todos esperavam. — A voz de Bogdan arrastou Ana de seus pensamentos. Uma onda de expectativa e emoção tomou a multidão. — Nossas apresentações acabaram, mas nunca terminamos uma noite sem o Confronto das Deidades. Bem-vindos ao nosso Atirador de Aço, campeão invicto do Playpen! O ânimo de Ana afundou assim que um rugido ensurdecedor de aprovação veio da plateia, e o tambor começou uma nova batida: baixa, sombria e firme. As cortinas na parte de trás do palco se abriram. Uma figura volumosa entrou na luz. Ele era monstruoso, a armadura brilhando sob a luz das tochas e os músculos salientes sob as placas de aço. Uma dúzia de cicatrizes brancas cortavam sua careca e seu rosto, que parecia ter sido arrastado por quilômetros contra afloramentos irregulares de rocha. Ele olhou de soslaio para a plateia, metal brilhando em seus dentes. — E agora — gritou Bogdan. — Um recém-chegado ao desafio: bem- vindo, Espectro do Vento! Boom-boom... da-boom-BOOM. Das sombras das cortinas surgiu outra figura. À primeira vista, Ana pensou que fosse uma criança. Enquanto se esforçava para ver melhor, esperando ver os olhos azul-marinho de May, ela percebeu que a recém-chegada não era uma criança, mas na verdade uma jovem. Sua forma esquelética era enfatizada por sua camisa e calças escuras e justas. Ela olhou para cima, seu rosto emoldurado por cabelos pretos como a meia-noite que refletiam a luz das tochas. Kemeirana. Um sussurro ecoou pela multidão enquanto eles apontavam para a garota. Ela estava prestes a dizer a Ramson que eles deveriam ir embora, quando outra coisa chamou a atenção de Ana. Uma figura parada na beirada do palco, bem na frente das cortinas de veludo. O azul pálido de seus olhos varreu a multidão, o louro-branco de seu cabelo brilhando vermelho-sangue à luz do fogo. O corretor. Aquele que arrebatou May das pontas dos dedos de Ana em Kyrov. Sem pensar, Ana pulou para frente, batendo com força em um grupo de pessoas à sua frente. Um copo caiu das mãos de alguém e se estilhaçou. O homem com quem ela esbarrou se virou. Ele usava uma máscara de ouro com um rosto choroso de farsa, a boca muito grande e virada para baixo zombeteiramente. — O que... — ele começou. — Saia do meu caminho — Ana retrucou. O corretor de olhos azuis desapareceria a qualquer momento; ela não tinha tempo. Ana pegou sua Afinidade... — Com licença, gentil mesyr. — Uma mão envolveu sua cintura e Ramson se colocou entreela e o homem, obscurecendo sua visão do palco. Ana se contorceu, mas ele manteve os dedos presos em sua cintura. — Meya dama aqui bebeu um pouco demais! Uma prova do grande entretenimento desta noite. Os olhos do nobre brilharam, mas ele bufou indignado e voltou para o palco. — Me solte — Ana rosnou, mas Ramson a agarrou com mais força. — O que você está fazendo? — ele sussurrou. Ela o empurrou para trás, mas ele se manteve firme. — O corretor — rosnou, já alcançando o sangue de Ramson com sua Afinidade —, aquele que levou May... eu o vi. Agora, saia! — Ela o empurrou de lado com sua Afinidade, sua raiva incandescente. Ramson cambaleou para trás, mas se conteve, ignorando os olhares estranhos de várias pessoas próximas enquanto se afastavam. Sua mandíbula estava apertada; uma mecha de seu cabelo caiu sobre sua máscara. — E? — ele desafiou, sua voz baixa. — O que você ia fazer? Alguma coisa, ela pensou furiosamente. Qualquer coisa. Ana avançou, mas Ramson a pegou, seus braços enrolados ao redor ela em um aperto visceral. Sua cabeça zumbia com raiva e ela considerou arrancá-lo dela com sua Afinidade, não importando as consequências. — Pense — Ramson sussurrou, seus lábios ao lado de sua orelha. Para qualquer estranho, eles poderiam estar presos em um abraço apaixonado, mas Ana estava a um passo de explodi-lo do outro lado da sala —, você está aqui para salvar May. Como atacar esse corretor e se expor vai ajudar? Em qualquer coisa? As palavras de Ramson caíram como água fria no metal derretido de sua raiva. Ana parou de lutar, sua respiração irregular, enquanto olhava para a garota Kemeirana. Ela estava sozinha no palco sob a sombra do Atirador de Aço. Atrás dela, as cortinas onde o corretor estivera farfalharam, como se agitadas por um vento fantasma. Ele não estava mais lá. Ramson estava certo. Usar sua Afinidade contra aquele corretor, ou fazer qualquer coisa imprudente, apenas os exporia e frustraria seu plano. O aperto de Ramson sobre ela afrouxou, e por um momento simplesmente ficou com os braços ao redor de si, o rosto contra o ombro dele, observando o palco e respirando a fragrância limpa e calmante de sua kologne. O Atirador de Aço havia recuperado quatro facas de arremesso afiadas. Ele rolou a cabeça, estalando as articulações do pescoço grosso e dos ombros tensos. Ramson recuou. Seus olhos percorreram o rosto de Ana, e ela imaginou que ele estava captando cada movimento minúsculo de suas feições, elaborando o que dizer a seguir para acalmá-la. — Não é assim em todos os lugares, lembre-se — ele disse, sua voz mais gentil. As mãos dele ainda estavam em volta dos ombros dela —, em Kemeira, por exemplo, os Afinitas são apontados como Mestres do Templo, os protetores de cada aldeia. Em Nandji, os Afinitas são muito respeitados. E em Bregon... Ana tirou as mãos dele. — Isso deveria me fazer sentir melhor? — ela estalou. No palco, o Atirador de Aço deu um rugido de batalha e atacou a pequena Afinita do vento. Ana se virou. May não estava aqui esta noite, ela podia nem estar perto, e Ana se sentiu mal com a ideia de assistir Afinitas matarem uns aos outros por diversão. Uma lágrima quente e impotente rolou por sua bochecha. Quando ela levantou a mão para afastá-la, algo peculiar aconteceu. Um suspiro coletivo soou sobre a multidão. Ana se virou. O Atirador de Aço gritou enquanto cambaleava para encarar a Fantasma do Vento, que agora estava do outro lado do palco, pressionado contra o vidro. No entanto, sua postura era a postura de um lutador. Suas palmas estavam levantadas, uma ante a outra, e seus pés estavam plantados na largura dos ombros no chão de mármore. O Atirador de Aço atacou. Facas de aço disparadas de áreas ocultas de sua armadura... ... e bateu contra o vidro infundido de pedra-negra. A multidão engasgou; pessoas apontaram. A Fantasma do Vento se lançou no ar, os braços abertos e as pernas dobradas como um tipo bizarro de pássaro. Ela voou sobre a cabeça do Atirador de Aço em um arco elegante. Mais rápido que um piscar de olhos, seus pés bateram levemente nos ombros do homem gigantesco; ela girou um círculo completo e, com precisão acrobática, pousou atrás dele. Em uma extensão de sua aterrissagem, ela ergueu as mãos. Duas das facas de arremesso do Atirador de Aço brilharam em suas palmas. No momento em que o Atirador de Aço, piscando em confusão, se virou, estava acabado. A Fantasma do Vento saltou, graciosa e mortal como um jaguar. Ela agarrou seus ombros e cortou suas mãos em sua garganta. O baque do corpo do Atirador de Aço batendo no palco de mármore ecoou pelo auditório silencioso. Vermelho penetrou no chão, tornando as veias do mármore carmesim. A Afinidade de Ana se agitou, um sussurro suave no fundo de sua mente. A coisa toda levou menos de dez segundos. — Mesyrs e meya damas! — A voz de Bogdan ressoou no auditório. — Parece que temos uma nova vencedora e um novo recorde! Eu lhes apresento: a Fantasma do Vento! A multidão irrompeu em aplausos e gritos. Os poucos que haviam apostado na Fantasma do Vento acenavam com suas fichas e gritavam a plenos pulmões, clamando por seu ouro. Ana se virou e começou a abrir caminho até a saída. Ela não tinha forças para passar nem mais um segundo neste lugar abandonado pelas Divindades. Enquanto abria caminho pela multidão selvagem e bêbada, não pôde deixar de olhar para trás. A plateia entrou em frenesi e começou a cantar o nome da vencedora. No entanto, no palco, atrás da parede de vidro salpicada de sangue, a Fantasma do Vento estava quieta. Ela estava a vários passos do sangue que se acumulava ao redor do corpo de seu oponente, a cabeça baixa, os braços pendurados ao lado do corpo. Ana desviou o olhar. Como a Fantasma do Vento, ela não sentiu vitória na derrota do Atirador de Aço. Não importava que uma garota condenada tivesse lutado e vencido esta noite. Não importa o quê, um corpo estava esfriando no chão. Não importa o quê, uma vida foi perdida. E até que todos os estádios e corretores fossem incendiados, Cyrilia continuaria perdendo. Ana deu uma última olhada nas reluzentes estátuas de mármore das quatro Divindades e se perguntou como elas conseguiam olhar para um lugar tão ímpio. 18 O ar frio de outono que ardia em seu rosto era uma liberação feliz das câmaras quentes e apertadas do Playpen. Ramson deslizou pela multidão, os olhos fixos nos cabelos castanhos de Ana, na silhueta esguia de seu vestido preto enquanto caminhava rapidamente. Ele a chamou, alto o suficiente para atrair a atenção e risadinhas de vários foliões bêbados. Ele pegou seu pulso. Por instinto, ele se virou, puxando-a para a escuridão de um pequeno beco. Ela fez um barulho na garganta e ficou quieta. — Ana — Ramson ofegou. Algo nele se contorceu como uma faca ao vê-la: braços cruzados, ombros curvados, como se quisesse se dobrar. Ela era incrivelmente ingênua, mas algo na maneira como via o mundo, como se fosse esculpido em branco e preto, o lembrava de como ele era antes da morte de Jonah. E, de alguma forma, uma pequena parte dele queria protegê-la. Ramson encontrou-se estendendo a mão e gentilmente inclinando o queixo para ele. Ela deu um passo para trás, saindo de seu aperto, e arrancou sua máscara. Caiu no lixo molhado do beco vazio. Ela estava chorando. Lágrimas esculpiram listras escuras de kohl em suas bochechas, misturando-se com seus pós. Por um momento, ela o olhou, e ele queria puxá-la para perto. — Isso — ela sussurrou —, foi além de desumano. Não tenho palavras para isso. O calor que corria em suas veias se dissipou, e Ramson de repente sentiu frio. — Foi — disse ele com a voz rouca. Ela virou o olhar para ele, os olhos queimando como brasas. — Como você pode se associar com essas pessoas? Como pode vê-los fazer isso e não sentir nada? Portodos esses anos, ele tomou o caminho do covarde, recusando-se a descer a um nível tão baixo quanto os corretores sob o comando de Kerlan. No entanto, ficar parado e não fazer nada era outra forma de mal, ele percebeu quando baixou o olhar para o chão. E o destino o recompensou na mesma moeda, de qualquer maneira. Ramson ficou em silêncio. Ana respirou fundo. Ela limpou com raiva as lágrimas em seu rosto e pareceu se recompor enquanto levantava o queixo e se endireitava. — Eu só preciso de um tempo sozinha. — Seu tom era impassível e monótono, o mesmo da primeira vez que falara com ele em Quedas Fantasma. Em algum lugar, de alguma forma em sua vida, ela aprendeu a mascarar suas emoções. E era quase tão boa quanto ele. Olhando-a, olhos em chamas, ombros retos, alta e majestosa em seu vestido de noite, ele pensou que ela queimava como um farol. Algo se mexeu nele, algo que o atraiu para ela como sombras em direção à luz. Ramson eliminou aquele vislumbre de desejo. — Tudo bem — disse, encolhendo os ombros —, Tenho alguns assuntos para resolver. — Fique segura. Vejo você de volta na pousada. No entanto, ele não disse nenhuma dessas palavras enquanto se virava abruptamente e se afastava, deixando-a na escuridão do beco. O Ramson Quicktongue de Nova Mynsk, Mestre Portuário e Adjunto da Ordem do Lírio, não dava nenhuma garantia e não fazia promessas. Ramson caminhou pelas ruas que conhecia como a palma de sua própria mão. Ele cresceu na cidade como um ladrãozinho, fazendo recados para a Ordem e aprendendo tudo que podia sobre o mundo cruel e tortuoso com o qual ele tinha que trabalhar. Com o tempo, os telhados de telhas vermelhas das dachas tornaram-se seu porto seguro, e as sombras dos becos sujos cresceram para recebê-lo como um velho amigo. Ramson parou em um pub. Ele falou com vários clientes encapuzados antes de deslizar pedras de policial sob mesas de madeira sujas e apertar as mãos, arranjo feito. Ele então partiu para as Barragens. As represas eram menos uma represa do que uma vasta malha de becos apertados e túneis subterrâneos que separavam os pobres dos ricos em Nova Mynsk. Era o ninho de todas as gangues e redes criminosas. Um funil de esgoto a céu aberto corria ao longo da borda das represas, emprestando à área seu fedor úmido e podre que grudava nas roupas de quem ficasse muito tempo. Era também um local conveniente para despejar as vítimas. A cada poucos dias, um corpo flutuava ao longo do córrego verde sujo, cadáveres de ninguém ou criminosos que os guardas da cidade e os Mantos Brancos optavam por ignorar. Os postes de luz haviam sido quebrados há muito tempo, e os cacos de vidro restantes no chão se espatifaram sob os sapatos engraxados de Ramson. A lua se escondia atrás de nuvens que prometiam neve – a Primeira Neve – em quatro dias, e Ramson ficou grato por o fedor de esgoto ter se dissipado com o frio. Ele caminhou rapidamente, navegando pelas curvas e curvas tortuosas sem mais hesitação do que um homem andaria em seu próprio quintal. Ele parou de repente, na esquina de um beco não diferente de qualquer outro. Ramson encostou-se à parede e derreteu-se nas sombras. Ele esperou. Minutos se passaram. A escuridão pressionava seus olhos. Uma pequena criatura correu por uma pilha de lixo atrás dele. E então ele ouviu: o fraco clop-clop-clop dos cascos e o rangido das rodas da carruagem. Ele conhecia a carruagem exata que estava vindo nesta direção e conhecia o passageiro que transportava. De todos os senhores do crime que governaram Cyrilia, Alaric Kerlan era o maior e o pior de todos. Sua ampla rede, sua riqueza insuperável e sua liga de corretores altamente treinados e membros de gangues o tornaram o mais temido. Portanto, era lógico que os homens de Kerlan pudessem passear pelas represas vestidos de sedas e jogando ouro, e as outras gangues os curvariam para a frente e correriam atrás deles para ajudar a pegar as moedas que deixaram cair. A ira de Alaric Kerlan era a última coisa que se queria incorrer. A carruagem apareceu: dourada, envolta em lápis-lazúli e puxada por duas valkryfs. Na porta havia uma enorme gravura de um lírio do vale, seu caule esculpido em esmeralda brilhante e suas flores em forma de sino feitas de ouro branco. Ramson esperou até que a porta estivesse bem na sua frente. Com um leve salto, ele estava no degrau dobrável da carruagem. O homem careca que dirigia na frente nem sequer olhou para trás quando Ramson abriu a porta e entrou silenciosamente. Bogdan deu meia-volta; Ramson tapou a boca do artista com a mão. Ele podia sentir os lábios de seu antigo associado se abrindo no início de um ganido. — Faça um único barulho e meu assassino lá fora terá uma flecha no seu coração mais rápido do que você pode mijar nas calças de seda azul. Bogdan piscou e seus olhos rolaram para a janela da carruagem. Uma sombra passou; os olhos do apresentador do Playpen se arregalaram comicamente e ele se encolheu, assentindo. Ramson sorriu e tirou a máscara. A sombra desapareceu da janela. — Relaxe, cara — disse preguiçosamente —, eu não passei por toda essa merda para vir e matar você. Bogdan fungou e recostou-se, ajeitando a gravata-borboleta e alisando o colarinho de seda. — Pensei que nunca mais veria você, Quicktongue. Ramson revirou os olhos. — Se eu tivesse uma moeda para cada vez que alguém dissesse isso para mim, Bogdan. Bogdan se endireitou. — Outros sabem que você está de volta? — perguntou com cuidado. — Kerlan sabe? — Alguns sabem. Mas eu preciso que ele saiba a verdade. Ou qualquer coisa que possa ser percebida como a verdade em nosso comércio. — Ramson dirigiu a Bogdan um sorriso encantador. — E é por isso que eu vim até você. Estou aqui para cobrar minha dívida — Sua dívida — repetiu o artista, de repente parecendo um nobre Cyriliano que descobriu algo desagradável em sua salada de beterraba. Bogdan não era o membro mais esperto ou inteligente da Ordem; era bonito e arrogante, obcecado com pequenos detalhes e dinheiro pequeno em vez de olhar para o quadro maior. Certa vez, vários anos atrás, sua arrogância quase lhe custou a vida. — Meu querido Bogdan, certamente você não esperava que eu guardasse seu segredo de Kerlan por todos esses anos por nada? — Ramson se inclinou para frente, entrelaçando os dedos. — O que nosso mestre diria se soubesse do lucro que você estava fazendo com os contratos que vende? A expressão de Bogdan ficou feia. — O que está me impedindo de chamar meu contundente em você agora, Quicktongue? — ele rosnou. — Eu contratei Svyet porque ele derrotou dois assassinos Kemeira... — Porque você sabe que antes mesmo que ele pare a carruagem e abra esta porta, eu vou cortar sua garganta e arruinar essas almofadas de veludo caras com seu sangue. — Sempre as mesmas ameaças, Quicktongue — Bogdan rosnou —, você esquece que Kerlan me treinou também. Vamos tentar e ver de quem é o sangue derramado nesta carruagem. — Você quer que eu seja um pouco mais criativo em minhas ameaças, Bogdan? Bem. — Ramson desviou o olhar para os dedos de Bogdan. — Você sempre gostou de anéis, Bogdan. Cada um carregando uma pedra preciosa de todos os reinos do mundo. Bogdan recuou de repente, sua expressão apertando. Ele torceu as mãos, batendo as unhas nos rubis, esmeraldas e safiras em cada mão. — É um belo novo que você tem aí, o diamante. Parece ser um original das Cavernas Azuis do Leste. — Os olhos de Ramson se voltaram para cima. — Como está Olyusha? Bogdan empalideceu. — Imagine o que Kerlan diria se descobrisse que você está se deitando com um de seus bens. — Ramson franziu a testa, fingindo um olhar de confusão. — Meu erro, Bogdan, imagine o que Kerlan diria se descobrisse que você se casou com um de seus bens. — Ele deu a Bogdan um sorriso afiado. — Aí. Muito melhor. Afinita ePenmaster. Pares engraçados, eu diria. O rosto de Bogdan passou por tons alternados de branco e vermelho, finalmente parando em uma raiva arroxeada, mal contida. — Você é um ser humano desprezível — ele cuspiu. — Sou um ser humano desprezível que faz as coisas acontecerem. Você faria bem em lembrar disso da próxima vez que me pedir para ser mais criativo. Bogdan o encarou por vários momentos com repulsa. — Tudo bem — rosnou finalmente —, dê um nome à sua Troca. Ramson sorriu como um gato ao sol. As pessoas eram tão fáceis, tão previsíveis. Ele realmente não tinha contratado um assassino. Afinal, aqueles custavam mais do que uma folha-de-prata brilhante e eram difíceis de reservar na noite. Os assassinatos eram uma grande economia em Nova Mynsk. Não... às vezes a crença no perigo era mais eficaz do que o próprio perigo. A sombra na janela tinha sido algum rato de rua que ele encontrou escondido em uma das tavernas, desesperado e disposto a enfrentar as represas por uma mera moeda. Além disso, Ramson preferia não gastar moedas em seus empregos sempre que possível. Ele descobriu, ao longo dos anos, que havia um método mais confiável de compra. Segredos eram a moeda de troca de Ramson quando se tratava desses negócios. — Você dirá a Kerlan que estou de volta — disse ele. Com a obstinação teimosa de Ana para salvar May, Ramson teve que ajustar seu plano. Agora que o elemento surpresa não era mais possível, bem, ele simplesmente anunciaria sua chegada, o mais alto que pudesse. Ele jogou esse jogo com Kerlan por muitos anos, e ele conhecia as regras muito bem. Enquanto permanecesse um passo à frente dele, enquanto mantivesse seu interesse despertado, vivia. — Você vai dizê-lo para me esperar no baile da Fyrva'snezh. E vai dizê-lo que eu volto para oferecer a ele o maior comércio de sua vida. — E o que você está oferecendo? Ramson quase hesitou por um instante, mas as palavras já haviam saído de sua boca. — A Bruxa e Sangue de Salskoff. A boca de Bogdan formou um pequeno O. A hostilidade desapareceu de seu rosto, substituída por um olhar de pura ganância. — Isso é apenas um mito — disse, mas seu tom implorou a Ramson para provar que estava errado. — Ela é tão real quanto o ouro em seus dentes, Bogdan. Derrubou cinco guardas com um movimento de suas mãos. — Ela custará uma fortuna — sussurrou Bogdan —, vale mais do que o Palácio do Fogo Nandjian. Quero dizer... quanto você acha que ela vale? Quanto ela vale? A pergunta o abalou, e de repente ele se sentiu mal. Ele pensou em Ana agora, no traço ousado de sua boca, no jeito que ela franziu a testa quando estava pensando, o jeito que teimosamente manteve seu rosto feroz no Playpen quando seus olhos traíram seu horror. A maneira como ela brilhava como uma tocha na escuridão. Algo se agitou dentro de seu peito: algo enterrado muito abaixo da parede que ele construiu com as ruínas de seu coração. Era como se um bloco tivesse se deslocado em seu mundo cuidadosamente construído, mudando tudo com ele pela primeira vez em sete longos anos, quando ele deixou seu passado para trás e continuou correndo e nunca parou para pensar no que estava fazendo com sua vida. O que você quer? Eu te disse. Vingança. Mas isso não era mais suficiente, percebeu. Todo esse tempo, pensou que tinha as chaves de seu destino quando, na verdade, ele estava em uma jaula o tempo todo. Apenas uma das marionetes de Kerlan com um título chique, lutando para cumprir suas ordens e deixadas de lado quando não são mais necessárias. Entregar Ana para Kerlan significava que ele ainda estava jogando a mão que Kerlan lhe dera. Era hora de mudar o jogo. — Ela vale mais do que você jamais poderia imaginar — Ramson disse calmamente. As rodas em sua mente já estavam girando, pulando dois, três passos à frente e se espalhando nas infinitas possibilidades que essa conversa poderia representar. Calculando todos os cenários em que ele venceria e as condições que o permitiriam. E enquanto falava, ele começou a tecer os detalhes de seu novo plano. — Quero que você ouça com atenção, Bogdan. Você dirá a Kerlan que neste baile de Fyrva'snezh, vou matar meu traidor, recuperar meu título e entregar a ele a Afinita mais poderosa que existe. Bogdan engoliu em seco. — Tudo bem. — Há mais — disse Ramson —, eu quero que você me dê uma lista dos convidados presentes no evento este ano. Você encontrará um corredor do lado de fora de sua casa na sétima hora amanhã de manhã. Dê-lhe a lista. — Isso quase não é hora nenhuma! — Bogdan gaguejou, mas com um olhar de Ramson, ele admitiu. — Certo. — E você vai me adicionar a essa lista. Eu e minha esposa. Espero que meu mensageiro me entregue os convites junto com a lista de convidados amanhã de manhã. E eu saberei se foram forjados, então não tenha nenhuma ideia, Bogdan. Bogdan parecia ter comido um bocado de merda de gato que queria cuspir na cara de Ramson. Lentamente, com um esforço de estourar as veias, ele engoliu em seco e disse: — Claro. — Se algo der errado e eu não conseguir entrar no Fyrva'snezh de Kerlan, será por sua conta. Bogdan fungou. — Certo. — Mal-humorado, ele pescou de sua jaqueta uma caneta gravada em ouro e um pedaço de papel onde guardava seus saldos. — E que nome vou adicionar à lista de convidados? Ramson fez uma pausa. Não “Quicktongue”, o pseudônimo chamativo e ridículo que ele adotou para a Ordem do Lírio. Ele precisava de um nome que ninguém além de Kerlan conhecesse, que enviasse um sinal. Um código. A resposta era tão óbvia que lhe veio como um soco no estômago. — Farrald — ele disse baixinho. Bogdan revirou os olhos enquanto anotava o nome. Assim que a caneta e o papel desapareceram em um dos muitos bolsos que forravam o caro terno de seda de Bogdan, Ramson se inclinou para frente. — E tem mais. — Pelo amor das Divindades! — Bogdan ergueu as mãos e baixou a voz em um sussurro raivoso. — Você está me Trocando três condições por apenas dois segredos. — Quatro condições — corrigiu Ramson, e continuou sobre os balbucios indignados de Bogdan. — As melhores ofertas nunca estão na proporção de um para um. Pense em um cenário maior, Bogdan. Qual é a perda para mim se essas condições não forem atendidas? Eu perderia a opção de retornar à Ordem e deixaria o Império para começar um negócio em outro lugar. Mas quanto lhe custaria a exposição desses dois segredos? — Ramson ergueu as sobrancelhas e deu de ombros. O rosto de Bogdan estava vermelho. Ramson praticamente podia ver as engrenagens funcionando em sua cabeça enquanto pesava os custos e benefícios da Troca. — Tudo bem —assobiou. — Mas depois disso, não quero mais lidar com você, Quicktongue. Depois disso, está acabado. — O artista pontuou sua frase com um golpe furioso de seu dedo. Ramson levou dois dedos ao peito e desenhou um círculo. — Juro em nome das Divindades e de tudo o que há de sagrado dentro de mim, meu bom homem. — Ah, corte a merda. Qual é a terceira condição? — Há uma jovem no inventário de Kerlan; uma Afinita da terra. Apanhada pelos Mantos Brancos de Kyrov. Soa familiar? Os olhos de Bogdan se estreitaram e ele franziu a testa, presumivelmente repassando o roteiro de seus próximos espetáculos. — Sim — ele disse finalmente, as palavras dando alívio a Ramson —, ela deve se apresentar em três dias. Olha, eu não posso simplesmente dar ela para você. Kerlan vai matar... — Eu sei. Eu entendo as regras. — Ele esperava o contrário, mas Kerlan administrava seus negócios com firmeza. — Eu não estou pedindo que você a dê para mim. Daqui a três dias, vou licitar o contrato dela. E você vai fraudar os lances. A meu favor. — Hum. — Bogdan coçou o queixo, evidentemente apaziguado com a perspectiva de mais dinheiro. — Acho que isso pode ser feito. Vou ter que fazer alguns arranjos, mas...tudo bem. Muito bem, então. — Ele deu uma fungada altiva. — E a quarta? Ramson se inclinou. — Eu quero perguntar sobre a sua Fantasma do Vento — disse suavemente, e começou a desenrolar as palavras que iriam tecer as peças finais de seu plano no lugar. Quando ele estendeu a mão para cumprimentá- lo, seu casaco de lã era metade de uma bolsa de folhas-de-ouro mais leve, e ele tinha uma última parada para fazer durante a noite. — Troca feita — disse Ramson. — Troca feita — ecoou Bogdan. Eles acordaram. *** Ramson escolheu caminhar de volta pelas Represas. Um homem como ele deveria rastejar nas sombras deste mundo, sem luz e sem esperança de algo melhor. Jonah estava certo, depois de todo esse tempo; o mundo em que os órfãos, filhos bastardos e ratos de rua nasceram não era de bondade e gentileza. O mundo foi dividido em conquistadores e conquistados; os que têm poder deixam de lado os que não têm, como peões num tabuleiro de xadrez. Quando Jonah morreu, Ramson jurou pela alma de seu amigo que ele nunca seria um dos peões. Se o plano de Ramson tivesse sucesso, ele não seria mais um peão na sombra de Kerlan. Kerlan estaria morto, e Ramson estaria comandando o espetáculo no proverbial trono da maior companhia de negócios de Cyrilia. Todos aqueles anos de observação do lado de fora, de perseguir a sombra distante de seu pai, de sussurros de filho bastardo, finalmente, derrubado. E o legado de Jonah, cumprido. Viva pra si mesmo. Isto é para você, Jonah, pensou ele, com um olhar para o céu – nublado, como naquela noite com a tempestade e o barco e aquela voz calma e fina em seu ouvido. Ainda assim, mesmo depois que ele saiu das Represas, ele não conseguiu se livrar da pequena pontada de arrependimento que se agarrou a ele. Ana se reencontraria com May, e elas iriam muito, muito longe para algum lugar onde pudessem ser livres. Algo nele mudou quando estava com Ana. A escuridão, as intrigas, o cálculo frio nele desapareceram, revelando tênues traços do que ele havia sido. Um menino apaixonado pelo oceano. Um menino que queria navegar pelos mares para sempre, com o sol aquecendo suas costas e as ondas batendo em suas mãos. Ele havia se esquecido desse garoto, um que tinha grandes sonhos e esperanças tolas e tinha sido bom. O menino que se tornou a menor lasca de esperança. Mas de que adiantava a própria bondade, quando o mundo era governado pelos cruéis? Ramson respirou fundo e só quando chegou perto da taverna onde estava hospedado tirou a máscara novamente. O homem que ele havia se tornado nas represas esta noite, de olhos mortos, impiedoso e calculista, era um lado dele que ele nunca quis que Ana visse. 19 Ramson voltou para a estalagem nas primeiras horas da madrugada, quando o sol estava nascendo sobre os telhados vermelhos e as mansões de mármore brilhante de Nova Mynsk. Ana fechou os olhos resolutamente, fingindo estar dormindo enquanto ele destrancava a porta do quarto dela com a chave reserva que segurava. Ela o sentiu parado em sua porta por um tempo, e então, como uma sombra, ele se foi. Quando ela o encontrou para um café da manhã de mingau de salmão e pão de fermento lá embaixo pela manhã, algo em sua expressão mudou. — Tenho novidades — disse com a boca cheia de comida. Ele tomou banho e vestiu uma camisa branca limpa, aberta no colarinho. Ele apertou os olhos e acenou com uma colher para ela. — Esse capuz sempre faz parte da sua roupa? — A ignorância sempre faz parte da sua roupa? — Ana retrucou, e lançou um olhar ao redor da pousada. Estava quase vazia, exceto por um ou dois viajantes de aparência cansada carregando canecas de cerveja preta sobre mesas de madeira rachadas. Ainda assim, ela manteve o capuz bem apertado enquanto se sentava em frente a ele. — Além disso, você não deveria ser mais cauteloso? Depois do que aconteceu com os mercenários? Ramson se inclinou para trás, brandindo sua colher. — Cuidado é meu nome do meio, querida. — É por isso que você foi sequestrado nos trinta minutos em que o deixei sozinho? — Eu tinha essa situação sob controle. — Ramson sorriu com a expressão de Ana. — Tudo bem, vamos apenas dizer que eu tenho algum seguro agora. Alguém acima me quer vivo. Ana enfiou a colher na tigela grossa de mingau. — Então, quais são as novidades? — May está programada para se apresentar em três dias. Um dia antes do Fyrva'snezh de Kerlan. Sua colher caiu. Mingau derramado sobre a mesa. O resto do mundo – a pousada escura, o cheiro de peixe queimado no ar, a mesa de madeira lascada – desapareceu. — Como você sabe? — Eu sei tudo. — Você tem certeza absoluta? — Sua túnica de repente parecia muito apertada; era difícil respirar. — Sim. Quando terminar de me interrogar, talvez possamos finalizar o plano. Plano. Ela não conseguia se concentrar, não conseguia pensar em nada além de May atrás daquelas portas de carroça de pedra-negra, sozinha, indefesa e com medo. — Não se preocupe tanto. — Ana piscou e percebeu que Ramson a observava com um sorriso nos lábios. — O plano é simples. Nós vamos licitar o contrato dela depois do espetáculo. Lembre-se de que eu lhe disse que é isso que acontece nos quartos dos fundos. A mente de Ana girou. — Não entendo. Oferta por ela? E se não vencermos? — Nós vamos. Eu pedi um velho favor. — Ele terminou seu último pedaço de pão de fermento e enxugou os dedos no guardanapo. — Se você não pode vencê-lo, apenas manipule. — Isso não é um jogo, criminoso — Ana rosnou, seu temperamento aumentando com a leviandade dele, com o pensamento de May sentada em uma cela em algum lugar daquele lugar horrível do inferno —, se pelo menos uma coisa der errado, então a vida de May ficará em perigo. O sorriso desapareceu do rosto de Ramson. Ele colocou a colher de volta na tigela, com cuidado, deliberadamente, como se estivesse manuseando uma arma. — Você acha que eu não sei a diferença entre a vida e a morte? — disse. — Estou neste negócio há sete anos. Comecei como um rato de rua e trabalhei até onde estou hoje... onde eu estava. Um deslize ao longo do caminho, e eu estaria morto. Sua respiração veio superficial. Ramson Quicktongue tomou o cuidado de nunca revelar nada sobre si mesmo para ela, além do estritamente necessário. No entanto, algo havia mudado. Ela simplesmente não conseguia imaginar... o quê. — E é por isso que temos planos de reserva — disse, e o momento se foi —, eu tenho um para vários cenários diferentes, e eles consistem em túneis secretos e passagens subterrâneas. — Ele se inclinou para frente, seus olhos cor de avelã brilhando na luz da manhã, o cabelo desgrenhado encaracolado contra suas têmporas. — Assim que tivermos May, precisamos estar prontos para o baile da Fyrva'snezh. Ele deslizou algo sobre a mesa para ela. Um pedaço de pergaminho, com nomes rabiscados às pressas. Ana examinou o título. — Convites para o Fyrva'snezh de Kerlan? — Ela pensou em perguntar como ele conseguiu isso, mas sabia que questionar as fontes de Ramson Quicktongue não levaria a lugar nenhum. — Sim. — Ramson tocou um dedo em um único nome no meio da lista e, por um momento, tudo o que viu foram as palavras brilhando para ela. Mesyr Pyetr Tetsyev. Ana respirou fundo. Ela agarrou o pergaminho com tanta força que seus dedos ficaram brancos. — Nós precisaremos atraí-lo para algum lugar quieto. Em algum lugar que eu possa falar com ele e depois sair, despercebida. Os olhos de Ramson brilharam. — Há uma sala secreta no porão de Kerlan. É à prova de som. Tenho certeza de que ninguém ficará de guarda durante o baile. — Ele tamborilou na mesa em uma batida inquieta. — É perfeito. Há um túnel que vai do porão até os fundos... é por onde entram todos os suprimentos da propriedade. Comida, flores, roupas... afins. Vou providenciar uma carruagem. Só precisamosconcordar com o momento. *** Eles se retiraram para seus quartos para discutir o resto dos planos. Eles discutiram cada minuto, identificaram cada posição, trabalharam em todos os cenários potenciais e mapearam tudo cuidadosamente. Ao fim de dois dias, haviam esgotado todos os detalhes do resgate de May e do baile de Kerlan, e até mesmo a diligência de Ana estava se esgotando. — Não há chance de conseguirmos ela hoje ou amanhã? — ela importunou Ramson. — Não — Ramson respondeu na tarde do segundo dia, descansando na cama de Ana —, precisamos comparecer ao espetáculo e jogar de acordo com as regras. — Mas... — Você realmente quer roubar um homem antes de ir à sua festa? — Ele virou uma folha-de-ouro entre os dedos; a moeda pegou o sol do fim da tarde, piscando quando Ramson a fez aparecer e depois desaparecer novamente. — Estamos entrando na cova dos leões. Há tanta coisa que podemos controlar. Mas se Kerlan nos quisesse mortos, já estaríamos mortos. — Por que você diz isso? — Ana ergueu os olhos do canto onde estava sentada, com as costas retas e as pernas cruzadas em meio a dezenas de pergaminhos com os mapas e planos que eles haviam rabiscado. Parcelas de seus suprimentos estavam empilhadas ordenadamente contra a parede – roupas, principalmente, para os próximos dias. Eles gastaram uma boa parte de sua moeda... e o resto, bem, Ana assumiu que ela e Ramson iriam dividir entre eles quando chegasse a hora de se separar. O pensamento a encheu com uma sensação estranha, e ela rapidamente o olhou novamente, seu cabelo ruivo despenteado espreitando sobre seus travesseiros, para ter certeza de que ele ainda estava lá. — Eu estive em contato com alguns de seus contatos. Ele estará nos esperando em seu baile. É por isso que, enquanto você encurrala Tetsyev, estarei lá em cima distraindo Kerlan para que ele não perceba nada fora do comum. — Ele jogou a folha-de-ouro no ar e a pegou; quando abriu a palma da mão novamente, ela havia desaparecido. — Ele acha que eu vou lhe oferecer uma troca. Ana mordeu a ponta da caneta. — E o que você vai fazer? — Matá-lo? Encantá-lo? Quem sabe. — Ramson lhe deu um sorriso malicioso, e Ana suspeitou que ele sabia exatamente o que ia fazer. Ela aprendeu a parar de pedir respostas que nunca obteria. Então Ana voltou aos seus papéis, concentrando-se nas coisas que poderia conseguir: May, seu alquimista, e um caminho de volta para seu irmão. *** Boom-ba-da-BOOM. Os tambores batiam. As tochas brilhavam. A plateia aplaudia. No entanto, esta noite eles atingiram um ritmo diferente no coração de Ana. Esta noite eram uma contagem regressiva para ela enquanto ziguezagueava entre a multidão de nobres sonolentos e embriagados. Era a quarta noite de sua estadia em Nova Mynsk e a noite da apresentação de May. Tudo dependia desta noite. Bogdan andava de um lado para o outro no palco, sua voz ecoando pelo auditório lotado. Era imaginação de Ana, ou um brilho de suor cobria a testa do animador? A Rainha do Gelo havia terminado sua apresentação; ela ficou ao lado do palco do lado de fora do vidro, sorrindo para a multidão. Ela era a constante em um palco de Afinitas rotativos, suas exibições enchendo a arena com água e pedras e fogo e todos os outros elementos imagináveis. Bogdan abriu os braços. — A seguir, mesyrs e meya damas, temos uma Afinita da terra. Cada fibra do corpo de Ana ficou tensa. — Ela pode atrair a vida de nada além de lama; pode fazer suas flores favoritas florescerem mais brilhantes do que as estrelas no céu noturno! No palco, as cortinas se abriram. Um assistente saiu correndo e colocou um pote na borda da parede de vidro antes de se esconder nos bastidores. Da escuridão das cortinas, uma silhueta emergiu – e o mundo de Ana sibilou em foco nítido. A Afinita se arrastou para a frente em um enorme vestido marrom escuro costurado com flores vermelhas brilhantes, suas hastes enrolando ao redor de seu corpo. Seus ombros estavam caídos, seu contorno menor e mais ossudo do que Ana se lembrava, e sua cabeça estava curvada. Seus lindos olhos oceânicos estavam escondidos. Ana lutou contra as lágrimas quando May, com quase metade do tamanho dos outros Afinitas que apareceram no ringue, tropeçou no centro do palco. Risos começaram na plateia, e Bogdan deu uma risada acomodada. — Vamos, querida! — ele explodiu. — Não temos o dia todo! Os olhos de May estavam fixos em um ponto no chão enquanto tentava acelerar o passo. Suas saias enroladas em torno de seus tornozelos; ela tropeçou e caiu com um thud. Um pequeno ruído angustiado escapou de Ana enquanto a multidão zombava; ela sentiu a mão de Ramson fechar em torno de seu braço. Seus olhos brilharam. — Tudo o que é bom... — ele sussurrou. ... vem para àqueles que esperam. Ainda assim, a raiva de Ana enrolou dentro de si. Ela esticou sua Afinidade, esfregando-a avidamente sobre o sangue da multidão. Como desejava liberar seu poder para esses bastardos... deixá-los sentir dor e desamparo. — Ela pode ser pequena, mas é extremamente talentosa — gabou-se Bogdan —, ela pode criar rochas e pode quebrá-las. Pode manipulá-las. E ela tem um toque especial de vida com qualquer coisa que cresce na terra. Meus convidados de honra, lhes apresento: Filha da Terra! Um murmúrio percorreu a multidão. No palco, May agachada ao lado do vaso de flores mortas. Apesar de tudo, a expressão em seu rosto era uma mistura de tristeza e esperança quando estendeu as mãos. Por alguns momentos, nada parecia acontecer. E então a multidão soltou um suspiro coletivo, apontando quando um lindo tom verde se infiltrou nos talos como tinta. Vermelho floresceu nas pétalas. Diante de seus olhos, May estava dando vida à planta. E Ana se viu ligeiramente inclinada para frente. Os suspiros da multidão, as máscaras de animais, as tochas e o vidro de pedra-negra desapareceram, e era apenas May. Ela estava sentada no meio de uma clareira, cercada por altos pinheiros cobertos de neve. Suas mãos estavam em concha em torno de uma única margarida branca, murcha pela neve e presa no chão duro e congelado. Seus olhos estavam fechados, e ela cantarolava baixinho. Ana tinha visto, lentamente, a margarida se desenrolar, suas pétalas se desenrolando para enfrentar o sol de inverno. Era como assistir a um milagre. A memória se dissipou quando a multidão no Playpen irrompeu em um punhado de aplausos. No palco, a Rainha do Gelo sorriu. Bogdan abriu os braços. — Os menores costumam ser os mais subestimados e tendem a ser muito mais fortes do que prevíamos. — Ele fez uma pausa teatral, acenando com as mãos. Os anéis em seus dedos brilharam. — Agora, alguém tem algum pedido para nossa talentosa Filha da Terra? Um grito imediatamente subiu. — Faça com que ela cultive uma árvore frutífera! — Faça ela fazer malabarismos com pedras! — Peça para ela fazer uma estátua da terra! E assim por diante, pedras de cobre e pedras de prata e folhas-de-ouro batendo nos sapatos pretos polidos de Bogdan enquanto May mantinha a cabeça baixa. A náusea latejava no estômago de Ana enquanto onda após onda de zombarias e gritos continuavam, e Bogdan gritava ordens para que May obedecesse. — Ei. — Um par de olhos cor de avelã, uma mão quente pousando suavemente, mas com firmeza em seu ombro. — Tudo vai acabar em breve. Ela estará segura, conosco. Ana olhou para baixo e percebeu que tinha agarrado a manga do casaco dele. Ela puxou a mão de volta. Algo chamou sua atenção. No palco, um saco de couro do tamanho da cabeça de Bogdan caiu. Moedas de ouro caíram como vísceras nos pés do Penmaster, brilhando ferozmente à luz do fogo. Um silêncio caiu sobre a multidão. Ramson se endireitou. De algum lugar perto do palco, um tenor claro soou. — Penmaster, tenho um pedido muito especial a fazer... um que acredito queo público vai gostar muito! Bogdan se abaixou para pegar a bolsa volumosa de folhas-de-ouro, com a boca aberta. As moedas continuaram a derramar como água do saco transbordando. — Bem, mesyr — Bogdan exclamou, uma leve falta de ar em seu tom —, você certamente mostrou sua dedicação ao entretenimento! Atrás dele, May finalmente ergueu a cabeça e observava com aguçada intenção. A Rainha do Gelo parecia congelada, forçada. Nas sombras das asas, o corretor de olhos claros observou com interesse desapaixonado. Um pressentimento desceu sobre Ana. Ela procurou na multidão pelo dono da voz, pânico baixo, mas crescendo dentro dela. Isso estava errado. A quantidade de folhas-de-ouro oferecidas era suficiente para alimentar cinquenta famílias durante um ano inteiro. Era o suficiente para comprar uma pequena dacha. Ninguém em sã consciência ofereceria tanto dinheiro por alguns momentos de entretenimento. No palco, os olhos de Bogdan brilharam de prazer. — E de que outra forma — o Penmaster continuou, sua voz ficando mais alta enquanto segurava a bolsa de moedas —, os negócios são conduzidos aqui no Playpen senão por meio de ouro e moedas? Mesyrs, meya damas e todo mundo, digo que ouvimos esse civil que parece pronto para nos dar o espetáculo da noite! Quando a multidão explodiu em aplausos estrondosos e rugiu em aprovações, algo se moveu entre eles. Um lampejo de ouro, uma figura encapuzada. Quando o homem deu um leve salto para o palco, Ana se viu olhando para uma máscara dourada familiar. Não havia dúvida. Era o nobre com quem ela havia esbarrado em sua primeira noite no Playpen. Ele usava a mesma máscara que usava no dia, com um rosto zombeteiro de choro, mas era do ardor em seus olhos que se lembrava. Naquela primeira noite, ela apenas o vislumbrou, mas ele parecia irado. Algo não estava certo. — Ramson — sussurrou Ana, mas o homem começou a falar. — Eu estive em muitos, muitos espetáculos de Afinitas — o nobre de máscara dourada gritou, sua voz alta, suas mãos levantadas em movimentos elegantes e amplos —, e eu esperei por esse momento por tanto tempo. Ana começou a avançar. Ela não tinha certeza do porquê, mas se viu empurrando as pessoas com uma urgência crescente para chegar ao palco. Para chegar à May. Ela ouviu Ramson sibilar seu nome atrás de si; sentiu o pulsar de seu sangue quando ele começou a segui-la. — Estamos felizes em tê-lo aqui, nobre mesyr! — Bogdan deu uma gargalhada, acariciando seu saco de folhas-de-ouro. Seu sorriso se estendia de orelha a orelha. — Deixe-me saber todos e quaisquer pedidos que você gostaria de fazer a esta Afinita, e eu posso... — Desejo que todos aqui reunidos se lembrem desse momento glorioso comigo! — o homem mascarado de ouro exclamou. Com um floreio, ele tirou o capuz. Seu cabelo ficou vermelho quando ele deu um passo à frente, mais perto da beirada do palco. Ele arrancou sua máscara, jogando-a no chão em frente ao vidro. Ana parou no lugar. O rosto no palco estava iluminado pelo triunfo e pelo brilho vermelho-alaranjado da luz das tochas. E era totalmente familiar. As mãos de alguém se fecharam ao redor de seu pulso. Vagamente, ouviu Ramson falando com ela. — Ana, me escute... Mas ela não podia. Ela estava olhando para o rosto do homem; isso a trouxe de volta à sua infância no Palácio, quando ele lhe trouxe chá fumegante e tortas frescas de pirozhky... mas foram suas palavras e o brilho em seus olhos que a aqueceram até o âmago. — Eu o conheço — disse ela, oca. — Você o que? No palco, o ruivo se aproveitou de uma tocha. — Meus nobres convidados, quero que todos se lembrem de uma coisa. — Ele ergueu a tocha e a expressão triunfante em seu rosto se contorceu de ódio. — Eu o conheço — Ana engasgou —, Ramson, ele é um... — Vida longa à Revolução. — Com toda a sua força, o homem ruivo esmagou a tocha acesa no palco. 20 Chamas ganharam vida ao longo do fio de óleo que derramou da tocha, serpenteando pelo chão de mármore como uma serpente brilhante e transparente. Por um momento, o homem ficou escondido atrás da parede de fogo. E então ele entrou, com as mãos estendidas, e dois pilares de chamas dispararam de suas palmas para o ar. A gritaria começou. Ana correu para o palco. A multidão se acotovelou contra ela enquanto os nobres fugiam como crianças assustadas, os olhares maliciosos em seus rostos substituídos por um medo puro. Mas os olhos de Ana estavam fixos no Afinita do fogo. Yuri. Ela se lembrava das faíscas em seus olhos cinza carvão naquela época, quando ele colocava ptychy'molokos em suas bandejas de jantar. Esse calor tinha crescido a um fogo feroz... selvagem e indomável. Ele havia planejado algo, ela não sabia o quê, mas o espetáculo, o ouro, tudo tinha sido um ardil para levá-lo ao palco. E agora a vida de May estava em perigo. O movimento nas alcovas do teto chamou sua atenção. Os atiradores se mexeram, a luz laranja das tochas brilhando em suas flechas de pedra-negra. O olhar de Ana chicoteou para o palco. Além das chamas abrasadoras, atrás do vidro de pedra-negra, estava May, sozinha. O corretor se foi; ela pensou ter visto um lampejo de suas costas enquanto ele desaparecia atrás das cortinas. Os arqueiros se armaram e sacaram. Por um segundo aterrorizante, o mundo pareceu desacelerar, e tudo o que Ana ouviu foram flechas assobiando enquanto disparavam em direção ao palco. Ana pegou o sangue de May e, novamente, sua Afinidade atingiu a pedra-negra fria e vazia. O pânico surgiu em seu peito... O palco explodiu. Não em sangue e não em fogo... mas em gelo. Gelo branco como cristal estalou para a vida acima da arena, formando um arco duro e brilhante sobre todo o palco. As flechas ricochetearam no gelo e caíram no chão. No palco, a Rainha do Gelo se endireitou, com as mãos estendidas, seu cabelo branco acinzentado chicoteando no calor das chamas. Ela se virou, travando os olhares com Yuri. E deu um único aceno lento. Juntos, eles se viraram para a parede de vidro de pedra negra atrás deles. Fogo e gelo crepitaram do ar rarefeito, espirais de branco prateado e vermelho flamejante que bateram contra o vidro. Eles iam derrubar a arena. E se aquele vidro caísse, se o palco desabasse, todos embaixo seriam esmagados. O que significava que Ana tinha que tirar May antes disso. — May — ela gritou, procurando por um vislumbre da garota por trás dos elementos que rugiam contra o vidro. Ela estava tão perto, mas ainda não perto o suficiente para proteger May. Uma onda de choque de calor pulsou do palco, envolvendo-a. Ana ergueu os braços e apertou os olhos para o espetáculo brilhante e impossível. Yuri canalizou o fogo das tochas que cercavam a arena. O calor corria em um poderoso e ardente anel ao redor do palco, iluminando o Playpen enquanto o público aterrorizado fugia para a saída. Ele estava forte, muito mais forte do que no Palácio. Ou ele manteve o verdadeiro poder de sua Afinidade dela? Ser capaz de manipular tanto fogo, enquanto a maioria dos Afinitas de fogo mal conseguia manter uma pequena vela acesa… Ela tinha que ficar atrás daquela prisão de vidro. Tinha que chegar à May. Ana esticou sua Afinidade, e seu poder rugiu para a vida, mais brilhante do que qualquer chama. Ela agarrou Yuri e a Rainha do Gelo e puxou. Através dos olhos lacrimejantes, ela os viu tropeçar e cair. O fogo furioso e o gelo rugindo pararam, deixando uma parede irregular e coberta de gelo. Rachaduras corriam irregulares ao longo de sua superfície, espalhando-se como veias. Yuri rolou, e seu olhar ardente pousou em Ana. Ele levantou as palmas das mãos. — Yuri... Quando as chamas explodiram de suas mãos, algo colidiu dolorosamente com o estômago dela. Ana bateu contra a borda do palco e se viu olhando para o rosto de Ramson enquanto ele se desvencilhava dela. A fuligemmanchava suas bochechas. — Ana — resmungou, mas ela o empurrou para trás e saltou para o palco. Através do gelo suavemente fumegante e do vidro escurecido acinzentado estava a sombra de uma pequena figura. A barreira translúcida entre elas fazia parecer um sonho. May levantou a mão. Do vaso de flores diante dela ergueu-se um pedaço de terra. Com um ruído de trituração, ele encolheu, endurecendo em uma rocha. May atacou, e a pedra se chocou contra o vidro de pedra-negra. Boom. De novo. E de novo. Em sua quinta tentativa, houve um som estilhaçado. Rachaduras de teias de aranha se espalharam pelo vidro; o gelo emitiu uma série de estalos explosivos. Ela estava quebrando a parede. Enquanto Ana observava a criança levantar as mãos e puxar a pedra de volta, de repente ela percebeu que May estava trabalhando com Yuri e a Rainha do Gelo. May fazia parte do plano. Ela estava tomando uma posição, lutando com os rebeldes para acabar com a crueldade do Playpen, para derrubar – literalmente – a prisão de vidro que os enjaulou. A pedra balançou para a frente. Com um estalo final retumbante, o vidro se estilhaçou. Por um momento, os cacos caíram no ar, gelo e vidro se misturaram, mil pedaços de fragmentos brilhantes fractalizando à luz das tochas. E então eles caíram, correndo em direção ao chão com uma intenção penetrante. Ana mergulhou para May. Yuri mergulhou para Ana. Do outro lado do palco, a Rainha do Gelo estendeu a mão. Gelo subiu do chão como uma onda branca sólida, endurecendo em uma barreira sobre suas cabeças. Fragmentos do que tinha sido o vidro de pedra-negra choveram ao redor deles, enchendo o ar com um tilintar suave enquanto ricocheteavam no arco de gelo acima. O ombro de Ana bateu no palco quando Yuri a agarrou, suas mãos em sua garganta, seus dentes arreganhados de raiva. Ela lutou de volta, seus dedos erguendo-se em suas mãos, sua máscara quente e suada contra seu rosto. — Yuri — ela engasgou —, pare... — Eu quero que você saiba como é morrer nas mãos de um Afinita — ele rosnou, levantando a mão. — Yuri! — Ela arrancou a máscara. — Sou eu! Ele congelou, a mão pairando sobre ela, a expressão suspensa entre confusão e raiva. E então, lentamente, o reconhecimento penetrou em seus olhos, junto com a descrença. Ele recuou, levantando as mãos dela como se tivesse sido queimado. — Kolst... — Ana! — A voz mais doce soou, uma que Ana reconheceria em qualquer lugar. May se ajoelhou no palco, a apenas dez passos de Ana, o espanto em seu rosto rapidamente dando lugar à alegria. O alívio atingiu Ana com tanta força que uma meia risada, meio soluço borbulhou de seus lábios. — May — ela gritou, estendendo a mão. Uma flecha passou zunindo por ela e atingiu o palco de mármore. — May! — O grito de Ana se transformou em pânico quando outra flecha foi lançada para fora do palco, a um palmo dela. — Dyanna! — Atrás dela, Yuri deu um grito agonizante. Na beirada do palco, a Rainha do Gelo – Dyanna – olhou para cima, seu rosto quase tão pálido quanto seu cabelo. Sangue, surpreendentemente vermelho contra sua palidez, escorria de seu nariz. Um borrão zuniu em direção a ela. O corpo de Dyanna sacudiu com o choque do impacto. Ela caiu no chão, a haste de uma flecha saindo de suas costas. O cheiro espesso de sangue encheu o ar. — Dyanna! Dyan...— O grito de Yuri se transformou em um soluço sufocado. — Não. Não. — Yuri! — Ana agarrou seu braço, prendendo-o sob a barreira de gelo. — Nós temos que sair... Uma flecha atingiu o chão perto de May. Os olhos da criança se arregalaram quando olhou para cima; ela se virou e começou a correr em direção às cortinas de veludo. Nas sombras das alcovas acima, os atiradores se armaram e sacaram. Ana já estava se levantando, mesmo quando as flechas disparavam em direção a eles, mesmo quando percebia que não chegaria a May antes que uma flecha atingisse o alvo. Mas alguém estava correndo em direção à criança. Ramson atirou-se em May, derrapando no mármore arruinado com as calças e o casaco de nobre. Vidro estilhaçado e gelo estalaram embaixo dele. Ele rolou, embrulhou May em seus braços e mergulhou para as cortinas. Whoosh. A flecha roçou seu abdômen. Ele arqueou as costas de dor, deu um grunhido abafado e cambaleou. Ana já estava correndo. Ela chegou ao lado de Ramson ao mesmo tempo que Yuri; juntos, eles arrastaram Ramson e May para fora do palco e para a escuridão atrás das cortinas de veludo. 21 Nos bastidores, o ar estava mofado e o cheiro de suor permanecia. Eles tropeçaram pelas cortinas e desceram o palco para uma câmara, mal iluminada por várias tochas em arandelas. Corredores escuros se estendiam para a esquerda e para a direita. Os gritos da multidão pareciam vir de um mundo distante, como se as cortinas grossas os tivessem separado do caos e lhes concedido este santuário temporário. Na semiescuridão, uma pequena voz a encontrou. — Ana? Um soluço brotou na garganta de Ana. — May — ela resmungou. Ambas se moveram uma para a outra ao mesmo tempo, colidindo com gritos de alívio. Ana segurou firme. — Seu cabelo. — Lágrimas queimaram seus olhos. — Está tudo fuliginoso. May riu e apertou as bochechas de Ana em suas mãos, traçando as lágrimas com seus pequenos dedos. — É você. É realmente você. Mais lágrimas rolaram pelo rosto de Ana. Ela riu, um som molhado e gargarejado, e pressionou sua testa na de May. — Claro que sou eu. Eu nunca te deixaria. À frente, Yuri limpou a garganta. Uma pequena chama dançava em sua palma, iluminando o corredor à frente. — Por aqui. Ana apertou a mão de May, e correram atrás dele. — Onde estamos indo? — É a Revolução, Ana — disse May. Seus olhos estavam brilhantes. — Yuri é um Manto Vermelho – um rebelde, para os Afinitas. Conheci os outros Mantos Vermelhos quando fui trazida para cá. Nós vamos resgatá-los agora mesmo. Atrás deles, Ramson tossiu ruidosamente e parou bruscamente perto das paredes de pedra. O estômago de Ana se apertou quando ele se preparou, uma mão ao lado do corpo onde a flecha o atingiu de raspão. Ela podia sentir o sangue pingando no tecido de sua túnica. — Ramson! — Eu vou ficar bem — ele murmurou —, apenas nossa sorte. Droga... Revolução. — Os Mantos Brancos ficaram parados por muito tempo e não fizeram nada, nos observando enquanto sofremos. — Os punhos de Yuri estavam cerrados e ele cuspiu as palavras. — É hora de tomarmos o assunto em nossas próprias mãos. Somos um lembrete de que seus mantos não são brancos, mas vermelhos... manchados com o sangue dos Afinitas. Nós representamos a chama da esperança... — Cara, agora não é hora de poética — Ramson gritou —, se não sairmos daqui a única coisa vermelha será seu sangue na espada de um Manto Branco. — Precisamos ir embora — Ana concordou, segurando a mão de May com força —, agora. Yuri parecia um pouco desconcertado, mas foi May quem falou. — Não — ela disse, puxando sua mão da de Ana —, não vou embora sem os outros. Era como se, em uma semana, May tivesse envelhecido anos. A boca de May era uma linha firme enquanto olhava para Ana, mas seus olhos eram suplicantes. — Yuri e Dyanna planejaram isso e me salvaram. Eles salvaram muitos outros Afinitas. E eu quero... eu quero ajudar também. — May estendeu a mão novamente, pegando as mãos de Ana entre as suas. — Lembra da garota que me deu um ptychy'moloko no Vyntr'makt? Pensei nela todos os dias que estive aqui. — Sua voz tremeu, mas Ana ouviu uma pitada de determinação de aço por baixo. — Você me salvou, Ana. E eu queria ajudá-la, e outras como ela. Eu quero... — May respirou fundo, e seus olhos estavam brilhando quando olhou para cima. — Quero que todo o Império, cada Afinita, saiba como é… ter esperança. A faísca nos olhos de May e a força em suas palavras agitaram algo no peitode Ana. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, um barulho soou no corredor à direita. Um estalo rítmico que ficou mais alto a cada segundo. Ramson xingou. — Guardas — sussurrou, levantando-se —, você, Poeta. Onde estão os Afinitas? — Corredor à esquerda — Yuri disse rapidamente —, o quarto no finalzinho. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou um molho de chaves. — Eu posso buscá-los. — May deu um passo à frente e pegou as chaves de Yuri. Ela se virou para Ana, seus olhos brilhantes, as tochas esculpindo sua pequena e sólida sombra contra um mundo de chamas bruxuleantes. — Espere aqui, Ana. — E então se foi, um pedaço de luz engolido pela escuridão. Ana gesticulou para Ramson. — Vá com ela. Yuri e eu vamos ficar aqui e afastar os guardas. Ramson hesitou. — Não morra — ele disse. — Não seja sequestrado — ela respondeu. Ela ouviu sua risada rouca e escondeu um sorriso enquanto se virava para encarar os passos que se aproximavam. Ela sentiu o olhar de Yuri queimando em suas costas. — Você está viva — ele murmurou, e ela finalmente se permitiu olhá-lo. Seus olhos estavam arregalados, como se ele estivesse bebendo a visão dela. — Eu... eu não acredito nisso. — E você — disse Ana —, você é um... um rebelde. Os passos trovejaram, ao virar da esquina. — Mais tarde? — Yuri disse, inclinando a cabeça. — Mais tarde — ela concordou, e levantou as mãos. Seis guardas apareceram, exatamente como Ramson havia previsto. Seus olhos se arregalaram quando a luz da tocha explodiu sobre eles em duas colunas de chamas. Ana ficou para trás, observando com admiração o menino outrora esquelético avançar sobre os guardas, chamas saindo de suas palmas e se curvando nas estreitas paredes de pedra do corredor. Uma sombra brilhou à sua esquerda, nos degraus que desciam das pesadas cortinas de veludo. Ana se virou, sentindo o poderoso pulsar do sangue antes mesmo de ver a mulher. Lâminas de aço brilharam quando a recém-chegada entrou na luz, sua máscara de gato preto brilhando à luz da tocha. — Você — Ana disse oca. A mulher havia trocado sua roupa de cortesã por uma calça preta justa e uma camisa, mas era a mesma Afinita de aço que guardava as portas do Playpen todas as noites, aquela que tentara impedir Ana de entrar. Não havia sinal de sua companheira, a Yaeger, quando ela passou na frente de Ana, bloqueando o caminho. Incontáveis pequenas lâminas alinhavam o cinto em seus quadris, brilhando como dentes. O instinto gritou com Ana para lançar sua Afinidade na mulher, para lutar com cada fibra de seu corpo. Mas as palavras de May a seguraram. Eram iguais, Ana e essa Afinita de aço: temidas pelas qualidades que as marcavam diferentes, e perseguidas pelos poderosos. Ana levantou a mão. — Por favor, não faça isso. Os olhos da mulher brilharam. — Se você não estiver morta até o final da noite, será a minha vida que ele tirará. — Quem? — Ana perguntou, embora suspeitasse que sabia a resposta. — Lorde Kerlan. — A Afinita de aço ergueu sua lâmina. — Me desculpe. Ana não lhe deu outra chance de falar. Ela agarrou o sangue da Afinita e a jogou contra a parede dos fundos. Os olhos da Afinita se arregalaram de surpresa, mas ela se virou e uma lâmina disparou de seu cinto. Ana mergulhou para o lado; a faca de arremesso se alojou na parede atrás dela com um plink. Ela rolou e saltou para seus pés, mas naquele segundo, perdeu o controle sobre a Afinita de aço. A segunda lâmina cortou o braço de Ana; ela gritou e bateu contra a parede, sua Afinidade desviada pelo calor escorrendo por seu braço e a dor aguda de sua carne cortada. Uma terceira faca brilhou, mas Ana foi mais rápida. Ela agarrou o sangue da Afinita de aço e segurou. A mulher deu um grito de agonia, que rapidamente se transformou em um ruído de asfixia quando o sangue começou a encher seus pulmões. — Você não tem que fazer isso — Ana murmurou —, venha conosco. Lute conosco. A Afinita de aço estremeceu. Sua cabeça estava curvada, e uma poça de sangue havia se acumulado no chão embaixo dela. Quando ergueu o rosto, seus olhos estavam injetados, vermelho pingando de seu nariz e lábios. — Eu... A pressão apertou a mente de Ana, tão absoluta que ela gritou. O mundo embotou quando sua Afinidade desapareceu; sua cabeça latejava contra uma parede fria e familiar. Uma sombra se separou das cortinas de veludo. A Yaeger entrou na luz das tochas. Pela primeira vez desde que Ana a viu, porém, ela parecia com medo. Ana não sabia por que até que uma voz sedosa a acariciou como a noite. — Mate-a, Nuryasha. Uma figura entrou parcialmente na luz das tochas, espreitando atrás da Yaeger e da Afinita de aço. Mas mesmo de lá, Ana podia ver o brilho dos olhos pálidos e gélidos do corretor enquanto ele a observava. A Afinidade de aço – Nuryasha – tossiu sangue e espalmou sua lâmina. Ela hesitou. — Mate-a — o corretor ordenou novamente. Os olhos da Yaeger se estreitaram. A pressão na cabeça de Ana aumentou. Ela caiu de joelhos, tonta de dor, agarrando-se a algo – qualquer coisa – que a salvasse. Um pensamento a confortou: que May estava segura com Ramson. Nuryasha arremessou a lâmina. Um pequeno borrão saiu do corredor à esquerda de Ana, colidindo com seu meio e jogando-a de lado. Ana colidiu com a parede, a dor irrompeu em suas costas e seu braço ferido. Piscando através dos pontos escuros em sua visão, ela olhou para cima. May estava onde Ana estivera momentos antes, a bainha de uma faca de arremesso saindo de seu abdômen. Uma mancha escura estava se espalhando rapidamente por seu vestido, vermelho escorrendo em seus dedos enquanto ela tentava estancar seu fluxo com as mãos nuas. Seus olhos estavam arregalados de surpresa quando ela encontrou o olhar de Ana, sua boca franzida em um leve O. Ela cambaleou e caiu levemente no chão. O tempo pareceu parar, e o resto do mundo se dissipou até que restasse apenas a imagem da pequena figura de May caída no chão avermelhado, gravada indelevelmente na mente de Ana. Seus ouvidos se encheram de um estranho silêncio retumbante enquanto ela se agarrava ao lado da criança; ela pensou ter ouvido gritos, mas nada mais fazia sentido. Ana pegou May nos braços. Ela sempre foi essa luz? — May — sussurrou Ana. Suas mãos ficaram pegajosas e escuras. O mundo desabou em um turbilhão de fumaça e sangue. Demorou um momento para Ana perceber que a barreira da Yaeger em sua mente havia se dissipado. Com o canto do olho, ela viu Ramson empurrar a Yaeger para o lado, sua adaga saindo de suas costas. Nuryasha estava a seus pés, imóvel em uma poça de seu próprio sangue. O corretor se foi. Os olhos de Ramson se fixaram em May, e ele praguejou baixinho. — Ana — sussurrou May. — Silêncio. — Ana apertou as mãos trêmulas sobre as de May, pressionando contra a ferida. — Eu vou parar o sangramento, e vamos te enfaixar. O peito de May se contraiu em respirações curtas e superficiais. Uma quantidade estonteante de sangue atingiu os sentidos de Ana; sua Afinidade estremeceu, e ela conteve a náusea. — Minha mãe disse — May murmurou, e respirou fundo —, “nós somos apenas poeiras e estrelas.” Ela me disse... antes de nos separarmos... para procurá-la na terra e nas estrelas. Um soluço sufocou a garganta de Ana. — Não — ela engasgou —, nós vamos encontrá-la, May... May! — Ela embalou a cabeça de sua amiga enquanto seus olhos tremeluziam. — Escute- me. Sua mãe está esperando por você lá fora. Esperando para vê-la. Nós vamos encontrá-la juntas, tudo bem? — Eu não... eu não quero ir. — May lutou para respirar, lágrimas afogando seus olhos. — Eu quero viver. Ana pressionou o ferimento de May, desesperadamente segurando o sangue e empurrando-o para trás. Vazou por entre seus dedos e sua Afinidade. Ela nunca aprendeu a usar seu poder dessa maneira. Por toda a sua vida, aprendeu apenasa ferir e torturar. Ela nunca tinha aprendido a curar. Um grito angustiante rasgou de sua garganta. — Eu não consigo — ela engasgou —, Ramson... Yuri...alguém! Ajuda! — A Revolução. — Os pequenos dedos de May se curvaram ao redor dos de Ana, puxando suavemente, insistentemente. — Prometa-me, Ana, você vai melhorar. Pela minha mãe. Por todos os Afinitas. E prometa... você vai encontrá-la. — Eu vou, eu vou — Ana soluçou. Ela teria prometido qualquer coisa naquele momento para manter May falando por mais algum tempo —, farei isso, May, mas preciso de você... O mundo girou, e o sangue de May se derramou como areia em uma ampulheta, o tempo cambaleando em um borrão implacável em direção ao fim inevitável. — Poeiras e estrelas — May sussurrou. Ela começou a tremer —, somos apenas poeiras e estrelas. — Por favor, May. — Ana não conseguia respirar. — Por favor. Não vá para onde eu não posso seguir. May respirou fundo. — Estou sempre aqui, Ana — sussurrou, e fechou os olhos de oceano, suas palavras desaparecendo como um sussurro de vento —, você vai me encontrar nas estrelas. 22 Ana agarrou-se a May, enrolando seu próprio corpo ao redor do da criança. Havia uma palavra para descrever uma dor tão profunda que te dividia, abria um buraco dentro de você e te deixava vazio? Ana estava vagamente ciente de que a luta havia parado, que os corpos dos guardas estavam espalhados pelo corredor diante deles. Várias pessoas se espalharam ao redor dela, observando-a. Mãos quentes agarraram seus ombros. Uma voz familiar chamou seu nome. Uma mão segurou sua bochecha, levantando seu queixo. Ela se viu olhando nos olhos de Ramson. A alegria habitual havia desaparecido deles, deixando-os com uma avelã sombria. Gentilmente, ele escovou uma mecha do cabelo dela atrás da orelha, seus dedos demorando por sua bochecha. Ela quase podia ler seus pensamentos no gesto. Eu sinto muito. As palavras tremeram no ar entre eles. — Ana. — A voz de Yuri era oca. — Eu sinto muito. Ramson girou e empurrou Yuri contra a parede. — Você — Ramson rosnou —, não tem o direito de se arrepender. Yuri engasgou, suas mãos voando para o pulso de Ramson, mas Ramson não o soltou, e Yuri não resistiu. — Se você não tivesse tentado seu pequeno truque, isso nunca teria acontecido. Você acha que uma Revolução é um jogo? Acha que fazer um grande espetáculo no quintal de Kerlan é impressionante? — Ramson soltou a mão; Yuri cambaleou, esfregando a garganta. — Isso não é uma Revolução. Isso é um massacre. E está prestes a piorar se não sairmos daqui agora. Ana mal registrou as palavras; estavam além dela. Algo tinha sido arrancado de dentro dela, deixando uma ferida aberta nela que estava em carne viva, sangrando e dormente. Ela estava a um passo do abismo, assim como quase um ano atrás. — Ramson — disse. Ramson parou e se afastou de Yuri. Ao redor de Ana, observando com expressões que iam da tristeza ao medo, havia os Afinitas. Eles variavam de crianças a homens e mulheres adultos, de todo o mundo. Usavam uma variedade de roupas chamativas e espalhafatosas ainda frescas das apresentações da noite. Ela contou nove deles. Nove Afinitas. Nove vidas em troca da de May. Valeu a pena? Como se equilibrava o significado de uma vida em relação a outra? Havia mesmo uma maneira de medir? Não tem, pensou Ana, colocando a mão na bochecha de May. Ainda estava quente. Papai certa vez lhe dissera, depois da morte de mamãe, que havia dois tipos de luto. Um era do tipo que te esmaga, que quebra sua alma e despedaça seu coração, e te deixa uma concha vazia. O outro era uma dor que te faz mais forte. Você se levantava dela, você a afiava e a carregava com você como uma peça de sua armadura. E você se fazia melhor. Dessa forma, você nunca realmente perdeu essa pessoa. Você os carregou consigo. Ana fechou os olhos e enterrou o rosto na curva do pescoço de May. Lágrimas escorreram por suas bochechas, afundando no cabelo de May. Prometa-me, Ana, que vai melhorar. Pela minha mãe. Por todos os Afinitas. Ana respirou fundo novamente. A urgência de agir, de se mover, acendeu nela uma pequena luz na escuridão. Pela primeira vez, ela se concentrou nos rostos dos Afinitas ao seu redor, observando-a silenciosamente. Esperando. Ela se levantou, embalando o corpo de May contra o peito. Ana vasculhou a câmara e encontrou os olhos de Yuri; ele olhou para baixo, a culpa estampada em seu rosto tão claramente como se tivesse sido marcada por um ferro quente. — Precisamos sair dos túneis — disse Ana. — Dyanna nos ensinou a navegar pelos túneis — disse Yuri, a tristeza quase engolindo sua voz —, ela trabalha com os corretores há anos, preparando-se para este momento. Temos uma casa segura fora da cidade. — Então precisamos nos mover e chegar àquela casa segura — Ramson interrompeu —, você acabou de matar um esquadrão inteiro de guardas; deve demorar um pouco até que os reforços cheguem. Se formos rápidos, podemos não encontrar nenhum. Yuri estreitou os olhos. — Quem o nomeou como líder? — Você e sua incompetência — Ramson retrucou sem perder o ritmo — o que, exatamente, você estava planejando fazer depois de destruir o palco e colocar todos os guardas na área atrás de você? Sentar aqui e recitar poesia? — Parem — disse Ana, bruscamente o suficiente para os dois homens se virarem e a olharem. Ela respirou fundo, estremecendo, tentando clarear a cabeça. O corpo de May estava leve em seus braços; assim, com os olhos fechados, ela poderia simplesmente estar dormindo depois de um longo dia. Foco, disse a si mesma. Ela não iria decepcionar May. Ana virou-se para Yuri. — Ramson e eu tínhamos planejado sair dos túneis deste lugar. Parece que estamos alinhados. Yuri assentiu. — É um labirinto aqui embaixo, o que pode funcionar a nosso favor, já que qualquer reforço será bem espalhado. — Então o que estamos esperando? — Ramson empurrou-se para fora da parede em que estava encostado, com a mão no lado ferido. O sangramento havia parado, Ana percebeu. Yuri virou-se para os Afinitas silenciosos que esperavam perto da parede. — Mantos Vermelhos — disse ele, e sua voz era grave e firme —, chegou a nossa hora. Qualquer um que tente nos impedir de alcançar nossa liberdade é o inimigo. Não hesitem em derrubá-los. — Ele fez uma pausa, seus olhos brilhando. — E eu juro por minhas Divindades e quaisquer deuses ou fé que vocês tenham que eu os protegerei com minha vida. Era como acender uma faísca. Uma brisa invisível parecia agitar os Afinitas, levando-os a ficarem mais altos, substituindo o medo em seus rostos por determinação. Yuri estalou os dedos e chamas ganharam vida em suas palmas, mais brilhantes do que a luz de qualquer globo de fogo. Eles lançaram sombras bruxuleantes nas paredes de pedra, o sangue e os corpos no chão moldados em monocromático. — Por aqui — murmurou, e Ana, Ramson e os Afinitas o seguiram. Eles caminharam em silêncio, exceto pelo som de seus saltos batendo contra o chão e suas respirações irregulares. Ramson ficou perto de Ana, lançando seus olhares de soslaio. Ela manteve o olhar fixo no cabelo ruivo de Yuri, tentando não pensar no peso de May em seus braços. Gradualmente, o chão de pedra ficou grosseiro e escorregadio com musgo, os túneis se ramificando como raízes de uma árvore e ficando cada vez mais estreitos até que eles tiveram que andar em fila indiana. Várias vezes, Ana foi tomada pelo súbito medo de que estivessem perdidos, de que nunca conseguiriam sair desses túneis, de morrer presos no labirinto de um corretor de Afinitas. Ela manteve sua Afinidade estendida, procurando por sinais de sangue quente se aproximando. Depois do que pareceram horas, o ar mudou. Ficou mais frio; uma brisa distante agitou as chamas na palma de Yuri e beijou as bochechas de Ana. Gradualmente,a escuridão diminuiu ao redor deles e uma luz distante apareceu, e logo eles se aproximaram de uma porta quebrada, balançando fora de suas dobradiças. Yuri a segurou aberta e esperou enquanto, um por um, os Afinitas davam seus primeiros passos hesitantes para a liberdade. As estrelas brilharam uma luz branca e fria sobre eles enquanto se esgueiravam pela cidade como sombras, seguindo Yuri por becos escuros. As ruas ficaram mais vazias, os paralelepípedos mais ásperos até virarem pó; dachas de telhado vermelho estreitamente entrelaçadas transformando-se em casas simples com paredes de barro. A Syvern Taiga surgiu, uma parede irregular de árvores. Na orla da floresta havia uma única cabana, as luzes brilhando teimosamente em suas janelas. Ao se aproximarem, Ana conseguiu distinguir uma placa de madeira pendurada na porta, declarando em pródiga letra cursiva: Loja de Espiritismo de Shamaïra. O grupo parou nos degraus da dacha, tremendo, sua respiração irregular. Yuri se aproximou e bateu. A porta se abriu na primeira batida. Com os braços doloridos pelo esforço, Ana entrou cambaleando atrás dos outros Afinitas. O calor a envolveu. Um fogo crepitava em uma lareira atrás de uma mesa de madeira inclinada, e o ar estava pesado com o cheiro de incenso e especiarias aromáticas. Sua primeira impressão foi que a dacha estava arrumada, com uma decoração distinta que não se parecia com nada que ela já tinha visto. Estantes cobriam as paredes, repletas de tomos com inscrições douradas em uma linguagem elegante e sinuosa. Um tapete gigante se estendia no centro da sala, intrincadamente estampado com pássaros e rosas talhados em vermelhos ricos e dourados profundos. Sofás acolchoados o cercavam, e em cima de uma mesa de centro baixa estava um grande samovar de prata. Yuri tirou os sapatos e entrou na sala. Ana não queria nada mais do que desabar em um daqueles sofás e acordar com os olhos azuis brilhantes de May. — Falem e sejam reconhecidos pela Mãe de Todo o Conhecimento, seus mortais — uma voz baixa explodiu, assustando Ana. — Shamaïra, sou eu — Yuri gritou. Houve um estranho som arrastado, e de trás de uma pesada cortina de brocado surgiu uma mulher de meia-idade. Seus olhos eram delineados em kohl preto contra sua rica pele marrom, e ela usava um xale de seda sobre a cabeça, solto sobre os ombros. Foram suas maçãs do rosto ousadas e olhos ferozes que chamaram a atenção de Ana. Ela era bonita; uma leoa diminuta. — Ah, é só você — a mulher rosnou na voz rouca de um fumante de cachimbo. Ela fez uma pausa enquanto seu olhar se fixava no resto do grupo. Sua expressão mudou e abriu um sorriso tão ardente quanto o sol —, bem- vindos. — Não está noite, Shamaïra — Yuri disse cansado, e inclinou a cabeça em direção a Ana. Os olhos de Shamaïra se suavizaram. — Oh — foi tudo o que disse enquanto se aproximava e colocava a mão em May. Ana ficou tensa, mas o toque da mulher era gentil. Seus olhos encontraram os de Ana, e havia uma tristeza tão profunda neles que Ana sentiu a parede vazia e insensível que ela havia erguido começando a rachar. — Uma Afinita Chi'gon — Shamaïra murmurou. — Devemos devolver a alma dela. Posso? Ana fortificou seu aperto em May. Ela sentiu como se, se esperasse um pouco mais, pudesse adiar a terrível realidade que a esperava. A realidade de um mundo sem sua amiga. — Ela passou, minha criança — Shamaïra disse suavemente —, e devemos devolvê-la a seus deuses e seus entes queridos. Não convém que os mortos habitem neste mundo. Dessa vez, Ana deixou que Shamaïra levantasse May de seus braços, com o mesmo cuidado com que seguraria um recém-nascido. A cabeça de May pendeu contra o ombro de Shamaïra, e Ana se lembrou das vezes que carregara May depois de um longo dia de viagem. Ela não se importava com o peso naquela época. Agora era tudo o que restava a Ana: memórias e o fantasma do peso de May em seus braços vazios. 23 Shamaïra tinha um jardim coberto de trepadeiras crescidas e vasos de plantas de todas as espécies imagináveis, algumas das quais Ana não conhecia nem mesmo em seus estudos no Palácio. Ela passou pelas samambaias, se aventurando mais fundo no silêncio. O cheiro de lama fresca e revirada e neve derretida e a misteriosa fragrância de plantas permaneciam no ar frio da noite. Atrás do pátio assomava o vasto contorno da Syvern Taiga. Ana encostou-se a uma treliça de madeira, envolvendo-se com os braços. O frio penetrou em seus ossos, mas ela poderia muito bem estar congelada – uma garota esculpida em gelo. Ela sentiu como se se deixasse descongelar, perderia tudo. Alguém se moveu atrás dela. Ana conhecia aquela presença como se fosse uma parte dela: calor e luz e chama, o cheiro da lareira da cozinha e ptychy'moloko recém assado e chá quente servido em um samovar de prata. Ela se virou, e foi como olhar para um estranho. O garoto que conhecera era macio, bochechas redondas e pálidas do conforto do Palácio, cabelo curto. Ele ria facilmente, seus olhos brilhavam, e se fechasse os olhos, ela poderia vê-lo se afastando do fogo na cozinha, suor brilhando em sua testa e fuligem em seu rosto. Agora, apenas doze luas depois, ele se elevava sobre ela, músculos substituindo seus braços finos e sardentos, queixo esculpido e sombreado com a nuca. Seu cabelo tinha crescido até os ombros, preso em um rabo de cavalo que brilhava como uma chama quando refletia a luz. Havia uma dureza em seus olhos cinza-carvão que nunca estivera ali antes. Eles se observaram por um minuto, Ana procurando rastros do garoto que conhecia. Era como se ele tivesse se tornado um estranho. Ela estendeu a mão, hesitante, para tocar um corte em seu pescoço. Algo derreteu na expressão de Yuri. — Sou eu, Kolst Pryntsessa — ele murmurou enquanto pegava as mãos dela, as suas próprias ásperas e calejadas. Ana sufocou um soluço ao olhar para elas, lembrando como as dobras de seus dedos sempre foram manchadas de branco com farinha. Quando Yuri a puxou em seus braços, ela enterrou o rosto em seus ombros fortes, procurando o cheiro de assados, suor e fuligem de cozinha. Em vez disso, ela sentiu cheiro de fogo e fumaça. Mas ele ainda era Yuri – seu Yuri, aquele que se sentou do lado de fora de seus aposentos durante seus piores pesadelos. Aquele que trouxe bandejas de tortas pirozhky para ela apenas para que ele pudesse se agachar do lado de fora da porta e sussurrar para ela. — Me chame de Ana — ela sussurrou quando finalmente se afastou, enxugando as lágrimas. — Eu pensei que você estava morta — Yuri engasgou. Ele também estava chorando —, a Corte anunciou... — Eu não matei papai. — As palavras saíram da boca de Ana entrecortadas, suplicantes. — Eu estava tentando salvá-lo, mas não consegui... — Eu sei — disse Yuri —, eu conheço você, Ana. Você sempre compartilhou seus deleites comigo, não importa o quanto gostava deles. Você chorou por seu coelho de estimação por luas a fio. Você nunca faria algo assim. Sua confirmação enviou novas lágrimas aos olhos dela e a fez se sentir fraca e forte ao mesmo tempo. — Papai foi envenenado, Yuri. — Envenenado? Ana assentiu. — Eu vi um homem naquela noite... foi o alquimista do Palácio que partiu há muitos anos. Ele alimentou meu pai com alguma coisa, e eu o vi morrer. — Ela estremeceu, e Yuri a abraçou com firmeza. — Eu estava tentando tirar o veneno. — Ana fechou os olhos, apoiando-se no amigo, e as palavras saíram dela. — Era um veneno lento, Yuri... cheirava exatamente como o remédio amargo que papai estava tomando o tempo todo. Nunca o estava ajudando a melhorar... estava piorando sua doença. Aquela noite foi a dose final. Yuri endureceu ao seu lado. — Divindades — ele amaldiçoou suavemente. Ana parou diante da expressão aterrorizada de Yuri. — Ana — disse ele, apertando a mão em seu ombro —, há algo