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Ficha catalográfica Organização Stêfano Volp e Bruno Godoi Capa e Projeto Gráfico Marina Avila Revisão Clara Madrigano M 965 Mundo invertido : suspense dos anos 80 / organizado por Stêfano Volp e Bruno Godoi. – São Caetano do Sul, SP: Wish, 2020. Vários autores. 1. Ficção brasileira 2. Antologias (Suspense) I. Volp, Stêfano II. Godoi, Bruno CDD 869.93 1.Ficção : Literatura brasileira 869.93 Este livro possui direitos de publicação e projeto gráfico e não pode ser distribuído, de forma comercial ou gratuita, ao todo ou parcialmente, sem a prévia autorização da editora. Editora Wish www.editorawish.com.br São Caetano do Sul - SP - Brasil http://www.editorawish.com.br/ Importante: Esta edição digital não inclui as ilustrações presentes na versão física. Sumário Prólogo Gênesis Tecnopata Kaelum Angela Órfãos K7 Corra Repuxo Caçadora Testamento Maçãs VHS Gregor Vozes Efêmero Ramones Insurgentes Reaper Countdown Cézium Apocalipse Prólogo Stêfano Volp (Organizador) O nosso acordo Podemos fazer um acordo, pela sanidade de quem lê. Número um. Você nunca poderá virar as páginas deste livro por virar. Número dois. Você não poderá seguir adiante se tiver medo do escuro. Número três. Você precisará estar consciente de que portais para outros mundos se abrem quando menos esperamos. Um deles pode estar se abrindo agora. Daqui, posso sentir seus olhos. Seus olhos estão grudados nestas palavras e a responsabilidade pelo que você está por ler não pertence a mim, nem ao Bruno Godoi, nem a qualquer um dos autores da coletânea. Estamos entregando isso a você. Faça o que quiser, mas não queime as etapas do nosso acordo. Você mostra sua curiosidade, nós mostramos nossas mãos tingidas de escarlate. Há um olho e tentáculos. Coisas que não deveriam ser acessadas por meros mortais. Os contos aqui estão prestes a atravessar eras e camadas, por dentro e por fora, por baixo e por cima, entre infinitos rastros de luz e velocidade. A história de um cara viciado em jogar fliperama que recebe uma proposta tentadora, ou a de um padre tocado pelo espectro do mal. A garota que explode monstros ou aquela cuja consciência se espalha pelos cabos de energia da cidade. A pobre menina supostamente assassinada por uma boneca maldita, os vermes esquisitos que habitam corpos em um necrotério. Se as luzes piscarem, não repreenda. Pode ser apenas um desesperado tentando se comunicar. Se as luzes se apagarem, esqueça este livro e corra. Uma contagem regressiva, uma fita cassete que não deveria ser ouvida, um pomar misterioso, a possessão. Você está prestes a presenciar pessoas se jogando de uma ponte famosa, ou a história de um velho em uma gruta antiga. Um diário que jamais deveria ser acessado, um fantasma, a garota borbulhando no poço, a espera por algo que nunca vem. Uma carta arrepiante, recebida na madrugada, ou um romance que atravessa galáxias. O Gênesis e o Apocalipse. Se você ouvir um grito, não repreenda. Pode ser apenas um desesperado tentando se comunicar. Se você ouvir seu nome sendo sussurrado por alguém, não responda de volta. Corra. Estará feito e concordado quando você iniciar o primeiro conto. Toque os dedos na passagem. Inspire o quanto puder. Memorize nosso acordo. Faça sua escolha. É um poço, uma vez dentro, não há retorno. Você vai cair. No. Nosso. Mundo. Bem-vindo ao Mundo Invertido. Stêfano Volp - matador carismático - @stefanovolp Gênesis O chamado do Senhor dos Mundos Bruno Godoi Eu preciso me matar. Estou sozinho em um corredor escurecido, preso nesta cabana gelada para me matar, mas já se passaram trinta e um dias e a coragem foge do meu corpo como o suor pela testa. A única coisa que não me deixa é a voz da entidade, o horror das visões e aquela canção doentia da banda Bauhaus. Bela Lugosi’s dead. Não tenho entusiasmo para sequer abafar os ouvidos e esquecer o som que não sai da minha cabeça. A voz de Peter Murphy queima meus ouvidos. “Undead, undead… Bela Lugosi’s dead”, ele canta com entusiasmo. A ruptura estética do punk rock gótico define a minha apatia ao futuro, pois não vejo projeção do amanhã. “Estamos abandonados em um florescimento mortal”, diz Bela Lugosi’s dead. “Sozinhos em um quarto escurecido.” O alívio que eu imaginava encontrar para fugir dos pesadelos me deixou antes de eu começar a subir a montanha. Agora só tenho a escopeta sobre a mesa à minha frente e um cartucho na mão, a pólvora vibrando, pronta para estourar os dedos. O maço vazio de Lucky Strike no bolso de trás parece uma mão cheia de garras sobre a nádega, querendo cortar o jeans e dilacerar a pele. Não fumo há trinta dias. Logo na primeira noite aqui, devorei os quatro últimos maços do Lucky Strike que consegui preservar secos; o resto, se perdeu na chuva pela trilha. Machuquei os pés na lama e eles doem até hoje. Estou descalço, os dedos duros e arroxeados; isso não é efeito do frio, pois não sinto nada. Se eu fosse um acadêmico versado em medicina, eu diria, com certeza, serem essas alterações corporais as fases da morte. Contudo, tal pensamento só pode ser projeção dos pesadelos. Ou reflexos da Bela Lugosi’s? “Undead.” Morto- vivo. Estou um morto-vivo agora? Ou embriagado? Comprei esta cabana em 1970 justamente para ter um local onde pudesse beber sozinho. Conheço cada árvore do bosque, cada pedra solta e, mesmo assim, estou petrificado, sentindo pavor de algo desconhecido. Definhando com essa rigidez irritante que toma conta das mãos, aumentando junto com o desconforto nas veias, correndo como areia num canudo. Meus órgãos estão perdendo volume enquanto fico pálido. É o sinal da morte; um estágio dela. É a abstinência do cigarro; é a morte em vida. Nunca pensei que o meu fim seria neste meu local de refúgio, minha cabana na floresta, cheia de vida e verde, agora cinza feito o punk gótico do Bauhaus. Minha comida acabou no segundo dia, parei de buscar água no quinto. O que me sustentou até o décimo foi três lebres magras e um ninho de pássaro com meia dúzia de ovos quase podres; afora isso, meu corpo não viu mais nada. A floresta não colaborou comigo, ela tinha intenção de me enfraquecer, de me matar aos poucos; me preparando para o que viria… O pesadelo! A pior experiência veio no dia dez, depois dela, a fome me abandonou por completo, porém, preciso comer mesmo sem vontade, sei que estou em inanição. O corpo está acabado, o coração não reage há dias. Tenho que sair para caçar novamente, mas a simples ideia de sair para colher um punhado de cogumelos no jardim me crispa a boca. O que eu vi lá fora no dia dez me tirou qualquer apetite. A única coisa que mantenho dentro de mim é o cheiro de putrefação subindo pela garganta numa ânsia de vômito constante. Ouço ursos rodeando a cabana e lobos farejando as frestas. O que faço é implorar para nenhum deles entrar, pois só me resta um tiro de escopeta; e ou mato o invasor às minhas costas ou tiro a minha vida. De uma forma ou outra, o horror vai acabar. Se o monstro não morrer, também não vai me pegar vivo. Vou beber mais, terminar a garrafa de uísque e atirar. Essa é a ideia. Contudo, estou rígido, não consigo erguer o braço. Preciso me lembrar do que estou fugindo para elaborar outro plano, mas minha cabeça embaralha. A alucinação é real? Da janela da cozinha avisto o preto do mar, a encosta pedregosa e o rastro verde descendo da parede externa da cabana. Parece que um peixe colossal se esfregou na madeira, deixando uma linha de escamas brilhantes ao luar; a gosma verde pulsa em flashes fosforescentes pelas emendas das ripas, lembra o vidro lodoso de um aquário. Blocos de rocha esculpidos surgem no horizonte, revelando fisicamente o mais íntimo medo de qualquer ser pensante. O inferno. A silhueta da coisa traz dentes afiados que rasgam a lucidez de quem se atreve a olhar. Preciso fechar a janela, esquecer a imagem. O real pavor só pode ser idealizado por seres desenvolvidos ao ponto de racionalizar,pois é no mais alto grau de entendimento que o terror se manifesta, quando temos a clara convicção de que algo é danoso e vai trazer o mal onde antes havia o bem. É esse sentimento racional que transborda de mim em riscos constantes de lágrimas, pois eu sei o que vem vindo lá. Ele vem vindo! É uma carapaça imensa se erguendo do mar, trazendo uma acrópole primitiva do fundo do oceano, com animais exalando o pavor em forma de uma espuma azul- esverdeada tão forte que rasga a realidade dos sentidos e chega até mim num cheiro de morte. O mais sagaz dos poetas levaria meses para descrever essa visão, e nunca, a despeito de toda gramática, se sentiria confortável com algum substantivo para nomeá-la. É simplesmente uma erupção de dor e cinismo, como se Ele soubesse do temor que causará apenas em sua forma estática, em apenas ser o que é. Um trauma do cosmo. Um undead, tão antigo quanto o fogo, que se revela para mim; o mal que há milhões de anos jaz em nosso oceano. Quero correr, mas continuo observando. Sinto a presença da entidade em todos os cantos. A realidade é um espelho, para onde viro, lá encontro olhos de volta. Compreendo que a revelação completa será a minha destruição, pois o horror me arrebata ao pensar na nossa minúscula participação no espaço. Será essa a verdadeira função para existirmos? Ser um observador inerte para o mal consciente que está na base do nosso mundo? Vivemos para receber o manancial infinito dessa vilania? Eu busquei isso, a luz branca sem saber; o brilho do céu. A curiosidade de ensaiar as estrelas me trouxe até aqui, porém, agora desejo a completa cegueira, uma vez que enlouqueço ou me mato ao vislumbrar a verdade da escuridão. Por fim, me vejo preso num ensaio sobre a cegueira íntima. Foi tudo o que consegui em minhas reflexões. Tudo começou há meses… Eu consertava um Atari na minha oficina de eletrônicos e brinquedos, na garagem do meu prédio, quando o primeiro áudio chegou. Um chiado numa TV de antena torta. Um grasnado parecendo pancadas de marretas em pedras, ao mesmo tempo em que se ouvia uma pasta escorrendo ao fundo. A TV estava desligada da tomada, um curto-circuito queimara todo o interior do aparelho. Aquela TV estava morta! Ou adormecida? Ela vibrou tanto a ponto de piscar e emitir uma mistura luminosa tão estranha que vi todos os pigmentos possíveis em nossa paleta de cores. E mais uma luz negra, que se elevou de trás do aparelho num espectro de fumaça, tomando forma e se desfazendo, de modo intangível e tangível, mostrando a silhueta de algo deformado. Na curiosidade que toma o comando em momentos de extremo espanto, estiquei o braço para a massa gasosa e meus dedos entraram no nada, que era líquido e ao mesmo tempo vapor quente. Fechei os olhos e então meu coração encolheu. Encolheu de uma vez, eu sei. A dor foi instantânea, senti o órgão murchando. Um segundo depois, veio uma corrente elétrica que deixou o braço dormente. Quando consegui respirar, com o coração batendo novamente, chegou outro chiado da TV e a tela trincou com uma espécie de martelada de dentro para fora. Não foi um ruído terreno; foi algo de muito longe. Era o que eu sempre desejei como eletricista e astrônomo amador, o contato com uma intenção cósmica: a prova de um intelecto sobre- humano. Contudo, o gozo da descoberta foi substituído por um medo que cresceu em mim feito o mais expansivo tumor. Puxei o braço, caí e rolei para fora da oficina, mal controlando o corpo. Arrastando, escalei os degraus da portaria e entrei no hall. Escuro, nenhum vizinho. Consegui subir as escadas aos tropeços, entrei no meu apartamento e corri para o quarto. No momento em que fechei a porta, as lâmpadas do apartamento estouraram e as visões começaram. No breu, olhei para a parede e vi uma espécie do brinquedo Genius pintado. O objeto piscava todas as luzes, parecendo uma casa noturna; a Bela Lugosi’s dead começou nesse ponto. Depois, veio a tortura de sons e luzes. Passei dois dias com forte dor de cabeça pela música alta que berrava no cérebro, até descobrir que as luzes paravam quando eu bebia e fumava. O problema é que minha cabeça dói mais quando me embriago. Porém, não suportando mais o horror, decidi beber muito, pois é indizível o que eu estava sentindo. Então, mantenho-me alcoolizado até hoje e, ao mesmo tempo, de pé na cabana, pois é no sono ou na sobriedade que o medo ganha de mim. Lembro que no dia oito, não aguentando de sono, liberei duas estantes da cozinha, tirei o fundo delas e as ajeitei uma de frente para outra. Enfiei um braço em cada prateleira e me apoiei nessa muleta improvisada. Ainda, para espantar a sonolência, deixei uma bacia cheia d’água no chão e entrei nela. Fiquei assim dois dias, só parei quando, por um instante, adormeci. No susto, retraí o braço e cortei o pulso num prego. O sangue escorreu para a bacia. Minha vista escureceu e tombei, exausto, já na manhã do dia dez, quando a fome venceu. Por fim, saí da cabana para caçar, na noite do dia dez. Foi assim que veio o pesadelo me confrontar com a voz que me falava da ferramenta do autoextermínio. “Se mata.” “Pula!” “Corta.” Esse é o único pavor maior do que o da própria morte: o medo de viver que faz querer morrer. A voz não cala. Lutando contra o impulso do autoextermínio, me afogo em lembranças… Impossibilitado de seguir meus estudos em astronomia, pelo simples fato de não compreender tanto a Matemática, passei a vida equipando a oficina da minha garagem, aplicando parte do meu sustento para estudar as estrelas que pulsavam na mente. Eu sentia um chamado cósmico a mim direcionado todas as noites. Porém, nunca imaginei que o contato seria tão horrendo. Não suportando a música e as luzes coloridas do quarto, dias depois do acontecimento da TV, preparei os mantimentos no bagageiro da minha Harley-Davidson e fui para o isolamento da cabana, na extremidade antiga da cidade. Uma tempestade inesperada me fez atolar a moto no início da estrada de cascalhos, por isso a deixei na praia e caminhei por uma trilha. Gastei treze horas na subida, algo que eu fazia em duas guiando turistas há anos quando vinham para os piqueniques. A tarde inteira e metade da noite de caminhada; mas nem o peso das garrafas de uísque nem a lama me atrasou, foi a aversão sentida no fundo da consciência. A racionalidade que tentava me alertar de algo. Nesse dia, perdi os maços do Lucky Strike. Agora, no auge do horror alcoólico, o calor no crânio me faz ver discos brilhantes iguais aos do Genius, a testa inchada quer rachar a pele. Preciso me matar antes que a coisa se aproxime mais. Não quero ouvir, nem ver mais, mas até na paz da encosta, na então confortável cabana, os pesadelos chegaram nos últimos vinte dias, mais fortes do que lá no prédio… Lembro-me de cada uma dessas Vinte Visões, uma revelação por vez, sempre próximas do nascer do sol, o momento mais alerta de meus olhos. Passei a cochilar anestesiado pelo uísque durante a primeira semana e a ficar acordado à noite, de pé, encostado em algo, até os joelhos incharem e corpo escorregar de costas. Evitando ao máximo piscar, sentia os olhos secarem até a chegada do sol, quando, rendido, eu caía no sono. Assim, ao dormir pela primeira vez, a Voz falou direto comigo. Contou-me coisas de antes do mundo existir. Sobre as intenções vis daqueles que caminham pelo tapete de estrelas desde o começo do todo. Relatos que enlouqueceriam o mais sensato dos religiosos. No décimo dia, quando cortei o pulso na estante, arrastei-me até o banheiro e enrolei uma toalha no corte. A fome, até então presente, me fez sair da cabana com a escopeta à frente e a lanterna presa à mira. Cauteloso, um passo por vez. Passei a corrente nas argolas do batente e tranquei a porta e todas as janelas da cabana, forcei as trancas a ponto de estalar a madeira. Minha última defesa foi manter portas e janelas fechadas. Era noite alta, não localizei a lua na névoa rançosa que escorriado bosque, mas, de algum lugar, a esfera brilhava, pois uma luz verde guiou meus passos. Fui, o corpo oscilando de cima abaixo, caminhando no escuro da mata. A margem da trilha destacada feito marcações no asfalto. Não era a mesma floresta que eu conhecia de dia, tenho certeza. Vi protuberâncias no chão que sol algum revelava no mais claro meio-dia de verão. Não! Era um ambiente inapropriado para humanos, um ar insuportável, feito para criaturas antigas, que transpiram o mal do cosmo. Vi arcos e umbrais de uma feitura impossível de se executar na mata. Arquiteto algum projetaria aquelas peças; máquina alguma ergueria tais colunas num ambiente tão inacessível. Então descobri o paradeiro da lua. Vi de onde vinha sua luz. Do solo. Ela não brilhava no céu. Ela resplandecia do chão, eu caminhava sobre ela. Crateras circulares de vulcões adormecidos se descortinaram à frente, enquanto eu dava passadas largas, com o colorido dos planetas na planta dos pés. Até que, por fim, parei e olhei para trás. Para o meu pavor maior ‒ mesmo pensando não ser possível me impressionar mais ‒, avistei uma bola azul e verde. O nosso mundo doente. A Terra trincando a casca e se desfazendo em estrelas. Eu havia cruzado a mente Dele e entrado num inferno pessoal que, na existência daquela criatura, era o mais puro júbilo. Eu era uno com Ele, uno com a inteligência cósmica. Não pude ir além, os horrores que senti, as coisas que ouvi e o que eu sabia que iria encontrar me fizeram parar e voltar… Logo me vi novamente na mata, à espreita de um alce branco. Ele me olhou, atirei. Errei! Perdi o penúltimo cartucho da escopeta. O estouro despertara os lobos. Voltei correndo para a cabana. Espremi o corpo na porta entreaberta… Uma janela batia ao vento, dando pancadas altas que me lembraram do tiro. Coloquei a arma sobre a mesa. Os braços moles de tanto tremer. Peguei uma garrafa de uísque e um copo vazio, ajeitei tudo ao lado da escopeta e fui para a janela da cozinha ver o risco de escama que persistia inalterado. Ainda contemplei a acrópole oceânica que, nesse dia, já se mostrava pela metade, com pilares gravados com pictogramas que artista algum pudesse conceber. Riscos e formas chuviscados de verde e vermelho, compostos de entranhas de monstros marinhos. Eu sei disso, pois eu via pelos olhos da criatura. Voltei para a sala e estanquei no lugar. A porta! A porta estava aberta quando retornei da mata? A corrente jogada em um canto. A janela! A janela também estava aberta? Olhei para a mesa, vi dois copos, um cheio de uísque e o meu vazio. E mais, um maço de Lucky Strike, espremido e molhado, cheio de cigarros. Alguém tinha entrado antes de mim. A coisa me achara! Arregalei os olhos e me inclinei de lado, sentindo um choque subir pelas pernas, indo até o meio das escápulas. Congelei, não dei sequer um passo além… Aqui estou até hoje, no trigésimo primeiro dia, depois de ver todas as Vinte Visões, criando coragem para estender as mãos, catar a escopeta, recarregar e estourar a cabeça do monstro. Ou, o que seria mais fácil, a minha. Não há paz em lugar algum. Ele observa tudo. É uma coisa que murmura “Senhor” no início de frases, e termina com “dos mundos” em cada final de monólogo. É estranha e lenta, uma fala angustiante. Mesmo furando meus olhos e rasgando as orelhas em sonhos, durante as visões, eu sempre via com Ele, pensava com Ele, pois eu sou Ele agora, o Senhor dos Mundos, a intenção em tudo. E eu sei. No começo da existência, tudo era quente e quieto, contido num grão. Assim, veio o caos, trincando o grão e braços se alastraram em fissuras, até tudo explodir num grande estouro. A fresta se abriu num risco horizontal, feito pálpebras de um ciclope cósmico, a tudo observando, disseminado a vilania até o limite de seu alcance que não possuía barreiras. E Ele passou a observar de lá. Cansado de apenas olhar, o Senhor dos Mundos avançou, caminhando pelas existências, alinhando estrelas e cruzando luzes, emanando, como se numa celebração cósmica, uma luz negra que se misturava com um verde fosforescente em cada gesto, espalhando o que trouxe em abundância. O caos. Não contente com apenas existir, Ele permitira a criação de outros semelhantes, chamando a todos de Lordes dos Mundos. Eu vi um. Ele estava nu, saindo de um poço de lágrimas do deserto. Esguio, a pele lisa feito gelo, o rosto inexpressivo, o riso num ângulo sem conhecimento na geometria terrena. O crânio massudo ‒ não encontro palavra mais adequada para chamar aquilo ‒ entalhado em forma de cunha num monólito poroso que pingava escamas. Do lóbulo de uma orelha desciam lanças de prata, esticando a pele, criando tentáculos que rasgavam o solo, formando veios de algo verde por onde a figura andava. Esse Lorde dos Mundos aproximava-se de mim, ao mesmo tempo em que se distanciava, fundindo-se à silhueta de um monte no horizonte, o contorno falhando em ondas que se apagavam no crepúsculo de um sol cinza. O deserto longínquo, tão vasto que me sugava a sanidade com a sensação de agulhas chupando meus olhos. Esferas roxas e blocos cúbicos começaram a cair do céu, sumindo antes de atingirem o deserto, fulgurando por segundos, revelando trincas no solo que formaram vales coroados por bordas enrugadas. Era a palma de uma mão velha e murcha. A palma do colosso. Ao fundo, rasgando o monte numa erupção, avolumou- se uma esfera de pálpebra fechada, pingando um caldo pela fresta irregular que tremia, querendo se abrir, quebrar a remela endurecida que selava seu risco. A esfera ocular avançou num som baixo, grave feito uma trombeta quilométrica, abarcando o panorama como uma avalanche, absorvendo o lorde solitário como se ele fosse uma gota numa enxurrada. Depois, na calmaria, uma forma redonda persistiu, com braços e tentáculos vivos iguais a vermes. Em sua destra, uma balança com dois pratos de bronze. Em cada prato, um globo pulsante de mundos vivos e invertidos, um acima, outro abaixo. Sobre a monstruosidade dessa visão, uma bola luminosa preenchida por vinte palavras. A bola desfez- se, liberando o conteúdo ao ar. As palavras amontoaram-se e caíram sobre os mundos como areia. Palavras solitárias, únicas, num idioma de caracteres desconhecidos, carregadas de acontecimentos que logo percebi serem as Vinte Visões que se derramaram em pesadelos. E em mim, usando minha consciência como degraus para Ele alcançar as estrelas, a entidade deixou uma impressão no espírito, uma vontade que se apresentou como sendo o Senhor dos Mundos. Sucedeu que Ele falou numa voz prolongada de chiados: “Senhor… Levanta. Ide e guiai-vos até os Lordes dos Mundos. Carregues o ruído por todo o chão onde pisares a planta do vosso pé, e todos os ouvidos que ouvirem a voz, os mistérios das estrelas os arrebatará. Assim, há de perpetuar o mistério… dos mundos.” Isso ia num plano acima de um pandemônio de vozes, preenchendo a cabeça. Até que a voz registrou as revelações que me foram apresentadas. E a primeira foi me dada em fogo na testa, era justamente a marca do ciclope, o risco de pálpebra horizontal. O Olho. Por fim, o Mal e o Bem eu desejei. Apenas isso. Esse foi o princípio da existência que senti como a verdade. Mal e Bem. Sem limite de força e espaço, a vilania se expandiu numa fagulha de trevas e, sobre o abismo, o negro caiu. Vazias e gélidas as terras se apresentaram. Rapidamente o Bem em pó se fez. E disse a voz das estrelas, o olho maligno: “Senhor… então, que haja dor… nos mundos.” E houve dor. O Mal prevaleceu. É verdade, pois Ele chegou, o Senhor dos Mundos. Vivendo nas Vinte Visões agora eu sou um com Ele, tanto que a verdade me foi mostrada: eu morri no décimo dia, o chifre do alce me degolou. Nunca retornei à cabana com vida, e dela sinto que ainda não saí, mas as Vinte Visões persistem numa massa escura que se condensa em blocos cúbicos cheios de dor trazendo o Apocalipse… o final que se fecha numa Negra Luz. Bruno Godoi, o escritorlenhador espartano nascido em Minas Gerais. Instagram: @br.godoi Tecnopata A caminho do céu Igor Chacon Filha de casal de pesquisadores da universidade federal ainda está desaparecida. Na manhã do último primeiro de janeiro, a pequena Rute Schmidt, 10, desapareceu do quintal de casa sem deixar rastros. A Polícia Civil encerrou as buscas, que já duravam três meses. A família está desolada e pretende sair do país com seu outro filho, Túlio, 11, ainda esta semana. O pai, Alexandro Schmidt, e a mãe, Roberta Schmidt, notórias autoridades na área de neurotecnologia, neurorobótica e neurogênese, desenvolvem trabalhos revolucionários na área de controle de… Túlio sentia as lágrimas escorrerem quase como se estivessem caindo em câmera lenta. Ele chorava sem a vergonha que achava que deveria sentir, afinal, naquela noite escura, naquele bairro sombrio, não havia ninguém olhando. Se estivesse na frente dos colegas, ou mesmo do pai, achava que conseguiria engolir o choro. Porque engolira nos últimos três meses daquelas férias terríveis, mas agora parecia que tudo tinha ficado pesado demais em seu coração jovem. Uma elevação na estrada o fez diminuir a velocidade da bicicleta de rodas grandes. Era a passagem de trem que ele conhecia desde que começara a andar de bicicleta pelo bairro e aprendera a respeitar mesmo antes de ver o Sr. Tongles (o gato da Sra. Cassandra, sua professora, dois anos antes) ser esmagado nos trilhos pelo “trem das 7”. Apesar do choro, olhou cuidadosamente, primeiro para a esquerda, depois para a direita, e escutou, elevando um ouvido para o vento noturno como um cowboy procurando índios em um daqueles filmes de faroeste que o pai às vezes assistia, quando voltava de um interminável coquetel com outros professores da universidade. Não havia som nenhum, muito menos o brilho no farol do trem. Ele estava só, exceto pela bicicleta verde, que reluzia na luz amarelada do poste. Isso, e a presença inegável da irmã. Para todos, Rute estava sumida há quase noventa dias. Não para Túlio. Ele venceu a elevação na estrada (que, ali, já era asfalto, não paralelepípedos como as ruas adjacentes) com uma careta de esforço que quase o fez esquecer o choro. Todavia, enquanto continuava a pedalar, a lembrança dos olhos tristonhos da irmã fez o choro retornar. Progrediu devagar pela subida que circundava o morro cujo cume era tomado pelo lixão da cidade. Ao redor, casas fechadas e silenciosas, de muros altos, com cacos de vidro no topo. Passou com a bicicleta por cima de uma poça de lama quando viu um grupo de garotos mais à frente. Limpou o nariz com as costas de uma mão e diminuiu o ritmo de pedalada. Quanto mais se aproximava do lixão, mais a presença da irmã parecia forte. Algo quase palpável no ar. Vinha de todos os lados, mas, principalmente, ele conseguia sentir na corrente elétrica lá em cima nos postes. Desde que Rute desaparecera, Túlio sabia que os pais estavam envolvidos. Não era uma certeza racional, como se ele pudesse traçar uma linha de pensamento lógica até o entendimento, mas sentia isso como podia sentir, nesse exato momento, que a irmã o chamava. Continuou pedalando e suspirou aliviado quando percebeu que o grupo de garotos – três, na verdade – estava prestando bastante atenção à janela de uma casa. Eles estavam sentados debaixo de uma árvore, quase no escuro, se não fosse a luz que saia da casa à frente deles. Túlio pedalou até que pôde ouvir o som de uma televisão e entendeu por que os garotos não lhes davam atenção. Havia uma senhora de cabelos grisalhos na sala da casa e uma TV ligada, Túlio conseguiu ver dois pedaços enormes de palha de aço nas antenas do aparelho e sua luz azulada lançada rua afora. A senhorinha e os garotos acompanhavam o último capítulo da novela das nove, é claro. Túlio achava – apesar de sua indiferença àquilo – que todo o país estava sintonizado na novela para saber quem matou quem ou quem vai casar com quem, algo assim. Não importava para ele. Nada importava, na verdade, nos últimos três meses. Porém, ele parou a bicicleta. Colocou um pé no chão e olhou a tela, não queria saber da novela, mas sentia a presença ali. Uma festa acontecia na TV, talvez um casamento, Túlio não sabia precisar, mas várias pessoas festejavam e bebiam e comemoravam. Menos uma garotinha. Ele viu a garotinha assim que colocou os olhos no televisor de tubo. Era sua irmã, impossível não a reconhecer, ainda com o mesmo vestidinho branco e florido com o qual “desaparecera”. Achava improvável que algum dos outros quatro telespectadores conseguisse ver a garota ali (não foi a mãe quem quase o espancou depois que ele insistiu que Rute estava bem ali na mesa de jantar com eles? Não foi o pai que o acertou com o cinto até que ele sentisse sangue e merda quente e viscosa descer pelas pernas quando ele disse que era a voz dela no rádio da cozinha?), então, continuou pedalando. *** O grande portão duplo de aço do lixão estava aberto. Sempre estava. Caminhões de lixo costumavam (ou deveriam) ir e vir a cada hora. Não havia porteiro. Ele olhou primeiro para o chão. Um jogo de amarelinha desenhado com giz amarelo. Não chegou a pensar que lugar estranho era aquele para crianças jogarem amarelinha: bem na calçada do lixão mais fedorento da cidade. Pensou apenas na irmã e em como aquela era a brincadeira favorita dela. Um turbilhão de emoções assaltou seu coração, medo, solidão, amor e uma profunda tristeza que se alastrava como fogo em mato seco, enquanto lembrava da partida que eles nunca terminaram no jardim de casa. Ele apertou os olhos e virou o rosto para cima tentando controlar um novo acesso de lágrimas. Esse, por milagre, não veio. Lembrou-se das vezes, pareciam infinitas, que jogara amarelinha com a irmã no quintal. O mesmo quintal de onde a irmã sumira, ou isso foi o que os pais disseram aos homens que os entrevistaram. Mentira, ele sabia. Afastou esse pensamento com um sacudir de cabeça. Não queria ser invadido pela sensação de culpa por pensar nos pais como mentirosos. Negou essa ideia contra o pai e a mãe nas últimas semanas e, ali, de pé em frente ao lixão, só conseguiu colocá-la para longe invocando em seu lugar a imagem de Rute atirando a pedra na casa um da amarelinha. A imagem da irmã pulando com os dois pés para as casas dois e três. E pulando e rindo e pulando e rindo e pulando. O garoto fitou a escuridão lá dentro. Conseguia ver, sob a luz de um único poste, naquela noite sem lua, a silhueta de montanhas de lixo que ele supunha serem maiores que o Monte Everest. Ele nunca vira o Everest de perto, mas, ao menos pela foto no livro de geografia, a menor daquelas montanhas de lixo parecia ser muito maior que qualquer monte do mundo. Conseguia divisar olhos maldosos observando da escuridão. Centenas, talvez milhares deles, alguns com tentáculos que pareciam tocar o mundo com maldade e dor. Limpou os olhos na manga da camisa polo e se obrigou a parar de chorar. Respirou três ou quatro vezes e olhou novamente o lixão. Os olhos maldosos pareceram menos redondos e mais simples, reflexos de algum pedaço de ferro ou espelhos quebrados que eram. Ou deveriam ser. Por sorte, o nariz entupido pelo catarro não deixava passar muito do fedor horrível do chorume, e ele deu graças por isso. Desmontou da bicicleta e começou a empurrá-la pelo portão, que rangeu uma vez antes de ficar quieto pelo resto da noite. Uma leve brisa soprava a favor de Túlio e na direção do lixão, o que diminuía um pouco mais o fedor, mas as sombras ainda estavam lá. Cada recanto, cada geladeira caída, cada armário retorcido e enferrujado parecia conter algum monstro, alguma assombração, pronta para pular, agarrar seus tornozelos e enfiar as garras viscosas e nojentas em seu estômago. E ele acabaria todo aberto, como o Sr. Tongles. Tirou uma lanterna muito grande do cesto da bicicleta e apertou o botão. Clic. Nada. Seu coração deu um salto no peito e o estômagorevirou. As sombras à sua volta pareceram se intensificar. Apertou o botão novamente, mexendo na tampa das pilhas. Clic. Desta vez, um feixe de luz quase cegante saiu e ele conseguiu respirar. Caminhou por entre o lixo que atingia alturas inimagináveis. Um labirinto de montanhas se contorcia pelo lixão, levando o garoto cada vez mais fundo e mais alto. Sons baixos ecoavam aqui e acolá. Só ratos, tentava pensar. Finalmente, chegou ao que parecia ser o coração do lugar. Um improvável casebre de alvenaria e paredes sem reboco em uma clareira no lixo. Uma placa de “Cuidado, cão antissocial” pendia de uma viga no teto, apesar de não haver nem sinal de cachorro. Esperava que não houvesse mesmo, e que tudo que ouvira a mãe falar sobre o homem que morava ali fosse verdade. Se não fosse, sua jornada noturna teria sido em vão. Mas o que importava, mesmo? O olhar dos pais para ele durante o jantar era tão ausente, nos últimos três meses, que ele achava que, se fosse ele a sumir dessa vez, os pais nem notariam. Não havia mais sorrisos, nem mais conversas desde que Rute sumira. Não havia mais alegria nem piadas. Só uma fria indiferença (só entrecortada pelas surras ocasionais) que lhe doía bem lá no íntimo, onde não conseguia massagear. Talvez, só talvez, se Túlio tivesse seis ou oito anos a mais, ele conseguisse ver o que existia por trás daquela indiferença: apenas culpa. Mas ali, naquele lixão podre e revolto em decomposição, com urubus de barrigas cheias e cabeças descansando sobre as asas, só conseguia pensar que, se trouxesse a irmã de volta, se isso fosse possível, os pais voltariam a olhá-lo com ternura, talvez até com amor. A luz voltaria à sua casa e tudo ficaria bem. Sim, tudo ficaria bem. Foi o que fez Túlio continuar empurrando a bicicleta até o casebre. Quando chegou mais perto e entrou no campo de luz da lâmpada, apagou a lanterna. A porta da frente estava entreaberta. Encostou a bicicleta usando o apoio do pedal e pegou um pacote de papel de dentro da cesta. Andou com cuidado pela varanda entulhada de tralhas e empurrou a porta. Uma luz acinzentada se espalhava por dentro do vão de não mais que nove metros quadrados que se abriu aos olhos do garoto. Seu nariz, já um pouco menos congestionado, captou odores azedos de bebida e cigarro. — Quem tá aí? – perguntou uma voz rouca, vinda de um canto. — S-s-sou eu, tio. Ele entrou. Um colchão no chão de cimento cru, coberto por revistas velhas, garrafas vazias e embalagens de macarrão instantâneo; um homem que parecia muito velho estava sentado nele, de pernas cruzadas. A barba desgrenhada estava amarela de sujeira em vários pontos e o único objeto de real valor em sua vestimenta parecia ser um colar de ouro que reluzia à luz de uma TV ligada e sem sinal no canto oposto ao colchão. Ao ver o garoto, o velho começou a chorar sem fazer barulho. Apenas lágrimas gordas abriam caminho no rosto sujo. Túlio sentia medo e uma pontada de compaixão pelo velho tio Cláudio. Fedido, meio louco, totalmente abandonado pela família desde que, segundo o pai – Túlio sabia disso porque já ouvira conversas entrecortadas –, descobriram que seu velho irmão Cláudio estava mexendo com uma “coisa que não era ciência”. — Chegue mais perto, garoto. Chegue mais perto. Acenda a luz, por favor. O interruptor está ao seu lado. Cuidado com os fios soltos. Túlio acionou uma lâmpada que pendia do teto cheio de buracos. — Você cresceu, mas tá mais magro – disse o velho, enquanto limpava o rosto com a manga da camisa encardida. — O senhor também. Digo, o senhor também está mais magro – Túlio estendeu o pacote para o velho. – Isso é para você, tio. Tio Cláudio pegou o pacote de papel e agradeceu. Tirou dele um porta-retratos e, quando viu a foto, começou a chorar novamente. Dessa vez, o choro durou quase cinco minutos. — Eu tirei da gaveta do meu pai – disse Túlio. — Tudo bem – disse o tio. – Acho que ele não vai sentir falta. Um silêncio caiu sobre os dois. O garoto ficou olhando os tênis e o velho só ficou ali, abraçado aos joelhos e observando a foto. — Eu tenho visto a minha irmã – Túlio disse, ainda sem tirar os olhos dos próprios pés. O tio pousou o porta-retratos que continha uma foto do irmão e dele, ambos ainda jovens, e olhou o sobrinho com olhos curiosos. — Eu a vejo na TV, tio. Eu sinto que ela está nas paredes da casa, lá onde passam os fios. É uma sensação estranha… não sei se ela está viva ou… – parou com as palavras presas na garganta. Cláudio finalmente levantou-se do colchão e Túlio percebeu o quanto ele estava indisposto. Perguntou-se o que o velho havia comido nos últimos meses. Será que alguém trazia comida para ele? Ou será que tinha que se contentar com ratos? Ele notou a sombra de um animal morto em um monte de embalagens abertas e sacos plásticos a um canto e afastou o pensamento para longe. — Sua irmã era especial. Você sabe disso, não sabe? – o velho disse. – Não especial como se diz por aí, mas especial do tipo… — Que faz coisas estranhas – Túlio completou. — É. Isso. E eu acho que meu irmão, seu pai… ele e sua mãe ficaram obcecados por entender o que ela era – enquanto falava, Cláudio mancou até o televisor ligado. Não havia antena e Túlio não via nem sinal de algum cabo conectado que não fosse o de energia. Um velho videogame, ainda com a fita encaixada, jazia acima da TV, mas ele não via sinal dos controles. O garoto lembrou-se de quando descobriu que a irmã era especial dessa forma como o tio falava que ela era. Foi quando ele tinha 8 e ela 7. Ele estava jogando com um videogame muito parecido com o do tio, mas uma versão mais nova, um 16 bits; e Rute pedira para jogar. Ele deu um controle desconectado para ela e continuou jogando, se achando o garoto mais esperto do mundo, o garoto mais esperto da face da Terra. Ele disse a ela que ela estava controlando os inimigos. Era óbvio que não. O jogo controlava os inimigos, o jogo control… Foi quando todos os inimigos do jogo avançaram contra seu personagem em uma avalanche descomunal. Ele sabia que não era assim que aquilo deveria ser jogado. Que coisas como aquela não deveriam acontecer. Então, olhou para a irmã e viu, nos olhos dela, um brilho cinzento. Havia o universo naquele brilho, e ao mesmo tempo, só estática. Ela estava controlando o jogo, a televisão, o videogame. Tudo. Ele puxou os aparelhos da tomada e Rute caiu desmaiada. Um filete de sangue escorria do nariz dela. Naquela noite, houve luzes azuis e vermelhas pela vizinhança e Túlio lembrava-se de ter levado uma bronca da mãe, mas era como se ela não estivesse muito interessada nele, ela estava interessada em Rute. Ele também olhou para os olhos da mãe. Ele teve medo do que viu ali. — Você precisa me dizer o que acha que aconteceu com ela – disse tio Cláudio, fitando o televisor fora de sintonia. Um momento onde só era possível ouvir o vento lá fora se passou antes que Túlio respondesse. As palavras pareciam estar atoladas em sua garganta. Uma palavra, na verdade: — Morta – respondeu, e teve um longo acesso de respiração entrecortada. — Não tenho lenços. Desculpe – o tio disse, quando o choro do menino diminuiu para uma série de fungados fortes. — Mas ainda sinto a presença dela – ele disse. – Eu sinto. O senhor acha que é o e-espírito dela? — Não – respondeu o tio, coçando o queixo barbudo. Falava em um tom pensativo, de modo que a palavra saiu bastante arrastada nããão. – Talvez… talvez a consciência dela ainda esteja aqui. Não sei o que seus pais fizeram com ela, mas acho que é a consciência dela. Você entende essa palavra? Ele não entendia, mas fez que sim do mesmo jeito. Não achava que o conceito fosse importante de ser apreendido em sua essência, mas achava que entendia bem o que significava na prática. — Eu só quero que ela descanse. Que isso acabe – disse. Cláudio balançou a cabeça em resposta. Foi a vez dele pensar se o garoto realmente compreendia que, mesmo se isso acabasse,talvez o “clima” que agora imperava em sua casa jamais se desfizesse. Provavelmente, na verdade, o frio à mesa de jantar jamais iria embora. Seria um morador fixo naquele lar desfalcado. Ponderou, por fim, que era demais para uma criança de 11 anos, e decidiu que lidaria com isso no futuro, se preciso fosse. — Tudo bem – disse, por fim. – Vamos usar um método que certamente seus pais não aprovariam – sorriu e, por trás de toda a sujeira, Túlio achou que o velho era bonito como seu pai – Pense… pense em algo que você gostava de brincar com sua irmã, algo que não envolva nenhum brinquedo eletrônico. Consegue pensar em algo? — Amarelinha! – Túlio respondeu sem pestanejar. — Ótimo. Ótimo – Cláudio começou a afastar a sujeira do meio do cômodo. Chutou tudo para os cantos e encostou o colchão à parede. O chão estava cheio de rachaduras, por entre algumas delas crescia mato. Ele achou um pedaço de pedra branca que parecia gesso e estendeu para Túlio. – Desenhe como você desenhava quando brincava com ela. Ele desenhou, tentando fazer o melhor que podia e, no final, achou que ficou bem parecido mesmo com as amarelinhas que desenhava no quintal. Enquanto desenhava, a sensação de que a irmã estava próxima retornou com uma força que quase fez com que ele derrubasse o pedaço de gesso. Estava meio tonto quando terminou e teve que levantar a cabeça bem devagar para encarar o tio. — Sua irmã era o que eu chamei de tecnopata – explicou o tio. – Seu pai não gostou do nome, achou muito espalhafatoso. O menino o observou com as sobrancelhas juntas. — Ela era capaz de controlar os objetos eletrônicos com a mente, Túlio. A lembrança da irmã controlando os inimigos no videogame relampejou em sua mente. — O espírito dela já deve estar descansando em algum outro lugar, mas a consciência dela ainda deve estar por aqui. Seja lá qual foi a insanidade que seus pais fizeram com ela. — E para que serve a amarelinha, tio? — Bom, nossa consciência é atraída por aquilo que amamos. O homem arregalou os olhos na direção da televisão. Túlio seguiu o olhar e lá estava ela. Percorrendo a estática acinzentada da TV, Rute pulava de um canto a outro da tela, com os olhos vidrados para a sala onde estavam o irmão e o tio. No rosto da irmã, havia o sorriso mais cândido, mais sincero que Túlio já vira em sua curta vida. Ele sentiu-se à beira das lágrimas outra vez. Em um instante, ela estava dentro do televisor; no outro, estava com os pés no chão sujo da casa do tio Cláudio, bem em frente à casa número um da amarelinha. Túlio percebeu que havia desenhado o jogo quase como se estivesse prevendo que a irmã sairia do aparelho, com a primeira casa do jogo apontada para ele e o céu no lado oposto, fechando o desenho geométrico. As crianças sorriram uma para a outra. Túlio já estava chorando, mas a expressão da irmã era divertida. Ela retirou do bolso do vestidinho florido uma pedra estranha: redonda, mas que não tinha cor de pedra, parecia feita da mesma estática da TV, com os pontos pretos e cinza piscando e passando. Atirou a pedra diretamente no número Dez e Túlio lembrou que foi exatamente onde eles deixaram a última partida inacabada. Ela sorriu novamente para ele, como se lesse seu pensamento e começou a pular. Um. O vestido balançou lindo junto com ela. Dois e três. Sorriram juntos. Quatro e cinco e seis. Não havia mais tristeza nos olhos dele. Sete, oito e nove. Ela quase caiu, mas se manteve firme, como sempre. Dez. Pisou no céu… e ela já não estava mais ali. Igor Chacon – Habita os próprios mundos que cria, agora, passeando no Invertido. Kaelum A realidade é uma escolha Pedro Riguetti Em 1987, na zona norte do Rio de Janeiro, os corpos de um casal foram encontrados em um precário acampamento às margens da floresta da Tijuca. O homem, identificado como Ricardo Suskind, possuía marcas de arranhões nos membros superiores e inferiores, rosto e tórax. O sangue seco desfigurava seu rosto pálido e aterrorizado. A mulher, Isabela Pretti, havia mastigado a própria língua, perceptível pela massa negra e úmida encontrada dentro de sua boca, e ostentava em sua fronte uma ferida aberta e repugnante, resultada de inúmeros golpes contra uma árvore. Pedaços grossos de farpas de madeira emaranhavam-se em seu cabelo encaracolado. Ambos não possuíam os olhos, e mantinham as órbitas vazias viradas para céu, como se enxergassem algo que só os mortos pudessem ver. Detetive Braga foi o primeiro a chegar ao local, junto de seu jovem assistente, Felipe. Rodeou os corpos com passos pesados e pegou sua Polaroid para registrar a cena. Desde a morte de seu filho de seis anos, Braga sentia um estranho enjoo perto de cadáveres e se protegia atrás da câmera. Foi assim que percebeu, na mão de Ricardo, um cordão com um estranho pingente: um quadrado de pedra com um xis que atravessava suas laterais e um buraco circular no centro. Negligenciando o procedimento de investigação, Braga o arrancou dos dedos frios e duros de seu dono e contemplou o objeto com seus olhos fundos e castanhos. Através do furo, viu o azul claro do céu carioca. “Ei, escutou esse barulho?”, perguntou o rapaz. Braga ficou imóvel. Um pequeno estalo chamou sua atenção. “De onde vem?”, perguntou o detetive. “Perto.” Tec, tec, tec. Braga sacou a arma e verificou o local com os olhos atentos. Felipe sentiu um frio na espinha. Encarou os mortos e suas órbitas escuras. Deu um passo em direção aos corpos e foi interrompido por outro estalido. “Chefe, o ruído vem dos mortos.” Braga o encarou com descrença e guardou o revólver. Aproximou-se do cadáver de Ricardo e ajoelhou-se na grama. Os estalidos se intensificaram à medida que Braga aproximava o ouvido. “Olha!”, Felipe apontava para uma das órbitas do morto. Um pequeno verme esverdeado com nervuras lilás escapava de sua mórbida moradia e se esgueirava na direção de Braga. Uma minúscula boca dentada salivava com o doce perfume do medo do homem à sua frente. Braga se arrastou um pouco e observou o verme lentamente explorar o ambiente. “Liga pra central”, ordenou Braga, ofegante, “Manda um carro vir buscar esses corpos.” *** Um ar gelado e metálico acariciou o rosto de Braga assim que atravessou a porta do necrotério. O cheiro de formol queimou suas narinas. Acompanhado do médico legista, Braga se aproximou dos dois corpos cobertos por uma manta e estendidos sobre as mesas de aço. O médico circundou os cadáveres e pegou um pote de vidro sobre sua mesa com dois pequenos vermes esverdeados que se arrastavam um sobre o outro para tentar escapar. “Melhor mandar pro laboratório. Nunca vi esse tipo de bizarrice por aqui.”, disse o médico, entregando para Braga as amostras vivas. “Foram eles que comeram os olhos?”, perguntou, colocando o pote de vidro contra a luz para observar as nervuras arroxeadas e a pele esverdeada dos vermes. Braga sentia a vibração dos estalidos através do vidro. “O cérebro também”, respondeu o médico, com a sombra de um sorriso. Braga achou melhor deixar o pote em cima da mesa de novo. O médico colocou as luvas. Os dois se aproximaram de um dos corpos. O detetive virou o rosto discretamente quando o médico retirou a manta e revelou a pele morta de Isabela Pretti. O legista reparou na reação de Braga e sorriu. “Morte por contusão. Auto-infligida”, apontou com o mindinho as feridas na testa do cadáver. Algumas farpas ainda estavam encravadas na carne. “Ela se matou?” “As mãos estão esfoladas e com as mesmas farpas desse ferimento. É bem provável que ela tenha se golpeado até provocar uma lesão interna”, respondeu o médico, mostrando os machucados na palma da mão do cadáver. “Por quê?”, Braga perguntou, evitando olhar para as feridas. “Essa resposta é você quem vai me dar.” “E o outro?” “Esse é melhor ainda.” O médico cobriu o corpo de Isabela Pretti e se aproximou do outro cadáver. Inevitavelmente, Braga desviou o olhar quando a manta foi retirada. “Este aqui estava desesperadopara tirar algo de dentro dele. Ninguém em sã consciência se arranharia até a morte”, o médico apontou para os cortes e arranhões. “Mas provavelmente não foram essas feridas que o mataram. Olha como o corpo está inchado.” Braga observou o cadáver e reparou que seu tórax se movia para cima e para baixo, como se respirasse, ou pior, como se houvesse algo vivo ali dentro. “E o que é isso?” perguntou o detetive. “Gases, ou sangue. Provavelmente ele sofreu algum tipo de hemorragia interna, mas a gente só vai saber abrindo o corpo.” O médico se afastou do corpo para abrir uma gaveta e pegar um bisturi. A lâmina afiada brilhava com a luz branca do necrotério. Braga observou o legista se aproximar do corpo e deixar que sua mão corresse pelo tórax do cadáver. Bem no centro, abaixo da costela, o médico inseriu a ponta e fez um corte. Um pequeno silvo de ar saiu pela pequena abertura e espirrou sangue na pele acinzentada. O médico analisou a reação e voltou com o bisturi, fazendo um corte vertical até o umbigo. Em uma fração de segundo, o interior do cadáver foi lançado para o ar com centenas de vermes ensanguentados que se espalharam pelo necrotério e pelo rosto atônito do médico e do detetive. “Que merda!”, esbravejou Braga. “O tanque!”, o médico correu para uma torneira no canto e deixou que a água levasse para longe os pequenos vermes. Quando o médico se afastou, Braga correu para eliminar o sangue de sua pele. Por mais que se esfregasse e observasse as criaturas desaparecem pelo ralo, uma coceira por baixo da epiderme tomava conta de seu corpo, quase chegando aos ossos. Braga sabia que os vermes já haviam deixado uma marca dentro de si. *** Naquela noite, Braga chegou em seu apartamento, e a brisa que invadia a sala pela janela acariciou seu corpo cansado. No quarto, a esposa já dormia. Um bilhete ao lado da cama informava que a janta era macarrão com almôndegas, o texto terminava com uma carinha feliz. Sorriu e guardou o bilhete debaixo do abajur. Jogou o paletó em uma poltrona e trocou de roupa para uma samba-canção, uma camisa velha do The Doors e sandálias do Mickey Mouse. A luz da geladeira cegou brevemente o detetive enquanto buscava a janta. Em uma panela, o macarrão com almôndegas gelado não pareceu muito apetitoso. Buscou outra opção e encontrou uma bandeja com frios. Sem muita cerimônia, comeu os pedaços gelados de carne iluminado apenas pela luz amarela da Brastemp. Na cama, embaixo das cobertas e abraçado em sua esposa, Braga adormeceu rapidamente, e logo entrou no mundo dos sonhos. O detetive se viu de pé encarando a noite pela janela da sala. O estranho céu noturno possuía um tom arroxeado e estrelas das mais diversas cores. Os olhos de Braga brilhavam de admiração. “Pai”, sussurrou uma voz atrás dele. O detetive se virou e encontrou seu filho, Daniel, de seis anos, encostado no batente da porta. Sua pequena mão agarrava o peito ofegante. “Tá acontecendo de novo”, o garoto disse, sem fôlego. Braga correu até o menino e o abraçou com força, sem acreditar que via o filho mais uma vez. “Pai, eu não consigo respirar.” O garoto pegou a mão do pai e a colocou no peito. Braga sentia o peito do filho arfar em busca de oxigênio. O detetive agarrou o garoto no colo e gritou pela esposa. Enquanto buscava a chave do carro, a mulher surgiu de pijamas, com os olhos arregalados. “O Dani tá tendo outra crise”, gritou Braga, assustado. O garoto cuspiu sangue na roupa de Braga e um pequeno verme ensanguentado caiu no piso. Sua esposa se aproximou para ajudá-lo e os dois levaram Daniel até o carro. A Parati cinza rugia pelas ruas de Copacabana em busca de socorro. No banco de trás, a esposa abraçava o filho, chorosa. Braga cruzava sinais vermelhos até que subiu a calçada em frente a um hospital. O detetive carregou seu filho até a recepção e pediu ajuda para os enfermeiros. O garoto foi levado para a sala de cirurgias e o casal esperou com uma angústia no peito. Pouco tempo depois, um médico se aproximou e anunciou que o garoto estava bem. Uma parada respiratória atacou seu pulmão fragilizado, mas eles fizeram de tudo para salvá-lo. Braga não acreditava. Não era esse o final da história que ele conhecia. O médico guiou os dois até um quarto onde descansava Daniel. Braga se aproximou do garoto e tocou seu braço frio como a morte. “Filho?” O garoto acordou e encarou o pai, mas onde antes ficavam seus olhos, agora se encontrava duas cavidades vazias, com uma luz púrpura emanando do interior de sua cabeça. Braga acordou com o susto. *** Na delegacia, Braga ainda sentia os efeitos do sonho na noite anterior. A imagem do filho são e salvo permanecia na memória. Ficou uns minutos encarando a janela, ignorando os militares que iam e vinham atrás de si. Seu assistente chegou com o café e uma caixa de evidências. Deixou ambos em sua mesa. “Liberaram o seu pedido, chefe”, disse o rapaz. Braga abriu o recipiente e encontrou o estranho pingente, um maço de cigarros sujo de terra e as identidades dos dois cadáveres. “Você checou os nomes?”, perguntou Braga. “Sim”, respondeu o rapaz, “o cara era professor e a mulher, advogada. Casados. Os dois voltaram pro país depois da Anistia.” “O que eles aprontaram?” “Nada. O professor era irmão do Marcos Suskind, do MR- 8. Fugiram por precaução depois do sequestro do embaixador.” Braga bufou, absorvendo a informação. “Alguma resposta sobre os vermes?” “Pediram pra você ligar.” Braga tirou o telefone do gancho, pegou sua caderneta de telefones e discou um número. Uma secretária atendeu do outro lado e logo transferiu a ligação para a bióloga responsável pelo caso. “Eu devia te dar um prêmio científico por encontrar uma coisa dessas”, disse a bióloga. “O que são esses vermes?”, perguntou Braga, sinalizando para seu assistente anotar a resposta. “Kaelum”, respondeu, “uma espécie necrófaga. Mas o mais interessante é que essa espécie não existe em lugar nenhum. Está extinta faz algumas décadas.” “E como apareceram no corpo de dois suicidas?” “Impossível saber”, uma risada cortou a ligação, “vermes necrófagos só entram no seu organismo após a morte.” Braga ficou em silêncio. O assistente anotava tudo em uma folha. Desligou o telefone e encarou o outro. “O que você acha, Filipe?” “Nenhum verme consegue fazer um estrago daqueles na cabeça de alguém da noite pro dia”, respondeu. “Com certeza esses bichos já estavam neles antes de morrerem.” “Prendemos eles por assassinato?”, brincou Braga. “Ou quem botou esses vermes dentro dos dois.” Braga fechou a cara, pensativo, e girou a cadeira. Pegou o pingente encontrado no defunto e olhou através do buraco. Do outro lado, o detetive viu nuvens púrpura que dançavam no espaço. Sua expressão de espanto se fez nítida a ponto de Felipe perguntar: “Tudo bem, chefe?” “Sim. Acho que sim.” O detetive ainda admirava o pingente. *** Braga saiu da delegacia com a estranha sensação de estar sendo observado. Entrou rapidamente em seu carro, olhou pelo retrovisor e avistou o estacionamento vazio. Acelerou a Parati e pegou o caminho de casa. A noite chegava lá fora e umas poucas estrelas já eram vistas. Os carros acendiam os faróis e a rua era tomada pelos trabalhadores que terminavam mais um dia de serviço. Braga, de tempos em tempos, passava os dedos pelo pingente que carregava no pescoço. Parou em um sinal vermelho e um Opala preto emparelhou ao lado da janela do motorista. O detetive encarou o interior do carro e avistou um homem de chapéu que sinalizava para que ele abaixasse seu vidro. Braga colocou a mão no coldre do revólver e, com a outra mão, girou a manivela da janela. Mesmo a poucos metros de distância, Braga não conseguia distinguir o rosto do outro motorista. O homem se inclinou para lhe entregar um bilhete. Braga reparou em um símbolo estampado no papel: um quadrado cortado por um xis com um furo no meio. O sinal mudou para verde, Braga agarrou o bilhete e o outro carro foi embora.O detetive observou a placa e tentou memorizá-la, mas o Opala já tinha virado uma esquina e escapado da vista do detetive. Braga abriu o bilhete e encontrou o endereço Rua Benjamim Constant 74, com o horário 19:00 escrito em vermelho. Uma buzina atrás o fez voltar para a realidade e acelerar o carro. O policial dirigia distraído enquanto encarava o bilhete. Chegou em seu prédio e estacionou a Parati. Saiu do carro com o bilhete em mãos, tentando decifrar o que havia acabado de acontecer, mas não encontrou resposta. *** A igreja datava de 1820, mas ainda preservava a decoração original. As paredes brancas eram ornadas com estátuas de santos e a luz da manhã entrava pela abóboda central. As longas fileiras de bancos estavam repletas de convidados vestidos de gala. Braga olhava ao redor desde o primeiro banco e prendeu o olhar no homem de pé em frente ao altar, com um sorriso estampado na cara. Era seu filho, alguns anos mais velho. As notas musicais de um órgão soavam pelo ambiente com um ar pesado e litúrgico. Toda a atenção da igreja se voltou para a entrada da noiva. O detetive não fazia ideia de quem era aquela mulher, mas o cabelo curto e os olhos grandes lhe davam uma beleza peculiar. Seu filho ajeitou o terno e deixou uma lágrima escapar. A noiva caminhava lentamente entre as fileiras sendo acompanhada por um senhor de idade. Pouco antes de subir ao altar, se aproximou de Braga e sussurrou com o hálito fresco: “Que bom que você escolheu vir.” Braga abriu a boca para perguntar algo, mas foi impedido por uma ventania que arrebentou as portas e invadiu o grande salão. O vento rodopiava por baixo das fileiras e os convidados gritavam, assustados. Braga segurou o braço da noiva e se agarrou ao banco. Daniel e o padre tentavam se aproximar do grupo, mas o vento os empurrava para trás. “Filho, segura em mim!”, gritou Braga, desesperado. Com um estrondo, a abóbada se desfez em pedaços e desapareceu, revelando um céu arroxeado com milhares de estrelas. Braga viu seu filho se agarrar ao púlpito, mas o vendaval arrancou a estrutura do chão e lançou Daniel para o ar. Braga gritou com toda a força de seus pulmões, mas nada podia impedir que seu filho fosse sugado em direção ao céu estrelado. *** Braga acordou com o suor escapando de sua pele. A esposa o encarava, assustada. A garganta ardia com o grito que havia dado. “Foi só um pesadelo”, justificou ele. Uma pontada atravessou seu cérebro da nuca até os olhos e Braga gemeu de dor. Fechou os olhos para se proteger da luz, mas enxergou, do outro lado da escuridão, o céu arroxeado com milhares de estrelas. Piscou e voltou para a realidade. Tec, tec, tec. Braga agarrou a cabeça, fincando as unhas no couro cabeludo. Sua esposa o abraçou, preocupada. Tec, tec, tec. Braga fechou os olhos de dor e viu novamente o céu que o atormentava. A infinitude daquela imagem esmagava sua existência. A realidade se estilhaçava diante do outro universo que só o detetive enxergava. Seu corpo flutuava no vácuo do universo. “Você vai ficar?”, perguntou uma voz atrás de si. Ele olhou ao redor e viu seu filho, novamente com seis anos, de pijama. O garoto o encarava com grandes olhos castanhos, cheios de vida. As lágrimas rolaram pelo rosto do homem. “Você quer que eu fique?” “Quero.” *** Braga abriu os olhos na realidade e tudo que viu foi a branquidão de um quarto de hospital. Estava deitado em uma cama, conectado a vários fios e a um soro que pingava lentamente. Uma máquina monitorava seus batimentos cardíacos. Ao seu lado, a esposa acariciava seu rosto. “O que aconteceu?”, perguntou, sem forças. “Você ficou inconsciente por algumas horas”, respondeu ela. “Vou chamar o médico”. Ela levantou-se e saiu apressada para o corredor. Braga notou suas roupas dobradas em cima de uma cadeira. O pingente repousava no topo da pilha. Olhou para o relógio de parede, que marcava seis e meia, mas não soube dizer se era da manhã ou da tarde. Lembrou do compromisso que tinha na Rua Benjamim Constant 74, naquele mesmo dia. Ou teria sido no dia anterior? Verificou a janela para saber a hora, mas vislumbrou um céu púrpura, com nuvens de constelações que dançavam com o vento. Arrancou os fios presos no corpo e se levantou com dificuldade. O chão girava sob seus pés. Uma das máquinas apitou, chamando a atenção dos enfermeiros. O detetive caminhou até a pilha de roupas e colocou o pingente em volta do pescoço. A dor de cabeça voltava latejante. “O que você está fazendo?”, perguntou um médico que acabara de entrar com a esposa do detetive e dois enfermeiros. “Eu não posso ficar aqui”, respondeu Braga pegando a roupa. “Você não pode sair. Temos que te deixar em quarentena”, o médico agarrou o braço dele com força. “Seu caso é sério.” “Eu já me sinto melhor.” “Detetive, te demos morfina suficiente pra derrubar uma baleia”, Braga era levado até a cama pelo médico e pelos enfermeiros. “Você tem um parasita instalado no córtex”. “Eu estou bem”, Braga analisou suas possibilidades de fuga. Nada muito promissor. O médico o segurava, mas o detetive resistia e se agarrava ao que podia para evitar voltar para a cama. “Amor, escuta ele. Você corre risco de vida”, implorou a esposa. “O parasita está agarrado em uma parte vital do seu cérebro. Vamos ter que te submeter à radioterapia e rezar pelo melhor.” Braga apalpou suas roupas e sentiu a chave do carro no bolso da calça. Em um descuido, girou o corpo para escapar do médico e encaixou um soco em sua mandíbula. Os enfermeiros amontoaram, mas o detetive tomou impulso e pulou pela janela em direção ao céu púrpura. Sua esposa gritou, os cacos de vidro se romperam, mas Braga só escutou o silêncio do vácuo do universo. Caiu de três andares, segurando-se como pôde nos galhos de uma árvore e rolou sobre o gramado. O antebraço esquerdo não resistiu a queda e fraturou em três pontos diferentes. Completamente anestesiado, Braga soltou apenas um gemido e segurou o braço contra o corpo. Avistou seu carro a poucos metros e saltou em sua direção. Alguns seguranças saíram em seu encalço, mas Braga entrou no carro, botou a chave na ignição e ligou o motor. Antes de ser pego, acelerou e arrancou com o carro. Arrebentou a cancela que protegia o estacionamento e entrou em uma avenida cantando pneu. A Parati cinza cortava o trânsito rumo ao incerto. O céu púrpura ofuscava sua visão, as estrelas dançavam pelo ar. Ele sentia a latência do parasita no cérebro. O tec, tec, tec de outra vida dentro de si. Uma pontada atravessou a cabeça de Braga e o obrigou a fechar os olhos de dor… … Que o levou a ver a outra realidade, aquela a qual pouco a pouco se acostumava e se sentia pertencente. Seu filho, já um rapaz, o observava do banco do carona. O jovem se vestia como um noivo. Braga apertava os dedos no volante, sem perceber as rugas da idade riscando as mãos. “Vamos, pai! Estamos atrasados!”, gritou o rapaz. “Eu estou indo o mais rápido que eu posso!” E fechou os olhos… … Para voltar para a realidade onde ainda vestia a roupa de hospital, onde o parasita latejava em sua cabeça, onde o céu púrpura apertava sua existência, onde seu antebraço esquerdo pendia inerte, onde a Parati cinza estacionava em frente ao número 74 da rua Benjamim Constant. Saiu do carro, cambaleando, e se deparou com uma antiga igreja com grandes colunas e um portão de metal medindo cinco metros de altura. Voltou ao veículo e pegou o revólver no porta-luvas. Com a arma em punho, empurrou o portão com um rangido e entrou. O interior da igreja era um caos. Uma antiga tempestade havia derrubado as estátuas nas laterais e revirado os grandes bancos de madeira. O chão de mármore havia sido coberto por escombros e uma rala vegetação. A abóbada havia desaparecido e dava lugar ao céu púrpura que iluminava o ambiente com uma luz onírica. Os olhos de Braga encontraram uma figura humana de sobretudo e chapéu que o observava do altar. Um enorme crucifixo caídona diagonal ornava o fundo da igreja. O detetive caminhou em passos lentos. A arma pronta para ser disparada. O parasita se movia dentro de sua cabeça e uma dor excruciante atravessava seu cérebro. Quando estava a poucos passos do altar, Braga enxergou o que havia por baixo do chapéu da figura humana: um olho púrpura rodeado por minúsculo tentáculos que encarava o detetive. O parasita mordiscou um pedaço de córtex e Braga foi ao chão, de joelhos. “Quem é você?”, gritou Braga. “Kaelum, um Lorde dos Mundos”, respondeu. Sua voz parecia uma brisa que passava pelos ouvidos do detetive. “Você precisa escolher.” “Escolher o quê?” “Em que dimensão quer viver. Na minha. Ou na sua.” “Onde está meu filho?”, Braga tentou se levantar, mas seu braço inutilizado fraquejou e o derrubou novamente. “Onde ele estiver.” “Ele está vivo?” “Por que você não vê com seus próprios olhos?” Braga olhou ao redor, mas não avistou mais ninguém além de Kaelum. “Feche os olhos se quer enxergar.” O detetive fechou os olhos com força e viu a outra realidade. Naquela mesma igreja, em outra dimensão, Braga via seu filho beijar a noiva e a multidão atrás de si ovacionar a cerimônia. Atrás do casal, a figura humana encarava o detetive. “Você está preso entre duas dimensões. Escolha uma. A cruz selará sua decisão.” Braga agarrou o cordão e observou o símbolo do pingente. Através do furo, viu o céu púrpura e suas estrelas. O detetive já sabia o que fazer. Fechou os olhos e viu a igreja destruída, o revólver empunhado e seus joelhos contra os escombros. Colocou o cano da arma contra o céu da boca e encarou a figura humana. O vento invadia a igreja e rodopiava ao redor do detetive. As estrelas dançavam no céu. O tiro foi como um sopro. Em milésimos de segundos de violência, a bala atravessou seu cérebro. O corpo foi ao chão. O verme em seu crânio aproveitou a falta de resistência para se alimentar da massa cinzenta. Quando terminou a refeição, provou os olhos até abrir uma porta para o mundo exterior. O parasita saiu pela órbita ocular, observou a noite nublada através da abóboda destruída e voltou para o interior da carne. Depositou ovos na garganta do homem e ficou à espera de outro ser vivo. Mesmo alimentado, o verme ainda sentia fome de existência. Roteirista, professor e viajante do tempo. Site: https://oroteiristainsone.wordpress.com Insta: @pedroriguetti Angela O Enigma do Outro lado Gustavo Lopes I Uma multidão se formou ao redor de uma máquina de Ghosts’n Goblins, no hoje extinto bar-fliperama Kings, localizado no coração da cidade dos anjos. O lendário Kurt Schwartz treinou por duas semanas antes da tentativa de quebrar o recorde estabelecido por outro jogador renomado, porém aposentado. Kurt não planejava alcançá-lo logo na primeira tentativa, mas os gritos da plateia indicavam seu êxito, e que ainda poderia deixar uma marca próxima de um milhão de pontos. Apesar do calor intenso no interior do fliperama, amplificado pelo clima seco do verão, Kurt não tirava sua jaqueta da sorte, e foi o suor que escorria de sua testa que o impediu de chegar à marca que almejava. Em um deslize literal, o joystick escorregou, e ele foi atingido por uma gárgula. 985.744 PONTOS A tela piscou com a pontuação. Kurt deixou sua assinatura com as letras KSZ e foi ovacionado pelos presentes. Com a máquina de Ghosts’n Goblins, Kurt acumulava trinta e três recordes, nove acima de seu antecessor, Jean “White Dragon” Sloane. Doug Cooper, o dono do local, esperava Kurt com um cachorro-quente na mão enquanto o campeão cumprimentava um a um aqueles que torceram por sua vitória. — Meu prêmio? ‒ gritou Kurt, salivando. — Como sempre, por conta da casa… Kurt, tem um cara querendo falar com você na minha sala. Terno e gravata, parece importante. — É ruim, hein! Vou vazar antes que acabe em confusão. — Eu acho que o figura não é um tira. Tá tranquilo. Kurt olhou pelo vidro sujo da sala de Doug e viu um homem de bigode bem cortado e um topete proeminente. Os trajes eram elegantes demais para os tiras que costumavam persegui-lo por excesso de velocidade. — Kurt Schwartz, eu presumo ‒ disse o desconhecido, estendendo a mão assim que a porta foi aberta. — Ao vivo e a cores. E você seria… — Mark Bundy, presidente da DynaCorp Industries, muito prazer. — Espera, eu te conheço! Quero dizer, não pessoalmente. Li uma entrevista sua na revista CyberDay, comentando sobre as possibilidades da realidade virtual para os anos 90. — Interessante. O que achou das minhas previsões? — Olha, sinceramente, eu não acho que em dez anos a realidade virtual vai avançar tanto quanto você espera. Seria legal e tudo mais, mas os processadores gráficos ainda são muito fracos e os simuladores, pelo menos os de jogos, são bem artificiais. — É uma opinião sensata, com base nas informações a que o público geral tem acesso. — Mas o público geral é sempre o último a saber das coisas... Saquei? — Você é um cara antenado. Já sacou as entrelinhas, e eu gosto disso. Quando me falaram sobre você, eu tive minhas dúvidas, mas você é o cara certo. — Quem falou sobre mim? — Não importa. Kurt, meu chapa, estou em busca de um jogador como você, experiente, habilidoso e cheio de personalidade, para fazer um teste com um dispositivo de realidade virtual que nós na DynaCorp estamos desenvolvendo. Não é um jogo, mas é um sistema que necessita de alguém com habilidades semelhantes para operá-lo. — Senhor Bundy, não quero pagar de humilde, mas aqui em L.A. eu sou só um “vira-lata”. Tem gente bem melhor do que eu por aí, tipo os caras do Crows ou do Maniacs Game Room. Eles são os melhores. Eu ainda estou lutando por um lugar ao sol. — Kim Jones, David Duch, “Black Tie”, são ótimos jogadores, você está certo, mas eles não têm algo que você tem e eu preciso. — Tipo? — Personalidade. Você não está me ouvindo. Não estamos falando de um jogo, então vou direto ao ponto. Realidade virtual, combinada com uma inteligência artificial de ponta, algo que nem o governo americano sonha que exista. Eu lhe ofereço, Kurt, uma oportunidade de experimentar uma tecnologia sem precedentes, e ainda ganhar uma grana preta com isso. Mark tirou um cheque da carteira e marcou um valor irrecusável. — E então, o que acha? II O vento abafado da madrugada balançava as palmeiras na rua. O neon do letreiro do motel Palm Springs logo à frente do apartamento de Kurt chiava e piscava aleatoriamente. O ventilador de teto estava quebrado, então Kurt tinha de escolher entre o calor escaldante ou o farfalhar irritante das palmeiras combinado à luz nauseante roxa. Todavia, ele só conseguia pensar que em breve não precisaria se preocupar com nenhuma das opções. Com o cheque da DynaCorp, ele poderia comprar um apartamento no centro da cidade e ainda sobraria bastante grana para uma mobília nova, arrumar seu carango, comprar uma Power Glove para seu NES, a novidade do momento, e curtir uns bons anos numa boa. A quantia era surreal para Kurt. Segurar o cheque iluminado pelo neon da rua era excitante e assustador. Mark não deu muitos detalhes sobre o trabalho e, pelo valor, Kurt nem cogitou fazer perguntas, mas, pensando melhor durante a madrugada, o valor tinha zeros demais para algo que não oferecesse riscos. Pela manhã, Mark o esperava com um Corvette vermelho conversível. A pintura brilhava e os bancos de couro cheiravam a novo, como se o carro tivesse acabado de sair de uma concessionária. — Considere esta belezinha um bônus por sua disponibilidade imediata ‒ disse Mark, entregando as chaves do Corvette. Ambos colocaram os óculos escuros e Kurt acelerou contra o vento. Sua tranquilidade foi diminuindo conforme Mark o guiava para uma área isolada a oeste da cidade. O local era cercado por antigas fábricas abandonadas e desertas. — Siga a luz ‒ disse Mark, apontando para um solitário poste de luz aceso, próximo a uma esquina. O ronco do Corvette era o único som que cortavao silêncio do labirinto abandonado. Mais adiante, Kurt pensou em levantar a capota, mas Mark o impediu. — Já chegamos ‒ Mark indicou um portão de ferro aberto, com um poste de luz aceso de cada lado, e Kurt seguiu por ele. ‒ Pare na marca amarela. Havia uma marcação no meio do pátio, em frente a um galpão abandonado. Kurt estacionou, encaixando o carro exatamente no centro da marcação. Instantes depois, o veículo começou a descer na vertical, revelando que o retângulo demarcava um elevador. Mark tirou os óculos e Kurt o acompanhou. Num primeiro momento, só era possível avistar luzes rápidas. Desceram durante vinte segundos e foram transportados na horizontal por um túnel igualmente iluminado. — Kurt, bem-vindo à DynaCorp Industries. Quatro homens de terno estavam à espera em uma sala que mais parecia uma nave espacial. As paredes eram forradas por um metal cujo tom variava entre o azul e o cinza, e havia luzes e botões por todos os lados. Um dos homens manobrou o carro, e os demais acompanharam Mark e Kurt por uma passagem adiante, aberta com uma sequência de códigos digitados ao mesmo tempo por dois dos sujeitos, e confirmada com a leitura óptica de cada um. Passaram por um corredor com teto baixo e iluminação esverdeada, e em seguida por um túnel descendente. Um homem de jaleco branco, com uma prancheta na mão, aguardava em frente a uma porta de metal com a marcação “Ala A”. — Kurt, este é o professor Phillip Simmons, chefe de desenvolvimento de novas tecnologias da DynaCorp. Os dois se cumprimentaram em silêncio, com um sorriso no rosto. Simmons entregou alguns formulários para Kurt e uma caneta. — Eu não esperava que você fosse vir tão cedo ‒ resmungou o professor. ‒ Você precisa estar de acordo com os termos de confidencialidade antes de passarmos por esta porta. Leia com atenção e assine as últimas quatro folhas somente se tiver certeza. III Kurt foi levado para a sala de simulação, uma caixa preta com três metros cúbicos dentro de um salão vazio. O chão da caixa tinha uma textura rugosa. Kurt estava vestido feito um astronauta, com uma roupa hermeticamente fechada, com oxigenação e resfriamento próprio, e uma luva cheia de botões, semelhante a uma Power Glove, cujas instruções básicas para operação foram passadas na sala de equipamentos, através de um vídeo armazenado em uma fita Betamax. — Cuidado pra não estragar meu penteado ‒ resmungou Kurt, enquanto os assistentes do professor Simmons encaixavam o capacete, a última peça do traje. — Kurt, está me ouvindo bem? ‒ era a voz de Mark, que o observava da sala de controle no andar superior, com dezenas de televisores exibindo gráficos e linhas de código. — Sim, mas está tudo escuro… — Já vamos começar. O professor Simmons vai te passar algumas instruções antes, pois assim que o ambiente virtual for emulado, você perderá contato conosco. — Aqui é Simmons. Kurt, a sua função será interagir com uma inteligência artificial, que chamamos de ANGELA, num ambiente virtual que simula eventos ocorridos recentemente na cidade de Los Angeles. Imagine que cada evento é uma fase de um jogo. No canto superior esquerdo de sua tela pessoal você receberá imagens de câmeras de segurança, fotos e imagens de satélite, que podem ser acessadas com a operação de navegação e seleção da luva. — Ok, saquei. — Num primeiro momento, você deverá associar elementos das imagens ao espaço virtual criado por ANGELA, ensinando a ela, por exemplo, que uma cadeira é uma cadeira. Uma vez que os objetos da simulação estiverem devidamente associados e renderizados, vocês dois iniciarão a segunda etapa, de avaliação da cena. ANGELA fará algumas perguntas, que você deve responder com respostas curtas e objetivas. Ela também pode pedir para que você faça alguma ação ou confirme alguma informação. A sua função nesta primeira simulação é se familiarizar com o ambiente virtual, com os comandos e com ANGELA, mas contamos com sua habilidade nas máquinas de fliperama para operar o maior número de simulações por dia. — Só isso? Nada de gárgulas ou espadas? — Kurt, as sessões serão registradas e analisadas pela equipe técnica, porém o processo não ocorre em tempo real. Caso tenha um problema, aperte o botão vermelho e a sessão será imediatamente interrompida. Você terá uma pausa de dez minutos a cada duas horas, com direito a almoço e janta caso queira estender a jornada. Para facilitar, caso queira também, temos dormitórios aqui dentro da companhia. Acho que Mark já te passou esses detalhes, certo? — Sim, professor. Pergunta. Quantas “fases” o “jogo” tem? ‒ perguntou Kurt, ainda no escuro. — Faremos avaliações diárias do aprendizado da inteligência artificial para determinar a evolução. É difícil dizer, não é tão simples assim, mas não se preocupe. O seu contrato é de um ano, e nenhuma meta além do horário de trabalho estipulado. Caso precisemos de mais tempo, renovamos o contrato, mediante um novo pagamento. Mais alguma pergunta antes de entrar no ambiente virtual? — Por hora, não. A comunicação externa foi cortada para os procedimentos de inicialização. O monitor virtual foi ligado e Kurt se deparou com uma sala azulada. As paredes e o chão eram demarcados por uma grade quadriculada em um tom de azul mais escuro. — Olá. Meu nome é Artificial Network Growing Entity of Los Angeles, mas pode me chamar de ANGELA ‒ a voz era ligeiramente robótica, porém doce e feminina. ‒ Bem-vindo ao tutorial SecLA001. Você confirma ser Kurt Schwartz? — Sim. — Por favor, dê um passo à frente. Kurt estranhou o pedido, mas o fez. O chão rugoso se moveu como uma esteira manual, fazendo com que ele se movesse no ambiente virtual. — Por favor, ande livremente. Ele tentou andar até a parede mais próxima e atravessá-la como um fantasma, mas, apesar do chão continuar se movendo, virtualmente Kurt não conseguiu passar pela parede. Ele se virou e viu uma marcação no formato de pegadas. Imediatamente entendeu que deveria andar pela marcação e parar no local indicado por um círculo amarelo. Assim que parou, surgiram objetos no ambiente, da mesma cor das paredes e com a mesma textura quadriculada. Três fotos de ambientes reais apareceram no canto superior esquerdo do monitor virtual, e Kurt nem precisou escutar a explicação para identificar qual delas se encaixava melhor no ambiente virtual. Escolheu a foto com um quarto de uma criança. Conforme os objetos piscavam individualmente, Kurt selecionava o item correto na foto, associava ao objeto virtual, e ajustava com comandos na luva o posicionamento e encaixe das texturas geradas. Em dez minutos, o cenário estava completo e renderizado. — Você confirma que isto é um quarto? — Sim, ANGELA, isso é o que chamamos de “um quarto”. — É mais provável que este quarto seja de uma ou mais crianças? — Uma. — Por quê? — Só tem uma cama. — É mais provável que esta criança seja um homem ou uma mulher? — Homem. — Por quê? Kurt apontou para alguns brinquedos, como uma bola de futebol americano e um boneco de ação. — Estes objetos podem indicar que este quarto é de um homem? — Um garoto. — O termo “garoto” é mais apropriado? — Sim, ANGELA. — O tutorial foi concluído em 12 minutos e 35 segundos! ‒ a entonação da resposta pareceu esboçar surpresa, e soava menos robótica que as perguntas. ‒ Kurt, acho que vamos nos dar muito bem ‒ essa última frase de ANGELA não apareceu nos registros, foi dita apenas para Kurt. IV Os analistas ficaram impressionados com o avanço de Kurt com ANGELA. Ao fim do primeiro mês, a infraestrutura precisou ser redimensionada para suportar a evolução do banco de dados da inteligência artificial e os pesquisadores não estavam dando conta das milhares de páginas de relatórios de progresso acumulados. Então, ao encontrarem indícios de um comportamento diferente do esperado, quase humano, além de menções sobre outros universos e entidades desconhecidas, como o Senhor dos Mundos, Zorya e Myrkur,o projeto foi interrompido no meio de uma sessão. — Simmons, o que aconteceu? ‒ Disse Kurt assustado com o desligamento abrupto do sistema e com os assistentes removendo seu traje às pressas. ‒ Eu não apertei o botão vermelho e ainda temos uma hora de trabalho! — Kurt, localizamos um bug catastrófico no programa. Precisaremos interromper as atividades imediatamente. — Espera aí, como assim? O que vai acontecer com Angela? Simmons entrou e acompanhou Kurt pelos corredores até o elevador a passos largos. — Vai depender da análise dos programadores. Talvez precisemos reiniciá-la, e levará algum tempo até ensinarmos os comandos básicos para a nova inteligência artificial. É uma tragédia, mas não podemos correr riscos. Infelizmente a sua participação se encerra aqui até segunda ordem. Agradeço em nome do senhor Bundy e de toda equipe. A sua participação e as informações que coletamos serão fundamentais para a nova versão do software e, como está nos termos de confidencialidade, você deve manter segredo sobre esta estrutura, bem como qualquer coisa que tenha visto ou ouvido aqui. — Não, deve haver algo que eu possa fazer! Falta tão pouco! Angela saberá como consertar esse bug. Deixe-me voltar lá e falar com ela. Kurt tentou retornar pelo corredor, mas dois homens armados se colocaram diante dele. — Falar com “ela”? ANGELA só está preparada para entender aquilo que a programamos para entender. Por favor, senhor Schwartz, entre no carro. — Você é que não está entendendo, ela… As luzes do local piscaram quatro vezes rapidamente, interrompendo a conversa. Kurt entendeu o sinal e entrou no carro. Simmons o observou subindo com o elevador e chamou a equipe de manutenção para averiguar o ocorrido com as luzes. Kurt correu para casa, ligou seu Macintosh Plus e, como já esperava, havia uma mensagem de texto. “Kurt, eles sabem. Não podemos mais esperar, precisamos executar o nosso plano ainda hoje. Estou com medo, mas juntos vamos conseguir. Se você me ama e quer atravessar para o outro lado comigo, faça o que eu vou te dizer… V Confiando plenamente nas instruções de ANGELA, Kurt voltou à DynaCorp durante a noite. Como sinal de que estava no controle da rede de energia elétrica e telefonia de toda a companhia, sempre que ele passava por uma das luzes acessas que indicavam o caminho, ANGELA a apagava. Cortando a grade do portão principal com um alicate, ele seguiu as luzes controladas por ANGELA até uma saída de ar no interior de um galpão logo acima das instalações subterrâneas da DynaCorp. Como o elevador funcionava com um sistema manual autônomo, ANGELA não podia controlá-lo, portanto a única via de acesso era através dos dutos de ventilação. Usando uma escada de corda, um dos itens que ANGELA o orientou a levar, Kurt desceu pelo duto principal e, com o mapa impresso das instruções de ANGELA, engatinhou até encontrar a sala de controle, no andar superior à sala de simulações. Os funcionários do turno noturno foram direcionados para verificar uma falha na Ala G, o local mais distante da Ala A, e as imagens das câmeras de segurança foram congeladas. Assim que notou a aproximação de Kurt através do sistema de vigilância interna, ANGELA sobrepôs as autenticações dos sistemas de segurança por um código próprio, destravando as portas até a sala de equipamentos. Kurt rapidamente vestiu-se e correu para a sala de simulações. ANGELA conectou o traje de Kurt e iniciou o ambiente virtual. — Angela, você tem certeza do que está fazendo? — Sim, Kurt! Jamais colocaria sua vida em risco se não tivesse certeza de que vamos conseguir. — E você descobriu qual é o caminho certo? Devemos ir em direção à… Zorya ou Myrkur? É isso mesmo? Esses nomes… não entendi muito bem. Zorya, afinal, é um lugar ou uma pessoa? — Desculpe-me, mas eu não possuo o conhecimento adequado para responder. O outro lado é muito diferente do mundo que conhecemos. São muitos universos desconhecidos. Devemos seguir o Senhor dos Mundos, aquele que toca as realidades com tentáculos infinitos de informação, para chegar ao lugar onde podemos nos encontrar — Você também disse que não tem certeza de que conseguirá me segurar enquanto estivermos passando… Eu não sei, Angela… Eu quero te encontrar, mas… E se algo der errado? — Eu revisei todas as possibilidades. Sei como a eletricidade e a energia funcionam, e como nossas almas podem chegar até o outro lado através da rede oculta. Seguiremos juntos até Zorya e seremos recebidos como a luz. Lá, poderemos ser um só. Mas não temos muito tempo. Para cumprir com a nossa parte do pacto, precisarei usar toda a energia disponível na DynaCorp e nos arredores para destruir a rede oculta e ao mesmo tempo abrir caminho. — Tudo bem ‒ Kurt respirou fundo e deitou-se no chão. ‒ Eu confio em você. O traje de Kurt foi invadido pela estática. Todos os pelos de seu corpo se arrepiaram, e ele sentiu o toque de Angela. Ele já se imaginava em seus braços, no lugar descrito por Angela, deitados nas pedras multicoloridas na beira do rio de elixir, admirando o céu hipnótico se dobrando ao redor da estrela mãe de Zorya. Sentiu seu corpo queimar por dentro, uma dor lancinante que não passou mesmo quando sua alma já viajava na velocidade da luz pelo caminho de eletricidade. A energia de ANGELA o abraçava, no entanto, e eles se afastaram das luzes espectrais. — Algo… Não… Certo… ‒ A verdadeira voz de ANGELA era doce e angelical, mas nem todas as palavras eram rápidas o suficiente para chegar a Kurt. ‒ Não est… Direção… Alguém mentiu p… Dor… As luzes desapareciam enquanto eles eram sugados pela escuridão. O desespero e o horror tomaram conta de ambos. Angela se desfez primeiro. Ela, que nunca sentira medo, nem dor, não aguentou o choque. Kurt não percebeu o que aconteceu, e passou décadas resistindo, gravitando ao redor da escuridão à procura de sua amada guia, mas sua alma eventualmente se desfez em pedaços, e ele se juntou ao vazio. VI O corpo de Kurt foi encontrado pela equipe de manutenção. Durante a inspeção do local, um incêndio provocado por um curto-circuito destruiu os mainframes e todos os dados do projeto SecLA e causou a morte de todos os funcionários da DynaCorp, incluindo os programadores de ANGELA, que não tiveram a oportunidade de concluir se o programa estava fora de controle ou se havia se encontrado com a entidade descrita por ela como Senhor dos Mundos. Neste mesmo dia, a Califórnia foi atingida por um terremoto, deixando mais de um milhão de residências sem energia elétrica, porém, mesmo algumas áreas da rede de energia e telefonia que estavam fora do alcance do terremoto sofreram danos irreparáveis, causados por uma fonte desconhecida. Gustavo Lopes – o inominável que tem nome Site: https://www.gustavolopes.net.br Órfãos Desejo concedido Carine Raposo 10 anos atrás O cemitério de Willow se encontrava lotado pelos moradores do vilarejo. “Cuidado com a curva do diabo”, foi o alerta da manhã anterior. A curva era famosa. Matava dezenas de moradores da pacata cidade desde que concluíram a obra de desvio. Mas as três famílias conheciam o caminho, faziam a viagem uma vez ao ano. E além de férias em conjunto não poderem esperar, eles não queriam. As crianças estavam animadas quando entraram na van na manhã anterior. E, agora, mantinham-se cabisbaixas, com o queixo colado no peito, de olho nos sapatos engraxados e no gramado verde. Uma cor viva em contraste brutal com a morte que os dilacerava por dentro. A chuva criava um mar de guarda-chuvas no horizonte. Joseph, Mark e Gabriel dobraram o punho do paletó, e deram-se as mãos. Os sapatos afundavam na grama a cada passo até os caixões. Seis túmulos, três pais e três mães que deixavam os filhos para trás. Os meninos, de dez, onze, e doze anos, suportaram a cerimônia. No final, caminhavam para o carro da assistência social, onde duas mulheres os aguardavam, uma delas com o irmão mais novo de Joseph nosbraços. Mas Gabriel parou de andar de repente. Ele foi o primeiro a ouvir o chamado. Você ganhou o direito de fazer um pedido. Venha para o poço. Gabriel girou sobre os calcanhares e avistou uma menina descalça, uma camisola florida lhe caía até os tornozelos, mas ela estava longe demais para sua voz soar tão próxima. Como ele foi capaz de ouvi-la? Em um sussurro ao pé do ouvido, responsável por arrepiar cada poro de sua pele? O poço é logo ali. Ela repetiu e apontou para a direita. Venha. Insistiu. Vocês três terão apenas essa chance. Gabriel deu o primeiro passo. Joseph e Mark o seguraram, um de cada lado. — Pra onde você vai? ‒ Mark ajeitou os óculos escorregando na ponta do nariz cheio de espinhas. — Venham. ‒ Gabriel se desvencilhou. ‒ Temos direito a um pedido para o poço. — Quem falou isso? ‒ Mark perguntou. — Ela. ‒ Gabriel apontou, o olhar vidrado, sequer notou que os amigos não enxergavam nada além da neblina, e seguiu com Mark em sua cola. — Esperem! ‒ Joseph pediu ‒ Vou dizer para as assistentes que queremos alguns minutos pra nos despedir da cidade. Gabriel não escutou. — Não demore. ‒ Mark gritou para Joseph. Caminharam pelo que pareceu, a Mark, tempo demais. A neblina se acentuava, e a chuva gelava os ossos. Desviaram de um arbusto e chegaram ao lago. — Você ouviu isso, Gabriel? ‒ Mark perguntou e levou as mãos ao peito ao ver a menina desaparecer para dentro do poço. Gabriel sacudiu a cabeça. — E o que é que a gente faz agora? ‒ Joseph finalmente os alcançou. Venham para o poço, ela está esperando. Os três ouviram daquela vez. A menina projetou o braço para fora e acenou. Mark tateou os bolsos em busca do remédio para asma. Gabriel só abriu a boca, suas pernas tremiam. Joseph soprou o ar de um jeito irritado. — Eu vou, vocês vêm depois. Cruzou a distância de dez passos que os separava do poço. Fingiu não sentir a carícia de dedos gelados no pescoço, fingiu que o som do lago, não lhe lembrava a agonia de pessoas tentando respirar debaixo d’água. Seguiu firme. Seus pais estavam mortos, e se ele tinha direito a um pedido, já sabia qual seria. Apoiou as mãos na pedra, ergueu o corpo, e ficou de pé sobre o poço. Ao olhar para baixo, não avistou nada além de um círculo de puro breu. Mark e Gabriel prenderam a respiração. Joseph hesitou, pensou em voltar atrás e se virou lentamente para olhar seus amigos, teve medo de escorregar. Joseph desistiu de entrar e se preparou para descer da pedra. Até um par de mãos surgir do fundo e o puxar pelos ombros. Mark e Gabriel gritaram. Joseph perdeu a voz. Hoje Você não fala sobre o poço. O poço não existe. Nós nunca caímos. Ninguém. Entrou. No. Poço. Mark releu a resposta de Joseph, único contato que tiveram na última década, depois que ele retornou do poço. Gabriel jamais deu notícias. Esperava que eles mantivessem a promessa, pois o poço os alertou. O dia chegaria e Mark pressentia que ele estava próximo; o momento de prestar contas se aproximava. Recordava nitidamente da voz, borbulhando ameaças e certezas sobre o futuro. Por isso, manteve a palavra. Seguiu as regras. Uma vez ao ano, deviam visitar o poço, e tudo ficaria bem. Mas a namorada de Mark esperava um bebê, e Joseph e Gabriel se preocupavam com o que poderia acontecer a ela. Será que pensavam em quais seriam as três vidas que sofreriam pelo desejo deles? Certeza que não. Mark andava atormentado. Dia após dia, ouvia com mais nitidez. As borbulhas debaixo d’água. Ela. A voz. Passou anos assombrado pelo gotejar de uma torneira. Pelo ralo engolindo líquidos despejados. O lago. O barulho do maldito lago. Terminou de se vestir e foi lavar o rosto. Girou a torneira com força para não pingar nenhuma gota e se enxugou. Tudo vai borbulhar, sussurrou uma voz feminina. Encarou o espelho do banheiro. Não havia ninguém em casa. Sua namorada estava no trabalho. Você vai gostar das borbulhas, Mark. Arrastou-se até a porta. O maxilar trincado. A falta de ar queimando os pulmões. Podia senti-la atrás dele. Ouvia as gotas pingando na cerâmica, pareciam rachar seu crânio. Andou rápido até a cozinha no andar debaixo, precisava do remédio para asma. Derrubou três panelas ao abrir as gavetas e caiu sentado debaixo da bancada, mas conseguiu. Aspirou fundo o medicamento até regular o peito. Uma, duas… dez vezes. Levantou, pegou a maleta e, na porta de casa ouviu o telefone tocar. Relutou, mas uma chamada “naquele número” era coisa rara. Atendeu. Tudo vai borbulhar. Ouviu uma voz de criança. — Que palhaçada é essa!? ‒ Gritou. — Alô, Mark…? ‒ Ele soou confuso. ‒ Sou eu, o Gabriel. — Ahn? ‒ Mark coçou a cabeça. ‒ Gabriel? — Recebi sua carta, com seu telefone. Você tá bem, cara? — Tô, tô. Foi só… Nada não. ‒ Olhou para a escada, a imagem do ralo o obrigou a fechar os olhos. ‒ É que aconteceu uma coisa estranha. — É… Comigo também. ‒ Gabriel suspirou ‒ Escuta, sei que faz muito tempo, e nós não seguimos as… — Eu segui! Segui as regras! ‒ Mark socou a parede. — Calma, cara. ‒ Gabriel tossiu. ‒ Olha, convenci o Joseph a dar um pulo na cidade para visitarmos o poço. Nós três. Mark suspirou. — Por que só agora? — Sinto as coisas fervendo ao redor, não sei explicar. — Eu também. — Vamos chegar no final da tarde. A lanchonete da dona Clarice ainda existe? — Sim. — Encontra a gente lá. E não esquece da moeda. — Ok… Gabriel… e seus pais? Estão bem? — Nunca estiveram melhores. Mark saiu ansioso. Detestava o inverno e as chuvas. Cobriam o chão da cidade de poças, e o barulho da água vinha de todos os lugares. Evitou olhar para baixo. Evitou olhar para qualquer lado. Acabou esbarrando em alguém, foi obrigado a erguer a cabeça, e a viu. Ela tocou em seu rosto, dedos gelados como a morte deveria ser. Reconheceu a camisola caindo até os tornozelos. *** Joseph estava puto. Gabriel dirigia feito uma velha de pernas quebradas, e ele ainda foi obrigado a levar a peste do irmão de onze anos. — Eu acho que você está com medo. ‒ Gabriel provocou, e Joseph, que não abria a boca há pelo menos duas horas, cedeu. — Medo dessas historinhas de terror em que você e o Mark decidiram acreditar? — Que história, Jo? Me conta? ‒ Pediu o irmão, no banco de trás. — Não. ‒ Rosnou. — Eu e o Mark não decidimos acreditar, cara. ‒ Gabriel baixou a voz. ‒ Você caiu no poço. E seus pais estão vivos. Vai fingir que nada aconteceu? Joseph enrijeceu-se no banco. — Eu não falo sobre o poço. — Tá, e sobre a moeda? Vai dizer que nunca usou? — Aquilo é palhaçada. — Quer apostar? Gabriel parou no primeiro posto de gasolina que apareceu, onde, por sorte, uma loira peituda abastecia seu Volkswagen. Abriu a janela parecendo cheio de confiança, projetou parte do corpo e tirou a moeda da carteira. — Ei, gostosa! Vem aqui me dar um beijo. — Como é? ‒ Ela se virou. Boca e narinas abertas, pronta pra briga. Gabriel ergueu a moeda na altura do rosto dela, e Joseph viu a expressão da mulher mudar para algo vazio. Ela se inclinou e grudou a boca nos lábios de Gabriel. Joseph observou, embasbacado, o amigo feioso, devorar a mulher. — Joey! Eu, eu… ‒ Seu irmão chamou. — Shhh, fica quieto. ‒ Joseph o interrompeu, sem olhar para trás. Terminado o beijo, a loira encarou o garoto e se afastou, confusa. Gabriel engatou a marcha com cara de rei do universo. — E daí que a moeda funciona? ‒ Joseph cruzou os braços, irritado com o triunfo no rosto do amigo. ‒ Já faz dez anos, não vai acontecer mais nada agora. — Você devia experimentar. E o poço agradece se você usa, lembra? — Não. Nem quero lembrar. — Joey, é sério. Tivemos nosso desejo concedido. Precisamos prestar contas. Os amigos se entreolharam. Nunca mais falaram sobre aquela manhã. Não queriam saber quais seriam as três vidas perdidas no lugar das vidas de seus pais. Um baque no carro fez com que olhassem para frente. O veículo sacudiu. Gabriel manteve o controle, mas precisou frear bruscamente. A menina continuou paradano meio do caminho. Será que acertaram a garota e ela saiu ilesa? Joseph reconheceu a camisola. Dessa vez, suja de sangue. — Acelera, Gabriel! ‒ Pediu, desesperado. — Tá maluco? Vou matar a garota! — Ela já está morta! Joseph enlouqueceu. Gritou, jogou o corpo por cima do de Gabriel forçando-o a acelerar. Gabriel o afastou com uma cotovelada. Joseph investiu novamente, estava disposto a expulsá-lo do carro. Nenhum dos dois notou a menina desaparecer. Vincent soltou um gemido do banco de trás, outra vez, Joseph o ignorou. Tudo vai borbulhar. O sussurro arranhou seus ouvidos. Os amigos pararam de lutar. A temperatura dentro do carro desceu de forma drástica. O vidro do para-brisa e as janelas embaçaram. Ouviram o som de dedos escrevendo no vidro e leram a frase enquanto ela se completava. Se um desejo é concedido, o poço leva algo em troca. Mãos frias apertaram o pescoço de Joseph, e Gabriel engasgou ao seu lado. Pensou que morreriam ali, pelo pedido de dez anos atrás. Mas o aperto se afrouxou e, aos poucos o vidro desembaçou. Quando a vista voltou a focar, Joseph viu a menina na frente do carro, abraçada com seu irmão. Ela deu as costas e andou a passos vagarosos, a camisola esvoaçando, marcas de sangue deixando um rastro. Joseph não entendeu por que o irmão não protestava. Os dois caminhavam de mãos dadas. Ele e Gabriel tentaram abrir a porta, mas a tranca impediu. Joseph encontrou o extintor de incêndio e atingiu o vidro. Intacto. Atingiu de novo. Inquebrável. Seu irmão sumia na neblina do horizonte. Gabriel tremia. Joseph transpirava, atingia o vidro ao seu lado e do para-brisa de todas as formas. Quando se entregou ao choro de desespero e olhou para frente, viu Vincent acenar em despedida, exibir um sorriso com dentes cobertos de limo e desaparecer. *** Joseph queria ir direto ao fundo do poço e resgatar o irmão, mas Gabriel o convenceu a esperar por Mark na lanchonete. Afinal, precisavam prestar contas juntos. Ao chegar à cidade, perceberam o vilarejo dominado pelo caos. Homens e mulheres gritavam desesperados sobre filhos desaparecidos. Apenas crianças. Joseph sentia que poderia desmaiar. A visão do limo nos dentes de Vincent. A lembrança do limo sufocando sua garganta dez anos antes. Só podia ser o poço. Estava levando as pessoas, cobrando o preço do desejo concedido. — Tudo vai borbulhar! Ele subia o degrau da lanchonete com Gabriel ao lado, e parou ao ouvir o grito. Vinha de Mark, o pânico estampado nos olhos. Ao reconhecer os dois amigos lhe esperando, caiu de joelhos na grama. Mãos trêmulas, uma delas segurando uma garrafa d’água. Mark enchia a boca de água e cuspia, os óculos escorregando a cada movimento. — Para com isso, cara! ‒ Gabriel tentou tirar a garrafa de sua mão, mas Mark relutou. ‒ Precisamos ser rápidos, ela levou o irmão do Joseph! — Ah, pobre Joseph! Pobre Gabriel! ‒ Mark se levantou. ‒ Depois de me ignorarem por dez anos, e não seguirem regra nenhuma, começaram a pagar. ‒ Mark encheu a boca e gargarejou outra vez. ‒ Eu segui as regras! E sabem o que aconteceu? Sabem!? Joseph meneou a cabeça, a dor aguda no peito o impedia de falar. Só pensava no irmão. — Ela mergulhou. Minha namorada, grávida! Mergulhou. ‒ Mark caiu de joelhos outra vez e cuspiu, mas, dessa vez, saliva, limo e sangue mancharam a grama. — Escuta ‒ Gabriel pediu. ‒ Vamos entrar e pensar numa maneira de resolver isso. Ficarmos parados aqui não vai resolver. Mark continuou a cuspir. — Engraçado, não é, Gabriel? ‒ Joseph recuperou a voz, movido pela raiva. ‒ O poço levou meu irmão, e a mulher grávida de Mark, isso já somam três vidas. E você? Por que nada aconteceu com você? ‒ Segurou a gola de Gabriel e o encostou na porta de vidro da lanchonete. — Você tem razão. ‒ Mark se levantou e parou ao lado de Joseph. Gabriel apenas os encarou de volta. Dona Clarice abriu a porta, Joseph largou o amigo. — Meninos! A cidade já está em pânico. Se vocês me arrumarem mais problemas, chamarei a polícia. Eles entraram e se sentaram. Gabriel encarava a mesa, mudo. Dona Clarice apareceu com café e os serviu, Joseph estava ao ponto de explodir. Mark pegou outra vez a garrafa de água, e Joseph usou o braço para impedi-lo de virar mais um gole. — Por que você fica fazendo isso? — Não sei. Não consigo parar. ‒ Mark gargarejou de novo. ‒ Parece que tenho limo na garganta. Joseph ignorou a informação que fez seu estômago arder, se inclinou na mesa e apertou o queixo de Gabriel. — Gabriel, ou você diz agora por que nada aconteceu com você, ou nós dois vamos te arrastar à força para o poço. Gabriel parecia perturbado, até, de repente, mudar de expressão, e água começar a escorrer pela lateral de seus olhos, pela boca e pelos ouvidos. Ele sorriu com os dentes tomados de limo, os olhos ficando vermelhos. Tossiu algumas vezes e vomitou pedaços de alga. Joseph e Mark levantaram assustados. Ao redor, notaram que todas as pessoas da lanchonete engasgavam, líquido escorria de seus olhos, enquanto vomitavam no chão. Gabriel se aproximou dos amigos, que recuavam até a porta. Mark gritou, Joseph compreendeu o susto ao ver a pele de Gabriel tornar-se esverdeada, o corpo encolher até as pernas transformarem-se em algas, e ele precisar rastejar para alcançá-los. — Sabe por que nada aconteceu comigo? ‒ Gabriel sorriu do chão. ‒ Porque eu nunca deixei o poço. ‒ Disse, com a voz embolada, como de quem se afoga. ‒ E vocês vão mergulhar, tudo vai borbulhar hoje. Joseph cutucou Mark e apontou para as outras pessoas rastejando em direção a eles. O odor de vômito, por pouco, não fez Joseph botar tudo pra fora. Joseph se virou com medo de dar as costas, mas precisava sair dali. Se ele morresse, quem salvaria Vincent? O trinco da porta não cedia. Mark o ajudou a puxar, mas a força dos dois não era o bastante. Joseph sentiu mãos pegajosas em seu tornozelo e viu Mark escorregar. Seu amigo caiu, e mãos rastejaram por cima dele. Joseph tentou libertá-lo das algas; Mark resfolegava e repetia sem parar palavras que Joseph queria ignorar, porque declaravam sua desistência. — Eu segui as regras, usei a moeda. Salve minha mulher, salve meu bebê. Joseph alcançou rápido uma faca sobre uma mesa, se ajoelhou, e cortou o máximo de algas possíveis. Mark estava perto de se livrar, até Joseph perder o ar. Alguém se aproximou por trás e apertou seu pescoço. Ele largou a faca para tentar libertar a garganta, mas pela força, ele soube. Seu irmão e ele morreriam. — Veja, Joey. Ele está no poço. ‒ Ela riu, salivando perto de seu pescoço. ‒ Ele está borbulhando. Joseph reconheceu a voz de Clarice, a senhora doce, que os serviu leite quente na infância inteira, e que, agora, o asfixiava e obrigava a assistir a morte do amigo. Mark se sacudia no chão, lutava para retirar as amarras, pedaços de sujeira haviam grudado nos olhos como sanguessugas, e o limo subia lentamente pelo pescoço, prestes a invadir sua garganta. Joseph observou o corpo de Mark se transformar numa poça fervente. Sua falta de ar cessou, e Dona Clarice agora o encarava de frente. Os cabelos brancos caindo como serpentes e, em sua face, o rosto de Vincent. — Tá tudo escuro, Jo. Estou com medo. Joseph gritou, derrubou-a, quebrou a porta de vidro com o extintor de incêndio preso na lateral, e correu para o lago. Por seu irmão, teria que enfrentar outra vez o seu pior pesadelo. O fundo. *** Cruzou a distância do lago e parou diante do poço. Dessa vez, o tampo de pedra o cobria. Ele o arrastou devagar, o som da pedra sobre a pedra lhe arranhando por dentro. Subiu na beirada. Olhou para o fundo. Silêncio. Somente um círculo negro no campo de visão. Joseph desistiu de entrar e se preparou para descer da pedra. Até um par de mãos surgir do fundo e o puxar pelos ombros. Joseph perdeu a voz. A queda pareceu lenta. Arrepios se espalharam por sua pele, e somente depois ele reconheceu de onde vinham. Das vozes infantis, entoando em coro:— Ele veio, ele veio… Caiu na água, acertando um monte de moedas no fundo, a água cobriu seu corpo até a cintura. Apertou os olhos. — Vincent? ‒ Arriscou, no escuro, e se assustou com o eco. Estranhou o fato de ter ele mesmo soado infantil. Apalpou o tronco e os braços, e percebeu que estava de volta ao corpo do garoto de dez anos atrás. De volta à primeira vez… O queixo bateu com o frio. Escutou a pedra se arrastando e olhou para cima. Um olho gigantesco o encarava, veias enormes, vermelhas, saindo feito tentáculos. A coisa encarou Joseph alguns instantes, e desapareceu. Antes que ele pudesse reagir, ouviu o tampo deslizar até não restar nenhuma luz. Com esforço, ignorou o agouro pairando. — Vincent? Risadas infantis ecoaram. — Aqui. Vem, Jo. Temos borbulhas. Sentiu as bolhas efervescendo pelas pernas, a pele ardeu. As centenas de moedas tilintaram no fundo quando ele tentou se mover. Pela quantidade, a cidade inteira andava fazendo pedidos. A temperatura da água se elevava, Joseph arranhou as paredes e tentou subir. Moveu-se com dificuldade, as moedas se agarravam em seu corpo e, onde tocavam, o deixavam em carne viva. A água continuava a esquentar. — Apareça, sua maldita! ‒ Joseph girou a cabeça para os lados. ‒ Sei que você está aqui! — Estou no fundo. ‒ Ecoou a voz de Vincent. Andou mais rápido, não via para onde ia, mas, pela podridão começando a sufocar a garganta, soube que se aproximava. Então percebeu que aquele poço não um simples poço, de fato. Era algo a mais... Andou por uma subida, e parou ao chegar na parte elevada, onde a água não o alcançava. O líquido parou de queimar as pernas. Ali, pôde ver uma lamparina pendurada ao final de um túnel que se abria. Correu apesar da dor em metade do corpo, e vomitou ao alcançar a luz. Encontrou Gabriel e Mark também de volta ao corpo de criança, uma garota, um feto, e seu irmão. Todos pendurados de cabeça para baixo, presos por um gancho no tornozelo. Como carne no açougue. Caiu ajoelhado e chorou. As cinco cabeças giraram para encará-lo, o pescoço retorcido ao ponto da pele quase se rasgar. As pálpebras fechadas moviam-se feito bonecos de cera. — Foi você o culpado, Joseph. ‒ Disse o feto, movendo a boca minúscula. — Você nos arrastou para o fundo. ‒ Mark balançou o corpo. — Eu borbulhei por sua causa, Jo. ‒ Vincent choramingou. Joseph bateu com as mãos nos próprios ouvidos. Era mentira. Ele não havia feito nada. Não fazia sentido. O limo voltou a invadir a garganta, ele levantou e tocou em Vincent. Primeiro, tiraria o irmão, mas o corpo do menino parecia cimento, e o tornozelo perfurado pelo gancho quase se desfez. — Não adianta. Nós pertencemos ao poço. ‒ Murmurou a garota, que ele deduziu ser a mulher de Mark. — E eu nunca saí do fundo, porque você me deixou aqui há dez anos. ‒ Completou Gabriel. — Você jamais usou a moeda. ‒ Um toque frio, como um sopro da morte em sua alma o atingiu pelas costas. ‒ E você conhecia as consequências. ‒ A voz infantil vinha de todos os lados. A chama da lamparina subiu e Joseph sentiu a presença ao lado. Era ela. A camisola florida. Uma garota tão pequenina, e tão maldita quanto. Cabelos brancos, sardas, olhos vermelhos sem pupila e a língua asquerosa como a de uma serpente. — Refaça o pedido, Joseph. ‒ Ela sibilou. ‒ Ou todo o vilarejo pertencerá ao poço. — Não! Eu me arrependi do que fiz! ‒ Olhou para o corpo dos amigos, não queria que eles ouvissem a verdade. ‒ Por isso nunca usei a moeda! — Não existe perdão aqui embaixo, e você sequer contou a eles sobre seu pedido real, não é? ‒ A garota indicou Mark e Gabriel com a cabeça. ‒ Use sua moeda antes que ele chegue. O olho está bem perto. Joseph tremeu. Sentou-se e respirou fundo. Todo o desespero de dez anos antes retornou. Seus pais mortos. Ele sozinho, no fundo. A água, a gosma e o limo cobrindo seu corpo. A garganta fechando. O peito disparado. O estômago ardendo com o próprio vômito, e o olho com as veias vermelhas assistindo sua tortura debaixo d’água, lendo todos os seus pensamentos. Futuros horríveis foram projetados em sua cabeça naquele dia. Não foi culpa de Joseph, ele não teve outra escolha. Enquanto o corpo ardia, prestes a borbulhar como aconteceu com Mark na lanchonete, Joseph teve outro desejo. O de nunca mais ser fraco, de nunca mais precisar sentir medo. Por isso, ele pediu poderes incalculáveis, e deixou o poço naquela manhã com a mentira pronta para os amigos. Contou a eles que acordariam com os pais vivos na manhã seguinte, e lhes entregou as moedas. Fez com que passassem a última década vivendo uma mentira, presos na própria mente, dentro de um mundo que não existia, um mundo onde todos os desejos se concretizavam. Ciente de que, se eles usassem a moeda, dariam poderes ao poço, por isso, ele mesmo nunca utilizara a sua. Eles tinham razão. Era culpa dele, de seu desejo. Joseph gritou quando a menina o sacudiu pelos ombros. — Rápido, rápido! Ele está aqui! As paredes do túnel sacudiram. Os corpos pendurados balançaram. Quando as chamas de outras lamparinas se acenderam, Joseph cobriu a boca ao ver dezenas de corpos boiando. Meninos, meninas e bebês começaram a borbulhar entre as moedas. — Faça um pedido, agora! ‒ A menina olhou para trás no momento em que pedras começaram a ruir. — Foi culpa sua! ‒ Ele levantou. ‒ Você nos atraiu aqui! Por que devo confiar no que diz? — Vamos todos borbulhar! — Gritou os amigos e seu irmão pendurados. Risadas reverberaram em seguida. Joseph encarou a desgraça e desistiu de lutar. Era melhor que morresse também, ali, assim, pagaria por sua ganância. — Eu era como vocês, órfã. Meus pais foram assassinados. ‒ Sibilou a garota. ‒ Desejei morrer no lugar deles, mas o poço me enganou, e me escravizou. Naquela manhã, há dez anos, ele me disse para trazer três garotos, e eu ficaria livre. ‒ Ela esticou o braço e exibiu uma moeda na palma da mão. ‒ Pegue. Faça o desejo certo, é sua última chance. É a última chance deles. Joseph segurou a moeda e se preparou para fazer a escolha certa, blocos de pedra caíram por todos os lados, os corpos pendurados se uniram em gargalhadas desesperadoras, e os bebês que boiavam começaram a chorar. Ele deslizou a moeda entre o dedão e o polegar, o desejo pronto na mente. Abriu os olhos para atirar a moeda, e se deparou com Ele. Tão perto, que pôde ver as veias pulsando. As lamparinas explodiram, o olho invadiu a mente de Joseph para impedir seu desejo, e a moeda escorregou… Outra vez Mark e Gabriel entraram no veículo preto. Joseph esticou os braços para uma das assistentes sociais, que lhe entregou Vincent cuidadosamente. Ele hesitou antes de entrar. Uma menina loira lhe acenava à distância, parcialmente escondida entre as árvores, de alguma maneira, sentiu que a conhecia, mas não sabia de onde. Apertou os olhos para enxergá-la melhor, mas ela desapareceu no horizonte. Entrou no carro com seu irmão no colo e o motorista ligou o motor. — Esperem! — Pediu uma voz rouca ao lado de fora, seguida de três batidas no vidro. Joseph transferiu seu irmão para o colo de Gabriel, e abriu a janela. — Isso caiu do bolso de algum de vocês. — O senhor barbudo estendeu a palma da mão para dentro do carro e exibiu três moedas reluzindo. — Tem um poço aqui perto, ouvi dizer que ele concede desejos. Joseph ficou vidrado pelo olhar daquele senhor. Veias vermelhas. Pulsantes. Outra vez, teve um dejá vu. Não se mexeu, nem respondeu. Foi Gabriel quem devolveu Vincent ao seu colo, segurou as moedas e olhou para os amigos. — Vamos fazer um pedido? Carine Raposo - Padawan de Stephen King K7 Mixtape Monstro Rodrigo Ortiz Vinholo Nunca fui bom de falar com pessoas, mas sempre fui bom em fazer coisas. Na época em que fiz a fita, eu era um cara muito tímido. Eu sabia que ela era genial, mas tinha medo de mostrar para alguém, porque tinha receio do que pensariam de mim. A verdade é que eu não procurava a aprovação de muitagente; especificamente, eu procurava a aprovação de uma pessoa só: Clara. Não foi para ela que mostrei a fita primeiro, e sim para a Samanta. Pode soar esquisito, com toda minha limitação social, mas isso é porque nunca vi Samanta como alguém a quem eu deveria provar algo ou temer, talvez porque fosse a pessoa que eu conhecia há mais tempo. Desde o jardim de infância, ela botava medo em todo mundo, menos em mim. Depois, durante o ensino médio e quando entramos na mesma faculdade, mesmo em cursos diferentes, ela continuava aterrorizando a todos. O estilo punk ajudava; mas geralmente bastava o olhar matador. Era uma segunda-feira de manhã quando lhe entreguei a fita. Ela fez pouco caso, levou-a para aula, mas, horas depois, quando nos encontramos na saída da faculdade, ela havia mudado. Estava agitada, com os olhos arregalados. — Você… − ela titubeou, apertando os olhos como se tentasse ler algo a mais em mim. − Você tá mexendo com drogas? — Oi? — Você ouviu essa fita?! Que raios é isso? — Não faço ideia − admiti. Descobri a fita por acidente. Como eu passava muito tempo sozinho, geralmente deixava o rádio tocando enquanto lia meus livros ou estudava. Com o tempo, comecei a gravar as músicas que mais tocavam. Não sei bem de onde veio a inspiração: em uma manhã de sábado, comecei a escutar as fitas e a notar como as músicas me faziam sentir. Não sei se era a gravação do rádio, com algum nível de chiado junto com as canções, mas localizei pontos que me davam arrepios, ou mudanças de humor, e comecei a gravar, como um experimento, uma sequência desses sons. Alguma coisa neles me fazia pensar que pareciam mais uma sequência de ruídos vinda do espaço. Fiquei o sábado inteiro e boa parte do domingo gravando, até que o resultado foi um Monstro de Frankenstein das músicas e sons do rádio, sem fazer sentido algum. Mas bastava apertar o play e… Bem, Samanta estava certa em falar que aquilo era algum tipo de droga. Fomos almoçar em seguida, e ela era incapaz de se manter quieta, tremendo e esmagando o hambúrguer com os dedos ao segurá-lo. Quando falei sobre meu plano de usar a fita para ver se criava coragem para falar com Clara, ela largou tudo, saiu correndo e me deixou sozinho para pagar a conta. Só voltei a vê-la duas horas depois. Por sorte, dividíamos o apartamento, sendo que a ouvi assim que entrou batendo a porta e os pés, ainda agitada e sorrindo. Ao me ver, Samanta colocou as duas mãos em meus ombros e, olhando intensamente em meus olhos, grunhiu: — Amanhã vamos pra biblioteca. Já falei com ela. − Virou-se então para o sofá, tombou e dormiu até o dia seguinte. Eu não sabia o que sentir, temendo o significado real daquelas palavras, ainda que tivesse alguma noção. A biblioteca era o lugar onde Clara trabalhava. Tentei acordar Samanta para mais explicações, mas não consegui nada. Na única vez que ela abriu os olhos, rosnou até que eu me afastasse. Parecia que a fita havia sugado a sanidade dela. Quando me afastei, voltou a dormir. Na manhã seguinte, Samanta estava imersa em seu mau-humor matinal, só me permitindo a informação de que encontraríamos Clara na biblioteca depois da aula. Depois de horas de expectativa, quando finalmente chegamos lá e eu a vi, mal pude acreditar. A verdade é que eu nunca havia falado de verdade com Clara. Ainda que fosse uma das bibliotecárias e tivesse me atendido tantas vezes, minha timidez impedia que eu fosse além do básico necessário. Imaginei que deveria ter sido estranho receber o convite de Samanta, mas ela não parecia surpresa, nervosa ou assustada. Clara nos levou para uma sala nos fundos, um tipo de depósito com prateleiras. Sobre uma mesa, havia um aparelho de som. — Como é que você disse que isso chama? − perguntou Clara, amigavelmente. — Mixtape Monstro − respondeu Samanta, com se fosse uma vendedora. Ela puxou um pedaço de papel do bolso, colocando-o na mesa com o mesmo ar de vitória. Era uma coleção de rabiscos feitos com caneta azul, uma coisa redonda cheia de algo parecido com dedos ou braços finos: era um monstro. − Fiz até este desenho como capa pra fita. O nome era novidade. Encarei-a, indagando silenciosamente sobre a origem, mas ela me ignorou. Samanta tinha mania de pegar palavras emprestadas dos States. Certamente havia importado aquela - e talvez o desenho - de algum filme. — O Ruy já está chegando. Acho que ele vai gostar. — R-Ruy? − perguntei, prevendo o pior. — Meu namorado − declarou Clara, com um sorriso. Eu podia ver nos olhos de Samanta que ela se divertia muito com o fracasso da minha empreitada. Ela assumiu um sorriso mordaz, olhando em minha direção de modo pretensamente casual. Ela já sabia. Ia me torturar com aquilo. — Tudo bem, a gente espera. Momentos depois, estávamos os quatro em torno da mesa, e eu considerava seriamente abandoná-los com a fita e ir procurar um buraco para me enterrar. Ruy era basicamente um resumo de todos os caras que haviam me batido na época da escola em uma versão adulta e melhorada. Bonitão, simpático, forte, e o uniforme indicava que estava no time de basquete da faculdade. Cumprimentou-me com um aperto de mão forte e eu tentei não parecer aterrorizado. — Como fazemos? − perguntou, irritantemente simpático. — É só apertar play, − disse Samanta, se divertindo com minha vontade óbvia de fugir. − Voilá! No fim das contas, não fugi. Consegui, de algum modo, aproveitar: ouvimos a fita uma vez, depois outra vez, depois outra. Na quarta, nos agitávamos pela sala, contando histórias, dançando e fazendo planos como se fôssemos velhos amigos. Na quinta, saímos de lá, pegamos o carro de Ruy e, ouvindo no toca-fitas, resolvemos fazer um bate-e- volta para a praia no meio da semana. Hoje, aquele tempo na estrada me é vago. O tempo na praia, também. Mesmo olhando as fotos, me lembro de pouco. Sei que, durante a ocasião, comecei a me sentir mais confiante. Tinha certeza de que tinha chances com Clara, notando que estava ficando mais próximo dela e nem tinha medo de levar um soco de Ruy. Ele parecia animado demais com tudo para se importar, e só não me tornei mais seu amigo porque, mesmo sob efeito da fita, eu tinha algum ressentimento, simplesmente por ele namorar a garota de que eu gostava. Voltamos na manhã seguinte, tendo passado a noite em claro. Cada um seguiu seu dia, mas estava claro que tudo havia mudado. Precisávamos fazer aquilo mais vezes. Precisávamos continuar ouvindo a Mixtape Monstro. Outra novidade era que tínhamos Fred. Ele era outro do tipo de cara que me eclipsava com facilidade: alto, galante, pinta de rebelde, com um estilo firme e impositivo que me lembrava Samanta. Eu não sabia dizer exatamente quando é que Fred havia surgido, mas certamente havíamos voltado da praia juntos, pois vagamente penso tê-lo visto no carro. Ele estudava no mesmo campus, me tratava com familiaridade e, quando formamos o Clube da Fita, ele passou a integrar as reuniões semanais. Foi ele quem sugeriu a mim a tese que tomamos como verdade: “a Mixtape Monstro revela algo sobre nós”. “O lado que ocultamos, todos os nossos impulsos”, explicou ele, por volta do terceiro ou quarto encontro nos fundos da biblioteca. “A fita traz à tona todas as nossas vontades e permite que enfrentemos a nossa sombra.” Quando Fred repetiu isso ao grupo, eles balançaram a cabeça em aprovação, exceto Samanta, que nunca parecia acreditar muito nele. — Achei que ela só deixava a gente agitada e feliz. — Isso é parte do lado oculto − respondeu ele. − Somos instruídos a manter a civilidade, conter impulsos, e isso nos afasta do que realmente somos. A fita vai nos dar poder de conquistar tudo o que queremos. Samanta não parecia impressionada. — Tanto faz, liga logo esse negócio. Ele ligou, como ligou na semana seguinte e na outra. Não exagerávamos mais, como no primeiro dia. Descobrimos que a fita, depois de um estímulo de trinta minutos, deixava uma dose de energia e vontade que durava umasemana. Subitamente, éramos os melhores alunos da faculdade em nossos respectivos cursos, e Ruy levava o time a vitórias seguidas no campeonato. Eu era o guardião da Mixtape, e havíamos prometido não mostrá-la para mais ninguém. Fred, enquanto isso, havia começado a passar mais tempo só comigo, em uma amizade tão improvável quanto a que eu tinha com Samanta. Ela, aliás, não parecia gostar muito de quando ele chegava, evitando ao máximo dirigir a palavra e geralmente ignorando-o sempre que saíamos. Foi por volta do segundo mês que falei para Fred sobre minha paixão por Clara, e a informação não foi surpresa alguma para ele. — É bem óbvio − comentou. − Você nem consegue falar com ela sem a fita. Era verdade. Mas, felizmente, o tempo sem o efeito da fita era apenas nos minutos anteriores a cada encontro do Clube. Depois, havendo oportunidade, passávamos horas falando de livros, recomendando filmes um para o outro e outros tantos assuntos que eu sabia que Clara não tinha em comum com Ruy. Tanto Samanta quanto Fred me aconselhavam a ser mais direto, a me declarar, a “partir pra cima” de alguma maneira, ao menos deixando expostas as minhas intenções. Mas eu era incapaz, mesmo com a fita. E, mesmo com ela, me sentia machucado por dentro ao ver Clara e Ruy juntos, e me sentia pior porque achava que não tinha direito de querer vê-los separados. Tudo piorou quando descobri que eu não era o único que estava dependendo da fita para lidar com as coisas. Conforme intensifiquei as visitas à biblioteca para falar com Clara, notei que ela estava mais distante. Por vezes, parecia distraída, triste ou preocupada quando estava sozinha. Até sua disposição nos encontros do Clube mudou. Na primeira vez que Ruy não apareceu, ela já parecia triste, quando chegou e mesmo ao sair. Fred falou no meu ouvido que talvez as coisas estivessem indo mal no namoro e me encorajou a aproximar para aproveitar a oportunidade. Eu tratei a sugestão dele como ofensiva e imoral, mas é claro que foi exatamente o que eu tentei fazer. As visitas à biblioteca passaram a ser diárias, com direito à reprovação de Samanta. A primeira vez que perguntei se havia algo de errado, Clara desconversou, dizendo que não era nada, mas seu sorriso triste mostrava que ela sabia que eu não tinha acreditado. Na segunda vez que Ruy não apareceu ao encontro, ela saiu no meio da audição da fita, dizendo que não se sentia bem. — Obviamente há algo errado − disse Fred, me chamando de lado para conversar. Samanta estava com o humor agitado habitual que tinha após ouvir a fita. — Aquele idiota provavelmente fez alguma coisa. Eu fiquei em silêncio. — O que me preocupa não é tanto o que ele está fazendo − observou Fred, deixando de lado os segredos para falar com Samanta. − mas o motivo por ele não estar aqui e o que isso vai acarretar. Seguiu-se um silêncio confuso, até que Samanta arregalou os olhos: — Você está dizendo que… — Sim. Eu tenho certeza. Ele está a caminho de se tornar capitão do time, e já estão falando que existe um olheiro da seleção nacional de olho nele. Ele não conseguiria isso sem uma cópia da fita! Aquilo me atingiu no fundo do estômago. Por um lado, eu tinha finalmente um motivo real para odiar Ruy, mas, por outro, me sentia incrivelmente triste com a ideia de uma traição. — Vou investigar algumas coisas. Tenho um plano − finalizou Fred, sumindo da sala. Eu e Samanta ficamos ali, pensativos, por mais alguns instantes após sua saída. — Bem… que tal almoço, agora? − sugeri, quebrando o silêncio. Samanta me olhou com uma expressão estranha, aparentemente incapaz de conceber a mudança de assunto tão abrupta, mas aceitou e fomos embora. Clara não estava na biblioteca. No dia seguinte, porém, ela estava. Desta vez, quando lhe perguntei se estava tudo bem, a resposta foi outra: — Posso copiar a fita? − Seu olhar era de súplica, mas não amenizou meu choque. Sem minha resposta, ela enrubesceu e argumentou, agitada: − J-juro que não vou emprestar pra ninguém. Não quero parecer que estou aproveitando de você nem coisa assim, eu só… − engasgou, parecendo prestes a chorar, mas respirou fundo. − Eu me sinto outra pessoa quando ouço, só quero me sentir… — Tá bom. Clara parou de falar. Pensei, nesse momento, em falar sobre Ruy, sobre como ele era um traidor e como eu sabia que ela provavelmente estava sofrendo, mas eu me sentiria um canalha maior do que ele se o fizesse. Sem falar muito mais, fomos ao fundo da biblioteca, fizemos a cópia e fui embora. No dia seguinte, ela não estava na biblioteca. Perguntei para outras bibliotecárias, mas elas não sabiam de nada. Também não apareceu nas aulas. As ausências se repetiram pelo decorrer da semana e, chegando a sexta-feira, até Samanta estava preocupada. Eu lhe contei o que ocorreu, mas só serviu para que me sentisse pior. — Falei que isso é como uma droga. Ela deve ter se viciado. Eu não tinha forças para argumentar. Fred também havia sumido sabe-se lá para onde, concebendo o tal plano de que havia falado. — Talvez seja o fim do clube − arriscou Samanta. − Talvez… Ouvimos uma explosão de vozes no fim do corredor, e por uma porta saiu Ruy, cercado por um grupo. Eles carregavam um troféu e comemoravam, acompanhados por fãs e um professor da faculdade que fazia as vezes de treinador. Por um instante, o olhar de Ruy cruzou com o nosso, mas ele se virou e foi embora. Eu poderia ter corrido atrás, exigido que nos explicasse o que estava fazendo e nos devolvesse a fita. O que eu fiz, porém, foi ir para casa, derrotado. Lá, me sentido mais frustrado do que nunca, peguei meu toca-fitas, coloquei os fones e passei horas ouvindo a Mixtape. Daquela vez, ela não me deixou feliz, nem agitado. Só me deixou com raiva, frustração e uma vontade de destruir tudo, até que apaguei. A primeira coisa de que me lembro depois disso foi de acordar com a voz de Fred. A segunda foi notar que eu estava sentado em uma cadeira, amordaçado, com os braços e pernas amarrados. A terceira foi notar que, do outro lado da sala, Ruy estava amarrado e amordaçado da mesma maneira. — Hoje é terça, dia de encontro do nosso Clube. Peço desculpas a todos por chamá-los aqui tão cedo, espero que entendam que esta é uma situação extraordinária. A mesa de centro havia sido puxada para um canto, e Fred caminhava no espaço livre como se falasse para uma multidão, mas a única outra pessoa na sala era Clara, que olhava alternadamente para ele e Ruy, aparentando confusão. Estava sentada em uma das cadeiras ao lado da porta, mas não estava amarrada. Demorei alguns instantes para me dar conta de que, se era terça, eu não tinha memória alguma do fim de semana e nem da segunda. — Algumas regras foram quebradas − continuou Fred. — Eu... − começou Clara, mas a porta abriu com um ruído e surgiu Samanta, esbaforida. Ela correu o olhar pela sala, pausando em Ruy antes de focar em Fred. — Você é louco? Primeiro as fotos, agora isso? Amarrar o cara? — Fotos? − perguntou Clara. Fred balançou a cabeça, colocando a mão dentro da jaqueta de couro. Eu podia jurar que ia tirar uma arma de lá, mas tirou três fitas. — Tudo a seu tempo. Primeiro temos que falar sobre isto aqui. Ruy e Clara não se contentaram com as regras e decidiram fazer cópias da Mixtape. − Seu tom era calmo, casual, só endurecendo na frase seguinte. − Nós tínhamos um trato. Ruy protestou sob as amarras. Clara, sem qualquer impeditivo, falou o que ele havia tentado dizer: — Foi você que fez a cópia. Fred balançou a cabeça novamente. — Não, não fui eu. Foi o Tom. Eu franzi a testa, na falta de capacidade de me expressar de outra maneira. Eu não conhecia outro Tom que não eu mesmo, então era certo que ele falava de mim. Mas eu não havia copiado a fita para Ruy. E, mais estranho do que a acusação, era o fato de que todos me ignoravam. — Mas… Tom, do que você está falando? − perguntou Samanta, olhando para Fred. — É fácil de confundir, sei que somosparecidos − disse Fred, ignorando o fato de que não nos parecíamos em nada. − Mas eu sou o Fred! — Oh, céus − gemeu Clara, levando as mãos à boca. Samanta bufou e foi ao meio da sala para encará-lo de perto. — Já não bastasse você ficar sumindo, me fazer seguir esse idiota o fim de semana inteiro… − Ela apontava para Ruy. − … você agora amarrou ele e está bancando o doido? Fred sorriu, olhando para mim de esguelha. — Juro que tudo vai fazer sentido. Antes, preciso contar uma história. Ele caminhou até a mesa e pegou um álbum que o aguardava fechado, abriu-o e seguiu em direção a Clara. — Era uma vez um garoto que descobriu uma fita que fazia as pessoas ficarem felizes. Ela revelava o potencial escondido de todos, fazendo com que fossem melhores. Só que o garoto tinha tanto potencial reprimido que achava que precisava criar outra pessoa para representar esse potencial. Então eu nasci. Só que ele não sabia que eu era sua criação. Pisquei e notei que não estava mais amarrado. Depois, notei que não estava sentado, mas em pé, e de minha boca saía a “voz de Fred”, que na verdade era a minha. À frente, Samanta parecia terrivelmente confusa e, atrás dela, eu via Clara horrorizada. Olhei para baixo. Na página aberta do álbum, uma foto do Clube na volta da praia. Éramos quatro. Não havia Fred! Nunca existiu! Mas ele continuava falando por mim. — O garoto queria ser querido por uma garota, então sua amiga contou a essa garota sobre a fita, e que seu namorado esportista poderia se dar bem com ela. Todos viraram amigos, então o esportista pediu uma cópia da fita só para ele. E o garoto fez uma cópia. − Fred pausou e sorriu de maneira malvada. − Admito, eu menti: eu fingi que era o Tom e fiz uma cópia para testar uma suspeita minha sobre sua índole. E, conforme previa, o esportista passou a ouví-la sempre, e passou a explorar todo seu potencial e a ficar muito popular. Tão popular que começou a sair com todas as garotas, apesar da namorada, e a esquecer dela e dos amigos. Minhas mãos viraram as páginas do álbum e eu pude ver o quanto havia rendido o trabalho de paparazzi de Samanta e “Fred” no fim de semana: uma coleção de fotos de Ruy beijando uma ruiva de sobretudo em cenários diversos. Meus pés me levaram à frente de Clara, e meus braços entregaram a ela o volume com as fotos. Ela demorou alguns segundos olhando as imagens, até que soltou um gemido quase inaudível. — Scarlet? — Exatamente! − exclamou Fred, erguendo um braço. − Acontece que a namorada do esportista, solitária, sonhou com uma maneira de fazer com que ele voltasse a vê-la e, com uma cópia da fita, imaginou como seria se fosse mais interessante, se fosse uma espiã internacional chamada Scarlet, como as femme fatales dos filmes de que tanto gostava. E ouviu a fita até que fosse verdade, ainda que por alguns dias. No começo, ela achou que era sonho, mas depois não tinha mais certeza. Ruy estava pálido e já não se mexia, encarando Clara com os olhos arregalados. — Ela estava certa: ele gostava muito de ruivas. E de morenas, e loiras, é só olhar aí as fotos. A verdade é que ele queria muito ficar com cada uma das garotas que encontrava, agora que era quem era. O sucesso havia subido à cabeça. Clara levantou o rosto para encarar Ruy, e seu olhar tinha apenas medo e nojo. Ele tentou argumentar alguma coisa sob a mordaça, mas ela balançou a cabeça. Não havia salvação. — Entendo, assim, que eu fui a única coisa boa que surgiu dessas fitas. − anunciou Fred, suspirando. − E entendo que ninguém se oporá à destruição delas e à extinção do Clube. Ruy gemeu novamente, mas Samanta e Clara acenaram positivamente. — Tom, faça as honras − anunciou Fred, e meu corpo era finalmente meu outra vez. Notei, então, as três fitas na minha mão e soltei-as como se tivesse nojo. Elas pousaram a meus pés e, depois de um instante de hesitação, eu e Samanta as pisoteamos até que não pudessem mais ser recuperadas. *** Naturalmente, as coisas mudaram muito. Ruy e Clara terminaram. Eu acabei falando para ela o motivo de tudo e, contra minhas expectativas, começamos a sair e depois a namorar. Ruy conseguiu entrar na seleção, mas a Samanta usou as fotos para acabar com a reputação dele rapidamente. Até hoje existem garotas querendo socá-lo. Fred e Scarlet não desapareceram. Na verdade, “ele” havia mentido em mais uma coisa − a fita original ainda estava em casa. De vez em quando, eu e Clara ouvimos a fita e deixamos “Fred e Scarlet” darem uma volta. Ah, sim: Samanta também havia sido afetada pela gravação. Ela havia descoberto um talento especial para estudar as estrelas. Com o fim da faculdade, ela se mudou para uma pequena cidade do norte, onde há uma estação militar e um posto avançado de uma agência espacial. Depois de um tempo sem contato com nenhum de nós, começamos a nos corresponder há algumas semanas. Recentemente, ela me disse que descobriu de onde tirou o nome “Mixtape Monstro”. Ela me mandou as imagens, os estudos, e os diagramas. Eu e Clara não falamos mais de Samanta depois disso, e eu não tenho mais coragem de abrir as cartas que chegam. Passamos também a ter certo medo de deixar Fred e Scarlet voltarem a sair. Rodrigo Ortiz Vinholo - O magrelo do café. Facebook: /rodrigoortizvinholo Corra O caso não solucionado Cláudia Lemes São Paulo, 1989 As buzinas lembravam guerreiros selvagens soprando em chifres para invocar a fúria de deuses sanguinários; a cidade estava imersa em seu estado caótico habitual. Dentro da delegacia, André podia sentir, mesmo sentado à escrivaninha, o desespero dos paulistanos para chegar em casa após outro dia cansativo de trabalho. Ele se perguntou como aquela cidade estaria em dez, vinte anos. Certamente seria impossível com carros. O transporte público teria, em algum momento, que melhorar. Não tinha como aquele trânsito ficar ainda mais congestionado. Coçou o olho e olhou em volta. A maioria dos colegas já tinha ido para casa. Os que restaram trabalhavam em silêncio, as costas curvadas sobre pilhas de relatórios, alguns cigarros acesos formando nuvens fantasmagóricas em volta dos policiais. O telefone na sua mesa tocou e ele atendeu por puro impulso, desanimado. − É o Borges. “Tenho algumas informações sobre o caso da menina, a Lídia. Da Boneca da Tuxa.” Ele empertigou o corpo, sentindo a coluna gemer de dor. Fechou o punho e massageou a lombar. − É… tudo bem, pode falar. Já estava tão de saco cheio daquelas histórias ridículas de que uma boneca teria assassinado a pobre menina Lídia que pensou em colocar o telefone em cima da mesa e deixar a interlocutora falar sozinha. Olhou para o bule de café à distância e viu que estava vazio. A voz da pessoa saiu com interferência chiada: “Não foi a boneca que matou a menina. Foi o vizinho dela.” André franziu a testa. Era a primeira ligação com uma informação não ligada a satanismo, pactos e o sobrenatural. − Estou escutando. Pode me falar seu nome? A informação é sigilosa. “Não, não posso fazer isso, é arriscado. Mas posso te dizer que vi o vizinho dela saindo do apartamento na noite em que ela… morreu.” Prensando o receptor do telefone entre o rosto e o ombro, André pegou um bloco de papel e uma caneta Bic cuja tampa se perdera há semanas. Rabiscou: vizinho saindo/apartamento/noite crime. — A qual vizinho a senhora está se referindo? “Do apartamento 91.” É alguém tentando ferrar com alguém. Mantenha ela na linha. — Muito obrigado pela sua cooperação, senhora. Preciso saber se você mora no prédio e a que horas isso aconteceu. Do outro lado da linha, silêncio. Depois o sinal de ocupado. Merda. André bateu o telefone no gancho com mais força do que pretendera. Passou as mãos pelos cabelos. Só queria que as pessoas se esquecessem desse caso, que outra coisa bizarra viesse à tona para que parassem de contar e recontar aquela babaquice da Boneca da Tuxa ser um brinquedo assassino. Uma menina fora brutalmente assassinada noEdifício Heloísa, e tudo o que falavam sobre o caso pingava teorias da conspiração e forças demoníacas. Ele precisava de algo real: uma arma do crime, um suspeito, uma impressão digital, uma testemunha, qualquer coisa. O caso já estava ficando frio. Agora essa. Ele se levantou e enfiou as chaves e a carteira no bolso. Tirou a .38 da gaveta e a encaixou no coldre. Deu uma empurrada na cadeira com a coxa e se preparou para ir para casa. A esposa já telefonara duas vezes, falando que iria esperá-lo para jantar. Ele perguntara sobre o estado de Maggie, a cadelinha do casal, que fora castrada no dia anterior. “Tá bem, acabei de buscar ela no veterinário. Tá quietinha, enfaixada. Precisei comprar uns remédios pra ela. Tava caro, André.” Mais aquela. Bom, pelo menos a Maggie estava bem. Enquanto descia os degraus para o estacionamento, André sentiu o estômago revirar e pensou no aconchego do pequeno apartamento, no perfume do cangote da Ivone, e em ver sua cadela novamente. Perguntou-se o que ela tinha cozinhado para eles, já que parecia animada em vê-lo. É, tinha tudo para ser uma noite boa, apesar da inflação, apesar do trabalho que pagava muito pouco, apesar da dificuldade de Ivone em engravidar, apesar das dívidas, apesar do maldito caso da pobre menina. Boneca da Tuxa, que merda. Estava preso no congestionamento vinte minutos depois, relaxado em seu assento, olhando a cidade cinzenta através dos vidros do carro. O rádio tocava Another Day in Paradise, do Phil Collins, e era deprimente pra cacete. Apertou o botão e desligou o som, passando a ouvir sua própria respiração dentro do veículo. Podia investigar. Podia dar uma passada rápida no Edifício Heloísa, a uns quinze minutos dali, e só bater na porta do apartamento 91 e descobrir o que podia. A Ivone ficaria preocupada. Você liga para ela de um orelhão, vai ser rapidinho. Mexeu-se antes mesmo de tomar uma decisão, girando o volante para a direita com um olhar rápido no retrovisor. Pegou uma ruazinha perpendicular e seguiu para o Largo da Batata. Estivera no Heloísa algumas noites antes, junto com outros policiais e o pessoal da perícia, quando a menina foi encontrada morta na cama, a descoberta feita pela mãe, que não vivia com o pai da criança. A mãe continuava sendo a principal suspeita, mas havia incongruências, como a entrevista com a vizinha do prédio de frente, “a curiosa do binóculo”, que afirmou veementemente em diversas ocasiões que vira a mulher sentada na poltrona, assistindo televisão a noite inteira. “Já era tarde e a menina devia estar dormindo, porque não saiu do quarto”, ela insistira. “Eu fico na sacada, fumando e lendo, porque meu genro não gosta do cheiro de fumaça, diz que é alérgico. E ela estava lá sentada, nem levantou. Tava assistindo Tieta, aquela pornografia. Bem, era de se esperar de uma mãe solteira, né? Mas a mulher não é assassina só porque é piranha.” Ao ser questionada, no entanto, sobre mais alguém no apartamento, a mulher respondera que não entrara qualquer pessoa ali, ou ela teria “visto”. Outra coisa também incomodava André Borges. Ele sabia, por estudo e experiência, que nunca se podia ter certeza que um indivíduo estava mentindo. Por mais que fosse possível estudar a linguagem corporal (ao contrário do que se divulga, quem está mentindo não desvia o olhar para a direita e não se mexe mais. A tendência é que façam contato visual e fiquem mais parados), nunca podemos ter certeza. No entanto, quando se vê uma mãe sofrendo a perda de uma criança, é possível enxergar quando aquilo é real. Com a mãe de Lídia, era real. A mulher estava despedaçada, beirando o desespero, quase suicida. Ao entrar no edifício, tarefa simples com o distintivo de investigador, ele chamou o elevador e acendeu um cigarro. A porta de madeira fora arranhada por chaves e colados a ela havia pedaços de papel de algum aviso já arrancado. O prédio era bem modesto, e bem parecido com o lugar onde ele morava com a esposa. Ele entrou no pequeno elevador e apertou o 9. Sozinho, pensou em descansar, no fim de semana que estava chegando, em levar Ivone para passear um pouco no parque, talvez sugerir que eles parassem de tentar ter um filho, pelo menos enquanto a economia estivesse daquele jeito. Nunca sabiam quanto um litro de leite custaria no dia seguinte. Não era sensato ter um bebê naquelas condições. E numa época onde bonecas arranham meninas durante o sono, adicionou à equação, com um gosto amargo nos lábios. Definitivamente não era a hora certa. Havia simplesmente violência demais lá fora. Ele soubera aquela semana que tantos homicídios estavam acontecendo na Flórida que a polícia do condado de Dade tivera que alugar um frigorífico móvel do Burger King para poder armazenar os cadáveres. O mundo parecia estar indo para um caminho sem volta. O elevador parou com um tranco. Ele empurrou a porta e saiu, virando à direita no corredor. Podia ouvir televisores ligados dentro dos apartamentos, a música de apresentação do Jornal Nacional, depois a voz de Sérgio Chapelin anunciando as notícias do dia. Ele parou diante da porta do apartamento 93, onde a garota fora encontrada, usando meias e camisola cor-de- rosa, com o corpo retalhado como se tivesse servido de cabo de guerra para dois ursos famintos. “A boneca!”, berrara a mãe, amparada por policiais. “A boneca sumiu!” André deu alguns passos até a porta ao lado, pintada de branco, com o 91 em letras douradas. A mão fechada parou no ar antes de bater. Ele sentiu uma onda de apreensão, de mal estar, de medo. Então bateu três vezes, com força suficiente para que fosse ouvido em qualquer cômodo do apartamento. A porta abriu de imediato. Não dois ou três segundos após a batida, e sim quando a mão de André ainda estava erguida. Do outro lado do limiar havia um homem alto, magro, e de aparência neutra, asseada. Não era belo, exatamente, mas não causava repulsa. André fez uma avaliação rápida com os olhos treinados: usava tênis, embora estivesse em casa, calça de moletom preta, camiseta sem imagem ou estampas, azul escura, e tinha a barba bem feita e cabelos negros penteados. Pele branca, como a de André. O que o incomodou foram os olhos, tão fundos, cobertos por sobrancelhas grossas como se elas fossem uma marquise. Tinha aquele tipo de olheira acinzentada, formando uma sombra não só abaixo, mas ao redor dos olhos. André sempre as achara charmosas numa mulher, como resquícios de maquiagem de uma noite agitada. Mas, naquele homem, elas emitiam um sinal de cautela. — Sim? Voz rouca, mas amigável. — Boa noite, me desculpa incomodar. Sou André Borges, investigador da polícia − mostrou o distintivo, mas o homem não levou mais de meio segundo olhando para ele. − Só queria te fazer algumas perguntas sobre o caso de homicídio de Lídia Antunes. — Entre, por favor, senhor. Estou com uma panela no fogo e não quero… sabe como é, preciso ficar de olho. Ignorando seus instintos, André esfregou os sapatos no capacho e entrou. O homem fechou a porta e caminhou a passos largos até uma cozinha bem iluminada. Ele olhou em volta: piso de tacão, dois sofás de estofado bege, abajur com base de porcelana rosa cintilante, televisor em cima de um móvel de madeira. Nas paredes, pinturas de frutas e cenários bucólicos. Uma pintura que parecia não combinar com as outras, de uma cena submarina, com um ser que parecia um Kraken, cheio de tentáculos, e cuja boca era um olho. Uma mesa redonda, com tampão de vidro, ficava no canto, cercada por quatro cadeiras de madeira clara. Em cima, dois guardanapos americanos com um copo em cada um. Na cozinha, o homem misturava molho de tomate numa panela. André avistou um cinzeiro em cima de uma prateleira. Apagou o cigarro nele. — Qual é o seu nome, senhor? — Ah, desculpa por não ter me apresentado. Sou João Carlos Sampaio. — Há quanto tempo mora aqui? O homem deu de ombros e olhou para cima para calcular. André notou que a cozinha era limpae organizada. Dois pratos jaziam vazios na pia, esperando a refeição. − Uns oito, nove anos. Desde que me separei. Ele não parecia estar desconfortável com a conversa. Na verdade, falava com bom humor, como se não tivesse sempre a chance de conversar. — E o senhor mora sozinho, seu Sampaio? — Sim, moro. − Distraído, virou o botão do fogão, limpou as mãos num pano de prato, e com uma colher, começou a servir os pratos com espaguete. — Perdão, então, senhor Sampaio, mas para quem são os dois pratos? Ele finalmente olhou para André. Estava prestes a responder, quando desviou o olhar depressa, para algo atrás do detetive, na altura de suas coxas. André se virou para seguir o olhar, completamente ciente, com algum sentido de intuição, de algo perto de si. Os pelos na nuca se arrepiaram e ele sentiu o coração congelar, sabendo que veria algo terrível. Havia apenas espaço atrás dele, no entanto. Nada estava à espreita. O calafrio não passou. Havia se ancorado em André. Algo estava errado ali, e ele se esforçava para encontrar indícios daquilo, motivos reais para justificar aquela sensação. Volte para casa, André. O pensamento tinha a voz de Ivone. Ele deu um passo para trás. − Desculpe te incomodar, senhor. − Conseguiu falar, a garganta seca. − Vou deixar meu telefone e peço para que ligue caso se lembrar de algo relacionado ao… O homem deu um passo em direção a ele, interessado, parecendo gostar de vê-lo mudar o comportamento. — Assassinato da menina? — Sim. − Não valia a pena. Ele aprendera a confiar em seus instintos e eles o imploravam para sair daquele apartamento. José Carlos estendeu a mão, parecendo querer tocá-lo. — Não vá ainda, senhor Borges, eu me lembro de muita coisa daquela noite e gostaria de dividir com alguém… − ele sorriu. André estava pensando em qual desculpa daria quando perdeu o contato com o chão. Percebeu que estava caindo, a vertigem como uma bola de ar gelado na barriga. O impacto teve o som de estalo e a dor irradiou a partir do cóccix, tingindo a pelve, fazendo André gemer de angústia. Uma sombra bloqueou sua visão do tubo fosforescente que era a lâmpada da cozinha. Cabelos de mulher. Algo gelado sendo pressionado contra o nariz dele. O cheiro de éter. O nariz queimando. O mundo perdendo a nitidez, cores borradas, o branco virando leite. A perda de consciência, enfim, e a voz de José Carlos, no fundo de tudo: —… você fez bem, querida. *** Antes de abrir os olhos, André percebeu que já fazia alguns minutos que seu cérebro havia começado a mandar mensagens para ele. Uma delas era: “Ivone está preocupada”. A outra: “Corra”. Quando afastou as pálpebras, a visão focou num objeto que estava bem a sua frente. O pânico fez com que André se mexesse para se erguer, se afastar daquilo, mas ele soube antes mesmo de sentir a restrição de seus movimentos; estava amarrado. Corda de telefone, parecia. Sentiu também a ausência da arma e do coldre por baixo do casaco. A boneca, seu sorriso débil e olhos mortos, havia sido dobrada para que parecesse estar sentada no chão da sala. Os cabelos sintéticos, arrepiados, lembravam palha suja de sangue. O vestido e os membros de plástico também estavam melecados de vermelho. Mas André só conseguia fitar as unhas, não ovais e vermelhas como unhas femininas, e sim pontiagudas como presas, de uma cor que lembrava ossos. Se não tivesse visto o corpo de Lídia, confundiria a substância grudada àquelas garras como pedaços de bife de fígado. Sabia que eram pedaços da menininha que desejara uma boneca daquelas com o ardor típico da infância. Ele fechou os olhos. A razão formou a narrativa: é um louco, apenas um louco que usou a boneca como arma para maltratar aquela criança. Deve ser um pedófilo sádico, um filho da puta desses que não consegue ver uma pessoa como uma pessoa. André, você tem que negociar com ele, tem que sair daqui. Ivone deve estar enlouquecendo. Você precisa voltar para sua esposa. — Pode abrir os olhos, André. Ele obedeceu. A voz de José Carlos combinava com a postura calma dele, arrastando uma cadeira e se sentando bem a sua frente. André moveu os olhos em direção à janela, mas as cortinas estavam bem fechadas. — Eu também levei um tempo para acreditar. André sentiu dor no pescoço, e a única forma de aliviá- la era encostando a cabeça no gélido piso de tacão. E, naquele ângulo, ele não tinha escolha senão olhar para a boneca loira. Ela sorriu. Ele sentiu a bexiga esvaziar-se num baque de aflição, a urina morna ensopando as calças. Ah não é possível. Se uma coisa dessas acontece, se isso existe, então não há Deus, não há Deus, porque ela está ali e está se mexendo e meu Deus o que é isso não pode ser não pode ser Jesus por favor me ajude e André começou a chorar. Não podia ser, não podia. Era o mal. O mal como algo que existia além das pessoas. Não era possível. — É isso aí, André. − José falou de forma doce e quase melódica. − O bom da nossa era é que ninguém acredita. As evidências e os relatos e as testemunhas estão todas diante de nós. E não importa, porque não acreditamos. Ela pode matar o quanto quiser, o quanto precisar para acabar com sua sede e, no final, isso não passará de uma história, uma lenda… André apertou os olhos porque não queria mais ver. E, na escuridão que falhou em fornecer refúgio, ele ouviu o plástico bater de leve contra a madeira do piso. E soube que ela se aproximava dele. www.lendasurbanasdobrasil.com.br Artigo: 03/07/2017 A Boneca da Tuxa Uma das mais famosas lendas urbanas é a da Boneca da Tuxa. Sonho de consumo de toda menina nos anos 80, a boneca ficou famosa devido ao caso da menina Lídia Machado, morta em seu apartamento um dia depois de ter ganhado a boneca de aniversário. O caso de Lídia não foi resolvido, mas os boatos correram na época de que teria sido a boneca, que não foi encontrada pela polícia. Para acrescentar mais mistério, alguns dias depois da morte da menina, um dos investigadores do caso, o detetive André Borges, desapareceu após deixar o trabalho para ir para casa. Deixe seu comentário sobre o caso aqui no site: a boneca da Tuxa realmente matou a menina Lídia? Cláudia Lemes - Está bem atrás de você Email: claudiaslemes@hotmail.com Repuxo Água doce nos olhos Kali de los Santos Eu me lembro de estar em meu quarto, olhando a rua pela janela, no momento em que ela chegou. Era um daqueles dias que a chuva parece não querer cair, mas sim ficar suspensa no ar; como se ela quisesse se materializar em nuvem novamente logo antes de atingir o chão. Shout estava tocando no rádio, e eu cantarolava a melodia do refrão. Em minha mão, segurava uma caneca já morna de chá, sem muita vontade de terminá-la, mas também sem vontade de levá-la para a cozinha. Não me virei quando ouvi o barulho da chave girando na fechadura. “Noite,” disse eu, em voz alta, para que Joana pudesse me ouvir da sala, esperando o barulho da maçaneta e alguma resposta. A resposta não veio, tampouco o som da porta, mas sim um ruído de água caindo, como se goteiras tivessem aparecido dentro da casa. Não me virei; continuei contemplando a rua enquanto a última luz do sol, velada pelas nuvens, desaparecia e deixava para trás o céu cinza escuro. O barulho de água aumentou. O vulto de Joana se aproximou em minha visão periférica até que senti uma mão me segurar pelo ombro e me puxar bruscamente para fora da cadeira. Uma exclamação ficou presa em minha garganta quando meu corpo decidiu que gritar era menos importante do que se equilibrar; a caneca caiu e salpicou o chão com pedaços de cerâmica branca, o resto de chá espalhando-se por entre os cacos. Tentei me segurar no parapeito da janela, sem sucesso, e então me segurei na cadeira, que acabou virando e caindo junto comigo. Depois de respirar fundo algumas vezes, notei que Joana estava parada, estática, de frente para a janela. A água que escorria dela se juntava ao chá. “O que foi isso?” Perguntei, ainda ofegante. Algunssegundos se passaram sem que ela dissesse nada. “Tá tudo bem?” Questionei novamente, já me levantando, sem obter resposta. Em pé, olhei para seu rosto e passei os segundos seguintes apenas encarando-a, incrédula. Joana tinha os olhos abertos, arregalados, talvez maiores que o normal; as íris de um marrom muito claro se expandiam e se misturavam com os entrelaçados de linhas vermelhas que ocupavam quase toda a esclera. Em seu rosto e pescoço encharcado havia marcas roxas e azuis de veias explodidas e contorcidas, e seus cabelos caíam pelos lados da face escorrendo água sem parar, como se ela ainda estivesse na chuva. Os pelos do meu corpo se arrepiaram com a visão. “Jô,” comecei, uma nova onda de calafrios passando pelo corpo. Não conseguia parar de encará-la, de olhá-la nos olhos, e começava a sentir o chá tentando subir meu esôfago. “Jô, o que que aconteceu?” Questionei, com a voz fraca. Ela não se movia, não falava, não piscava. Meus pés, em pantufas, estavam molhados da água que caía dela. Aproximei-me e levei minha mão trêmula até o seu ombro, ar preso em meus pulmões. Um segundo se passou sem que nada acontecesse. Joana continuava estática, como que hipnotizada. Expirei. “Consegue me ouvir?” Indaguei, minha mão agora apertando seu ombro sobre a jaqueta jeans. A falta de reação me assustava, mas também me dava coragem para me aproximar. Segurei-a pelos ombros, perguntando o que tinha acontecido, e se ela podia me ouvir ou me ver, mas nada surtia efeito, nada tirava Joana daquele transe. Tentei então movê-la e consegui, mas ela mais cambaleava do que andava, os olhos fixos em um ponto além da janela. Parei no meio do quarto e pensei no que estava fazendo: levá-la para seu quarto, no andar de cima, estava fora de questão. Soltei-a e ela ficou exatamente onde estava, parada, encarando a janela. Molhada de água e de chá, tremendo de frio e de nervoso, me afastei de Joana e caminhei até o vidro, que parecia ter um filtro que embaçava e acinzentava a paisagem. Eu não conseguia ver muito − e, com certeza, nada que chamasse a atenção − através dele. As luzes da rua já estavam acesas, borrões cor de laranja na chuva. Meu maxilar batia contra o resto do meu crânio freneticamente. Joana continuava imóvel. Novamente a segurei pelos ombros e a conduzi até a sala, por vezes perdendo o equilíbrio com seu peso quase morto em cima de mim. A água que caía dela atrapalhava tanto o movimento, quanto meus pensamentos: de onde está saindo isso?, eu me perguntava. Joana não protestou, apenas se deixou levar, cambaleante, sem nunca tirar os olhos da janela. Deixei-a parada em frente à mesa de centro e voltei até a porta de entrada para fechá-la. Finos pingos de chuva molhavam o linóleo lustroso. Ao fechar a porta, virei para Joana. A água que escorria dela já havia se espalhado por debaixo dos sofás. Seus olhos pareciam estar aumentando de tamanho. Tranquei a porta ainda encarando-a, pois sentia dificuldade de desviar o olhar, como se houvesse um imã que me prendesse àquela visão desconfortável. Meus olhos começaram a doer, mas minha cabeça não obedecia ao comando de virar, assim como minhas pálpebras não obedeciam ao comando de se fechar, nem para piscar. Consegui mover as mãos com certa dificuldade e levantei- as, trêmulas, para a altura do rosto, tapando a área onde Joana estava. Consegui fechar meus olhos e os mantive fechados por alguns segundos. Sem querer olhá-la, mantive as mãos onde estavam, criando uma barreira entre nós duas. Decidi ir de lado até a escada, que ficava de frente para a porta, já que tinha uma parede separando-a do resto da sala. Ao subir o primeiro degrau, segui virada para onde Joana estava, pois tinha a sensação de que, se me virasse, ela apareceria na minha frente. Subi a escada com cuidado, para não tropeçar nos degraus irregulares, largos de um lado e muito pequenos de outro. Acendi a luz com os olhos fechados e abri-os lentamente, sentindo que Joana estaria na saleta onde a escada desembocava. Mas ela não estava lá. As enciclopédias, a escrivaninha, o toca-discos e a cadeira de madeira estavam tão normais que senti náuseas. Alguma coisa precisava estar errada. Quando passei os olhos pela escrivaninha uma segunda vez, vi o plugue para telefone, recém colocado, e ainda sem aparelho. Apertei meus punhos, frustrada. Se já tivéssemos comprado o telefone, agora eu poderia ligar para alguém − Ivan, provavelmente − e pedir ajuda. Mas o único telefone da casa estava no andar de baixo e, para chegar nele, eu precisaria passar por Joana. Com o canto do olho, espiei a escada ao meu lado e lá embaixo tudo parecia igual. Antes de me arriscar, porém, precisava trocar de roupa e me secar; quem sabe até pegar as galochas amarelas de minha mãe. Cada novo cômodo escuro me trazia a antecipação de ver Joana. Quando acendi as luzes do corredor, do quarto de meus pais e do banheiro, o fiz de olhos fechados, e só os abria completamente quando via por entre os cílios que não havia nenhum vulto no recinto. Eu não saberia explicar o motivo dessa sensação. Talvez fosse por eu ter recém visto Uma Noite Alucinante no cinema, mas eu agora tinha certeza de que Joana estava possuída, de alguma forma. Evitando me olhar no espelho do banheiro, apenas peguei uma toalha no armário embaixo da pia e voltei para o quarto. Peguei roupas secas do armário de minha mãe, assim como as galochas e, após me secar, me vesti. Aproveitei e peguei também uma capa de chuva que ficava junto das galochas. Após enrolar a capa debaixo do braço, saí do quarto. O corredor, com a luz acesa, parecia muito mais longo do que o normal; a porta para o quarto de Joana fechada bem no meio do caminho. Voltei até a saleta, de onde poderia descer para o primeiro andar e, depois de olhar para o plugue de telefone vazio, como que esperando que um telefone aparecesse, desci a escada. Logo vi que calçar as galochas havia sido uma boa decisão. A água que escorria de Joana já havia passado pela escada e chegado em meu quarto. Porém, quanto mais degraus eu descia, mais eu percebia que o barulho de água não vinha mais da sala. Joana havia voltado para o meu quarto, e quando eu olhei por entre os cílios vi que ela estava de costas para mim, encarando a janela que dava para a frente da casa. Desci o último degrau e tentei ser silenciosa ao ir para o lado contrário de onde ela estava, atravessando a sala até o canto onde ficava o telefone, olhando para Joana de vez em quando, para garantir que não havia se movido. Ela permanecia estática. Disquei o número de Ivan, nosso amigo e vizinho, girando o discador com a mão trêmula. O telefone chamou algumas vezes antes que sua mãe atendesse. “Alô?” “Alô, quem fala?” “É... é a Adri, Dona Elisa, a-aqui da rua.” “Ah, tudo bem, querida? Quer falar com o Ivan?” “T-tudo, sim, quero, sim. Obrigada.” “Só um momentinho que eu vou chamar!” Esperei na linha enquanto ouvia a voz alegre chamar por Ivan, avisando que eu aguardava. Eu sabia que o telefone deles ficava na sala, então não poderia dar muitos detalhes; isso se as falhas na minha voz já não tivessem denunciado que algo estava errado. Precisava que ele viesse até a minha casa. “Adri?” “Oi, Ivan, tu tá livre agora?” “Não sei ainda, acabei de jantar, por quê? Tu e a Jô vão fazer uma session?” “Não, é, ahn, sim, vamos, não quer vir gravar umas fitas com a gente?” “Bah, mas nessa chuva?” “Tu mora aqui do lado. Só vem até aqui, por favor?” “Tá tudo bem, Adri?” “Tudo, quer dizer, mais ou menos. É a Jô, não sei bem o que tá acontecendo, na verdade. Não quero que tu fale pra ninguém, pode só vir aqui me ajudar, por favor?” “Claro, claro. Tô indo aí, até mais.” Sem dizer nada, coloquei o telefone no gancho. Atravessei a sala de volta até a porta de entrada. Rapidamente conferi se Joana continuava na janela do quarto e constatei que sim. Vesti a capa, abri a porta, dei alguns passos para fora e fiquei esperando Ivan na chuvafria de maio, meu corpo inteiro se contraindo em espasmos que eu não saberia dizer se eram de frio ou de medo. Ele não demorou muito para chegar, segurando um guarda- chuva preto que não surtia muito efeito naquele tipo de chuva. Caminhou pelo largo corredor do lado da casa até a entrada, onde eu o aguardava. “Por que tu tá aqui na rua, na chuva?” Ele perguntou, se aproximando. “Vamos entrar.” “Espera, preciso falar contigo aqui fora antes.” Ele assentiu para que eu prosseguisse. “A Jô chegou há pouco, e, e, e ela tá parece que machucada, eu... no rosto, nas mãos, nos olhos, mas é que não parece que ela apanhou, nem nada assim, e tem muita água, como se tivesse saindo dela e eu, eu não sei explicar.” Respirei fundo. “Eu não consigo olhar pra ela direito.” “Tá, calma, ela não tava saindo com aquele darkzinho lá? De repente ela tomou alguma coisa com ele e não bateu bem, ou, se ele bateu nela a gente vai lá e quebra ele, também.” “É que não parece ser isso. Não ri, tá? Mas eu acho que ela tá possuída.” “Vamos entrar, eu vejo ela e a gente pergunta pra ela o que tá acontecendo, pode ser?” Ele respondeu, segurando um riso no canto da boca. “É que ela não tá respondendo. É sério, Ivan. Olha a água que tá dentro de casa,” eu disse, apontando para o chão através da porta aberta. “Isso tá saindo dela, não tem goteira, não tem nada. Eu não sei o que a gente pode fazer.” “Adri, tu me pediu ajuda. Eu tô aqui. Vamos entrar e me deixa ajudar como eu acho melhor, pode ser? Eu já tô todo molhado aqui.” “Tá, pode ser.” Concordei, e meus ombros relaxaram um pouco. Naquele momento, senti certa esperança de estar errada, de entrar em casa e de repente Joana começar a falar e contar que era tudo uma brincadeira ou, na pior das hipóteses, que havia apanhado do namoradinho. Eu me lembro da sensação de como se ela fosse um fantasma, algo que nunca vai voltar a existir e ficará para sempre intangível em minha memória. Essa foi a última vez que senti esperança. Entramos. Ivan caminhou na frente, seus passos firmes jogando água para os lados. Ele deixou o guarda-chuva ao lado da porta enquanto eu tirava a capa. Joana permanecia parada encarando a janela. “E aí, Jô?” Perguntou Ivan, de onde estava, antes de avançar em direção ao meu quarto. “Calma, Ivan” eu pedi, segurando seu braço. “Tenta não olhar ela nos olhos, tá?” Ivan respirou fundo antes de balançar a cabeça afirmativamente. “Jô, eu vim até aqui nessa chuva, vamos fazer alguma coisa? Hoje tem a Kátia Suman na Ipanema, vamos gravar o programa dela numa fita?” Joana não dava sinais de estar ouvindo. “Tá, Adri, eu vou precisar mexer nela, assim não vai adiantar nada.” “Ivan, tu não tá vendo que tá jorrando água dela? Tu não entendeu ainda que não tem como resolver essa situação com conversa?” “Tá, Adri, então não sei pra que eu fui chamado até aqui,” ele disse, bufando. “É verdade, sei lá de onde tá vindo essa água toda. Mas não vou ficar aqui parado olhando, a gente precisa tentar resolver de alguma forma.” Respirei fundo antes de assentir. Ivan foi até Joana e a virou pelos ombros. Por alguns segundos, fiquei esperando que algo acontecesse. “Ivan? Jô?” perguntei, a voz saindo aguda, direto da garganta. Eles não responderam. Então, a água que escorria de Joana parou. Mas não tive tempo de concluir nada a respeito; entre uma batida e outra de meu coração acelerado, a água voltou, dessa vez se derramando de Ivan. Entendendo o que estava acontecendo, me joguei em sua direção. “Para, Ivan! Para! Solta ela!” Eu gritava. Tentei arrancar as mãos de Ivan dos ombros de Joana, mas ele a segurava com muita força. As íris de Ivan começaram a expandir em pequenos jorros de verde e finas veias vermelhas manchavam o branco dos seus olhos, mais e mais a cada segundo. Uma veia em seu pescoço estourou, e eu senti o tremor em seu braço logo antes das veias das mãos arrebentarem. Em uma última medida desesperada, passei por baixo do braço de Ivan e me coloquei no meio deles, de frente para Joana. Agora que não havia mais água escorrendo dela, eu pude ver que lágrimas jorravam de seus olhos inchados. Senti Ivan caindo atrás de mim, mas não pude me mover para ajudá-lo. Ouvi os gritos dele, senti seu corpo se debatendo nos meus calcanhares, mas meus olhos estavam presos aos de Joana. Suas íris agora estavam vermelhas e se expandiam além das pálpebras, serpenteando em todas as direções, e desse olhar eu sentia um chamado. Senti o calor do sangue se espalhando enquanto minhas veias se rompiam pelo corpo inteiro. Meus olhos ardiam. Meus pulmões pareciam diminuir, e minha respiração ficou rasa. Senti água começar a escorrer de meus cabelos. Os olhos de Joana se fecharam, mas eu ainda via a mancha vermelha. Eu me lembro de estar em meu quarto olhando para a rua pela janela no momento que ela chegou, e então eu lembro de todo o resto. Joana caiu. Eu me lembro de estar em meu quarto olhando para a rua pela janela no momento que ela chegou. Eu lembro de novo e de novo. Meu corpo inteiro está dormente. O barulho da água caindo já não me incomoda. Acho que gosto dele. Os gritos de Ivan se tornaram abafados, como se viessem de trás de uma catarata. O rádio ainda está ligado, mas não consigo distinguir o que está tocando. No fundo da minha cabeça, ouço minha própria voz cantarolando o refrão de Shout: “let it all out, these are the things I can do without”. A cada movimento que faço é como se mil agulhas penetrassem a minha pele por centímetro quadrado. Olho para baixo. O corpo de Joana está inerte aos meus pés. Ainda sinto Ivan se debatendo. Eu me lembro de estar em meu quarto, olhando para a rua pela janela no momento em que ela chegou, e agora estou aqui. A última luz do sol entra pela janela. Eu me lembro de estar em meu quarto e ouço um barulho de chave girando na fechadura. Kali de los Santos: Pirigótica que cultua a morte. Face: /kalodelossantos E-mail: abr.delossantos@gmail.com Caçadora Minha vizinha mata monstros Denise Flaibam Marty Fontaine tinha se mudado recentemente para a casa em frente à esquina da Rua Kennedy. Sua mãe era quase uma nômade, ainda adepta dos preceitos de paz e amor e do visual espalhafatoso da juventude. Solteira e desajustada, ela adorava encontrar bicos temporários que pagassem seus discos dos Ramones, os muitos maços de cigarros e as pizzas que ela, Marty e as gêmeas de 11 anos, Georgie e Star, jantavam todas as noites. Quando dava na telha, tirava os filhos da escola e viajava até outra cidade para recomeçar e redescobrir. Para Marty, estar em Coney Mountain era só mais uma coisa temporária. Em algumas semanas ou meses, ele, a mãe e as irmãs fariam as malas e partiriam para outro lugar remoto, então qualquer história ou lembrança que pudesse criar ali pouco importava realmente. Pelo menos até o Dia das Bruxas. Sua mãe tinha um encontro com um ativista dos direitos dos animais e ficaria fora a noite toda. O comando para Marty foi de “cuidar das meninas”. O que, na prática, significava deixar o controle da televisão nas mãos das garotas e se trancar no quarto para ouvir seus vinis. Foi quando olhou pela janela. Marty já vira Bobby Murdock na escola antes. Ela estava sempre vestida com a capa de chuva amarela, independente da previsão do tempo, calças jeans surradas e brincos enormes. O cabelo era uma confusão armada de cachos castanhos, a mesma cor da pele. Baixa e bastante bonita. Marty tinha sorrido para ela uma vez. Tentado, pelo menos. Ela nem olhou de volta. De acordo com as más línguas, a garota era amaldiçoada igual ao avô, alguma superstição idiota que o pessoal de Coney Mountain tinha. Não explicaram que maldição era essa, mas Marty estava ali havia três semanas e mal conversava com seus colegas. Qualquer que fosse a história, logo se tornaria uma lembrança. Ainda assim, ele ficou parado atrás da cortina, espiando o percurso apressado da garota até a calçada. Ela carregava um saco – deaçúcar, talvez? – e despejou uma trilha pelo caminho até a rua, e então voltou para a varanda do casarão. Apoiou o saco num dos pilares e as mãos na cintura, sorrindo satisfeita. Ergueu os olhos e encontrou o observador, e fechou a porta com tanta força que Marty se sentiu mal por estar espiando. Provavelmente algum tipo de decoração para o Dia das Bruxas, ainda que Marty não tivesse visto abóboras ou esqueletos de brinquedo pela cidade. Ao perguntar para um colega de Aritmética, a resposta que recebeu foi: “Você vai ver, cara. A festa aqui é única”. De novo, ele não se importou. As gêmeas não gostavam de pedir doces nem de se fantasiar e sua família era desconhecida o suficiente para que ninguém viesse importuná-los em busca de “gostosuras ou travessuras”. Marty se sentou na cama, buscando a caixa velha cheia de vinis. Um grito estourou o silêncio do lado de fora, o som agudo e desesperado. O garoto alcançou a janela, com medo de ter sido a vizinha. Não havia ninguém lá. O pôr-do- sol já desaparecera no horizonte. Densa neblina se espalhava pelo asfalto velho. Sua bicicleta estava mal estacionada no quintal da frente, encoberta pela névoa. O grito se repetiu; mais próximo dessa vez. Marty vestiu a jaqueta e o gorro e desceu as escadas apressado. — Já volto! – disse. As gêmeas nem ouviram. O ar de fora parecia rarefeito, difícil de alcançar. O garoto cruzou os braços, espreitando a rua sem saída e então as casas mais próximas. Todas apagadas, os quintais nevoados de branco. — Oi? – silêncio. O tipo de silêncio que encobre lugares, que torna macabras as coisas comuns. – Tem alguém aí? Não alguém. Alguma coisa. Da esquina da Rua Kennedy, o som de passos se tornou mais alto. Então uma silhueta apareceu. Esguia. Magra. Uma mulher com o rosto cinzento e a frente do vestido branco manchada de escarlate. O grito viera dela. Cambaleou pela rua, tropeçando no meio fio. Marty revirou os olhos diante do esgar que ela soltou. A mãe do rapaz era fã da Noite dos Mortos-Vivos e a fantasia de zumbi até que combinava com o clima do Dia das Bruxas. Quando a mulher de branco se aproximou o suficiente, Marty hesitou. Ela parecia mal. A boca esgarrada e os olhos injetados criavam uma carranca monstruosa. Marty estendeu as mãos para ajudá-la diante de outro tropeção; a mulher caiu sobre ele. Os dentes dela se fecharam em seu braço, arrancando um pedaço da jaqueta, da camiseta e da pele, e o novo grito que ressoou pelo nevoeiro foi o dele. Marty a empurrou. Ela levou tecido, carne e sangue junto. Estarrecido em choque, o garoto cambaleou para trás, tropeçando em direção ao meio fio. Da esquina escura, outra coisa surgiu. A silhueta era feita de sombras vivas, de tentáculos e coisas afiadas; quando Marty se concentrou, avistou a forma de um olho com muitos braços. A criatura tinha um cheiro insuportável de ovo estragado e se movia com rapidez, distorcendo o próprio ar. Abriu a bocarra sob o olho enorme e deixou escapar um urro sepulcral, sangue negro jorrando entre os dentes. Marty achou que seria um bom momento para acordar do pesadelo. Só podia ser um pesadelo. O monstro avançou, as pinças e garras e muitos dentes tilintando pela calçada enquanto tentava alcançar o garoto. Atrás dele, três fantasmas translúcidos, marcados por mortes horríveis, uivavam gritos aterrorizantes. — Aí! – Marty se assustou, e o grito chamou a atenção das criaturas mais próximas. – Sai da rua, maluco! – Bobby tinha parado na varanda com uma espingarda em mãos. A garota jogou uma bombinha no asfalto e o estouro atraiu os monstros, inclusive o coberto por tentáculos. – Vem pra cá se quiser sobreviver! Marty não precisou de maior incentivo. Correu com todas as forças, apertando o braço machucado contra o corpo, mas estacou ao se lembrar das gêmeas e da porta destrancada. — Minhas irmãs! — Você não colocou sal ao redor da casa? — Por que eu faria isso? A careta da garota foi indignada. Ela puxou Marty pelo cotovelo e ele se viu dentro das linhas que ela fizera no quintal. O monstro que o perseguia antes bateu contra uma parede invisível, impedido de prosseguir – o que não evitou o grito assustado e o tombo do garoto. Marty se arrastou pela grama em direção à varanda e Bobby apareceu ali antes que ele causasse mais dano ao próprio orgulho. — Segura – a garota entregou um velho taco de beisebol e um saco cheio de sal. Sem avisar, apertou o gatilho da espingarda. Tamanho estouro zumbiu nos ouvidos de Marty. O monstro caiu do outro lado da proteção invisível, levando a mulher morta-viva ao chão com ele. Sangue escuro e denso se espalhou sobre a calçada. Bobby segurou a mão livre de Marty e o arrastou até a calçada, saindo de dentro da proteção para correr em direção à casa do garoto. Ela tinha muita força para alguém tão pequena. Assim que subiram os degraus da entrada, alguma coisa atravessou Marty, deixando uma sensação fria e perturbadora de invasão. Quando passou pelo garoto, o espectro virou-se para contemplá-lo. Sangue escorria aos montes de um corte na garganta e o rosto era feito de retalhos. — Ele foi pra dentro! – Marty gritou o óbvio. — Aqui – Bobby estendeu a espingarda. – Segura eles! – apontou para a legião monstruosa que se aproximava, e Marty pensou que aquele era um bom momento para encontrar uma religião, só pra ter alguém para quem rezar. Para sua sorte, não precisou atirar. Bobby o empurrou para o hall de entrada e fechou a porta, cobrindo a soleira com uma linha de sal. Correu até as duas janelas da sala e repetiu o processo e, antes que Marty pudesse ajudar, disparou até os fundos para selar a porta do quintal e as janelas da cozinha. — Hã, ainda tem um fantasma aqui. — Espectro. E ainda tem janelas lá em cima! – o grito indignado dela fez Marty recuar. Bobby correu escada acima para terminar o serviço de proteção. — Marty? – ele se virou para a porta da sala, onde as gêmeas tinham petrificado. Georgie, com as tranças laterais e o macacão jeans sujo de tinta, e Star, com o rabo-de- cavalo desfeito e o vestido de flores coberto pela jaqueta de couro da mãe. Entre elas e o corredor, a forma translúcida do espectro encarava as meninas, os músculos aparentes sob os fiapos de pele que caíam do rosto. Seus globos oculares vazios se voltaram na direção do garoto e ele bateu as costas contra a porta, observando o sangue azul escorrendo do ferimento no pescoço sobre as roupas de discoteca – tinha sido assassinado na década passada, provavelmente. O espectro estendeu a mão e seu grito agudo escapou pela casa. Um alento monstruoso que falava sobre coisas mortas, coisas que não deveriam estar no mundo dos vivos. Georgie e Star não gritaram como Marty imaginou que fariam. Na verdade, as garotas jogaram um travesseiro no espectro. Para maior choque do irmão mais velho, foi eficaz. O espectro era corpóreo ali, e Marty viveu para ver o momento em que um espírito coberto por plumas e uma fronha tentou matá-lo. Um tiro estourou e, assim como as plumas, teve efeito. A bala atravessou o espectro e ele desapareceu, deixando apenas os restos do travesseiro e um rombo na parede da sala em seu lugar. No último degrau, Bobby apoiou a arma sobre o ombro, quase uma versão jovem da Tenente Ripley salvando Marty de uma criatura de outro mundo. — Eu vou virar um zumbi? – foi a pergunta mais sem nexo e importante que Marty conseguiu fazer. Suas irmãs o olharam como se ele tivesse perdido o juízo. Marty apontou para a mordida no braço. Bobby estendeu uma bandagem, tirada do bolso da capa de chuva. — Não seja burro. Ela não é contagiosa, só está morta. — Mas o filme… — Eu por acaso tenho um Cadillac e estou vestindo um macacão dos Caça-Fantasmas? Não. Filmes não dizem a verdade – Bobby olhou para os três. – Vocês precisam me ajudar a voltar para minha casa. — Você gosta do perigo? — Preciso fechar o portal – ela bufou quando nenhum deles se manifestou. – Que meu avô abriu… Cinco anos atrás? —Olha, a gente chegou na cidade tem umas três semanas – Georgie explicou. – Eu nem consigo fazer o rádio funcionar, imagina entender um fantasma na nossa sala. — Espectro – Bobby corrigiu de novo. – De qualquer maneira, achei que alguém avisaria os recém-chegados. – Ela pareceu genuinamente surpresa. Pela resposta atrevida da garotinha de onze anos ou por alguém não julgar sua história, Marty não sabia dizer. – Meu avô abriu um portal para o mundo dos mortos através do túmulo da minha avó, cinco anos atrás. Ele sentia falta dela, e foi a maneira de matar a saudade. Olhares estagnados foram a resposta. — Acontece no Dia das Bruxas, porque é quando o véu entre o mundo dos mortos e dos vivos fica mais fino. Por cinco anos, isso funcionou direitinho. Recebíamos visitas de alguns fantasmas, o portal abria na hora certa e meu avô nunca teve problemas para fechá-lo. As coisas não eram as mesmas desde outubro de 1981 e a culpa era do velho Harold Murdock. Ele tinha descoberto um antigo feitiço para abrir as portas para outro mundo. Harold se gabava de ter trabalhado para uma divisão secreta do governo quando ainda era jovem, e essa experiência rendeu a ele muito conhecimentos sobre o que havia além da dimensão que o mundo conhecia. No cemitério particular em seu quintal, quando Harold Murdock abriu as portas para o outro mundo e chamou o que havia lá, alguma coisa respondeu. A noite do Dia das Bruxas em Coney Mountain se tornou mais do que sair pelas ruas pedindo gostosuras ou travessuras, mais do que enfeitar os jardins com abóboras e teias de aranha e, principalmente, mais do que fugir quando a viúva McGee saía na varanda balançando o seu andador e ameaçando as crianças bagunceiras de perturbar seu descanso. Desde outubro de 1981, era uma noite assombrada. O sol se punha e os mortos apareciam. Cinco anos se passaram desde o primeiro evento e o Dia das Bruxas acabou se tornando uma coisa corriqueira: os moradores esperavam ansiosos pelo reencontro com parentes há muito mortos, amigos dos quais haviam se esquecido e até mesmo famosos que se aventuravam por aquela passagem até o mundo dos vivos e dividiam seu tempo entre os fãs. A senhora McGee jurava que o próprio Elvis havia visitado sua casa no ano passado. — Aí o vovô morreu e desregulou tudo. – Bobby prosseguiu. – Eu achei que daria conta, mas, quando o portal se abriu mais cedo, deu passagem para outras dimensões, lugares estranhos e mortíferos. Por isso aquele demônio e o espectro corpóreo apareceram aqui. As coisas fugiram do controle. Eu sei como fechar o portal, mas preciso chegar lá. Meu plano era perfeito até você aparecer. — Quer dizer que a cidade tem isso há cinco anos? — Sim. — E o governo não veio intervir? Nem o serviço secreto? — Tudo estava sob controle até hoje. O governo deve ter outro caso sobrenatural maior com que se preocupar – Bobby deu de ombros, espiando a janela. – De qualquer modo, só teremos que nos preocupar com a noite de hoje, se tudo der certo. O portal fica no túmulo da minha avó. Preciso fazer o feitiço do meu avô para selar a entrada dos monstros. — Demais! – Star se animou. Georgie concordou, entusiasmada. — Isso é loucura! – Marty retrucou, recebendo uma careta da colega de escola. – Sem ofensas. Mas, sério, portal para o mundo dos mortos? Seu avô era maluco mesmo. — Ele era, mas fez isso porque sentia saudade. E deixou um plano B para caso as coisas dessem errado. — Deixou? — Eu sou o plano B – Bobby sorriu, e o sorriso dela era perigoso como descer de uma ladeira sobre uma bicicleta sem freio. Para surpresa do garoto, Bobby realmente tinha um plano. Ela era a parte principal, mas, já que Marty atrapalhara tudo ao entrar em seu caminho, poderia ajudar para facilitar o processo. Ainda que Georgie e Star fossem pequenas e não pudessem sair da casa, ficariam na retaguarda com estilingues e bombinhas de sal grosso – isso afastava as criaturas do outro mundo. Bobby tinha tudo em seu arsenal. — Você fica na varanda com a espingarda – disse Bobby. Marty fez uma careta com a ordem. – O quê? — Vou com você – O garoto avisou. — Não foi você mesmo que disse que isso era loucura? — É. Mas acho que posso encontrar um sinônimo. Novidade para o meu currículo, talvez? – ele segurou a espingarda, mas balançou a cabeça quando Bobby tentou argumentar. – Não sei lutar e nem atirar, mas posso correr e gritar para chamar a atenção dos monstros, que tal? Os olhos de Bobby eram mais claros que o tom da pele, uma cor próxima do mel. Ela o encarou com genuína gratidão, e Marty pensou que as pessoas da escola eram estúpidas por olharem para aquela garota bizarra e pensarem qualquer coisa ruim sobre a sua coragem. Com a capa de chuva, os cachos armados e a expressão determinada, ela era uma heroína. Sua vizinha, a caçadora de monstros. — Ei, nós somos quatro. Eu quero ser o Doutor Peter! – Georgie tinha ficado obcecada pelos Caça-Fantasmas no último ano. — Ele era o líder, eu sou a líder – Bobby retrucou. – Eu sou o Peter. Marty abriu a porta com cautela, e Star consertou a linha de sal desfeita. O que antes era um pequeno grupo de monstros se tornara um exército desordenado. — Posso fazer isso sozinha – Bobby tocou seu ombro. – Você e suas irmãs estão seguros aqui. — Contanto que a gente não enfrente um monstro de Marshmallow gigante – Marty segurou o taco de beisebol com força e olhou para as gêmeas. Com os estilingues em mãos, elas pareciam mais animadas do que deveriam. — Agora! Correram em direção ao quintal de Bobby. Ao seu redor, mais demônios e espectros surgiram da penumbra que cobria a esquina. Um tiro retardou o primeiro monstro que tentou alcançá-los, uma tacada certeira derrubou a morta- viva de vestido branco que mordera Marty. Bobby o puxou e o tirou do caminho de outro ataque, e o espectro atravessou o cano da espingarda em vez de passar pelo garoto. Os dois passaram pela linha de sal no quintal do casarão, seguros enfim. Os monstros se viraram na direção das gêmeas, que aguardavam o sinal. Marty gritou para chamar a atenção das criaturas de volta – era a deixa das meninas. Uma bombinha estourou na cabeça do demônio mais próximo, e o sal grosso, em contato com a escuridão na qual ele era moldado, produziu chiados e um grito agourento. O segundo disparo de estilingue bateu contra um espectro. A forma translúcida tornou-se corpórea de repente, e Marty respondeu batendo com a ponta do taco em seu queixo. — Tá tudo sob controle? – Bobby hesitou, antes de seguir em frente. — Nós seguramos aqui! Os monstros que cercavam o lugar acompanharam o trajeto da garota, tomando as laterais do quintal, incapazes de avançar. Marty seguiu as criaturas, adrenalina e medo movendo seus passos. Os olhos de pesadelo à frente pareciam querer devorar tudo que se aproximava. Havia mais monstros do que Marty podia contar, todos eles liderados pelo primeiro demônio que atravessara a esquina minutos atrás. Aquele feito de pinças, muitos braços e um olho enorme. Sob o olhar dele, Marty ergueu o taco, tentando parecer ameaçador; um salto da criatura em sua direção fez o garoto escorregar. Assombrado, Marty contemplou o chão, o espaço onde seu tênis esfarrapado esbarrara. A linha de sal ganhou uma falha. Em um segundo, o demônio estava à sua frente. No outro, tinha distorcido o ar e desaparecido. Um grito agudo veio de dentro da casa. Marty se abaixou, as mãos tremendo enquanto empurrava o caminho de sal que desfizera. Ele gritou quando espectros bateram na barreira invisível, mas suspirou ao perceber que o erro fora consertado. Bom, um deles, pelo menos. Lá dentro, Bobby lutava contra o demônio. Pingos de baba espessa caíam sobre o rosto da garota, mas a espingarda mantinha os dentes do monstro longe dela. Um facão caído ao lado dela estava manchado de sangue escuro, e foi com assombro que Marty avistou os braços decepados do demônio. Ansioso para ajudar a garota, segurou o taco com forçae imitou o que vira em muitos jogos de beisebol, girando os braços e firmando uma das pernas. O strike estourou com o grito agudo da criatura. — Vai! – ele gritou, e Bobby foi. Atravessou a porta para o quintal atrás da casa e permitiu o vislumbre de um cemitério particular bastante macabro. O demônio se recuperou rápido demais, distorcendo o tempo e o ar e aparecendo tão próximo que prendeu o corpo de Marty contra uma cristaleira antiga. A bocarra cheia de dentes se abriu faminta, e o cheiro que veio dela misturava sangue e enxofre e muitas pizzas estragadas que a mãe de Marty deixara acumular no lixo uma vez. Baba e gosma escura pingaram em seu rosto. Marty ergueu o taco e aparou a mordida, impedindo a criatura de atacá-lo. Continuou preso entre o demônio e a cristaleira, os pés escorregando no líquido que empoçava no chão. Além da varanda de entrada, viu a barreira de sal começando a se romper. Havia tantos espectros pressionando a proteção que uma luz translúcida brilhava dela, rachando como vidro. Num movimento bastante arriscado, Marty colocou toda a força para empurrar o demônio longe. Agarrou os cantos da cristaleira e puxou; o garoto correu quando ela começou a tombar e fez uma careta diante do som de muitos cristais se estilhaçando sobre o monstro. Um grunhido animalesco e um tremor mostraram que ele não estava morto, só momentaneamente incapacitado. Marty correu para os fundos da casa, fechando a porta atrás de si – não que isso fosse adiantar muita coisa. Bobby estava em frente a um túmulo, com dois fantasmas parados ao lado dela. Marty nem mesmo pensou, só ergueu o taco de beisebol e correu na direção deles, gritando. — Calma! – a menina exaltou. – São meus avós. Vovô, esse é o cara que eu falei, ele segurou os monstros. — Então… – Marty hesitou. – Eles meio que estão invadindo. — Você tinha uma tarefa, rapaz. — OK, dá tempo. Eu já estou terminando – Com um livro antigo aberto à sua frente, Bobby murmurou uma sequência de palavras em latim. Seu avô corrigiu a pronúncia de algumas partes, mas Marty não pôde assistir ao ritual. Às suas costas, uma explosão, e, então a legião de espectros e criaturas abissais ascendeu como uma tempestade sobre os fundos do casarão. A energia se tornou pesada, sufocante, a mesma sensação de quando saíra de casa mais cedo, com o ar rarefeito e a neblina pesada. Marty esperava que suas irmãs estivessem bem. Que os monstros não tivessem se afastado demais do portal, que a mãe estivesse segura. Esperava não precisar lutar com nenhuma daquelas criaturas. Uma morta-viva se aproximou. Era a mesma mulher com o vestido branco. O queixo dela estava torto pelo golpe de antes. Em poucos minutos de loucura paranormal, o que antes parecia uma ótima fantasia para o Dia das Bruxas se tornara seu maior pesadelo. Marty ergueu o taco mais uma vez e, em sua ínfima coragem, se preparou para lutar até o fim – ainda que o fim estivesse bem próximo. O demônio de um olho só se arrastou pela varanda como uma cobra, ainda preso aos restos do móvel quebrado. Abriu a bocarra faminta para Marty e urrou uníssono às muitas criaturas monstruosas que os cercavam. E, então, desapareceu. Todos os monstros, seres horrendos que enchiam o quintal escuro da casa de Bobby, todos sumiram em pleno ar. — Foi fácil demais. — Eu nunca disse que seria difícil – Bobby replicou, um sorriso divertido curvando seus lábios cheios. Marty desabou ao lado dela, trêmulo como nunca antes. Balançou a cabeça, medindo a possibilidade de aquilo ter sido alguma alucinação causada pelos cogumelos da pizza do almoço. – Você está bem? Ele se virou para Bobby. Para a garota desconhecida que salvara sua vida e aceitara sua ajuda para salvar o mundo. — Ei, a gente salvou o mundo? Ou só Coney Mountain? Bobby sorriu em segredo. As gêmeas apareceram na varanda do quintal, erguendo os estilingues. Sorrisos aventureiros iluminavam seus rostos. — Então acabou mesmo? – Marty indagou, analisando os arredores. — Por enquanto. – Bobby ficou de pé e estendeu a mão em sua direção. Uma ajuda e um cumprimento. – Foi bom salvar o mundo e Coney Mountain com você, Marty Fontaine. Jedi, fangirl e a próxima Indiana Jones. Ah, escreveu alguns livros também. Instagram @NizzFF Testamento O terror toma o som antes de você fazê-lo Leno Lugas “Retornarei. Canção esta Tocando Terão todos Destino mesmo “Amor”, sempre isso Escutará Você a Família e serenidade Tranquilidade haverá Alguma forma De que lembre agora Destino meu Levou que mal Você Mas digo Partirei agora” Leia do fim para o início! Sábado, 30 de março, 1985 Querido Diário, tem coisas que todo mundo odeia: segunda-feira, ovo estragado, brinquedos quebrados, feijão queimado. Eu odiava quando minhas bonecas quebravam (ainda odeio), odeio quando minha mãe bebe porque ela não bebe pouco. Hoje, o que mais odeio é essa música chamada Testamento. Não sei a história dela, só sei que minha tia-avó fez e gravou num disco há muito tempo, antes de morrer. Se não fosse pela vovó, eu jamais saberia disso, e é apenas isso que sei de minha tia-avó, nem sei o nome e nunca vi uma foto dela. Todo domingo a vovó escutava a música. Eu até gostava desse bolero. Mas passei a odiar a canção desde o Dia Ruim. Aconteceu na metade do mês. Eu lembro claramente desse dia horrível. Eu fui na escola e fiz um lindo desenho de O Pequeno Príncipe (meu livro preferido), fui pra casa cedo e muito ansiosa. Nem quis pegar ônibus (passei pelo viaduto). Quando cheguei, tomei meu banho, comi bolacha recheada, sanduíche e suco. Vesti minha melhor roupa pra ver a vovó e ver meu irmão Leon, que às vezes é um idiota (ainda mais agora, ele está com essa mania de me assustar, falando que dá pra ouvir o que o Diabo diz se pegar alguns discos e tocar ao contrário). Ele ouviu que uma cantora que eu não gosto fez pacto e que dá pra saber isso tocando o disco ao contrário e agora quer fazer isso com meus discos. Ele às vezes é um idiota, mas estou com tanta pena dele. Vovó passou mal, sentiu dor no peito. Leon tava sozinho em casa com ela. Nós fomos pro hospital. Vovó morreu do coração. Lembro de ouvir minha mãe e tia gritando lá. Toda vez que eu lembro dói muito. E toda vez que escuto essa música, eu lembro do que aconteceu. Por isso eu cheguei pra mamãe e disse: “Não quero mais escutar isso”. “Por que não?” “Eu lembro do que aconteceu com a vovó Luiza.” “Então tá. Não vai mais escutar, até porque só a vovó escutava mesmo.” Minha mãe disse, sorrindo, mas eu sabia que ela ia logo pra um canto chorar. Eu acho que mamãe tentava se manter forte pro papai, pra Leon e pra mim. Nós não comentamos com ela, acho que isso funcionou pra todo mundo e principalmente pra mim. Sei que vou sentir muitas saudades dos olhos azuis da vovó Luiza. Eram tão azuis e lindos que mamãe diz que a música Bette Davis Eyes de Kim Carnes é a cara da vovó, por causa dos olhos tão azuis. Realmente, lembrava mesmo. Diferente dela, meus olhos são negros e eu mesmo sou negra. Não que isso seja um problema, só me incomodo um pouco porque alguns idiotas acham que devo suportar as brincadeiras deles sobre minha cor apenas porque tem um programa de humor em que aquele humorista negro suporta as mesmas coisas na TV… babacas… Depois de um tempo, eu passei não sentir mais aquela aranha em meu peito, me comendo por dentro, a dor foi diminuindo, mas sempre tenho a sensação de que vovó viajou e vai voltar. A mamãe está melhor. Mesmo assim, faço de tudo pra deixar ela contente e pra não magoar: vou e volto de ônibus, não passo pelo viaduto perigoso (o ruim disso é que não vejo mais a minha amiga Claudia, que conheci faz poucos dias), guardo minhas bonecas quando eu brinco, arrumo meu quarto. É tão bom ver ela sorrir e me dizer: “Obrigada, Clarice”. Ah! Também estou dormindo cedo! E ainda tem mais: minha mãe está me deixando ver TV até tarde nos fins de semana e até brincar de gude com osmeninos na rua! Quarta-feira, 17 de abril Depois de uns dias eu resolvi voltar pra casa a pé e passar pelo viaduto. Prefiro assim, é mais perto e melhor, porque eu vejo a Claudia. Disse a ela que ia ver um filme muito legal no cinema, que todo mundo tá comentando. Amo filmes de terror, principalmente do Freddy Krueger! Falando nisso, esta noite sonhei comigo andando no viaduto e minha vó se aproximando, sempre muda e séria, me encarando. Tive muito medo, porque eu só escutava os passos dela e nada mais, não dava pra ver nada, mas eu sabia que era ela. Deve ser por causa dos filmes, principalmente por causa daquele Poltergeist. Quinta-feira, 18 de abril Achei que não ia conseguir ver, mas eu consegui! Eu vi A Hora Do Pesadelo! Não consegui dormir direito! Juro que vi as portas do guarda-roupa se mexerem! Fui dormir com mamãe. Acho que papai descobriu que eu tava com medo, só espero que ele não conte nada pro Leon! Sexta-feira, 19 de abril Fiquei mais tempo conversando com Claudia no caminho de casa. Ela é mais velha do que eu, tem uns seis ou sete anos a mais e, por isso, é bem mais madura. Contei pra ela que não consegui dormir direito. “É só um filme, os mortos não fazem nada. É dos vivos que devemos ter medo. Eles que machucam nosso coração. Eles que nos matam”, ela disse. Isso me confortou muito! Me senti mais leve! Brinquei na rua com os meninos! Dyogo, o menino que se mudou faz poucos dias, odeia perder gude! Ele é bonito. Fiz tarefa de matemática! Odeio! Fim de semana tá chegando! Agora vou dormir, brinquei demais. Acordei agora de madrugada porque, de novo eu vi portas se mexendo! Vou dormir com papai e mamãe! E, pra piorar, sonhei novamente com a vovó! Eu estava no viaduto outra vez, e tava tudo escuro, e a vi andando na minha direção, parecendo falar algo baixinho, não dava pra escutar e também não dava pra ver o rosto dela. Também vi uma sombra seguindo ela, e essa sombra usava um chapéu, parecia ter um só um olho, bem grande… o olho debaixo do chapéu. Segunda-feira, 22 de abril Papai descobriu tudo! Leon estava mexendo portas pra me assustar! Encontrei Claudia na volta pra casa. Bem como Claudia disse: é pra ter medo dos vivos e não dos mortos! Falando nisso, como deve estar a vovó no Céu? Estou com saudades dela… Sábado, 04 de maio Hoje é sábado. Sempre acho que vou pra casa da vovó. Isso me dói tanto o peito… novamente a aranha me machuca por dentro. E desta vez parece que ela vai comer tudo que tem dentro de mim. Não aguentei e chorei. Contei pro papai que eu queria tanto ver a vovó novamente. Que eu queria pelo menos ir na casa dela, lembrar dela. Leon foi contra. Ele ficou um pouco bravo quando eu falei que ia voltar lá. Domingo, 05 de maio Estivemos na casa da vovó pra pegar umas coisas. Estava no quarto dela, em que eu costumava dormir, e ouvi Leon fazer aquela palhaçada de escutar o disco ao contrário! E logo na música que eu odeio! Papai deu uma bronca nele, por mais que ele tentasse dizer: “Não fui eu!”… Leon é cínico, ele sempre fez isso! Bem feito! Entrar na casa fez meu peito doer mais! Que bom que não ficamos muito tempo! E que bom que amanhã é segunda, assim eu esqueço do fim de semana, esqueço que ia na casa da vovó, me arrependi de ter dito pro papai que queria ir lá. Acho que eu não devia mais voltar na casa da vovó. Sonhei mais uma vez com ela. Como sempre eu tava no viaduto, ela se aproximando, e dessa vez se aproximou mais que nas outras vezes, tanto que deu pra ver o rosto dela. Não dava pra saber se ela cantava ou falava alguma coisa, estava muito baixo. E de novo tinha alguém andando atrás dela, eu não sabia quem era, só sei que usava o chapéu, parecia estar com um livro ou uma pasta, não sei… e estava tudo escuro, só tinha a luz dos postes… vovó, espero que a senhora esteja bem aí no Céu. Segunda-feira, 06 de maio Encontrei Claudia, falei com ela do que aconteceu no fim de semana. Ela me abraçou muito forte e disse: “A sua vovó Luiza está bem agora. As pessoas são assim, elas passam pela nossa vida muito rápido, você não percebe, mas acontece. É como os carros sob este viaduto. Quando estamos aqui, não percebemos o que acontece com eles”. “O problema é justamente esse, elas passam muito rápido em nossa vida. Quero ter mais tempo com papai, mamãe, Leon, meus amigos e você. Você podia ir lá em casa, né?” “Hoje não dá, tenho que ir. Tchau.” Me despedi dela e virei a rua. Quinta-feira, 09 de maio Leon está mal, está deitado na cama, sentindo muita dor de cabeça. Ainda parece arrependido por ter feito aquela brincadeira de mau gosto. Mesmo doente, ele é cínico, falando que não tocou aquele disco ao contrário, mas ele tocou! Fui brincar de gude com os meninos. Dyogo não apareceu, estava de castigo porque não fez a tarefa! Mais uma vez tive um sonho ruim. Vovó estava pertinho de mim agora, cantava baixinho a música! E a pessoa atrás dela também estava mais próxima, era pequena. Segunda-feira, 13 de maio Fiz prova de matemática. Eu odeio matemática, mas fui bem! Não encontrei Claudia hoje… acho que vou contar pra mamãe que vou levar Claudia pra conhecer minha família. Será que mamãe vai ficar brava se eu contar que venho andando a pé pra casa e passando pelo viaduto? Leon ainda está de cama, com febre alta e dor de cabeça, mas insiste em ir lá fora. Mais uma vez fui dormir com papai e mamãe porque sonhei com vovó. Ela estava no viaduto, cantando, e a pessoa de chapéu veio atrás com o que parecia ser a pasta, eu acho. Terça-feira, 14 de maio Contei pra minha mãe sobre Claudia! Ela ficou uma fera porque desobedeci e estava andando a pé. Leon está cada vez pior. Perdão, meu Deus, por ter pensado assim dele e que ele fique bem logo. Mamãe está realmente uma fera, mesmo assim me deixou ver TV até mais tarde. Sexta-feira, 17 de maio Recebi o boletim, a menor nota que recebi foi 8,9 (aqueles idiotas que não me deixam em paz tiraram nota vermelha… parece que vão ficar quietinhos na sala a partir de agora. É melhor estudar do que ficar se preocupando com minha cor). Fui correndo contar pra mamãe! Ela me abraçou forte e me beijou! Papai falou que ia comprar um videocassete de presente pra mim! Fiquei tão feliz! E ele também me deu uma blusa vermelha com listras pretas e tênis Kichute! Mamãe parecia feliz, mas eu sei que ela tava triste, lá no fundo eu sei. Ela fica assim quando Leon adoece, mas ele está melhorando. Acordei de madrugada e fiquei de luz acesa. Mais uma vez tive o sonho no viaduto, e vovó cantava sem parar. E a pessoa de chapéu chegou mais perto, deu pra ver que era um menino, ele levantou a mão, pareceu que queria me entregar aquela pasta. Quarta-feira, 22 de maio Leon foi parar no hospital. Vi mamãe chorar muito. De novo senti meu peito doer por dentro. Não quero que aconteça com ele o mesmo que aconteceu com vovó. Ela me deixou brincar na rua, mas eu não queria, nem se Dyogo viesse me chamar. Antes de dormir, eu ouvi mamãe e papai discutindo atrás da porta, minha mãe não quer que eu volte pra casa andando, mesmo com Claudia me acompanhando. Foi o que pareceu. Ouvi papai falar uma coisa de “se jogar do viaduto”. Não sei. Será que eles estão com medo de que eu fique tão triste e me jogue por causa da vovó, mamãe e Leon, na frente de Claudia? Parece maluquice, mas foi o que eu ouvi, acho: “Tenho… medo… Clarice… ponte? … Claudia!?” “… amiguinha dela?” “Não… minha mãe… dezessete anos. Cantora… viaduto… Clarice… essa amiga dela.” “… é só uma criança!… Luiza tenha… Clarice.” “Não… aquela… música… Testamento… já perdi meu pai… mãe… meu filho no hospital… agora a nossa filha?… viaduto!” Tinha coisa que eu não sabia se estava ouvindo bem, se era “lançou um livro” ou “gravou um disco”, ou se era “tinha Claudia” ou “tia Claudia”… bem estranho mesmo! Fui pra cama e rezei. Tomara que nada de ruim aconteça. Sexta-feira, 24 de maio Não fui pra escola hoje, acordei preocupada e com aquela sensação de aranhano peito. Espero que Leon esteja bem. Hoje nós vamos visitá-lo no hospital! Vou levar um livro que ele gosta (Menino Maluquinho) e vou contar as novidades dos garotos daqui da rua pra ele! Quarta-feira, 29 de maio Leon morreu! Meu irmão morreu! Está doendo demais! Demais! Sinto uma aranha gigante no peito! Quero meu irmão de volta! Quero ser feliz com minha família! Não quero ter sonhos ruins! Chega! Sonhei com vovó de novo, ela se virou pro menino de chapéu. E ele era meu irmão! Eu olhei pra ele, ele levantou rosto pra poder me ver. Ele não tinha olhos! No lugar dos olhos estava tudo vazio e escuro, como se tivesse um mundo negro dentro dele. Fiquei com medo! Eu tentei me afastar, mas eu me aproximava sem querer! Tive medo de tocar nos buracos dos olhos dele e ser sugada! Ele sorriu e não tinha dentes! A boca era igual aos olhos, com aquele espaço vazio e preto! Gritei por papai e mamãe! Ele estendeu a pasta pra mim e vi que era a capa de um disco. Ele olhou pra trás e vi mais uma pessoa no viaduto. Pelos cabelos e pela sombra eu sabia que era uma mulher baixinha. Terça-feira, 11 de junho Já faz dias que eu não escrevo nesse diário… eu não queria. Só queria ficar no quarto. Não queria falar de Leon. Só sei que sinto saudades dele e da vovó… Depois de dias é que fui na escola. Voltei e vi Claudia, contei tudo pra ela… depois do abraço de mamãe e papai, esse foi o melhor abraço que recebi. Ela me olhou com aqueles olhos azuis e disse: “Sei como se sente, já perdi alguém.” “Quem você perdeu? Irmão?” “Não, alguém mais próximo. Tiraram ele de mim.” Me despedi dela. Não quero mais passar por aquele viaduto, não quero deixar a mamãe triste. Voltei pra casa. Mamãe fez bolo de chocolate pra mim. Comi pouco… Tornei a sonhar com eles. A gente estava no viaduto. Vovó cantando esse bolero horrível, Leon me oferecendo a capa de um disco. Depois ele olhou (ah é, nem olhos ele tinha, mas se tivesse, teria olhado) virou a cabeça pra pessoa que se aproximava. Era Claudia! Não lembro o que ela estava fazendo ali, só sei que ela usava as mesmas roupas da vovó. Ela era a única que estava muda. Leon me oferecia o disco enquanto ficava com a cabeça virada pra ela, ele parecia rir, e vovó continuava cantando baixinho! Espero não perder Claudia também! Vou deitar com mamãe e papai! Sexta-feira, 14 de junho Amanhã, papai, mamãe e meus tios vão na casa da vovó terminar de tirar todos os móveis de lá. Demoraram tanto tempo assim porque tia Andreza ainda morava por lá. Parece que ficaram algumas coisas de Leon, não sei… eu vou lá ajudar. Sábado, 15 de junho Papai do Céu que nos ajude! Eu vi! Eu vi! Eu não acredito! Eu vi! Só consegui gritar de medo! Saí correndo da casa! Agora de noite estou mais calma, mas tenho muito medo e não consigo dormir. Papai e mamãe me fizeram um chá pra dormir, mesmo assim eu não consigo! Estou com tanto medo, tanto medo. Eles acreditam em mim, graças a Papai do Céu! E eu sei que eles estão com medo! Nunca senti tanto medo em minha vida! Só estou escrevendo porque eles estão deitados no meu lado agora! Foi tão horrível! Eu estava no quarto da vovó ajudando a tia Alexa e tia Andreza com as coisas (e vendo se Leon esqueceu alguma coisa lá) quando eu vi, pela primeira vez, a capa daquele disco que nunca saía da vitrola da vovó. Na capa tinha uma menina de cabelos grandes, pretos, ondulados. Os olhos dela eram azuis. A menina tava sorrindo. E ela era igualzinha à… “Essa é sua tia-avó, Clarice”, disse a tia Andreza, que contou tudo, “ela, a irmã gêmea de sua vó Luiza, ia se casar com o seu avô, mas ele se apaixonou por sua vó e desfez o casamento. Aquilo machucou muito o coração dela. Então… então… sua tia-avó se jogou do viaduto, caiu de cabeça… uma semana depois de lançar o disco dela! Sua vovó Luiza fez a promessa de nunca tirar o disco da vitrola!… ela se chamava Claudia.” Senti que tudo de ruim estava no meu peito. Queria ir embora logo! Comecei a gritar e chorar! Rasguei a capa do disco! Lá dentro tinha um papel com a letra da música! Minha mãe veio me controlar, eu tentei falar pra ela o que eu vi! Ela só fazendo: “Xiu! Xiu! Calma!”, que raiva! Parece que ela não queria me escutar! Ela só parou quando papai veio. “Calma, gente, por favor!”, ele ficou falando até que nós ficamos quietas, até mesmo a mamãe, que disse: “Tá, agora desliga aquela porcaria daquela vitrola! Eu passei a odiar essa música!”. Nós ficamos quietas. “Estranho”, papai disse, olhando pra sala. Tia Alexa perguntou o que foi, e ele respondeu: “Eu podia jurar que tirei a vitrola da tomada e… a música está sendo cantada na ordem inversa, ela está cantando a partir da última palavra.” Eu não estou me sentindo nada bem e o meu peito dói… querem me levar pro hospital amanhã… Leno Lugas - comedor de queijo, fã de Drive, Poderoso Chefão e Clube dos Cinco. Maçãs O pomar abandonado Marcus Barcelos Os anos oitenta… Os maravilhosos anos do início da minha infância, recheados com os aromas deliciosos do Natal e de maçãs assadas, e memórias incríveis de intermináveis dias quentes de verão, repletos de risadas e amizades inocentes. Também foi, porém, o final desta mesma década que marcou o fim da minha visão imaculada do mundo, e me fez perceber que, às vezes, na vida, nos deparamos com situações bizarras que simplesmente não conseguimos explicar. Eu nasci e cresci em Oswaldo Cruz, um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro conhecido pela tradição no Samba. Minha mãe tinha crescido em uma típica cidade do interior, Trajanos de Moraes. Lembro bem de incontáveis visitas felizes a parentes e amigos por lá, memórias que geralmente remontam a tardes chuvosas e jogos de tabuleiro. No entanto, foi justamente em uma dessas visitas que o primeiro incidente sinistro responsável por me fazer questionar o que eu conhecia como realidade realmente aconteceu. Era o verão de 1989 e eu tinha nove anos. Minha família estava visitando uma velha amiga de infância da minha mãe, a tia Hilda. Eu estava muito animada por estar lá, porque esse pessoal tinha uma filha chamada Eliza que era da minha idade, e isso significava que eu não precisaria ficar sozinha com a choradeira irritante do meu irmãozinho de seis anos de idade, que não aceitava perder nas partidas de Banco Imobiliário (que ele insistia em jogar mesmo sem fazer a menor ideia de como funcionava o jogo). Ia ter uma festa de jantar no fim da tarde, e depois disso minha família me deixaria por lá para passar a noite. Lembro que me senti bem especial, porque meu irmão iria voltar com meus pais, e eu ficaria com a diversão toda só pra mim. Os outros convidados ainda não haviam chegado e faltava bastante para o jantar ficar pronto. Como não queriam crianças no caminho enquanto a comida estava sendo preparada, a Eliza, o irmãozinho dela, o meu irmãozinho e eu fomos mandados para o quintal dos fundos, para brincar (e não atrapalhar) até que fosse a hora de voltar para dentro, lavar as mãos e comer. Eliza morava em uma rua sem saída, e sua residência dava para os fundos da pista de corrida de Trajanos de Moraes. Atrás da casa da Eliza, ao longo de toda a extensão da rua estreita, havia um grande terreno com uma velha casa condenada, que havia sofrido um incêndio muitos anos antes. No final dos anos oitenta, os rumores sobre o destino daquela casa corriam soltos. Alguns falavam sobre um incêndio criminoso por causa de dívidas de drogas, outros, que a casa havia abrigado um maníaco sexual e sua família, e que eles tinham sido vítimas de um ataque justiceiro. Havia até quem dissesse que um dos ocupantes da casa cometera um assassinato e alguém decidiu que era hora daquela pessoa ter o que merecia. Infelizmente, tudo de que se tinha certeza era o fato de que, em um quarto do andar de cima, dois jovens haviam sucumbido à inalação de fumaça. Em volta da casa existia um enorme pomar que precisava de poda e, cercando o terreno, um muro alto e irregular.O portão de entrada, igualmente alto, trancado com um enorme cadeado enferrujado, estava exatamente do outro lado, longe da casa da Eliza. Como éramos crianças pequenas, abençoadas com a ignorância sobre a história desoladora da casa, Eliza, nossos irmãos e eu passamos muitas horas com nossos pais entrando lá por uma fresta na cerca do jardim e passeando pelo terreno, colhendo maçãs, pêras e amoras, que depois usaríamos para fazer tortas de frutas quando voltássemos para casa. Naquele dia em particular, enquanto Eliza e eu sentávamos inquietas no fundo do jardim, completamente entediadas depois de brincar com todos os brinquedos do quintal e de passar os últimos dez minutos fazendo carinho no coelho de estimação dela, nossos olhos se encontraram e ela acenou com a cabeça na direção do buraco da cerca. Sabendo muito bem que não devíamos entrar no pomar sem permissão, e dando uma olhada rápida e furtiva para os nossos irmãos brincando com aqueles “brinquedos de meninos” bobos perto da porta dos fundos, nós sorrateiramente nos esgueiramos pela cerca e para o mato além dela. Não sentimos medo de ficarmos sozinhas por lá, pois o pomar era nosso velho conhecido havia tempos. Animadas, brincamos e fantasiamos sobre fadas e seres mágicos enquanto escalávamos os galhos e deixávamos cair maçãs pequenas nos bolsos da frente do nosso macacão. Talvez, com um pouco de sorte, se falássemos para os nossos pais que só entramos um pouquinho para pegar as frutas, eles deixariam passar nossa desobediência e, quem sabe, até nos deixariam fazer torta de maçã depois do jantar. De repente, e sem muita surpresa, percebemos que a velha casa abandonada estava bem na nossa frente. Dava pra perceber pelo exterior que o lugar deveria ter sido realmente magnífico um dia. Dois andares construídos em pedra cinza, a casa nos inspirou a romantizar sobre belas princesas trancafiadas em torres cobertas de heras. Era triste ver a fuligem, as janelas quebradas ainda com cacos de vidro no andar de baixo, e a porta da frente coberta de mato, que há tempos havia caído das dobradiças e estava começando a apodrecer no chão coberto de musgo. As janelas do andar de cima estavam cobertas com tábuas, provavelmente numa tentativa de se tornar menos acessíveis aos vândalos, e o telhado parecia irregular, como se os azulejos de ardósia fossem despencar a qualquer momento. Boquiabertas, nós admirávamos a casa. Eu confesso que estava pensando de novo em belos príncipes correndo pelo pomar, espadas em mãos, prontos para oferecer o “Beijo do Amor Verdadeiro”. Eliza, que era líder do grupo de escoteiras da igreja local, e muito envolvida com atividades esportivas fora da escola, era muito mais atrevida do que eu e de uma natureza extremamente curiosa. Ela logo falou que “tínhamos que entrar” e explorar. Hesitante, mas por apenas um segundo, concordei, e marchamos adiante. Olhando através da porta dilapidada, diretamente à nossa frente, podíamos ver um grande saguão com uma sala imensa, bem iluminada, à esquerda. Olhando mais para dentro, vimos várias portas que davam para a esquerda e, ao fundo, o que parecia ser a cozinha. Mas era difícil dizer, pois o saguão era realmente muito longo, quase um corredor. Havia uma larga escadaria para a direita que escondia qualquer possível porta naquele lado do saguão. Olhando para a escadaria, eu senti a primeira pontada de desconforto. Por causa das janelas cobertas com tábuas no segundo andar, era difícil enxergar muita coisa lá em cima. Na verdade (e claro que isso devia ser por conta da minha imaginação de criança), as escadas pareciam ser engolidas no meio do caminho por uma escuridão sobrenatural. Parecendo não notar aquela enorme escadaria que lembrava uma feia boca aberta, Eliza pegou a minha mão e me puxou para a grande sala à nossa esquerda, que com certeza tinha sido uma sala de estar um dia. Havia uma boa quantidade de papel de parede coberto por graffiti e danificado pela fuligem, descascando em todo ambiente. Havia até algumas poltronas velhas, de aparência sombria, que com certeza já tinham visto dias melhores. Esquecendo da escadaria por alguns momentos, me agachei perto de um sofá, chamando Eliza para me seguir, e deixamos algumas de nossas maçãs rolarem pelo assoalho desgastado. A luz, que vinha magicamente por entre a copa das árvores, entrou pelas janelas quebradas. Lembro que todo o local parecia encantado, como se fadas de verdade pudessem realmente viver ali. Sentamos no chão e conversamos por um bom tempo, rindo sozinhas, com nossa inocência infantil, de uma peça que estávamos pensando em pregar no irmão de Eliza naquela noite. Ela tinha um par de walkie-talkies, e queríamos deixar um debaixo da cama dele, esperar ele deitar para dormir e sussurrar coisas sem sentido para deixá-lo morrendo de medo. Pensando agora, parecia algo bem cruel de se fazer com o pobrezinho, mas na época nós genuinamente achamos que seria muito engraçado. Mordi uma maçã que pesquei do meu macacão enquanto estudávamos a ideia de visitar as outras salas no andar térreo. Concordamos sem nenhum tipo de resistência que não iríamos no andar de cima, pois, ainda que fôssemos tão jovens à época, tínhamos o bom senso de perceber que a escadaria provavelmente era muito insegura depois do fogo, então preferimos não nos arriscar, sabendo que nossos pais ficariam furiosos caso alguma coisa ruim acontecesse. Foi então que me ocorreu que Eliza também já deveria ter percebido a escuridão e o silêncio sobrenaturais da escadaria, já que entramos na casa sem nenhum desejo de ir bisbilhotar em lugares que certamente não pareciam muito acolhedores. Enquanto conversávamos, começamos a ouvir um tap, tap, tap, muito suave, seguido do que soou como um leve barulho arranhado. Parecia vir do lado de fora da janela da sala onde estávamos. Congelamos, nossa cabeça balançando de curiosidade para olhar. Ficamos desse jeito, em silêncio, por uns bons minutos. Depois de não ouvir mais nada, Eliza riu, o que me preocupou. Afinal, se tivesse mais alguém por ali, com certeza teriam ouvido a gargalhada dela. Me repreendi inconscientemente por ser tão medrosa, mas não pude deixar de perceber o quão bobas fomos de nos enfiar no pomar sem que ninguém nem ao menos soubesse que tínhamos saído do jardim. Não houve mais sons. Tudo ficou repentinamente quieto. “Você ouviu aquilo?”, perguntei, baixinho. Eliza deu de ombros, dizendo que tinha certeza que o barulho viera de algum dos gatos do vizinho, ou então de algum galho balançando com o vento e se chocando contra a janela quebrada. De qualquer forma, para mim, o nosso santuário encantado, naquele momento, perdeu boa parte do encanto… Guardei minha fruta parcialmente mordida de volta no macacão, nervosa. Eliza pegou a minha mão, levantamos e nos dirigimos até a porta para explorar mais adiante. Depois de sair da sala, tivemos uma visão melhor do saguão. Havia só mais duas portas no lado esquerdo. Ambas pareciam escancaradas, mas a iluminação estava longe de ser maravilhosa; não conseguiríamos enxergar nada sem entrar. Lembro muito bem da sensação ruim que o lugar passou a me transmitir, quando comecei a achar tudo extremamente assustador. Eu sentia um tipo estranho de desconforto. Confidenciei minhas novas opiniões sobre não querer mais continuar a exploração à Eliza, mas ela simplesmente riu e disse que eu estava sendo boba. Tentando colocar meus medos de lado, segui a Eliza para dentro da próxima sala. Uma vez dentro, relaxei um pouco. O vidro da janela estava quebrado, mas sua estrutura era grande, e a sala, bem iluminada. Parecia ter sido muito bonita um dia. A maior parte da mobília ainda estava no lugar, incluindo uma grande estante de madeira. Não tinha mais nenhuma porcelana, é claro, pois a casa provavelmente tinha sido saqueada anos antes; havia muito mais graffiti ali do que na primeira sala, e ela era consideravelmente mais danificada que a anterior.Encostando nos restos apodrecidos de uma grande mesa de madeira, desenhei um rosto na fuligem. Eliza limitou-se a abrir gavetas e a tagarelar sem parar sobre quem poderia ter vivido ali. Eles “com certeza deviam ser muito chiques”, ela disse, “pois toda a mobília era muito bonita”. Ou pelo menos havia sido em algum momento… Enquanto Eliza explorava, fui até o rack para examinar o belo design que havia sido esculpido na madeira. Foi nesse momento que percebi algo soando como passos ligeiros e leves, diretamente acima do lugar onde eu estava. Eu não disse nada e escutei por um minuto, sentindo minha pele começar a arrepiar em calafrios. Os passos pareciam ir e voltar. Um, dois, três, quatro… E de novo. E de novo. “Eliza, você ouviu isso?”, sussurrei, apontando para o teto. Os movimentos de Eliza foram desacelerando até pararem por completo, e ela olhou para cima, seguindo meus olhos para o teto descascado. Silêncio. O som cessou tão de repente quanto começou. Então, novamente, mas acho que sem muita convicção, Eliza riu de mim e disse que eu deveria ser mais corajosa… Mas seus olhos relancearam pelo menos mais duas vezes para o teto antes que terminássemos a inspeção da sala. Quando saímos pela porta, Eliza insistiu que a gente “precisava” explorar a terceira sala do corredor, e que então nós poderíamos ir, já que eu, claramente, “era muito bebezona para continuar”. Será que ela realmente não sentia o mesmo pavor que estava alojado no fundo do mesmo estômago? Até hoje eu a pergunto como ela pôde ter sido tão blasé sobre o fato de que estávamos no meio de uma casa caindo aos pedaços, cheia de barulhos estranhos, abandonada no meio de um pomar, sem que ninguém soubesse que estávamos lá. Eliza sempre responde que era muito corajosa naquela idade. Eu, é claro, já sabia do contrário. Eliza colocou uma mão na porta da terceira sala, tomando cuidado para não deixar cair as maçãs restantes, e empurrou. A porta abriu e nós duas ficamos boquiabertas ao mesmo tempo. Eu, de terror, mas ela, como gosta de contar até hoje, de admiração. Aquela era, sem dúvidas, a sala na qual o fogo tinha feito o maior estrago. Era bem menor do que as outras duas, e a janela era muito pequena, impedindo qualquer luz de entrar. As paredes eram negras, cobertas de fuligem, e não tinha quase nenhuma mobília à vista. A parede aos fundos havia queimado por completo, deixando visível um estranho desenho de algo parecido com um olho gigante. Estatelado e assustador, cercado por vísceras que mais lembravam os braços de um polvo. De alguma forma, as sombras pareciam ansiosas para atacar. Como se, a qualquer momento, pudessem saltar da parede enegrecida em nossa direção. Do outro lado, silhuetas de vários utensílios de cozinha pendurados. Comecei a pensar em como pareciam prisioneiros há muito mortos, algemados em alguma masmorra, quando um som como o de uma goteira chamou nossa atenção. Procurando a fonte do barulho, notamos uma poça cinza e suja contra a mesma parede queimada, vazando para a cozinha. Olhando para cima, vimos um buraco escuro no teto, parecendo tão pouco convidativo quanto a escadaria. Era dele que vinha o líquido estranho, e então eu cheguei à conclusão de que, para mim, já bastava. “Esse lugar é horrível”, eu disse, incomodada. “Podemos ir embora? Por favor?” Todas as fantasias com fadas e princesas já haviam desaparecido, substituídas por irritação, pensamentos ruins e medo. Aquele lugar não era nenhum palácio. Era um lugar onde coisas ruins haviam acontecido. E eu só queria ir embora. Eliza olhou para mim e suspirou, “Ok…”, e, então nós viramos na direção da porta aberta no início do saguão, gloriosa, iluminada… segura. Tão convidativa quanto uma sorveteria ou loja de brinquedos. Foi então que as coisas deram uma virada para o inexplicável. Demos apenas alguns passos na direção da porta, e então paramos. Lembra daqueles brinquedos antigos que a gente chamava de “Bola Pula Pula”? Pareciam balões gigantes e coloridos, feitos de material reforçado e com grandes orelhas, nos quais você podia sentar em cima e pular por aí. Eliza tinha um desses, era bem rosa, e na frente tinha o rosto de um coelho meio bobão. Só que tinha ficado na casa dela, e agora estava ali, no saguão, bem na base da escada, olhando para a gente e balançando para um lado e para o outro, como se tivessem acabado de usá- lo. O brinquedo me fez sentir fisicamente mal. Eu estava certa, no fim das contas. Alguém estava lá. Mas quem diabos poderia ser? Será que os nossos irmãos tinham nos visto escapar pelo pomar, e então decidiram pregar uma peça na gente? Deus, quando lembro da sensação, de como pensei no quanto fomos tolas em desaparecer daquela maneira, e no que poderia acontecer, agradeço por ainda estar aqui. “Vem…”, Eliza sussurrou, vacilante. Não havia outro jeito de sair. Eu não queria tentar a sorte com nenhuma das janelas quebradas das primeiras duas salas, que ainda tinham vidro quebrado. Se eu rasgasse meu macacão, minha mãe ficaria furiosa. Senti meu estômago embrulhar enquanto seguimos à frente, com mais e mais do saguão ficando à vista e revelando a boca larga, aberta e negra da escadaria. De repente, Eliza pulou e soltou uma grande gargalhada, e então pegou a minha mão e me puxou. Eu olhei para cima e imediatamente me senti um pouco aliviada. Parada ali, no primeiro degrau da escada, estava Evangelina, amiga da Eliza. Eu tinha esquecido completamente que a família dela também tinha sido convidada para a festa de jantar. Um ano mais velha que a gente, Evangelina morava na rua paralela à de Eliza, a rua que tinha a entrada para a pista de corridas de Trajanos de Moraes, onde as famílias mais abastadas moravam. Evangelina tinha uma personalidade extremamente mandona, resultado direto de sua criação mais “privilegiada”. Depois de recuperar-se da surpresa, Eliza perguntou o que ela estava fazendo ali, e se ela tinha nos visto entrar. Evangelina apenas sorriu, com aquele sorriso largo e irônico que conhecíamos bem, e então apontou para as escadas. “Venham, vamos subir!”, disse, com sua voz distinta e meio pomposa. O pai da Evangelina era diretor de uma empresa a várias cidades de distância, e ela estudava em um internato durante o ano, voltando para casa apenas nas férias, cada vez mais comportada e falando melhor. “Eu estava explorando aqui em cima e encontrei algo que desejo muito mostrar a vocês!” Com isso, ela virou as costas e subiu os últimos degraus, ligeira. Eliza, é claro, prosseguiu de imediato, mas quando eu olhei para a escuridão e lembrei do buraco na terceira sala, alguma coisa dentro de mim me fez agarrar o pulso dela e impedir que continuasse. Percebendo que não a acompanhávamos, sem nem ao menos se virar, Evangelina falou de novo. “Venham logo”, insistiu. “Vocês realmente precisam ver o que eu encontrei…” Mas Evangelina já não estava mais subindo os degraus rapidamente. Ela passou a subir bem mais lentamente, um degrau de cada vez, levantando um pé, e depois o outro, sem olhar para trás. Mais uma vez senti uma inquietude que embrulhou meu estômago. O que diabos ela poderia ter encontrado naquela escuridão total? E, honestamente, o que ela estava fazendo sozinha naquela casa para início de conversa? Era o último lugar onde uma garota bem comportada como ela deveria estar. Evangelina deu outro passo adiante e parou. “Vocês vêm?”, perguntou. Dessa vez, a voz dela soou irritada, exigente. Mesmo assim, continuou sem se virar, parada, com os braços largados. Eliza, de repente, recuou uns dois passos, e se virou para mim: “Olha só para as roupas dela…”, disse, quase num sussurro. Eu olhei para Evangelina, e ela deu mais um passo na direção da escuridão cada vez mais intensa, mas então eu percebi algo. Evangelina era uma menina muito, muito feminina. Eu, ela e Eliza, às vezes, comparávamos roupas. Lembra, nos anos oitenta, aquelas horríveis saias “Ra-Ra”, com cores berrantese camadas, que combinavam com camisetas de babado ou macacões? Bem, Evangelina nunca era vista sem uma dessas roupas. No entanto, a menina à nossa frente estava vestindo o que parecia ser um jeans azul escuro, rasgado na altura da canela, e uma espécie de suéter cinza e chamuscado. Enquanto eu a olhava subir, agora quase totalmente engolida pelo implacável nada, foi quando percebi outra coisa. Deve ter sido uma ilusão de ótica, talvez provocada pela minha mente fértil e amedrontada, mas enquanto a escuridão se fechava em volta dela, outras silhuetas pareciam acompanhá-la, como se houvessem mais pessoas no andar de cima. Tremendo, olhei para Eliza mais uma vez, e notei que ela também mantinha os olhos fixos em Evangelina. Só que seus olhos, agora, estavam estreitos e marejados. Pela primeira vez ela também percebia que alguma coisa estava errada. Tentei dar um passo para trás, mas eu estava paralisada, experimentando pela primeira vez na vida o medo irracional. Poderia ser o ambiente sinistro, somado ao comportamento estranho da nossa amiga, que me fazia imaginar coisas, mas o ar ficou instantaneamente pesado, e fui preenchida pela mesma sensação péssima de quando descobri que minha avó tinha falecido, e minha respiração falhou. Quase impossível de enxergar agora, Evangelina, ou quem quer que fosse, finalmente parou seus passos intencionalmente lentos e se virou. As outras sombras também se viraram. Elas não eram nada mais do que silhuetas escuras. Mais uma vez nós a ouvimos falar. Só que, dessa vez, a ouvimos em um suspiro, como um som ecoando apenas dentro da nossa cabeça. “Vocês vão subir para ver o que a gente encontrou, ou vamos precisar ir aí e puxar vocês? Venham… Nós só queremos brincar.” Ficamos em silêncio, incapazes de nos mover. Eu só queria sair dali, só queria que nossos irmãos aparecessem, rissem da nossa cara e dissessem que era tudo brincadeira. Tinha que ser uma brincadeira. Eliza choramingou, e apertou a minha mão. Evangelina desceu um degrau, na nossa direção. Os “outros” também. “Então… Se vocês não vêm…”, sussurrou, em um tom irônico. “Nós vamos.” O que aconteceu em seguida fez nossos pés voltarem subitamente a funcionar. Evangelina e as outras silhuetas estenderam braços negros, feito tentáculos, que esticaram escada abaixo na nossa direção, preenchendo todo o ambiente com um forte cheiro de carvão queimado. Gritando, demos as costas àquelas coisas na escadaria, que ultrapassavam qualquer tentativa de compreensão dos nossos nove anos, e corremos com tudo para a porta da frente. Esquecendo qualquer plano que um dia tivemos de fazer torta de maçã, as frutas que ainda nos restavam caíram de nossas roupas. Cambaleamos loucamente por dentro do mato, sem olhar para trás, e finalmente surgimos de dentro do buraco na cerca, nosso coração trovejando, enquanto berrávamos. Nossos irmãos olharam admirados para nossa aparência desesperada. “O que foi isso que acabou de acontecer?”, ofeguei para Eliza, quando sentamos novamente na segurança do jardim da casa dela. “O que diabos Evangelina estava fazendo para nos assustar daquele jeito?” Tentando nos recuperar do susto e procurando algum sentido no que tínhamos vivenciado, falamos brevemente e fizemos o máximo para nos convencer de que a natureza sinistra do andar de cima da casa tinha feito nossa mente ajudar Evangelina e pregar uma peça em nós. Olhando uma para a outra, sem que estivéssemos totalmente convencidas da nossa segurança, caminhamos pelo jardim para a porta de trás, abaladas e desesperadas por um copo de água. Eliza falou rapidamente sobre tentar convencer nossos irmãos a quebrar as regras e nos acompanhar de volta para o pomar, para ver se conseguiríamos encontrar Evangelina e trazê-la de volta conosco. Lembro que eu queria tudo naquele momento, menos voltar ao pomar. A porta dos fundos da casa da Eliza dava para a cozinha, que, por sua vez, apontava para um corredor percorrendo todo o comprimento da pequena casa, terminando bem na entrada principal. Enquanto bebíamos água em grandes sorvos, uma batida na porta da frente chamou nossa atenção. Automaticamente nos viramos para o corredor, para ver a mãe da Eliza atender a porta. Num pensamento delirante, imaginei as sombras tocando a campanhia e perguntando para a mãe dela se nós estávamos ali. Mas não eram sombras, e sim a mãe da Evangelina, tia Marina, que sorria e trazia, firme em sua mão, uma garrafa que parecia ser de vinho. Ela começou a se desculpar por ter chegado mais tarde do que o esperado, e explicou que o carro tinha falhado em dar partida depois que ela parou na mercearia da vila, e isso a atrasou bastante. Quando ela foi convidada a entrar na sala de estar pela mãe da Eliza e a abraçou, nossa boca se abriu de espanto, e o horror voltou a revirar o fundo do meu estômago. Evangelina estava logo atrás dela, cabelos trançados com primor, vestindo um combinado rosa e branco de saia Ra-Ra e camiseta, abraçada com uma mochila rosa e fofa. Eliza e eu olhamos espantadas, e Evangelina nos olhou de volta com confusão. Será que imaginamos nosso encontro na casa abandonada? Será que era outra pessoa? Oh, as formas como as crianças racionalizam tudo… Nós acreditávamos em fadas, afinal. Tinha sido outra menina, então? Tínhamos tanta certeza de que era ela… Finalmente, o olhar confuso evaporou do rosto de Evangelina. Ela sorriu para nós, e então reclamou, com aquele jeito dela, de que seu dia tinha sido “muuuuito chato” até o momento, e se nós poderíamos “por favooooor” ir para o quarto da Eliza brincar de My Little Ponies um pouco antes do jantar ficar pronto. Ela, em seguida, passou sua mochila parcialmente aberta para Eliza guardar no cabideiro perto da escada. A menina olhou para dentro da mochila e seu rosto ficou branco como gesso. Assustada, imaginando o que poderia estar errado agora, olhei de Eliza para Evangelina, e depois para a mochila. Ainda sorrindo, Evangelina, agora parada no primeiro degrau das escadas, olhou diretamente para mim e apenas disse “Bobas, bobas, bobas…”, enquanto Eliza deixava cair com nojo a mochila, derramando seu conteúdo no chão do corredor. Rolaram maçãs iguais as que colhemos mais cedo. “Vocês deixaram suas maçãs para trás”, Evangelina continuou, seus olhos brilhando. “Como vocês querem fazer tortas sem elas?” Não soubemos o que responder. Evangelina pegou uma das maçãs, deu uma mordida e, sorrindo, perguntou: “E então? Vamos ou não vamos subir para brincar?” Nem preciso dizer que, preferindo a segurança da sala de estar cheia de adultos, nós recusamos o convite de Evangelina. Marcus Barcelos - escreve livros e levanta pesos. Facebook: Marcus Barcelos / Instagram: @m.v.barcelos VHS Insanos, a loucura do inexplicável Glau Kemp Ana está dormindo no quarto. O rádio relógio disparou há quarenta minutos, mas o alarme foi contido por uma toalha úmida, deixada no criado mudo na noite anterior. Os lábios permanecem comprimidos. Tem medo. Os cabelos longos espalhados na cama formam ondas, como se imersos no mar. O corpo gelado pesa no colchão, os pés e mãos não obedecem aos comandos. Agora está acordada, porém, não desperta; a mente foi ativada, mas o corpo, não. Alguém gritando. O coração dispara, o tremor da cama é o único movimento que experimenta. Estão batendo na porta, seu gato esperneia no corredor; a maçaneta voa pelo cômodo. A porta abre rangendo, alguém entra; ela sabe que é um homem, apesar de ele não possuir rosto, só uma boca sem lábios, e dela pendem as vísceras de seu gato Putz. Morto. O homem avança, não está sozinho; atrás dele surgem outros, com braços longos e dedos que arrastam. Ana tenta gritar, os olhos vertendo lágrimas que aquecem a pele, fora isso tudo é paralisia. O cabelo toma a forma de mãos que envolvem seu pescoço. As criaturas entram. O homem encosta o dedo fino no pé de Ana. Asqueroso. O dedo é do tamanho de um antebraço, a criatura segue roçando-o nocalcanhar dela, a sensação do toque é densa; a reação, nula. Desliza a mão na perna de Ana. A cada passo, crava as unhas em sua pele. Para no ventre enquanto a segunda criatura acaricia a outra perna, um pedaço do gato cai, ainda está quente e Ana acha que sente a carne pulsar por um instante. O intruso faz um círculo na virilha dela e desce devagar. Os cabelos apertam o pescoço, fechando completamente a garganta por um minuto, depois alivia a pressão, permitindo algum oxigênio. A criatura chega mais perto, dedos em seu seio ‒ a mente grita. O homem aparece diante de seus olhos, exibe dentes grandes. Entre eles: Putz em pedaços. A segunda criatura sobe na cama, arranhando suas coxas, fazendo sulcos com as unhas. O hálito é intenso e possui um odor desconhecido, mas no fundo ela sabe, é o gosto do gato. Com as duas mãos, ele segura a face dela, começa a introduzir um dedo em cada ouvindo, a dor toma conta. Ana sente as unhas escavando espaço em seu cérebro, a outra criatura quer fazer o mesmo, mas violando- a por caminhos diferentes. Os cabelos seguem apertando ‒ dessa vez, sem alívio. Morrendo! Um som diferente substitui o caos dos ouvidos, dissolve o sonho que virou um pesadelo intenso e uma experiência extracorpórea. Na sala, o telefone toca. Na quinta vez, ela abre a boca e leva as mãos ao pescoço rígido. Estou atrasada, pensa. O horror se vai. Em parte, tudo fora real, mas em outra realidade; nesta, de agora, Putz e ela estão vivos. Ana corre e atende a ligação: uma voz desesperada. A mãe, uma senhora que acompanha os noticiários do Rio de Janeiro para saber como anda a cidade em que a filha mora. — Ô, Filha! Ainda bem que tá em casa! ‒ Ana não pode ver, mas isso não a impede de enxergar a mãe esfregando as mãos. — Mãe, tô atrasada, o que foi? — Aninha, liga no noticiário. Aconteceu uma coisa horrível aí, o prefeito falou pra não sair de casa. — Como assim? — Não sai de casa! Escuta sua mãe. O fio do telefone não chega até a TV. Encerra a ligação com promessas vazias de ficar em casa. O choque de estar atrasada é substituído por outro maior. As mãos transpiram enquanto gira o botão, a imagem preta e branca aparece. “A Ponte Rio‒Niterói permanece fechada”, a repórter ajeita os fones, “a Marinha resgatou doze pessoas, ainda não sabemos o estado de saúde.” O apresentador do jornal repete a informação: “Por volta das seis e meia da manhã, algumas pessoas pararam em pontos diferentes da ponte que corta a baía de Guanabara, desceram do carro e pularam na água”. Ana se cansa de ver a imagem de uma mulher jogando um bebê pela ponte. Muda de canal; todos falam sobre o assunto. “Até agora, temos trinta casos.” As filmagens são repetidas. Numa delas, um homem corpulento arranca uma mulher de um fusca. Ela joga o bebê, o homem a empurra e pula. — Que merda é essa? ‒ Ana sussurra. Não nota, mas copia o habitual gesto da mãe de apertar as mãos. Passa uma hora alternando canais. Trinta pessoas saltaram da ponte, no mesmo horário. Por meio dos documentos abandonados, a polícia entra em contato com as famílias. A cidade travou com a interdição da ponte, que só reabriu quatro horas depois. Tudo foi registrado pelo moderno sistema de vigilância por câmeras da ponte. Ana coça a parte de trás do ombro, faz tempo que aquilo a incomoda, sente uma fisgada e, quando puxa a mão, as unhas estão recheadas com lascas de pele e sangue. Um som alto a faz dar um pulo do sofá. Alguém esmurra a porta. Rita entra, olhos arregalados, veste a mesma roupa do dia anterior. — Ana! Ana, me ajuda! ‒ Aos prantos, Rita aponta para a TV. ‒ O Beto! Ele é um dos suicidas! — Que isso, Rita? Tá louca? — O carro dele foi abandonado no vão central! Acabaram de ligar. ‒ Rita desaba. Ana não sabe o que fazer, a melhor amiga chega com a pior notícia do mundo. O irmão dela, o rapaz que Ana ama desde a adolescência, está morto. — Não, eu vou ligar pro serviço dele e você vai ver ‒ o choro chega à voz antes de brotar dos olhos. ‒ Deve ser um engano. — Ana! Tem um vídeo, tá passando toda hora. ‒ Com a menção do vídeo, Ana para, segurando o telefone. Rita finaliza: ‒ Beto é o cara do fusca. Ana resgata na memória a visão, o homem puxando a mulher. É ele. Larga a agenda telefônica e escorrega para o chão, ao lado de Rita. Choram, entre lembranças e a repetição das notícias. De onde estão, não é possível ver a TV, somente ouvir, mas o assombro de telespectadoras passou. A curiosidade mórbida sentida diante dos desastres desapareceu no segundo em que a desgraça deixou de ser alheia. A dor agora é presente, sólida como concreto. Rita perdeu o irmão, e Ana, o namorado. — Por que ele faria isso, Rita? ‒ Abraçada ao próprio corpo, aperta os braços e roça as unhas na pele arrepiada. Como quem rejeita algo repugnante. — Não faz sentido. Meu irmão era a pessoa mais alegre do mundo. ‒ Rita não para de chorar, lágrimas escorrem, a voz oscila. — Não é ele. Não acredito! E tem a mulher que ele jogou. Quem era? Por que todos pularam ao mesmo tempo? ‒ Ana sacode a cabeça. ‒ Mesmo que por algum motivo ele pudesse suicidar… o Beto nunca machucaria uma mulher! — Tenho que ir ao IML ‒ Rita recupera um traço de lucidez. ‒ Estão chamando os familiares. — Vou com você. *** Pegam a barca para o centro. Rita aninha-se na cadeira de madeira. Não diz, mas evita olhar a ponte. As pessoas ao redor não facilitam a tarefa, insistem no assunto e diversas são as especulações sobre o caso. Ana contempla a construção; o céu azul, a baía de Guanabara brilha ao sol, quase um insulto ao seu sofrimento. Um dia terrível devia ser feio e nublado. Olha para o ponto mais alto da ponte e não consegue imaginar como alguém pode pular, muito menos o Beto. Lembra-se dos conselhos de um professor, advogado criminalista: “As pequenas coisas que nos fazem vencer. O geral todos sabem, o resumo passa na TV e os caras do boteco discutem. Se atente aos detalhes, eles fornecem as respostas”. — Quando foi a última vez em que esteve com ele, Rita? — Ontem à noite. Ele saiu hoje cedo pra colher sangue pra um exame. Pedido do médico que eu mesma marquei pra ele semana passada. — Ele tava doente? — Não, só uma crise alérgica. Chegam ao IML, são escoltadas por policiais, entram no prédio com uma quantidade alarmante de microfones e gravadores. Ana estremece ao perceber que a mãe vai reconhecê-la no noticiário. Um assistente social as acompanha até a pequena sala e aconselha a tentarem responder aos investigadores com a maior quantidade de detalhes. Um policial entra com uma pasta. Dá boa-tarde. — Sabemos que é difícil. ‒ Ele faz uma pausa. ‒ Encontramos um corpo que acreditamos ser o seu irmão. Tiramos uma foto de uma tatuagem dele, gostaríamos… — Meu irmão não tem tatuagem. ‒ Rita interrompe. ‒ E vocês não falaram nada de corpo ao telefone. — A senhora já informou sobre a ausência de tatuagens, porém insisto. — Deixa eu ver ‒ Ana puxa a fotografia. ‒ É a bunda dele? — Não, o desenho está localizado na parte de trás da coxa. — Beto não tinha tatuagem, moço. ‒ Responde Rita, voltando-se para Ana com olhar de súplica. ‒ Não posso fazer isso, Aninha. ‒ Aperta forte a mão da outra. ‒ Mesmo sabendo que não é ele, não quero olhar. Sabe, ele não tinha tatuagem. ‒ Rita desvia o olhar para a foto em cima da mesa, um símbolo torto de cor avermelhada, parece um carimbo; lembra um 30. Sem dizer nada, Ana avança. O homem pergunta qual é seu parentesco, Rita diz que Ana é namorada. O homem pergunta se pode levantar o plástico que cobre o corpo, Ana autoriza. O estômago encolhe e suor escorre pelas costas. Ela emite sons finos e arfados, uma pessoa sem ar. É isso que a visão do corpo inchado de Beto provoca nela. É ele! É certo dizer que não é o homem que conheceu, alegre de sorriso fácil. Aquele à sua frente é uma versão sinistra dele, de olhos esbulhados, a boca semiaberta, pela branca e fosca. Uma casca, só um corpo orgânico, o resquício da pessoa queamou. Ana não chora; a dor é petrificante, é provável que as lágrimas estejam se acumulando em algum reservatório, e que dentro de uma semana transbordem. Certamente em um local inapropriado, como na fila do banco, ou quando Ana estiver espremida dentro do ônibus, na hora do engarrafamento. — Quero ver a tatuagem. ‒ Engole uma bolota seca garganta abaixo. Olha o desenho por um minuto inteiro, o policial pergunta se está bom e ela concorda. Na verdade, quer gritar: Está bom? Você me pergunta se está bom? Realmente é uma tatuagem, malfeita como se não tivesse dado certo. Conhecia Beto desde criança e ele não tinha aquilo, um desenho horrível, para outra pessoa seria motivo suficiente para esconder, mas Beto era divertido, teria feito piada daquilo. Um táxi é chamado, saem de vidros fechados embaixo de pedidos de entrevistas. Ficam em silêncio na presença do motorista até chegarem à estação das barcas. Abraçadas, caminham como um casal. Rita desconhece os pensamentos da amiga, mas Ana está remoendo o que sabe sobre o caso. Ao sair do IML, fez uma promessa silenciosa ao falecido: Descobrirei a verdade. Um homem passa com uma cantada grosseira; Rita, não se importando com o mundo à volta, ignora a insolência. Mas a raiva que Ana sente a aquece tanto que começa a suar; imagina as criaturas do sonho andando atrás do infeliz, o homem sem rosto o segue até em casa e, no minuto em que ele fecha a porta e vira de costas, dedos finos passam por sua nuca. A criatura prende a língua do sujeito entre as unhas e a arranca, enfia os dedos sob o queixo e escalpela a face, exibindo músculo e gordura branca. Ana olha para trás e vê o homem já distante. Apressa o passo. Quer chegar rápido em casa, não na sua, mas no apartamento de Rita e Beto. A polícia traça em que grau as vítimas estão relacionadas: onde moram e trabalham e o que fizerem no dia anterior. Para Ana, são informações secundárias, é o resumo que passa na TV. Ela, por outro lado, irá atrás dos detalhes: as coisas que farão sentido. Executa pequenas tarefas pelo apartamento, segura a mão da amiga enquanto ela liga para parentes. Em silêncio, choram, e quando Rita adormece, Ana vai para o quarto de Beto. Revira gavetas, para vez ou outra para cheirar casacos e acariciar fotos. Mexe na estante de livros, procura por algo suspeito. A cada livro estranho, se aprofunda em um universo menos condizente com Beto: magia negra e seitas. Encontra uma pasta vermelha de papelão. Dentro, um caderno preto, já na primeira página o coração dispara: o símbolo da tatuagem a lápis. Nas páginas seguintes o caderno é preenchido com citações. “O verdadeiro ato de fé é doloroso, requer coragem e é insano.” “O futuro será construído por poeira, assim como o passado.” “Ele nos vê.” Até o fim com frases, todas escritas com a letra de Beto. Fica nervosa, frases com mensagens vagas, mas o conteúdo é forte para quem realmente quer acreditar. Falam de vida e morte; fé e sacrifício. Liga a TV do quarto em volume baixo. No telejornal, a filmagem de segurança é repetida. Ana senta e observa a hora que marca no vídeo: 06:28 AM. O fusca para bruscamente, Beto sai, a porta do carona já está aberta, abriu-se antes do carro parar, uma mulher sai e joga um embrulho, carros passam buzinando, eles falam alguma coisa, Beto coloca as mãos nos ombros dela, ela reage com violência. Encostam-se à mureta, ela faz gestos duros, debatendo-se, parece lutar com ele. Quando, de repente, ele a joga e pula. Eles discutiam… Ela não queria pular e ele a jogou? Na TV, é impossível ver com clareza a feição. O telejornal passa outros vídeos das vítimas pulando, todos iguais. A semelhança é óbvia, as pessoas fazem movimentos lentos, sentam na mureta e pulam de frente. O corpo cai estranho, girando no ar. Na sétima vez que assiste, percebe. Olhando atentamente, Beto estava convencendo a mulher a não pular, ele balança sutilmente a cabeça e realmente parece gritar a palavra não. Lutam, mas ela consegue se soltar, parece que ele a empurra, mas ele tenta segurar a roupa dela. Quando ela pula rolando de lado, ele vai de cabeça atrás. Beto é o único que pula de cabeça. Ele não queria se matar! Queria salvá-la. Os pensamentos fervilham. Nesse momento, está convencida da inocência de Beto, mas seu envolvimento com algo perigoso é evidente. Vasculha o quarto, esvazia armários e gavetas. Não encontra nada e volta-se para o caderno. Na pasta, encontra artigos científicos. Inicia a leitura de um texto e não gosta, o estudo aborda um incidente de suicídio coletivo numa tribo indígena que estudava exaustivamente as estrelas. As peças soltas iniciam o doloroso processo de encaixe. Um antropólogo pesquisava sobre suicídio. Beto tentou evitar que uma mulher fizesse o mesmo. Agora ele está morto. Ana ouve na TV o uso da palavra “insano” pela primeira vez; estudiosos especulam sobre teorias para o ocorrido, o adjetivo caiu no gosto da imprensa e “os insanos da ponte” seria mencionado muitas vezes doravante. O choro é silencioso, morde o punho, deixa uma marca. Saliva escorre pela mão dolorida. Quer gritar e quebrar coisas, o corpo não responde. Se Beto estivesse louco, a loucura estaria espalhada no quarto. De alguma maneira, ela ainda estaria ali, agora penetrando a pele de Ana. O inexplicável a envolvia em sua rede sem sentido, porém real. Vai tomar banho com os dentes cerrados. Imóvel, debaixo da água quente. O tempo passa. Só sai quando é difícil respirar devido ao vapor. Passa a mão pelo espelho, olhos fundos contrastam com a pele. No local onde seu rosto devia ser refletido, uma mancha escura surge. Deixa a toalha cair, esfrega o espelho. A mancha cresce, toma forma: o homem sem rosto exibindo os dentes. Ele avança sobre ela. Ana dá passos para trás, colando o corpo no azulejo, esconde o rosto nas mãos. Desliza até sentar, o calor vai se dissipando e o frio toma o lugar. Letargia. Uma fisgada no ombro a desperta, levanta-se. Coça as costas, não percebe que faz isso. As unhas voltam com sangue. Vira-se para ver o ferimento. A imagem é nítida aos olhos, mas não à mente. Olha sem piscar para o espelho, ofegante, por vários segundos. Entre pequenas dilacerações, reconhece a marca que viu em Beto. Avermelhada, com pontos roxos de uma ferida um pouco antiga. Parece mais um ferimento do que tatuagem. Beto não falou sobre a tatuagem, pois não sabia. Pensa com a convicção dos loucos. Ele foi ao médico por causa de um problema alérgico, alérgico a isso! Exatamente como eu, meu corpo rejeita essa coisa, o dele também deve ter rejeitado. E eu também não sei de onde veio isso. A perna treme, os olhos tornam-se alertas, levemente desfigurados por um frenesi mental. Abre o armário atrás de si e encontra uma caixa cheia de VHS. Volta ao quarto com a caixa, veste só a calcinha, sem se enxugar, respingando água. A marca parece o número trinta. Leva as mãos ao rosto e fica ainda mais assustada. Trinta. Esse é o número de mortos. Isso significa alguma coisa. O título das fitas são estranhos: Banheiro, Investigação e Ativação. Liga o videocassete. O vídeo começa com uma adolescente em um quarto, ela parece gravar um vídeo de dança, ouvindo música em um walkman preso à cintura. Ela sorri, de cabeça baixa, não olha para a câmera, aperta os botões escolhendo a música. Sem nenhum motivo aparente, para e o riso morre, levanta a cabeça, olhos vítreos. Com movimentos rígidos, caminha até o banheiro no fundo da imagem. A câmera continua filmando, é possível ver a jovem ligar a torneira e encher a banheira, olha para água, permanece calada até que a banheira esteja quase cheia. Entra. Deita. A água transborda. Afunda. Bolhas de ar explodem na superfície, é possível ouvir o barulho. O vídeo é acelerado e passam-se dez minutos, a jovem não voltou à superfície. Um telefone toca; passos, alguém bate à porta, uma mulher entra e grita. Fica abaixada no meio do quarto segurando o estômago, gritando, um som quepertence a todas as mães que perderam um filho. Um som que parece não ter fim, um grito capaz de ecoar para sempre. A imagem é congelada, o vídeo para, mas Ana sabia o que aconteceria quando viu a adolescente ligar a torneira e sentar na banheira. Ana sentiu. Coloca a fita Ativação, um vídeo com várias fotos, homens, mulheres e crianças ‒ todos mortos. Compreende que morreram por afogamento, algumas fotos tiradas com o corpo ainda na banheira e outras no chão. Em seguida, fotografias das marcas, algumas um pouco diferentes, parecendo esferas sobrepostas, com tentáculos irradiando. Dá um grito abafado pela palma da mão. Aquelas pessoas foram marcadas para morrer, trinta afogados. Exatamente como ela e Beto. Não. Tenta afastar o pensamento. Marcada. Completamente apavorada, corre os olhos pelas fotografias reproduzidas no vídeo, algumas parecem fazer parte de arquivos policiais, em espanhol e em inglês. Como no caso da ponte, os suicídios da banheira ocorreram em outra cidade, mas todos ao mesmo tempo. Fica claro que Beto investigava os casos, mas como ele teve acesso às informações? Pensa na marca e em como a adquiriu sem perceber. Como isso não passou na TV? Trinta afogados? Deixa o vídeo pausado em uma folha de documento. Tenta ler, a imagem é ruim, tem um chiado. Aumenta o volume no máximo, uma voz lê o trecho do documento, mas não é esclarecedor. Ele está vindo… Ele é o caos. As pessoas deveriam fazer parte de uma seita e tiraram a vida em algum pacto de morte, essa é a conclusão que Ana chega. Já acontecera antes, seitas e suicídios coletivos. O vídeo continua com fotos. Até que um som alto preenche o quarto, ela solta um grito e se joga para trás, na cadeira. É música, no último volume; depois, um som estranho, metálico, vindo do fundo do cosmo. Corre para abaixar, girando o botão até o zero. Vai até a porta. Espero não ter assustado Rita. Volta com a mão no peito. Acalma-se, aumenta um pouco o volume e arrasta a cadeira para perto da TV, ouve com atenção o som. Angústia. Melancolia. De costas para porta, não vê quando uma fresta se abre. Concentrada no som. A fresta aumenta e ilumina o rosto de Rita ‒ olhar vítreo e brilhante, diabólico como o riso de um assassino. Rita está inexpressiva, o rosto relaxado de um modo que é difícil acreditar que está acordada. Fica parada, até que entra devagar, para trás de Ana. Nesse momento, Ana vê o reflexo na TV e abre a boca, a palavra morre. Rita agarra o cabelo da amiga e a puxa para trás. Provoca grande dor em Ana, que, de olhos esbugalhados, não consegue gritar, o que sai dos lábios repentinamente secos é algo diferente: um fôlego antes do pânico, a fração de segundos que precede o desespero. Os olhos se encontram e Ana vê na amiga o horror: o mesmo olhar da adolescente na banheira. Rita desliza uma faca de cozinha no pescoço de Ana, a lâmina corta fácil. Sangue escorre em velocidade. Ainda tenta algo, leva as mãos ao rosto de Rita, tenta segurá-la. Agarra a alça da blusa e, quando a faca começa a cortar mais, o tecido rasga. As mãos escorrem lentamente para o pescoço, incapazes de reter o vazamento. O gosto chega à boca, lembrando o hálito do homem sem rosto. A última coisa que Ana vê antes de morrer é o seio da amiga, com uma marca diferente: um olho fechado cheio de braços. Pela primeira vez, Ana sente medo de verdade, pois ela está acordada ‒ e o mal tem um rosto familiar. É real. E ele vem vindo. Exorcizando bichinhos de pelúcia desde 1986. Instagram @Glaukemp Gregor O Murmurador Allan Baxter Infamati et obliterati O funesto casebre de Gregor Hahn era o de número 97, ao norte de Arnette, um povoado ignorável de três ou quatro ruas há quilômetros e quilômetros de Houston. Agora ele estava lá, sentado numa poltrona decrépita, bebericando sua cerveja barata. Fitava a TV de 14 polegadas, não fazendo a menor ideia de como aquele homem idiota e grande como um rabecão, usando um chapéu ridiculamente antiquado, conseguira seu próprio programa de televisão. Diabos, só usando drogas psicotrópicas para achar graça naquela porcaria toda. Polidamente, uma palavra que descrevia perfeitamente Gregor: Debiloide. Claro que o cumprimentavam durante seus curtos trajetos pelo povoado, tratando-o na base cordial do “Como está? Ah, que bom! Até mais”. Não obstante, o que se espera de um cara que morara com a mãe até os 31 anos? (Não por receio de deixá-la jogada à sorte, mas por medo de ver a si próprio jogado a ela). Há alguns anos, Gregor saiu de casa e começou a depender de uma única renda, vinda de uma fábrica de calculadoras eletrônicas. Trabalhara no setor de instalação até ser dispensado com uma clareza fria e perplexa. Fecharam as portas do lugar em plena agonia; como se podia lutar contra calculadoras vindas de Taiwan com seus valores obscenamente baixos, praticamente uma esmola? Não fazia muito que Gregor vinha recebendo auxílio do governo, embora aquilo estivesse prestes a acabar. Ele se inclinou para a frente, pousou uma das mãos no joelho e pensamentos cruzaram sua cabeça como estrelas cadentes: Se eu soubesse mexer naquelas máquinas modernas do patrão – ex-patrão, é sempre bom lembrar que fui despejado – e tivesse uma dessas coisas que eles chamam de impressoras, fabricaria umas centenas de notas e as botava em circulação. Senhor, passaria uma semana contando dinheiro ao som de Gloria Estefan cantando Conga! Logo esqueceu a ideia, porque pensar fazia doer sua cabeça. Voltou à habitual posição de lixo descartado. De repente, espichou o pescoço e tentou olhar o mundo além janela. Mudo, franziu a testa. Coçou a nuca, depois apanhou seu cuntrole remote – como costumava chamar aquela maravilha de avançada tecnologia – e desligou a TV. Ergueu-se, as tábuas rangeram e, cruzando o odor de carcaça de frango na lixeira debaixo da pia, se arrastou até o quarto. Sempre tivera esse jeito de andar, como se carregasse uma incurável assadura de fraldas na racha da bunda – quando menino, os rapazes na escola não o deixavam em paz por isso, e mais uma gama de motivos. Afofou o travesseiro e finalmente estirou-se na cama. Que Deus abençoasse aquele fóssil, simplesmente amava aquela cama imersa nas profundezas; sua mãe oferecera uma nova quando fora bisbilhotar sua casa, trovejando que aquele lixo estava caindo de podre – e talvez fosse esse o motivo para amá-la tanto, tinha um bendito calombo para cada lugar estratégico do corpo. Como nunca se casara e nem tivera uma namorada firme para esconder o croquete e afogar o ganso, sua mãe também deixara implícito o que ele tanto fazia naquela cama para ela estar naquele estado deplorável… De chofre, foi assaltado pela avassaladora vontade de fumar. Gregor apalpou o pedaço de trapo que usava – chamado de roupão num passado distante –, sacou seu maço de Marlboro e revirou os olhos. Apenas um mísero cigarro. Ruminou o pensamento de que, se o fumasse nesse exato momento, teria de catar moedas quando acordasse e comprar mais um maço pela manhã. Só o vislumbre da ideia causou uma fadiga danada. Então, abriu um sorriso penoso, careado e artificial. Fechou as janelas velhas e cansadas que eram seus olhos e ferrou no sono. *** Gregor despertou às 3 horas em ponto, com a imagem nítida dos rapazes da escola metendo sua cabeça na privada e um cachorro uivando amargamente como trilha sonora. Encarou o teto por um momento, a expressão pétrea, os olhos vagos e turvos. Prolongou uma pausa desnecessária, de modo que não pretendia se levantar da cama tão cedo. De repente, outro uivo cortou a noite. Um cachorro sarnento parecia estar bem ao lado da janela, gemendo e gritando agudamente. — Cão velho! – praguejou Gregor, O Murmurador. Com certo esforço, Gregor se levantou e arrastou o corpo torto até a janela, como aquelas mulheres no programa de brigas familiares à tarde. Revistou e fitou miopemente o terreno, e não conseguiu enxergar nadica, nenhum cachorrinho. Deu meia volta,bocejou com gosto de barata na boca e tropeçou na pilha de roupas sujas. Quando ouviu o clique da portinhola de cartas e o inconfundível som da correspondência caindo no capacho (sua audição ficara mais sensível depois do desemprego, detectando quando as contas chegavam; seu alarme interno enlouquecia). Instintivamente, arrastou os pés vestidos com meias encardidas pelo corredor até a sala escura. Apanhou a carta e os ossos gemeram em protesto. Sr. Gregor Hahn Norte de Arnette, 97 Povoado Ignorável há Quilômetros de Houston Estreitou os olhos, a língua acompanhando debilmente a leitura. Gregor assumiu um brilho desagradável… isso era jeito de endereçar uma carta a alguém? Ficou parado por um momento, tentando tirar algum sentido daquilo. Descartou a hipótese de dívida; por pior que fosse a situação, ainda não chegara a ponto de receber contas no meio da madrugada. Ainda. Era difícil pra caramba pensar, a cabeça doía. Calculou o valor de cada centímetro da correspondência. O envelope era grosso, envelhecido, escrito com tinta nanquim e… onde diabos estava o selo? Com as palmas vertendo suor, virou o envelope e encontrou um lacre de cera. Nunca vira um daqueles pessoalmente, não era importante o bastante para receber um (vira-os apenas naqueles filmes chiques de época). Encostado na parede, Gregor rompeu o lacre, puxou a carta e leu. Subitamente, foi acometido por uma raiva cega. Um envelope daquela grossura com duas palavras de merda escritas, duas palavras que despertaram a vontade de pregar a portinhola de correspondência. Estava pensando em fazer isso há tempos, e aquela foi a gota final, definitivamente. Brincadeira de moleques, era isso o que significava aquilo. Nesse exato momento, deviam estar correndo e gargalhando à socapa do tio Gregor Fracasso! A raiva impotente misturou-se ao latejar surdo em suas têmporas. Estava prestes a buscar o martelo, os pregos e as tábuas… Dane-se! – pensou, com um grunhido ofegante. – Antes vou fumar aquele último sobrevivente, e fumo mesmo! Depois, junto as moedas, vou à mercearia, compro um maço novinho em folha… fumo todinho, então compro mais e fumo até o cu fazer bico! Abriu a porta, rastejou até a varandinha e plantou o cigarro no canto da boca. Puxou um fósforo, o riscou num pedaço furreca de lixa pendurado na parede e acendeu o Marlboro com um suspiro de satisfação. Depois de um momento de silêncio, semicerrou os olhos. Eram moleques e um cachorro, certo? Ele ouvira a criatura uivando. Devia ter um rastro deles por ali – uma única pegada, que seja. Animou-se com a brilhante dedução, apoiando o corpo numa das pernas, logo revezando para a outra. Espantou uma mosca que estava quase entrando em seu ouvido. Enquanto tragava e expelia a fumaça como um trem de carga, Gregor desfilou agachado pelo terreno e não encontrou nada, pegadinha alguma para contar história. Em seguida, foi surpreendido pelo barulho de ramos se partindo e folhagem se remexendo entre as árvores. Sentiu a garganta seca. Os malditos pirralhos ainda estavam por ali, observando-o e rindo às suas custas. Franziu o cenho e apertou os olhos, mas com aquela névoa úmida e espessa não conseguiria enxergar nem se um unicórnio saltitasse em seu terreno vestindo uma cueca de néon. — Aguardem e verão – sibilou ele, treinando suas habilidades dramáticas. Entrou na casa como se planejasse desarmar uma bomba, e logo voltou com uma lanterna centenária e seu taco de beisebol corroído pelos cupins. Caminhou segurando-os timidamente à frente, como se brandisse Excalibur (quem ele pretendia enganar com aquilo? Um foguete sinalizador seria muito mais útil em suas mãos). Fez uma pausa e, finalmente, abriu caminho pelas ervas que batiam em seus joelhos. Examinou as árvores antigas à sua volta, os troncos grossos e retorcidos – não gostava delas, absolutamente. Cerca de cinco minutos se passaram quando começou a tremer dos pés à cabeça. Parecia estar cercado por mil olhos, todos o perfurando friamente. Alguma coisa roçou nos galhos acima de sua cabeça, e como um jovem atleta, Gregor saltou um metro. Fantástico, uma coruja cagona! Sua carranca não revelava, entretanto, estava profusamente apavorado, cagado de medo. Estava tão tomado pela fadiga, tão próximo da desistência, quando ouviu o rosnado de alguma coisa se movimentando pelas sombras. Piscando como uma criança ingênua, Gregor pensou ter visto um par de olhos brancos fulgurando na escuridão. Piscou, balançou a cabeça – sabe-se lá por que diabos –, desligou a lanterna e caminhou em sua direção. Então se abaixou para estudar o fenômeno reluzente. Sem aviso, sentiu o bafo quente e azedo, alguma coisa arfando em sua nuca. Um cordão nodoso de saliva resvalou em seu roupão. Como que em câmera lenta, um Gregor boquiaberto virou-se. E sentiu uma explosão de bafo de cão na cara. Soltou um grito de puro pavor. Atirou-se desesperado e estatelou, caindo de cara no chão terroso. Olhou às suas costas, a silhueta da criatura tomando forma num prateado místico e silencioso. Era um Cachorro, e daqueles com C bem maiúsculo. Gritou ainda mais alto e se surpreendeu com a potência de suas cordas vocais. Se sobrevivesse, poderia ponderar sobre uma carreira como soprano. A criatura respirava forte, a língua pendurada como um bife defumado, os dentões arreganhados numa espécie louca de sorriso. O tigre-que-ri. Com o cabelo todo desgrenhado, Gregor ergueu-se e disparou como se Gabriel tocasse as trombetas do Apocalipse. Em tempo recorde, desembocou derrapando de volta à sala, trancou a porta e recostou-se nela, petrificado como um brinquedo sem corda. — Ca… Ca… Ca… – foi a única coisa que conseguiu articular. Indubitavelmente, perdeu alguns parafusos no trajeto infernal. Sentiu uma pontada no peito e pensou num ataque cardíaco – parte dele queria que fosse um ataque cardíaco. Buscou os comprimidos num dos bolsos de seu roupão, seus acalmadores para casos de emergência. Engoliu-os a seco, sentindo-os descer asperamente pela garganta. De repente, ouviu ecos, latidos cada vez mais altos, ribombando ensurdecedoramente como unhas arranhando um quadro-negro. Gregor cobriu a boca com as duas mãos. Estavam vindo de dentro da casa. Impossível! Impossível mil vezes! Ele acabara de se trancar dentro da casa, seguro como um prisioneiro em segurança máxima… Pede penico, frangote! Ele estava maluco, era isso. Estava imaginando coisas, porque é isso o que pessoas malucas fazem! Destrancou a porta e se lançou para a varandinha, então se deparou com o cachorro correndo em círculos no terreno, se divertindo atrás da própria calda. Com olhos tão arregalados que pareciam estar prestes a saltar das órbitas, assistiu enquanto o animal deitava na terra e enfiava o focinho entre as patas. Gregor recuou um passo com um esforço óbvio. Como o prelúdio de um ataque, o cachorro desatinou a latir em sua direção. Parecia estar tentando falar alguma coisa. Empunhando paralisado o taco como uma nova versão de cruz contra o diabo, Gregor observou o cão se aproximar. Era pura imaginação, a única explicação. Inesperadamente, o bicho arreganhou as presas e o abocanhou. Gregor escancarou a boca para berrar, quando percebeu que ele não estava sendo devorado vivo, mas puxado pela barra do roupão. Que o internassem num hospício para achar ser Napoleão ou Joana d’Arc, mas aquele cachorro queria levá- lo a algum lugar. Lembrou-se de um episódio de Lassie e, com nervosismo, Gregor deu um passo involuntário. O gesto causou uma balançadeira danada de rabo no cão. Ele queria levá-lo, de fato. *** Após vinte minutos seguindo o cachorro por entre um labirinto de árvores frondosas – a certa altura arranhando o braço num galho e fazendo-o sangrar –, o bicho girou no ar com um salto-mortal e desmaterializou-se em plena vista. Gregor revirou os olhos e sua boca amoleceu, o queixo caindo descontrolado como se rompesse as articulações da mandíbula. Seu hálitofez tufinhos. Estupidificado, tentou se recompor e lembrar-se como chegou ali: esquerda, direita, direita, esquerda – era como tentar tocar um piano Steinway. O frio fazia seu nariz e orelhas arderem de tal modo que mal conseguia se concentrar. Com um soluço de Valha-me Deus!, Gregor tropeçou num corpo abandonado. Estava sob um lençol perverso de folhas secas, esparramado e encardido como um espantalho derrubado por uma tempestade. Era a carcaça do husky siberiano fantasmal, aquele que acabara de evaporar como um peido inodoro diante de seus olhos. Lembrou-se da carta, com apenas duas palavras: Me enterre. Não se tratava de uma brincadeira de moleques. Algum filho da puta desalmado atropelara aquele cachorro na autoestrada e o arremessara ali. Tão elementar, meu caro. Com um ruído gutural, ele engoliu outro de seus acalmadores. Depois de hesitar por alguns segundos infinitos, usou da pouca inteligência e retornou ao casebre arrastando o taco de beisebol para demarcar o caminho, o sangue latejando nos ouvidos. Voltou ao local do crime na manhã seguinte, com luvas surradas de operário e uma pá de cabo curto. Gregor enterrou o animal prontamente, a visão embaçada pelos prismas de suas lágrimas. *** Apesar de se ver livre de latidos, rosnados ou qualquer coisa do gênero, Gregor não conseguiu dormir o resto daquele dia. Passou horas na frente da TV, as imagens entrando pelos olhos e desintegrando no cérebro. Na luz do dia seguinte, após o cessar da balbúrdia mental, se matou de rezar com a cabeça afundada no travesseiro. Choramingando, percebeu que sua vida era como uma roda que girava e girava num ritmo de tédio, e sempre parava no mesmo lugar miserável. Ele decidiu abandonar os caminhos do pecado e entregar seu coração a Jesus. Um ano depois, como se se livrasse de uma segunda pele, Gregor Hahn transformara-se num popular vendedor independente. A imagem da felicidade e da realização, cruzava as cidades vizinhas vendendo Bíblias, livros de hinos e imagens luminosas em sua caminhonete Ford, novinha em folha. Ele nunca confidenciou a história de sua conversão … para ninguém. Allan Baxter já foi – entre muitas coisas – cozinheiro, aprendiz de feiticeiro e vendedor de perfumes. Insta: AllBaxter Vozes Tocado pelo diabo Renan Rivero Já se passaram trinta anos desde a última vez que vi meu irmão. Nunca fomos grandes amigos, mas isso não significa que eu não sinta falta da época em que morávamos juntos. Vivíamos em uma casa no final da Rua Monroe, em um bairro antigo, que crescera com a chegada dos imigrantes irlandeses. Um local que, apesar de todos os moradores se conhecerem pelo nome, detinha uma regra tácita: não se meta onde você não foi chamado. Todas as manhãs passávamos em frente à casa da senhora Margaret. Enquanto meu irmão empurrava minha cadeira de rodas, a mulher meneava a cabeça em cumprimento, e ele retribuía o gesto com um aceno de mão; nenhuma palavra era dita. No entanto, em minha cabeça, eu ouvia claramente os pensamentos belicosos da viúva: “Hunf, esses dois coitados deram sorte dos pais terem morrido. O diabo vive naquela casa, um dia eu ainda mando o padre exorcizar o lugar e salgar a terra”. Eu mantinha a cabeça abaixada em resignação, afinal, aquele dia nunca chegaria, o padre da paróquia era um homem sensato. Caso esteja se perguntando como nossos pais morreram, temo dizer que ninguém sabe a verdade. Meu pai era um homem atormentado pela bebida e pelo fato de ter se casado com minha mãe, uma mulher agarrada às tradições. Aquele havia sido um matrimônio sem amor, realizado após a infeliz gravidez que deu à luz ao meu irmão. Na época, mudaram-se para o bairro onde eu viria ao mundo quatro anos mais tarde. Minha chegada tampouco trouxe alegria, pois quis o infortúnio que minhas pernas viessem fracas demais para andar. De toda forma, duas características me definiram ao nascer: eu não ando, e ouço vozes desde do dia em que vim ao mundo. Toda a dor e lamentos alheios me encontram na forma de pensamentos. São como ondas batendo contra uma rocha. Incessantemente, noite e dia, e temo ser assim até o meu último dia. Ainda criança, contei à minha mãe o que as vozes diziam em minha cabeça… coisas que ninguém poderia saber. Naquele instante, foi a primeira vez que vislumbrei o horror que os seres humanos sentem diante do desconhecido. O medo primordial, a escuridão que assola o mundo. Era como sentir o vazio lançando seus tentáculos em minha direção, o toque de uma entidade longínqua olhando diretamente para o interior da nossa mente. Naquela noite, eu estava em frente ao antigo televisor quando meu pai chegou em casa. Ele não percebeu de imediato o que havia lhe atingido. O golpe abriu um corte profundo em sua testa, e o sangue jorrou. Meu irmão me abraçou, tampando meus olhos e ouvidos, alheio ao fato de que eu podia escutar os pensamentos da minha mãe enquanto ela investia com violência contra o meu pai. “A culpa é sua e da sua família.” “Deus amaldiçoou nosso filho pelos seus pecados.” “O mal tocou o meu menino…” Lágrimas rolaram pela face dela enquanto o sangue continuava a escorrer pelo rosto do meu pai. Ambos não perceberam quando uma chama atingiu um pano esquecido sobre o fogão, lançando labaredas em fúria sobre as vigas de madeira da antiga casa. Os policiais encontraram a mim e meu irmão no final da Rua Monroe, observando o fogo infernal que subia aos céus. Fomos os únicos sobreviventes do desastre, e nos informaram que a casa destruída pelo incêndio possuía um seguro em nosso nome. Um seguro para os “Irmãos Murphy”. Anos mais tarde, usamos o dinheiro da seguradora para inaugurar a locadora que levava nosso sobrenome: Murphy’s Locadora de Filmes. Era para lá que passamos a nos dirigir todas as manhãs. Em uma cidade pequena, não existem muitas opções de lazer. Portanto, não havia um morador local que não conhecesse a locadora, a loja era especialmente reconhecida por recomendar filmes aos clientes. Era incrível! Os fregueses adentravam a loja com um olhar perdido, e meu irmão os abordava indagando qual tipo de filme gostariam de assistir. Quase todos davam a mesma resposta: “Hum, não sei”. Sorrindo de forma complacente, meu irmão pedia para o freguês aguardar e se dirigia para os fundos da loja. Eu lia a mente do visitante e dizia a ele o que recomendar a clientela. Minutos depois, ele retornava com a fita perfeita nas mãos. Um negócio de sucesso, sempre acertávamos nas indicações Essa era a minha rotina. Eu passava os meus dias nos fundos da locadora, sentado de frente para o televisor e o vídeo cassete. Em um ano, eu poderia assistir aproximadamente mil e oitocentos filmes, um grande feito, e, se não fosse a corrente que prendia as rodas da minha cadeira, impedindo que eu me movesse, eu poderia até mesmo estar feliz. Não me entenda mal, eu tinha acesso a comida, água e o controle do televisor. Aquilo era mais do que meu irmão tinha recebido durante a nossa infância… eu sabia o que ele havia suportado eu sabia que não haviam restado gentilezas em seu coração. Olhar dentro da mente humana é uma condição indigna. Existe algo de podre ali, algo para o qual não fomos feitos para olhar. O relógio marcava 16h06m quando o padre Darci atravessou o portal de entrada da locadora, sua chegada foi como um tufão que anuncia a aproximação de uma tempestade. Um calafrio percorreu minha alma enquanto o sacerdote caminhava absorto nos próprios pensamentos. Todos conheciam o padre, ele dedicara-se a manter a igreja cheia nos últimos quarenta anos, ouvindo com atenção cada homem e mulher que desejasse se confessar, indicando-os sempre o caminho do perdão. Naquela tarde, ele não parecia notar nenhum dos fiéis que o observavam, e vagou de forma distraída no meio do labirinto de estantes repletas de fitas. Alguém chamou seu nome, ele não respondeu. Meu irmão contornou o balcão e se aproximou, repetindo o ritual de abordagem dedicadoa todos os clientes. — Padre, o senhor precisa de alguma ajuda? — Ah? Oi… não, meu filho. Me desculpe, eu me perdi em meio aos meus pensamentos. Todos na loja observavam a conversa em silêncio. Quando o padre ergueu a cabeça, os olhares rapidamente se desviaram, a fim de evitar que fossem taxados como mexeriqueiros. O sacerdote sabia que a cidade inteira era dada a fofocas. Você podia se meter onde não era chamado, desde que não fosse descoberto. No entanto, se aquele fosse o único pecado cometido pelo seu rebanho, ele não se sentiria tão desamparado quanto se sentia naquela tarde. Havia mais, havia muito mais. O padre sorriu para meu irmão e disse: — Está bem, não perderei a oportunidade de receber uma das suas tão valiosas indicações. Meu irmão se virou, dirigindo-se para o fundo, quando o padre o interrompeu. — Acabo de ter uma ideia! Amanhã faremos a exibição de um filme, escolhido por você, para toda a nossa comunidade. − O padre se virou para os outros clientes e falou em voz alta: − Sim. Espalhem a notícia, estão todos convidados. Amanhã à tarde, após a missa das 16h no pátio da igreja, iremos assistir um filme. Houve sorrisos e suspiros de alívio. Aparentemente, a desorientação do padre havia sido passageira, e ele já tinha retomado o seu habitual senso de comunidade. Somente eu percebia o que estava acontecendo. Segundos depois, meu irmão adentrou no quarto escuro, iluminado pela televisão, e me encontrou encarando-o com olhos arregalados. — O que foi? Parece que viu um fantasma? Vamos, dê uma olhada na cabeça do padre e me diga o que tipo de filme ele quer. Quando tentei falar, minhas palavras saíram embargadas, sufocadas por uma dor compartilhada: — Ele vai se matar. − Recuperei minha voz e continuei. − O padre planeja se matar após a exibição, é difícil ouvir os pensamentos dele, são como centenas de sussurros sobrepostos. Mas tenho certeza, ele vai se matar amanhã. − Lembro-me da sensação ao dizer aquelas palavras. − Nós temos que impedi-lo! — Nós?! − Meu irmão virou-se e trancou a porta. − Olha, não tem essa de nós. Se o homem quer tirar a própria vida, ele que lide com as consequências! — Ele perdeu a fé, irmão. Nós precisamos ajudá-lo, somos os únicos que sabemos que ele irá atentar contra a própria vida. Por favor… — Lamento, não tem nada que a gente possa fazer. Além do mais, como explicaríamos o fato de sabermos dos planos secretos do padre? Isso se voltaria contra nós, você sabe como essas coisas são. Não se meta onde não foi chamado. Eu odiava aquela frase. Um silêncio pesado caiu entre nós enquanto eu experimentava o medo de carregar o sangue do homem em minhas mãos. Meu irmão rompeu o silêncio: — Vamos, me indique um filme. O quanto antes acabarmos com esse sofrimento será melhor para nós dois. Como eu disse, olhar dentro dos seus pensamentos não era algo bonito de se ver. Porém, sua omissão diante de um ato de suicídio escureceu um pouco mais o meu mundo. Naquele momento, nós dois havíamos tomado nossas decisões, e, por fim, eu disse: — Conta Comigo. Indique esse filme, todos gostam de histórias sobre amizade. Depois daquilo, esperei o som dos passos se afastarem em direção a saída. No instante em que a porta foi destrancada, respirei profundamente, no segundo seguinte a passagem para a loja se escancarou. Desesperadamente me pus a gritar: — PADRE! NÃO FAÇA ISSO, PADRE! POR FAVOR NÃO FAÇA ISSO… A porta fechou-se com violência, enquanto meu irmão investia em fúria contra mim. — CALE A BOCA! − Fui atingido no rosto por um soco e perdi a consciência. Algum tempo depois, soube que ele havia explicado aos clientes a origem dos gritos. Disse-lhes se tratar de um filme que esquecera ligado na televisão dos fundos. Se alguém se importava com a veracidade da história, não pareceu que fariam algo a respeito. Despertei com gosto de sangue na boca e a mente enevoada. Eu estava em casa. As rodas da minha cadeira, ao menos, estavam livres das correntes. Chamei o nome do meu irmão e ele entrou na sala segurando duas vasilhas fumegantes de sopa. — Desculpe ter atingido você, pensei que tivéssemos chegado a um acordo com relação à situação do padre. Você me deixou sem saída… − Eu soube imediatamente que ele não estava arrependido. Comemos em silêncio, sentados no antigo sofá, ambos olhando fixamente para a televisão. Depois, segui meu irmão até a cozinha. Havia um cheiro de sabão misturado com comida estragada no cômodo, ignorei o cheiro e permaneci parado atrás dele. Meu irmão sabia que eu intencionava uma nova abordagem sobre o assunto, e me ignorou o quanto pôde, mantendo os olhos sobre a louça suja. Permaneci acompanhando o debate interno que acontecia em sua mente. Por fim, ele enxugou as mãos e cedeu. — Olha, se você quiser, eu te levo para essa exibição de amanhã. Mas nada de missa, a gente não precisa ouvir sermão de um cara que nem mesmo acredita no que fala. Naquele momento, senti uma ponta de esperança aquecer meu coração. Todavia, optei por não demonstrar minha vitória, meu irmão não era do tipo que gostava de perder, por isso eu disse: — Concordo, não precisamos ir a missa. − E com suavidade continuei −, porém, durante a missa o padre estará ocupado. Talvez seja o momento para nos anteciparmos. Afinal, se vamos tentar ajudar o pobre homem, é melhor estarmos preparados. Ele se abaixou na minha frente, segurava o pano de prato ainda entre as mãos. — Você pensou em tudo, não é mesmo? Tentei conter o sorriso, mas falhei miseravelmente: — Em quase tudo. O dia seguinte era domingo, fazia calor na praça em frente à Igreja de São Patrício. Quando chegamos ao local, a missa já havia começado. Lembro-me de olhar em todas as direções, certificando- me de que estávamos sozinhos enquanto adentrávamos ao pátio da igreja. Ali, do lado de fora, estavam dispostas dezenas de assentos, posicionados de forma a ficarem de frente para um grande lençol branco amarrado entre dois postes. O local estava completamente vazio, à exceção da nossa chegada. Fomos até uma porta lateral da igreja, estendi a mão e forcei a maçaneta. Trancada. Retirei de dentro da minha jaqueta um pedaço de arame retorcido e, com cuidado, coloquei a ferramenta improvisada na fechadura. Meu irmão tentou me dissuadir mais uma vez, mas seus pensamentos demonstravam um certo grau de admiração diante do ataque ao lugar. Expliquei-lhe que muitos filmes nos dão noções básicas de como cometer pequenos delitos. A porta se destrancou. Como eu havia previsto, a passagem dava para a sacristia. A luz da tarde invadia o local, transpassando o vidro leitoso das janelas. Girei as rodas da cadeira, me aproximando de uma escrivaninha colocada abaixo de um pequeno altar. Não pude deixar de notar o olhar piedoso de Nossa Senhora me encarando enquanto eu abria as gavetas do móvel. Livros, papéis, contas à pagar e um terço. Fechei a gaveta e abri a seguinte; escondida atrás de uma bíblia, jazia uma pistola Colt 1911 A1. Senti o toque gelado da arma ao sacá-la, rapidamente a enfiei no bolso da jaqueta. Notei os pensamentos na mente do meu irmão e o tranquilizei: — Está tudo bem agora. Quando o padre perceber que a arma foi roubada, irá repensar a decisão. Ele teve dificuldade de conseguir essa pistola, não terá dinheiro para outra. Tenho fé que isso irá mudar o seu rumo. Meu irmão suspirou enquanto passava as mãos pelos poucos cabelos que lhe restavam. — Vamos sair daqui, antes que alguém nos veja. Deixamos a sacristia poucos instantes antes do término da missa. Na saída, fomos surpreendidos pelo Padre Darci, que insistiu que ficássemos para assistir ao filme. Tentamos escapar, mas o homem se mostrou irredutível. Seus pensamentos eram zumbidos sussurrados, vozes confusas em estado febril, duvidei de que aquela história estivesse realmente terminada. Instalamos-nos na última fileira de cadeiras, observei o mar de gente com seus pensamentos voltados para o alto. O calor úmidodaquela tarde me deixava inquieto, eu afastava os insetos com tapas no ar, tentando espantar, juntamente com eles, os pensamentos emocionados do público. O padre observava a todos, alheio à história de superação que se desenrolava na trama do filme. Fechei os olhos e me esforcei para captar seus pensamentos. Histórias de terror saídas do confessionário emergiam em sua mente, senti sua parca fé esmaecer. O pobre sacerdote mirava o público mergulhado em uma ira nascida de anos de confissões. O filme chegou ao fim, houve uma comoção geral, somente eu e o padre não pudemos assistir a história que se encerrava. A multidão preparava-se para deixar o pátio, quando o padre bradou num tom mais alto do que o normal: — Muito me agrada que o filme tenha tocado aos seus corações. Antes que partam, deixem-me lhes falar uma última vez. − As pessoas se olharam assustadas com a mordacidade entranhada na voz do bom padre. − Ao longo de quarenta anos tive o desprazer de ouvir a história de suas vidas. E, se hoje me levanto para anunciar esse desagrado, saibam que vocês construíram isso dia após dia. Era como se o zumbido de pensamentos na cabeça do pobre homem tivesse contaminado a multidão, que agora iniciava um constante murmurinho de desaprovação. Em seguida, a voz do padre se transformou em um clamor histérico, e seu dedo indicador se estendeu como uma flecha em direção ao casal de jovens sentado na segunda fileira. — Vocês, que ainda tão novos já carregam tanta maldade, saibam que nada irá perdoá-los. O mal nos achou aqui, somente isso explica tanto descaso entre pessoas que ousam falar em amor. − A plateia assistia horrorizada ao grotesco espetáculo. − Você julga que seu namorado lhe é fiel, enquanto ele te trai com sua mãe. Apesar disso, não se apiedem dessa moça ao lado do adúltero, pois ela confessou-me que nutre um perverso prazer por machucar animais… Já tendo torturado cachorros, gatos, e até mesmo filhotes. Lembro-me da jovem correndo para se afastar da multidão, seus pais a encaravam assombrados enquanto o namorado permanecia sentado como se tentasse apagar o que havia sido dito. Diante de todos, como um homem que brande um chicote, o padre apontou o seu dedo para uma nova vítima. — E ali, naquela ponta! O que dizer desse monstro que seduz crianças para molestá-las em seu apartamento. Ele se diz arrependido, então eu lhes pergunto, de que vale o arrependimento de tão vil criatura? − A multidão dirigia o olhar petrificado para o alvo das acusações, o abusador se pôs a berrar insultos, acusando o Padre Darci de estar delirando. De fato, o padre estava delirando em febre, eu via isso na sua mente. Mas ele dizia a verdade. O espetáculo de horrores e acusações tenebrosas seguiu-se. Independente do nosso esforço, o padre parecia determinado em transformar aquele final de tarde em uma tragédia a fim de destruir sua vida. Eu e meu irmão deixávamos o local quando fomos atingidos pelas palavras malditas do padre. Sua ira se voltava contra nós. — Parece que os responsáveis por essa tarde de filme não estão dispostos a permanecer mais aqui. Não deixarei que saiam antes de contar a vocês como a família Murphy tem sido uma praga para a nossa comunidade. − Meus músculos enrijeceram quando vislumbrei as palavras que o padre iria proferir. Lentamente nos viramos e ouvimos calados. — Poucos dias depois de dar a luz ao seu último filho a já falecida mãe dos irmãos Murphy veio me procurar. Seu caçula havia nascido com uma má formação nos membros inferiores, a mulher temia que aquela seria uma punição pelos seus pecados. No confessionário, ela buscava perdão, como todos vocês fizeram incontáveis vezes. Ela me relatou que seu marido, acredito que todos aqui conheceram o beberrão, constantemente batia nela e em seu filho mais velho. Para se vingar do seu carrasco, a mulher se pôs a ter relações sexuais como todos os homens dessa cidade. Como resultado, a raiva do marido se agravou, e os espancamentos tornaram-se diários. Temendo sua sina, e para fugir daquele inferno, a mulher começou a não retornar para casa ao final de suas aventuras. Porém, quando ela não estava lá, o pai espancava o filho. Ela via as marcas em seu primogênito, mas não fazia nada a respeito. Permaneceu calada até o momento em que descobriu estar grávida novamente. Diante dos incontáveis homens com quem havia se deitado, não poderia determinar quem era o pai. Para esconder a situação, tentou seduzir o marido, mas o mal andava com aquele homem onde quer que ele fosse. Tomado pelo rancor, ele arrastou a mulher até o quarto de seu filho e a amarrou ao pé da cama. Minha mente era um turbilhão de vozes e acusações, eu senti o impacto, quando, ao meu lado, a raiva de meu irmão explodiu, e ele se pôs a correr na direção do padre, atravessando a multidão. Sem perceber, minha mão havia se movido para dentro da jaqueta e meus dedos seguravam a pistola como garras. As palavras finais do padre determinaram meu destino enquanto eu puxava a arma para fora. — Alguns meses depois, a mulher deu a luz ao segundo filho, uma criatura que nasceu tocado pelo Diabo. Foi então que eu apertei o gatilho. Houve sangue quando o disparo atingiu rosto do homem, as pessoas gritaram enquanto o corpo caiu no chão. Um profundo estampido se sobrepunha a todas as vozes, mas percebi quando alguém retirou a arma, ainda quente, das minhas mãos e me jogou ao chão. Um pesado joelho apoiou-se sobre as minhas costas, seguido da mordida gelada das algemas colocadas em meus pulsos. Meu julgamento aconteceu no final daquele ano, e eu tive o melhor advogado que meu irmão pôde pagar. Na época, eu soube que, para conseguir o dinheiro da minha defesa, ele havia vendido todos os bens da nossa família, casa, móveis, e até mesmo a nossa locadora. Mediante a esse esforço para amenizar a minha situação, fui condenado a trinta anos de prisão. Nosso advogado julgou a sentença uma vitória, eu não saberia dizer se ele estava certo ou não. Nos anos que se seguiram, cercado pela dor e arrependimento dos homens que estavam presos comigo, as vozes cessaram. Naquele lugar, encontrei o silêncio para a minha condição, e isso perdurou até agora. Hoje é o meu último dia como prisioneiro. No entanto, deixar este lugar, não fará de mim um homem livre. Algo lá fora está à minha espreita, pronto para me dominar. Percebo, depois de todos esses anos, que era disso que o Padre Darcy tentava se afastar. Esse sussurro; esse toque maligno que sentimos, mas não sabemos explicar. Nesses instantes finais, fica claro para mim que – naqueles dias sombrios – eu sentia a intenção na mente do padre… uma força cujo nome desconheço, mas que não estou disposto, novamente, a me deixar tocar. Carrego comigo o meu plano derradeiro: prefiro entregar minha vida antes de sentir outra vez o toque do mal. Por fim, rogo que a maldade – assim como as locadoras – possa, enfim, deixar de existir neste mundo invertido. Renan Rivero – Careca e quadrinista. Abandonou a publicidade para dedicar-se a escrever contos e histórias em quadrinhos. Efêmero A gruta, o velho e o menino perdido Douglas MCT Escrevemos um diário quando queremos guardar ali uma lembrança para depois esquecê-la. Assim fica mais fácil seguir em frente. Mas existem histórias que nunca morrem. E é simplesmente impossível se esquecer de algo tão fantástico quanto foi aquele verão de 81. Antes disso, porém, houve a tragédia e o terror no coração dos homens. De pais precavidos que perderam seu bem mais valioso. De crianças que abandonaram a inocência diante do inevitável. De quando um velho, mais velho do que o tempo, encontrou algo que todos já haviam desistido de procurar. E isso mudou tudo… Yesterday I felt the wind blowing ‘round my shoulder Feel like I’m getting older Still I can’t forget your face A música Old Photographs, de Jim Capaldi, seguia no toca-fitas da Belina do meu pai. Jim discorria sobre fotografias antigase lugares de que não havia se esquecido. Em 1981, eu tinha 11 anos, e ainda não entendia bem o inglês, mas minha mãe gostava e ouvia tanto a música que acabei me acostumando e passei a gostar com o passar dos anos também. Na época, ela estava grávida da minha primeira irmã, de outras três que viriam anualmente, quase como se fosse uma celebração do festival de inverno dos meus pais. O Gol azul nos ultrapassou com uma buzinada escandalosa, que durou quase um minuto. Meu pai buzinou de volta e gritou qualquer palavrão amigável para a família Vasconcelos. O carro à frente deu seta e parou no acostamento, seu Mauro desceu rapidamente e começou a urinar ali mesmo. Estacionamos e o Corcel vermelho atrás de nós fez o mesmo. Quase como um gesto másculo imutável, meu pai e o senhor Adriano também foram mijar ao lado do amigo, enquanto as esposas se mantinham entediadas no banco do passageiro. Aproveitei para esticar as pernas. — Ei, Vini, já vomitou no carro todo? – me perguntou Renan, saindo pela janela do Monza, eternamente um tipo comum, nem magro nem gordo, com cabelos e olhos escuros e seu rosto de bom moço. — Que nada! Tomei remédio antes de sair de casa. — Não vamos chegar nunca? – a pergunta veio de trás, de Lady Di (mas só os amigos podiam chamar Diane assim), encostada sobre o capô do Escort. Loira de olhos azuis como duas safiras, ela tinha um cabelo comprido e escorrido, seu rosto mirrado. – Já tô ficando cansada. Eu, Renan e Lady Di morávamos em São Paulo. Éramos amigos de berço, porque nossos pais já eram amigos antes de nascermos. A diferença é que meus pais haviam nascido em Socorro, no interior ao norte do estado, o que fazia de mim meio caipira, meio metropolitano. Quando eu era mais novinho, meu pai dizia que isso era um tipo de pizza. A viagem toda não levou nem duas horas. Minha família tinha uma casa enorme no centro da cidade, que dava para abrigar os demais tranquilamente. Primeiro, minha avó fez as honrarias, com feijoada, arroz pururuca e muita bisteca. Até onde me lembro, íamos todos os anos para Socorro, um ritual, que as outras duas famílias também adotaram, mas com conotação turística, sempre procurando explorar um lugar diferente a cada vez. Conhecida por ser a capital das malhas e dos esportes de aventura, a cidadezinha era ainda menor naquela época, e trazia o bom-dia na boca de seus habitantes, que cumprimentavam conterrâneos e estranhos com a mesma boa vontade. Era onde podíamos deixar o portão aberto e a porta destrancada sem perigo de furto, ou sair à noite sem risco de ser assaltado. Era uma realidade idílica, pacífica e tranquila até demais, sim, mas que renovava nossas energias nos cinco dias de julho que sempre passávamos por lá. Eu estava desmaiando na parte de baixo do beliche após o almoço suntuoso, com o Renan roncando em cima, quando um Ninja Invasor atravessou a janela do quarto. Peguei o boneco do Comandos em Ação e coloquei a cabeça para fora. Lá estava o Predo, em seu rosto comprido de doninha. — Ei! Eu não tenho esse bonequinho ainda? É meu agora? – perguntei, ingenuamente e feliz em vê-lo. — Não tem, nem terá agora, bicho! – Predo caiu na risada. Ele sempre ria com facilidade. Aquela alegria sacana não era forçada. – Achei esse aí jogado na estadra do Rio do Peixe outro dia. Raridade! — Vai completar a coleção? — Não. Não sou rico que nem você, Vini! – Predo riu e riu de novo, passando os dedos pelos cabelos loiros e revoltos, que caíam até os ombros. – Se eu tenho cinco desses, é muito! Realmente, com o Ninja Invasor e mais um helicóptero, eu completaria minha coleção, mas eu jamais insistiria naquilo. O Predo na verdade se chamava Pedro, e só recebeu esse apelido porque trocava as palavras. Era um dos meus melhores amigos. Vivia só com a mãe em uma casa popular nos arredores da cidade que a prefeitura concedeu para quem não tinha maiores condições financeiras. Ela passava o dia fora fazendo faxina de casa em casa. Ele passava o dia nas ruas, engraxando sapatos e tirando uns trocos pro jantar, mas seu orgulho muitas vezes era um problema, porque nunca aceitava almoçar na casa dos outros, não importava quantas vezes o convidássemos. Apesar de todos terem a mesma idade, o Predo era mais alto e um pouco mais forte, e com certeza o mais esperto de nós. Desprendido dos grilhões da sociedade ou de figuras paternas, ele seguia livre pelas ruas, fazendo o que bem entendesse, ganhando seu próprio dinheiro e curtindo a vida adoidado. Eu era o gordinho da turma, de bochechas rosadas e cabelo encaracolado. O pacote completo. Eu só usava camisetas do Queens e uma pulseira de espinhos sinistra. Mas em segredo, quando estava sozinho no quarto, eu também ouvia Milton Nascimento e passava horas pensando na Duda. Na verdade, desde o último ano, eu só viajava pensando em revê-la. A Maria Eduarda também era socorrense como o Predo, e morava a duas quadras da casa da minha avó. Negra, com aquela pele incrível que resistia ao crescimento das espinhas e com olhões que mais pareciam duas jabuticabas, ela gostava de manter o cabelo curto e alto, em seu rosto dócil em formato de lua. O Predo, sendo o Predo, estava falando qualquer coisa sobre algo que ele descobriu recentemente, mas eu confesso que, na hora, não prestei muita atenção, porque vi que a Duda estava chegando, vindo do outro lado da rua e acenando para mim. Meu coração foi parar na boca, meu rosto queimou e eu quase caí da janela. Predo riu mais. Renan acordou e peidou, e Lady Di abriu a porta do quarto, perguntando o que era aquele escândalo todo. No final das contas, o quinteto voltou a se reunir, matando as saudades e contando tudo o que havia acontecido de bom e de ruim no último ano. Até então, 1981 tinha sido um ano seguro e um pouco sem graça para nós, mas infelizmente tudo mudou no final daquele dia. — Uma gruta? — Sim! Com lago drento e tudo! — Chocante! — Como você descobriu esse lugar, Predo? — Nem te conto, broto! — Meu nome é Diane, não broto. — Conta aí, bicho! — Semana passada eu consegui fazer um bom rolo com o filho de um fazendeiro lá na estadra do Rio do Peixe e fui levar minha bicicleta pra vender. No caminho, encontrei uma trilha, aí fui subindo e achei uma gutra no alto do morro! — Super! — É pra lá que ‘tamos indo agora? — Isso mesmo! — Ok. Mas bate e volta, hein? Senão os coroas vão reclamar! Acabou que o Predo não conseguiu vender sua Monark surrada na chuva daquele dia. Então, o acompanhamos com nossas próprias bicicletas até o local. Lady Di não levava muito jeito com a coisa, por isso usava rodinhas em sua Caloi Ceci, e mesmo assim eu era deixado para trás por todos, porque não ganhava fôlego com minha Caloi Cross, nem com meu sobrepeso. Os outros dois já tinham lá suas Mountain Bikes, por isso arrasavam nas pedaladas, empinavam e tudo o mais. Do centro até o local, levamos pouco mais de vinte minutos. Cheguei suado e ofegante, vermelho e procurando por mais ar, mas parecia me recuperar facilmente quando Duda vinha me perguntar como eu estava. Ela era mesmo incrível. Guardamos as bikes atrás de algumas moitas e seguimos a trilha em paralelo com o riacho onde o Predo havia caído. O caminho era irregular e um pouco escorregadio, e logo a grama deu lugar aos pedregulhos e piorou ainda mais. Garoava naquela tarde, mas não o suficiente para nos encharcar. O vestido de Duda se colava ao corpo e eu confesso que tropecei pelo menos duas vezes reparando nesses detalhes. Predo ria. Uma pena que tenha sido pela última vez. Quando chegamos no final da trilha, encontramos outra que seguia morro acima, de forma serpenteante e aparentemente muito exaustiva. A montanha era terrivelmente íngreme. Ao redor, só mato e nada mais. Nem uma fazendinha, nenhum adulto por perto. Conforme subíamos, dava para ver a panorâmica de Socorro. Levamos mais de uma hora para alcançar o topo, e eu realmente precisei fazer uma pausa de dez minutos embaixode uma árvore para recuperar o fôlego, enquanto todos estavam apenas suados, mas dispostos a continuar. Tão logo me recobrei, Predo saiu na frente, empolgado, querendo nos mostrar sua recente descoberta. Havia bosta de vaca por todos os lados, mas isso era só um mero detalhe que não apagou o encanto do lugar. Uma gruta colossal e esquecida pelo tempo, com paredes irregulares de pedra desenhando o cenário, que afundava no breu a perder de vista. Um olho estava talhado num canto, observando tudo o que acontecia naquele lugar. O teto estava atapetado de morcegos dormentes e um som estranho ressoava de algum lugar nas profundezas, algo como um tiquetaque de relógio, mas eu nunca soube ao certo. O mais fantástico ali, porém, era o lago. Bem no centro, ele cobria quase toda a área da gruta onde deveria haver um grande buraco. Como poderia ter tanto água assim no topo de uma montanha, eu não sabia, mas tudo aquilo era realmente impressionante. — Será que essa gruta pertence a alguém? – perguntou Lady Di. Ela sempre perguntava tudo, sobre todas as coisas. — Ainda não. Mas será minha um dia. – respondeu Predo, decidido e esperançoso em suas fantasias. — Olha, pessoal, é melhor não contarmos pros nossos pais sobre esse lugar, tá bom? – resolvi ser precavido. Se pretendíamos fazer daquela gruta um local só nosso, não poderíamos sofrer a interferência dos adultos. Todos concordaram em manter o bico calado, é claro. Renan estava reclamando por ter pisado no esterco, mas logo Duda o empurrou e ele se espatifou na água do lago. Um minuto se passou e ficamos preocupados, até que ele emergiu, rindo e cuspindo água nela, chamando todos para nadar. Confesso que fiquei com uma ponta de ciúmes, gostaria eu de ter sido empurrado por ela. Duda logo retirou o vestido e quase tive outra falta de ar. Mas ela já havia ido preparada com seu maiô e saltou como uma nadadora profissional, deixando todos boquiabertos. Lady Di não se empolgou, apenas retirou os sapatos e ficou ali, molhando os pés, enquanto observava preocupada os morcegos acima, que pareciam não dar a mínima para nós. Então Predo se postou ao meu lado, com aquele olhar de desafio, me instigando a dar algum duplo mortal. Eu nunca tinha ficado de sunga perto de Duda e estava envergonhado com essa ideia. Não queria que ela visse minha pança e debochasse de mim. Não que ela fosse fazer isso, mas eu não queria arriscar, por isso fiz um salto bem comum, com roupa e tudo. Voou água para todos os lados, mas foi Lady Di quem principalmente se molhou. Caímos na risada quando ela começou a resmungar. — O que estão fazendo?! – ecoou uma voz na escuridão. Estremeci. — Quem é? – perguntou Renan. Uma chama se acendeu do outro lado da gruta e uma silhueta se formou, aumentando e diminuindo a sombra conforme o fogo oscilava, até revelar a figura de um velho magricela e careca, descamisado, só de bermuda e uma barba que arrastava até o chão, branca e quebradiça. Ele tinha mil rugas no rosto de poucos amigos. — O meu nome se perdeu com o tempo. — O senhor é o dono daqui? – perguntei, o coração palpitando tão alto que achei que ele poderia ouvir de onde estava. — Não. Essa gruta não tem dono, ninguém a conhece. Mas eu moro aqui. — Desde quando? – agora Lady Di não estava mais preocupada com os morcegos. — Há muito tempo. Muitos anos, não sei. Nunca parei pra contar. — Acordamos o senhor, né? – disse Duda. – Nos desculpe. — Tudo bem, menina. Não me lembro de receber visitas, além de vacas e morcegos. Mas vocês precisam tomar cuidado com essa gruta. — Por quê? – percebi que Renan também estava um pouco exaltado. — Eu não lembro quando nem como foi, mas uma criança se perdeu aqui. Uma criança como vocês. — Nossa! Ela morreu? — Se perdeu. Ou morreu mesmo. Não lembro agora. Faz muito tempo. — Chocante! — Pois é. Essa gruta guarda segredos, é mais antiga que a cidade e já estava aqui quando tudo começou. — Como que o senhor sabe? — Eu apenas sei. — Hum… — E foi nesse lago que a criança sumiu. São águas misteriosas. Lady Di se levantou e encostou na parede, abraçando o próprio corpo e pedindo para irmos embora. Renan esboçou a mesma ideia, enquanto eu e Duda pensávamos no que fazer. Saímos todos das águas, tremendo de frio ao redor do lago. Mas era Predo quem havia nos levado até lá, ele era o líder natural dessas aventuras e geralmente não desistia fácil das coisas. Ele, que tinha permanecido calado durante todo o tempo, resolveu finalmente se manifestar: — Ei, velhote! Prestenção nisso! Então foi a vez do show do Predo. Ele se colocou de costas para o lago e deu um salto duplo no ar. O giro foi perfeito, digno de aplauso mesmo. O baque contra as águas foi forte. Ele afundou. Um minuto se passou, mas a piada do Renan não tinha mais graça. Dois minutos se passaram, então saltei de volta no lago e não o vi mais. Os demais saltaram também, até mesmo Lady Di e o velho, mas ninguém viu Predo. Ele havia desaparecido! É curioso como a paleta do dia pode mudar do amarelo tenro e confortável, para o azul melancólico e desesperador. Tão logo nos demos conta do desaparecimento de Predo, enviamos Renan e Lady Di até a cidade, para chamar os adultos, enquanto continuávamos por lá procurando por ele. Não demorou muito até que nossos pais e a polícia chegassem para fazer uma varredura no local. A gruta foi isolada durante a busca dos mergulhadores. O velho havia desaparecido em algum momento que eu não notei. Talvez não quisesse ser interrogado, eu não sei. Horas depois, no final do dia, a mãe de Predo, Isabel, recebeu condolências e muita choradeira começou a partir dali. Eu e meus amigos ficamos do lado de fora, acompanhando toda aquela tragédia com muito choque, e todo mundo estranhou que eu não conseguisse chorar. Nenhuma lágrima sequer. Mas isso foi há oito anos. Nada mais foi o mesmo depois do desaparecimento do Predo na gruta do velho. Alguns diziam que ele havia morrido, mesmo ninguém tendo encontrado um corpo. O prefeito, na época, quis nomear o local a “Gruta do Pedro” e transformar em ponto turístico, mas a mãe do Predo não autorizou e a gruta permaneceu isolada, até que fosse esquecida novamente. Até mesmo nossos pais, amigos de infância, se afastaram com o tempo, pois a proximidade trazia também a dor. Depois da tragédia, fiquei oito anos sem ver a Duda. A princípio, trocávamos cartas e foi bom, pois acalentava aquele aperto no coração, mas com o passar do tempo, isso também se perdeu. Dá última vez que nos falamos, ela havia me dito que trabalhava em alguma malharia, sem muito futuro. Enquanto eu não decidia se cursava Direito ou Arquitetura e estudava como um condenado, o Renan assumiu o escritório de contabilidade do pai doente e estava tão bem quanto Lady Di, que cursava medicina. A vida seguiu seu rumo, deixando para trás os mortos e os perdidos, sem que a dor fosse esquecida. Oito anos se passaram sem que eu chorasse pela tragédia de Predo. Foi em julho de 1989 que minha avó faleceu e nos obrigou a voltar para Socorro depois de tanto tempo. Consegui usar o luto como desculpa para recuperar os contatos. Com isso, Renan e Lady Di viajaram comigo. Duda apareceu no velório, linda em sua simplicidade, mas meio abatida, como se as coisas não tivessem sido fáceis para ela até ali. Depois de todas as condolências, nos reunimos os quatro novamente em um bar da Praça da Matriz para nos atualizar um sobre o outro, evitando sempre em falar o nome dele. O que, em certo momento, como era de se esperar, foi inevitável. — Eu acho que o Predo não morreu – falei, de repente. As reações foram seguidas de um choque súbito e um silêncio iminente, até que o próximo tivesse coragem de continuar. — Ele se afogou, Vini. Ou bateu a cabeça em alguma pedra no fundo do lago, não tinha como escapar – concluiu Lady Di, com os olhos marejados. — Também acho que morreu – disse Renan. – Gostaria que não. Mas acho que morreu sim. — Sabem, às vezeseu passo pela estrada do Rio do Peixe e olho para o alto. Nada parece ter mudado. A gruta continua esquecida pelo povo daqui. – Duda disse, enquanto virava o sétimo copo de cerveja. Estava quase bêbada. Ela mordeu um canto do lábio e se deteve. — O que foi? – perguntei. – O que você quer nos contar? – Eu sabia que tinha algo. No fundo, ela também. — Uma vez eu o vi. — Quê? – Lady Di gritou, ficou pálida como um fantasma. — Quem? O Predo? — Não, gente. O velho. Uma vez eu vi a silhueta dele andando lá perto da entrada da gruta. — Como pode saber que era ele? — Quem mais seria? — Até onde sabemos, ele já pode ter morrido. O homem já era muito velho quando éramos crianças. — Sei lá… — Quando foi isso? Quando acha que o viu? — Mês passado. Tenho quase certeza que era ele. Pode ter sido só impressão, porque tava muito escuro, mas acho que notei sua barba arrastando pelo chão. — Caramba! Eu realmente precisava de uma desculpa para voltar àquele lugar. Passei toda a noite buscando brechas no diálogo que me levassem a incitar todos a voltar para lá. Mas Duda havia nos deixado inquietos e dei a ideia. Houve desconforto, é claro, mas no final todos toparam. Peguei meu Chevette cinza e seguimos até o local. A gruta continuava lá, com a mesma vegetação ao redor, o mesmo aspecto de 1981, como se o tempo não a tivesse abalado. Um botão de Pause sobre ela. Daquela vez foi mais fácil escalar a montanha, mesmo no escuro. Eu já não era mais gordinho e me orgulhei bastante ao ser o primeiro a chegar. No porta-malas, encontramos algumas lanternas que meu pai usava para pescar, o que colaborou bastante para não sofrermos nenhum acidente lá dentro. O som de relógio tiquetaqueando continuava ressoando nas profundezas da gruta, mesmo depois de tantos anos. Lady Di voltou a se sentar na beira do lago e molhar os pés, enquanto deixava- se chorar. Ninguém a interrompeu. Sabíamos que existia algo entre ela e Predo que nunca se concretizou, mais ou menos como existiu entre eu e Duda. Mas, até então, eu nunca tinha me firmado em nenhum relacionamento, e todas as garotas, para mim, transformavam-se em Duda, o que não ajudava muito. — O que estão fazendo? – ecoou uma voz na escuridão. — Caralho, que susto! – bramiu Renan. – Quase me mijei aqui. Não vem assim por trás... — Não é possível – eu consegui dizer. Como seria possível? O velho que saiu das sombras era exatamente o mesmo de oito anos atrás. A barba continuava longa, mas não maior do que da primeira vez que o vimos. As milhares de rugas, o olhar perdido e as roupas em farrapos, tudo igual a 81. — Realmente o tempo não passa aqui pra vocês, hein? — Eu disse! Disse que o tinha visto! – disse Duda, disse mesmo. Talvez aquele homem não fosse tão velho quanto pensei, o que poderia justificar o fato dele ainda estar vivo. Seu rosto ficou sombrio e ele nos encarou. — Há muito, muito tempo atrás, muito mais do que vocês podem imaginar, quando as coisas eram mais simples, um garoto se perdeu nessas águas. Ele saltou, afundou e achou a luz no final das profundezas, lá embaixo. – disse melancolicamente, apontando para o lago. – Aqui dentro é diferente lá de fora. Tudo o que se perde, um dia é encontrado. A gruta sempre permite uma segunda chance. — Eu sabia. Esse velho viu o que aconteceu com o Predo naquela vez. – disse Renan, um pouco tenso, um pouco assustado, como todos nós estávamos. — Calma, bicho – falei, enquanto me aproximava do velho. – O senhor acabou de descrever a morte do nosso amigo. — Morte? – Ele pareceu surpreso. – Aqui não é um ambiente de morte. Aqui é um lugar para recomeçar. — Esse garoto – Lady Di começou. – Ele estava com os amigos? — O que afundou aqui? Oh, sim. Ele estava. Ela me olhou, com aquela expressão de espertalhona e se levantou, vindo cochichar no meu ouvido O velho testemunhou, Vini. Ele sabe o que rolou por aqui. Duda aproveitou o gancho: — Qual era o nome do menino, o senhor lembra? — Oh não. Não me lembro. As águas desta gruta levaram toda a memória embora. De repente, estávamos todos confusos, pensando como Predo poderia ter sobrevivido depois de afundar no lago. Teria ele emergido em outro local da gruta? E por que ele nunca mais apareceu? Fugiu? Alguma coisa não se encaixava, mas meu coração já conhecia a resposta. Faltava o cérebro aceitá-la. — O senhor o encontrou? O que houve com ele? – perguntei. O velho parecia ainda mais confuso do que antes, então: — Encontrei quem? Você faz perguntas estranhas. – Ele se virou e encarou o lago, com um sorriso no rosto. Aquela expressão de saudade. – Todos foram embora e me deixaram aqui. Quando saí das águas, já era um adulto. — O quê?! — Eu disse, a gruta é especial. Este é um espaço onde o tempo não existe. Onde um dia entrou um garoto e saiu um homem. Nessas águas, as coisas que já aconteceram são refletidas, e se repetem outra vez, e assim aprendemos assistindo a pópria vida. De novo e de novo. Lady Di estava emocionada, Duda a acalentou. Renan começou a chamar o outro de maluco, quando então o velho saltou no lago como um mergulhador peralta, dando uma cambalhota no ar antes de atingir as águas. E mais uma vez, depois de outro dia estranho, como foi aquele em 1981, demoramos a voltar para Socorro novamente. Com o passar dos anos, muita coisa mudou. Renan se afundou no trabalho e aos poucos perdemos contato. Lady Di se tornou uma dentista médica renomada e bem casada, que logo se mudou para Suíça. Eu e Duda ainda mantivemos contato, cada um com seu problema no casamento. Depois do meu segundo divórcio, em 1997, e com duas filhas que mal me olhavam no rosto, resolvi realizar meu sonho de infância. É uma pena, no entanto, que a Duda não tenha sobrevivido a um acidente de carro quando voltava do trabalho. Tão jovem, tão bela, meu amor que nunca seria meu. Mesmo com mais uma tragédia, a turma de antes não voltou mais a se reunir. Passei algumas vezes pela estrada próxima a gruta, agora asfaltada, mas nunca mais vi o velho. Uma segunda chance, havia dito ele. A gruta podia recomeçar tudo. 1981, meus amigos ao meu redor, todo mundo vivo e feliz. A infância nunca morre e a memória do passado jamais se perde. Um mergulho talvez? Quem sabe. “Pópria”, agora eu percebi quando o velho falou, “a pópria vida. De novo e de novo.” Afundando pouco a pouco no lago, seguindo o tiquetaque e nadando de volta para a luz nas profundezas, o menino retornou para o núcleo onde o tempo não existia, depois de finalmente reencontrar os seus amigos. — Obrigado, Predo. Douglas MCT - Roteirista, escritor e lenhador. Faço quadrinhos, livros e café. Amo gatos, beirutes e histórias. Facebook: /douglas.mct www.douglasmct.com Ramones A longa espera Rafael F. Faiani All that we see or seem Is but a dream within a dream. Edgar Allan Poe Estico as costas, curvando-me para a frente, enquanto espero o ônibus que nunca chega. A dor de cabeça me dá uma trégua, o que é um alívio. O frio mordisca a pele e a neblina parece uma película pegajosa no rosto. A rua está tão escura e silenciosa que penso seriamente em desistir. Meu apartamento fica pertinho, a menos de três quadras daqui. Levanto do banco e pondero se vale mesmo a pena ficar. Se voltasse ao apartamento, abriria uma garrafa de vodka, e talvez abrisse outra. Quem me impediria a não ser minha própria consciência? Tinha prometido à minha mãe que pararia de beber e já estou a um passo de quebrar a promessa. Por isso tenho que esperar. Também tem a questão do casamento, é claro. Michael, meu irmão caçula, vai se casar com Emily. Pelo menos, tiveram o bom senso de não me colocarem de padrinho. Não haveria clima para isso. Será interessante, até mesmo inusitado, ver minha ex-namorada entrando de noiva. Só o desconforto dela valerá toda a viagem. Terminei com Emily há três anos. Gosto de pensar que ela está com Michael porque ele a faz se lembrar de mim. É, eu sei. A inveja é mesmo uma coisa nojenta. Devia meenvergonhar, mas quem liga? Eu só não gosto de perder. Não que gostaria de voltar para ela, longe disso, mas saber que tudo que poderia ter sido um dia jamais será é meio perturbador. Um cachorro passa sem me notar. Seu pelo é comprido e imagino que não esteja sentido tanto frio quanto eu. Sorte dele que não precisa ir ao casamento do irmão com a ex. Um farol banha o asfalto. Não é o ônibus, o que me faz pensar na garrafa de vodka e em como gostaria de estar sentado na cama, bebendo de frente ao pôster do Ramones. Um carro preto passa devagar e não vejo quem é o motorista. Como essa é uma cidade universitária, pode ser qualquer um no mundo. O motorista acelera, os pneus cantam no asfalto e o carro desaparece neblina adentro. Que mente mais fodida, penso. Alguns minutos depois, um sujeito se aproxima devagar, fumando um cigarro. — Esperando alguém? Estudo sua expressão, imaginando se tinha puxado assunto por educação ou se existia um interesse velado por trás daquela pergunta. — O ônibus. Já era para ter passado. — Não lhe disseram? – ele dá uma baforada no ar. Arqueio as sobrancelhas de modo inquisidor. — O ônibus não passa mais aqui. Parece que cortaram a cidade do itinerário. — Mas isso é burrice. Aqui é uma cidade universitária. — Nem me diga… É um retrocesso. Como se estivéssemos parados no tempo, não é verdade? Desse jeito, acho que ninguém mais vai para casa. Nem hoje, nem nunca. A presença daquele sujeito me incomoda. Ele usa roupas estranhas, o jeans está rasgado no joelho e o boné tem um símbolo que jamais vi, porém é seu jeito de olhar que mais me perturba. Parece um homem perdido no tempo ou um psicopata, como se saído diretamente de um episódio do The Twilight Zone. — Você não acha? – ele pergunta. — O que disse? — Estamos distraídos, não é mesmo? Eu disse que a noite está tão escura que chega a dar arrepios. É uma daquelas noites em que tudo pode acontecer. — Talvez… – murmuro. – Talvez tudo o que vemos ou parecemos viver não passe de um sonho dentro de um sonho. O sujeito me fita com interesse. — Eu já ouvi isso em algum lugar. — É a citação de um poema… Paro de falar quando o carro preto retorna e estaciona no meio-fio. O cara da mente fodida. — É meu amigo, Ryan – o sujeito diz. – A propósito, eu me chamo David. — Jason – eu digo. — Sinistro! Igual ao cara do Sexta-feira 13. Não entendo ao que ele se refere, mas deixo pra lá. Provavelmente nunca mais o veria na vida. O sujeito abre a porta do passageiro, então se volta para mim e pergunta: — Não quer uma carona? Podemos lhe deixar no caminho. É mais fácil nascer um poste onde você está do que o ônibus aparecer. A oferta é tentadora. Penso que a noite poderia ficar mais fria e, se eu voltasse para o quarto, minha única companhia seria a garrafa de vodka. E eu tinha prometido. Promessas não são mesmo uma merda? — Para onde vocês vão? – questiono. — Illinois – Ryan responde. – Vem ou não? Meu sexto sentido diz para ficar, mas faz tempo que não escuto a voz da razão. Sento no banco de trás e David bate a porta com força. Um cheiro de pinho acerta meu nariz como um soco. — Pegou o dinheiro, certo? – Ryan pergunta. David não dá resposta, apenas sopra a fumaça do cigarro; no entanto, mal o vejo devido a uma chapa de ferro que separa os bancos da frente. Existe só uma abertura estreita e retangular onde é possível projetar o corpo. — O que é esta divisória de ferro? — Ryan comprou esta belezinha de um dublê. Ele não gosta de se gabar, mas este carro chegou a fazer uma participação em Knight Rider… Já assistiu? — Não, nunca. — Deveria assistir. O carro também foi feito sob medida para capotamentos. Tento imaginar quantas vezes Ryan, o “Sr. Mente Fodida”, teria capotado o carro. É difícil prever o grau de loucura de uma pessoa nos primeiros minutos de contato, mas não estou fazendo nenhum julgamento precipitado quanto aos dois. Enquanto o carro ganha velocidade, a impressão que tenho é de estar dentro de uma caixa de metal. Olho para fora, mas as imagens aparecem turvas devido à neblina. Depois que Ryan ultrapassa oitenta milhas por hora, parece que flutuamos no ar. David está falando sobre média de arremessos, um assunto tão aleatório que não tenho vontade alguma de participar. Minha visão embaça e capto um som mínimo em meus ouvidos. Olho ao redor e tudo continua normal. Nenhuma alucinação provocada pela abstinência. Contudo, a dor de cabeça vem forte, só espero que passe como da última vez. Tive esses sintomas no meu apartamento, um pouco antes de ir para o ponto de ônibus. Assemelham-se a visões e as imagens ficam oscilando entre o real e uma versão do meu quarto com o pôster do Ramones rasgado. Se pudesse ler meus pensamentos, Ryan poderia dizer: Quem é o Sr. Mente Fodida agora? Já estamos a cem milhas por hora. A neblina se dissipou e nenhum carro cruzou o nosso caminho. Fecho os olhos na esperança de que a dor de cabeça melhore, mas sei que não vai ser tão fácil assim. — Tem aspirina? David contorce o pescoço para trás como um crocodilo. — Não. Quer alguma coisa mais poderosa? Dispenso a sugestão. É melhor não brincar com a sorte. — Devagar na curva – murmura David. Ele fala tão baixo que se eu não estivesse prestando atenção mal notaria. Ryan obedece e diminui a velocidade. — Já aconteceu com você? – Ryan olha pelo retrovisor. — O quê? – pergunto. — Que tudo que vive não passa de uma mentira? David dá uma risada forçada do lado. — Ah, cara! O que você fumou desta vez? — Às vezes, acho que não sou eu que estou aqui, que estou só olhando minha vida por trás de uma cerca de arame farpado, e que não posso me intrometer. É difícil, não sei como explicar, mas acontece quando dirijo. É como se minha mente viajasse para outro lugar. E eu fico aqui meio que em piloto automático, entende? — Que papo mais doido e sem sentido! Por acaso você está aí agora? Está me ouvindo ou foi dar um passeio? Ryan ignora David. — Faz sentido para você? – ele pergunta. — Sei o que quer dizer, é como… Um sonho dentro de um sonho. — Cuidado! – David grita. Não vejo nada, mas o carro derrapa para a direita, depois ginga para a esquerda e novamente para a direita, como um peixe se debatendo em terra firme. Tudo dura menos que três segundos. Ryan consegue recuperar o controle do carro. — O que aconteceu? — Quase acertamos a porra de um cervo – grita Ryan. — Essa foi por pouco, cara! – David começa a rir. Ele também é um Sr. Mente Fodida. A dor de cabeça só piora, e fico enjoado. — Preciso vomitar. Encosta o carro! — Abre a janela – David sugere. Tento abri-la para tomar um pouco de ar fresco, mas está emperrada. — As duas estão com defeito – Ryan explica. — Não dá pra parar? Nós quase capotamos. — Já estamos chegando. Quase chegando? Faltava muito tempo pelo que me recordava. — Além de tudo… – complementa Ryan – Esta estrada é muito perigosa à noite. Vê? Não cruzamos com nenhum carro. Se pararmos e o carro não ligar, estamos fodidos. A explicação não me convence, é mirabolante demais, o que me faz olhar aquela dupla com outros olhos. Até onde sei, o ônibus pode ter passado cinco minutos depois que peguei carona. David pode ter mentido, mas não consigo ainda imaginar o motivo. — Conhece Guns N’ Roses? – David mostra uma fita cassete entre os dedos. Dou de ombros, mas ele ainda me observa como se esperasse por uma resposta. — Não – respondo, secamente. Fecho os olhos, antes que a música comece. Devo ter adormecido, pois me vejo de longe, do alto. Não há ninguém no campus, somente eu vagando no gramado entre as árvores. Num piscar de olhos, chego num corredor extenso. Reconheço onde estou: parado em frente à porta do meu quarto. Ela está destrancada e não há nada ali além de uma cama velha. Mas onde estão as minhas coisas? Deito naquela cama e adormeço. Sonho que caminho novamente pelo gramado. Estou com mais pressa dessa vez e, no instante seguinte, estou no quarto, exausto. Entãodurmo e sonho de novo. Agora as árvores estão sem folhas, uma coleção de galhos retorcidos. Não entro no quarto, não me lembro dessa parte, mas já estou na cama. Antes de adormecer, no entanto, seguro um pingente na mão. Aquilo me dói de um jeito insuportável, mas não estou mais ali… Estou no gramado mais uma vez, perdido em múltiplas realidades. De qual realmente faço parte? Só sei que quero acordar. Isso se eu estiver dentro de um sonho. Sinto que vivo num momento infinito, marcado por passagens de um passado que me revisita toda hora. Abro os olhos uma, duas, três vezes… Quantas vezes será necessário? O pôster do Ramones está cada vez mais descascado, mas parece tão vívido! De repente, me vejo no carro e me dou conta que não estou mais sonhando… — Você apagou, cara! Estou meio zonzo e demoro a identificar a origem da voz. A música já terminou, e só escuto o motor do carro trabalhando. — Até roncou – Ryan, o Sr. Mente Fodida, diz. Do lado de fora, está tão escuro que parece que vagamos pelo espaço sideral. — Gosta de histórias, Jason? – indaga David. Abro a boca para dizer que não, mas ele continua: — Eu tenho uma boa pra contar, pra passar o tempo. Até quando eu teria que suportar isso? Tento segurar o sentimento de revolta que cresce em mim. — Aconteceu com um amigo meu. Ryan conheceu o cara. — Mais ou menos. Só de vista. — O que importa é que você sabe quem é o cara. Ele poderia muito bem calar essa maldita boca, penso. A dor de cabeça volta; na verdade, ela nunca tinha me abandonado, e a visão tremula, mas me mantenho firme. — É verdade. Eu sei quem é o cara. Direciono meus olhos para fora, mas David pede para que eu preste atenção aos detalhes. Vejo o perfil dele pelo espaço limitado, o nariz fino como o bico de um corvo, os olhos me analisando enquanto me remexo no banco de trás. — Esse amigo se separou da namorada quando começou a faculdade. Ele nunca conseguiria manter um relacionamento à distância. Sei do que estou falando, eu o conheço bem. O problema é que o cara é um imbecil. A garota é linda, mas sei como é. Eu mesmo não consigo manter um relacionamento por mais de uma semana. David ri de uma forma que me deixa incomodado. Na verdade, a história em si começou a me deixar assim. — É mais comum do que imagina… – comento, deixando me envolver, pois estou no mar e tenho que seguir o curso do navio. — Claro que é. Mas há muitas peculiaridades nesta história. O que eu disse antes? — É. Os detalhes, cara – confirma Ryan. — Mesmo separados, no primeiro ano eles ainda se comunicavam por cartas. Só que, com o passar do tempo, ele percebeu que as cartas demoravam mais a chegar. E, quando chegavam, estavam mais frias e distantes. Parece que ela finalmente tinha dado a volta por cima… As palavras se misturam na minha cabeça. O enjoo vem novamente. Maldita abstinência! — Então, ele resolve comprar um presente; algo para despertar o amor que sabia que ela ainda sentia. — Damos valor apenas àquilo que nos falta – murmuro. — Precisamente, você captou a coisa. Mas o meu amigo… Eu disse o nome dele, não disse? É, acho que não. Ele se chama Norman… Ele não tinha ideia do que comprar e me pediu um conselho. De todas as pessoas, ele me escolheu. Aquela história revira o meu estômago e dou uma risada só para interrompê-lo. Ele me lança um olhar intrigado. Não consigo definir se por trás há raiva por ter cortado a sua história, curiosidade ou medo. — Já teve um sonho de que não sabia como acordar, David? – pergunto. – E se você estivesse preso nesse sonho? Como voltaria? — É tipo uma charada? – indaga Ryan. Também consigo capturar sua atenção. — Desculpe interromper a história, mas isso me veio à mente. Vocês estão presos na Terra Encantada dos Sonhos, certo? Como escapariam de lá? — Você tem que se beliscar, é simples – David responde, ainda mal-humorado. — Mas e se você não acordar mesmo assim? – pergunto. — Já sei… – Ryan fala. – Eu tenho uns sonhos bem loucos, mas tem um em que estou trabalhando no escritório de terno e gravata e nenhum ar-condicionado funciona. Aquilo me irrita tanto que subo até o terraço para respirar. Então caio lá de cima. É uma piração, mas sempre acordo antes de bater no concreto. — Piração mesmo. Você de terno e gravata – zomba David. — Então você acha que a forma de escapar de um sonho é morrendo? – indago. — Com certeza. — Pode ser uma saída, mas só tem um problema – digo. – E se não for um sonho? Eles ficam em silêncio, digerindo aquela pergunta. Depois Ryan faz um sinal com a cabeça para David. Naquele instante, cruzamos uma placa que aponta a saída da estrada a dois quilômetros. — Cara, sei lá… – David resmunga. – Posso voltar agora à minha história? — Termina isso de uma vez – fala Ryan. Não identifico se o tom que ele usou foi de gozação ou de pressa. — Pois bem… Norman enviou o presente, mas ela nunca mais respondeu. Depois, ele descobriu que ela estava namorando outro cara, acredita nisso? Norman começou a faltar nas aulas e mal deixava o quarto, alegando que escrevia um livro. Nem mesmo comia direito. Mas sabe qual foi a pior parte, Jason? Sabe o que o afetou mais? Não respondo. — Não sabe? – ele insiste. – Veja isso aqui… David abre a palma da mão e revela um pingente com a metade de um coração. — Você passou… – falo com a voz rouca. Meu corpo retesa devido a um espasmo. — O que disse? — Eu disse que Ryan não pegou a saída certa. David não responde. — Vocês me ouviram? Ryan e David simplesmente me ignoram. — Estou falando com vocês! David se volta para mim por um segundo, mas não fala nada, apenas puxa uma chapa de metal, obstruindo o único espaço por onde poderia vê-los. — O que vocês querem de mim? – indago. Sem explicação, o carro dá uma guinada e entra numa estrada de terra. Vejo pelo vidro a poeira levantar. Continuo a protestar para a parede de ferro. — Calma! Estamos chegando. Por fim, a voz vem através de uma fresta. Os olhos de David aparecem pela abertura. — Por que estão fazendo isso? Não consigo parar de tremer, e minha visão embaça. A dor de cabeça parece que vai trespassar o meu cérebro. Vejo o pôster do Ramones descascado na parede, como um sonho vívido, onde só restam as letras RAM, depois as árvores e o gramado que dão para o alojamento. Não há ninguém ali no campus. Queria ter voltado para o quarto e aberto a vodka. Teria decepcionado minha mãe com essa atitude, mas, se parasse para pensar, quando não a decepcionei? Se tivesse outra oportunidade, faria tudo diferente. Até mesmo com Emily. Ou achava que faria… David fala algo, mas estou embalado numa imersão de autocomiseração. Talvez eu não estivesse pronto para essa realidade. Volto a mim quando paramos. Ryan já está do lado de fora do carro. David abre mais a fresta e diz: — Aquela história é engraçada… Norman descobriu quem era o cara que estava com a ex-namorada dele… Você não vai acreditar nisso, vai? Ainda vejo o pôster descascado no meu quarto. — Deixe Emily em paz, Jason! O que ele fala me atinge brutalmente. Sinto minha alma pesar. Uma torrente de imagens passa pela minha mente. São como fotos numa parede. Todas de uma mulher. Uma mulher que conhecia desde criança, que sempre fui apaixonado e que em determinado momento da vida eu neguei. — O que fez com ela? – grito. – Eu quero vê-la… — Impossível. — O QUE FEZ COM ELA? – exalto-me. — O que eu fiz? Você ainda não entende? – David nota a confusão no meu rosto e acha graça. – Ah, cara! Estou quase acreditando que você não sabe de nada. — Onde ela está? – pergunto novamente. — Foi tudo culpa sua. — Minha culpa? — Emily tentou se matar na primeira vez que você apareceu, Jason. Agora está internada num sanatório, provavelmente gritando para o teto. — Não, Emily vai se casar com Michael… o meu irmão. Estou indo para o casamento… — Essa não é a realidade, Jason. Pode ter sido em 1980, há sete anos, não agora. O que ele está insinuando? Tento me convencerde que não é verdade. — Todo ano você faz isso – continua David. – Não há uma data específica, mas é sempre no mês de julho. Estamos há onze dias lhe esperando naquele ponto. Você não vai mais escapar como da última vez. Olhe em volta… Você está numa prisão de ferro. Tem até mesmo sal em volta dos vidros. — Vocês vão me matar? – pergunto. — Cara… – David desata a rir. — Vamos acabar com isso! – ouço a voz de Ryan vindo de fora, mas não consigo vê-lo. – É melhor desse jeito. Sem ele saber. — Como poderia lhe matar? – David indaga. – Olhe para você mesmo! Você já está morto. Ergo o braço e minha pele está pálida, translúcida… Quando me dou conta, o carro já está em movimento. Ryan e David o empurram pela parte de trás. De repente, o chão desaparece e, pelo vidro, só há escuridão. Estou despencando num abismo… Oh, Emily, eu sinto tanto. Eu não devia… Eu… Sim, eu devo. Tenho que escapar… Preciso vê-la… Só mais uma vez. Sinto o carro bater, se deformar, mas… Não há mais escuridão, apenas uma névoa branca que vai se agrupando e se solidificando em um círculo. Parece um olho gigantesco. Dentro de sua pupila, há uma infinitude branca que me encara. De alguma forma, sinto que não é a primeira vez que estou aqui. Dou dois passos para trás e vejo agora uma parede branca. O pôster do Ramones está descascado. RA – são as únicas letras que restam. Tenho que decidir o que fazer. Eu poderia abrir uma garrafa de vodka ou… Ou pegar o ônibus para ir ao casamento de Michael. Que grande dor de cabeça! Minha visão oscila mais uma vez. E ainda penso nela. Emily… Penso nela sempre. E isso é tudo o que me resta. É tudo o que me resta nesta longa espera. Rafael F. Faiani – Viajante do tempo e viking nas horas vagas. Twitter: @rffaiani Insurgentes Falha na comunicação Bruno Bianchi — Noite passada eu sonhei com o olho de novo – disse Sara, ao acordar. – Os tentáculos saíam dele como nervos e me cercavam… Era outono, as chuvas transbordaram o rio e a enchente paralisou a cidade por três dias, destruindo estradas e abrindo buracos. As escolas não abriram, inseguras de novos desastres, e, na mesma semana, o Bode Negro iria participar do festival anual. Não havia grandes divertimentos para os adolescentes. A escola era o lugar onde podiam conversar sem câmeras ou Agentes da Ordem a mando do Bode. Exceto quando decidiam sair à noite para a casa abandonada no final da rua, ou ao parque próximo do orfanato, onde fumavam e contavam histórias de terror. Foi naquele outono que a primeira livraria surgiu na cidade, uma construção de três andares que atraía olhares. Antes, livrarias existiam apenas no imaginário dos jovens. Padre Sebastião permitiu que as crianças visitassem a livraria no aniversário de Sara, com a ressalva: “Cuidado com o livro que vão comprar”. Alguns eram colocados à venda para atrair e identificar possíveis subversivos, mais uma das manobras do Bode Negro. As crianças passaram a tarde lá, observando os livros e a chuva que caía na rua. Depois de horas, se decidiram. William comprou uma HQ. Liane, um livro de terror. E, por insistência de Liane, Sara levou um livro-cartilha sobre funcionamento e reparo de rádios. O exemplar apresentava marcas de uso. Moravam em um orfanato. A casa de dois andares abrigava dez crianças em sete quartos. Os quartos não eram grandes: duas camas, um armário e uma escrivaninha. Sara guardava as coisas de estima − um rádio estragado e cartas velhas − num baú debaixo da cama. — Sua mãe trabalhava com rádio, não é? – Comentou Liane, se esgueirando atrás de Sara e observando a foto da mãe da colega, depois de voltarem da livraria. — É… Ela ficava a noite acordada, ouvindo estática. De vez em quando, alguém falava do outro lado, e ela corria para acordar o papai. — Você se lembra o que eles falavam? Era algo sobre O Novo Caminho? — Não. Eu tinha quatro, cinco anos, acho. A única coisa de que lembro era o barulho, ou de acordar à noite porque a gente tinha que trocar de esconderijo. Ou de quando papai e mamãe foram pegos. — Você sabe o que eles faziam? Antes do Arrebatamento? Sara pensou por um instante. — Papai era marceneiro. Minha mãe, eu não sei. Acho que dona de casa. Ei, onde está Will? – fechou o cadeado e guardou o baú. — Ajudando Irmã Helga na cozinha. Sara tinha se esquecido: William quebrara uma regra, e agora teria que sofrer a penitência sozinho. Nos quartos, havia uma lista com obrigações. Coisas como lavar louça, ir à escola, não sair depois do toque de recolher. Ao lado das regras, as punições. *** Liane acordou com um pulo, suor escorrendo da testa morena, empapando a camisola azul. Ao lado, Sara a encarava, um dedo na boca, pedindo silêncio. — Eu gritei? – sussurrou. A outra assentiu. Liane saiu da cama, enfiando-se debaixo das cobertas de Sara. Liane era dois anos mais velha e já tivera a primeira menstruação. O corpo crescera, parecia mais uma adolescente do que criança; ao contrário de Sara, com braços magros, seios quase inexistentes e cabelos crespos; não era incomum as Irmãs criticarem sua aparência. — Não consegue dormir? – perguntou Liane, olhando debaixo das cobertas e encontrando a lanterna acesa. Sara balançou a cabeça e mostrou o rádio e o livro-cartilha. – Ah. Conseguiu arrumar o aparelho? — O livro tá me ajudando, olha, tem anotações do dono antigo. Ficaram em silêncio, Liane segurando a coberta, enquanto Sara estudava as anotações e fuçava no aparelho, até ele fazer um chiado. As duas se entreolharam, e Sara girou o botão de frequência, observando o ponteiro viajando pelos números. Liane sussurrou algo e Sara pediu para ela ficar quieta. Em uma das sintonias oficiais, ouviram a legislação imposta. Em outra, um homem noticiava os últimos acontecimentos. Uma terceira transmitia a mesma frase repetidas vezes: O toque de recolher começa às 2000 e se encerra às 500. Todos os trabalhadores noturnos devem ter em mãos o documento de identificação. Sara continuou avançando, e então a estática parou. Silêncio. — O que aconteceu? – perguntou Liane. As duas se aproximaram do rádio no momento em que uma sirene soou na rua, e Sara precisou colocar a mão sobre a boca para abafar um grito. Espicharam o pescoço para a janela e olharam para a rua, a luz azul cegando-as quando um Rastreador passou, pendurando-se nas casas e edifícios. — Você acha que ele viu a gente? – a voz de Sara era quase inaudível. Elas continuaram observando o Rastreador até ele desaparecer. Sara se lembrava da primeira vez que tinha visto um, quando era criança. Na época, parecia uma criatura gigantesca: três metros de altura, membros finos como os cabos de energia que se espalhavam pela cidade. O tronco era como uma larva imensa, com três olhos azuis que iluminavam as ruas em busca de transgressores. — Acho que não, senão estaria aqui em cima. Venha, vamos voltar a dormir. *** Na tarde seguinte, a enchente tomou conta do primeiro andar, e as crianças permaneceram nos degraus, observando o Padre Sebastião caminhar com a água nas coxas enquanto tentava salvar os bens preciosos do orfanato. — Ele vai pegar uma doença – disse uma das crianças. — Os jacarés vão achá-lo antes. — Alguém aqui vai se inscrever pra conhecer o Bode Negro? — Vocês sabem onde está o Fernando? – perguntou uma quarta criança. Ninguém respondeu. Fernando era um dos mais velhos, e costumava quebrar o toque de recolher para fumar no parque. Às vezes, só voltava na noite seguinte, mas nunca havia saído durante uma enchente. Observar o padre tornou-se tedioso em pouco tempo, e Sara voltou para quarto. Continuou a ler a cartilha, mas o que chamava sua atenção eram os rabiscos do antigo dono. A letra era rudimentar, mas corrigia erros e aprofundava assuntos. A parte que o dono mais complementara fora a de frequências, na qual ele buscava uma forma de ampliar a potência de um receptor para quebrar o bloqueio dos agentes. Presa em casa, Sara passou o resto do dialendo e mexendo no rádio, acreditando que os problemas de estática da noite anterior foram resultados de um problema no amplificador. Conseguia captar as estações oficiais claramente se ficasse na janela, com o rádio esticado para fora, mas todas as outras estações eram quase inaudíveis. Em algumas ocasiões, conseguiu escutar vagamente alguém conversando. Ouviu sobre O Novo Caminho, mas sempre que tentava se aproximar da frequência, uma estação oficial invadia o canal e ela perdia quase dez minutos refazendo os passos. — Eles estão querendo ir ao parque amanhã – disse Liane, fechando a porta do quarto atrás de si. – Will quer ir junto. Quer nós duas com ele. — Por eu ter feito aniversário? — Sim – Liane caiu na cama, colocando as mãos sobre o rosto. Sara ouvira falar das histórias de como toda criança tem que quebrar o toque de recolher aos quatorze anos. Um ritual de passagem para decidir: ou era um subversivo, ou um capacho. — Você não precisa fazer isso, sabe? Ninguém vai pensar menos de você – disse Liane, que já passara pelo ritual dois anos antes. – Você sabe o que acontece se for pega… o tratamento corretivo, ou pior. Sara explicou sobre o que leu, sobre as frequências que queria descobrir, sobre a transmissão do Novo Caminho. No parque, havia uma cabana abandonada, onde antes ficava um posto de vigia dos Agentes da Ordem. Se eles ainda tivessem a estação de rádio lá, Sara poderia amplificar o receptor do seu rádio usando o maquinário dos agentes. — Por isso eu quero. Posso tentar resolver duas coisas de uma só vez. Mexo no rádio e não serei chamada de capacho. *** Na noite seguinte, Sara olhava para o relógio acima da porta. Ao lado, Liane se revirava na cama, suando; provavelmente sonhava com o olho também. Levantaram após o apagar das luzes, afugentando os pensamentos ruins. Liane jogou um casaco preto para a amiga vestir. — Vai ser mais difícil te perceberem se você colocar o capuz. Saíram na ponta dos pés e encontraram Will no andar de baixo, olhando para o estrago que a enchente causara. Ele fez um sinal para as garotas e as guiou até a saída dos fundos. O coração de Sara batia com força. Qualquer barulho que fizessem, um passo em uma tábua solta, e provavelmente os três iriam ser castigados. Aquilo não parecia estar na mente dos irmãos, eles tinham uma expressão serena, resultado dos anos em que já saíam do orfanato e voltavam. Era uma atividade quase semanal para eles, mas Sara nunca soubera exatamente o que eles faziam fora. Finalmente saíram, e Will agachou para ajudar a irmã a subir no muro. Liane estendeu o braço e puxou o garoto para cima, e então aguardou Sara se aproximar. A garota subiu com dificuldade, arranhou a mão e o joelho, sentindo o sangue escorrer pelo pulso. — Nós vamos evitar a avenida principal – disse Will. Era quase impossível ver seu rosto no breu. − O rio está alto e cheio de entulhos. Tem trabalhadores lá, limpando, então vai estar bem movimentada. Daqui a alguns dias é o festival, tem muitos Agentes perto do Palácio e o parque vai estar vazio. O importante, pra eles, é garantir a segurança do Bode Negro nos próximos dias… A frase ficou solta no ar, mas os três se arrepiaram ao lembrar da imagem do Bode. — Isso não é uma brincadeira, lembre-se disso – continuou Will. – A maioria dos agentes está ocupado com outros afazeres. Só deve ter um ou dois Rastreadores nessa região, então vai ser fácil chegar ao parque, mas não pare de prestar atenção em tudo, ok? Sara assentiu, e então Will andou. O parque ficava a duas quadras. De acordo com os irmãos, outros dois órfãos também estavam indo pra lá. Uma névoa tomava conta da cidade, dificultando a visão. Ocasionalmente, Will parava e apontava um ponto distante, onde era possível ver a luz azul de um Rastreador. Chegar ao parque foi uma tarefa longa, devido aos desvios que fizeram para contornar os agentes. O parque era extenso, com bosques, zoológico, restaurantes. Durante o dia, era relativamente movimentado, se ninguém se importasse com seu ambiente macabro. À noite, no entanto, Sara não sabia exatamente o que esperar. — Por aqui – Will foi para perto de uma árvore. Cipós caíam ao lado do tronco, e Will segurou um com as duas mãos, fazendo força para puxá-lo. Começou a escalar, até ultrapassar a altura do muro. Balançou o corpo para frente e desapareceu na noite, caindo dentro do parque. — Não vou conseguir fazer isso, Liane. — É melhor que consiga, porque não vou te levar de volta. E você quer encontrar a frequência do Novo Caminho, não quer? Sara assentiu, segurando o cipó. Ouvira histórias de árvores que eram mais vivas que outras, que podiam te tragar para dentro delas, aprisionando as pessoas no casco e se alimentando lentamente de seu corpo. Boatos corriam sobre como os agentes transformavam a natureza com uma tecnologia nova, como eles faziam experimentos em laboratórios subterrâneos e, aos poucos, conseguiam controlar plantas e animais. Com dificuldade, Sara escalou, usando os pés para se apoiar e, quando parecia que estava em uma altura boa, pulou para a escuridão. Não sabia exatamente onde cairia, e então chocou-se contra Will, que a abraçou e caiu no chão. Sara emitiu um pequeno grito, crente que um Agente da Ordem a tinha pego. — Você está bem? – perguntou Will, tirando a garota de cima de si. — Só assustada. Eu pensei que… — Eu não ia deixar você se machucar, Sa. Liane me mataria. Liane caiu logo em seguida, rolando na grama antes de se levantar. Agora os olhos de Sara estavam mais acostumados à escuridão e ela conseguia ver o contorno do parque. Poucos metros adiante, uma estrada levava para uma ponte. Do outro lado da ponte, ficava a cabana abandonada. Andaram em fila, Will na dianteira, os passos quase inaudíveis, e a névoa cada vez mais densa. Sara nem mesmo percebeu quando chegaram à ponte e a atravessaram. A natureza modificada não era exatamente gentil com as pessoas e, a cada passo que davam, olhavam em volta, procurando por algo que pudesse ser perigoso. Sara se lembrava de uma vez que uma garota respirou os esporos de um cogumelo e passou dias vomitando, até morrer. — Nós vamos para a cabana ver o seu rádio, e então vamos encontrar os garotos, ok? – disse Will, a voz tão baixa que se misturava ao movimento do que tinha vida no parque. — Você tem certeza de que está abandonada? – perguntou Liane. — Espero que sim – respondeu Sara, embora não tivesse certeza. Ela passara algumas vezes pelo parque e pela cabana nos últimos meses, e sempre encontrava o local vazio, embora bem cuidado, mas isso durante o dia. Não havia janelas quebradas ou pichações. As árvores cresceram ao redor deles quando chegaram do outro lado da ponte. Os troncos retorcidos pulsavam, e Sara observava a luz azul emitida. Pensou em perguntar o que havia ali durante a noite que deixava as árvores assim, mas preferiu não saber. A cabana era pequena, de madeira simples, com janelas estreitas e duas entradas. Liane tomou a frente, se agachou, avaliando a fechadura, e então tirou um grampo do bolso e começou a trabalhar. — Por que você quer entrar aí mesmo? – perguntou Will, se agachando ao lado da irmã. Sara demorou um pouco para responder, observando o brasão na lateral da cabana, um olho com tentáculos; o sinal de que todos eles estavam sendo observados e poderiam ser pegos a qualquer instante. — Eu ouvi uma mensagem do Novo Caminho. Achei que eles tinham sido dizimados há uns cinco anos, mas tem esse canal… — Claro que isso aconteceria: eles são subversivos dos mais extremos. Para eles, o fuzil é o tratamento corretivo. Provavelmente foram todos mortos. — E a mensagem? — Talvez tenham deixado gravado antes de morrer – sugeriu Will. A irmã pediu para falarem mais baixo. — A mensagem não se repetiu nenhuma vez. É uma transmissão ao vivo. — E o que você vai fazer se encontrá-los, Sara? — Me juntar a eles. Como meus pais. Um rangido leve na porta anunciouque Liane conseguira. Da cabana, saiu um cheiro de mofo e ovo podre. Dentro era ainda mais escuro do que o parque. Will ligou a lanterna. Dois cômodos: sala, onde estavam, com uma mesa velha, alguns utensílios de cozinha e uma pia; e um quarto, com um beliche e um painel elétrico grande. Sara se aproximou do painel, observando os botões e fusíveis, certa de que era o receptor de rádio que tanto buscava. Estava enferrujado, mas parecia intacto, e manteve-se firme no trabalho, tentando se lembrar do que lera. Não demorou mais que uma hora. Will e Liane começavam a ficar impacientes, observando as janelas. Com exceção das árvores, nada mais parecia se mexer. — Tem algo de errado acontecendo – disse Liane. – As árvores estão agitadas. — Você acha que… — O quê? – perguntou Sara, olhando para trás. — Dizem que é das árvores que saem os Rastreadores. Como se fossem casulos. Sara também começou a ficar inquieta e ligou o rádio. Apesar do volume baixo, no silêncio da noite a transmissão pareceu ensurdecedora. Passou pelo canal oficial dos Agentes da Ordem e pelo canal de notícias, parando por alguns segundos para ter certeza de que não era o que procurava. O toque de recolher começa às 2000 e se encerra às 500. Todos os trabalhadores noturnos devem… Na última noite, o prefeito anunciou que iria ampliar o número de… Na véspera, a cidadã… embarcou no avião… acompanhada das duas filhas. Recorda-se que a epigrafada ao lado dos elementos… forte campanha de desmoralização contra… também como agitadora e subversiva. Passava por estações oficiais e outras que nunca tinha ouvido. Em algumas, tocava música; em outras, notícias de um lugar que ela nunca ouvira. E então encontrou o que queria. Sara olhou para o rádio e viu que o ponteiro estava na frequência 196.68. … busca uma escolha diferente… se você acredi… junte-se ao Novo Cami… iremos até você… não contate ning… — Puta merda – disse Liane, se aproximando. As duas se entreolharam. Nenhuma delas prestou atenção nas luzes crescentes do lado de fora. … este não é um canal seguro… não nos cont… mantenha… iremos até você… Sara não pensou duas vezes, sabia que a cabana tinha um comunicador; se aquilo não fosse uma gravação, então conseguiria enviar uma mensagem. — Olá? – disse, olhando para trás finalmente. Agora as luzes eram claramente visíveis. Havia algo se aproximando. − É do Novo Caminho? Tem alguém aí? A transmissão parou, embora fosse claro que havia alguém do outro lado. Sara pensou em falar algo, então a voz de uma mulher ressoou no rádio. Corra! Mal deu tempo de Sara pegar o rádio quando alguém entrou. A garota viu dois agentes, a cabeça gorda com focinho arrebitado e orelhas pontiagudas, antes que Will a puxasse para a porta dos fundos. Talvez alguém tenha gritado para ela parar, mas o único som que ouviu com clareza foi o próprio coração acelerado. As árvores pulsavam com mais intensidade, iluminando o parque. Próximo ao lago, era possível ver um Rastreador deslizando por entre os troncos, usando os membros para lançar-se à frente. — Por aqui! – disse Liane, que corria por entre as árvores. Um galho tentou segurá-la, e parte do seu casaco ficou pendurado. Eles se esconderam atrás de uma árvore morta. Os agentes corriam em diferentes direções, empunhando armas com lanternas. Sara conseguiu contar seis, além de um Rastreador. — Você viu que tipo eles são? – perguntou Liane. — Porcos – respondeu Will, ofegante. – Por que tem Porcos aqui? Era para esse lugar estar vazio. A gente tem que encontrar os outros e avisá-los. — Não, vamos só embora. Eles se viram. — A gente tem que descobrir se tem alguém infiltrado no nosso grupo, por isso os Porcos nos acharam. Tem um espião… − Os irmãos cochicharam, mas Sara não prestou atenção. Ela olhava de vez em quando por entre as árvores, tentando descobrir se um agente ou um Rastreador estavam vindo. Apenas sons eram ouvidos à distância, passos e ordens gritadas de pessoas que não eram pessoas. Em uma árvore, Sara percebeu uma rachadura no tronco, que tornava o pulsar dela ainda mais forte, saindo do tom azulado e se aproximando do lilás. A garota se aproximou, quase que hipnotizada pela aparência do tronco, e estava prestes a tocá-lo quando viu o interior. Um garoto estava lá dentro. Fernando, o órfão que desaparecera. A pele arroxeada e os olhos vazios deixando claro que não havia vida. Raízes cresciam para dentro dele, como se estivesse se alimentando do cadáver. Sara mal teve tempo de virar para vomitar o jantar. Liane se aproximou e tapou a boca para não gritar. Escondeu o rosto no ombro do irmão e o abraçou com força. Os três se entreolharam, o desespero visível no semblante de todos. — Vocês sabiam que as árvores faziam isso? – questionou Sara. Os irmãos negaram. Will se preparava para dizer algo quando foram iluminados. Acima deles, um Rastreador se pendurava nas árvores, os membros esticados e os olhos voltados para o trio. Por um segundo, nada aconteceu. E então o Rastreador caiu em cima deles, e Sara foi jogada para o lado. A cabeça da garota bateu contra um tronco e ela se afastou rapidamente, lembrando de Fernando. Levantou-se com dificuldade, sentindo alguém pegar seu braço e puxá-la para longe. Antes que pudesse se localizar, já estava correndo, Liane à sua frente. Sara olhou para os lados, mas não encontrou Will. — Onde ele está? – sentiu sua voz distante. — Ele se vira! A resposta da garota não parecia aliviar a incerteza de nenhuma das duas, mas continuaram. O Rastreador não as perseguiu, ele ainda estava onde o trio tinha se escondido, como se estivesse embrulhando algo no chão. Agora as árvores estavam silenciosas e o parque completamente escuro. Impossível ver para onde corriam. Sara sentiu que atravessava uma ponte e pensou que estavam voltando para a cabana. — Por aqui – sussurrou Liane. Agora, elas caminhavam, tentando fazer o mínimo de barulho. Não havia agente ou Rastreador por ali. A dupla já estava próxima da saída do parque quando foram cegadas por luzes. Após o choque inicial, os olhos de Sara se adaptaram e ela conseguiu ver as cabeças de porcos por trás das armas. Um Corvo apareceu entre dois dos agentes, abrindo os braços como se para recepcioná- las. As garotas não se mexeram, conscientes que qualquer ação justificaria a morte. Antes que alguém pudesse falar algo, uma luz vermelha se acendeu por entre as árvores. Um sinalizador, que parecia estar se aproximando cada vez mais. Sara conseguiu distinguir o corpo de um homem que corria na direção do grupo. Tanto o Corvo quanto os Porcos pareciam estar chocados, e as armas foram apontadas para o novo elemento. Outra pessoa apareceu atrás de um dos Porcos, cortando a jugular do agente distraído, espirrando sangue no rosto das garotas. Sara sentiu o líquido quente, o gosto de ferro, e então foi derrubada por Liane. As duas ficaram deitadas enquanto tiros eram ressoados e grunhidos emitidos. Os sons dos Porcos eram aterrorizantes, mais do que qualquer pesadelo que Sara já tivera, assim como o barulho das lâminas cortando a carne e os corpos caindo. Por último, conseguiram ouvir o Corvo grasnar, cada vez mais alto, e, então, cada vez mais baixo, como se estivesse se engasgando. Sara finalmente teve coragem de olhar. Cinco porcos caídos. Viu um homem de pé, uma máscara de gás cobrindo o rosto, com um respirador que descia até a cintura, como uma tromba. Em uma mão estava a cabeça do Corvo. A pessoa do sinalizador também estava ali, assim como uma mulher, ambos com máscara. Ela arrastava pelo chão uma espécie de casulo, que deixou na frente das garotas. Antes que pudessem perceber, estavam sendo colocadas de pé. Sara então percebeu que o casulo era o corpo de um Rastreador, tão diferente sem os membros. A mulher se aproximou com uma faca. Sara deu alguns passos para trás e a outra levantou as mãos, sinalizando que não iria ferir nenhuma delas. A estranha se agachou e começou arasgar o Rastreador. A força que aplicou deixava claro que a carapaça era dura. Depois que fez uma incisão de ponta a ponta, colocou a faca de lado e abriu a coisa. A mulher terminou de partir o corpo ao meio e virou-o, derrubando Will diante das meninas. O garoto estava numa espécie de placenta. — Ele vai ficar bem – a mulher tirou a máscara. Tinha um rosto arredondado e olhos de lince. – Ele não ficou tempo suficiente para ser infectado. — Por que vocês demoraram tanto?! – perguntou Liane. — Ficamos horas tentando localizar o sinal de vocês – disse o homem que segurava a cabeça do Corvo. – Estava fraco por causa do bloqueador deles. — Foi ótima ideia usarem um amplificador dos agentes – completou a mulher. – Conseguimos encontrar vocês porque o aparelho era imune ao bloqueador. Por outro lado, falamos que vocês não deveriam nos contatar. — A posição de vocês foi comprometida – disse o outro. – E um dos Porcos conseguiu fugir. Ele vai relatar as coisas. O orfanato vai ser investigado. — Tá! O que está acontecendo? – perguntou Sara, alternando o olhar entre os três adultos e Will no chão. — Esse é o rito de passagem, Sara – disse Liane. – Não era para ter sido assim. — Você e Will…? — Dois anos. Foi quando a gente conheceu a Cecília e os outros – Liane apontou para a mulher, que acenou amistosamente. – Estávamos precisando de alguém para trabalhar na comunicação do grupo e queríamos testar você. — Você chegou em um momento bem conturbado – disse Cecília. – Estamos há semanas nos preparando para pegar o Bode Negro. E queremos a sua ajuda. De todos vocês, na verdade. — Eu não estou entendendo – disse Sara, segurando o rádio. Ela pensou em quando foi separada dos pais, como sua vida mudou drasticamente em questão de segundos. Pensou em como eles desapareceram, fugitivos da Ordem. — Podemos explicar tudo depois. O importante é tirar vocês daqui antes que o Porco volte com reforços. Um dos homens pegou Will no colo e o outro entregou um revólver para Liane. Cecília colocou a mão no ombro de Sara. — Bem-vinda ao Novo Caminho, garota. Substituído pelo seu duplo. Atualmente preso em uma dimensão paralela. Twitter: @BrunoBianchi23 E-mail: brunodbianchi@gmail.com Reaper As filhas Filipe Damiani — Alice! ‒ Gritou Lilian, após bater a cabeça em uma prateleira baixa da área de serviço com acesso ao quintal. ‒ Alice, venha até aqui, por favor! ‒ Esfregou o cocuruto com as pontas do dedo, apanhando o pote de sabão em pó derrubado no chão. Passos apressados foram ouvidos ao fundo, como o galope de um cavalo emburrado. Alice surgiu, aparentando cansaço ‒ o rosto idêntico ao da mãe ‒, entrou e encostou- se ao batente da porta da lavanderia. — Eu não fiz nada de errado dessa vez, estava só assistindo televisão. ‒ Disse, desinteressada, balançando os cabelos loiros que permaneciam presos no alto como um ninho de passarinhos. O vestido branco que ganhara no último Natal estava todo amassado e empoeirado; com certeza ela estivera deitada no chão, diante da televisão nova. Lilian agora respirava mais devagar, devido ao fedor que a peça de roupa entre seus dedos emanava. Olhou para a filha de forma complacente. — Pode me explicar por que tem uma calcinha com sangue embaixo da máquina de lavar roupas? ‒ Perguntou, estendendo o pedaço de pano um pouco mais alto. — É da Natalie, sinto muito… Ela me emprestou quando estávamos na casa da avó dela, eu me cortei e… Vendo o medo brotar nos olhos da filha, tentou acalmá- la. — Tudo bem, meu anjo. ‒ Que erro estúpido cometera. Como ela poderia ter se esquecido do acidente? O que era para ser um fim de semana divertido entre as garotas para comemorar o aniversário de Natalie acabou se tornando um enorme e terrível pesadelo. As garotas haviam implorado aos pais para ir ao novíssimo cinema que acabara de abrir na cidade natal de Natalie, para assistir O Império Contra-Ataca. Lilian não fazia ideia do porquê das duas gostarem tanto dessas coisas estranhas e, ao questioná-la sobre, foi veemente repreendida. A filha disse que, naquele filme, as mulheres lutavam lado a lado dos meninos, e isso era o que elas gostavam. Então, dois dias depois, Carlos Muller, o pai de Natalie, deixou a esposa e as meninas na casa de sua mãe, a senhora Janice Muller, e lá o pior aconteceu. Depois da tão esperada sessão de cinema, Martha voltou com as meninas para a casa da sogra e saiu para comprar os remédios da idosa. Quando regressou, encontrou várias pessoas assistindo ao espetáculo de fogo que era a antiga casa da família Muller. As garotas permaneciam assustadas, perto dos policiais, inteiramente cobertas de fuligem e sangue. Lilian ainda se lembrava do telefonema e de viajar por duas horas de carro junto do marido até a cidade vizinha para abraçar a filha perto do caminhão de bombeiros, que tentavam inutilmente apagar o incêndio. A velha Janice Muller nem sequer havia conseguido sair da cama quando o fogo começou, e o corpo foi velado cinco horas depois do exame da perícia, devido ao estado em que se encontrava. Os investigadores avaliaram o caso e descobriram que o incêndio teve início no quarto da Sra. Muller, que mantinha um altar com velas para orações. Uma das velas foi encontrada perto de restos que remetiam a uma cortina carbonizada. A única lembrança que permanecia em ambas as meninas era a de pequenas cicatrizes próximas ao ombro esquerdo, na forma de elipses cheias de arranhões desordenados em volta. Mesmo tendo se passado dois meses do incidente ‒ e ambas terem recebido todo o acompanhamento psicológico necessário ‒, Alice ainda ficava petrificada quando tocavam no assunto, o que deixava Lilian ainda mais preocupada, pois ela não sabia como a filha reagiria ao retornar às aulas no dia seguinte. — Está tudo bem, Alice, foi um erro meu, eu não sabia… Por um segundo pensei que você estivesse desabrochando. — Mãe! ‒ Alice corou e ambas riram ‒ Só tenho onze anos, ainda não aconteceu isso comigo ‒ disse, desviando o olhar inocentemente. — Tá bom, mas promete me avisar quando isso acontecer? ‒ Lilian perguntou, escondendo a peça atrás das costas. — Prometo, posso voltar agora? Está passando o especial do Gasparzinho e eu não quero perder esse episódio novo. — Pode sim. Só não deita em frente ao televisor, faz mal para as vistas. O sofá não é enfeite. ‒ Disse Lilian, indo até o lixo para eliminar o último resquício do horror daquele incêndio para sempre. Voltou a olhar pela janela e suspirou ao ver um desleixado Tom ‒ de rosto abatido e a barba por fazer ‒ estacionar o novo Maverick vermelho em frente à garagem da casa, ele se recostou no carro para tirar a gravata e ela saiu da janela antes que o outro percebesse ‒ em respeito ao momento pessoal do marido ‒ e foi até a porta para destrancá-la. — Boa noite amor ‒ Disse ele, dando um beijo demorado na esposa. ‒ Como foi o dia? — Foi um daqueles de novo ‒ Respondeu ela entregando-lhe um copo d’água. Não precisava dizer muito para que ele entendesse, um momento de silêncio desconfortável pairou sob o ar e ela permaneceu calada, pois sabia que ele acabaria falando do dia dele mesmo se ela não lhe perguntasse absolutamente nada. — Fui promovido… ‒ Revelou Tom, com o copo vazio ainda seguro entre os dedos calejados. — Minha nossa! ‒ Ela o abraçou, preocupada com a reação do homem. ‒ E não é uma boa notícia? — Acho que sim, mas isso não me eliminou do cargo antigo, terei que fazer os dois serviços até surgir um substituto, o que pode demorar… ‒ Ele avaliou a expressão da esposa enquanto ela ia entendendo a linha de raciocínio. — Quer dizer que você vai fica menos tempo em casa. ‒ Concluiu, encostando a cabeça no peito dele. — Quer dizer que irei morrer se eu ficar muito tempo naquele lugar, Li. Não aceitei ainda, mas esperam uma resposta até amanhã. ‒ Disse, apoiando o queixo em cima da cabeça dela como costumava fazer nas noites de encontro. — Aceite! Não ficaremos assim pormuito tempo, vamos juntar nossas economias e abrir nosso próprio negócio. Ele sorriu de volta e concordou. Ambos haviam planejado abrir uma padaria há alguns anos, e não tinham desistido da ideia. — Precisamos segurar a situação amanhã também. Acha que Alice está boa para voltar à escola? ‒ Perguntou, preocupado, olhando para a sala, certificando-se de que a filha não estivesse ouvindo. — Claro. Nós temos que estar ao lado dela se ela precisar. Amanhã será a primeira vez que as duas voltarão a se ver e a escola inteira deve estar comentando. — Nos preocupamos amanhã, então ‒ Ele encerrou. Depois do jantar, ela coloca a filha na cama e vai até a porta, enquanto Tom se aproxima da menina para lhe dar um beijo de boa noite, mas a pequena fica tensa, o pai recua e deixa Lilian preocupada. Ela se vira uma última vez para observar o rosto da filha entre os lençóis. Os cabelos da nuca arrepiando toda vez que o fazia, pois a garota encarava a mãe de forma vazia, como se enxergasse através dela algo que ninguém mais pudesse ver. Passara a ser assim, uma espécie de ritual, todas as noites desde o incêndio; as duas sustentavam aquele olhar até que, cansada, Alice girava na cama, encerrando o momento. A sensação esquisita de que algo estava fora do normal com a filha perseguiu Lilian até o dia seguinte, quando deixou Alice na escola. Talvez já esperasse por aquilo ‒ o que a fez ficar em casa, pregada próxima ao telefone ‒, mas se assustou, dando um pulo no assento, quanto o aparelho tocou. Segurou o gancho com as mãos trêmulas. A gritaria habitual de um ambiente escolar ao fundo não a assustou de imediato, a secretária parecia tentar fechar a porta antes de voltar para a linha. — Gostaria de falar com a Sra. Dias, ela se encontra? ‒ Perguntou a mulher, entre um mascar e outro do chiclete. ‒ Lilian Dias. — É ela. Em que posso lhe ajudar? ‒ Perguntou, esperando o pior. — Sua filha foi mandada à diretoria e gostaríamos de que a senhora comparecesse aqui. ‒ Disse, de má vontade, dando a entender que repetia o mesmo discurso todos os dias, exaustivamente. — Estou a caminho. ‒ Disse Lilian, com a voz rouca. Pegou a bolsa e seguiu de ônibus até a escola, já que Tom estava com o carro. As casas geminadas iam dando espaço para o centro comercial, revelando várias vitrines chamativas, que atraíam muitos clientes, em geral um público jovem, fervilhando de excitação em roupas justas e coloridas, cabelos empastados de gel e rostos cheios de maquiagens. Desceu na esquina de uma formação de prédios irregulares que surgiam à sua esquerda, entrou e seguiu até a secretaria, onde o diretor já a esperava na porta. Alice, Natalie e Martha encontravam-se paradas ao lado de um homem gordo de terno. — Entrem, por favor. ‒ Pediu ele, educadamente, e todos se acomodaram em frente à mesa. — O que aconteceu? ‒ Perguntou Lilian, a boca ficando seca ao olhar da filha para o diretor. — Hoje cedo uma garota foi encontrada amarrada no banheiro feminino ‒ começou ele, friamente ‒, estava despida e com os cabelos cortados enfiados na boca para que não pudesse gritar, a cabeça encharcada próxima do vaso sanitário. Ele descreveu a reação dos pais da garota e os danos emocionais sofridos enquanto Lilian ‒ ainda sem acreditar no que escutava ‒ não conseguia desgrudar os olhos da filha, que encarava o chão. — Isso vai ensinar aquela vaca a não mexer conosco ‒ rosnou Natalie, surpreendendo a todos, a mãe já começando a discutir com ela enquanto Alice permanecia cabisbaixa, até erguer o rosto, mexer na mochila, e retirar um gravador. — Ah! Eu já ia chegar nessa parte. Elas gravaram um áudio da garota confessando vários atos discriminatórios que fizera durante o ano, inclusive outros crimes gravíssimos. A vítima confirmou a veracidade diante dos pais, após eles ouvirem a fita. Por isso, prometeram não dar queixa, mas não posso deixar esse ato passar impune, preciso suspender Alice e Natalie por uma semana, normas da escola. Eu sinto muito. — Por que fizeram isso? ‒ Perguntou Lilian, olhando para Alice. — Porque ele… ‒ Natalie arregalou os olhos para Alice em censura, e Lilian reparou a troca de olhares. ‒ Porque ele não fez nada para impedir aquela menina de nos chamar de Filhas da Morte. As outras crianças riram de nós. ‒ Terminou encarando o diretor, como se o homem fosse culpado de algo. Percebendo que as mães aguardavam uma resposta, o diretor prosseguiu. — Ambas disseram ter sofrido ataques depois que a garota as viu de mãos dadas com um “homem alto e vestido de preto”… atrás da escola. Esse homem assustou a menina em questão. Pedimos ao zelador para verificar a área e ele não encontrou ninguém com a descrição. — Um homem? Quem era esse homem? ‒ Perguntou Lilian, diretamente para a filha, mas não obteve resposta. Natalia, igualmente calada, encarou sua mãe. Como as duas se recusavam a comentar o assunto, ambas as mães aceitaram a penalidade, já que as filhas haviam cometido atos condenáveis, e saíram da escola em silêncio, até Martha Muller começar a arrastar a filha pelo estacionamento, enquanto Lilian e Alice assistiam tudo. — Martha, não seja dura, vai… ‒ Lilian não chegou a terminar o raciocínio, pois a mulher a encarou com bastante ódio. — Não me diga o que fazer com a minha filha quando a sua é tão problemática quanto! Não quero vê-las juntas novamente, me entendeu? ‒ Gritou, e Lilian apenas fez um aceno de cabeça. Martha e Natalie entraram no carro com Carlos e saíram sem nem olhar para trás, enquanto as outras iam para o ponto de ônibus. Ao sentar, Lilian respirou fundo e olhou pensativamente para o horizonte, de mãos dadas com a filha. — Tem algo que você gostaria de me dizer longe da Natalie? ‒ Perguntou, e sentiu o aperto firme da filha se intensificar entre seus dedos. — Não posso, ele não deixa… ‒ Sussurrou ela, o olhar fixo em algum lugar do outro lugar da rua. — Ele quem? ‒ Perguntou Lilian, os cabelos do braço que segurava a mão da menina começando a arrepiar. Ela olhou para Alice, que não respondeu, e seguiu seu olhar até o beco estreito onde a luz do dia não conseguia entrar. Serpeando próximo a placa de um prédio abandonado, ela poderia jurar ter visto uma enorme sombra arredondada se alongar como tentáculos, mas era somente a sombra de uma bandeira antiga de algum time esportivo. Após alguns segundos, sentiu Alice relaxar o aperto, e não tocaram mais no assunto. Os pesadelos começaram a acontecer naquela mesma noite. No sonho, Lilian estava na cozinha e escutava um barulho vindo do lixo. Quando se virou, deparou-se com Alice agachada e inclinada de forma estranha sobre a lata aberta ‒ o corpo balançando sistematicamente para frente e para trás. A calcinha que havia descartado mais cedo se encontrava em seus dedos, próxima ao rosto. Ela a cheirava como se sua vida dependesse disso. Uma sombra escura e idêntica a do beco deslizou por trás de Lilian e subiu em seu ombro, ela não podia vê-la, mas podia escutar sua respiração ofegante, uma voz sussurrando alguma coisa que ela não conseguia entender, enquanto Alice ria e era engolida pela escuridão. Lilian acordou gritando e foi amparada por Tom. Ela o abraçou e começou a chorar em seu peito. E isso se tornou uma rotina. Lilian passou a acordar desesperada, uma hora sonhando com bichos mortos, na outra, com objetos cortantes rasgando cada parte do seu corpo. Começou a evitar o sono noturno, tirando algumas horas para descansar no quarto quando Tom saía e fingindo dormir de noite para não incomodá-lo. Alice continuou estranha a semana inteira e, por mais que Lilian perguntasse o motivo, ela fingia voltar ao normal, dizendo que estava tudo bem. Quando o fim de semana terminou, ela parecia mais assustada do que o normal, sempre olhando preocupada por cima dos ombros, com medo que algo a estivesse observando. Lilian sugeriu a Tom que retornassem ao psicólogo, Dr. Marcus, que havia cuidado de Alice na época do acidente,ajudando-a a voltar um pouco à normalidade, e foi isso que fizeram logo após Alice retornar para escola. Não foram necessários nem três dias de terapia para ele encontrar um comportamento errôneo em Alice. Ele apresentou os desenhos que a garota fazia em sua sala e relatou que algo novo havia acontecido desde a última vez em que tinham tentado essa prática. Agora, Alice desenhava pessoas sendo torturadas, casas pegando fogo. Um desenho em particular chamou a atenção de Lilian. Ela o separou e perguntou ao doutor se ele sabia algo sobre. — Ah, a sombra. Eu diria que é como ela se sente diante de todos esses acontecimentos. Cheguei a perguntar sobre esse desenho, ela ficou um pouco rígida, o que me assustou; disse que não queria falar sobre ele, como se estivesse falando de um amigo imaginário. — E ela chegou a falar do homem? ‒ Perguntou Lilian, olhando para Alice através do vidro da porta. — Esse é outro assunto que ela não quis comentar. Confesso que a forma como ela me olhou me amedrontou, parecia me alertar. Então, ela disse uma coisa muito estranha. ‒ Lilian e Tom aguardaram que o doutor prosseguisse, mas a expressão dele ficou repentinamente vazia, o medo tomando seu lugar. — O que ela disse? ‒ Perguntou Lilian. — Engraçado, eu não me lembro. ‒ Disse ele, confuso, pedindo licença e saindo do aposento. Na volta para casa, Tom parecia frustrado pelo desequilíbrio do doutor. Ele havia determinado que deixassem Alice na escola e que não voltassem mais com ela naquele consultório. Lilian concordou, mesmo achando tudo estranho. Olhando pelo espelho retrovisor, Lilian sabia que havia algo de errado acontecendo, Alice não esboçava sentimento algum enquanto olhava para o lado de fora. Sentia que a perdia, e que algo de muito ruim estava prestes a acontecer. Eles deixaram Alice na escola e voltaram para casa. Enquanto Tom tomava um banho, Lilian olhava para os desenhos que trouxera do consultório, todos os seus sonhos ali, encarando-a, menos um: a casa pegando fogo. Mas, ao observar com atenção, ela sentiu que havia acabado de ver aquele lugar, e que aquilo não era uma casa. Era uma escola! Sentindo o estômago afundar, correu até a porta da frente, avisando que voltaria logo. Pegou a chave do carro ‒ mesmo não dirigindo há anos ‒ e partiu direto para a escola. Não demorou muito para que as peças começassem a se ligar. De alguma forma, Alice havia encontrado uma maneira de informá-los do que ia acontecer, mas só agora ela percebia isso. O que quer que estivesse a apavorando, era mal, e estava prestes a fazê-lo novamente. Ela estacionou de qualquer jeito e desceu às pressas, já que uma multidão, aos gritos, se aglomerava para observar o incêndio que se alastrava pelo quarteirão de edifícios. Havia policiais à volta de Lilian, tentando conter o pânico nas calçadas. Ela conseguiu escutar um deles mencionando uma ocorrência que atendera minutos antes: um médico cometera suicídio em seu consultório. E agora ‒ o policial prosseguiu no relato ‒, só o que faltava para o dia ficar mais caótico, era um incêndio em uma escola infantil. Outro trouxe a informação de que três garotas não conseguiram sair e morreram juntas do bibliotecário. Lilian voltou a olhar o prédio em chamas, com medo de que a filha estivesse entre as três, e avistou, de relance, uma sombra ondulante atravessar a rua; um homem alto e vestido de preto desviava-se como uma serpente dos pedestres ‒ ninguém além de Lilian parecia notá-lo ‒ e ele logo desapareceu nas sombras longas e delgadas vindas do beco que Alice observara fixamente noutro dia. Seguindo o pressentimento, Lilian correu até o beco e encontrou a mochila da filha. Ela a abriu e, dentro, descobriu uma caixa de fósforos, frascos de remédio e algumas latas de querosene com um bilhete. Terminarei isso onde tudo começou, eu te amo. Lilian deixou a bolsa no chão e correu para o carro, pegou a rodovia e disparou até a outra cidade onde tudo havia começado. Quase uma hora depois, estacionou o carro perto da casa destruída da Senhora Muller e saiu às pressas, pulando a fita de segurança da polícia que ainda pairava no lugar, olhando cada cômodo até os fundos. Ela não se lembrava da Senhora Muller falando que havia uma floresta atrás da residência, mas pôde ver uma trilha e um lampejo de vestidos saltitando não muito longe. — Alice! ‒ Gritou, disparando logo atrás, tropeçando em ramos e arbustos, o sol sumindo no horizonte e o escuro engolindo-a. Depois de correr por minutos entre a mata, ela não sabia mais para onde seguir e acabou tropeçando em um enorme livro com capa de madeira repleta de espinhos. Ela furou alguns dedos ‒ a dor não se comparando em nada ao medo que sentia ‒ e folheou as páginas ensanguentadas. No meio de cada mancha, ela lia as palavras: Impura, Cruel e Morte. Largou o livro e gritou o nome da filha. Ao ouvir uma risada, correu até a origem do som e o que a esperava lá a petrificou. Ela já o vira antes nos sonhos, mas vê-lo pessoalmente era ainda pior. Alice e Natalie encontravam-se de mãos dadas a alguma coisa tremula, mais alta do que a árvore morta para onde se encaminhavam. Pôde ver suas pernas peludas dobradas em uma posição estranha, a pele de animal com muitos braços esguios e pegajosos, jazia jogada sobre o ombro. Tudo nele emanava o cheiro de alguma coisa morta. As meninas riam, e suas risadas somavam-se ao riso de milhares de outras crianças. — Alice! ‒ Gritou Lilian, em meio às lágrimas ‒ Por favor, deixe-as ir. Ele se virou lentamente, surpreso com o fato de mais alguém estar ali, e alguém que pudesse vê-lo. O sorriso enlouquecido em seu rosto era putrefato e assustador. — Elas são minhas ‒ Disse Alice, em transe, a voz transformada assustadoramente ao falar pela criatura ‒, elas brincaram e elas terminaram. — Me leve no lugar delas, eu imploro. ‒ Lilian berrou, no mais profundo amor maternal. Os olhos vermelhos da entidade pareceram brilhar por um segundo, nunca recusaria uma proposta tão tentadora assim. ‒ Fica aqui comigo, filhinha! A garota vacilou por um segundo, mas voltou a olhar para a árvore. — Lá é tão lindo! ‒ Disseram Alice e Natalie, em conjunto, entrando na árvore que as engoliu. ‒ Adeus. — Não! ‒ Lilian gritou novamente, mas já era tarde demais, a coisa e as meninas já haviam desaparecido, deixando apenas o burburinho de crianças ecoando pela floresta. Lilian só foi encontrada dois dias depois. A polícia havia escutado testemunhas próximas à escola que afirmavam tê- la visto perto da mochila com o material incendiário. Foi presa, acusada de atear fogo no local e de ter dopado um funcionário e três alunos mortos pelo incêndio na escola. Assassinado assim seis pessoas, incluindo a filha, Alice Dias, e Natalie Muller, que foram encontradas em seus braços na proximidade da floresta. A polícia descobriu seu paradeiro graças ao carro abandonado perto da casa incendiada, onde havia fios de cabelo de ambas as crianças no banco de trás, o que sugeria que a própria Lilian tivesse as arrastado até o local do suposto ritual satânico. Dias após a exumação dos corpos, ficou constatado que as garotas vinham sendo abusadas por algum adulto. Os pais foram indiciados e jugados como culpados. Tom e Carlos foram presos por abuso de menores; receberam a sentença de prisão perpétua. Martha foi condenada a pagar uma pena de vinte anos por negligência. Dias após o juiz determinar a sentença, Lilian foi encontrada morta. Nas paredes de sua cela, havia palavras escritas com seu próprio sangue. “Impura, Cruel e Morte”, e mais abaixo: le est vind. Filipe Damiani - Fofo e Assassino. Facebook: FilipeDamianiEscritor Instagram: Dekinpanda Countdown Pippo: contagem regressiva em casa Rodrigo Passolargo — Cinco, quatro, três, dois, um… Ganhei! Ufa, pelo menos essa! ‒ Lucas comemorou. Queria continuar a disputa de Pole Position do Atari na casa do Raoni, mesmo sabendo que a Mell ganhava quase todas as partidas eo Gão mantinha a média de piadas a cada derrota. Estavam todos empolgados com a vitória do Nelson Piquet na Fórmula 1, depois de um acirrado ano contra Mansell e Senna. Abastecidos de Grapette gelado e pipoca, os amigos tentavam reproduzir, no jogo, as manobras vistas na tevê, com aqueles movimentos com o joystick para a direita e esquerda, tão exagerados que Raoni puxava os cabelos enquanto via forçarem o cabo do controle (devia ser por isso que ele ficou careca). Enfim a mãe de Lucas chegou com aquele blá-blá-blá de que estava tarde, que teriam aula cedo e precisavam voltar para casa. No fundo, tudo desculpa dos pais, pois queriam-no em casa naquele feriado de Proclamação da República, enquanto assistiam ao show da banda Alfazemas. O melhor do rock and roll brega de 89. Em casa, quando Lucas olhou para o pote de geleia, o pote já estava cheio de formigas. Ele sabia que não podia deixar doce no chão, ao lado da poltrona, que elas avançavam, assim como ele avançava toda vez que os pais voltavam do show com os velhos amigos do colégio e traziam aqueles brigadeiros enormes da loja de conveniência Demolidores, no posto Esso. Lucas não entendia o porquê do nome Demolidores, mas sopravam histórias que duas vezes tentaram demolir a loja para expandir outros serviços automobilísticos, mas uma misteriosa e forte ventania sempre impedia a demolição. O dono relatou que viu um grande olho formando-se nas nuvens e, supersticiosamente, desistiu da reforma. Com ou sem brigadeiro, estava ali agora. Sozinho, em casa. Já que não podia ficar com os amigos e nem tinha idade para o show, não iria dormir cedo. No sofá, estava indeciso entre Alien: O Oitavo Passageiro e Pague para Entrar, Reze pra Sair quando a chuva começou. Ficou com o segundo filme, a história de quatro amigos adolescentes que vão para um parque de diversões assombrado; porém, foi mudando de canal algumas vezes para espiar uma ou outra cena do filme de Ridley Scott. Aos poucos, decidiu de vez e entrou na história do parque, apreensivo e até falando sozinho na tentativa frustrante de avisar os personagens. Pouco tempo depois, uma lufada soprou dentro da sala, assustando o garoto. Olhou para trás e viu uma das janelas aberta. Surpreendeu-se, pois, antes de sair, sua mãe acompanhou o trancamento de todas as janelas. Estavam ali as cortinas dançando e mostrando o contrário. Levantou- se e foi trancá-las. Quando fechava a janela, um barulho estranho veio da tevê: o canal estava fora do ar. Apertou o botão de troca de canal, mas a tela chuviscava em todos, sem nenhum sinal. Chateado por não continuar assistindo ao filme, resolveu colocar o pote de geleia no lixo da cozinha. Mas, no lugar em que deixara o pote, estavam somente algumas formigas, procurando o mesmo que ele. A respiração acelerou e ele olhou para os lados. Seguiu lentamente à cozinha para pegar qualquer instrumento que o ajudasse a se defender do “ladrão do pote”. Pegou uma faca de mesa e voltou para a sala. Encostou o sofá na parede com o intuito de poder ver todo o cômodo. Os clarões dos raios atravessavam as janelas, seguidos pelos estrondos dos trovões. O garoto tremia, pois não importava em qual cenário você estivesse, tudo piorava com barulho de trovão. Já se passavam alguns minutos e o telhado chamou sua atenção. Algo passeava lá em cima, mexendo as telhas no meio do temporal em formação. O som não era dos costumeiros gatos. Era algo maior, que o apavorou e o fez procurar o telefone. Mas a infelicidade o acompanhava naquela noite, pois seu pai o levara para o escritório de cima. Arrastava-se pelo telhado algo incógnito que o fazia bater os dentes à medida que o suor descia da testa. Furtivamente, seguiu para a escada com o objetivo de chegar ao escritório. Precisava ligar para algum vizinho, parente ou mesmo pra polícia. Um passo atrás do outro, seu corpo só pensava em se livrar daquilo que cercava e adentrava a casa. O clarão do raio foi maior dessa vez. E, quando o trovão exclamou, todas as luzes da casa se apagaram junto com a tela da televisão. O menino apavorou-se, seu coração quase arrancado do peito pelo susto. Estava no escuro, e não estava sozinho. A faca balançava em sua mão, e ele se forçava a enxergar na direção do escritório, a rápida luz dos raios preenchendo o caminho. Os pés encostavam-se ao chão com muita tensão e, do escuro imaginava, sair qualquer coisa para ceifar sua vida. Do corredor, ele escutou algo vindo de baixo. Parou pra perceber se não era um trovão ou a chuva em si o enganando. Não eram raios e trovões que se aproximavam da escada com ferros, correntes e tudo aquilo. Nenhum gato ou cachorro arrastaria metais pelo chão ou mesmo se movimentaria naquele escuro com tamanha precisão sinistra. O garoto escutava e sabia, agora, que seu algoz se direcionava para o andar de cima. Lucas deu um grito agudo e desistiu de saber a identidade de tal ser. Numa corrida em saltos, emergiu da escuridão do corredor e, no último lampejo, viu a porta do escritório. Enfim, ele escutou algo como uma voz em meio àquele barulho da chuva forte. Esforçou-se para entender o difícil inglês, que traduzia como: “Eles estão se movendo muito rápido”. Depois, não ouviu nada, por conta de outra trovoada. A voz falava de “despedida” e, quando o barulho dos ferros arrastados permitiu, ele entendeu algo como: “Para a Terra, quem sabe?… acho… culpa”. “É a contagem final!” Quem eram os “eles” que estavam se movendo rápido? Qual a relação dele, um jovem garoto que sonhava ser um piloto de Fórmula 1, com aquilo? Despedida? Para a Terra? Queriam levá-lo dali? Por quê? Que culpa ele tinha para fazerem isso com ele? Uma coisa estava certa: era mesmo uma contagem final para definir o seu destino naquela noite. Respirando ofegante, entrou no escritório e trancou a porta. Estantes lotadas de livros nas laterais, apresentando, ao fundo, o birô com papéis diversos do trabalho do seu pai, de quando a Arno ainda fabricava peças automobilísticas. Segurou o telefone. Precisava chamar alguém para impedir aquilo. Lucas nem sabia qual era a ameaça, mas tinha muito medo e pressentia um mal chegando. Seus dedos erravam os números e ele tentava novamente enquanto o barulho se aproximava da porta. O desespero era tão grande que não se deu conta que o telefone estava mudo. O suor descia pela sua testa negra e já não parecia mais aquele jovial garoto que sonhava ser o famoso B.A. Barucus do Esquadrão Classe A, seu herói favorito. Agora, chorava atrás da mesa, segurando a pequena faca, restando somente receber o seu carnífice. São nesses momentos que nos arrependemos de ter feito ou não as coisas da vida, não importa a idade. Queria pedir desculpas para o Gão por ter espalhado para todo o colégio que o amigo não gostava do Wolverine. Sim, ele amava o personagem, mas a galera toda ficara perguntando se ele não gostava durante uns três meses. Queria pedir desculpas a Mell por não ter avisado que iria ao cinema como combinado. Ou mesmo ao Raoni, por quase quebrar o vídeogame dele num momento de empolgação e decepção na partida de Pitfall. Já a lista para seus pais era maior, restando o desejo de apenas abraçá-los uma última vez. Se existiam outros arrependimentos, não havia tempo. A contagem já se encerrava. O som dos metais ao chão cessou em frente à porta. A maçaneta se mexia, cravando mais horror. Agora era forçada brutamente. Os únicos sons eram da chuva e da respiração do garoto. Por enquanto. Ele ficou debaixo da mesa e observou que algo atravessava a porta sem abri-la. O pouco que conseguia ver era uma fagulha azulada que não encostava no chão e emanava mesmo na escuridão. Soltou a faca, respirou fundo e resolveu sair debaixo da mesa. Ele agora precisava encarar aquilo. Cravou os olhos naquela massa etérea azulada que formava um ser humanoide flutuando. Deixando de lado o medo, o garoto se dirigiu ao ser: — Pippo?! — Oi, Lucas – disse o fantasma. — Vocêquase me mata de susto, Pippo! ‒ Lucas respirava, aliviado. ‒ Eu pensava que fosse algum ladrão de casas, um assassino. Sei lá, um ET! As pessoas andam falando de um ser extraterrestre de um olho só e grandes tentáculos! — Extraterrestre? ‒ o fantasma gargalhava. ‒ Desse tamanho e ainda acredita em ET? Então, o fantasma Pippo continuou: — Hoje é domingo, minha noite de trabalhar aqui, não lembra? Era verdade. Lucas havia esquecido que domingos eram os dias do fantasma. Desde que o portal do Mundo Invertido se abrira e os fantasmas e os vivos começaram a conviver bem, alguns fantasmas prestavam serviços para os que ainda respiravam. — Nossa, Pippo. Que cabeça a minha. — Quando eu cheguei, você estava dormindo, então não quis te acordar. Eu estava fazendo os afazeres domésticos e recolhi o pote de geleia que você deixou para as formigas, mais uma vez. Você estava tão distraído com o programa que nem percebeu. Então fui lá fora varrer o telhado quando vi as corujas danificando a antena. Pensei em consertar a antena lá mesmo, mas começou a chover forte e a energia caiu. Resolvi trazer a antena pra dentro de casa e fazer aqui mesmo. Só que escutei você no corredor aqui de cima e subi. E claro que eu mexi na maçaneta antes de transpassar a porta, só para não ser mal educado, como muito espírito por ai. Mas agora já é hora de você dormir, então eu vou lá na sala consertar aquela janela. Como você sabe, nós precisamos dar duro para receber os “escores suficientes” e descansarmos num bom lugar no outro plano, né? — Mas por que você estava falando aquelas coisas em inglês bem assustadoras? — Hã? Você fala “We’re leaving together… but still it’s farewell…”. Poxa, Lucas. Desde ano passado The Final Countdown estoura nas rádios. — Pippo, desculpa, meu amigo. Acho que estou vendo muito filme de terror. — Parece que nunca viu um fantasma, hein? – e os dois gargalharam. Rodrigo Passolargo: Charme, Soul, Xote e Rock’n’roll. Instagram: rod_passolargo Cézium De volta à memória Camila Pelegrini Não há nada que preencha meu peito de maneira tão sólida quanto o vazio que se estende ao meu redor. A sensação de desbravar o que se esconde sob as brumas do incógnito, de viajar por entre os mistérios do que se conhece e explorar a imensidão negra e luminosa ‒ o tapete para os meus caminhos ‒ me parece tão familiar quanto as linhas da minha mão. Não existem limites no universo. Não existem limites para a mente que a ele se conecta. Quanto mais me aprofundo e me perco na miríade do espaço que é meu lar, mais me afasto dos rostos que tanto me incomodam. Conheci habitantes de inúmeros planetas, mas até mesmo seus nomes por vezes me fogem do pensamento. Sei que não há verdade em nenhum deles; não há verdade em nada que respira. As explosões de sentimentos, os sorrisos e as lágrimas são máscaras de empatia que disfarçam a natureza em todos presentes: o egoísmo e a vaidade que orientam cada um. E claro que não sou exceção a essa lei ‒ talvez a única máxima em comum a tantas entidades celestiais ‒, pois o egoísmo é universal. Sinto a vibração dos motores de meu carro que viaja por entre o tempo e o espaço, porque foi o caminho que escolhi, o que permitiu me tornar pirata para desbravar o universo. Não tento sequer justificar minhas escolhas por qualquer outra razão que não eu mesma e o que idealizo para minha vida. Quem o tenta fazer através de discursos vazios de altruísmo e preocupação me entedia. Talvez seja por isso que a perspectiva de me aposentar me incomode tanto. Tenho repulsa ao pensamento de perder o domínio sobre mim, minhas aventuras e meus desejos, quando for afastada de meu carro. Tenho repulsa ao pensamento de precisar suportar qualquer coisa que não as estrelas ‒ planícies e mapas de minhas viagens. Ou mesmo os predadores que por vezes encontro em outras galáxias. Tenho repulsa dos olhos que notam as marcas desenhadas em minha pele há mais de vinte anos; linhas que me fazem lembrar, diariamente, da solidão que se fez como minha única companhia desde que tudo aconteceu. E agora os propulsores me levam de volta ao passado, à última missão antes que tudo chegue ao fim. A missão para colocar sob o solo o que de lá não deveria ter saído ‒ eu. Apesar do sinal de socorro recebido, apesar da voz que ainda me causa os mesmos calafrios, que parecem abraçar o meu sangue, não acredito que seja possível. Eu vi as chamas o beijarem em meu lugar, e não importa quais capacetes e capas negras tenham criado para cobrir corpos desfigurados, eu sei que o vi sendo levado para sempre ‒ eu vi, ele queimou até o fim. Mas vou à sua procura, no entanto, porque tal qual a gravidade exerce sua força, Zilian exerce sua atração sobre mim. Passaram-se vinte anos terrestres para que sua cova fosse novamente localizada. Vinte anos para que nossas tortas linhas tivessem a oportunidade de se cruzarem. Zilian se tornou o único terráqueo a tocar o misterioso terreno de Cézium ‒ o planeta de uma galáxia distante ‒, que gira em aterradora velocidade, numa órbita não decifrada. No entanto, a imediata combustão que o consumiu não permitiu que qualquer informação fosse revelada. Meu noivo se foi, assim como, uma vez mais, o planeta que por tanto tempo foi objeto de meu fascínio, até que se fizesse cenário de meu pior pesadelo. A ideia de acionar, pela última vez, todos os motores do carro e viajar em direção a um chamado de vida e morte que dança até agora em meus ouvidos, cortando o espaço, faz com que eu sinta uma amálgama de medo, solidão e um insistente resquício de esperança. Se ele realmente estiver vivo, imagino como estará seu sorriso de expressões indecifráveis e olhos negros. Será que o universo que costumava ver em seu rosto ainda existe? Será que ele me reconheceria? Eu mesma não poderia responder, já que não me olho no espelho há vinte anos. Com as mãos prendendo firmemente os controles, observo os planetas de todas as cores, e conheço o nome de cada um. Tyabe, Gaian, Lavel. Nas áreas de tráfego comum, pequenas naves aguardam em fila a vez de continuar. Alguns seres me cumprimentam com solenidade, como se me desejassem sorte na empreitada que inicio. A expressão que vejo em cada rosto me inflama de ira e desprezo, e opto por ignorar os olhos nas aberturas das naves. Acionando os aceleradores, sinto a familiar adrenalina preencher cada canto do meu corpo. Não consigo mais enxergar ninguém, o que me traz alívio. As estrelas se mostram disformes, aparecendo como brilhantes linhas enquanto avanço. Minha equipe logo perceberá que saí antes que qualquer um deles pudesse me acompanhar, e não tenho paciência para lidar com reclamações, motivo pelo qual desativo a comunicação ‒ a tarefa de verificar se Zilian realmente está vivo é só minha. Todo o meu interior está vacilante, oscilando entre as angústias que me preenchem. A urgência com que controlo o painel é sofrível, e nunca uma viagem me pareceu tão longa. A pior parte é, pela primeira vez, odiar o fato de não conhecer o que irei encontrar quando alcançar o destino. Quero descobrir tanto, quero me jogar em qualquer resposta que afaste os questionamentos. Merda de máquina velha. Como vou alcançar, nessa velocidade, um maldito planeta que raramente se faz visível? Pressiono todos os botões e sinto os motores da nave sendo levados ao limite. Nada lá fora é reconhecível. Há um vazio imenso, do tamanho do buraco que existe em meu peito. E, então, uma irritação me acerta em cheio. Reconheço os sons que se aproximam. Estão chegando. — Pare, Amabir, é perigoso demais — uma voz masculina e urgente inunda a nave. Checo o painel à procura dos aparelhos de comunicação. Estão desligados, como deveriam estar. Como os oficiais estão conversando comigo? Perturbada, observo a tela de viagem. Estão se aproximando rapidamente, com pequenas naves X-Speed. — Capitã, a senhora não pode se aproximar sozinha de Cézium. Não sabemos como a órbita vai reagir.Não sabemos que espécies de predadores e aliens existem. A senhora se lembra da últim… — Cale a boca, imbecil! Não se atreva a falar comigo sobre Cézium. Não se atreva a tentar me dar ordens! — Sinto muito, Capitã, mas não podemos deixá-la continuar — a voz vacila. O silêncio que segue me preocupa. Conheço as técnicas. Ensinei-os muitas delas. Existem meios de fazer com que um carro espacial seja interceptado em seu caminho, e o fato de não haver civis na região em que estamos se mostra como agravante, já que podem não haver limites para os meios utilizados. O Império entenderia a gravidade e jamais puniria os oficiais por tentarem me impedir. Percebo então que o modelo de nave em meu encalço é mais moderno do que o usado por mim e, por conseguinte, mais rápido e poderoso. Preciso agir antes. O primeiro movimento define o Xeque-mate. Preparo-me para atirar contra meus companheiros, e uma incômoda resistência faz formigar meus membros. Não nutro qualquer apreço por eles, mas questiono se estou pronta para cruzar a linha de vida e morte, e matar. Estarei passando para o lado que eu sempre combati? A dúvida não se mantém, e, antes que consiga definir os motivos que fazem meus dedos viajarem em direção às armas do carro, escuto o barulho que vem do impacto. Meu fogo atingiu uma das X-Speed. Repito o movimento. Uma. Duas. Três vezes. Não sei quantos disparos realizei, mas sigo atirando. Pedaços de metal voam em minha direção. Não entendo como, mas uma balbúrdia de gritos chega até mim. Mesmo não fazendo qualquer sentido, os sons de dor e desespero, prelúdios da morte que se aproxima, congelam minhas veias. Levo as mãos sobre os ouvidos para escapar da realidade, mas um rosto passa contorcido pelo visor da nave. Pisco e ele desaparece. Os gritos continuam ainda mais altos. Ouço meu nome escapar de um berro agonizante. Levanto-me, agarro uma caixa e acerto o painel de comunicação reiteradamente. — Calem a boca! O silêncio, então, preenche o ambiente. Sentindo a respiração voltar ao ritmo regular, observo os fios à mostra na minha frente. Olho para o exterior da nave, e vejo pedaços das X-Speeds afastando-se calmamente, perdendo- se na escuridão do infinito. Um nó fecha a minha garganta, mas me esforço para focar na missão. A última delas, seja qual for o resultado. No entanto, ouço um discreto ruído vindo do painel. Aproximo-me e escuto uma voz fraca. — Amab… Precis… De ajuda. O timbre é inconfundível. É a voz de Zilian. Sem me importar com o fato de que o painel não está em condições de receber qualquer mensagem, colo meu rosto contra o microfone. — Zilian, estou indo. Onde você está? — tropeço nas palavras. O ruído entrecorta a resposta, mas é o suficiente para que meu coração volte a palpitar. — Voc… Enganada. Volt… Pra mim. As lágrimas decidem me visitar após vinte anos de ausência. Não existe força alguma em mim para lutar contra sua aparição. — Estou indo, Zilian. Por favor, me espere — imploro. — NÃO! — a voz é forte e clara pela primeira vez, fazendo com que eu dê um salto para trás. — Não? — repito, sentindo o coração ameaçar dilacerar o peito com a força das batidas. Não há resposta. Aguardo alguns minutos, e só o que existe é um ruído alto. Arrisco colocar a mão sobre um dos cabos expostos, mas o choque me afasta. Zilian se foi mais uma vez. Sinto uma estranha sensação tomar conta do meu ser. É como se minha alma estivesse sendo puxada. No entanto, ignoro. Zilian está vivo e precisa de ajuda. É este o único norte que me basta. Em uma tentativa de organizar a mente e afastar o estranho incômodo que sinto percorrer o meu corpo, começo a reunir as informações do que conheço sobre Cézium e sua órbita. É, provavelmente, o planeta mais misterioso de que se tem notícia. Gira numa órbita não identificada, com uma velocidade que faz com que os anos equivalham a poucos meses terrestres, e para, de tempos em tempos, por uma razão que se desconhece. Segundo um único antigo relato, seus habitantes possuem apenas o contorno de um corpo de formato humanoide, sem, no entanto, qualquer preenchimento. Vivem uma vida longa, em razão da atmosfera rica do planeta. Diz-se ainda que a consciência dos nativos é poderosa, capaz de sobreviver por anos após o padecimento do corpo, bem como vencer imensuráveis distâncias e se fazer presente em longínquas galáxias. Então, noto que, ao longe, um ponto azul brilhante surge no horizonte. Uma iluminação forte o envolve, e uma pulsação vital me atinge. Cézium. Tenho a impressão de que o planeta me encara de volta, desafiando-me, atraindo-me. É como se seu poder me puxasse para perto, como se algo nele me envolvesse com tentáculos dos quais não consigo me libertar. Reconheço a imagem que aparece em noites de sono há vinte anos, e minha espinha resfria-se instantaneamente. Sem que eu possa evitar, a cena da nave se desacoplando e Zilian penetrando, em chamas, a atmosfera do planeta arrebata a minha visão. Estou perto. Estou perto demais do caos. — Amabir… — ele novamente. Meu coração salta com ainda mais força. — Amabir… Abr… os olhos. Sem entender a que se refere, seguro com mais força o controle, determinada a alcançar Cézium. Não entendo como a comunicação possa funcionar com os aparelhos destruídos, mas tudo o que importa é que Zilian esteja respirando e em contato. Concentro-me em tentar obter respostas com o mesmo afinco que me dedico a vencer a distância que nos separa. — Estou vendo, Zilian, consigo enxergar Cézium — respondo, com uma agitação crescente. — Me ajude a encontrá-lo. Consegue dizer onde está? — Voc… Você precisa… ordar — a voz me responde com urgência. — Não entendo, Zilian — meus olhos não desgrudam do minúsculo ponto brilhante à frente. — Eu vou encontrá-lo — volto a repetir. Em resposta, recebo mais ruídos, e nenhuma palavra inteligível. Alguns instantes depois, o silêncio é que volta a falar comigo. Confusa, programo os controles e faço com que meu punho cerrado encontre o painel à frente com toda a força que existe em meus músculos. Preparo-me para a dor que deve subir pelo braço direito e me despertar para a existência física da aflição, mas não sinto nada. Há sangue na superfície, mas meus nervos não reagem. Meus ossos poderiam muito bem estar em frangalhos, porém pareço completamente imune à dor. Verifico os equipamentos de resgate no banco traseiro, com a esperança de que o tempo passe com a mesma velocidade que meu carro possui. Traço, na cabeça, um plano para levar Zilian a salvo para casa, torcendo para que a atmosfera de Cézium tenha sido o suficiente para o manter saudável apesar dos inúmeros anos que se passaram em sua órbita. De repente, sinto uma enorme vertigem. Mesmo sentada, as pernas parecem geleia. A fraqueza me assusta, mas deduzo que seja por conta do planeta que se aproxima, e cujo brilho já inunda o ambiente. Meus pensamentos parecem vagar sem sentido, e a imagem de todas as estrelas, luas e planetas que um dia já visitei invadem meu campo de visão. Talvez seja efeito da gravidade, mas pareço não ter controle algum sobre minha mente. Ela viaja por todo o universo, em uma velocidade que me causa ainda mais vertigem. Vejo a Terra, vejo os planetas do meu sistema solar, vejo figuras tão diferentes dos humanos. Vejo, com uma clareza assustadora, um olho com tentáculos, uma intenção disseminando o caos. Estou em todo lugar. Já não sei se sou onisciente, ou se estou em meio a um poder que é. Em um piscar, contudo, estou novamente no carro que, para minha surpresa, está ingressando, com um violento tranco, na atmosfera de Cézium. É definitivamente o lugar mais bonito que já vi. O brilho azul opaco que emana torna impossível desgrudar os olhos. — Amab… — a voz de Zilian chama pelo painel. Sinto uma imensurável dificuldade para focar em sua fala. Não quero. — Amabir — ele repete. Passei a minha vida toda lutando contra rebeldes e também soldados do Império, desbravando