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SINOPSE 
 
No Império Cyriliano, as Afinidades são insultadas. Seus variados dons 
para controlar o mundo ao seu redor são de natureza... perigosa. E Anastacya 
Mikhailov, a princesa da coroa, tem um segredo aterrador. Sua Afinidade 
mortal com o sangue é sua maldição e a razão pela qual ela viveu sua vida 
escondida atrás das paredes do palácio. 
 
Quando o pai de Ana, o Imperador, é assassinado, seu mundo é 
despedaçado. Emoldurada como sua assassina, Ana deve fugir do palácio 
para salvar sua vida. E, para limpar seu nome, ela deve encontrar o assassino 
de seu pai por conta própria. Mas a Cyrilia além dos muros do palácio é 
muito diferente daquela que ela pensava conhecer. A corrupção governa a 
terra, e uma conspiração maior está em ação – uma que ameaça o próprio 
equilíbrio de seu mundo. E há apenas uma pessoa corrupta o suficiente para 
ajudar Ana a chegar ao seu núcleo: Ramson Quicktongue. 
 
Um astuto senhor do crime do submundo Cyriliano, Ramson tem 
planos sinistros – embora ele possa ter encontrado seu par em Ana. Porque, 
nesta história, a princesa pode ser a jogadora mais perigosa de todas. 
 
 
 
 
 
 
GLOSSÁRIO 
Afinidade: pessoa com uma habilidade especial ou uma conexão com 
elementos físicos ou metafísicos; varia de um senso elevado do elemento à 
capacidade de manipular ou gerar o elemento. 
Pedra-Negra: pedra extraída do Triângulo Krazyast; o único 
elemento imune à manipulação de Afinidade e conhecido por diminuir ou 
bloquear Afinidades. 
bratika: irmão. 
chokolad: doce à base de cacau. 
contessya: condessa. 
copperstone: moeda de menor valor. 
dacha: casa. 
dama: senhora. 
deimhov: demônio. 
Deys: Divindade. 
Deys'voshk: veneno que afeta Afinidades e é usado para subjugá-los; 
também conhecido como Água das Divindades. 
Fyrva'snezh: Primeiras Neves 
Folha-de-ouro: moeda de maior valor 
guzhkyn gerbil: roedor de estimação da região de Guzhkyn no sul 
de Cyrilia 
Imperator: Imperador 
Imperatorya: Imperatriz 
Imperya: Império 
 
kapitan: capitão 
kechyan: manto tradicional Cyriliano tipicamente feito de seda 
estampada 
kologne: perfume aromático 
kolst: glorioso 
kommertsya: comércio 
konsultant: consultor 
mamika: “mãezinha”; termo carinhoso para “tia” 
mesyr: senhor 
pelmeny: bolinhos com recheio de carne picada, cebola e ervas 
pirozhky: torta frita com recheio doce ou salgado 
pryntsessa: princesa. 
ptychy'moloko: bolo de leite de pássaro. 
Manto Vermelho: rebeldes; uma brincadeira com o coloquialismo 
“Manto Branco”. 
silverleaf: moeda de valor médio 
sistrika: irmã 
Vinho do Sol: vinho quente feito no verão com mel e especiarias 
valkryf: raça de cavalo; um valioso corcel com pés fendidos e uma 
habilidade incomparável para escalar montanhas e clima de temperaturas 
frias. 
Varyshki: couro de touro caro 
Manto Branco: coloquialismo para “Patrulha Imperial” 
Vyntr’makt: mercado de inverno; mercados ao ar livre geralmente 
estabelecidos nas praças das cidades antes da chegada do inverno 
Yaeger: Yaeger raro cuja conexão é com a Afinidade de outra pessoa; 
eles podem sentir Afinitas e controlar sua Afinidade 
 
1 
 
A prisão tinha uma forte semelhança com as masmorras da infância de 
Anastacya: escura, úmida e feita de pedra inflexível que vazava sujeira e 
miséria. Havia sangue aqui também; ela podia sentir tudo, puxando-a dos 
degraus de pedra irregulares para as paredes enegrecidas por tochas, 
permanecendo nos limites de sua consciência como uma sombra sempre 
presente. 
Levaria tão pouco, um movimento de sua vontade, para ela controlar 
tudo. 
Com o pensamento, Ana enrolou os dedos enluvados mais apertados 
em torno das peles gastas de seu capuz e voltou sua atenção para o guarda 
distraído vários passos à frente. Suas botas de couro de touro variashki 
estalavam em passos suaves e nítidos, e se prestasse atenção o suficiente, ela 
poderia ouvir o leve tilintar das folhas de ouro que usou para suborná-lo em 
seus bolsos. 
Ela não era uma prisioneira desta vez; era sua cliente, e aquele doce 
chocalho de moedas era um lembrete constante de que ele estava, por 
enquanto, do lado dela. 
Ainda assim, a luz da tocha lançava sua sombra bruxuleante nas 
paredes ao redor deles; era impossível não ver este lugar como o tecido de 
seus pesadelos e ouvir os sussurros que vinham consigo. 
Monstra. Assassina. 
 
Papai teria dito a ela que este era um lugar cheio de demônios, onde os 
homens mais malignos eram mantidos. Mesmo agora, quase um ano depois 
de sua morte, Ana ficou com a boca seca ao imaginar o que ele diria se a visse 
aqui. 
Ana afastou esses pensamentos e manteve o olhar fixo à frente. Monstra 
e assassina ela poderia ser, mas isso não tinha nada a ver com sua tarefa em 
mãos. 
Ela estava aqui para limpar seu nome de traição. E tudo dependia de 
encontrar um prisioneiro. 
— Estou te dizendo, ele não vai te dar nada. — A voz áspera do guarda 
a tirou dos sussurros. — Ouvi dizer que ele estava em uma missão para 
matar alguém de alto perfil quando foi pego. 
Ele estava falando sobre o prisioneiro. Seu prisioneiro. Ana se 
endireitou, agarrando-se à mentira que havia ensaiado várias vezes. 
— Ele vai me dizer onde escondeu meu dinheiro. 
O guarda lhe lançou um olhar solidário por cima do ombro. 
— É melhor você passar seu tempo em algum lugar mais agradável e 
ensolarado, meya dama. Mais de uma dúzia de nobres subornaram seu 
caminho para Quedas Fantasma para vê-lo, e ele não lhes deu nada ainda. Ele 
fez alguns inimigos poderosos, esse Quicktongue. 
Um gemido longo e prolongado perfurou o final de sua frase, um grito 
tão torturado que os cabelos da nuca de Ana se arrepiaram. A mão do guarda 
voou até o punho de sua espada. A luz da tocha cortou seu rosto, metade em 
laranja bruxuleante, metade em sombra. 
— As celas estão ficando cheias desses Afinitas. 
 
Os passos de Ana quase vacilaram; sua respiração prendeu 
bruscamente, e ela a soltou novamente, lentamente, forçando-se a manter o 
ritmo. 
Sua inquietação deve ter transparecido em seu rosto, pois o guarda 
disse rapidamente: 
— Não se preocupe, meya dama. Estamos armados até os dentes com 
Deys'voshk, e os Afinita são mantidos trancados em celas especiais de pedra-
negra. Não vamos chegar perto deles. Esses deimhovs estão trancados em 
cofres. 
Deimhov. Demônio. 
Uma sensação doentia se agitou na boca do estômago, e ela enfiou os 
dedos enluvados na palma da mão enquanto apertava o capuz sobre a 
cabeça. Afinitas eram, geralmente, falados em sussurros abafados e olhares 
temerosos, acompanhados por contos de um punhado de humanos que 
tinham Afinidades com certos elementos. Monstros que poderiam fazer 
grandes coisas com seus poderes. Empunhar fogo. Lançar relâmpagos. 
Cavalgar o vento. Moldar a carne. E depois havia alguns, diziam os rumores, 
cujos poderes se estendiam para além do físico. 
Poderes que nenhum ser mortal deveria ter. Poderes que pertenciam às 
Divindades ou aos demônios. 
O guarda estava sorrindo para ela, talvez para ser amigável, talvez 
imaginando o que uma garota como ela, vestida com peles e luvas de veludo 
– usadas, embora claramente uma vez luxuosa – estava fazendo nesta prisão. 
Ele não estaria sorrindo para ela se soubesse o que ela era. 
Quem ela era. 
Seu mundo afiou em foco severo ao redor dela, e pela primeira vez 
desde que entrou na prisão, ela estudou o guarda. A insígnia Imperial 
 
Ciriliana, o rosto de um tigre branco rugindo, esculpida orgulhosamente em 
seu peitoral reforçado com pedra-negra. Espada em seu quadril, afiada de 
modo que as bordas cortassem o ar, feita do mesmo material de sua 
armadura – uma liga meio metálica, meio de pedra-negra, impermeável à 
manipulação de Afinidade. E, finalmente, seu olhar pousou no frasco de 
líquido tingido de verde que pendia da fivela do cinto, sua ponta curvada 
como a presa de uma cobra. 
Deys'voshk, ou Água das Divindades,o único veneno conhecido por 
subjugar uma Afinidade. 
Ela havia pisado, mais uma vez, no tecido de seus pesadelos. 
Masmorras esculpidas em pedra-negra fria e mais escura que a noite, e o 
sorriso branco como osso de seu zelador enquanto ele forçava Deys'voshk 
tingido de especiarias pela garganta dela para purgar a monstruosidade com 
a qual ela nasceu – uma monstruosidade, mesmo em termos dos Afinitas. 
Monstra. 
Sob as luvas, as palmas das mãos estavam escorregadias de suor. 
— Temos uma boa seleção de contratos de trabalho à venda, meya 
dama. — A voz do guarda parecia muito distante. — Com a quantidade de 
dinheiro que você ofereceu para ver Quicktongue, seria melhor assinar um 
ou dois Afinitas. Eles não estão aqui por nenhum crime sério, se é essa sua 
preocupação. Apenas estrangeiros sem documentos. Fazem mão de obra 
barata. 
Seu coração gaguejou. Ela tinha ouvido falar dessa corrupção. 
Afinidades estrangeiras atraíram Cyrilia com promessas de trabalho, apenas 
para se verem à mercê dos traficantes quando chegassem. Ela até ouviu 
sussurros de guardas e soldados em todo o Império caindo nos bolsos dos 
corretores de Afinidade, folhas-de-ouro fluindo em seus bolsos como água. 
 
Ana simplesmente nunca esperava encontrar um. 
Ela tentou manter a voz firme ao responder: 
— Não, obrigada. 
Ela tinha que sair desta prisão o mais rápido possível. 
Era tudo o que ela podia fazer para continuar plantando um pé à frente 
do outro, para manter as costas retas e o queixo erguido como havia sido 
ensinada. Como sempre, na névoa cega de seu medo, ela voltou seus 
pensamentos para seu irmão – Luka seria corajoso; ele faria isso por ela. 
E ela tinha que fazer isso por ele. As masmorras, o guarda, os sussurros 
e as memórias que eles trouxeram de volta – ela suportaria tudo, e suportaria 
cem vezes, se isso significasse que poderia ver Luka novamente. 
Seu coração doeu ao pensar nele, mas sua dor era um buraco negro sem 
fim; não seria bom afundar nele agora. Não quando ela estava tão perto de 
encontrar o único homem que poderia ajudá-la a limpar seu nome. 
— Ramson Quicktongue — latiu o guarda, parando do lado de fora de 
uma cela —, alguém aqui para cobrar. — Um barulho de chaves; a porta da 
cela se abriu com um rangido relutante. O guarda virou-se para ela, erguendo 
a tocha, e ela viu os olhos dele passarem novamente pelo capuz. — Ele está lá 
dentro. Eu estarei aqui... me dê um grito quando estiver pronta para ser solta 
de novo. 
Respirando fundo para reunir coragem, Ana jogou os ombros para trás 
e entrou na cela. 
O cheiro rançoso de vômito a atingiu, junto com o fedor de excremento 
humano e suor. No canto mais distante da cela, uma figura caiu contra a 
parede coberta de sujeira. Sua camisa e calções estavam rasgados e 
ensanguentados, seus pulsos esfolados pelas algemas que o prendiam à 
parede. Tudo o que ela podia ver era cabelo castanho emaranhado até que ele 
 
levantou a cabeça, revelando uma barba cobrindo metade de seu rosto, 
imunda com pedaços de comida e sujeira. 
Este era o mentor criminoso cujo nome ela forçou da boca de quase uma 
dúzia de condenados e bandidos? O homem em quem ela depositou todas as 
suas esperanças nas últimas onze luas? 
Ela congelou, no entanto, quando os olhos dele focaram nela com 
intenção afiada. Ele era jovem, muito mais jovem do que esperava para um 
renomado senhor do crime do Império. Surpresa vibrou em seu estômago. 
— Quicktongue — ela disse, testando sua voz, e então mais alto —, 
Ramson Quicktongue. Esse é o seu nome verdadeiro? 
Um canto da boca do prisioneiro se curvou em um sorriso. 
— Depende de como você define “verdadeiro”. O que é verdadeiro e o 
que não é tende a ser distorcido em lugares como esses. — Sua voz era suave, 
e ele tinha um leve sotaque Cyriliano de alta classe. — Qual é o seu nome, 
querida? 
A pergunta a pegou desprevenida. Fazia quase um ano desde que ela 
trocou gentilezas com alguém além de May. Anastacya Mikhailov, queria dizer. 
Meu nome é Anastacya Mikhailov. 
Exceto que não era. Anastacya Mikhailov era o nome da princesa 
herdeira de Cyrilia, afogada há onze luas em sua tentativa de escapar da 
execução por assassinato e traição contra a coroa Ciriliana. Anastacya 
Mikhailov era um fantasma e um monstro que não existia e não deveria 
existir. 
Ana fechou as mãos com força sobre o fecho do capuz. 
— Meu nome não é da sua conta. Quão rápido você pode encontrar 
alguém dentro do Império? 
O prisioneiro riu. 
 
— Quanto você pode me pagar? 
— Responda à pergunta. 
Ele inclinou a cabeça, sua boca em uma curva zombeteira. 
— Depende de quem você está procurando. Várias semanas, talvez. 
Vou rastrear minha rede de espiões perversos e bandidos perversos até sua 
preciosa pessoa de preocupação. — Ele fez uma pausa e juntou as mãos, suas 
correntes tilintando ruidosamente com o movimento. — Hipoteticamente, é 
claro. Há limites até para o eu que posso fazer dentro de uma cela de prisão. 
Já parecia pela conversa que ela estava andando na corda bamba, e uma 
única palavra mal colocada poderia fazê-la mergulhar. Luka tinha repassado 
o básico da negociação com ela; a memória se acendeu como uma vela dentro 
da escuridão da cela. 
— Eu não tenho várias semanas — disse Ana —, e não preciso que você 
faça nada. Eu só preciso de um nome e um local. 
— Você conduz um negócio difícil, meu amor. — Quicktongue sorriu, e 
Ana estreitou os olhos. Pela maneira desprezível que falou e o brilho de 
alegria em seus olhos, ficou claro que ele achava diversão em seu desespero, 
embora não tivesse ideia de quem ela era e por que estava aqui. — 
Felizmente, eu não. Vamos fazer um acordo, querida. Liberte-me dessas 
algemas, e sou seu para comandar. Encontrarei seu belo príncipe ou pior 
inimigo em duas semanas, seja nos confins do deserto de Aramabi ou nos 
céus do Império Kemeiran. 
Seu sotaque deixou os nervos de Ana no limite. Ela podia adivinhar 
como esses criminosos coniventes trabalhavam. Dê a eles o que queriam e 
eles te apunhalariam pelas costas mais rápido do que você poderia piscar. 
Ela não cairia em sua armadilha. 
 
Ana enfiou a mão nas dobras de sua capa gasta, tirando um pedaço de 
pergaminho. Era uma cópia de um dos esboços que fizera nos primeiros dias 
após a morte de papai, quando os pesadelos a acordavam no meio da noite e 
aquele rosto a assombrava a cada segundo de seus dias. 
Em um movimento rápido, ela desdobrou o pergaminho. 
Mesmo na penumbra da luz bruxuleante da tocha do guarda do lado de 
fora, ela podia distinguir os contornos de seu esboço: aquela cabeça calva e 
aqueles olhos melancólicos e grandes demais que faziam o assunto parecer 
quase infantil. 
— Estou procurando um homem. Um alquimista Cyriliano. Ele 
praticou medicina no Palácio Salskoff há algum tempo. — Ela fez uma pausa, 
e ousou uma aposta. — Diga-me o nome dele e onde encontrá-lo, e eu te 
libertarei. 
A atenção de Quicktongue foi atraída para a imagem no segundo em 
que ela a mostrou, como um lobo faminto para caçar. Por um momento, seu 
rosto ficou imóvel, ilegível. 
E então seus olhos se arregalaram. 
— Ele — ele sussurrou, e a palavra floresceu em esperança em seu 
coração, como o calor do sol nascendo em uma longa, longa noite. 
Finalmente. 
Finalmente. 
Onze luas de solidão, de esconderijos, de noites escuras nas frias 
florestas boreais de Cyrilia e dias solitários vasculhando cidade após cidade – 
onze luas, e ela finalmente, finalmente encontrou alguém que conhecia o 
homem que assassinou seu pai. 
Ramson Quicktongue, os bartenders, os rastreadores de pub e os 
caçadores de recompensas haviam sussurrado para ela quando cada um 
 
deles voltou de mãos vazias de sua busca por um alquimista fantasma. O 
mais poderoso senhor do crime do submundo Cyriliano, a mais vasta rede. Ele poderia 
rastrear o guzhkyn gerbil de uma nobre do outro lado do Império em uma semana. 
Talvezeles estivessem certos. 
Era tudo o que Ana podia fazer para manter as mãos firmes; ela estava 
tão concentrada na reação dele que quase se esqueceu de respirar. 
Os olhos de Quicktongue permaneceram fixos no retrato, em transe, 
enquanto o pegava. 
— Deixe-me ver. 
Seu coração batia descontroladamente enquanto se apressava, 
tropeçando um pouco em sua pressa. Ela estendeu o esboço e, por um longo 
momento, Quicktongue se inclinou para frente, seu polegar roçando um 
canto do desenho dela. 
E então ele pulou para ela. Sua mão se estendeu ao redor do pulso dela 
em um de uma mão de ferro, a outra batendo a mão sobre sua boca antes que 
ela tivesse a chance de gritar. Ele lhe deu um forte puxão para frente, 
girando-a e segurando-a perto de si. Ana fez um som abafado em sua 
garganta quando o fedor de seu cabelo sujo a atingiu. 
— Isso não precisa acabar mal. — Seu tom era baixo quando ele falou, 
sua indiferença anterior substituída por um senso de urgência. — As chaves 
estão penduradas do lado de fora, perto da porta. Ajude-me a sair, e eu lhe 
darei qualquer informação sobre quem você quiser. 
Ela libertou seu rosto livre de sua mão imunda. 
— Solte-me — ela rosnou, lutando contra seu aperto, mas seu aperto só 
aumentou. De perto, sob a luz das tochas, o brilho duro de seus olhos 
castanhos, de repente, assumiu um olhar selvagem, quase enlouquecido. 
Ele iria machucá-la. 
 
O medo aumentou nela, e de anos de treinamento, um único instinto 
cortou sua névoa de pânico. 
Ela poderia machucá-lo também. 
Sua Afinidade se agitou, atraída pelo pulso quente de seu sangue, 
correndo por ela e enchendo-a com uma sensação de poder. À vontade dela, 
cada gota de sangue em seu corpo poderia ser dela para comandar. 
Não, pensou Ana. Sua Afinidade deveria ser usada apenas como último 
recurso absoluto. Como acontece com qualquer Afinidade, seu poder vinha 
com sinais. O mais leve movimento de seu poder transformaria suas írises em 
carmesim e escureceria as veias em seus antebraços – uma indicação clara do 
que ela era, para aqueles que sabiam como procurá-la. Ela pensou no guarda 
do lado de fora, na curva de seu frasco de Deys'voshk, no brilho perverso de 
sua espada de pedra-negra. 
Ela estava tão focada em reprimir sua Afinidade que não viu isso 
chegando. 
A mão de Quicktongue disparou e tirou o capuz de sua cabeça. 
Ana cambaleou para trás, mas o estrago estava feito. Quicktongue 
olhou para os olhos dela, a antecipação em seu rosto dando lugar ao triunfo. 
Ele tinha visto o carmesim de suas írises; ele sabia que tinha que procurá-lo - 
pelo testemunho de sua Afinidade. Um sorriso torceu sua boca mesmo 
quando ele a soltou e gritou: 
— Afinita... socorro! 
Antes que pudesse perceber completamente que ela havia caído em sua 
armadilha, passos afiados soaram atrás dela. 
Ana girou. O guarda irrompeu na cela, sua espada de pedra-negra 
levantada, o tom verde de Deys'voshk que ele derramou sobre a lâmina 
refletindo a luz da tocha. 
 
Ela se esquivou. Não rápido o suficiente. 
Ela sentiu a mordida afiada da lâmina em seu antebraço quando 
tropeçou para o outro lado da cela, sua respiração irregular. A espada cortou 
sua luva, o tecido se abriu para revelar um tênue fio de sangue. 
O mundo se estreitou, por um momento, naquelas gotículas de sangue, 
a curva lenta de seu caminho pelo pulso dela, o brilho das contas quando 
pegaram a luz das tochas, brilhando como rubis. 
Sangue. Ela sentiu sua Afinidade despertando para o chamado de seu 
elemento. Ana arrancou a luva, assobiando com a picada do ar livre em sua 
ferida. 
Começou... as veias que subiam por seu braço escureceram para um 
roxo machucado, saindo de sua carne em estrias irregulares. Ela sabia como 
isso parecia; ela se olhou no espelho por horas a fio, os olhos inchados de 
chorar e os braços sangrando por ter tentado coçar suas veias. 
Um sussurro a encontrou no escuro. 
Deimhov. 
Ana olhou para cima e encontrou o olhar do guarda assim que ele 
ergueu sua tocha. 
Horror torceu suas feições quando ele recuou para o canto de 
Quicktongue e apontou sua espada para ela. 
Ana passou um dedo pela ferida. Saiu molhada, com uma mancha de 
líquido esverdeado que se misturou com seu sangue. 
Deys'voshk. Seu coração disparou, e memórias passaram por sua 
mente: as masmorras, Sadov forçando o líquido amargo em sua garganta, a 
fraqueza e tontura que se seguiram. E, inevitavelmente, o vazio onde antes 
estivera sua Afinidade, como se tivesse perdido o sentido da visão ou do 
olfato. 
 
Os anos que ela passou engolindo esse veneno na esperança de limpar 
sua Afinidade de seu corpo, em vez disso, resultou em uma tolerância a 
Deys'voshk. Enquanto o veneno bloqueava as habilidades da maioria dos 
Afinitas quase instantaneamente, Ana tinha quinze, às vezes vinte, minutos 
antes de tornar sua Afinidade inútil. Em uma tentativa desesperada de 
sobreviver, seu corpo se adaptou. 
— Você se move e eu vou te cortar de novo — o guarda rosnou, sua voz 
instável —, sua Afinita imunda. 
Um tilintar de metal, um lampejo de cabelo castanho emaranhado. 
Antes que qualquer um deles pudesse fazer qualquer coisa, Quicktongue 
prendeu suas correntes no pescoço do guarda. 
O guarda soltou um suspiro engasgado enquanto agarrava as correntes 
que agora cravavam em sua garganta. Das sombras atrás dele, o sorriso de 
Ramson Quicktongue ficou branco. 
A bile subiu na garganta de Ana, e uma onda de tontura a atingiu 
quando o veneno começou a percorrer seu caminho. Ela agarrou-se à parede, 
suor escorrendo em sua testa apesar do frio. 
Quicktongue virou-se para ela, segurando o guarda lutando próximo. 
Sua expressão era agora predatória, sua indiferença anterior aguçada para a 
fome de um lobo. 
— Agora, vamos tentar isso de novo, querida. As chaves devem estar 
penduradas em um prego do lado de fora da porta da cela... protocolo padrão 
antes de um guarda entrar na cela. O conjunto para minhas correntes são as 
de ferro em forma de garfo, quarta abaixo na fileira. Liberte-me, tire nós dois 
daqui ilesos, e podemos falar sobre seu alquimista. 
 
Ana se firmou contra os tremores em seu corpo, seu olhar passando 
entre Quicktongue e o guarda. Os olhos do guarda rolaram para trás em sua 
cabeça, e saliva borbulhava em sua boca enquanto ele engasgava por ar. 
Ela sabia o quão perigoso Quicktongue era quando veio procurá-lo. No 
entanto, ela nunca esperava que ele, um prisioneiro algemado às paredes de 
pedra de Quedas Fantasma, chegasse tão longe. 
Soltá-lo seria um erro terrível, terrível. 
— Venha, agora. — A voz de Quicktongue a fundamentou para a 
escolha horrível. — Não temos muito tempo. Em cerca de dois minutos, o 
próximo turno estará aqui. Você será jogada em uma dessas celas e vendida 
em algum contrato de trabalho... e todos nós sabemos como isso acontece. E 
eu ainda estarei aqui. — Ele deu de ombros e apertou suas correntes. As 
bochechas do guarda incharam. — Se esse é o cenário que você prefere, devo 
dizer que estou desapontado. 
As sombras na cela estavam balançando, se contorcendo. Ana piscou 
rapidamente, tentando estabilizar seu pulso acelerado contra o primeiro 
estágio do veneno. Em seguida viriam os calafrios e os vômitos. E então a 
seiva em sua força. O tempo todo, sua Afinidade estaria diminuindo como 
uma vela queimando até o fim do pavio. 
Pense, Ana, disse a si mesma, cerrando os dentes. Seus olhos 
percorreram a cela. 
Ela poderia torturar o homem enquanto ainda tivesse sua Afinidade. 
Ela poderia tirar seu sangue, machucá-lo, ameaçá-lo e obter a localização de 
seu alquimista. 
Lágrimas picaram em seus olhos, e ela os fechou contra as imagens que 
ameaçavam se amontoar em sua mente. Em meio a todas as suas memórias, 
uma queimava tão brilhantemente quanto uma chama no caos. Você não é um 
 
monstro, sistrika. Era a voz de Luka, firme e forte. Sua Afinidade não a define. O 
que a define é como você escolhe manejá-la.Isso mesmo, ela pensou, respirando fundo e tentando se ancorar nas 
palavras de seu irmão. Ela não era uma torturadora. Não era um monstro. Ela 
era boa, e não iria sujeitar este homem – não importa quão obscuras fossem 
suas intenções – aos mesmos horrores pelos quais ela havia passado. 
O que a deixou com uma opção. 
Antes que percebesse, ela atravessou a cela e pegou as chaves da 
parede, e estava tateando nas correntes do prisioneiro. Elas caíram com um 
estalo. Quicktongue saltou para longe deles e disparou pela cela em um 
piscar de olhos, esfregando os pulsos esfolados. O guarda caiu no chão, 
inconsciente, sua respiração ofegante pela boca entreaberta. 
Uma nova onda de náusea rolou sobre Ana. Ela se agarrou à parede. 
— Meu alquimista — disse ela —, nós tínhamos um acordo. 
— Ah, ele. — Quicktongue caminhou até a porta da cela e espiou para 
fora. — Eu vou ser honesto com você, amor. Não faço ideia de quem seja esse 
homem. Adeus. 
Em um piscar de olhos, ele estava do outro lado das grades. Ana 
cambaleou para frente, mas a porta da cela se fechou com um estrondo. 
Quicktongue sacudiu as chaves para ela. 
— Não leve muito para o lado pessoal. Afinal, eu sou um criminoso. 
Ele fez uma saudação simulada, girou nos calcanhares e desapareceu na 
escuridão. 
 
 
 
2 
Por um momento, Ana apenas ficou parada, olhando para as costas 
dele, sentindo como se o mundo estivesse desaparecendo sob seus pés. 
Enganada por um criminoso. Uma risada amarga saiu de sua garganta. Ela não 
esperava isso? Talvez, depois de todos esses meses que passou aprendendo a 
sobreviver sozinha, ela fosse realmente apenas uma princesa ingênua que não 
poderia sobreviver além dos muros do Palácio Salskoff. 
Seu ferimento latejava, um fio de sangue e Deys'voshk deslizando 
suavemente por seu braço, enchendo o ar com seu cheiro metálico. 
Sua Afinidade se agitou. 
Não, pensou Ana de repente, tocando um dedo em sua ferida. As gotas 
de sangue pareciam pulsar na ponta de seus dedos. Não, ela não era apenas 
uma princesa ingênua. As princesas não tinham o poder de controlar o 
sangue. Princesas não matavam pessoas inocentes em plena luz do dia no 
meio de uma praça da cidade. Princesas não eram monstros. 
Algo estalou dentro de si, e de repente ela estava engasgada com anos 
de ira acumulada, agitando-se com uma familiaridade nauseante. Não 
importa o que fizesse, não importa quão boa tentasse ser, ela sempre acabava 
como a monstra. 
O resto do mundo escureceu, e então havia apenas o sangue escorrendo 
por seu braço e no chão em gotas lentas e singulares. 
Você quer que eu seja o monstro? Ana ergueu o olhar para o corredor onde 
Ramson havia desaparecido. Eu serei o monstro. 
 
Alcançando aquele lugar retorcido dentro de si, Ana esticou sua 
Afinidade. 
Era como acender uma vela. As sombras que estavam puxando seus 
sentidos explodiram em luz quando sua Afinidade alcançou o elemento que a 
tornava monstruosa: sangue. 
Estava em toda parte: dentro de cada prisioneiro nas celas que a 
cercavam, respingado e riscado nas paredes imundas como tinta, de 
vermelho vivo a ferrugem desbotada. Ela podia fechar os olhos e não ver, 
mas sentir, moldando o mundo ao seu redor e, gradualmente, vários 
corredores abaixo, desaparecendo no nada além de seu alcance. Ela o sentiu 
correndo pelas veias, tão poderoso quanto rios e tão quieto quanto riachos, 
ou quieto e rançoso como a morte. 
Ana esticou as mãos, sentindo como se estivesse respirando 
profundamente pela primeira vez em muito tempo. Todo esse sangue. Todo 
esse poder. Tudo dela para comandar. 
Ela encontrou o criminoso facilmente, a adrenalina bombeando através 
de seu corpo iluminando-o como uma tocha ardente entre velas bruxuleantes. 
Ela focou sua Afinidade em seu sangue e puxou. 
Uma estranha sensação de alegria a encheu enquanto o sangue 
obedecia, cada gota no corpo de Quicktongue saltando ao seu desejo. Ana 
respirou fundo e percebeu que estava sorrindo. 
Monstrinha, uma voz sussurrou em sua mente – só que, desta vez, era a 
dela. Talvez Sadov estivesse certo, afinal. Talvez houvesse alguma parte 
distorcida dela que fosse monstruosa, não importa o quanto ela tentasse lutar 
contra isso. 
 
 
Um grito soou no corredor, seguido por um baque, então sons de briga. 
E então, lentamente, da escuridão, um pé surgiu. Depois uma perna. E então 
um torso imundo. Arrastou-o para ela por seu sangue, saboreando a forma 
como ele saltou em seu controle, a forma como ele se sacudiu como uma 
marionete sob seu poder. 
Fora de sua cela, Quicktongue se contorcia no chão. 
— Pare — ele ofegou. Uma mancha vermelha apareceu em sua túnica 
manchada de suor, encharcando o tecido e a sujeira —, por favor... o que quer 
que você esteja fazendo... 
Ana estendeu um braço pelas barras da cela e agarrou seu colarinho, 
puxando-o tão perto que seu rosto bateu contra o metal. 
— Silêncio. — Sua voz era um rosnado baixo. — Você escuta a mim. De 
agora em diante, você obedecerá a cada palavra minha, ou esta dor que você 
sente agora... — ela puxou seu sangue novamente, soltando um gemido baixo 
— será apenas o começo. — Ela ouviu as palavras como se outra pessoa 
estivesse falando através de seus lábios. — Estamos entendidos? 
Ele estava ofegante, suas pupilas dilatadas, seu rosto pálido. Ana 
reprimiu qualquer culpa ou pena que pudesse ter sentido. 
Era sua vez de comandar. Sua vez de controlar. 
— Agora abra a porta. 
O criminoso despertou-se em arrancos e paradas, tremendo 
visivelmente. Um brilho de suor cobriu seu rosto. Ele se atrapalhou com a 
fechadura, e a porta da cela se abriu. 
Ana saiu da cela e se virou para ele. O mundo balançou um pouco 
quando outro ataque de tontura a atingiu, mas seu estômago se apertou em 
prazer retorcido quando Quicktongue se encolheu. Manchas vermelhas 
estavam se espalhando em sua camisa, onde os vasos de sua pele haviam se 
 
rompido. Amanhã, estes se tornariam hematomas feios que marcariam seu 
corpo como uma doença hedionda. O trabalho do diabo, Sadov chamou. O 
toque do deimhov. 
Ana se virou antes que pudesse sentir repulsa pelo que havia feito. Sua 
mão disparou automaticamente para o capuz, puxando-o para trás sobre a 
cabeça para esconder os olhos. Suas mãos e antebraços pareciam pesados, 
com veias irregulares ingurgitadas de sangue. Ela enfiou a mão sem luva 
dentro de sua capa, os dedos torcendo contra o tecido frio, sentindo-se 
exposta sem a luva. 
Os cabelos de sua nuca se arrepiaram quando ela percebeu que a prisão 
estava completamente silenciosa. 
Algo estava errado. 
Os gemidos e sussurros dos outros prisioneiros haviam se acalmado, 
como a calmaria antes de uma tempestade. E então, vários corredores abaixo, 
um tinido alto soou. 
Ana ficou tensa. Seu coração começou a bater em seu peito. 
— Precisamos sair daqui. 
— Divindades — amaldiçoou Quicktongue. Ele se ergueu do chão e 
sentou-se fortemente encostado na parede, ofegante, os músculos tensos de 
seu pescoço apertando e relaxando —, quem é você? 
A pergunta surgiu do nada; ela podia pensar em mil maneiras de 
responder. Espontaneamente, memórias passaram por sua mente como as 
páginas de um livro empoeirado. Um castelo de mármore branco em uma 
paisagem invernal. Uma lareira, um fogo bruxuleante e a voz profunda e 
firme de pai. Seu irmão, de cabelos dourados e olhos de esmeralda, sua risada 
tão radiante quanto o sol. Sua tia, com olhos de corça e adorável, cabeça baixa 
em oração com sua trança escura caindo sobre o ombro... 
 
Ela pressionou as memórias de volta, substituindo a parede que, 
cuidadosamente, construiu no ano passado. Sua vida, seu passado, seus 
crimes, esses eram seus segredos, e a última coisa que ela precisava era que 
este homem visse qualquer fraqueza nela. 
Antes que ela pudesse responder, Quicktongue saltou. Ele se moveu tão 
rápido que ela mal soltou um grunhido de surpresa quando sua mão apertou 
sua boca novamentee ele a girou atrás de um pilar de pedra. 
— Guardas — sussurrou. 
Ana enfiou o joelho entre as pernas dele. Quicktongue se dobrou, mas 
além de seus sussurros furiosos, ela ouviu o som de passos. 
Botas ressoaram no corredor da masmorra, a batida rítmica dos passos 
de vários guardas. Ela podia distinguir a luz fraca de uma tocha distante, 
cada vez mais brilhante. Vozes ecoaram no corredor e, a julgar pelo som das 
risadas, os guardas contavam piadas. 
Ana soltou um suspiro. Eles não tinham sido descobertos. Esses 
guardas estavam apenas fazendo suas rondas. 
Quicktongue se endireitou e se inclinou para ela enquanto se 
pressionava contra o pilar. Agrupados, seus corações batendo na mesma 
oração, eles poderiam ter sido parceiros no crime, ou mesmo aliados. No 
entanto, o brilho em seus olhos a lembrou de que eles eram tudo, menos isso. 
Ela tentou não respirar enquanto os guardas passavam pelo pilar. Eles 
estavam tão perto que ela ouviu o farfalhar de suas ricas capas de pele, o 
arrastar de suas botas no chão sujo. 
Uma percepção repentina a atingiu. O guarda. Eles o deixaram 
inconsciente na cela de Quicktongue. 
Ao lado dela, Quicktongue também ficou tenso, como se tivesse 
chegado à mesma conclusão. Ele assobiou uma maldição. 
 
Um grito de pânico soou, seguido pelo rangido sinistro da porta da 
cela. Ana fechou os olhos com força, o medo florescendo frio em seu peito. 
Eles haviam descoberto o guarda inconsciente. 
— Escute-me. — A voz de Quicktongue era baixa e urgente. — Estudei 
os planos desta prisão... conheço a estrutura tão bem quanto conheço as 
folhas-de-ouro em minha bolsa. Nós dois sabemos que você não vai sair 
daqui sem minha ajuda, e eu preciso da sua Afinidade também. Então eu 
estou pedindo que você confie em mim por enquanto. Assim que estivermos 
fora deste maldito lugar, podemos voltar a rasgar a garganta um do outro. 
Parece bom? 
Ela o odiava, odiava o fato de que ele a tinha enganado, e o fato de que 
estava certo. 
— Tudo bem — ela murmurou —, mas se você pensar em usar algum 
truque, lembre-se do que posso fazer com você. O que eu vou fazer com você. 
Quicktongue esquadrinhava o corredor à frente, a cabeça inclinada 
enquanto ouvia. 
— Justo. 
Além do pilar, um dos guardas entrou na cela e sacudiu 
desesperadamente seu companheiro caído. Os outros dois vasculharam as 
profundezas das masmorras com suas espadas desembainhadas, tochas 
erguidas. Caçando. 
A barba de Quicktongue fez cócegas em sua orelha. 
— Quando eu falar “corra ... 
A luz da tocha ficou mais fraca. 
— Corra. 
Ana disparou do pilar. Ela não achava que já tinha corrido tão rápido 
antes. Células voaram em ambos os lados dela em faixas escuras de cor. No 
 
final do corredor, tão pequeno que poderia bloqueá-lo com o polegar, estava 
a lasca de luz da saída. 
Ela se atreveu a olhar para trás para encontrar Quicktongue correndo 
em sua direção. 
— Vai! — ele gritou. — Não pare! 
A luz era brilhante à sua frente, o chão de pedra duro sob seus pés 
batendo. E antes que percebesse, ela estava na escada, subindo dois degraus 
de cada vez, sua respiração irregular em sua garganta. 
Ela emergiu na luz do dia brilhante e inflexível. 
Imediatamente, seus olhos começaram a lacrimejar. 
Tudo era branco, do piso de mármore às paredes altas e aos tetos 
abobadados. A luz do sol entrava pelas janelas estreitas e altas acima de suas 
cabeças, ampliadas pelo mármore. Isso, Ana lera, fazia parte do projeto da 
prisão. Os prisioneiros teriam permanecido na escuridão subterrânea por 
tanto tempo que ficariam cegos assim que saíssem das masmorras. 
E apesar de toda sua cuidadosa leitura e pesquisa, ela não tinha como 
escapar dessa armadilha a não ser esperar que seus olhos se ajustassem. 
Um tinido alto soou atrás dela. Através de suas lágrimas, ela viu 
Quicktongue girando a chave para trancar as portas da masmorra no lugar. 
Ele subiu os degraus, três de cada vez, e quando chegou ao topo, fechou as 
mãos sobre os olhos com uma maldição. 
Além desse salão, em algum lugar que Ana não conseguiu localizar, 
ecoaram gritos. Um leve som de estrépito ressoou ao longo do piso de 
mármore e reverberou nas paredes cegamente brancas... o som de botas 
batendo e armas sendo sacadas. 
O alarme havia sido disparado. 
 
Ana olhou para Quicktongue. Através do borrão de suas lágrimas, ela 
podia ver o olhar de puro pânico que passou pelo rosto dele – e Ana percebeu 
que, apesar de toda sua astúcia e bravura, Ramson Quicktongue não tinha 
um plano. 
O medo aguçou sua inteligência, e o mundo mudou de foco quando a 
ardência em seus olhos desapareceu. Corredores se espalhavam em todas as 
direções a partir deles: três à sua esquerda, três à sua direita, três à sua frente, 
três atrás dela, todos idênticos, todos brancos. 
Sua cabeça latejava com os efeitos do Deys'voshk; ela nem conseguia se 
lembrar por onde tinha entrado. Este lugar era um labirinto, projetado para 
prender prisioneiros e visitantes como uma pedreira em uma teia de aranha. 
Ana agarrou a camisa de Quicktongue. 
— Qual caminho? 
Ele espiou por uma fenda entre os dedos e gemeu. 
— A saída dos fundos — ele murmurou. 
Ela respirou fundo. Claro, nenhuma de suas leituras de Quedas 
Fantasma, que já havia sido escassa o suficiente para começar, mencionou 
uma saída pelos fundos. A frente, Ana sabia, tinha três conjuntos de portas 
trancadas e vigiadas, para não falar de um pátio vigiado por arqueiros que as 
cravariam como alvos de tiro se eles sequer pisassem fora. Ela absorveu tudo 
silenciosamente enquanto seguia o guarda para dentro... naquela época como 
visitante. 
Nunca, em sua imaginação mais selvagem, ela pensou que estaria 
fugindo da prisão com um criminoso condenado a reboque e uma dúzia de 
guardas em seu encalço. 
A fúria cravava nela; ela agarrou Quicktongue pela túnica suja de 
sujeira e o sacudiu. 
 
— Você nos colocou nessa bagunça — rosnou —, agora você nos tira 
daqui. Qual caminho para a saída dos fundos? 
— Segunda porta... segunda porta à nossa direita. 
Ana o puxou para uma corrida atrás de si. Botas batiam ao longo de um 
dos corredores, ela não sabia dizer qual. A qualquer momento, os reforços 
estariam lá. 
Eles estavam no meio do corredor quando um grito soou atrás deles. 
— Pare! Pare em nome do Kolst Imperator Mikhailov! 
O Glorioso Imperador Mikhailov. Eles lançaram o nome de Luka tão 
casualmente, tão autoritário. Como se soubessem alguma coisa sobre seu 
irmão. Como se tivessem o direito de comandar pelo nome dele. 
Ana virou-se para os guardas da prisão. Havia cinco deles, tigre 
Cyriliano prateado estampado em uniformes brancos, suas espadas de pedra-
negra desembainhadas e brilhando à luz do sol. Eles vieram totalmente 
equipados, com capacetes também; seus trajes brilhavam com a liga 
reveladora em tons de cinza. 
Eles rosnaram para ela, espalhando-se como caçadores cercando uma 
fera indomável. Houve um tempo em que eles poderiam se ajoelhar na 
presença dela, quando teriam levado dois dedos ao peito e desenhado um 
círculo em sinal de respeito. Kolst Pryntsessa, eles teriam sussurrado. 
Isso já passou há muito tempo. 
Os dedos de Ana se enrolaram sobre o capuz, puxando-o para mais 
perto. Ela ergueu a outra mão, ferida e sem luva, para os guardas. O sangue 
escorria por seu braço em uma espiral de amante, um vermelho vivo contra a 
azeitona escura de sua pele. 
A náusea se agitou na boca do estômago, e sua garganta doeu de 
repulsa. Ao contrário dos Afinitas aprendizes ou empregados que 
 
aprimoraram suas habilidades por anos, Ana tinha apenas um controle básico 
e bruto sobre ela. Lutar contra tantas pessoas ao mesmo tempo poderia 
facilmente significar perder completamente o controle de sua Afinidade. Já 
tinha acontecido antes, quase dez anos antes, e a deixou doente só de pensar 
nisso. 
Um arqueiro se ajoelhou em posição, as pontas de suas flechas 
brilhando com Deys'voshk.Ana engoliu. 
— Me dê cobertura — ela disse para Quicktongue, e sua Afinidade 
rugiu para a vida. 
Mostre a eles o que você é, minha monstrinha. 
Mostre a eles. 
Ela deixou sua Afinidade livre e a percorreu, cantando e gritando e se 
contorcendo em suas veias. Através da névoa de seu frenesi, ela se agarrou 
aos contornos dos cinco guardas, seu sangue correndo por seus corpos com 
uma combinação de adrenalina e medo. 
Ela segurou essas amarras e deu um puxão forte e violento... 
A carne rasgou. O sangue encheu o ar. Sua Afinidade estalou. 
O mundo físico voltou em uma torrente de pisos de mármore branco e 
luz solar fria. De alguma forma ela estava de quatro, seus membros tremendo 
enquanto lutava para respirar. As veias bege-douradas do piso de mármore 
giravam diante de seus olhos, o Deys'voshk percorrendo sua cabeça. Em 
menos de dez minutos, o início estaria completo; sua Afinidade teria 
desaparecido. 
Ela se inclinou para frente, arqueando as costas em um ataque de tosse. 
O carmesim respingou no chão de mármore branco. 
Uma mão se fechou em seu ombro. Ana estremeceu. Quicktongue 
agachou-se ao lado dela, a boca aberta enquanto observava a cena. 
 
O corredor estava estranhamente vazio. Além da escada, espalhadas 
pelo corredor, havia cinco formas amassadas. Elas ficaram imóveis em poças 
de seu próprio sangue, as manchas escuras avançando sobre o chão e 
rastejando em seus sentidos. 
O toque do deimhov. 
— Incrível — Quicktongue murmurou, olhando-a com uma mistura de 
admiração e prazer —, você é uma bruxa. 
Ela ignorou o insulto e caiu sobre o piso de mármore polido, ofegante. 
O uso de sua Afinidade havia drenado sua energia, como sempre acontecia. 
— Fique aqui — Quicktongue ordenou. Então ele se foi. 
Ana empurrou-se sobre os joelhos. De repente, ela estava muito 
consciente dos corpos ao seu redor, frios e imóveis em suas mortes. O sangue 
deles pairava em sua consciência, rios rugindo transformados em poças de 
água morta, assustadoramente silenciosas. O mármore branco brilhava em 
contraste com o carmesim, a luz do sol se derramando sobre o sangue como 
se dissesse: Olhe. Olhe o que você fez. 
Ana se curvou para frente, envolvendo os braços em volta de si mesma 
para parar de tremer. Eu não queria. Eu perdi o controle. Não pedi essa Afinidade. 
Eu nunca quis machucar ninguém. 
Talvez os monstros também nunca tivessem a intenção de machucar os 
outros. Talvez os monstros nem soubessem que eram monstros. 
Ela contou até dez para se dar tempo de parar de chorar e sair do chão. 
O sangue se espalhou sob suas palmas enquanto se levantava. Ela se encostou 
na parede e respirou fundo, fechando os olhos para evitar a visão diante de 
si. 
— Bruxa! 
 
Ana encarou. Quicktongue estava diante do segundo corredor à sua 
direita, uma corda pendurada no ombro. Ele acenou para ela e virou pelo 
corredor, desaparecendo de vista. 
Quanto tempo ele ficou ali, vendo-a quebrar? Ela o olhou, a inquietação 
filtrando a maré de sua exaustão. 
— Rápido! — Sua voz voltou, ecoando levemente. 
Levou cada grama de sua força de vontade para endireitar a coluna e 
mancar atrás dele. 
 
*** 
 
A prisão foi construída como um labirinto. Kapitan Markov havia 
ensinado Ana sobre projetos de prisão quando ela era apenas uma menina. 
Seu rosto enrugava sob seu cabelo grisalho quando ele sorria para ela, e o 
cheiro familiar de seu creme de barbear e armadura de metal cresceram para 
acalmá-la. 
Em seu firme tom de barítono, ele a disse que as prisões Cirilianas eram 
labirintos que aprisionavam detentos que tentavam escapar, de modo que o 
pânico e a incerteza os faziam perder a cabeça quando eram recapturados. Os 
anéis externos dessas prisões-labirinto eram fortemente vigiados, mas os 
guardas do lado de dentro eram mais escassos, simplesmente porque 
atiravam em qualquer prisioneiro que conseguisse vagar pelas camadas 
externas. 
Ela só podia esperar que esta saída de trás do Quicktongue não 
prometesse uma morte tão rápida. 
À frente, o criminoso se movia com uma graça predatória que a 
lembrava de uma pantera que ela vira uma vez em um show de animais 
 
exóticos em Salskoff. Ela pegou a piscadela de uma adaga roubada em suas 
mãos, o símbolo de um tigre branco piscando no punho. 
Como se ouvisse seus pensamentos, ele poupou-lhe um olhar. 
— Cansada? — ele sussurrou. — Esse é o preço que vocês, Afinitas, 
pagam por suas habilidades, não é? Além disso, nosso amigo lá atrás deu a 
você um pouco de Deys'voshk. 
Um guarda dobrou a esquina, poupando-a da dor de pensar em uma 
resposta contundente. 
Em três passos leves, Quicktongue estava em sua garganta. Um lampejo 
de metal e o guarda caiu, o punho de tigre branco saindo de seu peito. 
Mesmo através de sua névoa de fadiga, Ana podia dizer que havia uma 
precisão treinada nos movimentos de Quicktongue, uma ciência na maneira 
como ele inclinava sua lâmina. 
Quicktongue embainhou sua adaga em um golpe praticado. 
— Quase lá — disse ele. 
Ficou mais escuro, arandelas fixadas cada vez mais esparsamente ao 
longo das paredes. O mármore transformou-se em pedra rústica e, uma ou 
duas vezes, Ana pensou que ia ficar completamente escuro. Ela manteve sua 
Afinidade acesa como uma tocha, o tempo todo consciente de seu alcance 
cada vez menor à medida que o Deys'voshk assumia o controle. Até 
Quicktongue, cujo sangue fluindo rápido deveria ser fácil para ela rastrear, 
entrava e saía de sua consciência como um fantasma. 
Através do estalo rítmico de seus saltos, outro som emergiu – fraco, mas 
cada vez mais alto, como o sussurro do vento roçando os altos lariços 
congelados do lado de fora de suas janelas. 
O som da... água. 
 
Eles tinham que estar nos fundos da prisão, então, onde os corpos dos 
prisioneiros mortos eram jogados junto com esgoto e lixo. Ao contrário da 
maioria das prisões Cirilianas, que foram construídas sobre rios para fácil 
eliminação, Quedas Fantasma foi construída no topo de um penhasco cortado 
por uma cachoeira, ganhando seu nome. Houve até uma reviravolta na velha 
piada: os prisioneiros estavam presos entre um penhasco e uma cachoeira. 
Um penhasco e uma cachoeira. 
Suas pernas pareciam aquosas. 
— Quicktongue — Ana engasgou, e então ela estava gritando —, 
Quicktongue! 
Ele desapareceu na esquina. Ana empurrou-se em uma corrida, a água 
agitada ficando mais alta até que até seus passos foram abafados pelo som 
apressado. 
O próximo corredor terminava abruptamente em uma estreita porta em 
arco feita de pedra-negra. Sua leveza fria e misteriosa sussurrou para ela. 
Quicktongue ajoelhou-se diante da porta, sua túnica cinza um borrão 
fantasmagórico contra a pedra-negra. Na penumbra, suas mãos trabalhavam 
com a precisão dos físicos do Palácio com quem Ana estudara. Algo brilhou 
entre seus dedos; ele fez um movimento rápido para baixo, e a porta se abriu. 
As batidas abafadas se transformaram em um som estrondoso que 
reverberou entre as paredes de pedra e o teto baixo. Quicktongue empurrou a 
porta e Ana sentiu seu estômago revirar. 
Além da porta de pedra-negra, o corredor terminava abruptamente, 
como se alguém tivesse pegado uma faca de manteiga e a cortado com 
cuidado. Dois grandes pilares enraizaram o final do corredor no afloramento 
de penhascos abaixo. O céu azul-acinzentado de Cyrilia se estendia por 
quilômetros sobre suas cabeças, até encontrar a extensão da paisagem coberta 
 
de neve brilhante. Abaixo, águas brancas como gelo espumavam e 
mergulhavam para baixo. As pernas de Ana ficaram fracas quando o medo 
familiar de água agitou dentro dela, esculpido nos ossos de sua memória de 
um incidente muito, muito tempo atrás. As águas impiedosas de um rio, um 
muito diferente, quase a mataram não uma, mas duas vezes muitos anos 
atrás. 
Quicktongue já estava em movimento. Ele soltou o grosso pedaço de 
corda que estava puxando. Com fluida facilidade, ele enrolou uma ponta da 
corda emtorno de um pilar. Seus dedos teceram algum tipo de nó 
complicado. 
Divindades. Ana pressionou-se contra a parede dos fundos e desejou que 
seus joelhos não dobrassem. Esta era a saída dos fundos de que Quicktongue 
havia falado: o esgoto a céu aberto onde eles jogavam excrementos e 
cadáveres. 
E eles iam pular. 
— Eu não vou pular lá com você — ela gritou, voltando para a curva 
dos corredores, atrás da porta de pedra-negra. 
Quicktongue ajoelhou-se junto à saliência. 
— Não tenho certeza de quão longe você chegou em sua escola, 
querida, mas aqui está um pouco de sabedoria das ruas. Qualquer um que 
tentar pular ali, vai morrer. O impacto vai quebrar seus ossos. 
A cachoeira mergulhou como uma fera rugindo, desaparecendo em 
uma névoa branca tão espessa que ela nem conseguia ver o fundo. 
Quicktongue testou seu nó. A corda esticada. 
— Você vem, Bruxa? 
Ana estava quase convencida de que ele estava louco. 
 
— Você acabou de dizer que qualquer um que tentar pular lá vai 
morrer. 
Quicktongue se endireitou. Delineado contra o céu azul Cyriliano 
enevoado, acima das águas brancas espumantes, ele parecia quase heroico. 
— Eu disse. Mas, querida, não vamos pular. — Ele gesticulou para o 
comprimento da corda, a maioria enrolada em uma pilha entre eles como 
uma cobra. A outra extremidade enrolou em torno do pilar. — Planejo nos 
baixar até o rio abaixo. Já fiz os cálculos. Vai funcionar. — Ele sorriu e 
aproximou o dedo indicador e o polegar. — Será um passo pequeno e 
delicado. Como descer de uma carruagem. Exceto... de um parapeito. 
Seus olhos brilharam com alegria, e ela queria sufocá-lo. Divindades, 
ela ia morrer. Atrás de si: guardas que iriam aprisioná-la e vendê-la em 
regime de servidão. Ante à dela: um criminoso louco que, provavelmente, 
pularia para a morte. 
— Então? — Quicktongue inclinou a cabeça. Com seus dedos de 
trapaceiro, ele já havia amarrado a outra ponta da corda firmemente ao redor 
de sua cintura e estava balançando o último pedaço dela para ela. — 
Passamos uns bons cinco minutos para chegar aqui. Eles soaram o alarme, 
então mais guardas estarão sobre nós como abelhas no mel. Você está 
desperdiçando meu tempo, querida. 
Ana voltou seu olhar para a cachoeira, observando as águas brancas 
espumantes baterem em velocidades que quebrariam os ossos. E, de repente, 
ela se imaginou presa naquelas correntes como tinha estado dez anos atrás, a 
espuma e as ondas esmagando seu peito e torcendo seus membros e 
pressionando seus lábios e nariz. 
Não posso. 
 
Em algum lugar naquele labirinto, acima do bater da cachoeira, gritos 
soaram. Ela empurrou sua Afinidade para fora, mas ela enfraqueceu a ponto 
de tudo o que sentiu foram os mais fracos fios de sangue. A ferida em seu 
braço deu um latejar particularmente desagradável. Mais alguns minutos e 
não sobraria nada de sua Afinidade com o que lutar. 
Não havia como voltar atrás agora. 
Ela queria chorar, mas sabia de seus anos em Sadov, nas masmorras, 
que chorar não levava a nada. Diante do medo, pode-se optar por correr ou 
se levantar. 
Então Ana engoliu a náusea, engoliu as lágrimas e ergueu o queixo ao 
passar pela porta de pedra-negra. O chão era irregular e molhado, e um 
cheiro – como se algo, ou muitas coisas, tivesse apodrecido aqui – a sufocou 
enquanto se aventurava mais longe. 
— Eu não vim aqui para morrer, criminoso — ela retrucou enquanto 
caminhava até ele —, se você tentar qualquer coisa, eu vou te matar antes que 
a água o faça. E acredite em mim, você me imploraria para deixá-lo se afogar 
em vez disso. 
Quicktongue estava se equilibrando na beirada do piso de mármore 
branco, segurando a corda. Seus lábios se curvaram quando ele começou a 
prendê-la firmemente contra seu peito com o último pedaço de corda em sua 
ponta. 
— Justo. 
Ana respirou fundo quando a corda cortou suas costas e cintura. 
Quicktongue deu-lhe um sorriso torto. 
— Eu sei que fede, amor, mas você vai me agradecer mais tarde, 
quando ainda estiver viva. 
 
O vento chicoteou contra seu rosto enquanto ela se arrastava até a 
borda, onde o chão terminava e o nada começava. Seu cabelo se soltou de seu 
nó austero, mechas castanhas escuras esvoaçando contra um céu azul aberto. 
Quicktongue deu outro puxão na corda. 
— Segure firme — ele gritou, e apesar de tudo, Ana envolveu os dois 
braços em torno de sua túnica imunda, mantendo o rosto o mais longe 
possível de seu peito sem forçar o pescoço. 
Ele os balançou para fora da borda. 
Qualquer repulsa que sentia por Quicktongue se dissolveu, e ela se viu 
agarrada a ele com força como se sua vida dependesse disso. 
Ele balançou. 
Eles balançavam logo abaixo da borda de Quedas Fantasma, 
espiralando suavemente. A cachoeira rugiu em seus ouvidos, tão perto que 
ela podia estender a mão e tocá-la. O pedaço de corda que os ligava ao pilar 
caiu embaixo deles em um longo laço, desaparecendo na névoa branca. 
Lentamente, Quicktongue começou a abaixá-los. Seus músculos 
estavam tensos, veias saltando de seu pescoço quando colocou uma mão 
abaixo da outra. 
Ana ousou olhar para baixo. A visão a fez agarrar Quicktongue com 
mais força, engolindo seu pânico. Ela poderia ter enviado mil orações para 
suas Deidades, mas nenhuma teria importância. Neste instante, havia apenas 
ela e o criminoso. 
Ana olhou para cima. A névoa era tão espessa que mal conseguia 
distinguir a borda da prisão. Aquilo era uma coisa boa. 
— Quanto tempo mais? — ela gritou, mal ouvindo sua própria voz 
sobre a cachoeira. 
 
— Quase lá! — Ele estava gritando, mas suas palavras eram quase 
inaudíveis. — Precisamos chegar ao fim desta corda, ou a queda vai nos 
matar. 
Ana apertou os olhos. Algo, um movimento na névoa, a fez 
instintivamente agarrar sua Afinidade. Lá estava ela: o mais leve fiapo, um 
eco de seus poderes, ainda lutando sob o Deys'voshk. 
Ela franziu a testa quando sentiu algo através de suas amarras, tão fraco 
que quase passou por ela. 
Uma rajada de vento os atingiu e Ana fechou os olhos, tentando 
bloquear a sensação vertiginosa do balanço. Quando os abriu novamente, o 
vento havia dissipado um pouco da névoa. No topo, sobre a borda de Quedas 
Fantasma, estava o contorno de um arqueiro, seu arco e flecha virados para 
eles. 
— Tenha cuidado! — ela gritou, e a primeira flecha zuniu sobre suas 
cabeças. 
A segunda atingiu Quicktongue. 
Ele grunhiu de dor quando ela roçou seu ombro, cortando sua manga e 
tirando sangue. Ana engoliu um grito quando o aperto de Quicktongue 
deslizou contra a corda escorregadia. Eles cambalearam, girando 
descontroladamente, a um palmo de distância de serem espancados até a 
morte pela cachoeira. Acima, o arqueiro encaixou outra flecha. 
Abaixo, ela viu a ponta da corda, enrolando-se para se conectar à 
cintura de Quicktongue. A ponta da corda. Eles tinham que chegar ao fim da 
corda, ou morreriam. 
Ana alcançou dentro de si mesma, cavando até que não era nada além 
de sangue e osso. E ela o encontrou, os últimos resquícios de sua Afinidade, 
tão fracos quanto uma vela se apagando, ainda lutando contra os Deys'voshk. 
 
Ana estendeu a mão e agarrou o sangue do arqueiro. E empurrou. 
O arqueiro ficou tenso e balançou por um segundo, como se uma súbita 
rajada de vento o tivesse atingido. Ana deixou cair a mão. Calor escorreu por 
seu lábio e ela provou seu próprio sangue. 
Era isso. O Deys'voshk havia vencido; ela não tinha mais para dar. 
Mas foi o suficiente para distrair o arqueiro e levá-los até o fim da 
corda. 
Quicktongue a soltou e alcançou seu quadril. Sua adaga brilhou prata 
fosca. Ele se inclinou em direção a Ana, seus olhos estreitados, sua expressão 
afiada para uma calma mortal e letal. 
— Não lute, não se mova. Apenas segure-se em mim. Pés à frente, 
dedos dos pés apontados. 
Ela mal tinha processado suas palavras, mal deixou um gosto de medo 
chegar à ponta de sua língua. 
Quicktongue ergueu o braço. 
—O primeiro passo para se tornar um rufião 1 — disse ele —, é 
aprender a cair. 
Sua lâmina brilhou. Ele abaixou o braço com força implacável. 
E então eles estavam caindo. 
 
 
 
1 Uma pessoa violenta, especialmente uma pessoa envolvida em crimes. 
 
3 
O rio os reivindicou assim que eles o atingiram, puxando-os para baixo 
com vingança em seus fluxos brancos e os golpeando como folhas em um 
vendaval. Ramson deixou-se levar pelas marés. Ele conhecia as águas, sabia 
quando se deixar levar e quando forçar contra elas. O rio não cedeu. Era tudo 
sobre aprender a nadar com a corrente. 
Essas águas eram diferentes dos mares abertos da infância de Ramson. 
Em Bregon, as águas eram azul-cobalto, as calotas salpicadas de sol. Ele havia 
nadado por horas, mergulhando abaixo da superfície e olhando para o céu 
distante em seu próprio mundo azul e abafado. 
Em Cyrilia, os rios eram brancos, espumantes e frios. Ramson lutou 
para manter os olhos abertos enquanto a correnteza o lançava de um lado 
para outro. A pressão em seu peito aumentou. A água subiu em seu nariz e 
boca. 
A garota Afinita ainda estava amarrada ao peito dele pela corda. Ele 
podia senti-la se debatendo contra ele, chutando e lutando enquanto a 
corrente a golpeava. 
Ramson cortou a corda. As chances de sobrevivência eram maiores sem 
alguém pesando sobre você. Ele estava pensando apenas em si mesmo 
quando fez isso, mas enquanto observava a corrente arrastar a bruxa para 
longe, ele supôs que poderia ter sido verdade para ela também. 
Fique quieta, ele queria dizer a ela. Quanto mais você luta, mais rápido se 
afoga. 
 
Mas seus próprios pulmões estavam doendo, e aquela sensação familiar 
de fraqueza estava rastejando em seus membros. Ele precisava respirar, ou 
arriscar se tornar parte da corrente para sempre. 
Ramson rompeu. Assim que ele se endireitou, a corrente o empurrou 
novamente. O pânico borbulhou em seu peito. 
Sua cabeça parecia leve. A água pressionava seu nariz e seus lábios, 
mas parte dele se lembrava de que não conseguia abrir a boca. Seus membros 
estavam ficando mais pesados. Sua visão era um turbilhão de branco. Estava 
frio. 
Nade, veio uma voz. Ele soube instantaneamente de quem era a voz... 
aquela voz calma e fina que definiu sua infância e o perseguiu todos os dias 
depois disso. Aqui, no caos estrondoso, parecia tão perto. Nade, ou nós dois 
morremos. 
Ramson forçou as pernas para trás dele, arqueando as costas. Ele sentiu 
a corrente ceder um pouco. Em algum lugar acima de si, em algum lugar 
próximo, havia luz. 
Nade. 
A luz ficou mais brilhante. Atravessou a superfície, tossindo e 
engolindo baforadas atrás de baforadas do ar fresco e invernal de Cyril, 
sentindo o poder retornar a seus membros. 
Ele se arrastou para a margem, cravando as unhas na terra 
semicongelada e arrastando os pés pela grama coberta de neve. Ele estava 
tremendo incontrolavelmente, movendo-se em partidas e paradas, seus 
braços e pernas sacudindo em movimentos desajeitados enquanto ele tentava 
estimular seu fluxo sanguíneo. 
O rio os levara a uma boa distância; Quedas Fantasma era um pontinho 
distante, pouco maior que o tamanho de sua palma. Seu estômago revirou 
 
quando ele viu a altura dos penhascos, a cachoeira que não era mais do que 
um trecho enevoado que terminava no rio. Não importava seus cálculos e o 
planejamento meticuloso que fizera na escuridão de sua cela; foi preciso um 
milagre e uma mão dos deuses para eles terem sobrevivido. 
Não que Ramson acreditasse nos deuses de qualquer maneira. 
Ele virou as costas para a prisão. Uma floresta coberta de neve se 
estendia diante dele, iluminada em uma névoa dourada empoeirada sob o sol 
do fim da tarde. E ao longe, montanhas cobertas de gelo subiam e desciam até 
onde a vista alcançava. 
Mas Ramson sentiu apenas o frio nos ossos e viu apenas as sombras que 
se estendiam longas e escuras sob os pinheiros. Isso era Cyrilia, o Império do 
Norte, onde as noites de outono eram mais frias do que qualquer dia de 
inverno nos outros reinos. E se não encontrasse abrigo antes do pôr do sol, 
morreria. 
Uma tosse atrás dele o fez girar, adaga na mão. Ele sentiu uma leve 
pontada de surpresa ao avistar a Afinita subindo a margem como um animal 
moribundo. Ela estava de quatro, a cabeça caída, os cabelos escuros colados 
ao rosto e pingando água. Ela não ficaria de pé novamente. Não sem a ajuda 
dele. 
Ramson se virou. 
A neve abafou seus passos quando ele se aventurou na floresta, e logo 
os sons da garota cuspindo e do rio correndo se desvaneceram em silêncio. 
As árvores cresciam densas o suficiente para bloquear o sol, e o frio o 
pressionava a cada passo que dava. 
Ele correu pelo terreno ao redor de Quedas Fantasma em sua mente, 
mas uma crescente sensação de dúvida começou a atrapalhar seu progresso. 
Ele foi trazido para cá algemado e com os olhos vendados, a carroça viajando 
 
por dias antes de ser puxado para fora e jogado em sua cela. Até onde 
Ramson sabia, a área ao redor da prisão era estéril... um deserto de tundra 
coberta de gelo e a Syvern Taiga, a floresta que cobria metade do Império 
Cyriliano. 
De alguma forma, seus pensamentos foram atraídos de volta para a 
bruxa. Era uma pena que sua fuga a tivesse enfraquecido tanto. 
Considerando que poderia ter sido uma aliada útil com sua poderosa 
Afinidade, ela seria apenas um obstáculo no futuro. Ele duvidava que ela 
fosse capaz de ficar de pé, muito menos sair da floresta. Mas, novamente, ele 
pensou sombriamente, para onde ela iria? 
Algo estalou em sua mente, e ele parou bruscamente. É claro. Como 
pode ter sido tão estúpido? Ele se virou e meio cambaleou, meio correu para 
onde havia deixado a bruxa. 
A garota tinha ido a Quedas Fantasma só para vê-lo. O que significava 
que ela tinha que ter uma saída. Um meio de transporte. 
Ele a encontrou agachada a vários metros do rio, a cabeça inclinada, os 
braços em volta de si mesma e movendo-se rigidamente enquanto tentava 
esfregar o calor de volta em seu corpo. Ela o olhou com os olhos semicerrados 
quando ele se aproximou. Em apenas alguns minutos, a parte inferior de seus 
cabelos molhados congelou. 
Ramson ajoelhou-se ao lado dela, colocando a mão em seu pescoço e 
sentindo seu pulso. Ela se contorceu, mas não fez mais nenhum movimento 
para resistir. 
— Como você está se sentindo? — Injetando preocupação em seu tom, 
ele tomou suas bochechas em suas mãos. Elas estavam geladas. — Você pode 
falar? 
Ela abriu os lábios rachados. Eles estavam tingidos de azul. 
 
— S-sim. 
— Você se sente tonta? Sonolenta? 
— N-não. — Era claramente uma mentira, mas quando ela ergueu o 
queixo teimosamente e o encarou com aquele olhar, Ramson não pôde deixar 
de admirar sua determinação. 
— Precisamos encontrar abrigo antes do pôr do sol. — Ramson lançou 
um olhar sobre as copas das árvores, onde o sol pairava, obscurecido pelas 
nuvens cinzentas e pela névoa. — De onde você veio? Como chegou aqui? 
— A-andei. 
Seu coração quase cantou com essa palavra. Isso significava que tinha 
que haver abrigo a uma curta distância. Ele fez a escolha certa, voltando para 
ela. 
— De onde? Há uma cidade próxima? 
Um aceno de cabeça. 
— A d-dacha. Eu moro lá. 
— Quão longe? 
Seu corpo deu um espasmo, e ele a puxou para mais perto de si. Suas 
roupas molhadas poderiam muito bem ser compressas de gelo, mas ele sabia 
que o calor do corpo ajudaria. Sua resposta veio em uma respiração que 
nublou o ar. 
— Duas horas. 
Ramson olhou para o sol coberto de neblina que pairava precariamente 
baixo sobre a borda das árvores. Pela primeira vez, parecia esperança. Ele se 
levantou, ajustando suas roupas geladas e testando seus músculos. Eles não 
estavam com cólicas ainda, o que era um bom sinal. 
— Você pode andar, querida? 
 
A bruxa começou a se levantar, ficando de pé, mas quase caiu com o 
esforço. Ramson a pegou pelos cotovelos antes quecaísse. 
— Eu a peguei. — Ganhe a confiança dela, alcance o abrigo. Ele a içou em 
suas costas, imediatamente sentindo a rigidez gelada de sua capa. — Coloque 
suas mãos em volta do meu pescoço. Quanto mais contato com a pele, menor 
a probabilidade de você ter hipotermia. 
Ela obedeceu, e ele deslocou seu peso mais alto. Já, seu sangue estava 
fluindo da tensão em seus músculos. Isso era bom. 
Ramson cerrou os dentes. Colocando um pé ante do outro, ele começou 
a andar. O silêncio abafado da paisagem branca os pressionava, quebrado 
apenas pelo ranger da neve sob suas botas e o ocasional estalar de um galho 
enquanto entrava na floresta. A bruxa lhe deu instruções, sua voz irregular 
enquanto ela tremia de frio. 
Logo eles estavam no coração da floresta, cercados por pinheiros de 
Syvern e lariços de gelo que projetavam suas sombras sobre eles. Um silêncio 
se instalou no ar. Parecia que a floresta estava viva e observando, o frio 
rastejando constantemente por suas roupas, sob sua pele, em seus ossos. 
A bruxa ficou em silêncio, seu corpo ainda contra o dele. Várias vezes, 
ele teve que sacudi-la para mantê-la consciente. 
— Fale comigo, querida — ele disse finalmente —, se você adormecer 
agora, nunca mais acordará. — Ele a sentiu se animar um pouco com isso. — 
Qual o seu nome? 
— Anya — ela disse, rápido demais para ser verdade. 
Outra mentira, mas Ramson fingiu assentir seriamente. 
— Anya. Eu sou Ramson, embora você já soubesse disso. De onde você 
é, Anya? 
— Dobrysk. 
 
Ele riu. 
— Falante, não é? — Ele conhecia a cidade de Dobrysk... um pequeno e 
insignificante ponto no mapa no sul de Cyrilia. No entanto, apesar de seus 
melhores esforços para mascarar, ela tinha um tom de sotaque do norte em 
seu discurso, junto com a cadência fraca da nobreza Ciriliana. — O que você 
fazia em Dobrysk? 
Ele a sentiu ficar tensa contra ele, e por um momento desejou poder 
retirar sua pergunta. Parecia uma boa oportunidade, em seu estado 
semicongelado e semiconsciente, para descobrir mais sobre ela. Descobrir 
seus segredos e usá-los como alavanca contra ela mais tarde. Que ela era uma 
Afinita era sua primeira, e única, por enquanto, pista. Certamente uma 
Afinidade tão forte quanto a dela teria merecido um lugar entre as Patrulhas 
Imperiais? 
As rodas em sua mente giraram, e ele pensou no comando em seu tom, 
o olhar crítico em seus olhos quando falou com ela pela primeira vez, a 
inclinação de seu queixo afiado. Definitivamente havia uma educação nobre 
em seu sangue, talvez ela simplesmente tivesse mantido sua Afinidade 
escondida para se proteger. Não era incomum em Cyrilia, uma vez que a 
Afinidade de uma criança se manifestasse, a habilidade de ser mantida 
escondida ou subjugada. Essa era a proteção que o poder e o privilégio 
ofereciam aos ricos. Uma segurança, pensou Ramson, que os pobres 
simplesmente não podiam pagar. 
Afinitas sem meios para subornar os funcionários ao silêncio eram 
obrigados a registrá-los em uma seção de seus documentos de identificação. 
Como cidadãos legais do Império, eles tinham permissão para procurar 
emprego, mas a marca em seus papéis os marcava como diferentes, como 
outros, como algo a ser evitado e, muitas vezes, temido. 
 
Cyrilia procurou controlar esses seres com habilidades dadas pelos 
deuses com pedra-negra e Deys'voshk. À medida que estrangeiros de outros 
reinos começaram a chegar à Cyrilia, em busca de oportunidades no império 
mais rico do mundo, os mercadores rapidamente viram a chance de explorá-
los. 
E então os corretores apareceram. Eles começaram a atrair 
trabalhadores estrangeiros para Cyrilia sob falsas promessas de melhor 
trabalho e melhor remuneração, apenas para forçá-los a contratos 
desfavoráveis e prendê-los em um império distante, sem saída. Com o tempo, 
a prática do tráfico de Afinitas prosperou, à sombra das leis. 
Nobreza ou não, essa garota era Afinita e fugia. E Ramson não queria 
nada com isso. 
Era simplesmente mais fácil olhar para o outro lado. 
De qualquer forma, essa garota tinha algo a esconder. E se Ramson 
tinha uma habilidade, era desenterrar segredos, não importa quão 
profundamente enterrados. 
Seu silêncio teimoso estava se arrastando, então ele voltou a uma 
pergunta relativamente inócua: 
— O Vinho do Sol realmente tem um gosto melhor no Sul? 
Eles continuaram assim, Ramson falando e provocando respostas de 
uma ou duas palavras da garota. Apesar da conversa que manteve, ele podia 
sentir suas mãos e pés ficando dormentes e seus músculos ficando cansados. 
A escuridão tinha se aproximado constantemente deles, e Ramson teve que 
piscar para distinguir quais eram as árvores e quais eram as sombras. 
O tempo parecia andar em círculos, e ele começou a se perguntar se ele 
próprio andava em círculos. O frio insuportável estava confundindo seu 
cérebro; ele ficava olhando por cima do ombro, imaginando o estalar 
 
ocasional de um galho ou o estalar da neve. O Império Cyriliano abrigava 
perigos diferentes dos de sua terra natal; ele ouvira falar de espíritos de gelo 
“syvint'sya” que se ergueram das neves, de modo que viajantes perdidos 
foram descobertos anos depois sob o gelo permanente. Lobos de gelo que 
surgiram do nada e caçavam em bandos. Ramson nunca tinha viajado sem 
um globo de fogo que queimava continuamente durante a noite para afastar 
as criaturas da Syvern Taiga. Agora a escuridão parecia pressioná-lo. 
Ramson parou. Seu coração batia forte em seus ouvidos... mas havia 
algo mais. Ele escutou, as palmas das mãos vazias sem o calor reconfortante 
de uma bola de fogo repousando nelas e iluminando o caminho. A escuridão 
tendia a ceder a pensamentos mais sombrios. 
E então ele ouviu, aquele snap-snap-snap de galhos e o farfalhar da 
vegetação rasteira, várias dezenas de passos atrás dele. 
Alguém – ou alguma coisa – os estava seguindo. 
O medo o picou. Ramson se escondeu atrás da árvore mais próxima, e 
depois de reequilibrar a bruxa em suas costas, ele se acalmou e se esforçou 
para ouvir sobre o martelar de seu próprio coração. 
Ali. Farfalhar e estalar se aproximaram, como se algo grande estivesse 
se movendo entre as árvores. Prendendo a respiração, ele ousou olhar por 
trás da árvore e sentiu suas pernas virarem algodão. 
Uma enorme forma escura passou, tão perto que seu cheiro mofado de 
animal molhado flutuou por ele. Ele parou para cheirar o ar e soltou um 
rosnado profundo. Ao virar a cabeça para examinar a periferia, o coração de 
Ramson afundou. Ele reconheceu o corpo maciço, o rosto pálido, os olhos 
brancos brilhantes. Um urso lunar. O temível predador do Império do Norte 
era apenas um sussurro nos lábios dos caçadores, uma oração para que eles 
mesmos nunca encontrassem um. 
 
A mente de Ramson entrou em ação. O urso lunar dependia de sua 
visão e audição para caçar, o que significava que, enquanto permanecesse 
quieto e fora de vista, ele teria uma chance de sobrevivência. No entanto, não 
havia como esperar; eles congelariam até a morte. 
Ele sentiu o corpo da bruxa escorregando em suas costas. Uma ideia lhe 
veio à mente – uma ideia tão feia que ele se envergonhou dela, mas a 
considerou mesmo assim. Se jogasse a garota para o urso e corresse, ele 
sobreviveria? Ela já estava inconsciente e era improvável que se recuperasse a 
menos que chegassem a algum lugar quente em breve. Uma parte dele quase 
soltou um meio soluço, meio riso, enquanto pensava inevitavelmente na 
popular piada Ciriliana. Ele foi, literalmente, pego entre o Urso e o Louco. 
O urso lunar ergueu sua cabeça desgrenhada, seu corpo enorme 
parando. Ele ergueu as orelhas. 
E virou-se para eles. 
Ramson captou o brilho de seus olhos brancos como uma tumba e o 
corte de suas presas na noite. Apesar do tremor em suas pernas, ele se 
agachou em uma postura defensiva. Sua adaga apareceu em sua mão livre. 
Não havia nenhuma chance no inferno de que ele ganhasse uma luta 
como essa, friae apertada e sobrecarregada por uma garota inconsciente. No 
entanto, apesar do que ele era, apesar de todas as vidas que arruinou e tudo 
que fez, Ramson sabia que não poderia viver consigo mesmo se pelo menos 
não tentasse. 
A uma dúzia de passos de distância, os arbustos chacoalharam de 
repente, como se um animal assustado tivesse disparado para eles. Ramson 
congelou. 
A atenção do urso lunar mudou. Sua cabeça, maior que o torso de um 
homem, girou lentamente. 
 
Os arbustos balançaram novamente. Algo disparou, indo na direção 
oposta. Ramson podia ouvir a criatura desajeitadamente quebrando galhos e 
farfalhando entre os arbustos em seu caminho. 
O urso lunar deu um rosnado baixo. Ele girou seu corpo gigantesco e se 
arrastou em direção ao barulho sem olhar para trás. 
Ramson esperou que o som de batidas e grunhidos desaparecesse antes 
de perder o fôlego. Ele se inclinou contra a árvore, deslocando o peso da 
garota Afinita entre seus ombros. A noite havia caído, seu abrigo não estava à 
vista. 
Um galho estalou atrás dele. Ramson se virou, apertando sua adaga 
com mais força. E olhou. 
Havia uma silhueta ao lado da árvore, delineada contra a neve e a lua. 
Não, não uma silhueta... uma criança. Ela levantou a mão e acenou para eles. 
Ramson o seguiu. Se ele ia se defender, imaginou que suas chances 
eram melhores com uma criança que mal tinha metade do seu tamanho do 
que com o urso lunar. 
 
*** 
 
A caminhada parecia durar uma eternidade e Ramson se viu 
tropeçando cada vez mais à medida que sua fadiga se tornava cada vez mais 
insuportável. A garotinha serpenteava pelas sombras como um espírito da 
floresta. 
Mais algumas dezenas de passos se passaram. A neve parecia ficar 
prateada, e as árvores tornaram-se contornos sólidos novamente. Luz, 
Ramson percebeu. Havia luz vindo de algum lugar próximo. 
 
Gradualmente, a floresta se abriu para revelar uma pequena dacha de 
madeira enfiada em um anel de árvores. A luz de uma janela se derramava 
sobre a neve intocada, e os joelhos de Ramson quase se dobraram de alívio. 
À sua frente, a criança abriu a porta fina de madeira e entrou. 
Um fogo crepitava na lareira e o calor o envolveu como um abraço de 
mãe. Ramson gemeu quando colocou a bruxa no chão em frente ao fogo e 
começou a remover as roupas geladas de suas costas. Seus dedos deslizaram 
nos botões, e ele mal conseguiu reunir energia suficiente para tirar a camisa. 
Ele caiu no chão em uma pilha seminua, absorvendo o calor do piso de 
madeira seco. 
Ele desejou nunca se levantar de novo, desejou nunca mover outro 
músculo. Mas, eventualmente, ele ouviu farfalhar e passos pequenos e leves. 
Ramson abriu um olho. 
A criança estava agachada próximo à bruxa, suas mãos esvoaçando 
pelo corpo da Afinita como um par de pássaros nervosos. Ele observou seu 
cabelo escuro que caía macio sobre seus ombros, o turquesa brilhante de seus 
olhos – uma cor que o lembrava dos mares quentes do sul. 
Filha de um dos Reinos Asáticos, pensou Ramson, com um estranho 
acorde de simpatia ressoando nele. Ele tinha mais ou menos a idade dela, 
talvez alguns anos mais velho, quando chegou pela primeira vez às costas 
Cirilianas, faminto, assustado e totalmente perdido. 
No entanto, uma crescente sensação de mau presságio fez sua pele 
arrepiar quanto mais ele a olhava. Como Mestre Portuário do maior posto 
comercial de Cyrilia, ele poderia pensar em uma razão mais sinistra para uma 
criança de um reino estrangeiro estar aqui sozinha. A região Asática, em 
particular, era conhecida por seu grande número de migrantes que 
procuravam oportunidades de trabalho em outros reinos, especialmente o 
 
Império de Cyrilia, impiedosamente impulsionado pelo comércio. Ramson 
tinha visto os navios fantasmas atracarem em seu porto em noites sem lua, 
observado as figuras – homens, mulheres e crianças – furtivas através das 
sombras. 
Os Afinitas se tornariam fantasmas neste império estrangeiro, sem 
identidade, sem lar e sem ninguém a quem recorrer, seus apelos lavados pelo 
arrastar das ondas sob uma lua cruel. 
Ramson também se virou. 
A criança pressionou dois dedos no pescoço da bruxa. Preocupação 
ondulou em suas feições. 
Ramson respirou fundo. 
— Ela está viva? — Sua voz arranhou. 
A terna preocupação moldando as feições da criança desapareceu em 
um instante, como se alguém tivesse fechado um livro. Ela o olhou de uma 
forma notavelmente semelhante à bruxa, sua pequena boca franzida. 
Ramson tentou novamente. 
— Quem é você? Como nos encontrou? 
Seus olhos se estreitaram em fendas. Ramson não conseguia entender 
como essa pessoa diminuta podia parecer ainda mais feroz que a bruxa. 
— Quem é você? — ela atirou de volta. 
— Eu sou um amigo. 
— Você está mentindo. Ana e eu não temos outros amigos. Mas está 
tudo bem — ela adicionou presunçosamente —, se você for ruim, eu vou te 
matar. 
Ramson suspirou. O que havia com ele e conhecer mulheres assassinas 
hoje? 
 
— Olha — ele disse —, ela está tremendo. É um bom sinal. Precisamos 
aquecê-la lentamente. — Ele avaliou a sala. Havia uma prancha de uma cama 
encostada na parede oposta, um canto dela empilhado com cobertores. A 
lareira estava em frente a ela, o fogo crepitando alegremente na pequena sala. 
Ao lado da porta havia uma velha mesa de madeira repleta de pergaminhos e 
canetas. — Pegue para ela alguns cobertores e roupas secas, e vamos colocá-la 
perto do fogo. Acho que ela está meio adormecida. Aqueça um pouco de 
água do banho para ela. 
A criança o avaliou por mais alguns momentos, como um gato 
decidindo se o atacava ou confiava nele. Eventualmente, ela decidiu pelo 
último, e se arrastou em direção ao lavabo no fundo do cômodo. Ele ouviu o 
som de água espirrando. 
E isso o deixou com... apenas uma tarefa. 
Gemendo, Ramson forçou-se a ficar de joelhos, de pé. Ele se abaixou e, 
com um esforço para trás, levantou a bruxa em seus braços. Ele estava 
tremendo enquanto atravessava a sala em várias passadas, abrindo a porta do 
pequeno banheiro. Uma vela solitária ardia lá dentro, iluminando a banheira 
de madeira úmida. 
Gentilmente, ele baixou a garota para dentro. Ela murmurou algo e 
estremeceu quando ele se afastou. Ele franziu a testa enquanto afastava uma 
mecha de seu cabelo escuro, lançando um olhar desconfiado para as linhas 
afiadas de suas maçãs do rosto e o traço ousado de sua boca contra sua pele. 
Ela se parecia com os Cyrilianos do Sul de pele marrom que moravam nas 
montanhas Dzhyvekha, nas fronteiras do Império Cyriliano e da Coroa 
Nandjian. Uma minoria entre os Cyrilianos do Norte predominantemente 
justos que detinham a maior parte do poder e privilégio em todo o Império. 
 
E... ele teve a estranha sensação de que ele... a tinha visto em algum 
lugar antes. 
Balançou sua cabeça. O frio estava chegando até ele. 
Ele a deixou com a criança Asática e cinco baldes de água morna. Ele se 
inclinou contra a porta trancada, ouvindo os sons de respingos e silêncio. 
Como água, seus pensamentos giravam. 
Por que a salvou do urso lunar, mesmo quando ela estava meio 
congelada e inútil e um peso morto para ele? O Ramson Quicktongue que ele 
conhecia, aquele que toda a rede criminosa desconfiava, mantinha apenas os 
fortes e úteis ao seu lado; os fracos eram rapidamente descartados ou 
sacrificados. No entanto, na escuridão e solidão da floresta Ciriliana coberta 
de neve, o frio o mudou, espremendo todo cálculo lógico dele até que não era 
nada além de instinto cru. 
E o instinto guiou suas ações esta noite. 
Ele apertou os olhos. Ele pensou que tinha apagado aquela pequena 
lasca de bondade dentro de si sete anos atrás. Ele jurou a si mesmo que nunca 
seria um dos fracos novamente, que nunca daria mais do que recebia. 
Ele respirou fundo. Abriu os olhos. A sala voltou com uma visão 
cristalina. 
Ele tinha ajudado a bruxa até aqui. Ele tinha dado. Agora era sua vez de 
tomar. 
 
 
 
4 
Ana quasese afogou duas vezes na vida. 
A primeira vez foi há dez anos, no auge do inverno. A neve havia 
pintado o mundo com uma extensão brilhante de branco, salpicado com os 
vermelhos rubi, verdes esmeralda e azul safira do Mercado de Inverno 
Salskoff. Ornamentos brilhavam em prata e ouro como pequenos espíritos de 
gelo enquanto a família Imperial passava em seu desfile anual da cidade para 
dar as boas-vindas à chegada de sua Divindade Patrona. Pandeiros 
tilintavam, música tocava, pessoas giravam do lado de fora em rajadas de 
gaze branca e faixa prateada. 
A empolgação diminuiu até a dor de cabeça que mantinha Ana na cama 
nos últimos dias. Ela segurava a mão de Luka enquanto esperavam que a 
carruagem parasse, para a caminhada pela cidade quase de conto de fadas, 
anunciada e amada e repleta de presentes pelos cidadãos de seu império. 
No entanto, quando as portas se abriram e os cheiros de carne assada, 
legumes temperados e peixe assado entraram, Ana sentiu uma onda de 
náusea. Havia algo se contorcendo sob todo o barulho da multidão, os 
ornamentos coloridos, as peles e as joias apertadas no pescoço das pessoas, os 
cheiros e as visões. Batia em sua cabeça, latejava em suas têmporas. 
Ela se lembrava distintamente da panela de sopa de beterraba, grossa e 
borbulhante e tão vivamente vermelha. 
E então aquela energia vibrante dentro dela explodiu, um carmesim 
afiado que encharcou cada canto de sua visão, correndo por suas veias. A 
 
batida quente e pulsante do sangue varreu seu mundo, abafando todo o 
resto. 
Ela só se lembrava das consequências. Os corpos na frente de sua 
carruagem, retorcidos nos paralelepípedos; o vermelho, florescendo como 
flores de papoula em uma tela de neve incolor. 
Ana havia matado oito pessoas naquele dia. 
O alquimista do Palácio, um estranho careca com olhos excessivamente 
grandes e um comportamento quieto, a diagnosticou naquela mesma noite. 
Ela se lembrou do brilho frio de seu Deys'krug prateado quando ele levantou 
a mão trêmula para sussurrar no ouvido do Imperador. 
Uma Afinita, ele disse a papai. Uma Afinita de sangue. 
Papai baixou a cabeça e o mundo de Ana desmoronou. 
Em uma janela do outro lado de seu quarto, ela viu seu reflexo. O rosto 
ainda manchado de sangue e lágrimas do mercado, o cabelo coberto de suor e 
cobrindo parcialmente os olhos... seus monstruosos olhos vermelhos. Seus 
braços estavam pesados, a pele esticada sobre veias inchadas e irregulares. 
Naquele dia, Ana se olhou no espelho e viu um monstro. 
Ela tentou correr atrás disso. Passando pelas empregadas que gritavam 
com sua aproximação; passando pelos guardas que se afastaram, perplexos e 
sem saber o que fazer. Ela não sabia para onde estava indo; tudo o que sabia 
era que tinha que fugir, longe do Palácio, longe de mamãe e papai e Luka e 
mamika Morganya, para que ela não pudesse machucá-los. 
A Ponte Kateryanna surgiu do borrão de suas lágrimas, estátuas de 
Divindades vigiando-a como guardiões conscientes. A ponte recebeu o nome 
de Mama, e Ana a observava todos os dias das janelas de seus aposentos, 
atravessando o rio gelado Cauda do Tigre que contornava o Palácio. 
 
 
Era um sinal. Tinha que ser. 
Lágrimas escorriam pelo rosto de Ana quando ergueu o olhar para o 
céu. Eu te amo, Mama, ela pensou. Leve-me para algum lugar seguro. 
Ana escalou o corrimão de pedra e se jogou no rio. 
O frio sacudiu seus ossos assim que ela atingiu a água, e a corrente 
implacável a puxou para baixo. Imediatamente, ela percebeu que qualquer 
esperança que tivesse de ser transportada para terras distantes pelas águas do 
rio, tinha sido tola. A água espumava ao redor dela, golpeando-a de uma 
forma que despertou um tipo diferente de terror dentro de si: incontrolável e 
tumultuado. Instintivamente, ela abriu a boca para gritar, mas a água entrou, 
espremendo o ar de seus pulmões. 
O pânico embranqueceu sua mente, e manchas floresceram diante de 
seus olhos enquanto ela lutava contra a água. 
Ela não queria morrer. Mas, talvez, as Divindades pretendessem 
reclamá-la hoje, afinal. 
Algo a agarrou em seu diafragma – algo diferente da pressão em seu 
peito e do frio em seus pulmões. O mundo girou em um turbilhão de 
correntes de gelo branco e caos mudo, mas percebeu que a corrente não a 
carregava mais. Ela estava sendo arrastada para cima, para cima e para a luz. 
Ela irrompeu na superfície, seus pulmões ofegando em doces e 
preciosas respirações de ar. Seus membros flutuavam fracamente nas águas 
violentas, mas havia um braço firme em volta de seu peito e alguém a puxava 
para a margem com movimentos fluidos e experientes. 
Seu salvador lutou na margem e, por fim, a depositou no chão coberto 
de gelo que se estendia por quilômetros ao redor. 
O sangue de Ana congelou quando se viu olhando nos olhos de seu 
irmão – olhos que ardiam de raiva. Todos os vestígios de alegria anterior 
 
haviam desaparecido do rosto de Luka, e ela pensou ter visto um vestígio do 
príncipe, o futuro Imperador Luka Aleksander Mikhailov. 
Seu irmão estava ofegante, o cabelo grudado na testa e encaracolado na 
nuca. O hálito escapou de seus lábios, pálidos de frio. 
— Pirralha — ele rosnou, e bateu com o punho no chão congelado com 
tanta força que rachou —, o que diabos você estava pensando? 
Seu tom a golpeou mais afiado do que a mordida de um chicote, e ela se 
encolheu. Seu irmão – gentil e calmo Luka – nunca gritou com ela assim. 
Ela pensou nos oito corpos mortos florescendo em vermelho no 
Vyntr'makt e baixou o olhar. 
— Eu sou um monstro — murmurou, seus lábios dormentes. 
Luka se curvou sobre ela, seu peso apoiado nos cotovelos. Seus ombros 
tremeram, e quando ergueu o olhar para ela, ele estava chorando. Em um 
movimento súbito, ele a puxou em seus braços e a abraçou apertado. 
— Nunca mais me assuste assim. Você poderia ter morrido. 
O turbilhão de seus pensamentos clareou, deixando apenas um: a 
percepção de que Luka estava com medo de que ela quase tivesse morrido. 
Ele não... ele não queria que ela morresse. 
— Eu sinto muito. — Sua voz estava alta e quebrada. — Eu... O 
Vyntr'makt... 
— Silêncio — Luka sussurrou, embalando-a —, não é sua culpa. 
Não é sua culpa. 
Ela se soltou então, a torrente de tristeza e culpa e desamparo, e por 
alguns momentos, os braços dele a seguraram juntos e suas palavras foram 
sua salvação. 
 
 
Quando ele se afastou, seus olhos – ela sempre pensara neles como a 
grama que florescia nos jardins do Palácio a cada primavera – endureceram 
com determinação, um fogo ardente, enquanto ele segurava o rosto dela com 
as mãos. 
— Você não é um monstro, sistrika. 
Um lampejo do Deys'krug prateado do alquimista. A cabeça baixa de 
papai. 
A resposta saltou para seus lábios. Uma Afinita. O alquimista sussurrou. 
Uma Afinita de sangue. 
— Minha Afinidade... 
— Sua Afinidade não a define. — Seu olhar cauterizou no dela; suas 
palavras cortando como metal batendo em pedra. — O que a define é como 
escolhe manejá-la. Você só precisa de alguém para ensiná-la a controlá-la. 
Ela adorava o jeito que ele dizia aquelas coisas – você não é um monstro; 
você só precisa de alguém para ensiná-la a controlá-la – como se fossem verdades 
simples. Era como se ele acreditasse nelas, e ela pudesse começar a acreditar 
também. 
— Como Yuri? — perguntou ela, pensando no amigo, um Afinita do 
fogo vários anos mais velho que ela, que trabalhava nas cozinhas do palácio 
como aprendiz do chefe. Sua Afinidade o tornou valioso. 
— Certo. Como Yuri. 
Luka se levantou e a puxou para cima. Estavam na margem do rio logo 
abaixo das muralhas do Palácio, um terreno abandonado. O rio os levara até 
os fundos do Palácio Salskoff; bem em frente a eles, Syvern Taiga começava 
em uma linha de pinheiros coloridos de inverno. 
Luka pegou a mão dela e se afastou da direção da ponte. 
— O que deveríamos fazer? 
 
O medo floresceu nela enquanto pensava em voltar ao Palácio,em 
enfrentar seu pai e a realidade do que havia feito. 
Mas o aperto de seu irmão aumentou e ele levou os dedos dela aos 
lábios, beijando suas unhas manchadas de sangue. Suas sobrancelhas 
estavam franzidas, seus olhos tempestuosos, mas gentis ao mesmo tempo. 
— Vamos voltar por uma passagem secreta que Markov me mostrou. 
Você vai se lavar em seus aposentos. A verdade do incidente no Vyntr'makt 
se perdeu na multidão e na confusão. Ninguém tem que saber. 
Sua mandíbula cerrou e ele ergueu o queixo ligeiramente, daquele jeito 
teimoso que ela conhecia tão bem. 
— Vou falar com papai. Direi a ele que você precisa de um tutor, como 
os que ensinam os Afinitas empregados no Palácio a aprimorar suas 
Afinidades. 
No entanto, naquela noite, papai tinha ido a seus aposentos, com as 
sobrancelhas franzidas. Ele muitas vezes vinha com mamãe para colocá-la na 
cama, mas desta vez, ele estava ao pé da cama dela, a distância entre eles se 
estendia por um oceano. 
Silenciosamente, ele a disse que ela teria que ficar dentro de casa por 
um tempo, pelo menos até que sua “condição” fosse embora. A história 
oficial para o mundo exterior era que a princesa estava doente, e sua saúde 
frágil tinha que ser preservada dentro dos muros do palácio. 
Ana caiu de joelhos, estendendo a mão para ele – e ele permaneceu 
onde estava, seu rosto esculpido em gelo. Isso a tinha quebrado um pouco 
mais. 
— Por favor — ela sussurrou —, não vai acontecer de novo. Eu nunca 
vou usar minha... minha Afinidade. Serei sua boa filha. 
Os olhos de papai estavam nublados. 
 
— É... não é aceitável que você seja uma Afinita — ele disse —, 
especialmente considerando sua Afinidade particular... Ela não deve ser 
amplamente conhecida, nem registrada em seus papéis. Tomaremos medidas 
para curar sua condição. É... para o seu próprio bem. 
Ana agarrou-se a essa pequena lasca de esperança. Talvez, se ela fosse 
curada, papai a amasse novamente. 
Dentro de uma lua, Papa contratou um tutor para “curar” Ana de sua 
Afinidade. Konsultant Imperator Sadov, eles o chamavam, e desde o 
momento em que Ana o conheceu, ela sabia que ele era feito de nada além de 
pesadelos. Ele parecia ter saído das sombras: uma silhueta alta e esguia, com 
cabelos e olhos escuros como pedra-negra, e dedos longos e brancos doentios. 
Sua cura centrou-se na teoria de que o medo e o veneno lavariam a Afinidade 
dela. 
E assim o mundo de Ana encolheu até os cantos do Palácio e as 
profundezas das masmorras, onde as paredes de pedra-negra sugavam toda 
a luz e calor do ar, e a escuridão a pressionava como uma coisa viva. 
— A maioria das Afinidades se manifesta lentamente, como uma 
consciência dos elementos de uma Afinita — disse Sadov, sua voz suave e 
fria como seda —, mas a sua explodiu, completamente fora de seu controle. 
Sabe por que isso acontece? 
Ana estremeceu. 
— Por que, Konsultant Imperator? 
— Porque você controla o sangue. — Ele tocou um dedo em seu queixo, 
e precisou de toda sua força de vontade para não recuar. — Porque você é um 
monstro. 
Naquela época, Mama adoeceu e, um ano após o incidente de 
Vyntr'makt, ela faleceu. Os cortesãos do palácio haviam sussurrado que havia 
 
sido um erro o Imperador tomar uma esposa de uma das etnias do sul de 
Cyrilia; algo em sua pele morena e cabelos escuros a fazia diferente. Algo que 
sua descendência havia herdado. Já havia murmúrios velados sobre a 
aparência distintamente Sulista do príncipe e da princesa, que se destacava 
entre os Cyrilianos do Norte de rosto pálido e cabelos louros que dominavam 
as classes dominantes de Cyrilia. Com a morte da mamãe e o confinamento 
de Ana, os rumores ficaram mais altos. 
Os humanos, ao que parecia, tendiam a temer coisas que eram 
diferentes. 
No entanto, foram as palavras de seu irmão naquele dia terrível que 
ficaram com Ana ao longo desses longos anos, nos trechos de escuridão e 
solidão, durante as piores raivas de Sadov e a frieza insensível de papai. 
Sua Afinidade não define você. 
O gosto amargo de Deys'voshk, queimando sua garganta e revirando 
seu estômago. 
O que a define é como você escolhe manejá-la. 
O medo nauseante, o frio da pedra-negra, o sangue pulsando nos 
pequenos coelhos que Sadov usava para testar suas habilidades, que nunca 
diminuíram nos dez anos seguintes. 
Você não é um monstro, sistrika. 
Ela queria desesperadamente acreditar nisso. 
Talvez as Divindades tivessem desejado que ela vivesse afinal de contas 
- e se não as Deidades, então Ana havia desejado viver. 
Era a esse pensamento que ela se agarrava agora, meio congelada e 
meio morta pela forte corrente do rio de Quedas Fantasma. Isso, e a memória 
de seu irmão, como uma chama firme e inabalável em seu coração, guiando-a 
adiante. 
 
Pois havia uma razão para ela viver, percebeu Ana, enquanto começava 
a emergir através dos acessos de sono e vigília grogue que, por sua vez, a 
reclamavam. Seus pensamentos surgiram através da escuridão e do frio, 
teimosamente, deliberadamente, como ela tinha feito naquele dia das 
profundezas geladas do rio. 
Sim, havia uma razão para ela viver. E era para encontrar o assassino de 
papai. 
 
*** 
 
A segunda vez que Ana quase se afogou, foi sob uma lua branca como 
osso, não muito diferente daquela que pairava sobre a Syvern Taiga esta 
noite, que esculpiu o mundo em monocromático. A noite de inverno de onze 
luas passadas tinha sido lançada na cor da morte. Ela entrou nos aposentos 
de seu pai para vê-lo convulsionando, seu rosto sem cor, seus olhos rolando 
em sua cabeça, o veneno e o sangue rugindo através dele como o grito 
distorcido de um rio. Ela tinha visto seu assassino, vestido com vestes 
brancas de oração, curvado sobre seu pai e derrubando o frasco de veneno. 
Ela avistou o rosto do homem momentos antes de ele correr: um rosto 
peculiar, mas familiar, como o de um homem morto, com olhos esbugalhados 
e careca. Ao luar, seu Deys'krug havia cortado prata como uma foice. O 
alquimista do Palácio. 
Alquimista. Assassino. Traidor. 
Ele era a razão de ela ter sido presa naquela noite. Ela foi encontrada 
muito tempo depois de ele ter fugido, ainda agarrada ao corpo de pai, coberta 
de sangue – o sangue envenenado que tentou tirar de seu corpo para salvá-lo. 
 
No final, ela perdeu o controle de sua Afinidade, e papai ainda morreu, bem 
na frente dela. 
E ela deveria ter morrido também, acusada de assassinar o Imperador e 
de ser uma traidora da Coroa. Enrolada contra as barras frias das masmorras 
do Palácio naquela noite, o sangue de seu pai ainda manchando suas mãos, 
nunca desejou tanto que ela não existisse, que ela nunca existisse. 
Porque você é um monstro. 
E mais uma vez, naquela noite, o destino, ou as Divindades, ou 
qualquer ditador perverso do curso das vidas, decidiu poupá-la. Ela acordou 
com o barulho das chaves e o ranger da porta de sua cela se abrindo. Um 
rosto envelhecido na escuridão com olhos cinzentos como nuvens e cabelos 
grisalhos. 
— Eu a sigo desde o dia em que você nasceu, então não me peça para 
ficar de lado e apenas assistir enquanto você morre — Markov disse a ela. 
— Não fui eu, não fui eu — ela balbuciou, agarrando-se a ele e caindo 
de joelhos. 
O rosto de Markov suavizou. 
— Eu acredito em você. Pegue o túnel e corra, princesa. Vou dizer a eles 
que você escapou quando eu estava te escoltando até aqui, e que você se 
afogou no Cauda do Tigre. — Ele acariciou suas lágrimas com seus polegares 
calejados. — Corra e viva. 
Viver. Isso parecia uma tarefa impossível. 
Mas Ana fechou os olhos, e aquele rosto voltou a ela: pálido como a lua, 
com grandes olhos de coruja. O alquimista, que havia deixado o Palácio 
tantos anos atrás, após seu diagnóstico. Parecia um sonho – não, um pesadelo 
– vê-lo ali novamente, um fantasma do passado. 
 
Mas um fantasma era toda a razão pela qual ela havia partido para 
viver. Aquele alquimista foi a razão pela qual ela correupor aquela passagem 
secreta nas masmorras naquela noite e se jogou no Cauda do Tigre pela 
segunda vez em sua vida; a razão pela qual se arrastou para a margem do 
Syvern Taiga, meio congelada por fora e morta por dentro, esperando que as 
Divindades a reivindicassem. No entanto, ele também era o motivo pelo qual 
estava de pé novamente naquela noite, olhando para o Palácio e a Ponte 
Kateryanna à distância e jurando que só voltaria quando o encontrasse. 
Sim, ela tinha uma razão para viver depois de todos esses longos anos, 
Ana percebeu de repente, seus pensamentos se aguçando em lucidez. Ela 
viveu para encontrar o dono daquele rosto, para caçar a pessoa que 
assassinou seu pai e a diagnosticou com essa aflição maligna, selando seu 
destino dez anos atrás. Ela viveu para se redimir, para provar que, além da 
monstruosidade de seu poder, ela poderia ser boa. 
Eu vou te encontrar, alquimista, pensou uma e outra vez, como um 
juramento. Eu vou te encontrar. 
 
 
 
5 
Ana acordou sobressaltada e o fantasma de um rosto se dispersando de 
seus sonhos. Levou vários momentos para ela compreender o que a cercava: 
o crepitar de um fogo queimando baixo na lareira, o cheiro de mofo de velhos 
pisos de pinho e o arranhar de um travesseiro de pano grosso sob sua 
bochecha. 
Ela se lembrava de lampejos da noite – o frio, a escuridão, o cheiro e a 
prata da neve, uma banheira quente. Ela tinha conseguido. Ela conseguiu 
voltar para a dacha. 
Ana agarrou o cobertor de pele esfarrapado com mais força, a surpresa 
latejando em seu estômago. Como ela tinha voltado? Lembrou-se da queda 
no rio, da sensação de total impotência sob a forte correnteza e depois rastejar 
para uma margem vazia e congelada. Suas roupas estavam mais frias que 
gelo, e ela mal conseguia se mexer. 
Você pode andar, querida? 
Ana piscou. A voz veio do nada – de uma memória nebulosa e distante. 
Havia uma floresta, um grama de calor, e aquela voz constantemente, 
irritada, a arrastava do conforto do sono. 
O medo tomou conta dela. Agora ela reconhecia os sintomas de quase 
hipotermia que estava experimentando, e quão perto da morte estava. Aquela 
escuridão quente tinha sido uma ameaça... e a voz a salvou. 
Ramson Quicktongue, pensou, seu cérebro sonolento subitamente alerta 
enquanto ela examinava a cabana. Tudo estava exatamente como ela havia 
deixado. Sua mochila estava encostada na parede, seus pertences espalhados 
 
pela pequena mesa de trabalho. Nenhum sinal de perturbação; nenhum sinal 
de qualquer intruso. 
Ana soltou um suspiro e se empurrou para uma posição sentada. 
Alguém havia lavado o sangue de seu braço, mas a ferida ainda estava crua e 
fresca. Ela se lembrava agora, uma garotinha de cabelo escuro, as pontas 
suavizadas pelo brilho das velas, quase como uma auréola. 
— May? — chamou suavemente. A cabana estava completamente 
quieta. Ela se recostou na parede, tentando acalmar sua ansiedade. O 
criminoso também não estava à vista. Os restos do Deys'voshk ainda estavam 
em seu sistema; ela podia sentir sua Afinidade começando a retornar, 
entrando e saindo de seu alcance. Tentar usá-la agora era como tentar atear 
fogo em gravetos molhados. 
Da porta do lavabo no canto mais distante veio o som de água 
espirrando. Os movimentos eram muito descuidados para ser May. Uma 
tosse masculina confirmou suas suspeitas. 
O criminoso ainda estava aqui. 
Ana cerrou os dentes contra um gemido de frustração. Ela passou 
meses procurando por este homem. Depositou todas as suas esperanças, e 
mais, nele. E ele a enganou, e admitiu que não tinha a menor ideia de quem 
era seu alquimista. 
E agora ela estava presa a ele. 
A porta da cabana se abriu. Seus pensamentos se dispersaram enquanto 
uma criança lutava com um balde de neve fresca. Assim que May viu Ana, 
seus olhos se arregalaram e ela largou o balde, saltando para o lado de Ana. 
Ana suspirou de alívio enquanto se enterrava no abraço de May. 
— Ei, você — ela murmurou. Estar com May sempre, de certa forma, 
era como estar em casa. 
 
A escuridão na floresta boreal tinha sido absoluta na noite em que Ana 
se deparou com a Syvern Taiga, embora não fosse nada comparado às 
sombras em seu coração. Mas May a encontrou e a abrigou sob o brilho suave 
de um globo de fogo. May estava vinculada por um contrato na época, mas 
isso não a impediu de tentar salvar Ana, sem o conhecimento de seu 
empregador. 
May se endireitou e encarou Ana com um olhar severo. Seus olhos eram 
a surpreendente água-marinha das águas oceânicas das Ilhas Asática que Ana 
tinha visto certa vez em uma pintura, beijadas pelo sol e quentes. Ana tocou 
sua testa brevemente na da criança, seus lábios puxando em um sorriso. 
— Você conseguiu o alquimista? — May exigiu. Onze luas atrás, 
quando elas se conheceram, ela estava muito mais quieta, suas palavras um 
sussurro leve. Apenas seus olhos rápidos diziam a Ana que ela bebia do 
mundo e o recolhia em seu coração, e retribuía com uma bondade que nunca 
havia sido demonstrada a ela. 
— Quase. — Ver May sempre clareava sua mente e acalmava seus 
nervos, e a palavra quase parecia real. — Você estava bem sozinha? 
May assentiu e uma pedra de cobre apareceu em suas mãos. 
— Eu tenho três moedas sobrando. Você os quer de volta? — A pedra 
de cobre captou o brilho da luz do fogo, uma pequena folha gravada no 
centro da moeda. 
Ana hesitou. Ela sabia o que aquelas moedas significavam para May, 
que passara a vida acumulando parcas somas de dinheiro para pagar a 
quantia impossível do contrato que fora obrigada a assinar. No passado, Ana 
poderia ter gasto dezenas de moedas em um pedaço de bolo de leite 
ptychy'moloko, moedas escorrendo por seus dedos como água sem se 
importar com o valor. 
 
O encontro com May havia mudado isso. 
Ana gentilmente enrolou uma mão em torno da mão de May, colocando 
a moeda de volta no punho da garota. 
— Nós conquistamos isso juntas. Fique com ele, e vamos comprar uma 
guloseima na próxima cidade. 
May colocou a moeda cuidadosamente de volta em sua túnica. 
— Você acha que vamos encontrar Ma-ma na próxima cidade? — ela 
perguntou. 
Ana fez uma pausa, estudando o rosto de May cuidadosamente, mas o 
olhar esperançoso da criança não vacilou. Assombrava Ana que essa garota 
amasse tão facilmente depois do que passou. Com o tempo, Ana juntou a 
história da criança: uma longa jornada do reino de Chi'gon, sua casa na 
região Asática, com sua mãe em busca de um futuro melhor, apenas para 
encontrar esses sonhos desfeitos e sua mãe mandada para longe por um 
contrato separado. 
E May havia sido explorada por sua Afinidade com a terra e presa a 
uma dívida que não parava de crescer. 
A cada dia, a percepção ficava cada vez mais alta na cabeça de Ana: 
poderia ter sido eu. 
— Vamos — respondeu Ana —, encontraremos sua mãe, mesmo que eu 
tenha que bater em todas as portas deste império. 
O sorriso de May se alargou, e ela jogou os braços ao redor de Ana, 
enterrando o rosto contra a camisa de Ana. 
— Você não vai sair de novo, certo? — Sua voz saiu abafada, e quando 
Ana olhou para baixo, ela pegou um par de olhos brilhantes do oceano 
olhando-a timidamente. — Não vá para onde eu não posso seguir. 
 
Um nó se formou na garganta de Ana. Ela conhecia a dor de ter perdido 
uma mãe em uma idade tão jovem. A sensação de que você tinha feito algo 
errado, que poderia ser abandonada por aqueles que amava novamente, 
nunca foi embora. 
Então Ana apertou May com força nos braços e sussurrou: 
— Estarei sempre aqui. 
O som de água espirrando chamou a atenção de ambas para o lavabo. 
Os olhos de May se estreitaram. 
— Aquele homem estranho trouxe você para casa, e porque ele meio 
que salvou sua vida, eu o disse que ele poderia tomar um banho quente antes 
de sair — disse ela. 
Ana sentiu seus lábios se curvando apesar de si mesma. 
— Garota esperta — ela disse conspiratoriamente. 
— Ele estava fedendo. E sujo.— Eu sei — disse Ana —, ele é nojento, estúpido e feio. — Era imaturo, 
mas era bom dizer de qualquer maneira. 
A porta do lavabo se abriu. 
Em um piscar de olhos, Ana se levantou da cama e empurrou May atrás 
de si. Seu braço ferido latejou com o movimento repentino, mas toda a sua 
atenção estava focada em Ramson Quicktongue. 
Ele se barbeou e limpou a sujeira do rosto. Agora podia ver que ele era 
muito mais jovem do que ela imaginava, talvez apenas alguns anos mais 
velho do que ela. Seu cabelo ruivo desgrenhado enrolado na testa, gotas de 
água traçando um caminho por suas bochechas esculpidas. O contraste de 
seu estado imundo e desleixado anterior o fez parecer surpreendentemente 
bonito, o tipo de rosto de boa aparência malandro mais condizente com um 
 
fuzileiro Bregoniano ou uma patrulha Imperial Ciriliana do que um bandido 
subterrâneo sombrio. 
Quicktongue atirou um sorriso para May. Ana imaginou que tinha 
presas. 
— Olá, querida. 
— Não fale com ela — Ana rosnou. Ela se virou e disse rapidamente: —, 
May, por favor, vá tomar um banho. 
A criança pegou o balde de neve e deslizou para dentro do lavatório. 
Ela se virou e, olhando para Ramson, passou um dedo pelo pescoço antes de 
fechar a porta. Um clique satisfatório soou quando a porta se fechou, e o 
coração de Ana se acalmou. 
Ela virou para Quicktongue. 
Ele estava machucado; em seus pulsos, onde terminavam as mangas de 
sua túnica, manchas vermelhas raivosas brotavam de onde ela havia rompido 
os vasos sanguíneos. A culpa se agitou em seu estômago, mas ela a forçou 
para baixo. Ele não hesitou em usá-la e traí-la. A culpa era uma emoção 
desperdiçada neste tipo de homem. 
A boca de Quicktongue se curvou em um sorriso que era ao mesmo 
tempo desonesto e encantador. 
— Bem, Ana, amor — disse ele, e suas entranhas ficaram frias —, aqui 
estamos. Você pediu minha ajuda, e eu pedi uma saída de Quedas Fantasma. 
Se, ao menos, os desejos se realizassem todos os dias. 
Ana engoliu uma resposta afiada. Esta não era uma discussão que ela 
estava tendo com Luka ou Yuri. Esta era uma postura calculada contra um 
inimigo. Não havia como saber o que ele estava planejando e o que estava 
escondendo dela – até mesmo seu sotaque, notou, havia mudado um pouco 
da noite anterior. Ela tinha que andar com muito cuidado. 
 
— Eu entreguei minha parte do trato — disse ela em vez disso. — 
Agora é sua vez. — Ela reprimiu o desejo de lembrá-lo de sua Afinidade, 
apenas para provar que poderia machucá-lo se quisesse. Que ela ainda tinha 
algum poder sobre ele. Que seu plano não tinha ido para... nada. — Eu não 
me importo se você não tem ideia de quem ele é ou onde está. Você vai me 
ajudar a encontrar o alquimista, e vai fazer isso em duas semanas. Já ouvi o 
suficiente de sua reputação e sei que você é capaz disso. 
Ele tinha que ser. Todas as outras buscas, caçadores de recompensas ou 
rastreadores pagos, levaram a becos sem saída. Ramson Quicktongue era sua 
última chance. 
Ana não disse isso. 
Quicktongue ergueu as sobrancelhas. 
— Você ouviu o suficiente da minha reputação — ele repetiu, como se 
saboreando as palavras em sua língua. Ele quase parecia satisfeito, mas então 
seus olhos se estreitaram —, e o que te faz pensar que eu vou te ajudar, agora 
que estou livre como um pássaro? 
Criminoso, conivente e traiçoeiro. Se ele queria jogar sujo, que assim 
fosse. 
Ela poderia ameaçá-lo. O pensamento permaneceu em sua mente por 
um tempo: uma coisa feia e distorcida que não queria trazer à luz. 
Mostre a ele o que você pode fazer, meu monstrinho. 
— Você se lembra do que eu fiz na prisão? — A memória do carmesim 
se acumulando nos corredores de mármore branco passou por sua mente. 
Enojou-a trazer isso à tona, mas ela forçou. — Eu poderia fazer o mesmo com 
você. — Ela deu um passo mais perto, a alegria empurrando-a para frente, a 
emoção do perigo atraindo-a para ele. — Você pode imaginar como seria 
morrer com sangue vazando de você, gota a gota? 
 
— Eu admito, isso doeu. — Ele molhou os lábios. — Mas há coisas 
piores a temer na vida. Seja qual for a tortura que você está pensando, eu 
provavelmente já passei por isso. Suponho que isso torna extremamente 
difícil me ameaçar, não é? 
Ana respirou fundo. Ele estava blefando... tinha que estar. E ele a estava 
desafiando a gritar seu blefe. Seus olhos se enrugaram enquanto a observava, 
esperando por sua resposta. Aqueles olhos eram olhos astutos, rápidos e 
inteligentes... mas não eram olhos de covarde. Eles não tinham medo. 
Ele aprenderia a temê-la. Assim como todo mundo aprendeu. 
Ana lhe lançou seu sorriso mais feroz. Sua Afinidade se agitou. Contra 
os remanescentes do Deys'voshk, ainda era fraca, mas cada vez mais forte. 
— Muitos outros cantaram a mesma música no início. Eu os tinha 
rastejando aos meus pés em poucos minutos. 
— Parece que você tem experiência. 
— Você não sabe nada do que eu passei. Vou perguntar mais uma vez, 
e espero, para o seu bem, que dê a resposta certa. Você vai me ajudar a 
encontrar meu alquimista? 
— Eu vou. 
Ana piscou. Os pensamentos sinistros, as memórias distorcidas e a 
atração de sua Afinidade se dissolveram. Tudo o que restou foi o crepitar do 
fogo na lareira, os sons de respingos do lavatório e o zumbido abafado de 
uma criança. 
— Você parece assustada. — Ramson Quicktongue ergueu as 
sobrancelhas. 
Se ela tinha conseguido o que queria, por que parecia que ele tinha 
vencido? Ana cruzou os braços, seu cérebro zumbindo enquanto ela falava. O 
que ela havia perdido? 
 
— Eu não acredito em você. — O que você está jogando? 
— Uma decisão sábia. Afinal, sou um homem de negócios. — Seu olhar 
se aguçou. — Nunca dou nada sem pedir algo em troca. 
A raiva cresceu nela, afiada e quente. 
— Em troca? Eu tirei você daquela prisão. Eu salvei você de apodrecer 
naquela cela. Você me deve. 
— Eu não pedi para você me libertar. Sugeri uma troca, mas não 
concordamos com nada. — Quicktongue falou em tom de conversa, como se 
estivessem negociando o preço das beterrabas em um mercado. 
Ana estava negociando por sua vida. 
— Então, eu não devo nada a você, Bruxa — ele continuou, cutucando 
uma unha —, mas eu estaria disposto a falar a linguagem dos negócios. 
Sua voz saiu em um rosnado. 
— Você acha que está em posição de pedir alguma coisa? 
— Ah, eu sei. Você tem me ameaçado com tortura nos últimos minutos. 
Se realmente quisesse fazer isso, você já teria feito isso. Claramente, você 
precisa de mim. Então, vamos parar de dançar em torno do assunto e vamos 
ao acordo, certo? 
Ele a havia chamado de blefe. O coração de Ana disparou quando ela 
olhou para o criminoso, recusando-se a quebrar o contato visual primeiro. 
Papai sempre lhe ensinara que o contato visual forte era uma demonstração 
de confiança. Mas mesmo enquanto ela lutava por uma resposta, percebeu 
que sua confiança estava diminuindo. 
Pirralha. Ela ouviu a voz de seu irmão em sua cabeça, viu o brilho de 
inteligência em seus olhos quando ele se inclinou sobre o jogo de xadrez. 
Pense. 
 
Luka havia dito a ela que uma negociação era como um jogo de xadrez. 
Para ter sucesso, era preciso considerar o fim do jogo acima de tudo. Parecia 
uma lição tão óbvia na época, mas Ana se viu agarrando-a com força agora. 
Seu objetivo, seu objetivo final, era fazer com que ele encontrasse o 
alquimista, o verdadeiro assassino. E agora o criminoso queria algo mais dela 
em troca. 
Por que não? Afinal, o que mais ela tinha a perder? 
Talvez nem todos os movimentos precisassem ser triunfantes, desde 
que ela estivesse se movendo em direção ao seu fim de jogo. 
— O que é que você quer? — ela perguntou, levantando o queixo. 
Dessa forma, era fácil fingir que ela era uma princesa concedendo um favor, 
não um ninguém implorando por ajuda. 
— Vingança — disse o criminoso. 
— E você acha que eu posso ajudá-lo a conseguir isso? 
— Talvez. Você está, afinal, me ameaçandocom seu poder sobre meu 
ser mortal. 
Claro, claro que ele queria usá-la por sua Afinidade. Ana estreitou os 
olhos. A voz de Luka sussurrou para ela, gentilmente a empurrando. Seja 
específica. Acerte os detalhes. 
— Diga-me o que seu esquema de vingança implica. E seja específico. 
O sorriso de Quicktongue se alargou como se ele encontrasse algo 
delicioso em sua resposta. 
— Tudo bem, serei específico. Planejo destruir meus inimigos um por um 
e retomar minha posição e o que era meu por direito. Para isso, vou precisar 
de um aliado. Alguém poderoso. E pelas Divindades... — ele deu a ela um 
olhar que era de alguma forma ao mesmo tempo carinhoso e calculista — 
você deve ser a Afinita de carne mais poderosa que eu já vi. 
 
Afinita de Carne. Ana quase soltou um suspiro de alívio. Carne, não 
sangue. Ela tinha guardado bem o seu segredo, e era imperativo que Ramson 
Quicktongue continuasse a pensar que ela era uma Afinita de carne. Porque 
enquanto havia centenas de Afinitas de carne, trabalhando como 
açougueiros, soldados ou guardas, havia apenas uma Bruxa de Sangue de 
Salskoff. 
Ramson Quicktongue não era tão inteligente quanto pensava. 
— Eu não vou matar ninguém por você, se é isso o que quer. 
— Matar? Eu nunca disse “matar”. Disse “destruir”. Há muitas 
maneiras de destruir um homem além de tirar sua vida. 
Os bartenders e caçadores de recompensas descreveram Ramson 
Quicktongue como astuto e implacável. Ela não os tinha entendido, até agora. 
Ana endureceu seus nervos. Ela ditava os termos, não ele. E ela nunca 
escolheria prejudicar pessoas inocentes. 
Sério? Sadov sussurrou em sua cabeça. Pequeno monstro, você se acha tão 
justa? Realmente acha que está acima desse criminoso, quando você tem tanto sangue 
em suas mãos... 
— Sem tortura — disse Ana em voz alta —, sem matar. Eu devo decidir 
como usar minha Afinidade em nossa aliança. Vou garantir que nenhum mal 
aconteça a você e que você possa despachar seus inimigos como desejar. Se 
concordar com esses termos, prometerei minha aliança a você por duas 
semanas. Depois de encontrar meu alquimista. 
Ele estreitou os olhos, batendo um dedo no queixo pensativo. 
— Três semanas — disse —, e em troca, quero três semanas para 
encontrar seu alquimista também. 
— Concordamos em duas. 
— Nunca concordei; eu considerei. 
 
— Não se prenda a detalhes técnicos. 
— Não seja teimosa. Nós dois sabemos que você precisa de mim, e eu 
preciso de você. É por isso que ainda estamos aqui, conversando de forma 
civilizada. Três semanas, Bruxa, isso é justo. Olha, vou fazer uma troca com 
você, para mostrar minha boa vontade. 
Ele parecia sincero, o que a deixou ainda mais cautelosa. 
— O quê? 
— Uma Troca. A promessa de um criminoso. 
— Você percebe que acabou de se contradizer, não é? 
Os cantos de seus olhos se enrugaram. 
— Acredite ou não, existe um código de honra entre os ladrões do 
submundo. A Troca. É um contrato de troca mutuamente benéfica. Pense 
nisso mais como um... um tipo de moeda, para nós. Uma vez que você 
invocar a Troca, não há como negar, caso contrário, você enfrentará 
consequências terríveis. 
— Por que isso importa? Você enfrentará consequências terríveis se 
renegar sua oferta, com Troca ou sem Troca. 
O criminoso suspirou. 
— Olha. Eu vou encontrar seu alquimista — ele disse, e Ana sentiu a 
esperança farfalhar suas asas dentro de si —, farei isso em três semanas. Eu 
poderia rastrear o jetsam2 de volta ao navio, se quisesse. E em troca, você 
jurará fidelidade a mim por três semanas. 
Parecia bastante simples. 
 
2 Material ou mercadorias indesejadas que foram jogadas ao mar de um navio e lavadas em terra, 
especialmente material que foi descartado para aliviar o navio. 
 
— Tudo bem — disse Ana. Sua mente estava trabalhando rápido, 
procurando buracos no acordo, abotoando o último dos termos —, então você 
concorda com meus termos? 
Ramson Quicktongue a olhou daquele jeito calculista e inescrutável 
dele, mas Ana sentiu algo mais em seu olhar. Algo como... curiosidade. 
— Muito bem — disse ele finalmente, e se empurrou para fora da 
parede, jogando a toalha no chão —, eu concordo com seus termos. Seis 
semanas juntos, durante as quais eu mantenho meu nariz fora de seus 
negócios e você mantém seu nariz fora do meu. Você terá sua vingança, eu 
terei a minha, e nos separaremos com nada além de boas lembranças um do 
outro. — Ele abriu os braços. — O que você diz, Bruxa? Troca feita? 
Sua cabeça estava leve com júbilo e descrença. Era como se um peso 
enorme tivesse saído de seu peito. 
Ela sobreviveu a uma fuga de uma das prisões mais seguras do Império 
e conseguiu que um dos bandidos mais infames do Império Cyriliano 
concordasse com uma barganha em seus termos. E, o mais importante, dentro 
de três semanas, ela teria o verdadeiro assassino daquela noite inesquecível. 
Levou quase um ano inteiro para ela chegar aqui. Várias luas para sair 
do buraco negro que a morte de papai havia deixado em seu coração; vários 
outras desperdiçadas em caçadores de recompensas e rastreadores que não 
chegaram a lugar algum; mais algumas para encontrar Quicktongue e formar 
um plano para entrar em Quedas Fantasma. 
Ela estava perto. Tão perto. 
Quase um ano atrás, papai foi assassinado e tudo em sua vida 
desmoronou. E, em três semanas, ela estaria a caminho de Salskoff para 
limpar seu nome. 
Esse era seu jogo final. 
 
Ana olhou para a mão de Quicktongue. No sorriso torto em seu rosto. 
No brilho de intenção em seus olhos. 
— Troca feita — ela repetiu, e agarrou sua palma. 
 
 
6 
Ramson acordou muito antes da primeira luz do amanhecer, seus frios 
raios azuis filtrando-se pelas cortinas esfarrapadas e beirando a janela fina. 
Ele se inclinou contra as paredes de madeira do barraco, passando os dedos 
pela parte interna do pulso esquerdo. 
Uma tatuagem do tamanho de seu polegar ocupava aquele local: um 
desenho simples e elegante de um único talo de lírio do vale, com três 
pequenas flores em forma de sino e um caule afiado. A tinta era negra como a 
noite, esculpida tão profundamente em sua pele que se tornou parte de sua 
carne viva, assim como a Ordem do Lírio consumiu sua vida. E depois a 
destruiu. 
A visão da tatuagem trouxe de volta memórias tão vívidas quanto 
dolorosas. Era como se nenhum tempo e todo o tempo do mundo tivesse 
passado desde que ele tropeçou nos degraus de mármore reluzentes da casa 
de Alaric Esson Kerlan. Kerlan foi o fundador da maior empresa de negócios 
em Cyrilia. O extenso Grupo de Negociações Água-Dourada detinha 
monopólios sobre a maioria das indústrias proeminentes do Império – 
madeira, metais não ferrosos, armamento e a preciosa pedra-negra extraída 
no extremo norte do Triângulo de Krazyast –, bem como a propriedade 
privada do porto comercial mais movimentado de Cyrilia, Porto Água-
Dourada. 
O porto comercial que Ramson tinha dirigido, até várias luas atrás. 
Mas poucos associavam o Grupo de Negociações Água-Dourada à 
organização criminosa mais notória de Cyrilia: a Ordem do Lírio, que 
 
administrava negócios clandestinos com traficantes e comércios afins ilegais. 
O trabalho contratado era a espinha dorsal do Grupo de Negociações Água-
Dourada, e os contratos de trabalho baratos que ele comprou da organização 
criminosa de seu proprietário ajudaram a manter seus preços mais baixos nos 
mercados Cyrilianos. 
Em meio a tudo isso estava Alaric Kerlan: empresário bem-sucedido 
que havia construído seu império comercial como estrangeiro em Cyrilia com 
apenas uma pedra de polícia em seu nome, e implacável Senhor dos Lírios no 
submundo escuro de Cyrilia. 
No dia da iniciação de Ramson, Kerlan o amarrou a uma dura mesa de 
ferro em seu porão e esmagou uma pinça incandescente na carne de seu 
peito. Você sente isso, garoto? ele gritou para um Ramson gritando e meio 
delirante. Você só sentirá dor assim duas vezes na vida. A primeiravez, quando 
ganhou minha confiança e passou pelos portões do inferno para a Ordem do Lírio. A 
segunda vez, quando você quebrar essa confiança e eu te jogar de volta no inferno. 
Então, lembre-se deste momento, e lembre-se bem. E pergunte a si mesmo se você quer 
sentir esse tipo de dor novamente. 
Kerlan jogou as pinças de ferro no chão e pediu ao mestre de estêncil 
para tatuar Ramson. 
Ramson fechou a mão sobre o pulso, bloqueando a visão da tatuagem e 
a memória da dor lancinante da marca. No brilho azul-prateado de um 
amanhecer invernal iminente, ele podia apenas distinguir os contornos das 
duas garotas adormecidas, encolhidas sob um cobertor de pele esfarrapado, 
seus peitos subindo e descendo a cada respiração. 
O que significava que era hora de ele se mover. 
Ele atravessou a dacha, cuidadosamente plantando os pés perto das 
paredes onde as velhas tábuas de madeira tinham menos flexibilidade. Ele 
 
notou a pequena mesa de trabalho ao lado da porta assim que entrou na noite 
passada. Sua superfície desgastada estava coberta de papéis, pergaminhos e 
canetas. 
A vida havia ensinado a Ramson que ele nunca se permitiria pegar a 
ponta mais curta do bastão. Mesmo quando as condições para o fim da Troca 
haviam saído de sua língua, suaves como bolas de gude, outro plano 
rapidamente tomou forma em sua mente. 
Esta garota era, de longe, a Afinita mais poderosa que ele tinha visto 
neste império durante todos os seus anos de trabalho para a organização de 
Kerlan. Ele estudou o suficiente sobre Afinitas para supor que, a dela era, 
provavelmente, uma Afinidade com a carne. Ele poderia elaborar uma lista 
interminável de pessoas que matariam por seus talentos. E era por isso que 
ela era a chave para ele recuperar sua posição na Ordem do Lírio. 
Alaric Kerlan era uma pessoa dura e brutal, o tipo de demônio de olhos 
frios e de pedra de um homem que precisava ser para ter sucesso em seu 
vasto império criminoso, mas também era lógico. Ele tinha visto o incrível 
talento de Ramson para comércios e negociação desde o início, e o treinou 
desde pequenos recados até o gerenciamento gradual de partes de sua 
empresa. Aos dezoito anos, Ramson tornou-se um deputado da Ordem com o 
precioso Porto Água-Dourada sob sua alçada. Controlar o maior porto de 
Cyrilia significava que ele segurava uma mão e um corte generoso no sangue 
vital de comércio exterior de Cyrilia, de qualquer coisa tão inofensiva quanto 
peixe Bregoniano e cacau nandjian ao poderoso armamento kemeirano. 
Também significava que ele tinha o poder de começar a se distanciar da 
Ordem do Lírio. Durante a maior parte de seu emprego sob Kerlan, Ramson 
tinha sido um grumete executando tarefas domésticas e conduzindo 
esquemas paralelos para aumentar as margens da organização criminosa. Ele 
 
tinha ouvido falar dos negócios de sangue que eles realizavam, mas com a 
pouca liberdade que teve para escolher seus projetos, ele continuou a enganar 
homens ricos e empresários trapaceiros: derrubar concorrentes do Grupo de 
Negociações Água-Dourada para permitir que mantivesse seu monopólio no 
Império. 
Os atos mais sombrios da Ordem – assassinatos e tráfico – estavam 
além do que Ramson podia suportar, e ele se esforçou para evitar ser 
designado para tais tarefas. 
Até um ano atrás, quando Kerlan o escolheu para uma missão suicida 
que resultou em sua prisão, despojado de sua classificação e jogado em 
Quedas Fantasma. 
Ele falhou com Kerlan de muitas maneiras: estragou o trabalho mais 
importante de sua vida, deixou a Ordem sem um representante e deixou seu 
traidor vagando livre durante sua prisão. 
Ele consertaria tudo isso; com a ajuda da bruxa, ele acabaria com a 
toupeira nas fileiras de Kerlan e abriria caminho de volta como legítimo 
Deputado da Ordem, Mestre Portuário do Porto de Água-Dourada. E quando 
tudo isso estivesse feito... ele a entregaria para Kerlan. Ter uma Afinita tão 
poderosa quanto ela sob o controle da Ordem seria a cereja no topo do bolo. 
Ele pegaria de volta, pegaria tudo de volta. Seu título. Sua fortuna. Seu 
poder. 
Mas Ramson não se tornou o ex-deputado da rede criminosa mais 
notória do Império apenas por sorte. Ele era meticuloso e calculista em todos 
os aspectos de seu trabalho, e fazia um esforço para entender tudo, até as 
cores das cortinas das janelas e lençóis de seus associados. Não havia nada 
que não valesse a pena conhecer. 
 
E se havia alguma diligência a ser feita nesta pequena dacha em ruínas, 
tinha que ser na mesa de trabalho. 
A mesa estava repleta de objetos – uma riqueza de informações. Ele 
espalmou alguns globos de fogo empoeirados que haviam queimado, 
reduzidos a esferas de vidro vazias cheias de cinzas, e cuidadosamente 
empurrou para o lado alguns pergaminhos em branco e lápis de carvão. 
A primeira coisa que descobriu foi um livro, com a capa gasta a ponto 
de ele mal conseguir distinguir o título: Histórias de Crianças Asáticas. Alguém 
havia escrito várias linhas de um poema na capa interna; a caligrafia elegante 
lembrava a de um escriba profissional. 
 
Minha criança, somos apenas poeiras e estrelas. 
 
Ramson deixou o livro de lado. 
Ele pegou uma dúzia de pergaminhos em branco antes de encontrar o 
tesouro na forma de um mapa. 
Com dedos experientes, ele o soltou. O mapa se abriu com um suspiro. 
Como o livro infantil, mostrava sinais de desgaste: alguém havia feito 
anotações a lápis por todo o contorno do Império com a mesma bela 
caligrafia. Algumas das notas estavam manchadas pelo tempo, enquanto 
outras eram tão novas quanto um contrato recém-cunhado. 
As notas eram breves, mas diretas, escritas em Cyriliano formal. 
Buzhny, lia-se, diretamente em cima de onde a pequena cidade de Buzhny 
poderia estar no mapa. Investigação; nenhum sinal do alquimista. 
Pyedbogorozhk, disse outro; Inquérito para caçador de recompensas. Nome 
recebido do comerciante. 
 
O mapa era ouro. A bruxa – se isso fosse, de fato, seu mapa e sua 
caligrafia – escrevera a história de sua missão misteriosa por todo o mapa 
como um conjunto de pegadas. Ramson o colocou de lado com cuidado para 
examinar o resto dos itens na mesa antes de retornar a ele. 
Seus olhos se detiveram em algo no canto de uma página: o contorno de 
meio rosto, espiando da pilha. 
Ramson estendeu a mão para ele com muita ansiedade. As mangas de 
sua túnica ficaram presas em um pergaminho. Os papéis deslizaram, caindo 
em cascata em uma graciosa piscina na mesa de trabalho. Como se quisessem 
ser vistos. 
Eram esboços. Dezenas deles, espalhando-se umas sobre as outras na 
superfície áspera da mesa. Ele vislumbrou um cachorro de pelo desgrenhado, 
encolhido perto de uma fogueira; partes de um castelo abobadado no que 
parecia ser uma paisagem invernal; uma linda mulher de olhos de corça com 
longas madeixas... 
Mas seus olhos pousaram em um, esvoaçando na beirada da mesa 
como se tivesse vida própria. Um menino, em sua adolescência, pego no meio 
da risada, a alegria em seus olhos quase palpável. Tanto cuidado e esforço 
foram colocados neste desenho, as linhas traçadas com perfeição, cada 
detalhe gravado nas rugas de seus olhos e na curva de sua boca. Ainda assim, 
estava incompleto, apenas metade de um rosto. Parecia que o artista só queria 
capturar a vida no momento da risada. 
— Saia daí. 
Ramson praguejou e se virou. 
A bruxa estava de pé, seu contorno rígido de fúria. No quarto semi-
iluminado, ele podia ver o aperto de sua mandíbula e o brilho de seus olhos 
semicerrados. 
 
— Abaixe isso, a menos que você queira que eu te rasgue em pedaços 
neste instante. 
Quaisquer desculpas que havia planejado se dissiparam em fumaça. Ele 
já havia sido pego em flagrante antes; Ramson descobriu que a melhor tática 
era admitir a culpa e mentir para sair dali. Até agora, ele teve sorte. 
Ele deslizou os esboços cuidadosamente de volta para a mesa. Os olhos 
da garota seguiram cada movimento dele.— Me desculpe — disse, injetando tanta sinceridade em seu tom quanto 
podia —, eu estava procurando um mapa. 
— Saia daí — ela estalou novamente, e ele obedeceu. Ela estava à mesa 
em um instante, seus dedos correndo pelos papéis, verificando para ter 
certeza de que nada estava faltando. Ela pegou o esboço do menino e olhou 
para Ramson, lívida. Por um segundo, pensou que ela mudaria de ideia e o 
mataria na hora. Mas, então, ela respirou fundo e tirou uma mecha de cabelo 
escuro de seu rosto. Como se tivesse limpado uma lousa, a fúria em sua 
expressão se foi, substituída por uma severidade fria —, fizemos uma Troca 
ontem à noite. Você tem um jeito engraçado de mostrar diplomacia. 
— Bem, você sabe o que dizem sobre diplomacia. É a única maneira 
adequada de duas partes mentirem na cara uma da outra e ficarem felizes 
com isso. 
— Não me dê sermão. 
Ramson ergueu as mãos. 
— Tudo bem, eu estava bisbilhotando. Mas, como você disse, fizemos 
uma Troca, então qual é o sentido de ficarmos presos um ao outro pelas 
próximas seis semanas se não podemos confiar um no outro? 
 
Atrás deles, na cama, May havia se sentado e escutava com a cabeça 
inclinada para o lado. Os olhos da bruxa se voltaram para a garota e sua 
expressão suavizou momentaneamente. 
— Tudo bem — disse ela, baixando a voz enquanto se voltava para 
Ramson —, já que você mencionou “confiança”. Aqui. 
Ramson pegou o desenho que ela lhe ofereceu. Este esboço foi envolto 
em sombras. Enquanto os outros pareciam capturar momentos e memórias, 
este capturou o assunto como um retrato. Ele reconheceu o homem na 
página: careca, com olhos grandes e desconfiados que estavam bem afastados 
de seu nariz fino. Era um esboço do mesmo homem que ela lhe mostrara na 
prisão. 
Seu alquimista. 
Este esboço tinha os mesmos detalhes meticulosos do outro, que 
provavelmente havia sido destruído em sua escapada na cachoeira. Ramson 
estudou o desenho mais de perto, observando as vestes brancas de sacerdote 
do homem e a argola das quatro Divindades penduradas em seu pescoço. 
— Este é um bom começo, Bruxa. Eu preciso que você me diga tudo o 
que sabe sobre ele. 
— Ele trabalhou no Palácio Salskoff dez anos atrás. Ele desapareceu e 
estava de volta em... em Salskoff onze luas atrás. 
Ele esperou por mais, mas ela fechou a boca com força. 
— É isso? 
— Eu não sei mais nada — disse ela secamente. Seus olhos ardiam, e 
suas mãos se fecharam em punhos enquanto falava. Quem quer que fosse 
esse homem, essa garota tinha uma dívida a pagar com ele. 
Ele descobriria o porquê em breve. Por enquanto, Ramson decidiu fazer 
uma pergunta diferente. 
 
— Um alquimista, você diz — ele meditou —, ele era um Afinita? 
Muitos alquimistas possuíam Afinidades únicas e foram contratados 
pela crosta superior de Cyrilia para prolongar e fortalecer vidas com suas 
práticas peculiares. Alguns dos alquimistas mais poderosos, Ramson ouvira 
falar, tinham Afinidades metafísicas. Dor. Calma. Felicidade. Intangíveis, 
cobiçados por quem tinha moedas de sobra. 
— Eu não tenho certeza — disse a bruxa, enrolando uma mecha de seu 
cabelo atrás da orelha. Ramson já havia percebido isso como um tique 
nervoso dela, como o jeito que mexia com o capuz —, ele preparava 
Deys'voshk e outros elixires. 
Provavelmente um Afinita, então. Sua mente se deteve em outro 
detalhe, no Deys'krug e nas vestes de oração. 
— Ele era um padre... ou um homem devoto? Você já tentou começar a 
partir daí? 
— Ele não era um homem devoto — ela disse amargamente, e então 
suspirou —, eu tentei isso. Procurei por ele por todo o Império, mas não 
encontrei nada. Os caçadores de recompensas que contratei nunca chegaram 
perto. 
— Amadores. 
Ela parecia querer dar um tapa nele. 
— Eu não estaria tão confiante. Se este homem não estiver na minha 
frente em três semanas, eu irei sangrá-lo até secar. 
— Relaxe — ele disse preguiçosamente, acenando com o desenho na 
frente dela —, eu tenho um plano. 
Ramson tamborilou os dedos no esboço. Dois avistamentos, com dez 
anos de diferença – a trilha estava mais fria que a morte agora. Mas ele tinha 
duas pistas: primeiro, esse homem trabalhava no Palácio. E que o homem 
 
provavelmente era um Afinita em fuga significava que ele poderia ter que 
reinventar sua identidade e se restabelecer. 
Mas se havia uma fonte que rastreava os movimentos dos Afinitas tão 
de perto quanto uma águia rastreava sua presa, eram os corretores de Kerlan. 
O pensamento de passear em seu território era algo que ele não gostava. 
Ramson olhou para a feiticeira e para a criança, com um aperto no estômago. 
Será que elas foram vítimas dos mesmos corretores de que precisavam para 
encontrar esse alquimista? 
— Bom. — Ana se lançou da mesa e marchou em direção à cama, onde 
pegou uma pequena bolsa debaixo das peles. May olhou para Ramson e logo 
começou a dobrar as poucas peças de roupa na cama e a enfiá-las na bolsa. — 
Nós partimos em uma hora. Suponho que você já tenha descoberto para onde 
estamos indo até lá. 
— Eu descobri. — Havia apenas uma cidade nas proximidades de 
Quedas Fantasma que estava fervilhando de traficantes Afinitas implacáveis, 
famintos por informações e recompensas. — Nós vamos para Kyrov. 
 
 
 
 
7 
O ar da manhã estava fresco, a neve brilhando e polvilhada com ouro 
de um sol distante quando eles partiram. O silêncio foi quebrado apenas pelo 
sopro de sua respiração, que se nublou no ar frio, e o ranger de suas botas na 
neve. 
A floresta boreal se estendia do Triângulo Krazyast na ponta mais ao 
norte de Cyrilia até as montanhas Dzhyvekha que faziam fronteira com 
Nandji no sul. Aqui, no Norte, a neve nunca derretia, mas mais ao sul, Ana 
sabia, o verão via as pontas de grama verde e pinheiros coníferas espreitando 
por baixo de um véu branco. 
Ana ergueu a mochila mais acima nos ombros, o farfalhar de seus 
pergaminhos e o tilintar de seus globos restantes estranhamente calmantes. 
Ao seu lado, May se arrastava, virando a cabeça de um lado para o outro para 
quaisquer sensações que ela sentia vindo da terra enterrada bem abaixo. Ela 
segurava um globo de fogo recém-aceso entre as mãos, as chamas dentro 
rastejando ao longo do óleo que revestia o vidro, aquecendo as mãos e 
fornecendo luz durante as noites. Elas passaram muitas luas viajando assim, 
só ela e May, um globo de fogo, a bússola que ela segurava nas mãos e o 
silêncio eterno da floresta. 
O que, no momento, estava sendo interrompido da maneira mais 
irritante possível. 
— Então, como vocês, duas lindas damas, vieram parar aqui? — A voz 
alegre de Quicktongue chegou até elas uma dúzia de passos atrás. 
 
Ana cerrou os dentes. May lhe lançou um olhar conhecedor e revirou os 
olhos. 
— Muito ao norte para uma garota das Ilhas Asáticas — continuou o 
criminoso. Um bando de saqueadores de pinheiro irrompeu em voos de 
alguns arbustos à frente. 
Ana estava prestes a girar e bater nele, mas o significado por trás de 
suas palavras a atingiu com um calafrio. Tudo o que Ramson Quicktongue 
dizia era deliberado, cada palavra cuidadosamente escolhida... dificilmente 
poderia ser coincidência que ele estivesse questionando a origem de May. E a 
última coisa que Ana queria era que o criminoso soubesse do status de May: 
uma Afinita perdida, sem identidade e sem proteção. 
— Não é da sua conta — ela respondeu. 
— Ah, mas é — Quicktongue pressionou naquele tom de voz que fez 
Ana querer estrangulá-lo —, já que vamos fazer parceria por seis semanas. 
— Vamos mantê-lo assim. Uma parceria, onde não falamos uns com os 
outros a menos que seja absolutamente necessário. 
— Isso é necessário. — Ele as estava alcançando agora, sua voz ficando 
mais alta e mais desagradável a cada segundo. O ranger de neve sob suas 
botas se aproximava. — Eu vou ter que manter vocês duas seguras, 
especialmente se nos depararmos com Mantos Brancos. 
Ana se virou. Sua última frase havia desencadeadouma série de faíscas 
em sua cabeça que se transformaram em fúria. 
— Manter-nos seguras? — ela repetiu, ignorando a forma como a seta 
da bússola girou em suas mãos para se reajustar. — Ouça, seu arrogante. May 
e eu sobrevivemos tanto tempo sozinhas, e não precisamos de você para nos 
manter seguras ou o que acha que precisa fazer. Isso foi uma troca, e eu vou te 
obrigar a fazer sua parte nisso. Nem mais nem menos. 
 
 
Ela estava respirando com dificuldade quando terminou, e percebeu 
que havia diminuído a distância entre ela e Quicktongue de modo que eles 
estavam apenas a dois passos de distância. Ele parou onde estava, seu rosto 
uma máscara congelada como a floresta ao redor deles. Seus olhos castanhos, 
no entanto, a observavam com a intenção e astúcia de uma raposa. 
— Tudo bem — ele disse suavemente, sua respiração se desenrolando 
em uma pequena pluma entre eles —, mas deixe-me perguntar uma coisa: 
você já esteve em Kyrov? 
Ana pensou em tudo o que tinha lido sobre a cidade comercial que 
prosperava por sua proximidade com o Triângulo Krazyast e seu comércio de 
pedra-negra cobiçada. A verdade era que ela podia recitar um volume inteiro 
de fatos sobre Kyrov... mas nunca tinha visto por si mesma. 
— Não — ela admitiu amargamente —, mas eu estudei. 
O rosto de Quicktongue se contorceu em um sorriso, e não foi um 
sorriso agradável. 
— Os vencedores escrevem história, amor. Já se perguntou por que o 
tópico da contratação de Afinitas é tão pouco visto em um livro Cyriliano? 
Parecia um tapa em seu rosto. Ela se lembrou dos tapetes macios do 
Palácio Salskoff, o crepitar da lareira e o cheiro de cadeiras de couro e livros 
velhos no escritório de papai. Ela e Luka passaram metade de seus dias 
sentados em sua mesa alta de carvalho, ouvindo-o ler as histórias de Cyrilia 
com eles em sua voz baixa e firme. 
Antes de adoecer, papai cuidara pessoalmente de sua educação. Ele não 
foi capaz de amá-la como Afinita... mas a amou, à sua maneira. 
Ela realmente acreditava que ele tinha amado. 
 
— Se você tem um ponto, faça-o — ela se pegou dizendo, embora seu 
coração não estivesse mais na discussão. 
— Kyrov é um lugar perigoso. Eu normalmente avisaria qualquer 
Afinita para ficar longe, mas visto que estou sendo obrigado a fazer minha 
parte do Comércio, é um risco que estou disposto a correr. — Quicktongue 
deu de ombros e passou por ela, a neve voando na esteira de seus passos. — 
Especialmente porque eu não sou um Afinita. 
Ele falou como se pudesse haver uma grande cidade em seu próprio 
império que fosse perigosa para um Afinita cruzar. Ana sabia que existia 
corrupção em seu império, mas não era como se os Afinitas fossem tirados 
das ruas. 
A ponta da bússola girou instável quando ela se virou para seguir 
Quicktongue para nordeste, em direção a Kyrov. 
Faltava meio dia de viagem, pelos cálculos dela. De alguma forma, a 
floresta parecia menos pacífica, a luz do sol fria e as sombras dos pinheiros 
chocando enquanto se estendiam pela neve. Foi só quando May deslizou uma 
pequena mão na dela que a respiração de Ana se estabilizou um pouco. 
Uma pequena bola de lama subiu do chão, pairando acima da palma de 
May. Com um movimento de seus dedos, disparou em direção a 
Quicktongue, acertando-o diretamente nas costas. 
— Eu sei que você gosta de se ouvir falar, homem arrogante — disse 
May enquanto elas passavam por ele —, mas fale de novo e eu vou mirar 
para o seu rosto. — Ela fez uma pausa e sorriu maliciosamente. — Você 
ficaria melhor também. 
 
 
8 
O primeiro vislumbre que Ana teve de Kyrov foi um feixe de pináculos 
brancos prateados que subia acima das árvores cobertas de neve. Depois de 
quase um dia de viagem, o sol estava baixo no Oeste, pintando a cidade com 
um brilho de ouro fosco. Quando os tijolos castanho-avermelhados das casas 
de dacha ficaram à vista, Ana pensou nas casinhas de gengibre que 
costumava fazer quando criança todos os anos em comemoração à chegada 
da Divindade do Inverno. 
Ana puxou o capuz enquanto as estradas de terra gradualmente se 
transformavam em paralelepípedos cinza-ardósia e os sons da vida da cidade 
surgiam. May manteve-se ao seu lado, os olhos arregalados e a cabeça 
virando de um lado para o outro. Depois que fugiram do patrão de May, elas 
se mantiveram em pequenas aldeias e cabanas de caçadores abandonadas. A 
multidão, o barulho e os cheiros das grandes cidades deixavam Ana ansiosa 
e, mesmo agora, tentava acalmar a inquietação em seu estômago enquanto 
caminhavam. 
No entanto, ela percebeu que seus olhos se demoravam em objetos 
involuntariamente: o tradicional azul-prateado de um manto kechyan, o 
vermelho vivo de uma boneca de damashka, o brilho de brincos de argola de 
ouro branco. Ela podia, tão claramente em sua mente, ver esses objetos como 
os conhecia em seu mundo, no Palácio Salskoff. Luka, vestindo seu kechyan 
Imperial com o emblema do tigre branco; Papai, ajoelhado ao lado da cama 
com sua primeira damashka nas mãos grandes; Mamãe, sentada em um sofá 
 
sob uma janela alta do Palácio, seus brincos pegando o sol enquanto ela 
jogava seu lindo cabelo escuro sobre o ombro. 
Sua garganta queimava com a dor inesperada das lágrimas. Ela piscou e 
voltou sua atenção para o objeto de distração mais próximo: um armazém de 
portas abertas. 
O calor abafado rolou em ondas bem-vindas, e o golpe de um martelo 
contra o metal derretido ressoou contra os sons do início da noite da cidade. 
No entanto, nas sombras, havia algo mais. 
Um menino de cabelos pretos e olhos cansados estava ajoelhado perto 
de uma fornalha, as palmas das mãos viradas para cima, as costas curvadas 
como um gancho. A fuligem cobria seu rosto, mas mesmo daqui, suas feições 
o marcavam como vindo de uma das Ilhas Asáticas. Mas seus olhos de meia-
noite pousaram sobre as bochechas afundadas, sem vida e reduzidas até os 
ossos. 
— Você, garoto! — gritou o ferreiro, seu martelo parando no ar. — O 
fogo precisa ser mais forte! 
Os olhos do menino se voltaram para o ferreiro. Curvando-se, ele virou 
as palmas das mãos para as chamas. Elas brilharam, dançando rajadas de 
ouro e laranja que derreteram em um núcleo vermelho-sangue. 
Um ano atrás, seu olhar poderia ter varrido essa cena como um aspecto 
comum da vida cotidiana em seu império. Apenas mais um Afinita 
trabalhando, ganhando a vida como Yuri e os outros Afinitas do Palácio. Ela 
se lembrou de como Yuri ia à cidade e trazia guloseimas para ela, entrando 
sorrateiramente em seus aposentos tarde da noite quando Markov pegava 
seu turno na porta dela. Yuri estava contente; estava ganhando o suficiente 
para alimentar uma mãe e uma irmã mais nova em algum vilarejo ao sul. 
 
 
Mas agora, observando o garoto das Ilhas Asáticas aconchegado sobre o 
fogo, seu rosto manchado de fuligem manchado de suor e miséria, ela 
encontrou uma sombra de dúvida rastejando sobre seus pensamentos. 
Há pouco menos de um ano, ela tinha visto a mesma tristeza nas linhas 
dos olhos de May, nas cavidades de suas bochechas, na queda de seus 
ombros magros que tentavam levantar a túnica suja e mal ajustada dado ao 
desgaste. O desespero silencioso nos olhos do menino Asático lançou uma 
imagem espelhada para May naquela época. 
Um pressentimento frio se espalhou por ela; Ana percebeu que seus 
passos diminuíam. As ruas estavam cheias de gente rindo, tagarelando, 
passando pela oficina do ferreiro sem nenhuma preocupação no mundo. Ela 
tinha sido como eles um ano antes? Ela queria alcançar o menino, falar com 
ele, fazer alguma coisa. 
Uma mão envolveu seu pulso, puxando-a de seus pensamentos. O 
mundo voltou em um turbilhão de cores e sons, e ela percebeu que Ramson 
Quicktongue estava dizendo seu nome. Antes que pudesse se afastar, ele 
puxou ela e May para a loja mais próxima. 
A porta se fechou atrás dela, um sino soou no alto, e o cheiro de 
madeira flutuou até eles de uma lareira nos fundos. 
Elesestavam em uma loja de arte em laca. Tigres e vasos cobriam as 
prateleiras enquanto cisnes, falcões de gelo e fênix giravam suavemente 
diante das janelas, todos pintados com padrões rodopiantes de folhas, flocos 
de neve e frutas. Instintivamente, Ana colocou-se entre May e Ramson, 
encarando o criminoso. 
— O que você está fazendo? 
Ele se abaixou, seus olhos treinados em algo se movendo do lado de 
fora das janelas. 
 
Além das figuras de aves laqueadas, nas ruas de paralelepípedos do 
lado de fora, passou uma procissão. Três cavalos trotavam pelas ruas, os 
mantos brancos como a neve de seus cavaleiros flutuando orgulhosamente 
atrás. Tigres prateados brilhavam no peito dos cavaleiros e espadas de pedra 
negra brilhavam em seus cintos. 
— Mantos Brancos — Ramson murmurou em seu ouvido. 
Patrulhas Imperiais – a mais alta ordem de soldados do Exército 
Imperial Cyriliano, eram mantenedores da paz, destinados a monitorar e 
reprimir quaisquer confrontos entre cidadãos e afins. Mais importante, 
porém, armados com pedra-negra e Deys'voshk, eles foram treinados para 
lutar contra Afinitas caso saíssem do controle. 
Ana lembrou-se de visitar cidades em sua infância, antes que sua 
Afinidade se manifestasse. Ela se sentiu inexplicavelmente segura na 
presença das capas esvoaçantes e capacetes reluzentes das Patrulhas do lado 
de fora da janela de sua carruagem. Ela se lembrou de pensar que os Mantos 
Brancos a protegeriam de qualquer monstro que pudesse machucá-la. 
Exceto que agora ela era o monstro. 
— Ramson — ela disse calmamente, observando a procissão —, antes, 
você disse que precisaria nos proteger das Patrulhas Imperiais. O que você 
quer dizer com isso? 
Ela não queria ouvir a resposta. Mas sabia que precisava. 
Ramson lhe lançou um olhar e, por um momento, pensou que ele faria 
um comentário sarcástico para ela. Em vez disso, ele sacudiu o pulso, e uma 
única pedra de cobre de bronze apareceu entre seus dedos. 
— Tudo se resume a isso — disse, e começou a jogar a moeda entre os 
dedos, fazendo-a aparecer em um momento e desaparecer no próximo —, em 
um sistema quebrado, para que lado a lâmina aponta? — Ramson apertou a 
 
pedra de cobre e a ergueu. — Quem você acha que os paga mais? O império? 
Ou negócios lucrativos que dependem deles para explorar Afinitas que 
precisam de trabalho? 
O coração de Ana disparou; ela sentiu como se estivesse em queda 
livre, como se o chão estivesse desaparecendo lentamente abaixo dela. 
— Mas você viu? 
O olhar de Ramson estava fixo na moeda, cujas bordas brilhavam como 
a lâmina curva de uma foice. 
— Como eu disse, sou um homem de negócios. 
Seus lábios se separaram, mas ela não tinha palavras nem fôlego para 
discutir. 
— Este império está desmoronando — continuou Ramson —, o 
Imperador e a Imperatriz anteriores morreram, a princesa morreu há um ano 
e os abutres estão simplesmente esperando para ver quanto tempo Luka 
Mikhailov dura. — Ele jogou a pedra de cobre no ar; piscou à luz do fogo e 
desapareceu em suas palmas. — É cada um por si; o tempo dos 
aproveitadores e ceifeiros. Você sempre ganha se escolher o lado vencedor. 
O resto do mundo parecia distante e silencioso enquanto ela o 
observava se virar para a porta. Os Mantos Brancos haviam desaparecido. 
Multidões continuavam a se misturar nas ruas do lado de fora, mas tudo 
parecia diferente. 
— Olha, apenas me faça um favor — disse Ramson —, e fique longe dos 
Mantos Brancos, especialmente se eles tiverem um Afinita com eles. — A 
campainha tocou novamente quando ele abriu a porta. — Suspeito que você e 
a garota não estejam em posse de identificação... e tenho certeza que você 
sabe as consequências de ser pega. 
 
Arrepios subiram nos braços de Ana, e não tinha nada a ver com o 
vento frio que varreu a loja. Ele tinha que estar exagerando, ele falou como se 
pudessem estar em perigo, em plena luz do dia, no meio de seu império. No 
entanto, pedir-lhe para elaborar significava jogar em sua mão e revelar uma 
lacuna em seu conhecimento, uma fraqueza. 
Ana apertou os lábios e o seguiu. 
— É aqui que nos separamos por enquanto — disse Ramson —, o lugar 
que estou indo não é amigável para os Afinitas. Felizmente, o Mercado de 
Inverno está logo à frente nesta estrada. — Ele piscou para May. — Você 
gostaria de alguns doces, não é, amor? 
May mostrou os dentes para ele. 
— Ana me disse para nunca aceitar doces de estranhos — disse ela. 
Ramson parecia desanimado. 
— Espere. — Ana olhou para ele. — Você tem que nos dizer para onde 
está indo. 
— Ah, sempre o voto de confiança de você. — Ramson apontou para 
um beco lateral, longe do fluxo geral da multidão. — A Fortaleza do Urso 
Cinzento. Bem ali, com os telhados de telhas vermelhas. Trinta minutos é 
tudo que preciso; te encontro de volta aqui. 
Ana o observou passear pela rua. Se quisesse traí-la, ele poderia 
simplesmente tê-la deixado para morrer na margem do rio em Syvern Taiga. 
Ela não gostou, mas teria que deixá-lo ir por enquanto. 
— Ana! — May apontou, sua voz subindo de excitação. — O 
Vyntr'makt! 
As ruas diante delas se abriram e, por um momento, Ana pensou que 
estava olhando para uma das esculturas em miniatura que recebera de 
presente na infância. Dachas de cores vivas brilhavam como um crepúsculo 
 
dourado contra um sol de fim de tarde, lonas forradas de lantejoulas erguidas 
sobre barracas exibindo bugigangas e comida que fariam uma criança gritar. 
May o fez, apertando a mão de Ana e puxando-a para frente, 
ziguezagueando pela multidão. Uma bandeira com a cabeça de um tigre 
branco ondulou na entrada. Vyntr'makt, anunciou. E, abaixo, o lema do 
Império Cyriliano: Kommertsya, Deysa, Imperya. Comércio, Divindades, 
Império. 
O Mercado de Inverno, Vyntr'makt em Cyriliano antigo, era uma 
tradição em todas as cidades Cirilianas. Cada cidade decorava sua maior 
praça até o final do outono para aguardar a Fyrva'snezh – a Primeira Neve, 
uma noite que marcava o início do inverno e o despertar de sua Divindade 
Padroeira. 
O Vyntr'makt de Kyrov rivalizava com o Salskoff's com a riqueza de 
sua comida flutuando das barracas, a opulência de joias iridescentes e sedas 
espalhadas em expositores, a complexidade das estatuetas Cirilianas sagradas 
esculpidas em ouro branco. As vitrines das padarias forradas de pão assado 
com peixe, e as barracas ao ar livre ostentavam sopas frias de repolho, tortas 
de batata bovina e espetos de cordeiro assados com azeitonas. 
Inevitavelmente, no meio de toda a alegria, seu olhar foi atraído para 
uma única panela de sopa de beterraba fervendo ao lado de uma barraca de 
madeira. Vapor quente subiu de sua superfície carmesim, enchendo o ar com 
um cheiro pungente. 
Náusea torceu em seu estômago quando uma imagem familiar passou 
por sua mente. Oito corpos, espalhados como obras de arte retorcidas. 
Sangue, escuro e vermelho na neve. 
Deimhov. 
Monstro. 
 
— … Ana! 
Ela saiu da memória, as poças e os gritos carmesins se desvanecendo 
quando o Vyntr'makt de Kyrov voltou. May estava puxando sua mão. Seus 
olhos estavam fixos em uma barraca à frente, cheia de fileiras de tortas de 
maçã com mel, massa frita de caramelo e uma variedade de outras 
guloseimas. 
Ana examinou a escassa quantia que economizou. Elas tinham o 
suficiente para pelo menos mais duas noites de hospedagem e refeições, e ela 
estava relutante em gastar uma única pedra de cobre acima do orçamento 
deles... e ainda assim. Ela pensou na primeira vez que viu May, seu choque 
com o quão magricela a garota parecia. Mesmo assim, May tinha dividido 
suas rações insignificantes de seu patrão com Ana, andando um quilômetro 
na neve todos os dias até o celeiro onde ela tinha escondido Ana e a manteve 
viva. 
Ela merecia tudo o que queria no mundo. 
— Vamos pegar um — disse ela, puxando May para frente, mas a 
criança balançou a cabeça. 
— Não, olhe — ela sussurrou, seu olhar se lançando entre Anae a baia 
—, a menina. 
Demorou um pouco para Ana perceber que May estava se referindo à 
vendedora de doces, uma jovem que mal entrara na adolescência. Ela usava 
um capuz esfarrapado, seu rosto pálido e cabelos cor de areia aparecendo por 
baixo. 
— Ela é como eu — May disse suavemente, as palavras caindo de seus 
lábios como neve, muito em breve. Ela ficou parada, seus olhos um oceano de 
memórias silenciosas —, como nós. 
 
Ana olhou. Mais. E isso a atingiu de uma vez. A desleixada da 
vendedora de doces, enrolada em si mesma como se quisesse desaparecer 
deste mundo; o ar de desconfiança, beirando o medo, que emanava dela. E 
seus olhos... olhos que eram poços de tristeza, como os de May no auge do 
inverno. 
Exceto que os de May sempre trouxeram esperança. 
Antes que Ana pudesse responder, May se afastou e esgueirou-se pela 
multidão. Ana correu atrás dela, bem a tempo de ver a criança enfiar a mão 
nas dobras de sua capa de pele cinza e retirar uma única pedra de cobre. Era 
uma das moedas que Ana lhe dissera para guardar, prometendo que a 
usariam para comprar uma guloseima. 
Delicadamente, May pegou as mãos da vendedora de doces e dobrou a 
moeda nelas. 
— Fique com isso — May sussurrou, pressionando um dedo pequeno 
em seus lábios. Ela arriscou um olhar para Ana e, por um momento, seus 
olhos disseram tudo: lampejos de raiva e ondas quebrando de dor jogando e 
girando dentro. E Ana percebeu com uma dor angustiante que May tinha 
visto sua mãe nesta Afinita, que ela estava procurando por sua mãe quando 
viu essa vendedora de doces. 
De repente, os doces pareciam muito brilhantes, muito falsos, e o resto 
do mundo se desvaneceu em um borrão de ruídos e cores fracas. 
Era como se o mundo que ela tinha visto nos últimos dezoito anos 
estivesse lentamente se desfazendo para revelar a verdade do que era. 
Quantas vezes ela comprou algo de alguém que poderia ter sido forçado a 
um contrato ruim? Para quantos Afinitas sobrecarregados e explorados 
acenou na multidão quando viajou com seu pai para ver seu império quando 
criança? 
 
A lei Ciriliana declarava que o emprego sob contrato era um emprego 
justo... mas nunca se aprofundou nos termos reais desse acordo. Como um 
empregador deveria tratar um empregado. As condições de pagamento. Se 
esse contrato foi assinado voluntariamente... ou por coerção. 
— Aqui — a vendedora disse calmamente. Suas mãos correram sobre as 
fileiras de doces em exibição, e ela pegou um e estendeu para May. — É um 
ptychy'moloko. Bolo de leite de ave. Você pode ficar com ele. 
Ana reconheceu o silêncio na voz da garota, a maneira furtiva com que 
seus olhos corriam ao redor para verificar se ninguém mais percebeu essa 
transação. 
May sorriu ao dar sua primeira mordida, e Ana teria pago todas as 
folhas de ouro do mundo para ver sua amiga sorrir daquele jeito novamente. 
— É bom — disse May, e estendeu para Ana. 
Era difícil dar um sorriso diante da fria percepção que tinha acabado de 
semear em seu peito. 
— Era o meu favorito quando criança — disse Ana. Ela pensou em Yuri, 
seus olhos cinza-carvão brilhando enquanto entregava guloseimas para ela e 
Luka, fumegando das cozinhas. — Vá em frente, termine. 
O rosto de May estava radiante. 
— Eu gosto da camada marrom dura — ela disse entre mordidas. 
— Isso é chokolad. — A vendedora de doces observou May com um 
leve sorriso aquecendo seus olhos. — É feito de cacau de Nandji. 
— Ei! 
Um homem em peles exuberantes empurrou a multidão, seu olhar fixo 
em May. O rosto do homem estava mais pálido que farinha. 
— Ela pagou? — o nobre rosnou, invadindo e fazendo como se fosse 
arrebatar a massa das mãos de May. 
 
Algo estalou em Ana. 
— Não toque nela — ela rosnou. 
A raiva cintilou nos olhos do homem, mas ele se virou para a 
vendedora de doces, que o observava com uma expressão aterrorizada. 
— Vou contar meus livros esta noite, e se descobrir que você andou 
roubando... — Ele baixou a voz para um silvo. — Você vai receber o que está 
vindo para você, bruxa. 
— Ana. — A voz de May tremia enquanto ela puxava insistentemente a 
mão de Ana, afastando-a da barraca. — Nós temos que ir. Não há nada que 
possamos fazer aqui. Por favor. 
Mesmo seguindo May, os passos de Ana vacilaram. Parecia errado, em 
seu coração, virar e deixar alguém precisando de ajuda. Alguém cuja 
Afinidade os tornava diferentes, ostracizados. Alguém como ela. 
Um grito soou; Ana e May congelaram quando se viraram para olhar. 
E, com o resto da multidão, elas engasgaram quando o nobre golpeou com 
todas as suas forças a jovem vendedora de doces. 
O tapa ressoou na praça como o estalo de um chicote. A vendedora de 
doces cambaleou para trás e colidiu com a barraca de doces bem arrumados. 
A raiva envolveu Ana, incandescente. Ela era a princesa de Cyrilia. 
Houve um tempo em que escória como ele teria se curvado a ela, quando ela 
poderia ter ordenado sua morte com uma única palavra. 
Esse tempo tinha passado, mas ela ainda podia fazer a coisa certa. 
— Por favor, mesyr — a garota Afinita implorou. 
O nobre ergueu a mão novamente. 
Ana envolveu sua Afinidade ao redor dele. Ela só aprendeu a empurrar 
ou puxar, mas agora ordenou que o sangue em seu corpo permanecesse 
parado com cada grama de sua força. 
 
Por alguns segundos, o nobre ficou paralisado, seu braço erguido e sua 
expressão passando da fúria ao pânico. Ele começou a engasgar, seus olhos 
rolando na parte de trás de sua cabeça. 
Ela estava ciente de May puxando sua capa. Ela ouviu os suspiros da 
multidão quando finalmente soltou o sangue do nobre e seu corpo caiu no 
chão como um saco de batatas. Sons horríveis de chiado vieram de sua boca. 
— Ana — May gritou —, precisamos ir, antes... 
Alguém gritou. Quando o Vyntr'makt entrou em pânico, Ana percebeu 
que tinha ido longe demais. 
— May — ela engasgou, e a mão da criança estava na dela, e elas 
estavam tropeçando para longe do nobre desmaiado e da vendedora de 
doces. 
No entanto, a multidão tinha ficado estranhamente imóvel, e a pele das 
costas de Ana formigou. Levou um momento para ela perceber que um 
silêncio havia caído sobre toda a praça. Todos os vendedores e moradores da 
cidade olhavam para um ponto atrás de Ana com expressões de espanto e 
ansiedade. 
Lentamente, Ana se virou. E olhou para um esquadrão de Patrulhas 
Imperiais Cirilianas. 
 
 
 
9 
O interior do pub em ruínas estava escuro, iluminado apenas pelas 
chamas bruxuleantes dos tocos de vela nas mesas. Uma placa de madeira 
quebrada anunciava em caligrafia grosseira: A Fortaleza do Urso Cinzento. 
Ramson parou na porta apenas para passar a mão sobre a adaga que havia 
roubado, antes de pisar nas tábuas de madeira rangentes. Ele veio cobrar 
uma dívida. 
Levou alguns momentos para seus olhos se ajustarem à penumbra, e ele 
viu que várias mesas estavam postas, seus convidados curvados sobre suas 
bebidas e falando em voz baixa. Havia um ar de ameaça nas chamas 
lambendo a lareira de bronze e o tilintar de canecas entre as trocas 
murmuradas. 
Várias pessoas se viraram para olhar para Ramson enquanto passava 
por elas, e ele se viu avaliando a nova roupa que havia adquirido – de graça, 
embora desconhecida do vendedor – em uma barraca próxima. Uma túnica 
comum, colete preto, calções cinza, botas de montaria e um belo manto de 
pele Cyriliano para completar. Ele parecia o patrono perfeito para esses tipos 
de lugares: elegante, arrumado e totalmente inesquecível. 
Ramson examinou o bar. Apenas um olho experiente notaria o quadro 
de pôsteres de Afinitas de aluguel na parede oposta, a escada estreita ao lado 
do balcão com um sinal torto de Apenas Reservas, e a garrafa de Deys'voshk 
verde disfarçada entre as fileiras de licor na a prateleira de trás. Este não era 
um pub comum. Era um posto de tráfico de Afinitas. 
 
 
Ramson caminhou até o balcão e deslizou para um banco do bar, 
abaixando a cabeça atrás de um samovarde aparência cara. O barman se 
aproximou. Ele era de estatura e compleição baixinho, com uma grande barba 
grisalha – uma que tinha crescido em tamanho devido aos segredos que 
manteve ao longo de seu mandato na estalagem mais notória de Cyrilia. 
Embora ele usasse um avental grosseiro manchado de graxa e salpicado com 
vários tons de licores, não havia como perder o brilho de seu anel de ouro 
enquanto polia um copo. 
— Estimadas saudações a você, nobre mesyr, e posso expressar minha 
alegria por seu patrocínio de meu humilde pub! Igor, ao seu serviço. 
— Saudações a você, meu bom cavalheiro, e posso dizer que o prazer 
é... todo meu. — Ramson ergueu a cabeça. 
Igor quase deixou cair o vidro que estava limpando. 
— Maldito inferno, cara — ele murmurou, escorregando em um insulto 
Cyriliano de baixo nascimento. 
— Malditos infernos — Ramson o corrigiu, e deu um giro de seus dedos 
—, conhaque. E não se preocupe com a merda barata. 
Igor curvou-se ligeiramente, olhando para o rosto de Ramson. 
— Então realmente é você. Eu estava me perguntando quando voltaria. 
— Você estava se perguntando se eu voltaria. 
Igor riu, um som baixo e retumbante. 
— Não vou negar. A notícia se espalhou por todo este império maldito. 
Você fez uma bagunça, Quicktongue. 
Ele se virou, alcançando uma das prateleiras na parte de trás do bar. 
Ouviu-se um tinido agudo e o som de líquido sendo esguichado. 
Ramson observou as costas musculosas do barman enquanto preparava 
uma bebida. 
 
— Estou limpando, Igor. Meus traidores vão pagar. — Ele deslizou sua 
adaga. — Mas as primeiras coisas primeiro. Estou aqui para cobrar uma 
dívida. 
Igor se virou, segurando um copo e uma garrafa de conhaque 
Bregoniano. A preocupação penetrou em seus olhos turvos. 
— Olhe, Quicktongue. Os negócios estão ruins, com o Imperador 
Mikhailov doente e a economia desmoronando. — Ele passou a mão sobre a 
testa careca e acenou para a placa na parte de trás. Os papéis estavam presos 
caoticamente uns sobre os outros, alguns com desenhos toscos. — As vendas 
têm sido lentas. 
Ramson estava interessado o suficiente para dar uma olhada no quadro. 
Afinitas para Aluguel, declaravam os cartazes, quando, na verdade, 
sussurravam aos que sabiam que eram Afinitas estrangeiros cujos contratos 
estavam à venda. 
— Não quero seu dinheiro. Eu quero informação. 
— Ah. — Os ombros de Igor caíram com alívio, e ele colocou a bebida 
de Ramson diante dele. — Você sabe que meus fatos valem mais do que 
minhas folhas-de-ouro. — Ele fez uma pausa, e seus olhos deslizaram para a 
escada escura atrás do balcão. — Talvez isso exija uma discussão privada na 
Sala de Reservas. 
Ramson se levantou, pegando seu copo. 
Igor hesitou. 
— Eu já vou subir. Preciso fechar algumas contas, pegar uma bebida 
para mim, então serei todo seu. Não vai demorar um minuto. 
— Sem pressa. Eu vou me apresentar. 
A Sala de Reservas era um lance estreito de degraus construídos nas 
frias paredes de pedra do pub. Ramson escalou-os e abriu um conjunto de 
 
portas de madeira para um cômodo à luz de velas, bem mobiliado com sofás 
de veludo vermelho e uma cara mesa de carvalho. Ele não deixou de ver as 
garrafas de Deys'voshk alinhadas nas prateleiras no fundo da sala, brilhando 
à luz bruxuleante das velas. 
Ele empurrou os pensamentos de sua mente e levantou sua bebida, 
inalando bruscamente antes de tomar um gole. Igor não o havia enganado. 
Este era o verdadeiro brandy Bregoniano: pungentemente amargo e 
sutilmente doce, com um toque de rosas e o sabor cítrico que florescia no 
paladar e permanecia como um sabor residual. 
Passos soaram na escada, e Igor entrou com uma caneca em cada mão. 
Ele teve o cuidado de fechar a porta atrás de si. 
Ramson esperou pelo familiar clique de uma fechadura. Nenhuma 
conversa na Sala de Reservas era conduzida com a porta destrancada. 
Quando não veio, um fio de cautela apertou dentro dele. 
Com um grande suspiro, Igor colocou a segunda rodada de bebidas na 
mesa e se sentou em um dos sofás. A luz do fogo dançou em seu rosto. 
— Vejo que os guardas não tiraram o espírito de você. Você parece 
saudável como um fanfarrão jovem, apenas um tom mais pálido. O que foi, 
quatro luas? 
— Três luas e vinte e um dias. Eu estive contando. — Ramson recostou-
se na almofada de veludo rechonchudo de seu sofá como um gato se 
aquecendo ao sol, observando Igor com os olhos semicerrados. — Eles não 
servem coisas assim na prisão. 
— Sim. — Igor ergueu o copo. — Isso custaria algumas folhas-de-ouro. 
— O que dizem na rua é que você me deve mais do que algumas folhas-
de-ouro. — Ramson se inclinou para frente, esquecendo o conhaque, e em vez 
disso saboreou o olhar de pânico absoluto que atravessou o rosto de Igor. — 
 
Eu sei que você me entregou. Oh, não pareça tão lamentável, cara. Tenha 
algumas malditas bolas e assume isso. 
Era uma aposta da parte de Ramson, mas era seu melhor palpite até 
agora. Ele estava escondido para passar a noite no pub de Igor quando um 
esquadrão de Mantos Brancos invadiu e o prendeu por traição contra a 
Coroa. Ele passou suas luas na prisão vasculhando cada fio retorcido de sua 
rede até que conseguiu uma teoria: Igor o havia entregado, mas ele estava 
fazendo o trabalho sujo para outra pessoa. Alguém próximo a Kerlan que 
tinha informações sobre sua missão. 
O olhar de Igor voou nervosamente para a porta; ele enxugou uma 
camada de suor do rosto, espalhando mais graxa na testa. 
— Ramson, meu amigo, você deve saber... 
— Sem “Ramson, meu amigo” comigo. — Ramson deu um soco na 
mesa, finalmente deixando-se provar um pouco daquela raiva que se 
acumulou dentro dele enquanto apodrecia na prisão. — Se você quer viver, 
vai me dizer por que fez isso, e você vai me dizer quem o fez fazer isso. 
— E-ele costumava trabalhar para a Corte Imperial. — A respiração de 
Igor era ofegante e ele parecia fraco. — V-você tem que entender, R-Ramson... 
— Não há nada que eu entenda melhor do que a maldita picada da 
traição. 
— Você foi enviado para assassinar o Imperador! — exclamou Igor. — 
Divindades, cara, sua missão era impossível desde o início! 
Ramson fez uma pausa. Esta era a pergunta que ele revirava e revirava 
em sua mente em Quedas Fantasma, sem pistas para uma resposta: Por que o 
maior senhor do crime do Império queria assassinar o imperador Luka 
Mikhailov? 
 
Lembrou-se da tempestade naquela noite, a chuva açoitando as janelas 
com fúria. O sorriso pequeno e torcido de Kerlan, a cadência simples de suas 
palavras, como se ele tivesse acabado de pedir a Ramson para pegar sopa de 
beterraba para o jantar. 
Ramson soube, naquele exato momento, que este era o teste final. Se 
tivesse conseguido, Kerlan o teria nomeado sucessor da Ordem, 
consolidando o poder de Ramson de uma vez por todas. Tudo o que ele 
sempre quis em sua vida estava além dessa missão. 
No entanto, Ramson havia esquecido que em uma aposta em que você 
ganha tudo, pode perder ainda mais. 
E ele tinha perdido. 
Talvez a captura pela Corte Imperial tenha sido um destino mais gentil 
do que a morte nas mãos de Kerlan. 
— Eu era seu vice — Ramson rangeu —, ele confiou tudo a mim. A 
missão vazou. E vou rastrear esse vazamento e destruir todos os envolvidos 
nele, começando por você. 
— Ramson, por favor... 
— Cala a boca maldita. A única coisa que não suporto é um covarde. — 
Ramson estendeu as mãos sobre a mesa de carvalho polido. Sua voz era um 
grunhido baixo quando ele falou em seguida. — A única razão pela qual 
ainda está respirando é porque eu quero algo de você. Preciso de um nome, 
Igor. 
— Pyetr Tetsyev! — As palavras saíram em um suspiro agudo. — Ele 
veio perguntar sobre você e me pagou uma quantia para entregá-lo se você 
viesse ao meu pub. E uma semana depois, você apareceu. 
A boca de Igor era pequena, mas funcionou surpreendentemente 
rápido. Ele fixou Ramson com um olhar suplicante. 
 
— Isso étudo que sei, eu juro, cara. E era muito dinheiro. 
— Pyetr Tetsyev. — Ramson rolou o nome na língua; não tinha gosto de 
familiaridade. — Quem é ele e onde posso encontrá-lo? 
— Ele está sob o emprego de Kerlan, faz Deys'voshk para ele. Apareceu 
do nada com um passado mais escuro que o fundo da minha bota. 
— Hum. — Ramson se inclinou para trás, tomando um gole de seu 
copo e estalando os lábios. Igor o observou, seus olhos lacrimejantes fixos em 
cada movimento de Ramson. O fato de Ramson ter voltado à sua bebida 
pareceu confortar o barman, pois sua expressão tornou-se obsequiosa. — Vou 
precisar fazer uma viagem para Nova Mynsk, então. 
— Para Nova Mynsk? Mas isso é território de Kerlan! — A falsa 
preocupação de Igor foi ampliada por seu alívio. — Você acha... acha que 
Kerlan vai perdoá-lo por quebrar uma Troca? 
Ramson tomou um gole de conhaque, sentindo um puxão familiar nos 
lábios. Agora veio o verdadeiro espetáculo. 
— Oh, ele vai me implorar para voltar. Eu não rastejei para fora desse 
buraco de mãos vazias. Eu quebrei essa Troca, mas tenho algo melhor em 
mente para ele. — Ele deu uma pausa dramática. — Uma nova aliada em 
potencial. 
Os lábios de Igor se separaram ligeiramente, e Ramson quase podia vê-
lo vasculhando as dezenas de perguntas que passavam por sua mente. Por 
fim, a curiosidade e a ganância venceram, iluminando seu rosto enrugado. 
— Quem? 
— A Afinita mais poderosa do Império. 
Igor de repente olhou ao redor da sala, como se esperasse que um 
Afinita saltasse de trás de uma das estantes. 
— Onde...? 
 
— Ela está ao virar da esquina, esperando por mim. Uma Afinita de 
carne. Ela derrubou cinco homens treinados com um movimento de um 
dedo. 
Ele sufocou um sorriso quando a boca do barman se abriu 
completamente. 
— Ela valeria uma fortuna — Igor sussurrou —, Divindades, não é de 
admirar que Kerlan não tenha contratado ninguém para substituí-los ainda. 
Seria uma perda difícil. 
Ramson guardou essa informação. Externamente, ele bufou. 
— Dinheiro. Isso é tudo que você pensa — disse, levantando seu copo 
de conhaque —, quanto você acha que pode conseguir por uma garrafa 
disso? Dez folhas-de-ouro? Pense, em vez disso, se eu cultivasse um vinhedo 
para Kerlan. Quantas garrafas de conhaque ele poderia fazer então? Quantas 
centenas de milhares de folhas-de-ouro ele receberia por ano? — Ramson 
bebeu sua bebida em um único gole e colocou o copo na mesa com um 
tilintar satisfatório. — Pense mais alto, Igor, meu amigo. 
Na verdade, essa foi a teoria que ele disse a Kerlan quando o senhor do 
crime lhe ofereceu uma participação no negócio de tráfico da Ordem. Ramson 
recusou. Ele disse a Kerlan que suas habilidades seriam melhor utilizadas em 
outros lugares – no porto, no comércio de armas, nos cassinos e em qualquer 
outro lugar. 
A verdade, porém, era que não tinha estômago para isso. Ele passou 
por crianças Afinitas nas ruas, forçadas à servidão, suas bocas costuradas 
pelo terror, seus olhos arregalados com uma súplica velada. E ele viu neles o 
fantasma de um amigo de infância que prometeu nunca trair. 
Talvez fosse por isso que Kerlan havia designado Ramson para a 
missão suicida de assassinar o Imperador de Cyrilia. Talvez Kerlan tivesse 
 
visto a semente da dúvida que crescia no peito de Ramson ao longo desses 
anos, e ele precisava de Ramson para provar sua lealdade até o fim. 
Ramson falhou. 
Ele empurrou esses pensamentos de sua cabeça agora, mantendo o 
sorriso brincando em seus lábios enquanto olhava friamente para Igor. Sem o 
conhecimento do barman, Ramson acabara de comprar um seguro. Igor 
venderia esse petisco para todos os comerciantes que frequentavam seu pub, 
e as notícias do retorno iminente de Ramson, junto com aquela Afinita de 
carne, se espalhariam como fogo. Quando Ramson chegasse a Nova Mynsk, 
Lorde Alaric Kerlan o receberia de braços abertos. Seria uma ótima Troca... 
dois coelhos com uma cajadada só. Ramson retornaria com o nome de seu 
traidor e apresentaria a bruxa a Kerlan de uma só vez. Sem dúvida, Kerlan o 
reintegraria como Vice da Ordem e Mestre Portuário de Água-Dourada. 
Ele simplesmente precisava de uma ocasião adequada para sua 
aparição: uma que pegasse esse Pyetr Tetsyev de surpresa. Não adiantaria 
simplesmente entrar no Estado de Kerlan... 
Valsa. Algo clicou em seu cérebro. 
— Igor, que dia é hoje? 
Igor piscou. 
— É o vigésimo dia da terceira lua. Do outono — acrescentou 
desnecessariamente. 
Em dez dias, seria inverno. 
Todos os anos, no primeiro dia de inverno, todo o Império Cyriliano 
celebrava a Primeira Neve com festividades. E em Nova Mynsk, não havia 
festa mais elaborada do que a que o próprio Lorde Alaric Kerlan dava na 
propriedade de Kerlan. A classe alta da cidade seria convidada... aqueles com 
poder, dinheiro e conexões com o mundo do crime. 
 
Agora, essa seria uma entrada digna de ser lembrada. Deixar todos os 
seus inimigos saberem que Ramson Quicktongue estava de volta aos 
negócios e que caçaria até o último homem que estivesse em seu caminho. 
O sorriso de Ramson voltou, mais afiado que sua lâmina. 
— Igor, preciso de dois cavalos para a estrada. 
— É claro, é claro. — Igor parecia tremendamente aliviado. — Tenho 
duas éguas que posso te emprestar. 
— Bom. — Ramson estava prestes a se levantar quando se lembrou de 
algo. — Mais uma coisa. — Ele bateu um pedaço de papel na mesa de 
carvalho. Com um baque, ele colocou o copo vazio em um canto do 
pergaminho e passou a palma da mão sobre as dobras, revelando o esboço do 
alquimista careca com o nariz fino e grandes olhos cinzentos. — Esse homem 
parece familiar para você? 
Igor congelou. 
— Isso é uma piada? 
— Seria uma piada ruim de se fazer. Me esclareça. 
Igor apontou um dedo para o esboço, olhando para Ramson, seu rosto 
contorcido em descrença. 
— Esse é Pyetr Tetsyev. 
 
 
10 
Ramson teve que olhar para Igor por cinco segundos inteiros para 
determinar se o barman estava mentindo. Mas a expressão do homem refletia 
a descrença de Ramson. 
Igor era muitas coisas terríveis, mas não era um grande mentiroso. Ele 
era simplesmente muito covarde. Aplique pressão suficiente no local certo e 
ele racharia. 
— Parece exatamente com ele — Igor balbuciou, franzindo a testa para 
o esboço. — Eu nunca vou esquecer a noite em que ele apareceu na minha 
porta. Encharcado de chuva, ele estava, mas veio direto para mim. Tipo de 
sujeito estranho. Disse que trabalhava no Palácio e me mostrou alguns 
papéis. Me perguntou seu nome e onde você estava. — Ele fez uma pausa, 
parecendo perceber que estava se incriminando novamente, e rapidamente 
mudou de assunto. — É um bom esboço. 
As perguntas explodiram na cabeça de Ramson como estrelas, mas ele 
se concentrou em um único pensamento: ele e a Afinita de carne tinham o 
mesmo inimigo. 
O inimigo do meu inimigo é meu amigo. 
O dia estava realmente sendo excelente. Tudo o que ele havia planejado 
– seu traidor, o alquimista e seu último comércio de bruxa com Kerlan – 
culminou em Nova Mynsk. Dois coelhos com uma cajadada era um bom 
negócio, mas três coelhos com uma cajadada era o tipo de negócio que 
colocava um sorriso genuíno no rosto de Ramson Quicktongue. 
— Igor, velho amigo. Você não me deu nada além de boas notícias hoje. 
 
 
O alívio de Igor era palpável quando ele exalou, as linhas de tensão 
derretendo em seus ombros. 
— Agradeça às Divindades, Quicktongue. Achei que você ia acabar 
comigo por... pelo que minha boca grande deixou transparecer... 
— Considere suas dívidas pagas. — Ramson se levantou e se 
espreguiçou. — Você tem sorte que estou me sentindo generoso hoje. 
Igor deu uma gargalhada trêmula. Ele olhou para a porta novamente. 
— Um brinde, então — disse, levantando-se e entregando a Ramson 
uma das duas canecas que ele trouxe. — Para dívidas pagas e trocas justas. 
— Tanta generosidade hoje, Igor. Normalmente, tenhodificuldade em 
conseguir um caneco de cerveja barata de você. — Ramson ergueu sua caneca 
de latão polido. — Para palavras honestas e homens honestos. — Ele levou 
sua bebida aos lábios e inalou o aroma do vinho do sol Cyriliano. 
Igor havia drenado metade dele em um único gole. Seus olhos se 
voltaram para Ramson sobre a borda de sua caneca. 
Ramson exalou profundamente. Lentamente, contando seus batimentos 
cardíacos, ele abaixou sua caneca, o sorriso ainda colado em seu rosto. 
— Estou realmente honrado por você ter escolhido me brindar com 
vinho de sol Myrkoff, velho amigo. — Ele fez uma pausa, listando sua cabeça. 
— E eu realmente acredito que o Myrkoff teria um sabor melhor sem o 
veneno que você colocou nele. 
Clam. 
A caneca de Igor rolou no chão, o vinho do sol se derramando nas 
tábuas polidas do piso. O barman correu atrás de seu sofá, o rosto contraído e 
os lábios apertados. Ramson recuou para o outro lado da sala. Ele ainda 
segurava sua caneca em uma mão; em outra, ele espalmou sua adaga. 
 
 
— Eu esqueci como você é bom com seu álcool — o barman rosnou. 
— E eu esqueci como você é bom com sua fachada de estupidez. Eu 
poderia ter caído nessa. — Ele quase teve. — Quem você está esperando, 
Igor? 
— Mesmo se me matar, você nunca vai conseguir sair daqui. — O 
barman estava olhando para a adaga de Ramson. — Kerlan estabeleceu o 
preço por sua cabeça assim que soube de sua fuga. Enviei meu pajem para os 
caçadores de recompensas no segundo em que você entrou. Eu só tive que 
entretê-lo enquanto eles chegavam aqui. 
É claro que a notícia de sua fuga da prisão chegou a Kerlan. Ramson 
não ficaria surpreso se o senhor do crime tivesse alguns dos guardas de 
Quedas Fantasma no bolso. 
Ramson inclinou a cabeça. Chamas de raiva tremeluziram dentro dele. 
Mas ele aproveitou essas chamas e as transformou em uma arma. Assim 
como Kerlan lhe ensinara. 
— Eu poderia matá-lo por diversão. Vê-lo se contorcer enquanto eu 
estripo você como um porco guinchando. 
O sangue sumiu do rosto de Igor. Sem aviso, ele soltou um grito. 
— Ele está fugindo! 
Ramson virou-se, estendendo a mão para a fechadura da porta para 
trancá-los dentro... um momento tarde demais. 
A porta da Sala de Reservas se abriu. Dois mercenários foram 
arremessados, atacando Ramson, espadas desembainhadas. 
Ramson jogou sua caneca de latão no primeiro homem com toda a sua 
força. Com um crack satisfatório, esmagou sua têmpora. O mercenário gritou 
e cambaleou para trás, comprando a Ramson os preciosos segundos de que 
precisava. 
 
Ele saltou no ar e atacou. Sua adaga penetrou no peito do mercenário 
em um esmagar doentio de tendões e carne. No mesmo movimento, ele 
pegou a espada do punho solto do homem e virou-se para aparar o ataque do 
segundo caçador de recompensas. 
Metal cantou enquanto suas lâminas se chocavam. Ramson grunhiu e se 
atirou para fora do caminho quando um terceiro mercenário apareceu na 
porta. Ramson virou-se para encarar o homem diretamente, espada na mão, 
avaliando o corpo do recém-chegado, suas roupas e sua arma. 
No entanto, nenhuma destreza de luta o teria preparado para o que 
viria a seguir. A dor explodiu em sua nuca, passando por seus nervos e 
membros e descendo até seus dedos. Estrelas explodiram em seus olhos 
quando ele caiu no chão. 
— Todo seu, rapazes. — A respiração de Igor estava irregular quando 
deixou de lado sua caneca de latão. — Isso vai ser um custo extra pela ajuda 
que te dei lá no final. Dê uma boa palavra a Lorde Kerlan por mim. 
Ramson lutou para recuperar a consciência, mas a escuridão nos limites 
de sua visão estava se aproximando. Ele estava vagamente consciente de uma 
mordaça sendo enfiada em sua boca e sentiu a picada de cordas apertando 
seus pulsos. Quando a escuridão subiu para reclamá-lo, ele percebeu que Igor 
o havia enganado, e que quando um acordo parecia bom demais para ser 
verdade, provavelmente era. 
 
 
 
11 
Quando criança, Ana ficou ao lado de papai nas ruas cobertas de neve 
de Salskoff, olhando para as Patrulhas Imperiais Cirilianas com admiração. 
Ela admirou a forma como sua armadura com infusão de pedra-negra 
brilhava à luz do sol e seus mantos brancos puros esvoaçavam contra o céu 
azul brilhante. Até mesmo seus cavalos eram um espetáculo para ser visto: os 
altos valkryfs do Norte, olhos azuis do gelo, criados para velocidade e 
resistência e valorizados por sua rara habilidade de escalar montanhas 
nevadas usando seus cascos fendidos. Ela aprendera a cavalgar nas costas 
dessas criaturas e sonhara com o dia em que teria um exército de valkryfs e 
seus mestres sob seu comando. 
Patrulhas Imperiais – heróicas, majestosas e honrosas. 
Ela olhou para eles agora, de pé nos destroços da barraca de doces, suas 
figuras escuras pairando sobre ela. Longe estavam seus olhares nobres e 
palavras benevolentes. O capitão, com o distintivo de tigre branco brilhando 
em seu peito, rosnou para baixo, sua pele enrugada como couro. Dois outros 
em seu esquadrão flanqueavam uma grande carroça de prisão reforçada com 
pedra-negra, cerca de uma dúzia de passos atrás. 
Um terceiro homem seguiu o capitão como uma sombra. Ao contrário 
dos mantos das Patrulhas, sua túnica e manto eram pretos, forrados de ouro; 
seu cabelo estava descolorido como trigo deixado por muito tempo ao sol, 
seus olhos o gelo das geleiras no Mar Silencioso do Norte. Havia algo duro 
em sua expressão que fez Ana apertar a mão de May com mais força. 
 
— Qual é a perturbação? — exigiu o capitão. Seus olhos frios passaram 
por Ana e May, demoraram-se no vendedor de doces e finalmente pousaram 
no nobre. — Mesyr? 
Ana deu um passo lento para trás, e depois outro, a mão de May 
apertada na dela. Se recuasse o suficiente, ela se misturaria à multidão de 
espectadores. Havia uma barraca de kechyans vários passos à sua direita que 
poderia se esconder atrás. Os Mantos Brancos nunca a encontrariam. A não 
ser que tivessem um Afinita... o que era extremamente raro. 
— A-Afinita — chiou o nobre, que se levantou e estava sacudindo 
trêmulos lascas de madeira de suas peles finas —, Bruxas imundas! 
Três, quatro passos. A barraca kechyan estava ao seu alcance... 
— Onde você está indo? 
O sangue de Ana virou gelo. Os olhos do capitão, tão sem emoção 
quanto sua voz, olharam diretamente para ela. 
— Fique onde está — ele continuou —, esta é uma verificação de rotina. 
Ao seu lado, May estava tremendo, sugando respirações rápidas e 
superficiais. 
Lenta e deliberadamente, o capitão estendeu a mão enluvada para a 
vendedora de doces. 
— Seu emprego e documentos de identificação. 
— Ana. — May estava começando a hiperventilar, suas palavras saindo 
rapidamente, desigualmente. — Nós temos que ir... eles são homens maus... 
Suor frio escorria pela nuca enquanto Ana observava a vendedora de 
doces procurar por pergaminhos em sua túnica e depois segurá-los. 
— Uma grã Afinita — observou o capitão com desinteresse. Ele correu 
um olhar superficial sobre os pergaminhos antes de jogá-los no chão. 
 
— Ana — May implorou. Ela estava encolhendo para trás, seus olhos 
arregalados, seu rosto sem sangue —, nós não temos identificação... 
O pavor afundou no estômago de Ana quando o capitão voltou seu 
olhar sem vida para ela e May. Ela se viu enraizada no lugar, sua mente vazia 
de medo e dispersando quaisquer pensamentos racionais que pudesse ter 
tido. 
As luvas pretas do capitão se estendiam em direção a elas. 
— Seu emprego ou documentos de identificação. 
Não, uma parte do cérebro de Ana gritou. Não, não, não, não, não... 
Ela se interrompeu, respirando fundo para estabilizar seu batimento 
cardíaco. Eram Patrulhas Imperiais... defensores da lei, vigilantes de seu 
império. Não podiam significar danos. 
No entanto... ela nunca os tinha visto checar por emprego e documentos 
de identificação. 
Inalando outro gole de ar, Ana lutou para manter o nível de voz 
enquantorespondia: 
— Não temos documentos. 
Os olhos do capitão se estreitaram e ele olhou para a carroça de pedra-
negra. Só então Ana percebeu a sensação de estar sendo observada, os pelos 
dos braços e do pescoço se arrepiando. 
Um dos Patrulheiros a olhou ao lado da carroça da prisão. Vestido com 
o mesmo branco de seu kapitan, ele estava nas sombras, seus olhos 
penetrantes como punhais. Uma sensação estranha a percorreu: um puxão 
sutil, como se alguém estivesse puxando laços invisíveis da mesma forma que 
ela invocava o sangue dos outros. 
Yaeger, seus sentidos gritavam para ela. Ele é um Yager. 
 
Um caçador, em Cyriliano antigo: um tipo de Afinidade com o poder de 
sentir e controlar outras Afinidades. Kapitan Markov disse a ela que estes 
eram reconhecidos como os mais poderosos e raros dos Yaegers, 
frequentemente observados pelas Patrulhas Imperiais para manter a paz 
entre Afinitas e não Afinitas. 
O olhar do Yaeger cortou seu capitão e o homem estranho vestido de 
preto; ele deu um aceno curto. 
O capitão voltou-se para Ana. 
— É ilegal alguém ser encontrado sem os documentos de identificação 
adequados, especialmente os Afinitas. Precisamos levá-la para interrogatório. 
Nosso empreiteiro pode explicar isso para você. — Ele acenou para o homem 
de manto preto. 
— Não. — O soluço mal saiu dos lábios de May, alto o suficiente para 
apenas Ana ouvir. — Não dê ouvidos a eles, Ana. Ele é um homem mau. Um 
corretor. 
Um corretor. Ana olhou, sua mente cambaleando. Os Mantos Brancos, 
especificamente, foram feitos para encontrar e parar os corretores. 
Como duas figuras em lados opostos da lei acabaram trabalhando 
juntas? 
Quem você acha que paga mais? O Império? Ou as empresas lucrativas que 
dependem deles para empregar Afinitas? Ramson havia perguntado. 
De repente, tudo se encaixou com o peso de um mundo quebrado: a 
imagem que estava procurando no escuro, agora incrivelmente brilhante. 
Ana cambaleou para trás. 
Isso estava errado... estava tudo errado. Os homens maus eram os 
traficantes e corretores afins que sua mamika Morganya havia descrito para 
 
ela como vilões de contos de fadas. Não os soldados imperiais que serviram 
seu pai e irmão, que se comprometeram a proteger o Império. 
Que tipo de Império seu pai governava? 
— Nós não estamos... — Sua voz tremeu, e qualquer negação que 
estava prestes a expressar se dissipou em seus lábios. A vendedora de doces 
se retirou para o lado de seu empregador, agora apaziguada, com os olhos 
baixos, o rosto nas sombras, o contrato de trabalho tremendo em suas mãos. 
Eu sou Anastacya Kateryanna Mikhailov, Ana queria gritar, lágrimas 
queimando seus olhos. Eu sou a princesa herdeira de Cyrilia. 
No entanto, a coisa complicada sobre a verdade, Ana percebeu, de pé 
sob a sombra das Patrulhas Imperiais com as mãos vazias e uma capa puída, 
era que não significava nada se não pudesse ser provada. 
E ocorreu-lhe, neste exato momento, que não havia nada diferente entre 
ela e a grã Afinita. 
Vagamente, ela ouviu o capitão dando ordens ao resto de seu 
esquadrão. 
— Prepare-se para a prisão legal à força, caso os sujeitos não cumpram. 
O Yaeger avançou. 
May gritou. 
E Ana disparou. 
Ela pegou May em seus braços, engolindo um grito enquanto corria 
pela multidão. Ela podia sentir os Mantos Brancos atrás delas, o controle do 
Yaeger em sua Afinidade fluindo e diminuindo como ondas. Com sua 
manipulação, sua consciência do sangue ao redor dela cintilou, jogando fora 
seu senso de equilíbrio. Ele estava ganhando delas... rápido. E May era 
pesada. 
 
Ela tomou uma decisão em frações de segundo. Ana colocou May no 
chão e deu um forte empurrão na garota. May cambaleou. 
— Corra — Ana ordenou —, estarei bem atrás de você. 
— Não! — May gritou. — Ana... 
Naquele momento, o controle do Yaeger sobre ela caiu. Sua Afinidade 
se acendeu; ela aproveitou aquele momento para se apegar ao sangue de 
May. Eu te amo, Ana quis dizer, mas ela só conseguiu dizer: 
— Desculpe. 
Ela pegou o sangue do pequeno corpo de May e jogou a criança o mais 
longe que pôde. 
Ana virou-se para encarar o Yaeger. Ela estava tremendo, 
desesperadamente agarrando sua Afinidade enquanto entrava e saía de seu 
comando. A multidão ao redor dela se separou em pânico quando o Yaeger 
avançou sobre ela. Ele diminuiu a marcha, seus passos caindo nos 
paralelepípedos como a batida de um tambor de execução. 
O pânico embranqueceu sua mente enquanto ela continuava a recuar. 
Pare. Ela queria implorar. Eu sou sua princesa. Sou a princesa de Cyrilia. 
Mas ser princesa significava apenas uma coroa na cabeça e as paredes 
de um palácio para protegê-la desse destino. 
O destino de nascer uma Afinita. 
O Yaeger estava a apenas uma dúzia de passos agora. Ela podia ver as 
linhas esculpidas de seu rosto, as bordas duras de seus músculos como 
mármore cortado, treinado para ser letal. A Afinidade dele apertou a dela 
como uma parede mental indomável, e a Afinidade dela desapareceu. 
Ainda assim, Ana levantou uma mão trêmula... 
O chão explodiu. O rosto do Yaeger mal registrou surpresa antes que 
ele fosse jogado para trás, derrapando pela rua, paralelepípedos caindo ao 
 
seu redor. Uma rachadura havia dividido a estrada entre Ana e o Yaeger. A 
confusão dela se refletiu no rosto dele enquanto eles olhavam para as rochas 
e sujeira que vazavam da fissura, subindo lentamente no ar. 
De uma fileira de barracas atrás deles, uma pequena figura apareceu no 
meio da rua. 
Os punhos de May estavam cerrados, sua testa franzida em 
concentração. No silêncio mortal, sua voz soou nítida e clara do outro lado da 
rua: 
— Você não vai machucá-la. 
Ela inclinou a cabeça. Sem aviso, as rochas suspensas dispararam em 
direção ao Yaeger. Ele grunhiu quando uma dúzia de pedras do tamanho de 
um punho se chocou contra ele, jogando-o para trás. 
Seu domínio sobre a Afinidade de Ana vacilou. 
Ana agiu. Ela esmagou sua Afinidade nas amarras do Yaeger, agarrou-
o e atirou-o mais longe pelas ruas de paralelepípedos, longe de May, longe de 
qualquer possibilidade de chegar a May. Ele teria que matar Ana primeiro. 
Ela sentiu um lampejo de triunfo quando ele bateu no chão e ficou ali, 
imóvel. 
Ela não viu o outro Manto Branco até que fosse tarde demais. 
Uma sombra caiu entre as barracas atrás de May: um Manto Branco 
com arco e flecha, apontado e pronto. 
Ana já estava gritando, e mesmo enquanto corria na direção de May, 
uma parte dela dizia a si mesma que aquilo não era real, não era real, não era 
real. O tempo parecia desacelerar enquanto corria com toda a força que seu 
corpo dava. 
A flecha disparou para frente. May cambaleou. E então, lentamente, ela 
caiu, suave e graciosa como uma folha de outono. 
 
O tempo havia parado. Ana estava em um daqueles sonhos em que, por 
mais que tentasse correr, estava se movendo muito devagar. 
Doze passos. 
Não. Basta. 
Das sombras das barracas, o corretor de manto preto emergiu, o forro 
dourado de seu colarinho brilhando ao sol poente enquanto ele se abaixava. 
A cabeça de May pendeu como a de uma boneca de pano em seus braços 
enquanto ele se virava e corria para a carroça da prisão. 
A fúria explodiu em Ana. 
— Não! — ela gritou, levantando a mão e invocando sua Afinidade. 
Mas não havia nada. Em vez disso, ela encontrou aquela parede 
desconhecida contra seu poder novamente, inflexível e absoluta. 
A vários passos dela, o Yaeger ficou de joelhos. Lama e sangue 
arruinaram seu manto branco perfeito; já, hematomas estavam começando a 
florescer em sua pele exposta. Mas Ana não sentiu satisfação, apenas fúria 
cega, quando ele ergueu os olhos para encontrar o olhar dela. Seus passos 
diminuíram. 
A uma distância atrás dele, o corretor quase alcançou a carroça. A 
forma inerte de May estava pendurada em seus ombros, e Ana podia 
distinguir o brilho de seu cabelo. 
Ela olhou para o Yaeger. Olhou para trás, para a cabeça que desapareciade May. E colocou uma explosão de velocidade em seus passos. 
O Yaeger disparou para a frente. Seus dedos agarraram seus tornozelos 
e a puxaram. Ana jogou as mãos para fora, se segurando antes de bater nos 
paralelepípedos. 
Ela se contorceu, cuspindo cabelo de sua boca e lutando para se apoiar 
no chão. 
 
— Me solte! — ela gritou, chutando o Yaeger, mas seu aperto era de aço 
contra suas pernas. 
Além do vasto trecho de estrada, a carroça da prisão assomava, suas 
portas abertas como a boca de um animal faminto. O corretor se inclinou em 
sua sombra enquanto depositava uma forma pequena e flácida na carroça. A 
cabeça de May pendeu uma vez e desapareceu atrás das paredes de pedra 
negra da carroça. 
O outro Manto Branco trancou as portas. 
Um desespero como ela nunca havia sentido antes envolveu Ana, 
tirando o ar de sua garganta e arrancando lágrimas de seus olhos. 
— MAY! — gritou, sua voz embargada. — MAY! 
Ao ouvir seu grito, alguém olhou para trás, mas não era May. 
O corretor de cabelos descoloridos pelo sol virou-se para ela. Seus olhos 
pálidos se encontraram com os dela. Eles se estreitaram por um momento, e 
então se virou e se foi. 
A mão de Ana se fechou em torno de algo duro, um pedaço de 
paralelepípedo, deslocado por May antes. 
Imaginando os olhos azuis odiosos do corretor, Ana esmagou a pedra 
no rosto do Yaeger. 
Ele soltou um gemido baixo, seu aperto em suas pernas afrouxando. 
Seu domínio sobre sua Afinidade vacilou novamente. 
Ana estava de pé antes mesmo do Yaeger rolar, agarrando o nariz 
escorrendo. Vagamente, ela o ouviu gritando algo para seu esquadrão, viu 
olhares de pânico nos rostos dos Mantos Brancos enquanto montavam em 
seus cavalos. 
 
Ela lançou sua Afinidade para fora e correu, lutando contra o bloqueio 
do Yaeger, suas pernas bombeando desesperadamente enquanto tentava 
fechar a lacuna entre ela e aquela carroça preta. 
O restante do Manto Branco esporeou seu cavalo, e a carroça entrou em 
movimento, ganhando velocidade. Apenas o capitão circulou em direção a 
eles, arco e flecha para fora e capa esvoaçando atrás dele. 
— Kais! — gritou. 
O grito de resposta do Yaeger foi interrompido quando Ana 
arremessou sua Afinidade contra o poder dele. Por um momento, sua parede 
se estilhaçou; ela sentiu um vislumbre dos laços no corpo do capitão e os 
agarrou... 
Os olhos do capitão se arregalaram e seu cavalo tombou bruscamente 
para um lado enquanto seu corpo estava sob seu controle. 
— O que diabos... 
Sua flecha caiu de sua mão, e um frasco de vidro se estilhaçou contra o 
chão. Mesmo a várias dezenas de passos, Ana conseguia distinguir o líquido 
verde escorrendo entre as rachaduras da estrada. 
— Capitão! — Atrás dela, o Yaeger soltou um grito sufocado. — Você 
deve recuar! Ela é perigosa! 
O capitão hesitou, seus olhos passando entre Ana e seu soldado caído. 
Ana aproveitou a oportunidade. 
— Venha me pegar, seu bastardo doente! — gritou. Deixe-o com raiva. 
Instigue-o. Qualquer coisa para impedir aquela carroça de pedra-negra de sair 
daquela praça. 
No entanto, quando Ana jogou sua Afinidade no capitão novamente, 
ele pareceu chegar a uma decisão. Com um último olhar para trás, ele virou 
seu cavalo e galopou atrás de seu esquadrão. 
 
— Não! — Ana engasgou. Mas a carroça e seus cavaleiros de flanco 
dispararam pelas baias, ficando cada vez menores. 
A desesperança apertou sua garganta. 
Ela não tinha ideia de quanto tempo correu, perseguindo a carroça 
mesmo depois que ela desapareceu entre as dachas de tijolos vermelhos de 
Kyrov. Foi só quando tropeçou em um paralelepípedo solto e caiu no chão, 
rasgando o tecido de suas luvas e cortando as palmas das mãos, que ela 
percebeu que estava chorando. E uma voz diferente encheu sua cabeça. 
Não vá para onde eu não posso seguir, May pedira a ela. 
Ela deixou acontecer o que jurou que nunca deixaria acontecer com 
May. May a salvou no momento em que ela mais desesperadamente 
precisava ser salva. E ela havia falhado com May. 
E... era culpa dela. Ana mordeu a mão para não gritar, suas lágrimas 
misturando-se com sangue e poeira. Em outra vida onde ela poderia ter 
nascido de forma diferente, normalmente, ainda seria a Kolst Pryntsessa 
Anastacya Mikhailov, segunda herdeira do trono de Cyrilia. E nessa vida, 
uma vida mais gentil, as leis seriam justas e as pessoas no poder seriam boas 
e as pessoas boas venceriam. 
Ela bateu nos paralelepípedos uma vez, manchando de vermelho o 
chão empoeirado. Ela podia sentir, através de sua Afinidade, pessoas 
circulando ao seu redor e diminuindo a velocidade para olhar, mas ninguém 
parou para ajudar. 
Este não era aquele mundo, pensou Ana. Este mundo não era justo, 
nem gentil, nem bom, e você escolhia continuar lutando ou se render. 
Ana ficou de pé, tirando o pó de sua capa esfarrapada enquanto se 
virava para encarar o Vyntr'makt. Sua Afinidade queimava a cada passo, o 
mundo fervilhando de sangue enquanto ela corria. 
 
Ela encontrou o Yaeger onde o havia deixado. Uma pequena multidão 
se reuniu e várias pessoas se ajoelharam ao seu lado com lenços e tiras de 
gaze. Como eles estavam ansiosos para ajudar o monstro envolto em um 
manto branco. 
Ana focou sua Afinidade e jogou vários espectadores para trás, com as 
mãos levantadas para um efeito dramático. 
— Vão embora — ela rosnou, sua voz cortando os gritos da multidão —
, saiam, ou eu mato todos vocês. 
Ela se virou para encarar o Yaeger. O sangue escorria em riachos de 
onde ela esmagou a pedra em sua cabeça, escorrendo por suas bochechas. Ele 
a olhou com um olho machucado e ficou tenso. 
Ele era Nandjiano, Ana percebeu com surpresa surda, percebendo sua 
pele marrom e cabelos escuros. Ela pensou nos embaixadores que haviam 
agraciado a Grande Sala do Trono do Palácio durante as sessões da corte com 
papai. 
Ele havia atravessado Cyrilia por sua própria vontade? 
Ela sentiu o poder dele descendo sobre o dela, mas em vez do ferro de 
antes, era mais suave. Mais fraco. 
Ela deu de ombros facilmente e agarrou seu sangue, puxando-o para 
uma posição sentada. Ele tossiu, e o carmesim escorreu de seus lábios. 
— Aquele corretor. Para onde ele a está levando? 
O Yaeger apenas a olhou, apertando a boca. 
Ana jogou a cabeça para trás, inclinando-a para que ele mal pudesse 
respirar. Por alguma razão, o rosto de Ramson Quicktongue brilhou diante 
dela. Ele não ameaçaria cegamente... ele encontraria o ponto fraco de seu 
oponente, encontraria algum tipo de alavancagem... e empurraria. 
 
Ela não sabia quase nada sobre esse bastardo, mas era irreconciliável 
para ela que ele usasse o distintivo de honra do tigre Cyriliano no peito... e 
que ele tivesse deixado seu companheiro atirar uma flecha em uma criança de 
dez anos. Ana queria arrancar a insígnia de sua armadura. 
— Eu não vou perguntar de novo — disse ela. 
Suas próximas palavras a surpreenderam. 
— Você é a Bruxa Sangrenta de Salskoff — ele murmurou. 
A respiração de Ana ficou presa. Na lenda, a Bruxa Sangrenta apareceu 
no Mercado de Inverno de Salskoff em Fyrva'snezh e assassinou dezenas de 
pessoas inocentes. Vaporizou-as, de modo que não restava nada deles depois, 
a não ser sangue correndo rios vermelhos nas pedras do calçamento, 
manchando a neve. Ela tinha olhos vermelhos que brilhavam com sua magia 
de sangue e dentes mais afiados que os de um tigre. Uma deimhov do 
inferno; um monstro entre os humanos. 
Ninguém havia ligado a Bruxa de Sangue à princesa doente que estava 
trancada no Palácio Salskoff desde a infância. 
Ana apertou ainda mais o sangue do Yaeger. 
— Então você sabe o que eu posso fazer — ela disse calmamente. 
— Eu sei que você matou oito pessoas inocentes. 
Foi um acidente. Eu tinha sete anos. As palavras quase – quase – deixaram 
seus lábios. Em vez disso, ela disse: 
— E eu vou fazer isso de novo, a menos que você me dê o que eu quero. 
Ele hesitou. 
Ana inclinou a cabeça para o brilhovermelho-sangue do sol poente, de 
modo que o vermelho de seus olhos refletiu a luz. 
— Olha onde estamos. Olhe para todas essas pessoas ao seu redor... 
mães, pais e filhos. Eles podem estar todos mortos em segundos, e será por 
 
sua causa. Você se chama de soldado? Então proteja seus civis. — Ela apertou 
seu aperto em seu sangue, apenas para provar seu ponto. — Diga-me para 
onde ele está levando a criança. 
Um músculo se contraiu na mandíbula do Yaeger, e seus olhos 
pareceram queimar nos dela por uma eternidade. Então ele tossiu uma vez, e 
o fogo se apagou. 
— Nova Mynsk — disse calmamente. 
— Onde em Nova Mynsk? — ela forçou. Quando ele ficou em silêncio, 
ela ergueu o queixo para examinar os poucos vendedores e espectadores que 
ainda permaneciam atrás de suas barracas. — Devo provar a veracidade da 
minha promessa? Quem devo escolher primeiro? Uma criança? Ou sua mãe? 
E como vou torturá-los para que seus gritos... 
— O Playpen. Ele é um dos Lírios. Ele vai empregá-la lá como artista. 
Ela o soltou imediatamente, virando-se para que ele não a visse 
tremendo. Parecia que outra pessoa estava falando através de seus lábios, 
murmurando aquelas palavras cruéis e bárbaras. Como se a influência de 
Sadov permanecesse e ela tivesse falado seus pensamentos distorcidos. 
Enquanto tirava o capuz sobre a cabeça, ela se perguntou algo mais 
sombrio... se a voz de Sadov havia se tornado sua. 
— Não os machuque — disse o Yaeger —, por favor. 
A súplica foi suave, e ela desejou não a ter ouvido. Ana olhou para trás. 
O Yaeger ainda estava sentado no mesmo lugar, mas algo em sua expressão 
havia mudado. Ele estava implorando a ela. E estava com medo. 
Ana pensou no desamparo da grã Afinita, na tristeza que viu nos olhos 
de May quando a conheceu. E ela viu um eco disso nos olhos deste soldado. 
Sua raiva se dissipou como vapor no frio. 
 
— Por que você faz isso? — ela perguntou em vez disso. — Você é um 
deles. — Uma pausa. — Um de nós. 
— Você acha que eu tenho escolha? — Sua voz era crua. — Neste 
império, se eu não sou o caçador, então me torno a caça. 
Ela nunca esqueceria o jeito que ele a olhava, Yaeger e Afinita em um. 
Presos em um sistema corrompido. 
Suas escolhas, a voz de Luka sussurrou, mas algo nas palavras de seu 
irmão estava quebrado agora, mudado com o ano que ela passou longe do 
Palácio. As escolhas eram para aqueles com privilégio e poder. Quando você 
não tinha nenhuma, tudo o que podia fazer era sobreviver. 
Ela saiu antes que ele pudesse ver o quanto seu encontro com ele a 
abalou. Ela ameaçou matar pessoas inocentes. Ela torturou um homem. 
Fiz isso para salvar May, disse a si mesma. 
Mas talvez todos os monstros fossem heróis aos seus próprios olhos. 
 
12 
Vyntr'makt se espalharam por Kyrov como um incêndio. Ana correu 
pelas ruas que, momentos antes, celebravam a chegada do inverno. Agora os 
tijolos das dachas brilhavam vermelho-sangue ao sol poente, e as fachadas 
das lojas fechadas a olhavam boquiabertas como olhos vazios. Ela pegou 
trechos de conversas abafadas das pessoas da cidade correndo para casa 
depois de um dia de trabalho. 
Ana puxou o capuz para baixo e seguiu o fluxo constante de pessoas 
para longe do Vyntr'makt. A exaustão estava tomando conta dela, o cansaço 
profundo que vinha de usar sua Afinidade, e ela precisava sair, agora, antes 
que o esquadrão de Mantos Brancos trouxesse reforços. 
Ela, milagrosamente, derrotou um Manto Branco, mas ela estremeceu 
com o pensamento de ter que lutar contra um esquadrão inteiro. Sua 
Afinidade era um músculo, a ser exercitado diariamente, nunca levado ao 
extremo por medo de perder o controle. E ao longo dos últimos anos, Ana o 
exercitou muito pouco e, recentemente, o esticou muito. 
Dentro de uma vitrine de vidro, fênix lacadas e falcões de gelo giravam, 
captando a luz do crepúsculo. Ela e May estavam naquela loja há apenas 
meia hora, sussurrando sobre Mantos Brancos como se fossem uma ameaça 
distante. Ela virou a cabeça quando virou uma esquina, a dor das lágrimas 
queimando profundamente em seu coração. 
Ela estava em uma rua menor e mais vazia. Longe estavam as belas 
dachas residenciais, as vitrines decoradas e os postes de iluminação polidos. 
Prédios de pedra com telhados de madeira amontoados, dilapidados e em 
 
ruínas. E, no final da rua, havia um prédio com telhados de telhas vermelhas. 
Uma placa de madeira anunciava em letras douradas: A Fortaleza do Urso 
Cinzento. 
Algo na estalagem a surpreendeu – talvez fosse a falta de música ou 
conversa enquanto ela se aproximava, ou o fato de que, apesar de sua 
aparência surrada, suas portas eram feitas de carvalho polido. 
Seus passos diminuíram por vontade própria, e ela parou a vários 
prédios de distância. Ela começou a se convencer de que estava sendo 
paranoica quando as portas de carvalho se abriram e dois homens saíram. 
Ana se jogou na sombra de uma porta próxima e olhou para fora. Havia 
algo estranho sobre esses homens também. Um, vestido com uma capa preta 
de montaria e botas de couro, movia-se com uma graça antinatural e 
predatória. Ana captou o brilho não de uma, mas de duas adagas em seu 
cinto enquanto ele pegava uma bolsa volumosa de sua capa. Um mercenário. 
O outro, alto e pesado como um urso, usava um avental encardido de 
barman. Ele olhou ao redor furtivamente antes de pegar a bolsa, a ganância 
em seu rosto inconfundível mesmo a esta distância. 
O mercenário jogou a bolsa no barman. Moedas tilintaram quando o 
barman a pegou no ar. Ele perdeu, ou ignorou, o olhar irônico que o 
mercenário o lançou enquanto ele abria as cordas para examinar o conteúdo 
da bolsa. 
O mercenário inclinou a cabeça para a esquina vazia. Esperando. 
Um arrepio percorreu Ana. Exausta como estava, ela manteve sua 
Afinidade acesa. 
Como se fosse uma deixa, um terceiro homem apareceu na esquina, 
conduzindo dois cavalos. Este homem estava vestido como o primeiro: capa 
 
preta, botas pretas e capuz preto obscurecendo seu rosto. Ele virou os cavalos 
e, quando os mercenários montaram, o estômago de Ana caiu. 
Ela pensou que o segundo cavalo carregava um grande saco, mas ela 
percebeu agora que era na verdade uma pessoa. Uma sensação horrível de 
desânimo tomou conta dela quando os cavalos se mexeram e o rosto do 
cativo ficou à vista. Cabelo castanho, mandíbula esculpida e nariz quebrado. 
Ramson Quicktongue era a última viagem desses mercenários. 
O pânico torceu seu estômago. Ela pensou em pular com sua Afinidade 
ali mesmo, agora mesmo. Mas seus ossos estalaram em protesto, e ela 
agarrou a parede para se firmar. Não havia chance de vencer três pessoas em 
seu estado atual. Além disso, poderia haver mais deles. 
No entanto, ela também não podia se dar ao luxo de perder Ramson 
Quicktongue. 
Ela não poderia vencê-los pela força bruta. Ela teria que jogar com 
inteligência. Ataque por trás. 
Divindades, ela pensou. Uma noite com Quicktongue e ela já estava 
pensando como ele. A Ana de um ano atrás teria valorizado a honra e 
enfrentado seus inimigos de frente. Mas então, ela supôs, em um mundo de 
criminosos, senhores do crime e assassinos, não havia honra e não havia 
regras no jogo. Você só jogava para ganhar. 
Ana observou os dois mercenários virarem a esquina e prendeu a 
respiração, contando até dez. Quando ela saiu para a rua, apenas o barman 
permaneceu, segurando sua bolsa de moedas. 
Ele se virou quando ela estava vários passos atrás dele, mas já era tarde 
demais. A mão de Ana subiu e ele congelou, dor e choque passando por seu 
rosto enquanto ele inevitavelmente sentia o controle dela em seu sangue. Ana 
 
deu um puxão, só para dar ênfase, e a bolsa de ouro caiu de suas mãos. 
Folhas-de-ouro caíram no chão. 
— Você se move, e eu vou te matar antes que você possa levantar um 
dedo mindinho — disse Ana. O barman a olhou com medo renovado —, 
agora eu vou deixá-lo ir, porque preciso que você fale. 
Umanova onda de fadiga a invadiu quando o soltou. Ela precisava 
conservar a pouca força que lhe restava. 
O barman ficou imóvel como uma estátua. 
Ana inclinou a cabeça. 
— Diga-me. Quem eram aqueles homens? 
Seus olhos deslizaram para as ruas ao redor deles, como se temesse que 
os mercenários emergissem das sombras. O medo era bom, no entanto. O 
medo era uma arma, como Sadov a ensinara muito bem. 
— Caçadores de recompensas — disse o barman, suas palavras 
arrastadas com um sotaque Cyriliano de baixo nascimento. 
— E para onde eles o estão levando? 
— Kerlan — o barman sussurrou, ficando ainda mais pálido. O nome 
parecia lançar uma sombra sobre ele, apertando o medo em seu pescoço. 
— Quem? 
— Kerlan. Senhor Kerlan. 
— Quem é esse? E onde ele está? 
— O Chefe da Ordem, em Nova Mynsk. 
Ela queria perguntar de que Ordem ele falava, mas seu coração parou 
com as palavras Nova Mynsk. May estava indo para lá. 
Todos os outros pensamentos se dispersaram. Sua direção foi clara. 
— Preciso de um cavalo — disse Ana, fazendo uma aposta. 
O barman assentiu freneticamente. 
 
— Os estábulos. Escolha o que quiser. 
Ela o recompensou com um sorriso sem graça, como o que vira tantas 
vezes no rosto de Sadov. 
— Mais uma coisa. Eu vou levar isso. 
Ela pegou a bolsa de folhas-de-ouro que havia sido abandonada na 
estrada de terra. Ela não se sentiu mal por isso, Ana percebeu, enquanto 
girava nos calcanhares e caminhava em direção aos estábulos nos fundos. 
Afinal, os caçadores de recompensas haviam pago aquele ouro por 
Quicktongue, e como Quicktongue era seu prisioneiro, era lógico que ela 
deveria ficar com o ouro. 
— Fique aí até não poder mais ouvir meu cavalo — ela gritou por cima 
do ombro —, você se move, e eu vou fazê-lo sangrar até secar. 
Os estábulos eram surpreendentemente bem conservados. Ana 
escolheu uma valkryf com um casaco cor de leite, já selado, como se o dono 
esperasse uma breve parada. Quando saiu dos estábulos em um trote rápido, 
o barman ainda estava de pé onde ela o havia deixado. Ela manteve sua 
Afinidade afiada nele até que estivesse longe o suficiente para que o brilho de 
seu sangue se desvanecesse para um lampejo, e depois para nada. 
 
*** 
 
O sol estava quase se pondo, sua luz se espalhando pela extensão da 
Syvern Taiga como um último suspiro. Nuvens de tempestade se 
acumularam no horizonte, e o ar ficou mais denso com a promessa de chuva. 
Ana estendeu sua Afinidade, varrendo as redondezas em busca da 
trilha dos caçadores de recompensas. A Fortaleza do Urso Cinzento estava 
perto o suficiente da margem da cidade para que ela não tivesse que 
 
atravessar uma multidão de corpos antes de se aproximar dos caçadores de 
recompensas. Não havia dúvida; ela sentiu, borradas e distantes, três figuras: 
duas com sangue correndo rápido e uma lenta, várias centenas de passos à 
sua frente. 
Enquanto conduzia seu cavalo ao redor da última dacha, ela avistou 
dois cavaleiros à distância, correndo para as sombras da Syvern Taiga. De 
repente, ela desejou ter algum tipo de arma consigo. Ela nunca tinha 
aprendido a lutar, ou mesmo a manusear uma espada, e entrar em uma luta 
com uma Afinidade enfraquecida e mãos vazias a fazia se sentir 
extremamente vulnerável. 
Mas ela não tinha escolha. May se foi, seu alquimista ainda está 
desaparecido, e sua única esperança estava inconsciente nas costas de um dos 
cavalos dos mercenários. Ana não tinha arma nem plano, mas também não 
tinha mais nada a perder. 
Cem passos. Ela se aproximou cada vez mais. A qualquer momento, os 
mercenários poderiam se virar e avistá-la. 
Cinquenta passos. Ela podia vê-los claramente agora, movendo-se muito 
mais devagar do que ela com o criminoso inconsciente amarrado a um 
cavalo. 
E eles a viram. 
Eles diminuíram a velocidade de seus cavalos e contornaram a margem 
das árvores, as mãos demorando perto de suas espadas. Um vento frio 
agitou-se, sacudindo as folhas secas de inverno na grama morta. Sombras 
tremeluziram nos rostos dos homens. 
Ana deu um puxão no capuz. Seu coração batia dolorosamente em seu 
peito, e ela se viu estendendo a mão com sua Afinidade, mantendo-a 
equilibrada como se fosse uma lâmina. Uma sensação de calma a envolveu 
 
quando sua Afinidade se estabeleceu sobre o sangue pulsando pelos corpos 
dos mercenários. Dela para comandar, se ela desejasse. 
Ela agarrou esse pensamento, deixando-o alimentar sua coragem. 
— Liberte esse homem. Ele é meu encarregado — gritou. 
O mercenário cavalgando sozinho, o líder, falou primeiro. Mesmo em 
seu cavalo, Ana podia ver que era um homem incrivelmente alto. Ele era o de 
barba preta, aquele que ela tinha visto entregar a bolsa de folhas-de-ouro ao 
barman. Ela estava perto o suficiente para ouvir seu grunhido baixo. 
— Você tem coragem, moça, cavalgando atrás de nós sozinha. Tem um 
desejo de morte, ou o quê? 
— Você já deve ter ouvido — disse Ana —, o que aconteceu no 
Vyntr'makt em Kyrov? 
— O que? Você perdeu sua boneca damashka? — Barba Negra e seu 
companheiro gargalharam. 
Ana manteve o rosto em branco. Ela sabia das aulas com seu irmão que 
algumas negociações exigiam placidez. Outros pediam firmeza. E finalmente, 
no mais raro dos casos, você mostrava seu poder. 
Lentamente, Ana tirou a luva e esticou os dedos, levantando a mão bem 
alto. 
Ela convocou sua Afinidade. 
A zombaria nos rostos dos mercenários desapareceu, substituída por 
uma alternância de horror e desgosto, enquanto as veias em sua mão 
começaram a escurecer, das pontas dos dedos ao cotovelo. 
— Uma Afinita — zombou Barba Negra —, você acha que pode nos 
ameaçar só porque é um desses deimhovs? Oi, Stanys. Veja-me derrubar essa 
bruxa. 
— Precisa de ajuda, chefe? — seu companheiro gritou. 
 
 
— Leve a pedreira para um lugar mais seguro. — Barba Negra virou-se 
para Ana com um sorriso malicioso. — A bruxa é minha. 
Com a raiva entalada em sua garganta, mas ela a forçou para baixo, 
enquanto pensava em Luka. Seu bratika sempre lutou pela paz sempre que 
possível. Ana deu-lhe uma última tentativa. 
— Entregue-o agora, e ninguém precisa se machucar. 
A expressão de Barba Negra escureceu. 
— Eu vou te ensinar tudo sobre machucar — rosnou, e lançou seu cavalo 
em direção a ela. 
Seu cavalo gritou com o ataque repentino, saltando para trás. Ana teve 
tempo suficiente para sentir a mudança no equilíbrio antes que a sela se 
inclinasse embaixo de si e caísse. Por instinto, ela se agarrou ao sangue de 
Barba Negra e puxou. 
Seu xingamento soou, e ela o viu cair assim que suas costas sacudiram 
contra o chão, derrubando o vento dela. Perto, houve um baque quando 
Barba Negra amorteceu sua queda com um rolo. 
Ana respirou fundo, desejando que seus membros atordoados 
funcionassem novamente. Ela ouviu o schick da adaga de Barba Negra 
enquanto ele a tirava da bainha. 
— Maldita deimhov — rosnou, e saltou. 
Através da névoa em sua mente, ela agarrou sua Afinidade. 
Barba Negra baixou sua lâmina. Um estrondo de trovão abafou seu 
grito enquanto a dor queimava sobre seu ombro. O sangue floresceu em seus 
sentidos. 
O sorriso do mercenário ficou branco. Prendendo-a com seu corpo, ele 
trouxe sua adaga para sua bochecha. Na penumbra, ela podia distinguir o 
 
líquido esverdeado enquanto formava uma gota na ponta da lâmina. O terror 
a encheu. 
— Reconhece isso, sua bruxa? — O tom de Barba Negra era triunfante, 
zombeteiro. — Você acha que só porque você é uma Afinita, isso a torna mais 
poderosa do que nós? 
Lentamente, ela estava recuperando o controle de seu corpo; a névoa 
em sua mente estava se dissipando. Ana contraiu um dedo. 
— Pense de novo. Você fez uma escolha idiota, revelando-se para nós, 
Deimhov. Eu domino monstros como você. Eu troco monstros como você. — 
Barba Negra aproximou o rosto do dela. — Você não me assusta. 
Com a outra mão, ele empurrou um frasco de vidro de Deys'voshk aos 
lábios dela. Líquidoamargo encheu sua boca. Ela estava de volta às 
masmorras novamente, correntes de metal e tiras segurando-a no lugar, o 
sabor do veneno pungente inundando seus sentidos. Minha monstrinha, 
sussurrou Sadov. 
Ela engasgou agora, sua mente paralisada com medo, sua garganta 
engolindo o Deys'voshk como ela tinha sido condicionada. 
Algo espirrou em seu rosto. A princípio, Ana pensou que estava 
chorando, mas quando outra gota caiu em seu rosto, depois outra, ela 
percebeu que estava chovendo. 
O céu se iluminou com um relâmpago, e trovões bateram quando a 
chuva começou a cair. Um vento frio rasgou seu cabelo, incitando-a em 
sussurros raivosos. Ela não estava em uma masmorra, não era Sadov, e ela 
não era a garota indefesa e assustada que tinha sido. 
E ela havia desenvolvido uma tolerância aos Deys'voshk. 
Barba Negra jogou seu frasco na grama. Um relâmpago brilhou, 
refletindo no vidro, a um braço de distância de Ana. 
 
— Ainda se sentindo poderosa, sua bruxa? — ele sussurrou em seu 
ouvido. — Não tenho uma preferência particular pelo seu tipo, mas conheço 
algumas pessoas que têm. — Ele agarrou seu queixo com força suficiente 
para machucar. Ana forçou seus olhos a permanecerem em Barba Negra 
enquanto sua mão serpenteava ao longo da grama. — Muitas coisas que se 
pode fazer com um rosto bonito como o seu. Há muitas folhas-de-ouro que se 
pode pagar. — Seu sorriso se alargou, e sua mão vagou para o cinto. — Mas 
primeiro, eu vou ter que experimentar por mim mesmo... 
A mão de Ana se fechou em torno do frasco de vidro. Com toda sua 
força, ela o esmagou em seu rosto. 
Os estilhaços perfuraram sua palma, enviando rajadas afiadas de dor 
pelo braço, mas Ana só sentiu uma satisfação sombria quando o homem 
uivou, segurando seu rosto. O sangue escorria por suas bochechas, e quando 
ele tirou a mão, Ana viu que um caco de vidro havia se alojado em seu olho 
direito. 
Ela atacou. Sua Afinidade ainda estava lá, ainda forte apesar da névoa 
de Deys'voshk que começou a rastejar em seus sentidos. Ela bloqueou o 
sangue escorrendo pelo rosto de Barba Negra, agarrando isso e os laços 
dentro de seu corpo e dando a tudo um único puxão vicioso. 
Era como abrir uma garrafa de vinho; o sangue escorria da boca de 
Barba Negra por sua persuasão, correndo pela grama em riachos com a água 
da chuva. 
Morra, pensou Ana, a fúria envolvendo-a, incandescente. O que ele 
queria fazer com ela, o que ele provavelmente fez com dezenas de outras 
Afinitas impotentes – ela se certificaria de que ele nunca seria capaz de fazer 
nada disso novamente. 
Morra. 
 
Um relâmpago iluminou o rosto ensanguentado de Barba Negra e, por 
um momento, Ana viu o rosto do corretor que havia roubado May, seus olhos 
pálidos de gelo cravados nos dela. 
A ira queimava em suas veias; ela deu um puxão violento. Houve o 
som molhado de carne se rasgando. Barba Negra fez um som de asfixia 
quando seu peito se abriu; por um momento ele ficou suspenso no tempo, 
boca aberta, olhos arregalados, gotas de seu sangue brilhando como rubis na 
chuva. 
Então seus olhos se fecharam e ele tombou na grama com um baque 
surdo. 
A exaustão sufocou Ana, tão repentinamente que sua visão ficou turva. 
Seus membros eram de chumbo; sentiu como se estivesse afundando na 
lama. Ela não conseguia mais dizer se a tontura era por causa do efeito 
venenoso do Deys'voshk em seu sistema ou por esforço excessivo. Talvez 
fosse os dois. 
— O que... 
A vinte passos de distância, o segundo mercenário 
— Stanys — desmontou. Ele olhou para seu líder incrédulo antes de 
seus olhos pousarem em Ana. — O que diabos você fez, sua deimhov? 
Sua cabeça girava enquanto ela se levantava. A adaga de Barba Negra 
estava na lama ao lado de seu corpo, descartada, mas ela não achava que teria 
forças para pegá-la. 
— Vá embora, ou eu vou matar você também. — Sua voz mal carregava 
o som da chuva. 
Stanys espalmou sua adaga. Havia um desafio em seus olhos quando 
ele deu um passo à frente. Então outro. E outro. 
 
Ele estava testando as águas, vendo o quão perto poderia chegar antes 
que ela usasse sua Afinidade. Vendo se ela ainda podia. 
As pernas de Ana tremeram com o esforço de ficar de pé. O mundo 
balançou quando ela agarrou sua Afinidade. Por favor. Ela odiava sua 
Afinidade, a ideia de usá-la... mas agora ela precisava dela. Não havia mais 
nada entre ela e a lâmina na mão de Stanys. 
Sua cabeça se partiu de dor. Ana caiu de joelhos. Ao erguer a cabeça 
para olhar para Stanys, percebeu que sua Afinidade havia chegado ao limite. 
Ela poderia muito bem estar tentando agarrar o ar vazio, o vento retorcido. 
Não, pensou, tremendo, sua cabeça latejando a cada passo do homem 
que se aproximava. 
A sombra de Stanys caiu sobre si; ela podia ver a pele de suas botas de 
onde estava ajoelhada, a curva de sua lâmina de aço negro que separava a 
chuva. Suas mãos tremiam. Era isso? 
A adaga do mercenário brilhou. Relâmpagos riscaram o céu, 
iluminando sua lâmina... e a sombra atrás. 
Stanys balançou sua lâmina para baixo. 
E encontrou o metal. Um grito estridente soou na noite. Um grito de 
guerra. 
— Mexa-se! — gritou Ramson. Com um último jorro de força, Ana 
rolou para longe deles assim que Ramson se lançou para frente. 
Ana levantou a cabeça e viu como Ramson Quicktongue, criminoso e 
bastardo egoísta, lutar por suas vidas. 
 
 
 
13 
O mercenário atacou, duas adagas brilhando como os olhos de um 
demônio através da chuva pesada. Ramson aparou o golpe de frente, 
grunhindo enquanto se esquivava por pouco do golpe da segunda adaga. Ele 
girou e cortou para o lado. A ponta de sua espada desviou em um arco 
gracioso, mas nem perto do mercenário. 
Seu oponente atacou novamente, lâminas gêmeas implacáveis. Metal 
ressoou quando Ramson bloqueou uma adaga. Desta vez, o segundo o 
mordeu em um golpe vicioso em seu antebraço. 
Fazendo uma careta, ele girou para fora do caminho, recuando o 
máximo que pôde sem puxar o homem para mais perto da bruxa. O sangue 
escorria da ferida em seu braço, misturando-se com a chuva. Merda, ele 
pensou, reajustando seu aperto escorregadio e balançando a cabeça para 
limpar a tontura do golpe de Igor mais cedo. Merda. Seu oponente era mais 
alto e mais forte. 
E Ramson estava enferrujado. 
Pense, disse a si mesmo desesperadamente. Ele precisava ganhar tempo. 
Seu inimigo atacou. Ramson encontrou as lâminas gêmeas com um 
golpe próprio, cortando para baixo. Metal gritou. Ele torceu sua lâmina com 
força, usando uma técnica que aprendera com seu mestre espadachim, 
travando momentaneamente as duas adagas. O caçador de recompensas o 
olhou e mostrou os dentes. 
— Apenas um lembrete — Ramson gritou sobre suas lâminas 
emaranhadas —, Lorde Kerlan provavelmente me quer inteiro, certo? 
 
— Eu vou te levar inteiro — o mercenário rosnou —, depois de eu te 
cortar e costurá-lo novamente. 
Não era uma confirmação, mas era o mesmo: Kerlan o estava caçando. 
Embora Ramson, ironicamente, apostasse sua vida que Kerlan o queria de 
volta vivo. Se Kerlan o quisesse morto, você acordaria com um punhal contra 
seu pescoço e sua garganta cortada antes mesmo de poder gritar. 
A maioria das pessoas, de qualquer forma. Havia uma razão para 
Ramson ter sido vice de Kerlan. 
Enquanto Kerlan ainda o quisesse vivo, Ramson tinha uma moeda de 
troca. 
Com um grunhido, Ramson se virou e torceu sua lâmina, girando um 
círculo completo para que ele estivesse vários passos atrás, espada erguida. 
— Não precisa ficar tão bravo com seu parceiro morto. Sem ele, agora 
você terá o dobro da recompensa. 
— Eu não dou a mínima para ele. — O mercenário ergueu uma adaga, 
apontando por cima do ombro de Ramson. — Assim que eu cuidar de você, 
farei aquela bruxa se sentir no inferno antes de morrer. 
O sangue de Ramson ficou gelado. Ele conhecia esses tipos de homens: 
assassinos que não conheceram nada além de violência durante toda a vida. 
Para Ramson,a violência era um meio para um fim. Para esses homens, a 
violência não tinha fim. 
Você poderia correr, uma voz dentro dele insistiu. Deixe a garota com ele e 
aproveite a chance de escapar. 
Ele a mataria. Faria coisas piores com ela. 
Você não se importa, a voz insistiu. Você cometeu o erro de se importar antes. 
E eles acabaram mortos de qualquer forma. 
 
A lógica lhe dizia que escapar era o melhor curso de ação. O cálculo lhe 
disse que o mercenário era mais alto e mais forte, e que suas próprias chances 
de vencer eram menores do que uma lua nova. 
No entanto, algo mais poderoso que a lógica e mais convincente que o 
cálculo rugiu em suas veias enquanto ele apontava sua lâmina para o 
mercenário. Ramson cravou os calcanhares no chão. 
— Ela é minha — ele rosnou —, e eu não compartilho. 
Com um grunhido, seu inimigo avançou. Ramson disparou para trás, 
esquivando-se de cada golpe rápido das duas lâminas alternadas. Desviar, 
abaixar, girar, desviar, como se estivesse em uma dança mortal, seus 
movimentos leves e fluidos. As lições de sua juventude estavam voltando 
para ele e sentiu como se tivesse sido transportado para outro tempo e lugar, 
quando seu mestre de espadas estava caindo sobre ele sob o azul brilhante de 
um céu Bregoniano. 
Fluido como o rio, forte como o mar. 
Esta era apenas mais uma lição; apenas mais uma dança. 
Ramson saltou para fora do caminho quando as lâminas do mercenário 
o golpearam, tão rápido que eram um borrão cinza-prateado na chuva. Golpe 
após golpe, o mercenário se abateu, seus golpes ficando mais rápidos e mais 
fortes. Ramson se esquivou. Rosto, garganta, peito, pernas – volta e meia, o 
canto de suas lâminas subindo a um crescendo. 
Ramson fintou para a esquerda; seu oponente atacou. 
Ramson cortou para a direita; seu oponente se esquivou. 
Pouco a pouco, a exaustão de Ramson começou a aparecer. Seus 
membros doíam. Logo sua fraqueza lhe custaria. 
Ramson deu um pulo para trás quando o mercenário desceu as lâminas, 
mas sentiu a picada aguda de metal em seu peito. O sangue aqueceu suas 
 
roupas. Ele mal teve tempo de olhar para cima quando o punho do 
mercenário colidiu com seu rosto. 
A dor explodiu em sua mandíbula. Pontos pretos encheram sua visão e 
o mundo girou enquanto ele cambaleava. Ele mergulhou para trás na lama 
fria e úmida. 
Ofegante, rolou para o lado, pegando sua espada. 
Uma forma escura irrompeu da cortina de chuva, e o mercenário estava 
sobre ele, acertando um, dois, três socos violentos em seu abdômen. Ramson 
vomitou; estrelas irromperam diante dele. 
Um lampejo de metal. Ajoelhando-se em cima de Ramson, o mercenário 
baixou sua lâmina. 
As mãos de Ramson voaram para cima. Seus braços gritaram; suas 
pernas pareciam algodão; sua cabeça estava leve pelas respirações que não 
conseguia fazer. 
Um sorriso selvagem dividiu o rosto do mercenário enquanto ele jogava 
o peso de seu corpo para empurrar a adaga para baixo, sua ponta de aço 
brilhando como uma promessa perversa. O homem ia afundar a lâmina no 
coração de Ramson. Lentamente. 
Vou morrer. 
A ponta da adaga pressionou sua caixa torácica, tirando sangue. Um 
grito estrangulado rasgou da garganta de Ramson quando ele deu um 
empurrão final... 
E de repente, a pressão em seu peito e em seus braços desapareceu. A 
cabeça do mercenário voou para trás bruscamente, a garganta exposta. Por 
um momento, ele ficou paralisado, o contorno rígido na chuva como se 
estivesse lutando contra uma força invisível. E, então, caiu na lama. 
 
Ramson se agachou. Mesmo quando tropeçou para longe, o mercenário 
começou a levantar. 
Mas foi a figura dez passos atrás do mercenário, apenas um contorno na 
chuva que caía, que chamou a atenção de Ramson. 
A bruxa estava de quatro, o vermelho em seus olhos retrocedendo 
enquanto se afastavam do mercenário. O sangue escorria de seu nariz e boca. 
Por um momento, seus olhares se encontraram. E, então, ela desmoronou. 
Ramson tinha ouvido falar de Afinitas ultrapassando seus limites. As 
Afinidades extraíam energia de seus corpos, e o esforço excessivo poderia 
levar à inconsciência ou, nos casos mais raros, à morte. 
Por uma fração de segundo, olhando para o quadro imóvel da bruxa, 
ele se perguntou se ela havia morrido, e como ele se sentiria sobre isso. Ela 
era uma Troca e um ativo valioso, então isso seria uma perda... mas havia 
algo mais puxando sua consciência. 
Ela o salvou... de novo. Pela segunda vez, ele tinha uma dívida de 
sangue com a bruxa. 
Há muito tempo, seu pai, o demônio que se denominava pai, lhe 
ensinara o significado das dívidas de sangue, da honra e da coragem. 
Ramson se obrigou a esquecer quase todas as lembranças daquele homem. 
Mas hoje, com a chuva rugindo ao seu redor, formas fantasmagóricas se 
ergueram do chão, sussurrando para ele as palavras de seu pai. 
Um relâmpago brilhou, delineando a forma imponente do mercenário 
em meio à chuva cortante. Sua espada brilhava molhada quando ele se virou 
para a forma amassada de Ana. 
A cabeça de Ramson girou. O chão ficou borrado, entrando e saindo de 
foco. 
 
Mexa-se. Ramson cravou as unhas na lama, lutando para recuperar o 
controle de seus músculos. Algo áspero e duro cavou em sua palma. Ele 
levantou a mão. Meio enterrada na água lamacenta abaixo de si estava a 
corda áspera e molhada da qual ele facilmente se desvencilhou enquanto os 
mercenários estavam distraídos por Ana. 
As mãos de Ramson se fecharam ao redor da corda, grossa como a linha 
de âncora de um navio. 
A inspiração repentina atingiu. 
Ele estava enfraquecido e exausto, sem vantagem sobre esse mercenário 
em uma luta de espadas. No entanto, fora da esgrima, Ramson tinha uma 
vantagem. 
Antes de se tornar um senhor do crime Cyriliano, Ramson tinha sido 
um marinheiro. Um marinheiro Bregoniano de sangue-azul. 
Ele se levantou, segurando sua espada e esticando o longo 
comprimento de corda entre suas mãos. Em poucos segundos, as mãos de 
marinheiro haviam trabalhado a ponta em um bowline3 com um laço grande 
o suficiente para caber na cabeça de um homem. Tão fluido quanto o rio, 
pensou. 
A chuva caía tão forte agora que era difícil enxergar além de uma dúzia 
de passos. O rugido do dilúvio bloqueou qualquer outro som. Ele estava em 
um navio de novo, no meio de uma tempestade, navegando com nada além 
de uma bússola quebrada e aquele menino com a voz fina e aguda ao seu 
lado. 
Ramson apertou seu laço, seus músculos enrolados mais tensos que 
uma mola. 
 
3 Um nó simples para formar um laço que não escorrega no final de uma corda. 
 
— Ei, cara de cavalo! — ele gritou. — Encontrar suas bolas e enfrentar 
alguém do seu tamanho, não quer, né? 
O mercenário virou. Um rosnado dividiu seu rosto feio quando 
espalmou suas adagas. 
— Eu vou quebrá-lo como um pedaço de pau — rosnou, e se 
arremessou em direção a ele. 
Ramson saltou para trás. Em uma extensão do mesmo movimento, ele 
sacou o comprimento da corda, amarrando-a em seu inimigo. O movimento 
era suave, familiar. Ele tinha feito isso mil vezes em uma vida muito passada. 
A corda encontrou sua marca. Como uma coisa viva, chicoteou em 
volta do pescoço do mercenário. 
Ramson jogou seu peso para trás e puxou, bruscamente e com toda sua 
força. O mercenário tropeçou fora de equilíbrio, suas pernas emaranhadas 
quando ele caiu no chão. Seus dedos arranharam o laço em volta do pescoço. 
Ramson saltou para frente, o cabo de sua adaga escorregadio, mas firme 
em suas mãos. Ele a mergulhou através de pele, tendões e carne, e cortou 
para cima. 
O mercenário estremeceu e, com mais algumas contrações, sua luta 
cessou. O sangue jorrou, silenciosamente se acumulando ao redor dele. 
Ramson caiu de joelhos. A chuva caía sem parar, já lavando o sangue de 
suas mãos. Ele respirou fundo, tentando acalmar o galope frenético de seu 
coração e seus membros trêmulos. 
Ele foi descuidado; quase morreu. Talvez a prisão o tivesse tornadomais lento, mais suave. Ele não podia pagar isso de novo, porque da próxima 
vez, a bruxa poderia não estar lá para ajudá-lo. 
Ele estava com frio, encharcado e ferido, e teria dado de bom grado 
metade das folhas-de-ouro em sua posse por uma cama macia, uma lareira 
 
quente e uma boa garrafa de conhaque Bregoniano naquele momento. Mas 
ele precisava se mover... rapidamente. Não havia como saber se os 
mercenários tinham aliados por perto. 
Gemendo, ele se levantou. 
A bruxa estava imóvel ao lado do tronco de uma árvore, mas não era 
para ela que ele olhava. Ramson parou no corpo do primeiro mercenário. A 
boca do homem estava aberta, seu rosto congelado em um grito silencioso, 
sua pele estranhamente sem cor, como se o sangue tivesse sido drenado dela. 
E tinha, Ramson percebeu com medo doentio. A água da chuva que se 
acumulava ao redor do corpo sangrava em carmesim, a cor se infiltrava na 
lama. 
Ele ouvira uma história uma vez: uma terrível assombração que 
ocorrera dez anos atrás com uma Afinita. Os corpos, retorcidos como uma 
obra de arte grotesca. Os olhares de terror nos rostos das vítimas. A falta de 
perfurações. E o sangue, todo o sangue... 
Eles a chamavam de Bruxa Sangrenta de Salskoff – uma história de uma 
década atrás, neste ponto, a culpada tendo desaparecido para nunca mais ser 
vista. Alguns tomaram isso como um sinal de que os Afinitas estavam 
ficando mais poderosos, que poderes mais sombrios enfeitavam esses 
monstros esculpidos pelas mãos de demônios. 
Ramson tinha pensado que tudo era uma pilha de besteira. Mas isso 
não o impediu de ficar de olho na poderosa Afinita que se tornou esse mito. 
Ele simplesmente nunca pensou que ela viria procurá-lo. 
Uma tosse chamou sua atenção. Ele correu para a bruxa. O sangue 
escorria de seu nariz. Ela estava tremendo, mas estava consciente. 
— Você está bem? — Ele tocou um dedo em sua bochecha; sua pele 
estava mais fria que gelo. Pela segunda vez desde que se conheceram, ele a 
 
examinou, passando o olhar sobre as maçãs do rosto elegantes, o rosto em 
forma de coração e o queixo pontudo que a tornava bonita, mas de aparência 
selvagem. Ela era jovem, jovem demais para ser a Bruxa Sangrenta de 
Salskoff, mas quando ele estendeu a mão e inclinou o rosto para cima, 
percebeu o tom vermelho desbotado de seus olhos. 
Algo se agitou em sua memória novamente – ela parecia levemente 
familiar, como um retrato que ele havia visto muitos anos atrás e que havia 
deixado uma impressão única e profunda. Mas isso era impossível. 
Ramson deixou cair a mão. 
— Como você me achou? 
— A Fortaleza do Urso Cinzento. O barman. 
— Ele te disse? — Ela assentiu. Ramson xingou. — Temos que nos 
mover. Ele enviará homens atrás de nós. Você consegue? 
Ela inclinou a cabeça em um movimento que poderia ter sido um aceno 
de cabeça ou uma sacudida. 
— Eu peguei um cavalo. — Sua voz era apenas um sussurro, e ela 
acenou para as árvores atrás de si. — Por ali. 
Os cavalos dos mercenários fugiram, o que os deixou com um único 
corcel – aquele que Ana havia roubado. Com um suspiro resignado, 
endireitou-se e foi à procura do cavalo. 
Encontrar a fera era o próprio inferno, com a chuva transformada em 
granizo reduzindo sua visão e suas botas chacoalhando a lama a cada passo. 
Quando viu seu contorno pálido, ele quase riu. 
— Uma valkryf? — perguntou quando ele levou o cavalo de volta. — 
Igor deve estar amaldiçoando as Deidades que você levou a criatura viva 
mais valiosa em sua taverna. 
 
A bruxa estava enrolada contra a árvore na mesma posição que ele a 
deixou. Quando ela não respondeu, ele largou as rédeas e se ajoelhou ao lado 
dela, levantando seu queixo e forçando seu rosto em direção ao dele. 
— Bruxa? — respirou. — Ana? 
Seus cílios tremularam. Ramson xingou. Ela ia desmaiar de novo, e isso 
tornaria extremamente inconveniente para ele içá-la no cavalo. 
— Ana — disse com urgência, balançando o ombro dela —, eu preciso 
que você fique acordada por mais um pouco. Você pode fazer isso? 
Sua cabeça mergulhou no mais fraco dos acenos. 
Ele se levantou e de repente percebeu o que estava errado. A ausência 
de curiosos olhos cor de oceano. 
— Onde está May? 
O rosto de Ana estava tenso e cansado anteriormente, mas uma faísca 
de aço apareceu em seus olhos. À menção de May, porém, qualquer 
determinação remanescente nela pareceu se dissolver. O rosto de Ana se 
contorceu, e tanta dor crua e vulnerabilidade cruzaram suas feições que 
Ramson desviou o olhar. Parecia que ele estava olhando para algo 
intensamente privado. 
Um soluço gorgolejou de sua garganta. 
— Eles a levaram. — Seus ombros caíram e ela envolveu seus braços 
trêmulos ao redor de si mesma. — Os Mantos Brancos. Eu não podia... eu não 
podia... 
— Nós vamos pegá-la de volta. — Ele agarrou a primeira frase 
reconfortante que veio à mente, e foi a primeira que não era intencionalmente 
uma mentira. — Mas agora, precisamos nos mover. Você consegue? 
Ela se mexeu fracamente. O sangue continuou a pingar de seu nariz. 
 
Ignorando o tremor em seus próprios membros, Ramson se abaixou, 
passou um braço em volta da cintura dela e a colocou de pé. 
Eles cambalearam desigualmente até o cavalo de Ana. Ficou em silêncio 
na chuva com a paciência por excelência de uma valkryf. 
Grunhindo, Ramson colocou a bruxa – Ana – na sela. Mantendo a mão 
nas costas dela para estabilizá-la, ele se levantou atrás dela. Quando tomou as 
rédeas em suas mãos, ele sentiu uma renovada sensação de poder através 
dele, apesar do estado desgastado de seu corpo. Ele estava vivo, com uma 
poderosa Afinita ao seu lado, cavalgando uma valkryf para se abrigar. As 
coisas melhoraram significativamente desde seu sequestro. 
Ana se mexeu, pegando algo em sua frente. Com o que parecia um 
tremendo esforço, levantou uma grande bolsa de couro para ele ver. 
— Eu peguei isso do barman — ela resmungou —, desde que ganhei 
você dos caçadores de recompensas, suponho que agora me pertença. 
Ramson olhou para a bolsa volumosa de folhas-de-ouro em suas mãos, 
uma risada presa em sua garganta. Pela primeira vez, ele não tinha interesse 
no ouro. Havia tantas coisas que ele queria dizê-la, tantas palavras na ponta 
da língua. Obrigado por vir atrás de mim. Obrigado por lutar por mim. Obrigado 
por salvar minha vida. 
Mas Ramson não conseguiu pronunciar nada disso. Em vez disso, deu 
uma risada rouca, bateu na bolsa e disse: 
— Eu te ensinei bem. 
 
 
14 
Ana acordou lentamente com o cheiro fresco de um mundo encharcado 
de chuva e o crepitar de uma fogueira. 
Tudo doía. Ela teve a estranha sensação de que cada parte dela havia se 
transformado em pedra – pedra pesada e fria – e ela nunca mais se moveria 
um centímetro. 
Embaçada, ela abriu os olhos. Com a mesma relutância, o mundo 
voltou ao foco em um borrão de luz e sombras. Estava deitada em um chão 
de pedra dura. Ao seu redor, grandes pilares se erguiam, curvando-se em 
tetos arqueados bem acima de sua cabeça. A pedra estava enfeitada com 
entalhes ornamentados, e ela pensou nos templos que frequentara em 
Salskoff. Homens e mulheres dançavam em um círculo sem fim em um 
interlúdio entrelaçado das quatro estações, das flores às folhas caídas e aos 
flocos de neve. 
Primavera. Verão. Outono. Inverno. 
Ela estava em um Templo das Divindades, no meio da Syvern Taiga, a 
julgar pelos sussurros das árvores lá fora. O luar escorria pelo vidro rachado 
das longas janelas, projetando o mundo em silhuetas e luz. No topo da 
cúpula, janelas circulares formavam um anel ao redor do centro. As janelas 
foram divididas em quadrantes, cada um com uma escultura dentro: uma 
flor, um sol, uma folha e um floco de neve. O Círculo das Divindades – o 
Deys'krug. 
A luz filtrava-se pelas esculturas e as projetava em sombras sobrepostas 
no piso de mármore branco. Um leve vento agitou-se e, como sempre, 
 
quando se encontrava em um templo, pensava em suatia. Mamika Morganya 
sempre adorou devotamente as Divindades, ajoelhada no templo do Palácio 
com seu cabelo escuro enrolado em uma trança, seus lindos olhos de corça 
fechados. Se Ana fechasse os olhos agora, quase podia ouvir o suspiro do 
kechyan de seda de sua mamika, o tilintar suave de um Deys'krug prateado 
em volta do pescoço. 
Seu coração doeu ao pensar em sua mamika. Foi sua tia quem a ensinou 
a interpretar as lendas das Divindades, a encontrar um pouco de alívio em 
um mundo que desprezava Ana e sua espécie. 
Ana empurrou-se para cima, respirando fundo e estremecendo ao sentir 
uma dor aguda na barriga. Uma mão correu para seu abdômen; a outra 
estendeu a mão para May. 
Sua mão apertou o ar vazio. 
Os detalhes da noite anterior voltaram a cair. A chuva. Os mercenários. 
O sangue. A bile subiu em sua garganta; ela esfregou os olhos para afastar a 
imagem de Barba Negra, seu rosto se contorcendo, vermelho derramando de 
sua boca. 
Literalmente sangrou a seco. 
O trabalho de deimhov. 
Mas... também havia algo mais. Alguém a ergueu em um cavalo, 
segurando-a firme durante toda a noite enquanto cavalgavam por uma 
floresta escura e castigada pela chuva. Ela perdeu a consciência em algum 
momento... e ainda assim... 
Ana tocou o linho áspero de sua túnica e calções, suas mãos 
automaticamente puxando para uma capa com capuz que não estava lá. 
Estava espalhada sobre uma pedra perto do fogo, secando. A bolsa dela 
estava ali perto. 
 
— Finalmente — veio uma voz familiar, assustando-a. Nas sombras sob 
um pilar com a escultura de um peixe saltitante, uma figura se moveu. 
Ramson Quicktongue inclinou-se para a luz do fogo, os olhos brilhando, a 
boca curvada naquele sorriso enfurecedor —, eu estava cansado de verificar 
se você tinha morrido. 
A inquietação a percorreu. Há quanto tempo ele estava sentado ali, 
observando-a? A noite passada tinha sido um erro... ela gastou demais sua 
Afinidade e se deixou indefesa. Ele poderia facilmente tê-la matado. 
Mas... ele não tinha. 
Ana estreitou os olhos. 
— Estou bem, obrigada por perguntar. — Sua voz saiu rouca, como se 
alguém estivesse esfregando uma lixa em sua garganta. 
Ramson riu e se levantou, segurando um odre. Quando ele se 
aproximou, ela percebeu que as manchas escuras em seu rosto não eram 
sombras, mas contusões florescentes que estavam ficando com um tom 
desagradável de roxo. 
— Obrigada por salvar minha vida, Ramson — ele recitou, estendendo 
as mãos e passeando —, obrigada por me manter aquecida e seca, Ramson. 
Obrigada por me dar água e garantir que eu permaneça viva, Ramson. — Ele 
fez uma pausa quando a alcançou e afundou em uma reverência. — De nada, 
meya dama. 
Ela o olhou, mas suavizou quando ele lhe passou o odre. Enquanto 
bebia a água fria da chuva, ela de repente percebeu como estava com sede e 
com fome. 
— Quanto tempo eu dormi? 
— Um dia. 
 
As palavras a atingiram como um soco. Eles tinham perdido um dia 
inteiro sem fazer nada - nada, quando deveriam estar indo atrás daqueles 
Mantos Brancos que tinham levado May. 
May. 
O pânico tomou conta dela. O mundo se inclinou bruscamente quando 
ficou de pé. Ela bateu na parede, a dor explodindo em seu ombro. 
— Nós precisamos ir — engasgou —, perdemos muito tempo, nós... 
Ramson estava falando por cima dela, sua voz elevada. 
— Acalme suas velas. Não podemos sair agora... 
— Eles a têm! — Sua voz elevou-se histericamente. — Eles têm à May. 
O Yaeger... ele disse que iam prendê-la... 
— Ana, pare! — Sua voz soou agudamente na câmara vazia do templo. 
O sorriso fácil havia sumido do rosto de Ramson, e suas mãos se ergueram 
em um gesto apaziguador. — Pare e pense. 
Um nó subiu em sua garganta quando ela pensou em May, sozinha 
naquela praça vazia, os punhos cerrados. Você não vai machucá-la. 
Lágrimas queimaram atrás de seus olhos. Ela havia prometido proteger 
May para sempre. 
— Tudo bem — disse, e embora sua voz tremesse um pouco, ela se 
fortaleceu. Ela ia recuperar May. E faria isso do jeito de Ramson... pensando 
bem e bolando um plano e dez planos de reserva — Sente. 
As sobrancelhas de Ramson se contraíram, mas ele deu de ombros 
aparentemente bem-humorado e se sentou em frente a ela. 
— Você vai me ajudar a recuperá-la, criminoso. 
— Eu? Divindades, quem teria pensado? 
— Eu não estou brincando. Eu não me importo se não for parte da 
nossa Troca. Eu o salvei de qualquer destino que aqueles caçadores de 
 
recompensas tinham em mente para você. Já que fala tão bem a linguagem da 
barganha, deixe-me colocar desta forma: você me deve e vai me pagar. 
— Já que você acha que fala tão bem a linguagem da barganha, deixe-
me dizer isso. — Os olhos de Ramson tinham um brilho brincalhão, e ele se 
inclinou para frente enquanto falava. — Se não tivesse me salvado, você teria 
perdido sua Troca e seu precioso alquimista. 
Ela não se distrairia com as provocações que ele lançava em seu 
caminho. 
— Eu o deixei sozinho por trinta minutos e você foi enganado por um 
barman e dois mercenários. — Seu humor se animou um pouco com o olhar 
mal-humorado que passou pelo rosto dele. Ana se inclinou para frente, 
espelhando sua pose. Eles estavam a apenas um braço de distância um do 
outro. — Por que eles o sequestraram? Quem está caçando você? 
— Eu te disse. É a marca de um excelente senhor do crime ter muitos 
inimigos. 
— É também a marca de um excelente senhor do crime ser capaz de 
derrotar seus inimigos. — Ana nivelou um olhar uniforme sobre ele. — Você 
precisa de mim. Precisa da minha Afinidade. Eu sou sua Troca. E eu só vou 
defender isso se você me ajudar. 
Ramson passou a mão pelo cabelo. 
— Se você quiser salvar May, talvez não cheguemos a tempo de 
encontrar seu alquimista. A propósito, cujo nome e localização agora tenho. 
Ele havia roubado o fôlego dela novamente. No entanto, Ana se viu 
inclinada para frente, enrolada pela linha dele. 
— Onde ele está? Por que não vamos conseguir? 
— A única maneira de encontrá-lo — disse Ramson —, é chegarmos a 
Nova Mynsk antes do Fyrva'snezh. Há um evento que devemos... participar. 
 
 
— Nova Mynsk — ela repetiu sem fôlego —, é para lá que eles estão 
levando May. Eles vão fazê-la se apresentar em um lugar chamado Playpen. 
— Quem te contou? 
— O Yaeger... o Manto Branco. 
— Ah — Ramson disse lentamente —, isso... complica um pouco as 
coisas. 
— Não. Nosso destino é Nova Mynsk. 
Ramson suspirou. 
— Há um nome que você deveria saber. Alaric Kerlan. Lembre-se bem. 
Esse nome de novo. O barman de A Fortaleza do Urso Cinzento havia 
dito isso. Ele o chamou de “Lorde”, mas havia algo mais alarmante, algo que 
não havia conectado até agora... 
— Alaric Kerlan — ela sussurrou —, você quer dizer A. E. Kerlan? O 
fundador do Grupo de Negociações Água-Dourada? 
Era um nome que a maioria dos nobres do Império Cyriliano conhecia. 
Ana havia lido tomos inteiros da história de Cyrilia com o Grupo de 
Negociações Água-Dourada elogiado como um ponto de virada para a 
economia moderna de Cyrilia. No entanto, para o maior empresário do 
Império, A. E. Kerlan permaneceu recluso. O máximo que se sabia dele era 
que era um ninguém que viera das sarjetas de Bregon e construíra sozinho 
uma próspera rota comercial entre o então degradado Porto Água-Dourada e 
o resto do mundo. 
A cautela cintilou nos olhos de Ramson. 
— Sim — ele admitiu —, mas também o corretor Afinita mais poderoso 
do Império. 
 
— O que? — Seu mundo inclinou. Ana agarrou seu braço, unhas 
cravadas na carne. — Você está mentindo. — As palavras saíram afiadas 
como cacos de vidro. 
O fundador do Grupo de Negociações Água-Dourada, a maior 
corporação comercial do Império Cyriliano, um corretor Afinita? 
— Eu lhe asseguro, há muitas vezes que menti para você, mas esta não 
é uma delas — respondeu Ramson, inexpressivo. 
Algo nela estava se desenrolando, sua imagem de seu império 
desmoronando em pedaçose se reorganizando em algo sinistro, estranho e 
totalmente desconhecido. 
— Como você sabe? 
Parecia uma pergunta tão ingênua. Todos ao seu redor sabiam? 
Papai sabia? 
— É minha vocação saber das coisas — disse Ramson —, agora, como 
eu estava dizendo, Kerlan é a complicação do nosso plano. — Ele pegou a 
bolsa dela e a vasculhou, tirando o mapa. Com um floreio, ele o ergueu e 
apontou. — Nova Mynsk é território de Kerlan. Se May estiver sendo 
transportada para lá, o corretor deve estar sob a ordem de Kerlan. Você diz 
que ela vai se apresentar no Playpen? É propriedade de Kerlan. E acontece 
que seu alquimista é um colaborador próximo dele. 
Foi uma luta trazer seu foco de volta para ele. Ana sufocou o turbilhão 
de seus pensamentos, clareando sua mente. Ela poderia pensar em seu 
mundo quebrado mais tarde. No momento, seu único objetivo era salvar 
May. 
— Então, qual é a complicação? — ela perguntou cansada. — Vamos 
resgatar May e depois localizar o alquimista. 
Ramson continuou como se não a tivesse ouvido. 
 
— Kerlan organiza o maior baile do Fyrva'snezh todos os anos. Todos 
os seus associados – todos os senhores do crime, ladrões e traficantes do 
Império – farão uma aparição. E isso inclui seu alquimista. — Ele deu a ela 
um olhar aguçado. Seu estômago se apertou. — Eu posso nos colocar neste 
baile. Mas vai ser difícil. Perigoso, mesmo. — O tom de Ramson era um 
desafio. — Você está pronta para isso? 
Ela estava esperando por isso por quase doze longas luas. Ana nivelou 
um olhar frio em Ramson. 
— Eu estou. — Ela apontou um dedo para o mapa. — Então isso 
significa que teremos que encontrar May antes do Fyrva'snezh. 
Ramson baixou o mapa. 
— Você não pode ter as duas coisas. Resgatar May no Playpen é como 
bater na porta de Kerlan e sinalizar para ele que estamos lá. Precisamos do 
elemento surpresa quando aparecermos no Fyrva'snezh. 
— Isso não é negociável. 
— Um peixe na sua mão é melhor do que dois em... 
— A vida de May não é negociável! — Sua voz subiu para um grito. 
O silêncio caiu. Sombras dançavam no rosto de Ramson; as chamas 
refletiam em seus olhos, que se estreitavam. 
— Você precisa decidir — ele disse finalmente. — O que você quer? 
— Corrigir os meus erros. O que você quer? 
— Eu te disse. Vingança. 
— Vingança contra quem? — Ana se inclinou mais perto, recusando-se a 
deixar de lado seu olhar. Para seu crédito, Ramson não desviou o olhar. — 
Por que aqueles mercenários estavam levando você para Kerlan? 
 
Ramson igualou sua postura. Eles olharam um para o outro através do 
fogo, o calor enrolando em torno deles como uma coisa viva, brasas piscando 
entre eles. 
— Eu estraguei um trabalho para ele. Quebrou um comércio. Agora 
você vê as implicações? — Em seu silêncio, ele suspirou e se levantou. — 
Kerlan sabe tudo o que acontece em seu território. Se você tentar salvar May, 
corre o risco de perder seu alquimista. Pense sobre isso. — Ele fez uma pausa 
na saída. — E, Ana, lembre-se disso. Você não é uma Divindade. Você não é o 
Imperador. Não pode salvar todo mundo. Então pense no que é melhor para 
você. 
— Onde você está indo? — ela exigiu. 
— Limpar minha alma. 
Ela o observou recuar e de repente desejou que ele não tivesse ido 
embora. O silêncio pressionou, e foi como se todo o templo, com suas paredes 
de figuras de pedra, a observasse. 
Ana correu os olhos pelos entalhes da parede. As figuras podem ter 
sido pintadas em ouro, prata, lápis-lazúli e esmeralda, mas há muito tempo 
foram saqueadas por ladrões quando o templo caiu em abandono. Mesmo 
assim ficou lindo. Reverencial. 
Como sempre, ela se encolheu sob os olhares atentos das Divindades, 
muito consciente do que ela era. Monstra. Bruxa. Deimhov. Ela ouviu os gritos 
daquele dia há muito tempo no Mercado de Inverno de Salskoff enquanto 
estava paralisada em todo aquele sangue, afirmando ao mundo que ela era o 
demônio que todos acreditavam que era. 
Ainda outra parte dela, uma pequena parte, se inclinou para frente, 
ansiando pela luz, retidão e bondade. Era a pequena chama de esperança que 
sua tia acendera em seu peito todos aqueles anos atrás, com uma única frase. 
 
Tinha sido em um templo como este, a lua chorando sobre terrenos 
cobertos de neve e lançando uma luz fria sobre o novo túmulo de mamãe. Ela 
tinha oito anos. Ana ajoelhou-se sob as estátuas das quatro Divindades, suas 
expressões severas e implacáveis. Ela traçou os dedos sobre o mármore, 
esculpido nas características exatas do rosto de sua mãe, cílios longos que 
lançavam sombras de meia-lua sobre as maçãs do rosto altas e cachos 
vibrantes que sempre pareciam tão cheios de vida. A única coisa que o 
mármore não capturava, pensou Ana enquanto acariciava a pequena curva 
entre o nariz e as bochechas de mamãe, era o rico fulvo da pele de sua mãe 
quando estava viva; o brilho saudável de seu sorriso que parecia iluminar o 
mundo. 
Os dedos de Ana desenharam os mesmos padrões repetidamente na 
fria face branca do mármore, misturando-se com suas lágrimas. 
Tinha sido apenas uma lua, mas com a ausência de mamãe, o inverno 
que varreu Salskoff naquele ano era frio e rigoroso, a neve dura e implacável. 
— Por que? — O sussurro de Ana ficou no ar entre ela e as Divindades 
de mármore, pequenas e abandonadas. — Por que você a levou? 
Teimosamente, elas permaneceram quietas. Talvez fosse verdade que as 
Divindades não ouviam as orações de um Afinita. 
Uma mão quente deslizou sobre seus ombros, e Ana pulou. 
Instintivamente, ela passou a mão pelo rosto para limpar as lágrimas antes de 
se virar. 
Os olhos calmos da Grã Condessa, da cor de um chá claro, encontraram 
os dela. Passaram-se alguns momentos antes de Morganya falar. 
— Sua mãe significava o mundo para mim — ela sussurrou, e Ana não 
teve dúvidas de que era verdade. Foi mamãe quem encontrou Morganya 
todos aqueles anos atrás em uma aldeia, seu corpo espancado pelos 
 
torturadores que a sequestraram de seu orfanato e a espancaram. Mamãe 
trouxe Morganya para o Palácio, e elas se tornaram mais próximas do que 
irmãs. 
— Suas orações funcionaram? — Mesmo depois de todos aqueles anos, 
a voz de Morganya não havia perdido o timbre calmo e cauteloso dos 
oprimidos. 
Ana hesitou. — Eu não... elas não... eu não acho... 
— Você não acha que eles ouvem as orações dos Afinitas. — As 
palavras foram pronunciadas suavemente, mas cortaram mais fundo do que 
qualquer lâmina. Ana baixou a cabeça, a vergonha preenchendo o silêncio. 
Morganya prendeu o cabelo de Ana atrás da orelha de uma forma que a 
lembrou tanto de mamãe que ela quis chorar. 
— Vou lhe contar um segredo — continuou a Condessa —, elas também 
nunca responderam ao meu. 
— Mas você é... — Você não é uma Afinita. 
Morganya agarrou o queixo de Ana e levantou o rosto de Ana para 
encontrar seus olhos. 
— Não há diferença entre você e eu, Anastacya — ela disse suavemente 
—, as Divindades há muito me enviam uma mensagem através de seu 
silêncio. — Um brilho de aço aguçou o olhar de Morganya. — Não é seu 
dever nos conceder bondade neste mundo, Kolst Pryntsessa. Não, Pequena 
Tigresa... cabe a nós lutar nossas batalhas. 
O uso que sua tia fez do apelido de Mama para ela trouxe novas 
lágrimas aos seus olhos. Mas ela falou além do nó dolorido em sua garganta. 
— Cabe a nós lutar nossas batalhas — ela repetiu, sua voz pequena, 
mas um pouco mais firme. 
Morganya assentiu. 
 
— Lembre-se disso. Tudo o que quer, você tem que tomar para si 
mesma. E você, Kolst Pryntsessa, foi escolhida pelas Divindades para lutar as 
batalhas que elas não podem neste mundo. 
Tinha sido difícil entender as palavras de sua mamika naquela época. 
Confinada às duas janelas de seus aposentos e às quatro paredes de seu 
palácio, ela achava difícil entender que tinha a opção de lutar qualquer 
batalha, muito menos imaginar que as Deidades a marcaram. 
Mas talvez sua tia estivesse certa, Ana agorapercebeu enquanto se 
sentava sob o olhar frio e iluminado pela lua das mesmas Divindades 
silenciosas. As Divindades nunca responderam suas orações, mas talvez 
todos aqueles anos de silêncio fossem uma mensagem. Cabe a nós lutar nossas 
batalhas neste mundo. 
Seus olhos pousaram na escultura de uma criança sentada em um 
campo. Pétalas giravam ao redor dela em um vento fantasma, e seus olhos 
estavam enrugados de tanto rir. A primeira vez que Ana acordou naquele 
celeiro vazio, May estava agachada na neve lá fora, cuidando de uma 
pequena flor de volta à vida. Ana pensou em quando seguiu May de volta à 
casa de sua patroa; das palavras maldosas e das mãos afiadas da mulher. 
Ela pensou no corretor em Kyrov, em seus olhos frios e cabelos claros. 
Das Patrulhas Imperiais, mantos esvoaçando os brancos e azuis brilhantes de 
Cyrilia, insígnias de tigre rugindo orgulhosamente em seus peitos. 
Do Yaeger agachado diante dela em derrota, caçador virou vítima. 
De May cambaleando, olhos arregalados de surpresa, quando a flecha a 
atingiu. Das portas de vagão de pedra-negra se fechando. 
Como o Império caiu para isso? O Império Cyriliano que Ana sempre 
manteve tão feroz e fielmente em seu coração era tão orgulhoso e tão forte 
quanto seu sigilo de tigre branco, suas leis irrepreensíveis e seus governantes 
 
benevolentes. No entanto, o que ela havia testemunhado nos últimos dias lhe 
dizia o contrário. Sombras sinistras surgiram nos espaços entre as leis, 
atacando aqueles sem a proteção de status ou riqueza. 
Ou sempre foi assim? Gelo subiu por suas veias, e Ana pensou na 
rapidez com que mamika Morganya tinha sido dispensada quando 
mencionou o contrato de Afinidade. Da maneira como os cortesãos do 
palácio haviam sussurrado sobre as origens Cirilianas do sul de mamãe. De 
como Ana foi considerada um monstro apenas por causa de sua Afinidade. 
Talvez, pensou Ana, o mundo nunca tenha sido justo. Ela só percebeu 
tarde demais. 
Mas sua mamika estava certa. 
Se havia justiça neste mundo, não deveria ser concedida pelas 
Divindades. E começava um passo de cada vez. 
Quando os passos de Ramson soaram no corredor, Ana já tinha se 
decidido. 
— Nós vamos atrás de May — ela disse calmamente quando ele 
apareceu, segurando dois pães embrulhados em um lenço. 
Ramson sentou-se em frente a ela e colocou os pãezinhos no colo. 
— Você parece convencida. — Ele inclinou a cabeça para trás e acenou 
para as esculturas de parede ao redor deles. — Deixe-me adivinhar: sendo a 
dama devota que é, você provavelmente orou às Divindades, e é claro, elas a 
aconselharam a fazer a coisa certa, e não a coisa conveniente e egoísta. 
— As Divindades não respondem minhas orações — ela respondeu. 
Ramson deu-lhe um sorriso torto. 
— Que faz de nós dois. 
Ana estendeu a mão e pegou um rolo. O pão estava frio e duro, mas ela 
o rasgou em várias mordidas. 
 
— Por que as Divindades não gostam de você? O que você tem? — Era 
como se um peso enorme tivesse sido tirado de seu peito; enquanto antes ela 
teria se esquivado de um tópico de conversa tão ousado, agora as palavras 
fluíam facilmente dela. 
Ramson bufou. 
— O que há de errado comigo? — ele repetiu, arrancando um pedaço 
de seu pão. — Esta é uma pergunta retórica? Vamos ver. — Ramson coçou o 
queixo, fingindo um olhar de concentração enquanto começava a marcar os 
dedos. — O mais jovem senhor do crime do Império, egoísta, calculista, 
traidor, ah, e não vamos esquecer, pecaminosamente bonito... preciso 
continuar? 
— Você já responde alguma coisa a sério? 
— Eu respondo tudo a sério. 
Ana revirou os olhos e engoliu seu último pedaço de pão. Seu estômago 
deu um gorgolejo de fome, mas seus pensamentos se voltaram para May. Ela 
já tinha comido? Ela estava com frio? 
— Quero sair assim que o sol nascer. 
Ramson assentiu. 
— Boa ideia. — 
m pensamento silencioso e desconcertante passou entre eles: A Syvern 
Taiga era onde as criaturas mais perigosas de Cyrilia vagavam à noite. Ana 
tinha ouvido falar de luzes rústicas desviando viajantes cansados, de Ursos 
Lunares gigantes com três vezes a altura de um humano normal, de espíritos 
de lobos de gelo que surgiram do nada além da neve. 
— Levamos um dia inteiro para chegarmos a Kyrov de Quedas 
Fantasma — ela meditou em voz alta —, Nova Mynsk está quase dez vezes 
mais longe. 
 
— Nós temos uma valkryf — observou Ramson —, pelos meus cálculos, 
levaremos um pouco mais de cinco dias. Isso nos dá quatro dias antes da 
Fyrva'snezh para salvar May, colocar nossos nomes na lista de convidados de 
Kerlan e encontrar seu alquimista. — Ele suspirou e passou a mão pelo 
cabelo. — Estamos trabalhando com chances muito pequenas aqui. 
— Você é o criminoso mais infame de Cyrilia — Ana respondeu 
secamente —, pequenas chances são seus amigos. Você vai fazer funcionar. 
— Não tenho amigos. E se Kerlan souber do nosso Furto de Afinita, eu 
culpo você. Não vou deixar que ele me mate por causa da sua justiça. 
— Eu poderia muito bem matá-lo primeiro. — Ana observou-o escolher 
seu caminho até a pilha de toras. — Ramson? 
— Sim? 
Ela hesitou, e então as palavras a deixaram com pressa. 
— Qual o nome dele? O Alquimista. Você disse que tinha o nome 
verdadeiro dele. 
Por um momento, ela quase esperou que ele falasse sobre a Troca, lhe 
dissesse que era uma informação que ela precisaria negociar. Mas Ramson 
apenas a olhou e disse baixinho: 
— Pyetr Tetsyev. 
Pietr Tetsyev. Ela provou o nome em sua língua enquanto fechava os 
olhos. Pietr Tetsyev. Não soava como um nome maligno; poderia ter 
pertencido a qualquer pessoa... um estudioso, um professor, um homem que 
ela poderia ter conhecido na esquina de uma rua. 
Pietr Tetsyev. O alquimista do Palácio existia. Ela não passou o ano 
passado perseguindo um fantasma; ele era real. E estava perto. A peça que 
faltava no assassinato de seu pai estava a menos de uma semana de viagem. 
 
E ela repetiu o nome dele várias vezes até adormecer: um canto de 
oração, um voto de vingança. 
 
 
15 
Ao contrário dos oceanos abertos e dos pântanos cheios de chuva da 
infância de Ramson, Cyrilia era uma terra congelada no inverno perpétuo. A 
floresta mantinha seu silêncio eterno, a prata polvilhando os galhos de 
pinheiros altos e trechos ocasionais de neve branca em áreas onde ninguém 
mais havia viajado antes. Sua respiração enrolou em plumas, e a frieza do ar 
o manteve alerta enquanto ele conduzia a valkryf para frente, a Afinita 
sentada desconfortavelmente perto dele. Acima, o céu cinza enevoado 
prometia neve muito, muito em breve. 
Eles passaram o primeiro dia de suas viagens elaborando seu plano. Ele 
a contou os detalhes do Playpen, da propriedade de Kerlan e de seu baile – 
não todos, é claro, mas os que ela precisava saber – e eles finalmente, 
finalmente, depois de horas de questionamentos e discussões persistentes da 
teimosa menina, chegaram a um acordo. 
Eles montaram acampamento na segunda noite em uma dacha 
abandonada nos limites de uma pequena cidade chamada Vetzk. Depois de 
garantir que as cortinas estivessem fechadas, Ramson acendeu o fogo e se 
acomodou para tratar de seus ferimentos. A bruxa sentou-se à sua frente. 
Encolhida com os joelhos contra o peito, ela parecia menor, mais vulnerável. 
Quase como a jovem que era. 
Ramson sabia que ela era tudo, menos isso. Ele pretendia lhe perguntar 
sobre sua Afinidade depois daquela briga na chuva, depois que ele viu 
aquele mercenário que foi sangrado. Ao longo de seus anos trabalhando com 
Kerlan, ele pensou que tinha testemunhado tudo – monstruosidades, 
 
Afinidades estranhas e distorcidas –, mas aquele mercenário morto era algo 
completamente diferente. Algo de pesadelos. 
— Eu nunca agradeci por me salvar — disse ele, quebrando o silêncio. 
Ela o encarou, piscando como se estivesse saindo de um transe. Pela 
primeira vez, a defesa desapareceu de sua expressão. Ela baixou o queixoem 
um gesto régio. 
— De nada. 
— Você é a Afinita mais poderosa que eu já vi — disse ele —, qual, 
exatamente, é sua Afinidade? 
Ele podia ver a guarda subindo em seus olhos, a forma como seu rosto 
se fechou como se estivesse se preparando para uma briga. 
— Carne. 
Tinha sido uma mentira inteligente... e ela o enganou no início. Os 
efeitos dos dois podem ser quase intercambiáveis. Afinita de carne, embora 
potencialmente poderosos, eram vistos como aprendizes de açougueiros ou 
similares. Uma Afinidade com o sangue, por outro lado – bem, a Bruxa de 
Sangue de Salskoff era a única Afinita de sangue que se sabia. Ramson 
forçou. 
— Foi assim que você sangrou aquele mercenário? Com sua Afinidade 
de carne? 
Seus lábios se apertaram. 
— Há uma história — continuou Ramson —, de uma Afinita que 
apareceu em Salskoff há cerca de dez anos. — Seus olhos brilharam à luz do 
fogo, mas ela não entregou nada. — Ela matou oito pessoas com um único 
pensamento. 
— Eles a chamaram de Bruxa Sangrenta de Salskoff. Ela nunca foi vista 
novamente; sua maneira particular de matar, de sangrar suas vítimas, foi 
 
desconhecida por muito tempo. — O fogo crepitava entre eles. Ele estava 
andando na corda bamba; um único passo em falso poderia mandá-lo 
mergulhar. Ramson escolheu suas palavras com cuidado. — Sempre pensei 
que gostaria de conhecê-la. 
Algo mudou em seu olhar, suspeita ou surpresa, e ela desviou o olhar. 
— Por que? 
Ele quase soltou um suspiro. 
— Para que eu pudesse entendê-la. Perguntá-la por que ela fez isso. 
— Ela nunca quis. — Sua voz era suave como um suspiro, e, enquanto 
ela olhava para as chamas, seu rosto era um poço de tristeza. — Ela nunca 
quis machucar ninguém. 
A confissão foi inesperada, e tocou profundamente dentro dele, uma 
que manteve enterrada sob a grande lenda de Ramson Quicktongue que ele 
construiu para si mesmo ao longo dos anos. Ele conhecia, até os ossos, a 
sensação de ferir alguém e ser incapaz de fazer qualquer coisa a respeito. 
E aqueles que você machucava tendiam a ser os mais próximos de você. 
 
*** 
 
Ramson tinha sete anos quando conheceu Jonah Fisher, no primeiro dia 
de treinamento militar. Ele avaliou o garoto desengonçado de cabelos escuros 
que parecia ter sido esticado de uma sombra, andando pelos corredores de 
pedra com um andar firme e desleixado. Quando anunciaram seu nome, uma 
risadinha percorreu os meninos e as meninas. Fisher não era um sobrenome 
de verdade; Fisher era um sobrenome que colocavam em meninos 
Bregonianos dos orfanatos de Porto Safira. 
E isso aconteceu bem perto de casa. 
 
O próprio Ramson esteve perto de herdar esse nome. Tinha algo a ver 
com sua mãe não estar devidamente casada com seu pai, ele deduziu. Mas 
enquanto algumas crianças como Ramson nunca mais foram vistas, o pai de 
Ramson, o almirante Roran Farrald, o segundo homem mais poderoso do 
Reino de Bregon, em vez disso, tirou Ramson da pequena cidade de Elmford, 
onde sua mãe residia e o elegeu para colocação no Porto Azul, escola militar 
de elite de Bregon. Apenas os mais capazes foram selecionados, entre eles 
Afinitas, e Ramson tomou isso como um gesto de confiança. Ele jurou que 
nunca decepcionaria o pai que permaneceu tão distante quanto a lua no céu 
noturno, luz monocromática fria e brilhante. 
Mas as crianças eram as criaturas mais perspicazes, e os desprezos 
dissimulados que Ramson recebeu durante a maior parte de sua vida não 
passaram despercebidos para ele. Nem eram os sussurros de filho bastardo e 
packsaddle4. 
As zombarias de seus novos colegas de classe provocaram um tremor 
de medo dentro dele, e ele se juntou a eles, tornando suas provocações as 
mais desagradáveis e sua voz a mais alta entre eles. 
Jonah Fisher fez uma pausa. Olhou ao redor, expressão entediada, como 
se preferisse estar em qualquer lugar menos ali. 
— Você não tem nada melhor para fazer ou o quê? — perguntou. 
A classe caiu na gargalhada, incluindo Ramson. Ele já tinha ouvido as 
pessoas falarem com o sotaque de Jonah Fisher antes, nos mercados de peixe 
e nos arredores mais pobres de Porto Safira. Ramson era um menino criado 
na cidade, e seu pai pagava por suas aulas particulares desde que ele 
 
4 O Antigo substantivo Francês, muito provavelmente, teve origem na frase fils de bast, que 
significava "filho de pacote" (sendo um "pacote de carga" uma espécie de cama de viagem em que se pensava 
que os bastardos seriam concebidos), e o sufixo -ard. Bast pode ser traçado a uma palavra latina que significa 
"carregar" 
 
completou cinco anos. Se orgulhava de ser o pensador mais rápido e o falante 
mais veloz de sua classe. 
Um estalo soou pelo corredor. Ele ecoou e reverberou quando o silêncio 
absoluto caiu. 
Jonah Fisher segurava uma vara de sparring das prateleiras ao lado da 
sala de treinamento. Ele parou diante da classe, ainda com aquela expressão 
desinteressada. 
— É melhor todos vocês falarem. — Sua voz estava calma, mas uma 
corrente de ameaça percorria suas palavras. — Mostrem que vocês sabem 
realmente lutar. Vão em frente — incitou, para a quietude morta das crianças. 
Ramson olhou ao redor. O treinador se afastou; não havia adultos por 
perto. Apenas uma classe de várias dezenas de crianças que um dia se 
tornariam os fuzileiros de elite de Bregon. Que lutariam pelo posto mais alto 
da marinha de seu pai. 
Filho packsaddle. 
Ele os mostraria. Mostraria a todos que não era um Fisher, um bastardo, 
um descartável evitado por seu próprio pai. Ele era filho do almirante Roran 
Farrald. 
Ele iria provar isso. 
Ramson deu um passo à frente. Sentiu que todos os olhos de seus 
colegas se voltaram para ele, e a atenção era o vento em suas velas, 
impulsionando-o para frente e levantando sua coragem. 
— Nós conversamos aqui no Forte Azul — disse friamente, pegando 
uma vara de sua preferência. Ele nunca tinha segurado uma antes daquele 
dia; era mais pesada do que esperava, a madeira áspera contra suas palmas. 
 
Fisher lançou seus olhos negros em Ramson. Ele ergueu sua vara de 
uma maneira inquietantemente familiar. Moveu-se frouxamente em suas 
mãos, fluindo como uma extensão de seu corpo. 
Ramson o imitou, levantando sua própria vara. Ela balançou instável, 
fora de equilíbrio. Seu coração batia forte no peito, e ele podia sentir sua 
coragem evaporando tão rápido quanto uma poça de água em um dia de 
verão Bregoniano. 
Jonah Fisher atacou. Ele lembrou Ramson de um pássaro – um corvo 
comum, escuro e despenteado e nada imponente, mas surpreendentemente 
rápido. 
A vara bateu em Ramson e ele cambaleou para trás, rangendo os dentes 
contra a dor que queimava em seu peito. Ele apontou um golpe desajeitado 
para Fisher, mas Fisher girou facilmente para fora do caminho. 
Outro golpe nas coxas de Ramson, e desta vez Ramson gritou. Um 
terceiro golpe dobrou seus joelhos, e antes que pudesse respirar, a luta 
acabou e ele estava deitado no chão de pedra, Jonah Fisher de pé sobre ele. 
Ramson estava ofegante, e podia sentir o gosto salgado das lágrimas subindo 
em sua garganta enquanto olhava para o outro garoto. 
O que aconteceu a seguir foi uma das maiores surpresas que Ramson se 
lembrava de ter encontrado em sua vida. 
Fisher estendeu a mão. 
Não havia nenhum traço de arrogância em seu rosto pálido e magro. 
Suas feições estavam dispostas na mesma expressão entediada, como se nada 
no mundo pudesse interessá-lo. 
Ramson fez a única coisa aceitável que conseguiu pensar. Ele deu um 
tapa na mão de Fisher. 
 
— Eu não preciso de sua ajuda — rosnou, se levantando —, nós não 
somos amigos. Nunca seremos. 
Enquanto Ramson se afastava mancando para se juntar à sua classe 
atordoada, deixando Fisher para trás, ele avistou uma figura na porta. Um 
vislumbre de pele bronzeada e cabelos castanhos arenosos, túnica azul-
marinho adornada com ouro, espada reluzindo no quadril. 
Roran Farrald virou-se da entrada e foi embora. 
Decepçãoe vergonha queimaram nas bochechas de Ramson. Ele lançou 
um último olhar para Fisher, que estava sozinho do outro lado do corredor, e 
jurou que derrotaria aquele garoto nem que fosse a última coisa que fizesse. 
Tudo havia mudado com um barco, uma tempestade e uma voz. 
Os Bregonianos tinham a melhor marinha do mundo, mas antes de 
tudo eram marinheiros. E todas as crianças Bregonianas treinadas para a 
Marinha passavam metade de seus dias nos mares. 
Tinha sido um exercício noturno durante o segundo ano de treinamento 
de Ramson. O céu estava sem lua e as águas eram negras e frias, agitando-se 
inquietamente com o vento crescente. 
A tempestade caiu sobre eles nas primeiras horas da manhã. Os ventos 
uivavam e as ondas eram mais altas do que paredes, jogando o pequeno 
brigue5 de dez aprendizes Bregonianos como uma folha ao vento. Mesmo 
anos depois, Ramson acordava no meio da noite com a sensação de ser 
jogado no escuro, o gosto do terror cego forte em sua língua. 
Como capitão de seu pequeno brigue, ele estava gritando ordens das 
ratlines6 quando uma onda se ergueu da noite escura e o atingiu. Lembrou-se 
 
5 Um navio de dois mastros, com um gaff adicional no mastro principal. 
6 Uma série de pequenas cordas presas através das mortalhas de um veleiro, como os degraus de 
uma escada, usadas para escalar o cordame. 
 
de cair, o mundo um emaranhado giratório de mastros, velas e madeira. Ele 
caiu na superfície do oceano, e então houve apenas escuridão e silêncio. 
Os primeiros momentos foram de desorientação cega e aterrorizante. 
Ramson se debateu e chutou, sem saber se estava subindo, descendo ou de 
lado, o mundo ao seu redor se sacudindo e girando enquanto onda após onda 
caía sobre ele. Quase todo o ar havia deixado seus pulmões com o impacto, e 
quando a pressão cresceu em seu peito e seus membros começaram a 
queimar por falta de oxigênio, ele enviou uma oração aos deuses. 
Um braço se fechou em torno de sua cintura, e ele se sentiu sendo 
erguido e levantado pelas correntes e aquele braço. Ramson pensara que 
estava morrendo, até que rompeu a superfície e o mundo desabou em uma 
torrente de ondas, ventos e chuva. 
— Nade — disse uma voz calma em seu ouvido. Tossindo e cuspindo, 
ele se virou para ver que o órfão estava com o braço em volta dele e o 
arrastava pelas ondas agitadas. O menino se virou, seu cabelo preto grudado 
em seu rosto pálido. Naquele rosto magro e desnutrido, Ramson viu a 
verdadeira coragem pela primeira vez em sua vida —, nade — o menino 
repetiu —, ou nós dois morremos. 
Ramson nadou. 
A ira do oceano os levava para cima e para baixo e de volta como as 
pequenas e insignificantes vidas que eram, crepitando lampejos de luz de 
velas em uma ventania gritante. Mas Ramson segurou firme em Jonah Fisher 
e nadou, um chute pesado após o outro, uma braçada cansada após a outra. 
O frio deixou seus membros dormentes e drenou sua energia. 
O ritmo das ondas embalou os dois meninos em um estupor. Em algum 
momento, Ramson deve ter fechado os olhos ou adormecido nadando. A 
próxima coisa que percebeu, foram os gritos inconfundíveis de homens acima 
 
de sua cabeça e respingos na água. Alguém enrolou uma corda em volta dele 
e ele foi erguido, membros pendurados e pingando como uma esponja 
molhada, no navio. 
A madeira encharcada do convés parecia o paraíso, e apesar do balanço 
do navio e dos gritos e passos e mãos envolvendo cobertores em volta dele, 
ele poderia ter dormido ali mesmo. 
Ramson levantou a cabeça, sua visão embaçada. 
— Fisher — resmungou. 
Na escuridão, o rosto de um menino apareceu, branco contra a noite 
negra, lábios tingidos de azul e trêmulos. 
A pergunta se alojou na garganta de Ramson quando viu pela primeira 
vez o rosto de Fisher aparecendo como o de um fantasma nas violentas ondas 
negras. 
— Por que você me salvou? 
Fisher deu de ombros. 
— Porque eu podia. 
Não era uma resposta direta, mas era uma resposta suficiente. Meio 
congelado, seus pensamentos confusos, Ramson sentiu a vergonha aquecer 
suas bochechas e a culpa revirar seu estômago. Ele tratou Jonah Fisher de 
forma abominável... e Fisher salvou sua vida. 
— Obrigado. — As palavras eram tão baixas e a tempestade tão alta que 
ele achou que Fisher não o ouviu. 
Mesmo à beira da morte, Jonah Fisher parecia entediado. Mas então, fez 
algo que surpreendeu Ramson pela segunda vez em seu breve conhecimento. 
Jonah Fisher sorriu. Era um sorriso inquietante e desajeitado: mais uma 
careta, colocando seu rosto pontiagudo em desacordo com seus longos 
cabelos pingando e olhos escuros. 
 
— Me chame de Jonah — ele ofegou. 
Ramson logo descobriria que Jonah recebeu o nome do discípulo do 
deus do mar, que havia reencarnado como uma baleia fantasma mística. 
Daquele dia em diante, Jonah era o irmão que Ramson nunca soube que 
queria. O órfão parecia saber de tudo, desde a política de Bregon até as 
passagens secretas no Forte Azul e as melhores maneiras de trapacear nas 
provas. Não demorou muito para que ele voltasse sua mente para outras 
coisas – coisas que as crianças comuns que estavam aprendendo e treinando 
no Forte Azul não se importavam. Jonah parecia especialmente interessado 
na política dos adultos, nas táticas de guerra Bregonianas, no que continham 
os últimos carregamentos dos reinos das Ilhas Asáticas, nas novas leis 
Cirilianas sobre contratos e afins. Ele fugia para a cidade com frequência e 
voltava parecendo ocupado e distante por dias. 
— Você deveria se esforçar mais na escola — Ramson o repreendeu —, 
como vai acabar tendo uma classificação alta se não entregar suas tarefas? As 
garotas gostam dos recrutas mais inteligentes e fortes. — Ele sorriu. — Como 
eu. 
— As garotas vão gostar de mim pelo quão bonito eu sou — Jonah 
respondeu preguiçosamente. 
Ramson caiu na gargalhada. 
— Bonito? Você parece um corvo depenado, Jonah Fisher! 
— E você parece um peixe eviscerado, com essa sua constante 
expressão estúpida — Jonah brincou. Ele ficou solene novamente, 
considerando a pergunta de Ramson. 
— Acho que não vejo sentido em estudar histórias tão obsoletas quando 
há tragédias muito reais acontecendo à nossa porta. 
— Como o quê? 
 
— As pessoas passam fome, quando temos comida em abundância. As 
pessoas estão morrendo de doença, quando temos um armazém inteiro de 
medicamentos. 
— Porque somos importantes — disse Ramson —, eles nos escolheram 
para nos tornarmos futuros líderes de Bregon... 
— Não seja ingênuo, Ramson. Eu costumava ser uma dessas pessoas 
famintas. Não há nada diferente entre nós e eles. 
— Bem... — O pensamento inquietou Ramson, que sua vida 
programada de cursos e treinamento e um futuro como Comandante da 
Marinha poderiam estar errados e poderiam afetar alguém tão próximo a ele. 
— Assim que chegarmos ao topo, assim que formos almirantes, poderemos 
mudar as coisas. É por isso que você deve fazer suas tarefas, sabe. Caso 
contrário, você nunca vai conseguir. 
Ele não achava que suas palavras teriam impacto em Jonah, mas 
tiveram. Naquele ano, Jonah voltou sua atenção para seus estudos. E, é claro, 
ele se destacava irritantemente em tudo o que fazia, com uma graça sem 
esforço e uma taciturnidade característica. 
Ramson, no entanto, orgulhava-se de ser o melhor falador... na verdade, 
o melhor falador entre os recrutas da Marinha Bregoniana. 
— Qual é o sentido de ser bom em tudo se você não pode dizer a todos 
que é bom em tudo? — ele zombou de Jonah uma vez, quando eles estavam 
no quarto ano de treinamento. 
Jonah deu-lhe um olhar aguçado enquanto mastigava com a boca cheia 
de tudo o que havia roubado na cozinha. Ele ainda estava tão magro quanto 
no dia em que se conheceram, e não importa o quanto comia, ele parecia 
continuar assim. 
 
— A questão é que depois que você terminar de falar, Ramson 
Quicktongue7, eu vou chutar sua bunda. 
Isso calou Ramson. 
Jonah mergulhou o dedo na água e traçouum círculo preguiçoso. Eles 
estavam estendidos em uma barcaça de pesca, aquecendo-se ao sol do meio 
do verão que lançava as ondas de crista branca e fazia tudo brilhar 
nebulosamente. O oceano suspirou, o ar estava balsâmico, o estômago de 
Ramson estava cheio e eles cheiravam a suor, sal e madeira molhada. 
— Olhe — Jonah disse, e Ramson gemeu. Jonah tinha um jeito de ser 
brutalmente honesto, e Ramson recebeu o peso disso —, eu sei que você faz 
isso para compensar, de certa forma. 
— Compensar? Achei que palavras grandes eram minha praia, Fisher. 
— Seu pai — Jonah continuou, virando a cabeça para que seus olhos 
escuros cravassem em Ramson como ganchos. Olhos dos corvos. Mesmo 
agora, falava com aquele sotaque humilde; em vez de mudá-lo, ele o pegou e 
o tornou aceitável, até admirável. — Você está fazendo tudo isso por ele. 
Ramson sentou-se. 
— Isso não é verdade. 
— É — Jonah continuou calmamente —, ele tem uma filha agora, mas 
você ainda acha que tem uma chance de conquistar o título dele algum dia. 
Algo em Ramson se apertou com a menção de Jonah de sua meia-irmã. 
Rumores diziam que ela tinha idade suficiente para começar a treinar em 
Forte Azul em um ano, e ele ainda não a conhecia. 
Ramson duvidava que algum dia o fizesse. 
— Todo mundo tem uma chance no Almirante — ele retrucou, e as 
próximas palavras o deixaram antes que pudesse pensar —, até você. 
 
7 O sobrenome dele, na tradução literal fica: Língua Rápida. 
 
O dedo de Jonah parou; os círculos pararam e Ramson congelou. Ele 
desejou poder engolir suas palavras. As ondas pareciam se acalmar, a 
madeira de repente queimando sob suas mãos. 
— A verdade é que eu provavelmente não vou — Jonah disse 
finalmente. Ramson olhou para Jonah, assustado, mas este continuou 
calmamente —, o mundo está dividido em dois, Ramson: os poderosos e os 
peões. Órfãos como eu? Sem família ou fortuna ou mesmo um nome? Nunca 
nos tornaremos nada. Poder gera poder, e poucos sem ele conseguem chegar 
ao topo. 
As ondas rugiam nos ouvidos de Ramson, e partículas de sal picavam 
seu rosto. 
— Isso não é verdade — ele conseguiu dizer finalmente —, o principal 
Comandante da Marinha torna-se almirante. Todos nós temos uma chance. — 
Eu tenho uma chance. 
— Isso é o que eles dizem a você. Você verá a verdade disso em alguns 
anos. — Jonas deu de ombros. — Está tudo bem. Eu fiz as pazes com isso. Só 
queria dizer, você não deve fazer algo por ninguém além de si mesmo. 
Especialmente para alguém que não dá a mínima para você. 
A garganta de Ramson estava apertada, as palavras de Jonah 
chacoalhando em seu crânio, negando o único objetivo ao qual ele se dedicou 
a cada hora extra de treinamento que passou no Forte Azul, aprimorando 
suas habilidades para se tornar o melhor dos melhores. 
Para se tornar Almirante. 
— Eu não acho... — ele começou, mas Jonah jogou algo nele. Por 
instinto, Ramson pegou o objeto no ar. Ele brilhava como bronze, maior que a 
palma de sua mão. 
Uma bússola. 
 
— Eles dizem que esta foi a única coisa que encontraram em mim 
quando cheguei ao orfanato — Jonah continuou —, eu não fazia ideia do que 
era, mas pensei nisso ao longo dos anos. A coisa é, Ramson, você pode 
conseguir tudo neste mundo, mas se for para outra pessoa, é inútil. Descubra 
o que você quer fazer nesta vida. Viva pra si mesmo. Você pode ser o navio 
de guerra mais forte do mundo, mas não pode navegar sem uma bússola. — 
Jonah se virou, fechando os olhos para os raios do sol. Um leve traço de um 
sorriso pairava em seus lábios quando ele mergulhou a mão no oceano e 
começou a fazer movimentos circulares novamente. — Fique com isso e 
lembre-se disso. Seu coração é sua bússola, Ramson da Quicktongue. 
A bússola era uma coisa velha e enferrujada, suas bordas de bronze 
escurecidas pelo tempo e pelo toque. O vidro estava amarelando, e o pequeno 
mapa de papel dentro parecia ter sido manchado por folhas de chá e 
parcialmente queimado. Ainda funcionava, porém, e Ramson o enfiou no 
bolso e a guardou consigo. Roçou os dedos contra ela para dar sorte e 
coragem, ou apenas para um pequeno lembrete de que ele tinha Jonah e tudo 
ficaria bem no mundo. 
A bússola viajou com Ramson até Jonah morrer, quase exatamente um 
ano depois. Ramson lembrou-se de ter arremessado a coisa contra a parede e 
depois apanhado para ver a flecha girando como um elmo quebrado em meio 
ao vidro estilhaçado, cada vez mais rápida até parecer virar um borrão 
selvagem. E a morte de Jonah deixou Ramson assim, quebrado e sem direção 
e girando fora de controle desde então. 
 
*** 
 
 
Ramson piscou e os traços de suas memórias desapareceram. Ele estava 
de volta na pequena dacha, o fogo se apagando, a garota Afinita – Ana – 
encolhida contra a parede oposta a ele, observando-o sobre as brasas 
bruxuleantes. Fantasmas dançavam ao redor deles nas formas de luz e 
sombras, e ele suspeitou que não era o único assombrado por fantasmas do 
passado esta noite. 
— Eu diria à Bruxa de Sangue que entendo — Ramson disse 
calmamente —, eu também nunca quis machucar ninguém. 
Era uma meia verdade. Após a morte de Jonah, Ramson decidiu 
garantir que essa verdade nunca mais se repetisse. Ele machucou qualquer 
um e todos que entrassem em seu caminho. E mesmo aqueles que não o 
fizeram. 
No entanto, quando Ana deu a ele um olhar arregalado, a curiosidade 
em seu rosto se abriu como um livro para ele, uma parte dele vacilou. 
O que você quer? 
Para corrigir meus erros. O que você quer? 
Eu te disse. Vingança. 
Tinha sido seu lema nos últimos sete anos, mesmo quando o fogo 
derretido de sua raiva se esfriou em aço frio. Vingança, pelo que seu pai tinha 
feito, por todas as falhas quebradas deste mundo tortuoso. 
Pelas próprias falhas de Ramson, que custaram a vida de Jonah Fisher. 
No entanto, quando virou a palma da mão contra a luz moribunda do 
fogo, ele quase podia ver o contorno fantasmagórico de uma bússola. As 
palavras de Jonah sussurraram em seus ouvidos. Você pode conseguir tudo neste 
mundo, mas se for para outra pessoa, é inútil. Viva pra si mesmo. 
 
Ramson quase se virou, como se esperasse ver Jonah encostado na 
parede ao lado dele, observando-o através daqueles olhos escuros e 
semicerrados. 
Ramson fechou o punho. Os fantasmas desapareceram e havia apenas a 
bruxa, sentada diante de si, a cabeça inclinada contra a parede enquanto 
adormecia. 
Uma presa tão fácil. Ele ganharia sua simpatia, a manipularia para 
confiar nele para seu próprio ganho. 
Isso tornaria mais fácil para ele entregá-la – a infame Bruxa de Sangue 
de Salskoff – para Alaric Kerlan. Uma Troca melhor, a melhor que Ramson já 
fizera, em troca de uma ficha limpa. 
No entanto, quando ele se acomodou no chão duro, usando seu próprio 
braço como travesseiro, se perguntou por que algo que deveria ter sido 
facilitado tinha, em vez disso, aparentemente se tornado mais difícil. 
 
 
 
16 
Levaram cinco dias para chegar a Nova Mynsk: uma grande massa de 
cidade no norte do Império. Era uma cidade de extremos, onde casas de 
mármore branco e telhados dourados exalavam opulência, elevando-se sobre 
becos escuros em que o cheiro úmido das sarjetas permanecia como a morte. 
As ruas de paralelepípedos estavam alinhadas com vitrines ostentando 
exuberantes kechyans de seda, joias de ouro incrustadas com pedras 
preciosas de todas as cores e tamanhos e bugigangas que piscavam e 
brilhavam enquanto passavam. Nobres vestidos de peles fervilhavam pelas 
ruas, barrigas e bolsas de moedas salientes, a poucos passos dos becos 
escuros em que mendigos seminus se agachavam. 
Ana manteve-se perto de Ramson enquanto eles serpenteavam pelas 
ruas. Era fim de tarde e o sol se inclinava sobre as mansões de mármore. 
Cinco dias de viagem a esgotaram; ela desabou agradecida na cama fria do 
quarto que eles alugaram em uma das centenas de pubs espalhados pela 
cidade. 
Ramson havia comprado roupas limpaspara eles com uma parte das 
moedas que ela havia tirado dos caçadores de recompensas. Depois de uma 
refeição rápida de tortas pirozhky de carne e cebola, Ana se limpou e, 
rapidamente, vestiu a nova roupa. O destino da noite: o Playpen. 
As sedas e chiffons deslizaram suavemente sobre sua pele, e Ana 
estremeceu ao se virar para se olhar no espelho de vidro rachado de seu 
quarto alugado. As roupas eram extravagantes, mais finas do que qualquer 
coisa que ela usara no ano anterior. Ramson havia mencionado que apenas os 
 
ricos podiam se dar ao luxo de um entretenimento tão luxuoso; para entrar, 
tinham que parecer e representar o papel. 
Seu vestido, em sua opinião, beirava o sugestivo. O vestido de noite 
preto meia-noite cobria as curvas de seu corpo como a carícia fresca da água, 
formando poças a seus pés. As costas desciam até a cintura, e estava grata 
pela cortina de pele que Ramson havia comprado para ela. Ainda assim, ela 
se sentia quase nua sem o capuz. 
Ana trançou o cabelo e o torceu em um coque, na tentativa de 
reproduzir um pouco do que suas empregadas do Palácio costumavam 
pentear para ela. Ela passou um pouco de rouge nos lábios, pó nas bochechas 
e traçou kohl sobre os olhos. Fazia tanto tempo que ela não se olhava no 
espelho, e vestir-se parecia um jogo estranho que estava tentando jogar, uma 
imitação de um passado que ela nunca mais poderia ter. Sua pele tinha ficado 
áspera ao longo do ano passado, entrecruzada com pequenas cicatrizes onde 
tinha caído ou onde galhos ou os elementos tinham lascado nela, seus lábios 
secos e rachados. 
Ela se inclinou para trás, e parecia que estava olhando para um 
fantasma no espelho: um eco da princesa herdeira Anastacya Kateryanna 
Mikhailov que ela tinha sido. 
Um nó se formou em sua garganta com todas as possibilidades de como 
sua vida poderia ter sido, o que poderia ter sido se a menor coisa tivesse sido 
diferente. 
Ana empurrou esses pensamentos para o fundo de sua mente. Ela 
colocou um novo conjunto de luvas de veludo preto. Respirou fundo. Elevou 
o queixo. 
Três batidas afiadas soaram em sua porta. E, assim, o plano deles estava 
em movimento. 
 
Ana mal reconheceu o jovem que estava em sua porta. Ramson estava 
bem barbeado, o cabelo penteado para trás, o casaco preto afiado ajustava-se 
perfeitamente à sua figura esguia. Vestido assim e sorrindo arrogantemente, 
ele poderia passar por filho de um nobre ou um jovem duque arrogante, 
vindo para uma noite de confusão em Nova Mynsk. 
Eles olharam um para o outro por um instante, e ela se perguntou se 
Ramson achou a visão dela em roupas finas igualmente estranha. Calor 
correu para suas bochechas; ela lutou por algo para dizer enquanto se virava. 
Não importa o quão bem o criminoso se limpasse, ela não podia cometer o 
erro de pensar que seu caráter havia mudado também. Ele ainda era 
perigoso: um lobo em pele de carneiro. Um deslize de seu foco, e ele teria 
suas mandíbulas ao redor de seu pescoço. 
— Você se arruma bem para um criminoso. 
— Querida, você faria bem em lembrar que muitas vezes os criminosos 
são os mais bem vestidos. — Ramson entrou e jogou o que estava carregando 
na cama dela. — Identificações — disse —, mantenha-as em você o tempo 
todo. 
Anna examinou um dos papéis. 
— “Elga Sokov, Afinita da água”? — leu com ceticismo. Para crédito de 
Ramson, porém, o documento parecia autêntico, carimbado e assinado com a 
formatação adequada dos documentos legais que ela estudou. 
— Achei que depois de Kyrov, seria melhor você ter a documentação 
adequada, só por precaução — respondeu ele, e então apontou para um 
segundo conjunto de itens. — Também comprei máscaras. É tradição no 
Playpen. 
Ana enfiou as identificações nas dobras de sua capa e pegou uma das 
máscaras, segurando-a contra a luz das velas. Brilhava com purpurina 
 
prateada, redemoinhos de ouro falso saindo de cada um dos buracos dos 
olhos. Os lábios pintados de dourado se esticaram em um sorriso cruel e 
zombeteiro. 
Ramson ergueu sua própria máscara. Um olhar pensativo passou por 
seu rosto enquanto a examinava. 
— Alguns acham que suas ações são mais perdoáveis se esconderem o 
rosto. 
— Você não pode esconder seus pecados das Divindades. — Era um 
fato que ela havia aceitado por seus próprios crimes. 
— Correto. — Ramson colocou a máscara no rosto, prendendo-a com 
precisão cirúrgica. — Mas, neste mundo, a vida é um disfarce. Todos usam 
máscaras. 
Talvez fosse verdade, pensou Ana enquanto colocava a máscara. 
Ramson virou-se para ela, uma mão na maçaneta. Sua máscara preta 
brilhava com ouro falso e joias falsas que pareciam reais. 
— Você já saiu para uma noite em Nova Mynsk, Ana? 
Algo em seu tom fez o coração dela bater forte – um arrepio de perigo 
sob a calma. 
— Não. 
Ele inclinou a cabeça em um aceno. 
— Então fique perto de mim. 
 
*** 
 
As ruas de Nova Mynsk se transformaram. Longe estavam as belas 
vitrines, os carrinhos de legumes e frutas, as carruagens douradas e as 
valkryfs brancas puras. Longe estavam as famílias que passeavam em peles 
 
finas, os mercadores cravejados de anéis que se apressavam em seus 
negócios. Era como se a cidade tivesse vestido uma máscara própria, 
substituindo sua idílica fachada diurna por um ato noturno sombrio e 
perigoso. 
Tochas ardiam nas ruas, lançando sombras bruxuleantes em grupos de 
espreitadores e foliões. Os pequenos pubs e estalagens apertadas nos becos 
escuros brilhavam com vida, rugindo com cantos e risos obscenos. Os aromas 
de fumaça e álcool pairavam no ar. 
Ana ficou logo atrás de Ramson, apertando a capa de pele contra o 
peito. Ela havia trocado sua bolsa por uma mais refinada, na qual carregava 
todos os seus esboços. Eles eram o único lembrete da vida que teve, e ela 
tinha o medo irracional de que, se os perdesse, perderia seu passado. 
Ela estava grata por eles terem colocado suas máscaras antes de sair da 
taverna. Mulheres com estranhas máscaras de animais e vestidos lúgubres 
caminhavam perigosamente perto dela e de Ramson, sorrindo e ronronando 
na direção deles. Homens de rosto pálido com adagas brilhando em seus 
cintos mostravam seus dentes de ouro enquanto acenavam com as mãos para 
ela em saudação. 
Parecia que ela havia entrado em um mundo subterrâneo surreal que 
não era nada parecido com a Cyrilia que conheceu toda a sua vida. 
Ramson baixou a cabeça para ela, e sua voz estava rouca quando 
murmurou em seu ouvido. 
— O Playpen é ostensivamente um clube com artistas Afinitas. Mas 
como a maioria dos aspectos deste mundo, não é o que parece ser. Os 
comerciantes são conhecidos por comprar contratos de trabalho Afinitas nos 
quartos dos fundos. 
 
As palavras a assombraram enquanto teciam através da multidão 
risonha, em direção a um clube que nunca deveria ter existido em primeiro 
lugar. 
Onde tudo deu errado? Ela se lembrava, nos últimos anos da vida de 
papai, como ele se tornara fraco e frágil; como seu julgamento e memória 
haviam sofrido com acessos de raiva induzidos pela febre; como seus 
momentos de lucidez se tornaram cada vez mais escassos ao longo dos anos. 
Ainda outra memória a agarrou. Papai, afastando-se dela enquanto ela 
implorava para ele não deixar Sadov levá-la novamente. Tomaremos medidas 
para curar sua condição. É... para o seu próprio bem. 
A mão de Ramson roçou seu ombro e ela pulou, seus pensamentos se 
dispersando. Eles estavam no meio de uma rua movimentada. As pessoas 
passavam por ela, cambaleando e gritando em sua embriaguez, garrafas de 
licor brilhando à luz das tochas. 
À frente deles estava o prédio mais iluminado da rua. Foi construído no 
estilo de uma catedral Ciriliana, cúpulas que se afilavam em pináculos 
afiados que assomavam no céu noturno. No entanto, em vez das paredes de 
mármore branco e vitrais representando Deys'krug, o exterior havia sido 
construído com tijolos marrom-avermelhados baratos e as janelas estavampintadas com figuras de mulheres se contorcendo em movimentos de dança 
grotescos – uma réplica ridícula de um reverenciado, edifício sagrado. 
Ana percebeu que enquanto estava olhando com desgosto para o pub 
diante deles, Ramson também não se moveu. Ele olhou para a taverna, seu 
contorno rígido. Com sua máscara, ele se parecia como um estranho e não o 
jovem senhor do crime com quem ela havia se associado na semana passada. 
Ele se virou para ela, seus rápidos olhos castanhos encontrando os dela. 
Não havia humor em seu tom quando disse: 
 
— Bem-vinda ao Playpen. — A voz de Ramson assumiu uma nova 
camada de urgência quando repetiu: — Fique perto de mim. 
Ana fez o seu melhor enquanto eles passavam pelas portas de mogno 
polido. À medida que seus olhos se ajustavam à escuridão, ela começou a 
distinguir as silhuetas de mulheres espalhadas em poltronas de dois lugares 
ou curvadas sobre bares, murmurando palavras nos ouvidos de seus clientes. 
Velas tremeluziam em invólucros magenta, lançando um tom sedutor ao 
redor do interior da taverna. 
Todas as garotas aqui eram Afinitas? Quantas foram trazidas de uma 
terra estrangeira com a promessa de oportunidade e se tornaram contratadas 
para este lugar vil? 
Ramson abriu caminho através de um labirinto de arcos curvos com 
cortinas de contas até que, por fim, chegaram a um vestíbulo com outro 
conjunto de portas de mogno. Duas mulheres estavam sentadas em um sofá 
vermelho, ambas usando máscaras pretas com feições felinas e muito pouco 
mais. Seus olhos se desviaram para Ramson. 
Uma se levantou, sorrindo, e se aproximou. Ana notou que ela tinha 
bigodes pintados em suas bochechas, e até mesmo um rabo falso preso em 
seu traseiro. 
— Se você está procurando um espetáculo, mesyr, eu posso te dar um. 
— Sua voz era um ronronar quando passou a mão pelo ombro de Ramson. 
— Eu odiaria perder isso — disse Ramson —, mas tenho certeza de que 
o espetáculo que procuro esta noite está além dessas portas. 
— Hmm — a cortesã mascarada de gato murmurou pensativa —, bem, 
talvez eu tenha minha parte de você outra noite, então. Pode prosseguir. 
Ana soltou um suspiro que não percebeu que estava segurando. Ela 
deu um passo à frente, ansiosa para deixar este quarto misterioso. 
 
— Espere. 
A segunda mulher no sofá havia falado. Ao contrário da primeira, sua 
voz era afiada, e seus olhos perfuravam como adagas enquanto ela se 
levantava. Eles foram treinados em Ana. 
Com uma sensação crescente de pavor, Ana observou sua aproximação. 
Ela sentiu Ramson endurecer em sua frente. Pelo canto dos olhos, ela viu a 
primeira cortesã dar um passo para trás. 
— Que negócio você tem? — A segunda mulher parou a vários passos 
de Ana. Seus olhos fixaram Ana como uma borboleta em um quadro de 
cortiça. A mente de Ana começou a percorrer todas as respostas possíveis 
para sua pergunta. Era um enigma? Haveria uma resposta certa, um código, 
que deveria dar, e que Ramson se esqueceu de dizer a ela? Ou havia outra 
razão mais sinistra para essa pergunta? 
O medo se instalou em seu estômago quando a primeira mulher se 
retirou para o lado de sua companheira, erguendo as mãos em direção a eles 
em uma postura defensiva. Duas pequenas lâminas de aço surgiram do nada, 
pairando acima de seus ombros, prontas para atacar. Afinita, Ana percebeu, e 
ela estendeu a mão para seus próprios laços. 
A segunda mulher rosnou, e Ana sentiu uma pressão estranha e fria em 
sua Afinidade: familiar, mas não tão forte quanto o bloqueio de parede que o 
Yaeger havia pressionado contra ela no Mercado de Inverno em Kyrov. Ana 
sufocou um suspiro. A mulher era uma Yaeger. 
Eles haviam sido descobertos. 
Os pensamentos de Ana se misturaram. Instintivamente, ela agarrou 
sua Afinidade, preparando-se para a onda de sangue e poder que fluiria 
através dela. 
Uma voz a interrompeu. 
 
— Divindades, que descuido de minha parte. — Ramson suspirou. Em 
um lampejo, ele se posicionou ao lado dela, sua mão segurando sua cintura 
enquanto a puxava contra ele. — Ela é minha. 
Ana tentou se desvencilhar dele, mas Ramson lhe deu um leve aperto. 
Um aviso... um sinal. Deixe-me cuidar disso. Ela parou de lutar. 
— Mostre sua identificação — a Yaeger rosnou. A pressão sobre a 
Afinidade de Ana não cedeu. 
Identificação, pensou Ana, engolindo em seco e tentando acalmar seu 
coração acelerado. É claro. Ramson devolvera as identificações a ela no hotel 
e dissera-lhe que as guardasse... por precaução. 
Com dedos trêmulos, ela as tirou e os entregou a Yaeger. 
— Hmm — a mulher ronronou, desgosto infiltrando em suas feições. Ela 
deu uma olhada rápida nos papéis, então deu de ombros e os jogou de lado. 
Ana os observou cair no chão —, não. 
— Não? — Ramson repetiu, mas o temperamento de Ana explodiu ao 
ver a indiferença da Yaeger, a forma como descartara tão casualmente as 
identificações de Ana. Essas identificações, Ana agora sabia, poderiam 
significar a diferença entre a vida e a morte para um Afinita. 
— Por que não? — ela exigiu. — Eu te mostrei minhas identificações! 
— Seus documentos são necessários para provar seu status. — Os olhos 
da Yaeger brilharam. — Mas não somos obrigadas a deixá-la entrar, bruxa. 
O insulto a atingiu mais forte do que nunca, vindo da boca de alguém 
que deveria estar do mesmo lado que ela. Por quê? Ana queria perguntar. Por 
que você faz isso? 
Mas ela sabia por quê: a mesma razão pela qual aquele Yaeger em 
Vyntr'makt de Kyrov lutou contra ela. Se eu não sou o caçador, então me torno a 
caça. 
 
Ramson pareceu chegar a uma decisão. 
— Você tem autoridade sobre essas decisões? — A arrogância e o 
descontentamento haviam desaparecido de seu tom, deixando apenas um 
cálculo frio. 
A Yaeger ergueu o queixo. 
— Sim. 
— Então você faria bem em se lembrar do seu lugar. — Ramson soltou 
Ana e caminhou até as duas mulheres, seus passos ágeis e poderosos. Ele 
estava de costas para Ana, mas o que as duas mulheres viram as fez arregalar 
os olhos com aro de kohl e olhar para Ramson com medo claramente escrito 
em seus rostos. 
— Por favor, mesyr — a mulher com máscara de gato sussurrou —, nós 
nunca quisemos... nós não sabíamos... 
— É o suficiente. — A brusquidão da voz de Ramson fez Ana pular. — 
Abra a porta agora. 
— Sim, mesyr — disse a primeira cortesã, enquanto sua companheira 
olhava para Ana com horror —, obrigada por sua gentileza, mesyr. 
Ela ergueu a mão e uma série de cliques metálicos soaram dentro das 
duas portas de mogno trancadas. Elas se abriram, revelando um conjunto de 
escadas sinuosas iluminadas por tochas. 
Ramson estendeu um braço, as sombras abaixo dele se alongando. 
— Venha — ele cantarolou. Ana se apressou, recolhendo as 
identificações caídas no chão. Ela se sentiu rígida sob os olhares das duas 
cortesãs, mas então o braço de Ramson se fechou ao redor dela e eles 
passaram. As duas portas se fecharam atrás deles, prendendo-os na 
escuridão. 
 
Só então Ramson parou e se encostou na porta. O braço dele ainda 
estava pendurado na cintura dela, como se ele tivesse se esquecido dela, e ela 
se viu encostada nele, seus corações batendo no mesmo murmúrio de alívio. 
Ramson exalou, seu peito arfando sob ele. Um segundo se passou, e 
depois outro, então ele pareceu perceber sua estranha proximidade. Ana se 
afastou assim que ele colocou os braços contra os lados. 
— Essa foi por pouco. — A voz de Ramson era áspera quando se virou 
para os degraus. Sua máscara brilhou, seus olhos brilhando enquanto 
captavam a luz estranha e distante. 
Ana olhou para o pulso dele, que estava coberto pela manga de seu 
casaco. 
— O que você mostrou a elas? 
— Os truques de um criminoso — disse rapidamente, e ela não podia 
dizer se ele ainda estava agindo ou falando a verdade —, vamos lá. Não 
queremos nos atrasar. 
Ao olhar para os degraus de pedra que desciam para o desconhecido, 
Ana de repente sentiu um medo frio e pesado se instalarem seu estômago. 
Além daquelas escadas estava a resposta para a pergunta que vinha se 
fazendo desde aquele dia em Kyrov. Além daquelas escadas estava a resposta 
que ela estava esperando e temendo ao mesmo tempo. 
May estava viva? 
Suas mãos correram para o peito em um sinal instintivo de oração. Ela 
tinha tanta certeza, no Templo das Divindades, que ela mesma seria capaz de 
salvar May. No entanto, agora daria qualquer coisa para que as Deidades 
respondessem suas orações. 
 
— Ana. — Ramson havia parado nos degraus. Por um momento, ele 
parecia estar lutando para encontrar as palavras. E então disse: — Estamos 
atrasados. 
Eles estavam, e May podia estar lá embaixo. Ela tinha que estar. 
Ana respirou fundo e endireitou os ombros. Ela deu um breve aceno de 
cabeça e seguiu Ramson escada abaixo, na escuridão. 
 
 
 
17 
A descida pareceu durar uma eternidade. Tochas ardiam de arandelas 
nas paredes, e a escada estava silenciosa, exceto pelo farfalhar das saias de 
Ana e o estalar das botas de Ramson. 
Gradualmente, ela começou a ouvir um som fraco: no início, não era 
mais alto que um zumbido, mas cresceu em volume até se tornar uma batida 
rítmica e pulsante. 
As escadas em espiral davam lugar a um corredor longo e escuro que se 
estendia diante deles, onde o ruído constante de batidas emanava como uma 
coisa viva. A máscara escura de Ramson brilhava à luz das tochas. Vestido 
em seu casaco preto e escondido atrás de sua máscara de joias, ele parecia 
uma criatura fantasmagórica da noite. 
Ana encontrou seus olhos – afiados e inteligentes. Seus olhares se 
encontraram, o fantasma de um sorriso passou por seu rosto, e ele deu um 
aceno quase imperceptível. Depois de você. 
Ana ergueu o queixo. Depois de mim. 
O corredor virou e se abriu. Além de uma porta de pedra em arco havia 
um vasto auditório com um palco amplo, iluminado por tochas bruxuleantes. 
Quatro pilares de pedra altos perfuravam cada canto do palco, com 
interpretações de mármore falso das Divindades no topo de cada um. Mais 
acima, assentos vazios na sacada cercavam o auditório. 
Uma sensação estranha – de frio, de vazio – envolveu-a como uma capa 
quase imperceptível. Por alguma razão, este lugar trouxe de volta memórias 
de escuridão, de desamparo. 
 
O tambor continuava batendo em algum lugar atrás do palco. As 
pessoas circulavam, a luz das tochas lançando as pedras preciosas em suas 
máscaras. Suas peles caras farfalhavam enquanto eles brindavam com taças 
de vinho, as joias de ouro em seus braços brilhando enquanto eles devolviam 
as bebidas em gargalhadas. 
— O que esse espetáculo implica? — Ana sussurrou para Ramson 
enquanto eles passavam por um casal mascarados de tigre. 
O palco, ela viu quando eles se aproximaram, era construído de 
mármore com veios azuis, suas bordas douradas. Os pilares estavam 
enfeitados com sedas caras e fitas de prata, as cortinas de safira feitas de 
veludo rico e pesado. O palco em si parecia ter uma qualidade estranha, 
quase surreal, algo que Ana não conseguia identificar, não importa o quanto 
ela o olhasse. 
— Eles fazem os Afinitas atuarem usando suas habilidades — Ramson 
respondeu, gentilmente separando duas nobres bêbadas. Sua mão escorregou 
para trás, travando em torno dela, e ela quase pulou. Seu coração disparou 
em uma batida desconhecida —, os nobres pagam por um bom 
entretenimento. E é um disfarce. Alguns nunca sabem sobre os negócios do 
contrato nas costas. 
Ana estremeceu. 
— Os Afinitas, eles nunca tentam fugir? Mesmo o mais fraco poderia 
lutar bem contra um não-Afinita. 
Ramson inclinou a cabeça e apontou, chamando sua atenção para as 
alcovas de observação vários níveis acima. 
— Em alguns minutos, um atirador vai aparecer em cada um deles. Eles 
têm flechas tingidas de Deys'voshk e atiram para matar. — Ele acenou com a 
cabeça para o palco. — Olhe bem ali. 
 
 
Ana apertou os olhos e de repente percebeu o que fazia o palco parecer 
tão estranho. Atrás dos quatro pilares, paredes de vidro com infusão de 
pedra negra quase tão altas quanto as alcovas de observação circundavam 
todo o palco, deixando uma área no centro da frente para um anfitrião. 
Pedra-negra. O frio, a sensação de vazio que ela sentiu ao entrar neste 
lugar fez mais sentido agora. O mesmo que sentia cada vez que Sadov a 
levava para aquela sala nas masmorras. 
O tom de Ramson era sombrio quando ele disse: 
— Se algum Afinita tentar alguma coisa, será baleado antes mesmo de 
quebrar o vidro. 
O projeto era cruel, mas eficiente; nenhum Afinita poderia ultrapassar o 
vidro infundido de pedra-negra, o que significava que os Afinitas estavam 
limitados aos recursos que recebiam para suas performances. Não admira 
que nenhum deles tenha tentado escapar. 
Ana lembrou-se de empurrar as portas de pedra-negra das masmorras 
de Salskoff, estendendo a mão com sua Afinidade e apenas sentindo o nada 
frio e negro. Quando sua garganta estava em carne viva de tanto gritar e suas 
lágrimas se esgotaram, ela foi reduzida a se aconchegar contra elas, tremendo 
e arranhando-as com unhas ensanguentadas. 
Ela sacudiu a memória, concentrando-se em uma pergunta diferente. 
— Como você sabe tudo isso? 
A mandíbula de Ramson se apertou. 
— Já estive em alguns desses espetáculos antes. Eu vi como funciona. 
As pessoas aqui podem negociar a compra de contratos de trabalho do 
Afinita à medida que a noite avança. Tudo é feito discretamente a portas 
 
fechadas. — Ele fez uma pausa. — É isso que precisamos tentar quando 
virmos May se apresentar. 
Ela puxou a mão dele, de repente fria. É claro que Ramson sabia desses 
programas... ele era um criminoso, um criminoso clandestino. Mas ela tinha 
que perguntar, tinha que saber. 
— Ramson — disse, e sua voz era apenas um suspiro —, você alguma 
vez... você já foi um deles? Um corretor? 
— Não. — A palavra cortou com a verdade, mas algo em seus olhos a 
deixou insuperavelmente triste quando ele os virou para ela. — Mas ver isso 
acontecer é outro crime em si, não é? 
Ela não tinha resposta para isso. Ana estremeceu e se virou assim que 
as batidas dos tambores pararam de repente. Como se fosse uma deixa, a 
multidão irrompeu em aplausos selvagens. Uma figura entrou no palco, em 
frente à parede de vidro com infusão de pedra-negra e cortinas de veludo 
dentro. Ele era um homem bem-acabado, de cabelos dourados, que usava seu 
charme como seu colete de seda azul-marinho: cravejado de diamantes e 
brilhantes e costurado no colarinho com brilhantes fios de ouro. Quando ele 
acenou, os anéis cravejados de joias em seus dedos brilharam enquanto 
refletiam a luz da tocha. 
— Mesyrs, meya damas e todos os outros convidados! — gritou em 
uma voz estrondosa que ressoou por todo o auditório. — Vocês estão prontos 
para o espetáculo de hoje à noite? 
Os gritos da multidão ficaram mais altos e se tornaram um cântico. 
— Bogdan! Bogdan! Bogdan! 
— Esse é o Penmaster — explicou Ramson. 
O Penmaster – Bogdan – ergueu as mãos, radiante. 
 
— Temos um excelente programa planejado para vocês esta noite! 
Assista a uma formidável Rainha do Gelo nos dar um prelúdio para o 
Fyrva'snezh! A Ninfa da Floresta faz crescer flores do ar! Um Marmorista cria 
estátuas impressionantes! E não perca: nosso Atirador de Aço luta contra um 
Espectro do Vento até a morte! Quem vai sair vivo? Há apenas uma coisa que 
sabemos, e é que todos vocês sairão felizes! 
A multidão explodiu em gritos e aplausos. O estômago de Ana apertou, 
mas ela ficou em silêncio enquanto observava uma cena que nunca deveria 
ter existido se desenrolar diante de seus olhos. 
Bogdan ergueu as mãos e a multidão ficou em silêncio. 
De repente, os tambores começaram novamente. Boom-ba-da-boom. O 
pulso de Ana trovejou com a batida, e ela se pegou prendendo a respiração 
enquanto olhava para o palco iluminado. 
As cortinas explodiram atrás dos limites do vidro. A multidão gritou 
quandouma enorme nuvem de névoa obscureceu o palco da vista por um 
momento, enrolando-se contra as paredes de vidro e derramando-se sobre o 
topo em plumas brancas. Quando o vapor se dissipou, uma figura ficou no 
meio dele. Alta, pálida e esbelta, com cabelos brancos esvoaçantes e um 
vestido azul-claro, ela era a encarnação do inverno. 
A Rainha do Gelo varreu as palmas das mãos em um arco ao redor 
dela. Gelo se espalhou a seus pés, impulsionando-a em um amplo círculo ao 
redor do interior do vidro. Cabelo voando, vestido ondulando, ela torceu as 
mãos e gelo disparou de seus pulsos para o chão, ancorando-a enquanto ela 
dava uma cambalhota no ar e aterrissava do outro lado do palco. 
A multidão explodiu; a Rainha do Gelo sorriu e fez uma reverência com 
toda a graça de uma artista. 
— Ela parece estar gostando — sussurrou Ana. 
 
— Ela é uma regular — Ramson murmurou ao seu lado, juntando as 
mãos em um aplauso lento. Ele estava olhando para o palco, sua mandíbula 
apertada, seus ombros rígidos —, ela trabalha com os corretores. 
— Sob contrato? 
— Sim, mas... — Ramson hesitou, e pela primeira vez desde que se 
conheceram, Ana o viu lutar para encontrar as palavras. — Ela não foi 
contratada contra sua vontade, se é isso que você está perguntando. Ela 
trabalha com os corretores. 
Não contra sua vontade, pensou Ana, virando-se para trás enquanto a 
Rainha do Gelo girava no palco, o gelo florescendo sob seus pés. 
A plateia vibrou quando a Rainha do Gelo começou a esculpir gelo com 
movimentos de seu pulso. Um respingo de gelo subiu no ar, tornando-se um 
cervo gracioso e galopante. Outra onda se cristalizou em uma matilha de 
lobos correndo. Um tigre Cyriliano rondando. Um cavalo valkryf. 
Isso era maior do que apenas um espetáculo, Ana percebeu. Esta era 
uma maldita exibição das Divindades de como o emprego dos Afinitas poderia 
parecer; uma garantia para aqueles que acreditavam cegamente em sua 
própria justiça e moralidade enquanto continuavam a perpetuar a violência e 
o abuso contra aqueles impotentes para resistir a ela. May. A grã Afinita em 
Kyrov. E os Afinitas que ficavam nos bastidores, esperando para serem 
exibidos como bonecos. 
Toda aquela dor e sofrimento, velados por trás de um único espetáculo 
chamativo de esculturas de gelo cintilantes e roupas brilhantes. 
A Rainha do Gelo bateu as mãos no chão. Uma coluna de gelo a lançou 
no ar, ficando cada vez mais alta até chegar ao nível do topo da parede de 
vidro... 
 
E ela saltou por cima do muro, aterrissando em dois pilares de gelo que 
encolheram rapidamente em direção ao lado de fora do palco onde Bogdan 
estava. Os arqueiros escondidos nas alcovas do teto não fizeram nenhum 
movimento para detê-la. 
A Rainha do Gelo pisou no mármore do palco e fez uma profunda 
reverência. 
— Eu lhes apresento — gritou Bogdan —, a Rainha do Gelo! — 
Enquanto a multidão gritava com aplausos, Bogdan pegou as mãos da 
Rainha do Gelo e levou-as aos lábios. Ela sorriu timidamente para ele antes 
de sorrir para a plateia e acenar. 
— A seguir, Ninfa da Floresta! 
— Ramson. — A voz de Ana estava baixa com urgência. — Ele não 
anunciou nenhuma Afinita da Terra hoje. 
— Bogdan escolhe os Afinitas que quer anunciar. — Ramson lhe lançou 
um olhar. — Paciência. Todas as coisas boas vêm para aqueles que esperam. 
Então Ana assistiu ao espetáculo em silêncio. Afinita após Afinita 
emergiu pelas cortinas para mostrar seus poderes. Em pouco tempo, o palco 
de mármore estava cheio de pétalas de flores, galhos e terra; o vidro estava 
manchado de névoa, gelo e água. A multidão aplaudiu ou vaiou dependendo 
do desempenho do Afinita. E, às vezes, por algumas folhas-de-ouro, Bogdan 
engajava o público, orientando o Afinita no palco a obedecer aos pedidos da 
multidão. Performances particularmente populares podem terminar com 
chuvas de folhas-de-ouro se acumulando a seus pés. 
A noite foi passando e não se via May. No entanto, Ana sentiu um 
calafrio se espalhando por ela. Ela não era diferente daqueles Afinitas no 
palco, cujo sofrimento o mundo escolheu esconder sob uma falsa camada de 
 
tinta e roupas brilhantes. Cuja existência alguns odiavam, mas continuavam a 
lucrar. 
Continuaremos a curar sua condição, papai lhe dissera. Para o seu próprio 
bem. 
Ela piscou para conter as lágrimas quando a percepção se enroscou em 
seu peito, deixando-a sem fôlego e cambaleando. Papai só amava a parte dela 
que não era uma Afinita, um monstro, um deimhov, em suas palavras. Ele só 
queria salvar uma parte dela, não toda. 
Assim como ele só queria salvar a parte de seu império que achava que 
valia a pena salvar. 
E por tanto tempo, ela amou apenas uma parte de si mesma, negando 
essa outra metade, escondendo o vermelho de seus olhos e as veias grotescas 
de suas mãos sob capuzes e luvas. Por tanto tempo, ela queria 
desesperadamente arrancar aquela outra parte de si mesma, para se 
transformar em algo totalmente merecedor de amor. Algo que pudesse entrar 
na luz, algo digno das bênçãos das Divindades. 
No entanto, quem foi... quem considerou as outras partes dela e de seu 
império indignas? Quem havia determinado que os Afinitas eram menos 
dignos de amor, de serem humanos, e por quê? Simplesmente porque eles 
eram... diferentes? 
E um novo pensamento veio a ela, perfurando os gritos selvagens da 
multidão e as batidas dos tambores. 
Eu tenho que consertar isso. 
— Mesyrs e meya damas! O espetáculo que todos esperavam. — A voz 
de Bogdan arrastou Ana de seus pensamentos. Uma onda de expectativa e 
emoção tomou a multidão. — Nossas apresentações acabaram, mas nunca 
 
terminamos uma noite sem o Confronto das Deidades. Bem-vindos ao nosso 
Atirador de Aço, campeão invicto do Playpen! 
O ânimo de Ana afundou assim que um rugido ensurdecedor de 
aprovação veio da plateia, e o tambor começou uma nova batida: baixa, 
sombria e firme. 
As cortinas na parte de trás do palco se abriram. Uma figura volumosa 
entrou na luz. Ele era monstruoso, a armadura brilhando sob a luz das tochas 
e os músculos salientes sob as placas de aço. Uma dúzia de cicatrizes brancas 
cortavam sua careca e seu rosto, que parecia ter sido arrastado por 
quilômetros contra afloramentos irregulares de rocha. Ele olhou de soslaio 
para a plateia, metal brilhando em seus dentes. 
— E agora — gritou Bogdan. — Um recém-chegado ao desafio: bem-
vindo, Espectro do Vento! 
Boom-boom... da-boom-BOOM. Das sombras das cortinas surgiu outra 
figura. À primeira vista, Ana pensou que fosse uma criança. Enquanto se 
esforçava para ver melhor, esperando ver os olhos azul-marinho de May, ela 
percebeu que a recém-chegada não era uma criança, mas na verdade uma 
jovem. Sua forma esquelética era enfatizada por sua camisa e calças escuras e 
justas. Ela olhou para cima, seu rosto emoldurado por cabelos pretos como a 
meia-noite que refletiam a luz das tochas. 
Kemeirana. Um sussurro ecoou pela multidão enquanto eles apontavam 
para a garota. 
Ela estava prestes a dizer a Ramson que eles deveriam ir embora, 
quando outra coisa chamou a atenção de Ana. Uma figura parada na beirada 
do palco, bem na frente das cortinas de veludo. O azul pálido de seus olhos 
varreu a multidão, o louro-branco de seu cabelo brilhando vermelho-sangue 
à luz do fogo. 
 
O corretor. Aquele que arrebatou May das pontas dos dedos de Ana em 
Kyrov. 
Sem pensar, Ana pulou para frente, batendo com força em um grupo de 
pessoas à sua frente. Um copo caiu das mãos de alguém e se estilhaçou. 
O homem com quem ela esbarrou se virou. Ele usava uma máscara de 
ouro com um rosto choroso de farsa, a boca muito grande e virada para baixo 
zombeteiramente. 
— O que... — ele começou. 
— Saia do meu caminho — Ana retrucou. O corretor de olhos azuis 
desapareceria a qualquer momento; ela não tinha tempo. Ana pegou sua 
Afinidade... 
— Com licença, gentil mesyr. — Uma mão envolveu sua cintura e 
Ramson se colocou entreela e o homem, obscurecendo sua visão do palco. 
Ana se contorceu, mas ele manteve os dedos presos em sua cintura. — Meya 
dama aqui bebeu um pouco demais! Uma prova do grande entretenimento 
desta noite. 
Os olhos do nobre brilharam, mas ele bufou indignado e voltou para o 
palco. 
— Me solte — Ana rosnou, mas Ramson a agarrou com mais força. 
— O que você está fazendo? — ele sussurrou. 
Ela o empurrou para trás, mas ele se manteve firme. 
— O corretor — rosnou, já alcançando o sangue de Ramson com sua 
Afinidade —, aquele que levou May... eu o vi. Agora, saia! — Ela o empurrou 
de lado com sua Afinidade, sua raiva incandescente. 
Ramson cambaleou para trás, mas se conteve, ignorando os olhares 
estranhos de várias pessoas próximas enquanto se afastavam. Sua mandíbula 
estava apertada; uma mecha de seu cabelo caiu sobre sua máscara. 
 
— E? — ele desafiou, sua voz baixa. — O que você ia fazer? 
Alguma coisa, ela pensou furiosamente. Qualquer coisa. 
Ana avançou, mas Ramson a pegou, seus braços enrolados ao redor ela 
em um aperto visceral. Sua cabeça zumbia com raiva e ela considerou 
arrancá-lo dela com sua Afinidade, não importando as consequências. 
— Pense — Ramson sussurrou, seus lábios ao lado de sua orelha. Para 
qualquer estranho, eles poderiam estar presos em um abraço apaixonado, 
mas Ana estava a um passo de explodi-lo do outro lado da sala —, você está 
aqui para salvar May. Como atacar esse corretor e se expor vai ajudar? Em 
qualquer coisa? 
As palavras de Ramson caíram como água fria no metal derretido de 
sua raiva. Ana parou de lutar, sua respiração irregular, enquanto olhava para 
a garota Kemeirana. Ela estava sozinha no palco sob a sombra do Atirador de 
Aço. Atrás dela, as cortinas onde o corretor estivera farfalharam, como se 
agitadas por um vento fantasma. Ele não estava mais lá. 
Ramson estava certo. Usar sua Afinidade contra aquele corretor, ou 
fazer qualquer coisa imprudente, apenas os exporia e frustraria seu plano. 
O aperto de Ramson sobre ela afrouxou, e por um momento 
simplesmente ficou com os braços ao redor de si, o rosto contra o ombro dele, 
observando o palco e respirando a fragrância limpa e calmante de sua 
kologne. 
O Atirador de Aço havia recuperado quatro facas de arremesso afiadas. 
Ele rolou a cabeça, estalando as articulações do pescoço grosso e dos ombros 
tensos. 
Ramson recuou. Seus olhos percorreram o rosto de Ana, e ela imaginou 
que ele estava captando cada movimento minúsculo de suas feições, 
elaborando o que dizer a seguir para acalmá-la. 
 
— Não é assim em todos os lugares, lembre-se — ele disse, sua voz 
mais gentil. As mãos dele ainda estavam em volta dos ombros dela —, em 
Kemeira, por exemplo, os Afinitas são apontados como Mestres do Templo, 
os protetores de cada aldeia. Em Nandji, os Afinitas são muito respeitados. E 
em Bregon... 
Ana tirou as mãos dele. 
— Isso deveria me fazer sentir melhor? — ela estalou. No palco, o 
Atirador de Aço deu um rugido de batalha e atacou a pequena Afinita do 
vento. 
Ana se virou. May não estava aqui esta noite, ela podia nem estar perto, 
e Ana se sentiu mal com a ideia de assistir Afinitas matarem uns aos outros 
por diversão. 
Uma lágrima quente e impotente rolou por sua bochecha. Quando ela 
levantou a mão para afastá-la, algo peculiar aconteceu. Um suspiro coletivo 
soou sobre a multidão. 
Ana se virou. O Atirador de Aço gritou enquanto cambaleava para 
encarar a Fantasma do Vento, que agora estava do outro lado do palco, 
pressionado contra o vidro. No entanto, sua postura era a postura de um 
lutador. Suas palmas estavam levantadas, uma ante a outra, e seus pés 
estavam plantados na largura dos ombros no chão de mármore. 
O Atirador de Aço atacou. Facas de aço disparadas de áreas ocultas de 
sua armadura... 
... e bateu contra o vidro infundido de pedra-negra. A multidão 
engasgou; pessoas apontaram. 
A Fantasma do Vento se lançou no ar, os braços abertos e as pernas 
dobradas como um tipo bizarro de pássaro. Ela voou sobre a cabeça do 
Atirador de Aço em um arco elegante. Mais rápido que um piscar de olhos, 
 
seus pés bateram levemente nos ombros do homem gigantesco; ela girou um 
círculo completo e, com precisão acrobática, pousou atrás dele. 
Em uma extensão de sua aterrissagem, ela ergueu as mãos. Duas das 
facas de arremesso do Atirador de Aço brilharam em suas palmas. 
No momento em que o Atirador de Aço, piscando em confusão, se 
virou, estava acabado. 
A Fantasma do Vento saltou, graciosa e mortal como um jaguar. Ela 
agarrou seus ombros e cortou suas mãos em sua garganta. 
O baque do corpo do Atirador de Aço batendo no palco de mármore 
ecoou pelo auditório silencioso. Vermelho penetrou no chão, tornando as 
veias do mármore carmesim. A Afinidade de Ana se agitou, um sussurro 
suave no fundo de sua mente. 
A coisa toda levou menos de dez segundos. 
— Mesyrs e meya damas! — A voz de Bogdan ressoou no auditório. — 
Parece que temos uma nova vencedora e um novo recorde! Eu lhes apresento: 
a Fantasma do Vento! 
A multidão irrompeu em aplausos e gritos. Os poucos que haviam 
apostado na Fantasma do Vento acenavam com suas fichas e gritavam a 
plenos pulmões, clamando por seu ouro. 
Ana se virou e começou a abrir caminho até a saída. Ela não tinha forças 
para passar nem mais um segundo neste lugar abandonado pelas 
Divindades. Enquanto abria caminho pela multidão selvagem e bêbada, não 
pôde deixar de olhar para trás. A plateia entrou em frenesi e começou a 
cantar o nome da vencedora. No entanto, no palco, atrás da parede de vidro 
salpicada de sangue, a Fantasma do Vento estava quieta. Ela estava a vários 
passos do sangue que se acumulava ao redor do corpo de seu oponente, a 
cabeça baixa, os braços pendurados ao lado do corpo. 
 
Ana desviou o olhar. Como a Fantasma do Vento, ela não sentiu vitória 
na derrota do Atirador de Aço. Não importava que uma garota condenada 
tivesse lutado e vencido esta noite. Não importa o quê, um corpo estava 
esfriando no chão. Não importa o quê, uma vida foi perdida. E até que todos 
os estádios e corretores fossem incendiados, Cyrilia continuaria perdendo. 
Ana deu uma última olhada nas reluzentes estátuas de mármore das 
quatro Divindades e se perguntou como elas conseguiam olhar para um 
lugar tão ímpio. 
 
 
18 
O ar frio de outono que ardia em seu rosto era uma liberação feliz das 
câmaras quentes e apertadas do Playpen. Ramson deslizou pela multidão, os 
olhos fixos nos cabelos castanhos de Ana, na silhueta esguia de seu vestido 
preto enquanto caminhava rapidamente. Ele a chamou, alto o suficiente para 
atrair a atenção e risadinhas de vários foliões bêbados. 
Ele pegou seu pulso. Por instinto, ele se virou, puxando-a para a 
escuridão de um pequeno beco. Ela fez um barulho na garganta e ficou 
quieta. 
— Ana — Ramson ofegou. Algo nele se contorceu como uma faca ao 
vê-la: braços cruzados, ombros curvados, como se quisesse se dobrar. 
Ela era incrivelmente ingênua, mas algo na maneira como via o mundo, 
como se fosse esculpido em branco e preto, o lembrava de como ele era antes 
da morte de Jonah. E, de alguma forma, uma pequena parte dele queria 
protegê-la. 
Ramson encontrou-se estendendo a mão e gentilmente inclinando o 
queixo para ele. 
Ela deu um passo para trás, saindo de seu aperto, e arrancou sua 
máscara. Caiu no lixo molhado do beco vazio. 
Ela estava chorando. Lágrimas esculpiram listras escuras de kohl em 
suas bochechas, misturando-se com seus pós. Por um momento, ela o olhou, e 
ele queria puxá-la para perto. 
— Isso — ela sussurrou —, foi além de desumano. Não tenho palavras 
para isso. 
 
O calor que corria em suas veias se dissipou, e Ramson de repente 
sentiu frio. 
— Foi — disse ele com a voz rouca. 
Ela virou o olhar para ele, os olhos queimando como brasas. 
— Como você pode se associar com essas pessoas? Como pode vê-los 
fazer isso e não sentir nada? 
Portodos esses anos, ele tomou o caminho do covarde, recusando-se a 
descer a um nível tão baixo quanto os corretores sob o comando de Kerlan. 
No entanto, ficar parado e não fazer nada era outra forma de mal, ele 
percebeu quando baixou o olhar para o chão. E o destino o recompensou na 
mesma moeda, de qualquer maneira. 
Ramson ficou em silêncio. 
Ana respirou fundo. Ela limpou com raiva as lágrimas em seu rosto e 
pareceu se recompor enquanto levantava o queixo e se endireitava. 
— Eu só preciso de um tempo sozinha. — Seu tom era impassível e 
monótono, o mesmo da primeira vez que falara com ele em Quedas 
Fantasma. Em algum lugar, de alguma forma em sua vida, ela aprendeu a 
mascarar suas emoções. E era quase tão boa quanto ele. 
Olhando-a, olhos em chamas, ombros retos, alta e majestosa em seu 
vestido de noite, ele pensou que ela queimava como um farol. Algo se mexeu 
nele, algo que o atraiu para ela como sombras em direção à luz. 
Ramson eliminou aquele vislumbre de desejo. 
— Tudo bem — disse, encolhendo os ombros —, Tenho alguns assuntos 
para resolver. — Fique segura. Vejo você de volta na pousada. No entanto, ele não 
disse nenhuma dessas palavras enquanto se virava abruptamente e se 
afastava, deixando-a na escuridão do beco. O Ramson Quicktongue de Nova 
 
Mynsk, Mestre Portuário e Adjunto da Ordem do Lírio, não dava nenhuma 
garantia e não fazia promessas. 
Ramson caminhou pelas ruas que conhecia como a palma de sua 
própria mão. Ele cresceu na cidade como um ladrãozinho, fazendo recados 
para a Ordem e aprendendo tudo que podia sobre o mundo cruel e tortuoso 
com o qual ele tinha que trabalhar. Com o tempo, os telhados de telhas 
vermelhas das dachas tornaram-se seu porto seguro, e as sombras dos becos 
sujos cresceram para recebê-lo como um velho amigo. 
Ramson parou em um pub. Ele falou com vários clientes encapuzados 
antes de deslizar pedras de policial sob mesas de madeira sujas e apertar as 
mãos, arranjo feito. Ele então partiu para as Barragens. 
As represas eram menos uma represa do que uma vasta malha de becos 
apertados e túneis subterrâneos que separavam os pobres dos ricos em Nova 
Mynsk. Era o ninho de todas as gangues e redes criminosas. Um funil de 
esgoto a céu aberto corria ao longo da borda das represas, emprestando à 
área seu fedor úmido e podre que grudava nas roupas de quem ficasse muito 
tempo. Era também um local conveniente para despejar as vítimas. A cada 
poucos dias, um corpo flutuava ao longo do córrego verde sujo, cadáveres de 
ninguém ou criminosos que os guardas da cidade e os Mantos Brancos 
optavam por ignorar. 
Os postes de luz haviam sido quebrados há muito tempo, e os cacos de 
vidro restantes no chão se espatifaram sob os sapatos engraxados de Ramson. 
A lua se escondia atrás de nuvens que prometiam neve – a Primeira Neve – 
em quatro dias, e Ramson ficou grato por o fedor de esgoto ter se dissipado 
com o frio. Ele caminhou rapidamente, navegando pelas curvas e curvas 
tortuosas sem mais hesitação do que um homem andaria em seu próprio 
quintal. 
 
Ele parou de repente, na esquina de um beco não diferente de qualquer 
outro. Ramson encostou-se à parede e derreteu-se nas sombras. 
Ele esperou. 
Minutos se passaram. A escuridão pressionava seus olhos. Uma 
pequena criatura correu por uma pilha de lixo atrás dele. 
E então ele ouviu: o fraco clop-clop-clop dos cascos e o rangido das rodas 
da carruagem. Ele conhecia a carruagem exata que estava vindo nesta direção 
e conhecia o passageiro que transportava. 
De todos os senhores do crime que governaram Cyrilia, Alaric Kerlan 
era o maior e o pior de todos. Sua ampla rede, sua riqueza insuperável e sua 
liga de corretores altamente treinados e membros de gangues o tornaram o 
mais temido. Portanto, era lógico que os homens de Kerlan pudessem passear 
pelas represas vestidos de sedas e jogando ouro, e as outras gangues os 
curvariam para a frente e correriam atrás deles para ajudar a pegar as moedas 
que deixaram cair. A ira de Alaric Kerlan era a última coisa que se queria 
incorrer. 
A carruagem apareceu: dourada, envolta em lápis-lazúli e puxada por 
duas valkryfs. Na porta havia uma enorme gravura de um lírio do vale, seu 
caule esculpido em esmeralda brilhante e suas flores em forma de sino feitas 
de ouro branco. 
Ramson esperou até que a porta estivesse bem na sua frente. Com um 
leve salto, ele estava no degrau dobrável da carruagem. O homem careca que 
dirigia na frente nem sequer olhou para trás quando Ramson abriu a porta e 
entrou silenciosamente. 
Bogdan deu meia-volta; Ramson tapou a boca do artista com a mão. Ele 
podia sentir os lábios de seu antigo associado se abrindo no início de um 
ganido. 
 
— Faça um único barulho e meu assassino lá fora terá uma flecha no 
seu coração mais rápido do que você pode mijar nas calças de seda azul. 
Bogdan piscou e seus olhos rolaram para a janela da carruagem. Uma 
sombra passou; os olhos do apresentador do Playpen se arregalaram 
comicamente e ele se encolheu, assentindo. 
Ramson sorriu e tirou a máscara. A sombra desapareceu da janela. 
— Relaxe, cara — disse preguiçosamente —, eu não passei por toda essa 
merda para vir e matar você. 
Bogdan fungou e recostou-se, ajeitando a gravata-borboleta e alisando o 
colarinho de seda. 
— Pensei que nunca mais veria você, Quicktongue. 
Ramson revirou os olhos. 
— Se eu tivesse uma moeda para cada vez que alguém dissesse isso 
para mim, Bogdan. 
Bogdan se endireitou. 
— Outros sabem que você está de volta? — perguntou com cuidado. — 
Kerlan sabe? 
— Alguns sabem. Mas eu preciso que ele saiba a verdade. Ou qualquer 
coisa que possa ser percebida como a verdade em nosso comércio. — Ramson 
dirigiu a Bogdan um sorriso encantador. — E é por isso que eu vim até você. 
Estou aqui para cobrar minha dívida 
— Sua dívida — repetiu o artista, de repente parecendo um nobre 
Cyriliano que descobriu algo desagradável em sua salada de beterraba. 
Bogdan não era o membro mais esperto ou inteligente da Ordem; era bonito e 
arrogante, obcecado com pequenos detalhes e dinheiro pequeno em vez de 
olhar para o quadro maior. Certa vez, vários anos atrás, sua arrogância quase 
lhe custou a vida. 
 
— Meu querido Bogdan, certamente você não esperava que eu 
guardasse seu segredo de Kerlan por todos esses anos por nada? — Ramson 
se inclinou para frente, entrelaçando os dedos. — O que nosso mestre diria se 
soubesse do lucro que você estava fazendo com os contratos que vende? 
A expressão de Bogdan ficou feia. 
— O que está me impedindo de chamar meu contundente em você 
agora, Quicktongue? — ele rosnou. — Eu contratei Svyet porque ele derrotou 
dois assassinos Kemeira... 
— Porque você sabe que antes mesmo que ele pare a carruagem e abra 
esta porta, eu vou cortar sua garganta e arruinar essas almofadas de veludo 
caras com seu sangue. 
— Sempre as mesmas ameaças, Quicktongue — Bogdan rosnou —, 
você esquece que Kerlan me treinou também. Vamos tentar e ver de quem é o 
sangue derramado nesta carruagem. 
— Você quer que eu seja um pouco mais criativo em minhas ameaças, 
Bogdan? Bem. — Ramson desviou o olhar para os dedos de Bogdan. — Você 
sempre gostou de anéis, Bogdan. Cada um carregando uma pedra preciosa 
de todos os reinos do mundo. 
Bogdan recuou de repente, sua expressão apertando. Ele torceu as 
mãos, batendo as unhas nos rubis, esmeraldas e safiras em cada mão. 
— É um belo novo que você tem aí, o diamante. Parece ser um original 
das Cavernas Azuis do Leste. — Os olhos de Ramson se voltaram para cima. 
— Como está Olyusha? 
Bogdan empalideceu. 
— Imagine o que Kerlan diria se descobrisse que você está se deitando 
com um de seus bens. — Ramson franziu a testa, fingindo um olhar de 
confusão. — Meu erro, Bogdan, imagine o que Kerlan diria se descobrisse que 
 
você se casou com um de seus bens. — Ele deu a Bogdan um sorriso afiado. — 
Aí. Muito melhor. Afinita ePenmaster. Pares engraçados, eu diria. 
O rosto de Bogdan passou por tons alternados de branco e vermelho, 
finalmente parando em uma raiva arroxeada, mal contida. 
— Você é um ser humano desprezível — ele cuspiu. 
— Sou um ser humano desprezível que faz as coisas acontecerem. Você 
faria bem em lembrar disso da próxima vez que me pedir para ser mais 
criativo. 
Bogdan o encarou por vários momentos com repulsa. 
— Tudo bem — rosnou finalmente —, dê um nome à sua Troca. 
Ramson sorriu como um gato ao sol. As pessoas eram tão fáceis, tão 
previsíveis. Ele realmente não tinha contratado um assassino. Afinal, aqueles 
custavam mais do que uma folha-de-prata brilhante e eram difíceis de 
reservar na noite. Os assassinatos eram uma grande economia em Nova 
Mynsk. Não... às vezes a crença no perigo era mais eficaz do que o próprio 
perigo. A sombra na janela tinha sido algum rato de rua que ele encontrou 
escondido em uma das tavernas, desesperado e disposto a enfrentar as 
represas por uma mera moeda. 
Além disso, Ramson preferia não gastar moedas em seus empregos 
sempre que possível. Ele descobriu, ao longo dos anos, que havia um método 
mais confiável de compra. Segredos eram a moeda de troca de Ramson 
quando se tratava desses negócios. 
— Você dirá a Kerlan que estou de volta — disse ele. Com a obstinação 
teimosa de Ana para salvar May, Ramson teve que ajustar seu plano. Agora 
que o elemento surpresa não era mais possível, bem, ele simplesmente 
anunciaria sua chegada, o mais alto que pudesse. Ele jogou esse jogo com 
Kerlan por muitos anos, e ele conhecia as regras muito bem. Enquanto 
 
permanecesse um passo à frente dele, enquanto mantivesse seu interesse 
despertado, vivia. — Você vai dizê-lo para me esperar no baile da 
Fyrva'snezh. E vai dizê-lo que eu volto para oferecer a ele o maior comércio 
de sua vida. 
— E o que você está oferecendo? 
Ramson quase hesitou por um instante, mas as palavras já haviam saído 
de sua boca. 
— A Bruxa e Sangue de Salskoff. 
A boca de Bogdan formou um pequeno O. A hostilidade desapareceu 
de seu rosto, substituída por um olhar de pura ganância. 
— Isso é apenas um mito — disse, mas seu tom implorou a Ramson 
para provar que estava errado. 
— Ela é tão real quanto o ouro em seus dentes, Bogdan. Derrubou cinco 
guardas com um movimento de suas mãos. 
— Ela custará uma fortuna — sussurrou Bogdan —, vale mais do que o 
Palácio do Fogo Nandjian. Quero dizer... quanto você acha que ela vale? 
Quanto ela vale? A pergunta o abalou, e de repente ele se sentiu mal. Ele 
pensou em Ana agora, no traço ousado de sua boca, no jeito que ela franziu a 
testa quando estava pensando, o jeito que teimosamente manteve seu rosto 
feroz no Playpen quando seus olhos traíram seu horror. 
A maneira como ela brilhava como uma tocha na escuridão. 
Algo se agitou dentro de seu peito: algo enterrado muito abaixo da 
parede que ele construiu com as ruínas de seu coração. Era como se um bloco 
tivesse se deslocado em seu mundo cuidadosamente construído, mudando 
tudo com ele pela primeira vez em sete longos anos, quando ele deixou seu 
passado para trás e continuou correndo e nunca parou para pensar no que 
estava fazendo com sua vida. 
 
O que você quer? 
Eu te disse. Vingança. 
Mas isso não era mais suficiente, percebeu. Todo esse tempo, pensou 
que tinha as chaves de seu destino quando, na verdade, ele estava em uma 
jaula o tempo todo. Apenas uma das marionetes de Kerlan com um título 
chique, lutando para cumprir suas ordens e deixadas de lado quando não são 
mais necessárias. 
Entregar Ana para Kerlan significava que ele ainda estava jogando a 
mão que Kerlan lhe dera. 
Era hora de mudar o jogo. 
— Ela vale mais do que você jamais poderia imaginar — Ramson disse 
calmamente. As rodas em sua mente já estavam girando, pulando dois, três 
passos à frente e se espalhando nas infinitas possibilidades que essa conversa 
poderia representar. Calculando todos os cenários em que ele venceria e as 
condições que o permitiriam. 
E enquanto falava, ele começou a tecer os detalhes de seu novo plano. 
— Quero que você ouça com atenção, Bogdan. Você dirá a Kerlan que 
neste baile de Fyrva'snezh, vou matar meu traidor, recuperar meu título e 
entregar a ele a Afinita mais poderosa que existe. 
Bogdan engoliu em seco. 
— Tudo bem. 
— Há mais — disse Ramson —, eu quero que você me dê uma lista dos 
convidados presentes no evento este ano. Você encontrará um corredor do 
lado de fora de sua casa na sétima hora amanhã de manhã. Dê-lhe a lista. 
— Isso quase não é hora nenhuma! — Bogdan gaguejou, mas com um 
olhar de Ramson, ele admitiu. — Certo. 
 
— E você vai me adicionar a essa lista. Eu e minha esposa. Espero que 
meu mensageiro me entregue os convites junto com a lista de convidados 
amanhã de manhã. E eu saberei se foram forjados, então não tenha nenhuma 
ideia, Bogdan. 
Bogdan parecia ter comido um bocado de merda de gato que queria 
cuspir na cara de Ramson. Lentamente, com um esforço de estourar as veias, 
ele engoliu em seco e disse: 
— Claro. 
— Se algo der errado e eu não conseguir entrar no Fyrva'snezh de 
Kerlan, será por sua conta. 
Bogdan fungou. 
— Certo. — Mal-humorado, ele pescou de sua jaqueta uma caneta 
gravada em ouro e um pedaço de papel onde guardava seus saldos. — E que 
nome vou adicionar à lista de convidados? 
Ramson fez uma pausa. Não “Quicktongue”, o pseudônimo chamativo 
e ridículo que ele adotou para a Ordem do Lírio. Ele precisava de um nome 
que ninguém além de Kerlan conhecesse, que enviasse um sinal. Um código. 
A resposta era tão óbvia que lhe veio como um soco no estômago. 
— Farrald — ele disse baixinho. 
Bogdan revirou os olhos enquanto anotava o nome. 
Assim que a caneta e o papel desapareceram em um dos muitos bolsos 
que forravam o caro terno de seda de Bogdan, Ramson se inclinou para 
frente. 
— E tem mais. 
— Pelo amor das Divindades! — Bogdan ergueu as mãos e baixou a voz 
em um sussurro raivoso. — Você está me Trocando três condições por apenas 
dois segredos. 
 
— Quatro condições — corrigiu Ramson, e continuou sobre os balbucios 
indignados de Bogdan. — As melhores ofertas nunca estão na proporção de 
um para um. Pense em um cenário maior, Bogdan. Qual é a perda para mim 
se essas condições não forem atendidas? Eu perderia a opção de retornar à 
Ordem e deixaria o Império para começar um negócio em outro lugar. Mas 
quanto lhe custaria a exposição desses dois segredos? — Ramson ergueu as 
sobrancelhas e deu de ombros. 
O rosto de Bogdan estava vermelho. Ramson praticamente podia ver as 
engrenagens funcionando em sua cabeça enquanto pesava os custos e 
benefícios da Troca. 
— Tudo bem —assobiou. — Mas depois disso, não quero mais lidar 
com você, Quicktongue. Depois disso, está acabado. — O artista pontuou sua 
frase com um golpe furioso de seu dedo. 
Ramson levou dois dedos ao peito e desenhou um círculo. 
— Juro em nome das Divindades e de tudo o que há de sagrado dentro 
de mim, meu bom homem. 
— Ah, corte a merda. Qual é a terceira condição? 
— Há uma jovem no inventário de Kerlan; uma Afinita da terra. 
Apanhada pelos Mantos Brancos de Kyrov. Soa familiar? 
Os olhos de Bogdan se estreitaram e ele franziu a testa, 
presumivelmente repassando o roteiro de seus próximos espetáculos. 
— Sim — ele disse finalmente, as palavras dando alívio a Ramson —, 
ela deve se apresentar em três dias. Olha, eu não posso simplesmente dar ela 
para você. Kerlan vai matar... 
— Eu sei. Eu entendo as regras. — Ele esperava o contrário, mas Kerlan 
administrava seus negócios com firmeza. — Eu não estou pedindo que você a 
 
dê para mim. Daqui a três dias, vou licitar o contrato dela. E você vai fraudar 
os lances. A meu favor. 
— Hum. — Bogdan coçou o queixo, evidentemente apaziguado com a 
perspectiva de mais dinheiro. — Acho que isso pode ser feito. Vou ter que 
fazer alguns arranjos, mas...tudo bem. Muito bem, então. — Ele deu uma 
fungada altiva. — E a quarta? 
Ramson se inclinou. 
— Eu quero perguntar sobre a sua Fantasma do Vento — disse 
suavemente, e começou a desenrolar as palavras que iriam tecer as peças 
finais de seu plano no lugar. Quando ele estendeu a mão para cumprimentá-
lo, seu casaco de lã era metade de uma bolsa de folhas-de-ouro mais leve, e 
ele tinha uma última parada para fazer durante a noite. 
— Troca feita — disse Ramson. 
— Troca feita — ecoou Bogdan. 
Eles acordaram. 
 
*** 
 
Ramson escolheu caminhar de volta pelas Represas. Um homem como 
ele deveria rastejar nas sombras deste mundo, sem luz e sem esperança de 
algo melhor. Jonah estava certo, depois de todo esse tempo; o mundo em que 
os órfãos, filhos bastardos e ratos de rua nasceram não era de bondade e 
gentileza. O mundo foi dividido em conquistadores e conquistados; os que 
têm poder deixam de lado os que não têm, como peões num tabuleiro de 
xadrez. 
Quando Jonah morreu, Ramson jurou pela alma de seu amigo que ele 
nunca seria um dos peões. 
 
Se o plano de Ramson tivesse sucesso, ele não seria mais um peão na 
sombra de Kerlan. Kerlan estaria morto, e Ramson estaria comandando o 
espetáculo no proverbial trono da maior companhia de negócios de Cyrilia. 
Todos aqueles anos de observação do lado de fora, de perseguir a 
sombra distante de seu pai, de sussurros de filho bastardo, finalmente, 
derrubado. E o legado de Jonah, cumprido. 
Viva pra si mesmo. 
Isto é para você, Jonah, pensou ele, com um olhar para o céu – nublado, 
como naquela noite com a tempestade e o barco e aquela voz calma e fina em 
seu ouvido. 
Ainda assim, mesmo depois que ele saiu das Represas, ele não 
conseguiu se livrar da pequena pontada de arrependimento que se agarrou a 
ele. Ana se reencontraria com May, e elas iriam muito, muito longe para 
algum lugar onde pudessem ser livres. 
Algo nele mudou quando estava com Ana. A escuridão, as intrigas, o 
cálculo frio nele desapareceram, revelando tênues traços do que ele havia 
sido. Um menino apaixonado pelo oceano. Um menino que queria navegar 
pelos mares para sempre, com o sol aquecendo suas costas e as ondas 
batendo em suas mãos. Ele havia se esquecido desse garoto, um que tinha 
grandes sonhos e esperanças tolas e tinha sido bom. O menino que se tornou a 
menor lasca de esperança. 
Mas de que adiantava a própria bondade, quando o mundo era 
governado pelos cruéis? 
Ramson respirou fundo e só quando chegou perto da taverna onde 
estava hospedado tirou a máscara novamente. O homem que ele havia se 
tornado nas represas esta noite, de olhos mortos, impiedoso e calculista, era 
um lado dele que ele nunca quis que Ana visse. 
 
19 
Ramson voltou para a estalagem nas primeiras horas da madrugada, 
quando o sol estava nascendo sobre os telhados vermelhos e as mansões de 
mármore brilhante de Nova Mynsk. Ana fechou os olhos resolutamente, 
fingindo estar dormindo enquanto ele destrancava a porta do quarto dela 
com a chave reserva que segurava. Ela o sentiu parado em sua porta por um 
tempo, e então, como uma sombra, ele se foi. 
Quando ela o encontrou para um café da manhã de mingau de salmão e 
pão de fermento lá embaixo pela manhã, algo em sua expressão mudou. 
— Tenho novidades — disse com a boca cheia de comida. Ele tomou 
banho e vestiu uma camisa branca limpa, aberta no colarinho. Ele apertou os 
olhos e acenou com uma colher para ela. — Esse capuz sempre faz parte da 
sua roupa? 
— A ignorância sempre faz parte da sua roupa? — Ana retrucou, e 
lançou um olhar ao redor da pousada. Estava quase vazia, exceto por um ou 
dois viajantes de aparência cansada carregando canecas de cerveja preta 
sobre mesas de madeira rachadas. Ainda assim, ela manteve o capuz bem 
apertado enquanto se sentava em frente a ele. — Além disso, você não 
deveria ser mais cauteloso? Depois do que aconteceu com os mercenários? 
Ramson se inclinou para trás, brandindo sua colher. 
— Cuidado é meu nome do meio, querida. 
— É por isso que você foi sequestrado nos trinta minutos em que o 
deixei sozinho? 
 
— Eu tinha essa situação sob controle. — Ramson sorriu com a 
expressão de Ana. — Tudo bem, vamos apenas dizer que eu tenho algum 
seguro agora. Alguém acima me quer vivo. 
Ana enfiou a colher na tigela grossa de mingau. 
— Então, quais são as novidades? 
— May está programada para se apresentar em três dias. Um dia antes 
do Fyrva'snezh de Kerlan. 
Sua colher caiu. Mingau derramado sobre a mesa. O resto do mundo – a 
pousada escura, o cheiro de peixe queimado no ar, a mesa de madeira lascada 
– desapareceu. 
— Como você sabe? 
— Eu sei tudo. 
— Você tem certeza absoluta? — Sua túnica de repente parecia muito 
apertada; era difícil respirar. 
— Sim. Quando terminar de me interrogar, talvez possamos finalizar o 
plano. 
Plano. Ela não conseguia se concentrar, não conseguia pensar em nada 
além de May atrás daquelas portas de carroça de pedra-negra, sozinha, 
indefesa e com medo. 
— Não se preocupe tanto. — Ana piscou e percebeu que Ramson a 
observava com um sorriso nos lábios. — O plano é simples. Nós vamos licitar 
o contrato dela depois do espetáculo. Lembre-se de que eu lhe disse que é 
isso que acontece nos quartos dos fundos. 
A mente de Ana girou. 
— Não entendo. Oferta por ela? E se não vencermos? 
 
— Nós vamos. Eu pedi um velho favor. — Ele terminou seu último 
pedaço de pão de fermento e enxugou os dedos no guardanapo. — Se você 
não pode vencê-lo, apenas manipule. 
— Isso não é um jogo, criminoso — Ana rosnou, seu temperamento 
aumentando com a leviandade dele, com o pensamento de May sentada em 
uma cela em algum lugar daquele lugar horrível do inferno —, se pelo menos 
uma coisa der errado, então a vida de May ficará em perigo. 
O sorriso desapareceu do rosto de Ramson. Ele colocou a colher de 
volta na tigela, com cuidado, deliberadamente, como se estivesse 
manuseando uma arma. 
— Você acha que eu não sei a diferença entre a vida e a morte? — disse. 
— Estou neste negócio há sete anos. Comecei como um rato de rua e trabalhei 
até onde estou hoje... onde eu estava. Um deslize ao longo do caminho, e eu 
estaria morto. 
Sua respiração veio superficial. Ramson Quicktongue tomou o cuidado 
de nunca revelar nada sobre si mesmo para ela, além do estritamente 
necessário. No entanto, algo havia mudado. Ela simplesmente não conseguia 
imaginar... o quê. 
— E é por isso que temos planos de reserva — disse, e o momento se foi 
—, eu tenho um para vários cenários diferentes, e eles consistem em túneis 
secretos e passagens subterrâneas. — Ele se inclinou para frente, seus olhos 
cor de avelã brilhando na luz da manhã, o cabelo desgrenhado encaracolado 
contra suas têmporas. — Assim que tivermos May, precisamos estar prontos 
para o baile da Fyrva'snezh. 
Ele deslizou algo sobre a mesa para ela. 
Um pedaço de pergaminho, com nomes rabiscados às pressas. Ana 
examinou o título. 
 
— Convites para o Fyrva'snezh de Kerlan? — Ela pensou em perguntar 
como ele conseguiu isso, mas sabia que questionar as fontes de Ramson 
Quicktongue não levaria a lugar nenhum. 
— Sim. — Ramson tocou um dedo em um único nome no meio da lista 
e, por um momento, tudo o que viu foram as palavras brilhando para ela. 
Mesyr Pyetr Tetsyev. 
Ana respirou fundo. Ela agarrou o pergaminho com tanta força que 
seus dedos ficaram brancos. 
— Nós precisaremos atraí-lo para algum lugar quieto. Em algum lugar 
que eu possa falar com ele e depois sair, despercebida. 
Os olhos de Ramson brilharam. 
— Há uma sala secreta no porão de Kerlan. É à prova de som. Tenho 
certeza de que ninguém ficará de guarda durante o baile. — Ele tamborilou 
na mesa em uma batida inquieta. — É perfeito. Há um túnel que vai do porão 
até os fundos... é por onde entram todos os suprimentos da propriedade. 
Comida, flores, roupas... afins. Vou providenciar uma carruagem. Só 
precisamosconcordar com o momento. 
 
*** 
 
Eles se retiraram para seus quartos para discutir o resto dos planos. Eles 
discutiram cada minuto, identificaram cada posição, trabalharam em todos os 
cenários potenciais e mapearam tudo cuidadosamente. 
Ao fim de dois dias, haviam esgotado todos os detalhes do resgate de 
May e do baile de Kerlan, e até mesmo a diligência de Ana estava se 
esgotando. 
 
— Não há chance de conseguirmos ela hoje ou amanhã? — ela 
importunou Ramson. 
— Não — Ramson respondeu na tarde do segundo dia, descansando na 
cama de Ana —, precisamos comparecer ao espetáculo e jogar de acordo com 
as regras. 
— Mas... 
— Você realmente quer roubar um homem antes de ir à sua festa? — 
Ele virou uma folha-de-ouro entre os dedos; a moeda pegou o sol do fim da 
tarde, piscando quando Ramson a fez aparecer e depois desaparecer 
novamente. — Estamos entrando na cova dos leões. Há tanta coisa que 
podemos controlar. Mas se Kerlan nos quisesse mortos, já estaríamos mortos. 
— Por que você diz isso? — Ana ergueu os olhos do canto onde estava 
sentada, com as costas retas e as pernas cruzadas em meio a dezenas de 
pergaminhos com os mapas e planos que eles haviam rabiscado. Parcelas de 
seus suprimentos estavam empilhadas ordenadamente contra a parede – 
roupas, principalmente, para os próximos dias. Eles gastaram uma boa parte 
de sua moeda... e o resto, bem, Ana assumiu que ela e Ramson iriam dividir 
entre eles quando chegasse a hora de se separar. 
O pensamento a encheu com uma sensação estranha, e ela rapidamente 
o olhou novamente, seu cabelo ruivo despenteado espreitando sobre seus 
travesseiros, para ter certeza de que ele ainda estava lá. 
— Eu estive em contato com alguns de seus contatos. Ele estará nos 
esperando em seu baile. É por isso que, enquanto você encurrala Tetsyev, 
estarei lá em cima distraindo Kerlan para que ele não perceba nada fora do 
comum. — Ele jogou a folha-de-ouro no ar e a pegou; quando abriu a palma 
da mão novamente, ela havia desaparecido. — Ele acha que eu vou lhe 
oferecer uma troca. 
 
Ana mordeu a ponta da caneta. — E o que você vai fazer? 
— Matá-lo? Encantá-lo? Quem sabe. — Ramson lhe deu um sorriso 
malicioso, e Ana suspeitou que ele sabia exatamente o que ia fazer. Ela 
aprendeu a parar de pedir respostas que nunca obteria. 
Então Ana voltou aos seus papéis, concentrando-se nas coisas que 
poderia conseguir: May, seu alquimista, e um caminho de volta para seu 
irmão. 
 
*** 
 
Boom-ba-da-BOOM. 
Os tambores batiam. As tochas brilhavam. A plateia aplaudia. No 
entanto, esta noite eles atingiram um ritmo diferente no coração de Ana. Esta 
noite eram uma contagem regressiva para ela enquanto ziguezagueava entre 
a multidão de nobres sonolentos e embriagados. 
Era a quarta noite de sua estadia em Nova Mynsk e a noite da 
apresentação de May. Tudo dependia desta noite. 
Bogdan andava de um lado para o outro no palco, sua voz ecoando 
pelo auditório lotado. Era imaginação de Ana, ou um brilho de suor cobria a 
testa do animador? 
A Rainha do Gelo havia terminado sua apresentação; ela ficou ao lado 
do palco do lado de fora do vidro, sorrindo para a multidão. Ela era a 
constante em um palco de Afinitas rotativos, suas exibições enchendo a arena 
com água e pedras e fogo e todos os outros elementos imagináveis. 
Bogdan abriu os braços. 
— A seguir, mesyrs e meya damas, temos uma Afinita da terra. 
Cada fibra do corpo de Ana ficou tensa. 
 
— Ela pode atrair a vida de nada além de lama; pode fazer suas flores 
favoritas florescerem mais brilhantes do que as estrelas no céu noturno! 
No palco, as cortinas se abriram. Um assistente saiu correndo e colocou 
um pote na borda da parede de vidro antes de se esconder nos bastidores. 
Da escuridão das cortinas, uma silhueta emergiu – e o mundo de Ana 
sibilou em foco nítido. A Afinita se arrastou para a frente em um enorme 
vestido marrom escuro costurado com flores vermelhas brilhantes, suas 
hastes enrolando ao redor de seu corpo. Seus ombros estavam caídos, seu 
contorno menor e mais ossudo do que Ana se lembrava, e sua cabeça estava 
curvada. Seus lindos olhos oceânicos estavam escondidos. 
Ana lutou contra as lágrimas quando May, com quase metade do 
tamanho dos outros Afinitas que apareceram no ringue, tropeçou no centro 
do palco. Risos começaram na plateia, e Bogdan deu uma risada acomodada. 
— Vamos, querida! — ele explodiu. — Não temos o dia todo! 
Os olhos de May estavam fixos em um ponto no chão enquanto tentava 
acelerar o passo. Suas saias enroladas em torno de seus tornozelos; ela 
tropeçou e caiu com um thud. 
Um pequeno ruído angustiado escapou de Ana enquanto a multidão 
zombava; ela sentiu a mão de Ramson fechar em torno de seu braço. Seus 
olhos brilharam. 
— Tudo o que é bom... — ele sussurrou. 
... vem para àqueles que esperam. 
Ainda assim, a raiva de Ana enrolou dentro de si. Ela esticou sua 
Afinidade, esfregando-a avidamente sobre o sangue da multidão. Como 
desejava liberar seu poder para esses bastardos... deixá-los sentir dor e 
desamparo. 
 
— Ela pode ser pequena, mas é extremamente talentosa — gabou-se 
Bogdan —, ela pode criar rochas e pode quebrá-las. Pode manipulá-las. E ela 
tem um toque especial de vida com qualquer coisa que cresce na terra. Meus 
convidados de honra, lhes apresento: Filha da Terra! 
Um murmúrio percorreu a multidão. No palco, May agachada ao lado 
do vaso de flores mortas. Apesar de tudo, a expressão em seu rosto era uma 
mistura de tristeza e esperança quando estendeu as mãos. 
Por alguns momentos, nada parecia acontecer. E então a multidão 
soltou um suspiro coletivo, apontando quando um lindo tom verde se 
infiltrou nos talos como tinta. Vermelho floresceu nas pétalas. Diante de seus 
olhos, May estava dando vida à planta. E Ana se viu ligeiramente inclinada 
para frente. 
Os suspiros da multidão, as máscaras de animais, as tochas e o vidro de 
pedra-negra desapareceram, e era apenas May. Ela estava sentada no meio de 
uma clareira, cercada por altos pinheiros cobertos de neve. Suas mãos 
estavam em concha em torno de uma única margarida branca, murcha pela 
neve e presa no chão duro e congelado. Seus olhos estavam fechados, e ela 
cantarolava baixinho. Ana tinha visto, lentamente, a margarida se desenrolar, 
suas pétalas se desenrolando para enfrentar o sol de inverno. 
Era como assistir a um milagre. 
A memória se dissipou quando a multidão no Playpen irrompeu em 
um punhado de aplausos. No palco, a Rainha do Gelo sorriu. 
Bogdan abriu os braços. 
— Os menores costumam ser os mais subestimados e tendem a ser 
muito mais fortes do que prevíamos. — Ele fez uma pausa teatral, acenando 
com as mãos. Os anéis em seus dedos brilharam. 
 
— Agora, alguém tem algum pedido para nossa talentosa Filha da 
Terra? 
Um grito imediatamente subiu. 
— Faça com que ela cultive uma árvore frutífera! 
— Faça ela fazer malabarismos com pedras! 
— Peça para ela fazer uma estátua da terra! 
E assim por diante, pedras de cobre e pedras de prata e folhas-de-ouro 
batendo nos sapatos pretos polidos de Bogdan enquanto May mantinha a 
cabeça baixa. A náusea latejava no estômago de Ana enquanto onda após 
onda de zombarias e gritos continuavam, e Bogdan gritava ordens para que 
May obedecesse. 
— Ei. — Um par de olhos cor de avelã, uma mão quente pousando 
suavemente, mas com firmeza em seu ombro. — Tudo vai acabar em breve. 
Ela estará segura, conosco. 
Ana olhou para baixo e percebeu que tinha agarrado a manga do casaco 
dele. Ela puxou a mão de volta. 
Algo chamou sua atenção. No palco, um saco de couro do tamanho da 
cabeça de Bogdan caiu. Moedas de ouro caíram como vísceras nos pés do 
Penmaster, brilhando ferozmente à luz do fogo. 
Um silêncio caiu sobre a multidão. Ramson se endireitou. 
De algum lugar perto do palco, um tenor claro soou. 
— Penmaster, tenho um pedido muito especial a fazer... um que acredito 
queo público vai gostar muito! 
Bogdan se abaixou para pegar a bolsa volumosa de folhas-de-ouro, com 
a boca aberta. As moedas continuaram a derramar como água do saco 
transbordando. 
 
— Bem, mesyr — Bogdan exclamou, uma leve falta de ar em seu tom —, 
você certamente mostrou sua dedicação ao entretenimento! 
Atrás dele, May finalmente ergueu a cabeça e observava com aguçada 
intenção. A Rainha do Gelo parecia congelada, forçada. Nas sombras das 
asas, o corretor de olhos claros observou com interesse desapaixonado. 
Um pressentimento desceu sobre Ana. Ela procurou na multidão pelo 
dono da voz, pânico baixo, mas crescendo dentro dela. Isso estava errado. A 
quantidade de folhas-de-ouro oferecidas era suficiente para alimentar 
cinquenta famílias durante um ano inteiro. Era o suficiente para comprar 
uma pequena dacha. 
Ninguém em sã consciência ofereceria tanto dinheiro por alguns 
momentos de entretenimento. 
No palco, os olhos de Bogdan brilharam de prazer. 
— E de que outra forma — o Penmaster continuou, sua voz ficando 
mais alta enquanto segurava a bolsa de moedas —, os negócios são 
conduzidos aqui no Playpen senão por meio de ouro e moedas? Mesyrs, 
meya damas e todo mundo, digo que ouvimos esse civil que parece pronto 
para nos dar o espetáculo da noite! 
Quando a multidão explodiu em aplausos estrondosos e rugiu em 
aprovações, algo se moveu entre eles. Um lampejo de ouro, uma figura 
encapuzada. 
Quando o homem deu um leve salto para o palco, Ana se viu olhando 
para uma máscara dourada familiar. 
Não havia dúvida. Era o nobre com quem ela havia esbarrado em sua 
primeira noite no Playpen. Ele usava a mesma máscara que usava no dia, 
com um rosto zombeteiro de choro, mas era do ardor em seus olhos que se 
 
lembrava. Naquela primeira noite, ela apenas o vislumbrou, mas ele parecia 
irado. 
Algo não estava certo. 
— Ramson — sussurrou Ana, mas o homem começou a falar. 
— Eu estive em muitos, muitos espetáculos de Afinitas — o nobre de 
máscara dourada gritou, sua voz alta, suas mãos levantadas em movimentos 
elegantes e amplos —, e eu esperei por esse momento por tanto tempo. 
Ana começou a avançar. Ela não tinha certeza do porquê, mas se viu 
empurrando as pessoas com uma urgência crescente para chegar ao palco. 
Para chegar à May. Ela ouviu Ramson sibilar seu nome atrás de si; sentiu o 
pulsar de seu sangue quando ele começou a segui-la. 
— Estamos felizes em tê-lo aqui, nobre mesyr! — Bogdan deu uma 
gargalhada, acariciando seu saco de folhas-de-ouro. Seu sorriso se estendia 
de orelha a orelha. — Deixe-me saber todos e quaisquer pedidos que você 
gostaria de fazer a esta Afinita, e eu posso... 
— Desejo que todos aqui reunidos se lembrem desse momento glorioso 
comigo! — o homem mascarado de ouro exclamou. Com um floreio, ele tirou 
o capuz. Seu cabelo ficou vermelho quando ele deu um passo à frente, mais 
perto da beirada do palco. Ele arrancou sua máscara, jogando-a no chão em 
frente ao vidro. 
Ana parou no lugar. O rosto no palco estava iluminado pelo triunfo e 
pelo brilho vermelho-alaranjado da luz das tochas. E era totalmente familiar. 
As mãos de alguém se fecharam ao redor de seu pulso. Vagamente, 
ouviu Ramson falando com ela. 
— Ana, me escute... 
Mas ela não podia. Ela estava olhando para o rosto do homem; isso a 
trouxe de volta à sua infância no Palácio, quando ele lhe trouxe chá 
 
fumegante e tortas frescas de pirozhky... mas foram suas palavras e o brilho 
em seus olhos que a aqueceram até o âmago. 
— Eu o conheço — disse ela, oca. 
— Você o que? 
No palco, o ruivo se aproveitou de uma tocha. 
— Meus nobres convidados, quero que todos se lembrem de uma coisa. 
— Ele ergueu a tocha e a expressão triunfante em seu rosto se contorceu de 
ódio. 
— Eu o conheço — Ana engasgou —, Ramson, ele é um... 
— Vida longa à Revolução. — Com toda a sua força, o homem ruivo 
esmagou a tocha acesa no palco. 
 
 
 
20 
Chamas ganharam vida ao longo do fio de óleo que derramou da tocha, 
serpenteando pelo chão de mármore como uma serpente brilhante e 
transparente. Por um momento, o homem ficou escondido atrás da parede de 
fogo. E então ele entrou, com as mãos estendidas, e dois pilares de chamas 
dispararam de suas palmas para o ar. 
A gritaria começou. 
Ana correu para o palco. 
A multidão se acotovelou contra ela enquanto os nobres fugiam como 
crianças assustadas, os olhares maliciosos em seus rostos substituídos por um 
medo puro. Mas os olhos de Ana estavam fixos no Afinita do fogo. 
Yuri. 
Ela se lembrava das faíscas em seus olhos cinza carvão naquela época, 
quando ele colocava ptychy'molokos em suas bandejas de jantar. Esse calor 
tinha crescido a um fogo feroz... selvagem e indomável. 
Ele havia planejado algo, ela não sabia o quê, mas o espetáculo, o ouro, 
tudo tinha sido um ardil para levá-lo ao palco. E agora a vida de May estava 
em perigo. 
O movimento nas alcovas do teto chamou sua atenção. Os atiradores se 
mexeram, a luz laranja das tochas brilhando em suas flechas de pedra-negra. 
O olhar de Ana chicoteou para o palco. Além das chamas abrasadoras, 
atrás do vidro de pedra-negra, estava May, sozinha. O corretor se foi; ela 
pensou ter visto um lampejo de suas costas enquanto ele desaparecia atrás 
das cortinas. 
 
Os arqueiros se armaram e sacaram. 
Por um segundo aterrorizante, o mundo pareceu desacelerar, e tudo o 
que Ana ouviu foram flechas assobiando enquanto disparavam em direção ao 
palco. 
Ana pegou o sangue de May e, novamente, sua Afinidade atingiu a 
pedra-negra fria e vazia. O pânico surgiu em seu peito... 
O palco explodiu. Não em sangue e não em fogo... mas em gelo. Gelo 
branco como cristal estalou para a vida acima da arena, formando um arco 
duro e brilhante sobre todo o palco. As flechas ricochetearam no gelo e 
caíram no chão. 
No palco, a Rainha do Gelo se endireitou, com as mãos estendidas, seu 
cabelo branco acinzentado chicoteando no calor das chamas. Ela se virou, 
travando os olhares com Yuri. E deu um único aceno lento. 
Juntos, eles se viraram para a parede de vidro de pedra negra atrás 
deles. Fogo e gelo crepitaram do ar rarefeito, espirais de branco prateado e 
vermelho flamejante que bateram contra o vidro. 
Eles iam derrubar a arena. E se aquele vidro caísse, se o palco 
desabasse, todos embaixo seriam esmagados. 
O que significava que Ana tinha que tirar May antes disso. 
— May — ela gritou, procurando por um vislumbre da garota por trás 
dos elementos que rugiam contra o vidro. Ela estava tão perto, mas ainda não 
perto o suficiente para proteger May. 
Uma onda de choque de calor pulsou do palco, envolvendo-a. Ana 
ergueu os braços e apertou os olhos para o espetáculo brilhante e impossível. 
Yuri canalizou o fogo das tochas que cercavam a arena. O calor corria 
em um poderoso e ardente anel ao redor do palco, iluminando o Playpen 
enquanto o público aterrorizado fugia para a saída. Ele estava forte, muito 
 
mais forte do que no Palácio. Ou ele manteve o verdadeiro poder de sua 
Afinidade dela? Ser capaz de manipular tanto fogo, enquanto a maioria dos 
Afinitas de fogo mal conseguia manter uma pequena vela acesa… 
Ela tinha que ficar atrás daquela prisão de vidro. Tinha que chegar à 
May. 
Ana esticou sua Afinidade, e seu poder rugiu para a vida, mais 
brilhante do que qualquer chama. Ela agarrou Yuri e a Rainha do Gelo e 
puxou. 
Através dos olhos lacrimejantes, ela os viu tropeçar e cair. O fogo 
furioso e o gelo rugindo pararam, deixando uma parede irregular e coberta 
de gelo. Rachaduras corriam irregulares ao longo de sua superfície, 
espalhando-se como veias. 
Yuri rolou, e seu olhar ardente pousou em Ana. Ele levantou as palmas 
das mãos. 
— Yuri... 
Quando as chamas explodiram de suas mãos, algo colidiu 
dolorosamente com o estômago dela. Ana bateu contra a borda do palco e se 
viu olhando para o rosto de Ramson enquanto ele se desvencilhava dela. A 
fuligemmanchava suas bochechas. 
— Ana — resmungou, mas ela o empurrou para trás e saltou para o 
palco. 
Através do gelo suavemente fumegante e do vidro escurecido 
acinzentado estava a sombra de uma pequena figura. A barreira translúcida 
entre elas fazia parecer um sonho. 
May levantou a mão. Do vaso de flores diante dela ergueu-se um 
pedaço de terra. Com um ruído de trituração, ele encolheu, endurecendo em 
uma rocha. May atacou, e a pedra se chocou contra o vidro de pedra-negra. 
 
Boom. 
De novo. 
E de novo. 
Em sua quinta tentativa, houve um som estilhaçado. Rachaduras de 
teias de aranha se espalharam pelo vidro; o gelo emitiu uma série de estalos 
explosivos. 
Ela estava quebrando a parede. 
Enquanto Ana observava a criança levantar as mãos e puxar a pedra de 
volta, de repente ela percebeu que May estava trabalhando com Yuri e a 
Rainha do Gelo. 
May fazia parte do plano. Ela estava tomando uma posição, lutando 
com os rebeldes para acabar com a crueldade do Playpen, para derrubar – 
literalmente – a prisão de vidro que os enjaulou. 
A pedra balançou para a frente. Com um estalo final retumbante, o 
vidro se estilhaçou. Por um momento, os cacos caíram no ar, gelo e vidro se 
misturaram, mil pedaços de fragmentos brilhantes fractalizando à luz das 
tochas. E então eles caíram, correndo em direção ao chão com uma intenção 
penetrante. 
Ana mergulhou para May. 
Yuri mergulhou para Ana. 
Do outro lado do palco, a Rainha do Gelo estendeu a mão. Gelo subiu 
do chão como uma onda branca sólida, endurecendo em uma barreira sobre 
suas cabeças. 
Fragmentos do que tinha sido o vidro de pedra-negra choveram ao 
redor deles, enchendo o ar com um tilintar suave enquanto ricocheteavam no 
arco de gelo acima. 
 
O ombro de Ana bateu no palco quando Yuri a agarrou, suas mãos em 
sua garganta, seus dentes arreganhados de raiva. Ela lutou de volta, seus 
dedos erguendo-se em suas mãos, sua máscara quente e suada contra seu 
rosto. 
— Yuri — ela engasgou —, pare... 
— Eu quero que você saiba como é morrer nas mãos de um Afinita — 
ele rosnou, levantando a mão. 
— Yuri! — Ela arrancou a máscara. — Sou eu! 
Ele congelou, a mão pairando sobre ela, a expressão suspensa entre 
confusão e raiva. E então, lentamente, o reconhecimento penetrou em seus 
olhos, junto com a descrença. Ele recuou, levantando as mãos dela como se 
tivesse sido queimado. 
— Kolst... 
— Ana! — A voz mais doce soou, uma que Ana reconheceria em 
qualquer lugar. 
May se ajoelhou no palco, a apenas dez passos de Ana, o espanto em 
seu rosto rapidamente dando lugar à alegria. 
O alívio atingiu Ana com tanta força que uma meia risada, meio soluço 
borbulhou de seus lábios. 
— May — ela gritou, estendendo a mão. 
Uma flecha passou zunindo por ela e atingiu o palco de mármore. 
— May! — O grito de Ana se transformou em pânico quando outra 
flecha foi lançada para fora do palco, a um palmo dela. 
— Dyanna! — Atrás dela, Yuri deu um grito agonizante. 
Na beirada do palco, a Rainha do Gelo – Dyanna – olhou para cima, seu 
rosto quase tão pálido quanto seu cabelo. Sangue, surpreendentemente 
vermelho contra sua palidez, escorria de seu nariz. 
 
Um borrão zuniu em direção a ela. O corpo de Dyanna sacudiu com o 
choque do impacto. Ela caiu no chão, a haste de uma flecha saindo de suas 
costas. O cheiro espesso de sangue encheu o ar. 
— Dyanna! Dyan...— O grito de Yuri se transformou em um soluço 
sufocado. — Não. Não. 
— Yuri! — Ana agarrou seu braço, prendendo-o sob a barreira de gelo. 
— Nós temos que sair... 
Uma flecha atingiu o chão perto de May. Os olhos da criança se 
arregalaram quando olhou para cima; ela se virou e começou a correr em 
direção às cortinas de veludo. 
Nas sombras das alcovas acima, os atiradores se armaram e sacaram. 
Ana já estava se levantando, mesmo quando as flechas disparavam em 
direção a eles, mesmo quando percebia que não chegaria a May antes que 
uma flecha atingisse o alvo. 
Mas alguém estava correndo em direção à criança. Ramson atirou-se em 
May, derrapando no mármore arruinado com as calças e o casaco de nobre. 
Vidro estilhaçado e gelo estalaram embaixo dele. Ele rolou, embrulhou May 
em seus braços e mergulhou para as cortinas. 
Whoosh. A flecha roçou seu abdômen. Ele arqueou as costas de dor, deu 
um grunhido abafado e cambaleou. 
Ana já estava correndo. Ela chegou ao lado de Ramson ao mesmo 
tempo que Yuri; juntos, eles arrastaram Ramson e May para fora do palco e 
para a escuridão atrás das cortinas de veludo. 
 
 
 
21 
Nos bastidores, o ar estava mofado e o cheiro de suor permanecia. Eles 
tropeçaram pelas cortinas e desceram o palco para uma câmara, mal 
iluminada por várias tochas em arandelas. Corredores escuros se estendiam 
para a esquerda e para a direita. Os gritos da multidão pareciam vir de um 
mundo distante, como se as cortinas grossas os tivessem separado do caos e 
lhes concedido este santuário temporário. 
Na semiescuridão, uma pequena voz a encontrou. 
— Ana? 
Um soluço brotou na garganta de Ana. 
— May — ela resmungou. Ambas se moveram uma para a outra ao 
mesmo tempo, colidindo com gritos de alívio. Ana segurou firme. — Seu 
cabelo. — Lágrimas queimaram seus olhos. — Está tudo fuliginoso. 
May riu e apertou as bochechas de Ana em suas mãos, traçando as 
lágrimas com seus pequenos dedos. 
— É você. É realmente você. 
Mais lágrimas rolaram pelo rosto de Ana. Ela riu, um som molhado e 
gargarejado, e pressionou sua testa na de May. 
— Claro que sou eu. Eu nunca te deixaria. 
À frente, Yuri limpou a garganta. Uma pequena chama dançava em sua 
palma, iluminando o corredor à frente. 
— Por aqui. 
Ana apertou a mão de May, e correram atrás dele. 
— Onde estamos indo? 
 
— É a Revolução, Ana — disse May. Seus olhos estavam brilhantes. — 
Yuri é um Manto Vermelho – um rebelde, para os Afinitas. Conheci os outros 
Mantos Vermelhos quando fui trazida para cá. Nós vamos resgatá-los agora 
mesmo. 
Atrás deles, Ramson tossiu ruidosamente e parou bruscamente perto 
das paredes de pedra. O estômago de Ana se apertou quando ele se 
preparou, uma mão ao lado do corpo onde a flecha o atingiu de raspão. Ela 
podia sentir o sangue pingando no tecido de sua túnica. 
— Ramson! 
— Eu vou ficar bem — ele murmurou —, apenas nossa sorte. Droga... 
Revolução. 
— Os Mantos Brancos ficaram parados por muito tempo e não fizeram 
nada, nos observando enquanto sofremos. — Os punhos de Yuri estavam 
cerrados e ele cuspiu as palavras. — É hora de tomarmos o assunto em nossas 
próprias mãos. Somos um lembrete de que seus mantos não são brancos, mas 
vermelhos... manchados com o sangue dos Afinitas. Nós representamos a 
chama da esperança... 
— Cara, agora não é hora de poética — Ramson gritou —, se não 
sairmos daqui a única coisa vermelha será seu sangue na espada de um 
Manto Branco. 
— Precisamos ir embora — Ana concordou, segurando a mão de May 
com força —, agora. 
Yuri parecia um pouco desconcertado, mas foi May quem falou. 
— Não — ela disse, puxando sua mão da de Ana —, não vou embora 
sem os outros. 
Era como se, em uma semana, May tivesse envelhecido anos. 
 
A boca de May era uma linha firme enquanto olhava para Ana, mas 
seus olhos eram suplicantes. 
— Yuri e Dyanna planejaram isso e me salvaram. Eles salvaram muitos 
outros Afinitas. E eu quero... eu quero ajudar também. — May estendeu a 
mão novamente, pegando as mãos de Ana entre as suas. — Lembra da garota 
que me deu um ptychy'moloko no Vyntr'makt? Pensei nela todos os dias que 
estive aqui. — Sua voz tremeu, mas Ana ouviu uma pitada de determinação 
de aço por baixo. — Você me salvou, Ana. E eu queria ajudá-la, e outras como 
ela. Eu quero... — May respirou fundo, e seus olhos estavam brilhando 
quando olhou para cima. — Quero que todo o Império, cada Afinita, saiba 
como é… ter esperança. 
A faísca nos olhos de May e a força em suas palavras agitaram algo no 
peitode Ana. 
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, um barulho soou no 
corredor à direita. Um estalo rítmico que ficou mais alto a cada segundo. 
Ramson xingou. 
— Guardas — sussurrou, levantando-se —, você, Poeta. Onde estão os 
Afinitas? 
— Corredor à esquerda — Yuri disse rapidamente —, o quarto no 
finalzinho. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou um molho de chaves. 
— Eu posso buscá-los. — May deu um passo à frente e pegou as chaves 
de Yuri. Ela se virou para Ana, seus olhos brilhantes, as tochas esculpindo 
sua pequena e sólida sombra contra um mundo de chamas bruxuleantes. — 
Espere aqui, Ana. — E então se foi, um pedaço de luz engolido pela 
escuridão. 
Ana gesticulou para Ramson. 
— Vá com ela. Yuri e eu vamos ficar aqui e afastar os guardas. 
 
Ramson hesitou. 
— Não morra — ele disse. 
— Não seja sequestrado — ela respondeu. 
Ela ouviu sua risada rouca e escondeu um sorriso enquanto se virava 
para encarar os passos que se aproximavam. 
Ela sentiu o olhar de Yuri queimando em suas costas. 
— Você está viva — ele murmurou, e ela finalmente se permitiu olhá-lo. 
Seus olhos estavam arregalados, como se ele estivesse bebendo a visão dela. 
— Eu... eu não acredito nisso. 
— E você — disse Ana —, você é um... um rebelde. 
Os passos trovejaram, ao virar da esquina. 
— Mais tarde? — Yuri disse, inclinando a cabeça. 
— Mais tarde — ela concordou, e levantou as mãos. 
Seis guardas apareceram, exatamente como Ramson havia previsto. 
Seus olhos se arregalaram quando a luz da tocha explodiu sobre eles em duas 
colunas de chamas. Ana ficou para trás, observando com admiração o 
menino outrora esquelético avançar sobre os guardas, chamas saindo de suas 
palmas e se curvando nas estreitas paredes de pedra do corredor. 
Uma sombra brilhou à sua esquerda, nos degraus que desciam das 
pesadas cortinas de veludo. 
Ana se virou, sentindo o poderoso pulsar do sangue antes mesmo de 
ver a mulher. Lâminas de aço brilharam quando a recém-chegada entrou na 
luz, sua máscara de gato preto brilhando à luz da tocha. 
— Você — Ana disse oca. 
A mulher havia trocado sua roupa de cortesã por uma calça preta justa 
e uma camisa, mas era a mesma Afinita de aço que guardava as portas do 
Playpen todas as noites, aquela que tentara impedir Ana de entrar. Não havia 
 
sinal de sua companheira, a Yaeger, quando ela passou na frente de Ana, 
bloqueando o caminho. Incontáveis pequenas lâminas alinhavam o cinto em 
seus quadris, brilhando como dentes. 
O instinto gritou com Ana para lançar sua Afinidade na mulher, para 
lutar com cada fibra de seu corpo. 
Mas as palavras de May a seguraram. Eram iguais, Ana e essa Afinita 
de aço: temidas pelas qualidades que as marcavam diferentes, e perseguidas 
pelos poderosos. 
Ana levantou a mão. 
— Por favor, não faça isso. 
Os olhos da mulher brilharam. 
— Se você não estiver morta até o final da noite, será a minha vida que 
ele tirará. 
— Quem? — Ana perguntou, embora suspeitasse que sabia a resposta. 
— Lorde Kerlan. — A Afinita de aço ergueu sua lâmina. — Me 
desculpe. 
Ana não lhe deu outra chance de falar. Ela agarrou o sangue da Afinita 
e a jogou contra a parede dos fundos. Os olhos da Afinita se arregalaram de 
surpresa, mas ela se virou e uma lâmina disparou de seu cinto. 
Ana mergulhou para o lado; a faca de arremesso se alojou na parede 
atrás dela com um plink. Ela rolou e saltou para seus pés, mas naquele 
segundo, perdeu o controle sobre a Afinita de aço. 
A segunda lâmina cortou o braço de Ana; ela gritou e bateu contra a 
parede, sua Afinidade desviada pelo calor escorrendo por seu braço e a dor 
aguda de sua carne cortada. 
Uma terceira faca brilhou, mas Ana foi mais rápida. Ela agarrou o 
sangue da Afinita de aço e segurou. A mulher deu um grito de agonia, que 
 
rapidamente se transformou em um ruído de asfixia quando o sangue 
começou a encher seus pulmões. 
— Você não tem que fazer isso — Ana murmurou —, venha conosco. 
Lute conosco. 
A Afinita de aço estremeceu. Sua cabeça estava curvada, e uma poça de 
sangue havia se acumulado no chão embaixo dela. Quando ergueu o rosto, 
seus olhos estavam injetados, vermelho pingando de seu nariz e lábios. 
— Eu... 
A pressão apertou a mente de Ana, tão absoluta que ela gritou. O 
mundo embotou quando sua Afinidade desapareceu; sua cabeça latejava 
contra uma parede fria e familiar. 
Uma sombra se separou das cortinas de veludo. A Yaeger entrou na luz 
das tochas. Pela primeira vez desde que Ana a viu, porém, ela parecia com 
medo. 
Ana não sabia por que até que uma voz sedosa a acariciou como a noite. 
— Mate-a, Nuryasha. 
Uma figura entrou parcialmente na luz das tochas, espreitando atrás da 
Yaeger e da Afinita de aço. Mas mesmo de lá, Ana podia ver o brilho dos 
olhos pálidos e gélidos do corretor enquanto ele a observava. 
A Afinidade de aço – Nuryasha – tossiu sangue e espalmou sua lâmina. 
Ela hesitou. 
— Mate-a — o corretor ordenou novamente. Os olhos da Yaeger se 
estreitaram. A pressão na cabeça de Ana aumentou. Ela caiu de joelhos, tonta 
de dor, agarrando-se a algo – qualquer coisa – que a salvasse. Um 
pensamento a confortou: que May estava segura com Ramson. 
Nuryasha arremessou a lâmina. 
 
Um pequeno borrão saiu do corredor à esquerda de Ana, colidindo com 
seu meio e jogando-a de lado. Ana colidiu com a parede, a dor irrompeu em 
suas costas e seu braço ferido. 
Piscando através dos pontos escuros em sua visão, ela olhou para cima. 
May estava onde Ana estivera momentos antes, a bainha de uma faca 
de arremesso saindo de seu abdômen. Uma mancha escura estava se 
espalhando rapidamente por seu vestido, vermelho escorrendo em seus 
dedos enquanto ela tentava estancar seu fluxo com as mãos nuas. Seus olhos 
estavam arregalados de surpresa quando ela encontrou o olhar de Ana, sua 
boca franzida em um leve O. 
Ela cambaleou e caiu levemente no chão. 
O tempo pareceu parar, e o resto do mundo se dissipou até que restasse 
apenas a imagem da pequena figura de May caída no chão avermelhado, 
gravada indelevelmente na mente de Ana. Seus ouvidos se encheram de um 
estranho silêncio retumbante enquanto ela se agarrava ao lado da criança; ela 
pensou ter ouvido gritos, mas nada mais fazia sentido. 
Ana pegou May nos braços. Ela sempre foi essa luz? 
— May — sussurrou Ana. Suas mãos ficaram pegajosas e escuras. 
O mundo desabou em um turbilhão de fumaça e sangue. Demorou um 
momento para Ana perceber que a barreira da Yaeger em sua mente havia se 
dissipado. 
Com o canto do olho, ela viu Ramson empurrar a Yaeger para o lado, 
sua adaga saindo de suas costas. Nuryasha estava a seus pés, imóvel em uma 
poça de seu próprio sangue. O corretor se foi. 
Os olhos de Ramson se fixaram em May, e ele praguejou baixinho. 
— Ana — sussurrou May. 
 
— Silêncio. — Ana apertou as mãos trêmulas sobre as de May, 
pressionando contra a ferida. — Eu vou parar o sangramento, e vamos te 
enfaixar. 
O peito de May se contraiu em respirações curtas e superficiais. Uma 
quantidade estonteante de sangue atingiu os sentidos de Ana; sua Afinidade 
estremeceu, e ela conteve a náusea. 
— Minha mãe disse — May murmurou, e respirou fundo —, “nós 
somos apenas poeiras e estrelas.” Ela me disse... antes de nos separarmos... 
para procurá-la na terra e nas estrelas. 
Um soluço sufocou a garganta de Ana. 
— Não — ela engasgou —, nós vamos encontrá-la, May... May! — Ela 
embalou a cabeça de sua amiga enquanto seus olhos tremeluziam. — Escute-
me. Sua mãe está esperando por você lá fora. Esperando para vê-la. Nós 
vamos encontrá-la juntas, tudo bem? 
— Eu não... eu não quero ir. — May lutou para respirar, lágrimas 
afogando seus olhos. — Eu quero viver. 
Ana pressionou o ferimento de May, desesperadamente segurando o 
sangue e empurrando-o para trás. Vazou por entre seus dedos e sua 
Afinidade. Ela nunca aprendeu a usar seu poder dessa maneira. Por toda a 
sua vida, aprendeu apenasa ferir e torturar. Ela nunca tinha aprendido a 
curar. 
Um grito angustiante rasgou de sua garganta. 
— Eu não consigo — ela engasgou —, Ramson... Yuri...alguém! Ajuda! 
— A Revolução. — Os pequenos dedos de May se curvaram ao redor 
dos de Ana, puxando suavemente, insistentemente. — Prometa-me, Ana, 
você vai melhorar. Pela minha mãe. Por todos os Afinitas. E prometa... você 
vai encontrá-la. 
 
— Eu vou, eu vou — Ana soluçou. Ela teria prometido qualquer coisa 
naquele momento para manter May falando por mais algum tempo —, farei 
isso, May, mas preciso de você... 
O mundo girou, e o sangue de May se derramou como areia em uma 
ampulheta, o tempo cambaleando em um borrão implacável em direção ao 
fim inevitável. 
— Poeiras e estrelas — May sussurrou. Ela começou a tremer —, somos 
apenas poeiras e estrelas. 
— Por favor, May. — Ana não conseguia respirar. — Por favor. Não vá 
para onde eu não posso seguir. 
May respirou fundo. 
— Estou sempre aqui, Ana — sussurrou, e fechou os olhos de oceano, 
suas palavras desaparecendo como um sussurro de vento —, você vai me 
encontrar nas estrelas. 
 
 
 
22 
Ana agarrou-se a May, enrolando seu próprio corpo ao redor do da 
criança. Havia uma palavra para descrever uma dor tão profunda que te 
dividia, abria um buraco dentro de você e te deixava vazio? 
Ana estava vagamente ciente de que a luta havia parado, que os corpos 
dos guardas estavam espalhados pelo corredor diante deles. Várias pessoas 
se espalharam ao redor dela, observando-a. Mãos quentes agarraram seus 
ombros. Uma voz familiar chamou seu nome. 
Uma mão segurou sua bochecha, levantando seu queixo. Ela se viu 
olhando nos olhos de Ramson. A alegria habitual havia desaparecido deles, 
deixando-os com uma avelã sombria. Gentilmente, ele escovou uma mecha 
do cabelo dela atrás da orelha, seus dedos demorando por sua bochecha. Ela 
quase podia ler seus pensamentos no gesto. Eu sinto muito. As palavras 
tremeram no ar entre eles. 
— Ana. — A voz de Yuri era oca. — Eu sinto muito. 
Ramson girou e empurrou Yuri contra a parede. 
— Você — Ramson rosnou —, não tem o direito de se arrepender. 
Yuri engasgou, suas mãos voando para o pulso de Ramson, mas 
Ramson não o soltou, e Yuri não resistiu. 
— Se você não tivesse tentado seu pequeno truque, isso nunca teria 
acontecido. Você acha que uma Revolução é um jogo? Acha que fazer um 
grande espetáculo no quintal de Kerlan é impressionante? — Ramson soltou 
a mão; Yuri cambaleou, esfregando a garganta. — Isso não é uma Revolução. 
Isso é um massacre. E está prestes a piorar se não sairmos daqui agora. 
 
Ana mal registrou as palavras; estavam além dela. Algo tinha sido 
arrancado de dentro dela, deixando uma ferida aberta nela que estava em 
carne viva, sangrando e dormente. Ela estava a um passo do abismo, assim 
como quase um ano atrás. 
— Ramson — disse. 
Ramson parou e se afastou de Yuri. 
Ao redor de Ana, observando com expressões que iam da tristeza ao 
medo, havia os Afinitas. Eles variavam de crianças a homens e mulheres 
adultos, de todo o mundo. Usavam uma variedade de roupas chamativas e 
espalhafatosas ainda frescas das apresentações da noite. Ela contou nove 
deles. 
Nove Afinitas. Nove vidas em troca da de May. Valeu a pena? Como se 
equilibrava o significado de uma vida em relação a outra? Havia mesmo uma 
maneira de medir? 
Não tem, pensou Ana, colocando a mão na bochecha de May. Ainda 
estava quente. 
Papai certa vez lhe dissera, depois da morte de mamãe, que havia dois 
tipos de luto. Um era do tipo que te esmaga, que quebra sua alma e 
despedaça seu coração, e te deixa uma concha vazia. O outro era uma dor que 
te faz mais forte. Você se levantava dela, você a afiava e a carregava com você 
como uma peça de sua armadura. E você se fazia melhor. 
Dessa forma, você nunca realmente perdeu essa pessoa. Você os 
carregou consigo. 
Ana fechou os olhos e enterrou o rosto na curva do pescoço de May. 
Lágrimas escorreram por suas bochechas, afundando no cabelo de May. 
Prometa-me, Ana, que vai melhorar. Pela minha mãe. Por todos os Afinitas. 
 
Ana respirou fundo novamente. A urgência de agir, de se mover, 
acendeu nela uma pequena luz na escuridão. Pela primeira vez, ela se 
concentrou nos rostos dos Afinitas ao seu redor, observando-a 
silenciosamente. Esperando. 
Ela se levantou, embalando o corpo de May contra o peito. Ana 
vasculhou a câmara e encontrou os olhos de Yuri; ele olhou para baixo, a 
culpa estampada em seu rosto tão claramente como se tivesse sido marcada 
por um ferro quente. 
— Precisamos sair dos túneis — disse Ana. 
— Dyanna nos ensinou a navegar pelos túneis — disse Yuri, a tristeza 
quase engolindo sua voz —, ela trabalha com os corretores há anos, 
preparando-se para este momento. Temos uma casa segura fora da cidade. 
— Então precisamos nos mover e chegar àquela casa segura — Ramson 
interrompeu —, você acabou de matar um esquadrão inteiro de guardas; 
deve demorar um pouco até que os reforços cheguem. Se formos rápidos, 
podemos não encontrar nenhum. 
Yuri estreitou os olhos. 
— Quem o nomeou como líder? 
— Você e sua incompetência — Ramson retrucou sem perder o ritmo —
o que, exatamente, você estava planejando fazer depois de destruir o palco e 
colocar todos os guardas na área atrás de você? Sentar aqui e recitar poesia? 
— Parem — disse Ana, bruscamente o suficiente para os dois homens 
se virarem e a olharem. Ela respirou fundo, estremecendo, tentando clarear a 
cabeça. O corpo de May estava leve em seus braços; assim, com os olhos 
fechados, ela poderia simplesmente estar dormindo depois de um longo dia. 
Foco, disse a si mesma. Ela não iria decepcionar May. Ana virou-se para 
Yuri. 
 
— Ramson e eu tínhamos planejado sair dos túneis deste lugar. Parece 
que estamos alinhados. 
Yuri assentiu. 
— É um labirinto aqui embaixo, o que pode funcionar a nosso favor, já 
que qualquer reforço será bem espalhado. 
— Então o que estamos esperando? — Ramson empurrou-se para fora 
da parede em que estava encostado, com a mão no lado ferido. O 
sangramento havia parado, Ana percebeu. 
Yuri virou-se para os Afinitas silenciosos que esperavam perto da 
parede. 
— Mantos Vermelhos — disse ele, e sua voz era grave e firme —, 
chegou a nossa hora. Qualquer um que tente nos impedir de alcançar nossa 
liberdade é o inimigo. Não hesitem em derrubá-los. — Ele fez uma pausa, 
seus olhos brilhando. — E eu juro por minhas Divindades e quaisquer deuses 
ou fé que vocês tenham que eu os protegerei com minha vida. 
Era como acender uma faísca. Uma brisa invisível parecia agitar os 
Afinitas, levando-os a ficarem mais altos, substituindo o medo em seus rostos 
por determinação. 
Yuri estalou os dedos e chamas ganharam vida em suas palmas, mais 
brilhantes do que a luz de qualquer globo de fogo. Eles lançaram sombras 
bruxuleantes nas paredes de pedra, o sangue e os corpos no chão moldados 
em monocromático. 
— Por aqui — murmurou, e Ana, Ramson e os Afinitas o seguiram. 
Eles caminharam em silêncio, exceto pelo som de seus saltos batendo 
contra o chão e suas respirações irregulares. Ramson ficou perto de Ana, 
lançando seus olhares de soslaio. Ela manteve o olhar fixo no cabelo ruivo de 
Yuri, tentando não pensar no peso de May em seus braços. 
 
Gradualmente, o chão de pedra ficou grosseiro e escorregadio com 
musgo, os túneis se ramificando como raízes de uma árvore e ficando cada 
vez mais estreitos até que eles tiveram que andar em fila indiana. Várias 
vezes, Ana foi tomada pelo súbito medo de que estivessem perdidos, de que 
nunca conseguiriam sair desses túneis, de morrer presos no labirinto de um 
corretor de Afinitas. Ela manteve sua Afinidade estendida, procurando por 
sinais de sangue quente se aproximando. 
Depois do que pareceram horas, o ar mudou. Ficou mais frio; uma brisa 
distante agitou as chamas na palma de Yuri e beijou as bochechas de Ana. 
Gradualmente,a escuridão diminuiu ao redor deles e uma luz distante 
apareceu, e logo eles se aproximaram de uma porta quebrada, balançando 
fora de suas dobradiças. 
Yuri a segurou aberta e esperou enquanto, um por um, os Afinitas 
davam seus primeiros passos hesitantes para a liberdade. 
As estrelas brilharam uma luz branca e fria sobre eles enquanto se 
esgueiravam pela cidade como sombras, seguindo Yuri por becos escuros. As 
ruas ficaram mais vazias, os paralelepípedos mais ásperos até virarem pó; 
dachas de telhado vermelho estreitamente entrelaçadas transformando-se em 
casas simples com paredes de barro. 
A Syvern Taiga surgiu, uma parede irregular de árvores. Na orla da 
floresta havia uma única cabana, as luzes brilhando teimosamente em suas 
janelas. Ao se aproximarem, Ana conseguiu distinguir uma placa de madeira 
pendurada na porta, declarando em pródiga letra cursiva: Loja de Espiritismo 
de Shamaïra. 
O grupo parou nos degraus da dacha, tremendo, sua respiração 
irregular. Yuri se aproximou e bateu. 
 
A porta se abriu na primeira batida. Com os braços doloridos pelo 
esforço, Ana entrou cambaleando atrás dos outros Afinitas. 
O calor a envolveu. Um fogo crepitava em uma lareira atrás de uma 
mesa de madeira inclinada, e o ar estava pesado com o cheiro de incenso e 
especiarias aromáticas. Sua primeira impressão foi que a dacha estava 
arrumada, com uma decoração distinta que não se parecia com nada que ela 
já tinha visto. Estantes cobriam as paredes, repletas de tomos com inscrições 
douradas em uma linguagem elegante e sinuosa. Um tapete gigante se 
estendia no centro da sala, intrincadamente estampado com pássaros e rosas 
talhados em vermelhos ricos e dourados profundos. Sofás acolchoados o 
cercavam, e em cima de uma mesa de centro baixa estava um grande 
samovar de prata. 
Yuri tirou os sapatos e entrou na sala. 
Ana não queria nada mais do que desabar em um daqueles sofás e 
acordar com os olhos azuis brilhantes de May. 
— Falem e sejam reconhecidos pela Mãe de Todo o Conhecimento, seus 
mortais — uma voz baixa explodiu, assustando Ana. 
— Shamaïra, sou eu — Yuri gritou. 
Houve um estranho som arrastado, e de trás de uma pesada cortina de 
brocado surgiu uma mulher de meia-idade. Seus olhos eram delineados em 
kohl preto contra sua rica pele marrom, e ela usava um xale de seda sobre a 
cabeça, solto sobre os ombros. Foram suas maçãs do rosto ousadas e olhos 
ferozes que chamaram a atenção de Ana. Ela era bonita; uma leoa diminuta. 
— Ah, é só você — a mulher rosnou na voz rouca de um fumante de 
cachimbo. Ela fez uma pausa enquanto seu olhar se fixava no resto do grupo. 
Sua expressão mudou e abriu um sorriso tão ardente quanto o sol —, bem-
vindos. 
 
— Não está noite, Shamaïra — Yuri disse cansado, e inclinou a cabeça 
em direção a Ana. 
Os olhos de Shamaïra se suavizaram. 
— Oh — foi tudo o que disse enquanto se aproximava e colocava a mão 
em May. Ana ficou tensa, mas o toque da mulher era gentil. Seus olhos 
encontraram os de Ana, e havia uma tristeza tão profunda neles que Ana 
sentiu a parede vazia e insensível que ela havia erguido começando a rachar. 
— Uma Afinita Chi'gon — Shamaïra murmurou. — Devemos devolver 
a alma dela. Posso? 
Ana fortificou seu aperto em May. Ela sentiu como se, se esperasse um 
pouco mais, pudesse adiar a terrível realidade que a esperava. A realidade de 
um mundo sem sua amiga. 
— Ela passou, minha criança — Shamaïra disse suavemente —, e 
devemos devolvê-la a seus deuses e seus entes queridos. Não convém que os 
mortos habitem neste mundo. 
Dessa vez, Ana deixou que Shamaïra levantasse May de seus braços, 
com o mesmo cuidado com que seguraria um recém-nascido. A cabeça de 
May pendeu contra o ombro de Shamaïra, e Ana se lembrou das vezes que 
carregara May depois de um longo dia de viagem. Ela não se importava com 
o peso naquela época. 
Agora era tudo o que restava a Ana: memórias e o fantasma do peso de 
May em seus braços vazios. 
 
 
23 
Shamaïra tinha um jardim coberto de trepadeiras crescidas e vasos de 
plantas de todas as espécies imagináveis, algumas das quais Ana não 
conhecia nem mesmo em seus estudos no Palácio. Ela passou pelas 
samambaias, se aventurando mais fundo no silêncio. O cheiro de lama fresca 
e revirada e neve derretida e a misteriosa fragrância de plantas permaneciam 
no ar frio da noite. Atrás do pátio assomava o vasto contorno da Syvern 
Taiga. 
Ana encostou-se a uma treliça de madeira, envolvendo-se com os 
braços. O frio penetrou em seus ossos, mas ela poderia muito bem estar 
congelada – uma garota esculpida em gelo. 
Ela sentiu como se se deixasse descongelar, perderia tudo. 
Alguém se moveu atrás dela. Ana conhecia aquela presença como se 
fosse uma parte dela: calor e luz e chama, o cheiro da lareira da cozinha e 
ptychy'moloko recém assado e chá quente servido em um samovar de prata. 
Ela se virou, e foi como olhar para um estranho. O garoto que conhecera era 
macio, bochechas redondas e pálidas do conforto do Palácio, cabelo curto. Ele 
ria facilmente, seus olhos brilhavam, e se fechasse os olhos, ela poderia vê-lo 
se afastando do fogo na cozinha, suor brilhando em sua testa e fuligem em 
seu rosto. 
Agora, apenas doze luas depois, ele se elevava sobre ela, músculos 
substituindo seus braços finos e sardentos, queixo esculpido e sombreado 
com a nuca. Seu cabelo tinha crescido até os ombros, preso em um rabo de 
 
cavalo que brilhava como uma chama quando refletia a luz. Havia uma 
dureza em seus olhos cinza-carvão que nunca estivera ali antes. 
Eles se observaram por um minuto, Ana procurando rastros do garoto 
que conhecia. Era como se ele tivesse se tornado um estranho. Ela estendeu a 
mão, hesitante, para tocar um corte em seu pescoço. 
Algo derreteu na expressão de Yuri. 
— Sou eu, Kolst Pryntsessa — ele murmurou enquanto pegava as mãos 
dela, as suas próprias ásperas e calejadas. Ana sufocou um soluço ao olhar 
para elas, lembrando como as dobras de seus dedos sempre foram 
manchadas de branco com farinha. 
Quando Yuri a puxou em seus braços, ela enterrou o rosto em seus 
ombros fortes, procurando o cheiro de assados, suor e fuligem de cozinha. 
Em vez disso, ela sentiu cheiro de fogo e fumaça. 
Mas ele ainda era Yuri – seu Yuri, aquele que se sentou do lado de fora 
de seus aposentos durante seus piores pesadelos. Aquele que trouxe bandejas 
de tortas pirozhky para ela apenas para que ele pudesse se agachar do lado 
de fora da porta e sussurrar para ela. 
— Me chame de Ana — ela sussurrou quando finalmente se afastou, 
enxugando as lágrimas. 
— Eu pensei que você estava morta — Yuri engasgou. Ele também 
estava chorando —, a Corte anunciou... 
— Eu não matei papai. — As palavras saíram da boca de Ana 
entrecortadas, suplicantes. — Eu estava tentando salvá-lo, mas não 
consegui... 
— Eu sei — disse Yuri —, eu conheço você, Ana. Você sempre 
compartilhou seus deleites comigo, não importa o quanto gostava deles. Você 
 
chorou por seu coelho de estimação por luas a fio. Você nunca faria algo 
assim. 
Sua confirmação enviou novas lágrimas aos olhos dela e a fez se sentir 
fraca e forte ao mesmo tempo. 
— Papai foi envenenado, Yuri. 
— Envenenado? 
Ana assentiu. 
— Eu vi um homem naquela noite... foi o alquimista do Palácio que 
partiu há muitos anos. Ele alimentou meu pai com alguma coisa, e eu o vi 
morrer. — Ela estremeceu, e Yuri a abraçou com firmeza. — Eu estava 
tentando tirar o veneno. — Ana fechou os olhos, apoiando-se no amigo, e as 
palavras saíram dela. — Era um veneno lento, Yuri... cheirava exatamente 
como o remédio amargo que papai estava tomando o tempo todo. Nunca o 
estava ajudando a melhorar... estava piorando sua doença. Aquela noite foi a 
dose final. 
Yuri endureceu ao seu lado. 
— Divindades — ele amaldiçoou suavemente. 
Ana parou diante da expressão aterrorizada de Yuri. 
— Ana — disse ele, apertando a mão em seu ombro —, há algo

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