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Mundo Invertido - Antologia

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Bruno Amorim

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Ficha catalográfica
Organização Stêfano Volp e Bruno Godoi
Capa e Projeto Gráfico Marina Avila
Revisão Clara Madrigano
M 965 Mundo invertido : suspense dos anos 80 / organizado por Stêfano Volp e Bruno Godoi. – São Caetano do Sul, SP: Wish, 2020. Vários
autores. 1. Ficção brasileira 2. Antologias (Suspense) I. Volp, Stêfano II. Godoi, Bruno CDD 869.93 1.Ficção : Literatura brasileira 869.93
Este livro possui direitos de publicação e projeto gráfico e não pode ser distribuído, de forma comercial ou gratuita, ao todo ou parcialmente, sem
a prévia autorização da editora.
Editora Wish
www.editorawish.com.br
São Caetano do Sul - SP - Brasil
http://www.editorawish.com.br/
Importante:
Esta edição digital não inclui as ilustrações presentes na versão física.
Sumário
Prólogo
Gênesis
Tecnopata
Kaelum
Angela
Órfãos
K7
Corra
Repuxo
Caçadora
Testamento
Maçãs
VHS
Gregor
Vozes
Efêmero
Ramones
Insurgentes
Reaper
Countdown
Cézium
Apocalipse
Prólogo
Stêfano Volp (Organizador)
O nosso acordo
Podemos fazer um acordo, pela sanidade de quem lê.
Número um. Você nunca poderá virar as páginas deste livro
por virar. Número dois. Você não poderá seguir adiante se
tiver medo do escuro. Número três. Você precisará estar
consciente de que portais para outros mundos se abrem
quando menos esperamos. Um deles pode estar se abrindo
agora.
Daqui, posso sentir seus olhos. Seus olhos estão
grudados nestas palavras e a responsabilidade pelo que
você está por ler não pertence a mim, nem ao Bruno Godoi,
nem a qualquer um dos autores da coletânea. Estamos
entregando isso a você. Faça o que quiser, mas não queime
as etapas do nosso acordo.
Você mostra sua curiosidade, nós mostramos nossas
mãos tingidas de escarlate. Há um olho e tentáculos. Coisas
que não deveriam ser acessadas por meros mortais.
Os contos aqui estão prestes a atravessar eras e
camadas, por dentro e por fora, por baixo e por cima, entre
infinitos rastros de luz e velocidade. A história de um cara
viciado em jogar fliperama que recebe uma proposta
tentadora, ou a de um padre tocado pelo espectro do mal. A
garota que explode monstros ou aquela cuja consciência se
espalha pelos cabos de energia da cidade. A pobre menina
supostamente assassinada por uma boneca maldita, os
vermes esquisitos que habitam corpos em um necrotério.
Se as luzes piscarem, não repreenda. Pode ser apenas
um desesperado tentando se comunicar. Se as luzes se
apagarem, esqueça este livro e corra.
Uma contagem regressiva, uma fita cassete que não
deveria ser ouvida, um pomar misterioso, a possessão. Você
está prestes a presenciar pessoas se jogando de uma ponte
famosa, ou a história de um velho em uma gruta antiga. Um
diário que jamais deveria ser acessado, um fantasma, a
garota borbulhando no poço, a espera por algo que nunca
vem. Uma carta arrepiante, recebida na madrugada, ou um
romance que atravessa galáxias.
O Gênesis e o Apocalipse.
Se você ouvir um grito, não repreenda. Pode ser apenas
um desesperado tentando se comunicar.
Se você ouvir seu nome sendo sussurrado por alguém,
não responda de volta. Corra.
Estará feito e concordado quando você iniciar o primeiro
conto. Toque os dedos na passagem. Inspire o quanto puder.
Memorize nosso acordo.
Faça sua escolha.
É um poço, uma vez dentro, não há retorno.
Você vai cair.
No.
Nosso.
Mundo.
Bem-vindo ao Mundo Invertido.
Stêfano Volp - matador carismático - @stefanovolp
Gênesis
O chamado do Senhor dos Mundos
Bruno Godoi
Eu preciso me matar. Estou sozinho em um corredor
escurecido, preso nesta cabana gelada para me matar, mas
já se passaram trinta e um dias e a coragem foge do meu
corpo como o suor pela testa. A única coisa que não me
deixa é a voz da entidade, o horror das visões e aquela
canção doentia da banda Bauhaus. Bela Lugosi’s dead. Não
tenho entusiasmo para sequer abafar os ouvidos e esquecer
o som que não sai da minha cabeça.
A voz de Peter Murphy queima meus ouvidos. “Undead,
undead… Bela Lugosi’s dead”, ele canta com entusiasmo. A
ruptura estética do punk rock gótico define a minha apatia
ao futuro, pois não vejo projeção do amanhã. “Estamos
abandonados em um florescimento mortal”, diz Bela
Lugosi’s dead. “Sozinhos em um quarto escurecido.”
O alívio que eu imaginava encontrar para fugir dos
pesadelos me deixou antes de eu começar a subir a
montanha. Agora só tenho a escopeta sobre a mesa à
minha frente e um cartucho na mão, a pólvora vibrando,
pronta para estourar os dedos. O maço vazio de Lucky
Strike no bolso de trás parece uma mão cheia de garras
sobre a nádega, querendo cortar o jeans e dilacerar a pele.
Não fumo há trinta dias. Logo na primeira noite aqui,
devorei os quatro últimos maços do Lucky Strike que
consegui preservar secos; o resto, se perdeu na chuva pela
trilha. Machuquei os pés na lama e eles doem até hoje.
Estou descalço, os dedos duros e arroxeados; isso não é
efeito do frio, pois não sinto nada. Se eu fosse um
acadêmico versado em medicina, eu diria, com certeza,
serem essas alterações corporais as fases da morte.
Contudo, tal pensamento só pode ser projeção dos
pesadelos. Ou reflexos da Bela Lugosi’s? “Undead.” Morto-
vivo. Estou um morto-vivo agora? Ou embriagado?
Comprei esta cabana em 1970 justamente para ter um
local onde pudesse beber sozinho. Conheço cada árvore do
bosque, cada pedra solta e, mesmo assim, estou
petrificado, sentindo pavor de algo desconhecido.
Definhando com essa rigidez irritante que toma conta das
mãos, aumentando junto com o desconforto nas veias,
correndo como areia num canudo. Meus órgãos estão
perdendo volume enquanto fico pálido. É o sinal da morte;
um estágio dela. É a abstinência do cigarro; é a morte em
vida. Nunca pensei que o meu fim seria neste meu local de
refúgio, minha cabana na floresta, cheia de vida e verde,
agora cinza feito o punk gótico do Bauhaus.
Minha comida acabou no segundo dia, parei de buscar
água no quinto. O que me sustentou até o décimo foi três
lebres magras e um ninho de pássaro com meia dúzia de
ovos quase podres; afora isso, meu corpo não viu mais
nada. A floresta não colaborou comigo, ela tinha intenção de
me enfraquecer, de me matar aos poucos; me preparando
para o que viria…
O pesadelo! A pior experiência veio no dia dez, depois
dela, a fome me abandonou por completo, porém, preciso
comer mesmo sem vontade, sei que estou em inanição. O
corpo está acabado, o coração não reage há dias. Tenho que
sair para caçar novamente, mas a simples ideia de sair para
colher um punhado de cogumelos no jardim me crispa a
boca. O que eu vi lá fora no dia dez me tirou qualquer
apetite. A única coisa que mantenho dentro de mim é o
cheiro de putrefação subindo pela garganta numa ânsia de
vômito constante.
Ouço ursos rodeando a cabana e lobos farejando as
frestas. O que faço é implorar para nenhum deles entrar,
pois só me resta um tiro de escopeta; e ou mato o invasor
às minhas costas ou tiro a minha vida. De uma forma ou
outra, o horror vai acabar. Se o monstro não morrer,
também não vai me pegar vivo.
Vou beber mais, terminar a garrafa de uísque e atirar.
Essa é a ideia. Contudo, estou rígido, não consigo erguer o
braço. Preciso me lembrar do que estou fugindo para
elaborar outro plano, mas minha cabeça embaralha. A
alucinação é real?
Da janela da cozinha avisto o preto do mar, a encosta
pedregosa e o rastro verde descendo da parede externa da
cabana. Parece que um peixe colossal se esfregou na
madeira, deixando uma linha de escamas brilhantes ao luar;
a gosma verde pulsa em flashes fosforescentes pelas
emendas das ripas, lembra o vidro lodoso de um aquário.
Blocos de rocha esculpidos surgem no horizonte, revelando
fisicamente o mais íntimo medo de qualquer ser pensante.
O inferno. A silhueta da coisa traz dentes afiados que
rasgam a lucidez de quem se atreve a olhar. Preciso fechar
a janela, esquecer a imagem.
O real pavor só pode ser idealizado por seres
desenvolvidos ao ponto de racionalizar,pois é no mais alto
grau de entendimento que o terror se manifesta, quando
temos a clara convicção de que algo é danoso e vai trazer o
mal onde antes havia o bem. É esse sentimento racional
que transborda de mim em riscos constantes de lágrimas,
pois eu sei o que vem vindo lá.
Ele vem vindo!
É uma carapaça imensa se erguendo do mar, trazendo
uma acrópole primitiva do fundo do oceano, com animais
exalando o pavor em forma de uma espuma azul-
esverdeada tão forte que rasga a realidade dos sentidos e
chega até mim num cheiro de morte. O mais sagaz dos
poetas levaria meses para descrever essa visão, e nunca, a
despeito de toda gramática, se sentiria confortável com
algum substantivo para nomeá-la. É simplesmente uma
erupção de dor e cinismo, como se Ele soubesse do temor
que causará apenas em sua forma estática, em apenas ser
o que é. Um trauma do cosmo. Um undead, tão antigo
quanto o fogo, que se revela para mim; o mal que há
milhões de anos jaz em nosso oceano.
Quero correr, mas continuo observando. Sinto a
presença da entidade em todos os cantos. A realidade é um
espelho, para onde viro, lá encontro olhos de volta.
Compreendo que a revelação completa será a minha
destruição, pois o horror me arrebata ao pensar na nossa
minúscula participação no espaço. Será essa a verdadeira
função para existirmos? Ser um observador inerte para o
mal consciente que está na base do nosso mundo? Vivemos
para receber o manancial infinito dessa vilania?
Eu busquei isso, a luz branca sem saber; o brilho do céu.
A curiosidade de ensaiar as estrelas me trouxe até aqui,
porém, agora desejo a completa cegueira, uma vez que
enlouqueço ou me mato ao vislumbrar a verdade da
escuridão. Por fim, me vejo preso num ensaio sobre a
cegueira íntima. Foi tudo o que consegui em minhas
reflexões.
Tudo começou há meses… Eu consertava um Atari na
minha oficina de eletrônicos e brinquedos, na garagem do
meu prédio, quando o primeiro áudio chegou. Um chiado
numa TV de antena torta. Um grasnado parecendo
pancadas de marretas em pedras, ao mesmo tempo em que
se ouvia uma pasta escorrendo ao fundo. A TV estava
desligada da tomada, um curto-circuito queimara todo o
interior do aparelho.
Aquela TV estava morta! Ou adormecida? Ela vibrou
tanto a ponto de piscar e emitir uma mistura luminosa tão
estranha que vi todos os pigmentos possíveis em nossa
paleta de cores. E mais uma luz negra, que se elevou de
trás do aparelho num espectro de fumaça, tomando forma e
se desfazendo, de modo intangível e tangível, mostrando a
silhueta de algo deformado.
Na curiosidade que toma o comando em momentos de
extremo espanto, estiquei o braço para a massa gasosa e
meus dedos entraram no nada, que era líquido e ao mesmo
tempo vapor quente. Fechei os olhos e então meu coração
encolheu. Encolheu de uma vez, eu sei. A dor foi
instantânea, senti o órgão murchando. Um segundo depois,
veio uma corrente elétrica que deixou o braço dormente.
Quando consegui respirar, com o coração batendo
novamente, chegou outro chiado da TV e a tela trincou com
uma espécie de martelada de dentro para fora. Não foi um
ruído terreno; foi algo de muito longe. Era o que eu sempre
desejei como eletricista e astrônomo amador, o contato com
uma intenção cósmica: a prova de um intelecto sobre-
humano.
Contudo, o gozo da descoberta foi substituído por um
medo que cresceu em mim feito o mais expansivo tumor.
Puxei o braço, caí e rolei para fora da oficina, mal
controlando o corpo. Arrastando, escalei os degraus da
portaria e entrei no hall. Escuro, nenhum vizinho. Consegui
subir as escadas aos tropeços, entrei no meu apartamento e
corri para o quarto. No momento em que fechei a porta, as
lâmpadas do apartamento estouraram e as visões
começaram.
No breu, olhei para a parede e vi uma espécie do
brinquedo Genius pintado. O objeto piscava todas as luzes,
parecendo uma casa noturna; a Bela Lugosi’s dead começou
nesse ponto. Depois, veio a tortura de sons e luzes. Passei
dois dias com forte dor de cabeça pela música alta que
berrava no cérebro, até descobrir que as luzes paravam
quando eu bebia e fumava. O problema é que minha cabeça
dói mais quando me embriago. Porém, não suportando mais
o horror, decidi beber muito, pois é indizível o que eu estava
sentindo. Então, mantenho-me alcoolizado até hoje e, ao
mesmo tempo, de pé na cabana, pois é no sono ou na
sobriedade que o medo ganha de mim.
Lembro que no dia oito, não aguentando de sono, liberei
duas estantes da cozinha, tirei o fundo delas e as ajeitei
uma de frente para outra. Enfiei um braço em cada
prateleira e me apoiei nessa muleta improvisada. Ainda,
para espantar a sonolência, deixei uma bacia cheia d’água
no chão e entrei nela. Fiquei assim dois dias, só parei
quando, por um instante, adormeci. No susto, retraí o braço
e cortei o pulso num prego. O sangue escorreu para a bacia.
Minha vista escureceu e tombei, exausto, já na manhã do
dia dez, quando a fome venceu. Por fim, saí da cabana para
caçar, na noite do dia dez.
Foi assim que veio o pesadelo me confrontar com a voz
que me falava da ferramenta do autoextermínio. “Se mata.”
“Pula!” “Corta.” Esse é o único pavor maior do que o da
própria morte: o medo de viver que faz querer morrer. A voz
não cala.
Lutando contra o impulso do autoextermínio, me afogo
em lembranças… Impossibilitado de seguir meus estudos
em astronomia, pelo simples fato de não compreender tanto
a Matemática, passei a vida equipando a oficina da minha
garagem, aplicando parte do meu sustento para estudar as
estrelas que pulsavam na mente. Eu sentia um chamado
cósmico a mim direcionado todas as noites. Porém, nunca
imaginei que o contato seria tão horrendo.
Não suportando a música e as luzes coloridas do quarto,
dias depois do acontecimento da TV, preparei os
mantimentos no bagageiro da minha Harley-Davidson e fui
para o isolamento da cabana, na extremidade antiga da
cidade. Uma tempestade inesperada me fez atolar a moto
no início da estrada de cascalhos, por isso a deixei na praia
e caminhei por uma trilha. Gastei treze horas na subida,
algo que eu fazia em duas guiando turistas há anos quando
vinham para os piqueniques. A tarde inteira e metade da
noite de caminhada; mas nem o peso das garrafas de
uísque nem a lama me atrasou, foi a aversão sentida no
fundo da consciência. A racionalidade que tentava me
alertar de algo. Nesse dia, perdi os maços do Lucky Strike.
Agora, no auge do horror alcoólico, o calor no crânio me
faz ver discos brilhantes iguais aos do Genius, a testa
inchada quer rachar a pele. Preciso me matar antes que a
coisa se aproxime mais. Não quero ouvir, nem ver mais,
mas até na paz da encosta, na então confortável cabana, os
pesadelos chegaram nos últimos vinte dias, mais fortes do
que lá no prédio… Lembro-me de cada uma dessas Vinte
Visões, uma revelação por vez, sempre próximas do nascer
do sol, o momento mais alerta de meus olhos.
Passei a cochilar anestesiado pelo uísque durante a
primeira semana e a ficar acordado à noite, de pé,
encostado em algo, até os joelhos incharem e corpo
escorregar de costas. Evitando ao máximo piscar, sentia os
olhos secarem até a chegada do sol, quando, rendido, eu
caía no sono.
Assim, ao dormir pela primeira vez, a Voz falou direto
comigo. Contou-me coisas de antes do mundo existir. Sobre
as intenções vis daqueles que caminham pelo tapete de
estrelas desde o começo do todo. Relatos que
enlouqueceriam o mais sensato dos religiosos.
No décimo dia, quando cortei o pulso na estante,
arrastei-me até o banheiro e enrolei uma toalha no corte. A
fome, até então presente, me fez sair da cabana com a
escopeta à frente e a lanterna presa à mira. Cauteloso, um
passo por vez. Passei a corrente nas argolas do batente e
tranquei a porta e todas as janelas da cabana, forcei as
trancas a ponto de estalar a madeira. Minha última defesa
foi manter portas e janelas fechadas.
Era noite alta, não localizei a lua na névoa rançosa que
escorriado bosque, mas, de algum lugar, a esfera brilhava,
pois uma luz verde guiou meus passos. Fui, o corpo
oscilando de cima abaixo, caminhando no escuro da mata. A
margem da trilha destacada feito marcações no asfalto.
Não era a mesma floresta que eu conhecia de dia, tenho
certeza. Vi protuberâncias no chão que sol algum revelava
no mais claro meio-dia de verão. Não! Era um ambiente
inapropriado para humanos, um ar insuportável, feito para
criaturas antigas, que transpiram o mal do cosmo. Vi arcos e
umbrais de uma feitura impossível de se executar na mata.
Arquiteto algum projetaria aquelas peças; máquina alguma
ergueria tais colunas num ambiente tão inacessível.
Então descobri o paradeiro da lua. Vi de onde vinha sua
luz. Do solo. Ela não brilhava no céu. Ela resplandecia do
chão, eu caminhava sobre ela. Crateras circulares de
vulcões adormecidos se descortinaram à frente, enquanto
eu dava passadas largas, com o colorido dos planetas na
planta dos pés. Até que, por fim, parei e olhei para trás.
Para o meu pavor maior ‒ mesmo pensando não ser
possível me impressionar mais ‒, avistei uma bola azul e
verde. O nosso mundo doente. A Terra trincando a casca e
se desfazendo em estrelas. Eu havia cruzado a mente Dele
e entrado num inferno pessoal que, na existência daquela
criatura, era o mais puro júbilo. Eu era uno com Ele, uno
com a inteligência cósmica.
Não pude ir além, os horrores que senti, as coisas que
ouvi e o que eu sabia que iria encontrar me fizeram parar e
voltar… Logo me vi novamente na mata, à espreita de um
alce branco. Ele me olhou, atirei. Errei! Perdi o penúltimo
cartucho da escopeta. O estouro despertara os lobos. Voltei
correndo para a cabana. Espremi o corpo na porta
entreaberta… Uma janela batia ao vento, dando pancadas
altas que me lembraram do tiro.
Coloquei a arma sobre a mesa. Os braços moles de
tanto tremer. Peguei uma garrafa de uísque e um copo
vazio, ajeitei tudo ao lado da escopeta e fui para a janela da
cozinha ver o risco de escama que persistia inalterado.
Ainda contemplei a acrópole oceânica que, nesse dia, já se
mostrava pela metade, com pilares gravados com
pictogramas que artista algum pudesse conceber. Riscos e
formas chuviscados de verde e vermelho, compostos de
entranhas de monstros marinhos. Eu sei disso, pois eu via
pelos olhos da criatura. Voltei para a sala e estanquei no
lugar.
A porta! A porta estava aberta quando retornei da
mata? A corrente jogada em um canto. A janela! A janela
também estava aberta?
Olhei para a mesa, vi dois copos, um cheio de uísque e
o meu vazio. E mais, um maço de Lucky Strike, espremido e
molhado, cheio de cigarros. Alguém tinha entrado antes de
mim. A coisa me achara! Arregalei os olhos e me inclinei de
lado, sentindo um choque subir pelas pernas, indo até o
meio das escápulas. Congelei, não dei sequer um passo
além…
Aqui estou até hoje, no trigésimo primeiro dia, depois de
ver todas as Vinte Visões, criando coragem para estender as
mãos, catar a escopeta, recarregar e estourar a cabeça do
monstro. Ou, o que seria mais fácil, a minha.
Não há paz em lugar algum. Ele observa tudo. É uma
coisa que murmura “Senhor” no início de frases, e termina
com “dos mundos” em cada final de monólogo. É estranha e
lenta, uma fala angustiante. Mesmo furando meus olhos e
rasgando as orelhas em sonhos, durante as visões, eu
sempre via com Ele, pensava com Ele, pois eu sou Ele
agora, o Senhor dos Mundos, a intenção em tudo. E eu sei.
No começo da existência, tudo era quente e quieto,
contido num grão. Assim, veio o caos, trincando o grão e
braços se alastraram em fissuras, até tudo explodir num
grande estouro. A fresta se abriu num risco horizontal, feito
pálpebras de um ciclope cósmico, a tudo observando,
disseminado a vilania até o limite de seu alcance que não
possuía barreiras. E Ele passou a observar de lá.
Cansado de apenas olhar, o Senhor dos Mundos
avançou, caminhando pelas existências, alinhando estrelas
e cruzando luzes, emanando, como se numa celebração
cósmica, uma luz negra que se misturava com um verde
fosforescente em cada gesto, espalhando o que trouxe em
abundância. O caos. Não contente com apenas existir, Ele
permitira a criação de outros semelhantes, chamando a
todos de Lordes dos Mundos. Eu vi um.
Ele estava nu, saindo de um poço de lágrimas do
deserto. Esguio, a pele lisa feito gelo, o rosto inexpressivo, o
riso num ângulo sem conhecimento na geometria terrena. O
crânio massudo ‒ não encontro palavra mais adequada para
chamar aquilo ‒ entalhado em forma de cunha num
monólito poroso que pingava escamas. Do lóbulo de uma
orelha desciam lanças de prata, esticando a pele, criando
tentáculos que rasgavam o solo, formando veios de algo
verde por onde a figura andava.
Esse Lorde dos Mundos aproximava-se de mim, ao
mesmo tempo em que se distanciava, fundindo-se à
silhueta de um monte no horizonte, o contorno falhando em
ondas que se apagavam no crepúsculo de um sol cinza. O
deserto longínquo, tão vasto que me sugava a sanidade
com a sensação de agulhas chupando meus olhos. Esferas
roxas e blocos cúbicos começaram a cair do céu, sumindo
antes de atingirem o deserto, fulgurando por segundos,
revelando trincas no solo que formaram vales coroados por
bordas enrugadas. Era a palma de uma mão velha e
murcha. A palma do colosso.
Ao fundo, rasgando o monte numa erupção, avolumou-
se uma esfera de pálpebra fechada, pingando um caldo pela
fresta irregular que tremia, querendo se abrir, quebrar a
remela endurecida que selava seu risco. A esfera ocular
avançou num som baixo, grave feito uma trombeta
quilométrica, abarcando o panorama como uma avalanche,
absorvendo o lorde solitário como se ele fosse uma gota
numa enxurrada.
Depois, na calmaria, uma forma redonda persistiu, com
braços e tentáculos vivos iguais a vermes. Em sua destra,
uma balança com dois pratos de bronze. Em cada prato, um
globo pulsante de mundos vivos e invertidos, um acima,
outro abaixo. Sobre a monstruosidade dessa visão, uma
bola luminosa preenchida por vinte palavras. A bola desfez-
se, liberando o conteúdo ao ar. As palavras amontoaram-se
e caíram sobre os mundos como areia. Palavras solitárias,
únicas, num idioma de caracteres desconhecidos,
carregadas de acontecimentos que logo percebi serem as
Vinte Visões que se derramaram em pesadelos.
E em mim, usando minha consciência como degraus
para Ele alcançar as estrelas, a entidade deixou uma
impressão no espírito, uma vontade que se apresentou
como sendo o Senhor dos Mundos. Sucedeu que Ele falou
numa voz prolongada de chiados:
“Senhor… Levanta. Ide e guiai-vos até os Lordes dos
Mundos. Carregues o ruído por todo o chão onde pisares a
planta do vosso pé, e todos os ouvidos que ouvirem a voz,
os mistérios das estrelas os arrebatará. Assim, há de
perpetuar o mistério… dos mundos.”
Isso ia num plano acima de um pandemônio de vozes,
preenchendo a cabeça. Até que a voz registrou as
revelações que me foram apresentadas. E a primeira foi me
dada em fogo na testa, era justamente a marca do ciclope,
o risco de pálpebra horizontal.
O Olho.
Por fim, o Mal e o Bem eu desejei. Apenas isso. Esse foi
o princípio da existência que senti como a verdade. Mal e
Bem. Sem limite de força e espaço, a vilania se expandiu
numa fagulha de trevas e, sobre o abismo, o negro caiu.
Vazias e gélidas as terras se apresentaram. Rapidamente o
Bem em pó se fez. E disse a voz das estrelas, o olho
maligno:
“Senhor… então, que haja dor… nos mundos.”
E houve dor. O Mal prevaleceu. É verdade, pois Ele
chegou, o Senhor dos Mundos. Vivendo nas Vinte Visões
agora eu sou um com Ele, tanto que a verdade me foi
mostrada: eu morri no décimo dia, o chifre do alce me
degolou. Nunca retornei à cabana com vida, e dela sinto
que ainda não saí, mas as Vinte Visões persistem numa
massa escura que se condensa em blocos cúbicos cheios de
dor trazendo o Apocalipse… o final que se fecha numa
Negra Luz.
Bruno Godoi, o escritorlenhador espartano nascido em
Minas Gerais. Instagram: @br.godoi
Tecnopata
A caminho do céu
Igor Chacon
Filha de casal de pesquisadores da universidade federal
ainda está desaparecida. Na manhã do último primeiro de
janeiro, a pequena Rute Schmidt, 10, desapareceu do
quintal de casa sem deixar rastros. A Polícia Civil encerrou
as buscas, que já duravam três meses. A família está
desolada e pretende sair do país com seu outro filho, Túlio,
11, ainda esta semana. O pai, Alexandro Schmidt, e a mãe,
Roberta Schmidt, notórias autoridades na área de
neurotecnologia, neurorobótica e neurogênese,
desenvolvem trabalhos revolucionários na área de controle
de…
Túlio sentia as lágrimas escorrerem quase como se
estivessem caindo em câmera lenta. Ele chorava sem a
vergonha que achava que deveria sentir, afinal, naquela
noite escura, naquele bairro sombrio, não havia ninguém
olhando. Se estivesse na frente dos colegas, ou mesmo do
pai, achava que conseguiria engolir o choro. Porque engolira
nos últimos três meses daquelas férias terríveis, mas agora
parecia que tudo tinha ficado pesado demais em seu
coração jovem.
Uma elevação na estrada o fez diminuir a velocidade da
bicicleta de rodas grandes. Era a passagem de trem que ele
conhecia desde que começara a andar de bicicleta pelo
bairro e aprendera a respeitar mesmo antes de ver o Sr.
Tongles (o gato da Sra. Cassandra, sua professora, dois anos
antes) ser esmagado nos trilhos pelo “trem das 7”.
Apesar do choro, olhou cuidadosamente, primeiro para
a esquerda, depois para a direita, e escutou, elevando um
ouvido para o vento noturno como um cowboy procurando
índios em um daqueles filmes de faroeste que o pai às
vezes assistia, quando voltava de um interminável coquetel
com outros professores da universidade. Não havia som
nenhum, muito menos o brilho no farol do trem. Ele estava
só, exceto pela bicicleta verde, que reluzia na luz amarelada
do poste.
Isso, e a presença inegável da irmã.
Para todos, Rute estava sumida há quase noventa dias.
Não para Túlio.
Ele venceu a elevação na estrada (que, ali, já era
asfalto, não paralelepípedos como as ruas adjacentes) com
uma careta de esforço que quase o fez esquecer o choro.
Todavia, enquanto continuava a pedalar, a lembrança dos
olhos tristonhos da irmã fez o choro retornar.
Progrediu devagar pela subida que circundava o morro
cujo cume era tomado pelo lixão da cidade. Ao redor, casas
fechadas e silenciosas, de muros altos, com cacos de vidro
no topo. Passou com a bicicleta por cima de uma poça de
lama quando viu um grupo de garotos mais à frente.
Limpou o nariz com as costas de uma mão e diminuiu o
ritmo de pedalada. Quanto mais se aproximava do lixão,
mais a presença da irmã parecia forte. Algo quase palpável
no ar. Vinha de todos os lados, mas, principalmente, ele
conseguia sentir na corrente elétrica lá em cima nos postes.
Desde que Rute desaparecera, Túlio sabia que os pais
estavam envolvidos. Não era uma certeza racional, como se
ele pudesse traçar uma linha de pensamento lógica até o
entendimento, mas sentia isso como podia sentir, nesse
exato momento, que a irmã o chamava.
Continuou pedalando e suspirou aliviado quando
percebeu que o grupo de garotos – três, na verdade –
estava prestando bastante atenção à janela de uma casa.
Eles estavam sentados debaixo de uma árvore, quase no
escuro, se não fosse a luz que saia da casa à frente deles.
Túlio pedalou até que pôde ouvir o som de uma televisão e
entendeu por que os garotos não lhes davam atenção.
Havia uma senhora de cabelos grisalhos na sala da casa
e uma TV ligada, Túlio conseguiu ver dois pedaços enormes
de palha de aço nas antenas do aparelho e sua luz azulada
lançada rua afora. A senhorinha e os garotos
acompanhavam o último capítulo da novela das nove, é
claro. Túlio achava – apesar de sua indiferença àquilo – que
todo o país estava sintonizado na novela para saber quem
matou quem ou quem vai casar com quem, algo assim. Não
importava para ele. Nada importava, na verdade, nos
últimos três meses.
Porém, ele parou a bicicleta. Colocou um pé no chão e
olhou a tela, não queria saber da novela, mas sentia a
presença ali. Uma festa acontecia na TV, talvez um
casamento, Túlio não sabia precisar, mas várias pessoas
festejavam e bebiam e comemoravam. Menos uma
garotinha.
Ele viu a garotinha assim que colocou os olhos no
televisor de tubo. Era sua irmã, impossível não a
reconhecer, ainda com o mesmo vestidinho branco e florido
com o qual “desaparecera”. Achava improvável que algum
dos outros quatro telespectadores conseguisse ver a garota
ali (não foi a mãe quem quase o espancou depois que ele
insistiu que Rute estava bem ali na mesa de jantar com
eles? Não foi o pai que o acertou com o cinto até que ele
sentisse sangue e merda quente e viscosa descer pelas
pernas quando ele disse que era a voz dela no rádio da
cozinha?), então, continuou pedalando.
***
O grande portão duplo de aço do lixão estava aberto.
Sempre estava. Caminhões de lixo costumavam (ou
deveriam) ir e vir a cada hora. Não havia porteiro.
Ele olhou primeiro para o chão. Um jogo de amarelinha
desenhado com giz amarelo. Não chegou a pensar que lugar
estranho era aquele para crianças jogarem amarelinha: bem
na calçada do lixão mais fedorento da cidade. Pensou
apenas na irmã e em como aquela era a brincadeira favorita
dela. Um turbilhão de emoções assaltou seu coração, medo,
solidão, amor e uma profunda tristeza que se alastrava
como fogo em mato seco, enquanto lembrava da partida
que eles nunca terminaram no jardim de casa. Ele apertou
os olhos e virou o rosto para cima tentando controlar um
novo acesso de lágrimas. Esse, por milagre, não veio.
Lembrou-se das vezes, pareciam infinitas, que jogara
amarelinha com a irmã no quintal. O mesmo quintal de
onde a irmã sumira, ou isso foi o que os pais disseram aos
homens que os entrevistaram. Mentira, ele sabia. Afastou
esse pensamento com um sacudir de cabeça. Não queria
ser invadido pela sensação de culpa por pensar nos pais
como mentirosos. Negou essa ideia contra o pai e a mãe
nas últimas semanas e, ali, de pé em frente ao lixão, só
conseguiu colocá-la para longe invocando em seu lugar a
imagem de Rute atirando a pedra na casa um da
amarelinha. A imagem da irmã pulando com os dois pés
para as casas dois e três. E pulando e rindo e pulando e
rindo e pulando.
O garoto fitou a escuridão lá dentro. Conseguia ver, sob
a luz de um único poste, naquela noite sem lua, a silhueta
de montanhas de lixo que ele supunha serem maiores que o
Monte Everest. Ele nunca vira o Everest de perto, mas, ao
menos pela foto no livro de geografia, a menor daquelas
montanhas de lixo parecia ser muito maior que qualquer
monte do mundo.
Conseguia divisar olhos maldosos observando da
escuridão. Centenas, talvez milhares deles, alguns com
tentáculos que pareciam tocar o mundo com maldade e dor.
Limpou os olhos na manga da camisa polo e se obrigou a
parar de chorar. Respirou três ou quatro vezes e olhou
novamente o lixão. Os olhos maldosos pareceram menos
redondos e mais simples, reflexos de algum pedaço de ferro
ou espelhos quebrados que eram. Ou deveriam ser. Por
sorte, o nariz entupido pelo catarro não deixava passar
muito do fedor horrível do chorume, e ele deu graças por
isso.
Desmontou da bicicleta e começou a empurrá-la pelo
portão, que rangeu uma vez antes de ficar quieto pelo resto
da noite.
Uma leve brisa soprava a favor de Túlio e na direção do
lixão, o que diminuía um pouco mais o fedor, mas as
sombras ainda estavam lá. Cada recanto, cada geladeira
caída, cada armário retorcido e enferrujado parecia conter
algum monstro, alguma assombração, pronta para pular,
agarrar seus tornozelos e enfiar as garras viscosas e
nojentas em seu estômago. E ele acabaria todo aberto,
como o Sr. Tongles.
Tirou uma lanterna muito grande do cesto da bicicleta e
apertou o botão.
Clic.
Nada.
Seu coração deu um salto no peito e o estômagorevirou. As sombras à sua volta pareceram se intensificar.
Apertou o botão novamente, mexendo na tampa das pilhas.
Clic.
Desta vez, um feixe de luz quase cegante saiu e ele
conseguiu respirar. Caminhou por entre o lixo que atingia
alturas inimagináveis. Um labirinto de montanhas se
contorcia pelo lixão, levando o garoto cada vez mais fundo e
mais alto. Sons baixos ecoavam aqui e acolá.
Só ratos, tentava pensar.
Finalmente, chegou ao que parecia ser o coração do
lugar. Um improvável casebre de alvenaria e paredes sem
reboco em uma clareira no lixo. Uma placa de “Cuidado, cão
antissocial” pendia de uma viga no teto, apesar de não
haver nem sinal de cachorro. Esperava que não houvesse
mesmo, e que tudo que ouvira a mãe falar sobre o homem
que morava ali fosse verdade.
Se não fosse, sua jornada noturna teria sido em vão.
Mas o que importava, mesmo? O olhar dos pais para ele
durante o jantar era tão ausente, nos últimos três meses,
que ele achava que, se fosse ele a sumir dessa vez, os pais
nem notariam. Não havia mais sorrisos, nem mais
conversas desde que Rute sumira. Não havia mais alegria
nem piadas. Só uma fria indiferença (só entrecortada pelas
surras ocasionais) que lhe doía bem lá no íntimo, onde não
conseguia massagear.
Talvez, só talvez, se Túlio tivesse seis ou oito anos a
mais, ele conseguisse ver o que existia por trás daquela
indiferença: apenas culpa. Mas ali, naquele lixão podre e
revolto em decomposição, com urubus de barrigas cheias e
cabeças descansando sobre as asas, só conseguia pensar
que, se trouxesse a irmã de volta, se isso fosse possível, os
pais voltariam a olhá-lo com ternura, talvez até com amor. A
luz voltaria à sua casa e tudo ficaria bem.
Sim, tudo ficaria bem.
Foi o que fez Túlio continuar empurrando a bicicleta até
o casebre. Quando chegou mais perto e entrou no campo de
luz da lâmpada, apagou a lanterna.
A porta da frente estava entreaberta.
Encostou a bicicleta usando o apoio do pedal e pegou
um pacote de papel de dentro da cesta. Andou com cuidado
pela varanda entulhada de tralhas e empurrou a porta. Uma
luz acinzentada se espalhava por dentro do vão de não mais
que nove metros quadrados que se abriu aos olhos do
garoto. Seu nariz, já um pouco menos congestionado,
captou odores azedos de bebida e cigarro.
— Quem tá aí? – perguntou uma voz rouca, vinda de um
canto.
— S-s-sou eu, tio.
Ele entrou. Um colchão no chão de cimento cru, coberto
por revistas velhas, garrafas vazias e embalagens de
macarrão instantâneo; um homem que parecia muito velho
estava sentado nele, de pernas cruzadas. A barba
desgrenhada estava amarela de sujeira em vários pontos e
o único objeto de real valor em sua vestimenta parecia ser
um colar de ouro que reluzia à luz de uma TV ligada e sem
sinal no canto oposto ao colchão.
Ao ver o garoto, o velho começou a chorar sem fazer
barulho. Apenas lágrimas gordas abriam caminho no rosto
sujo.
Túlio sentia medo e uma pontada de compaixão pelo
velho tio Cláudio. Fedido, meio louco, totalmente
abandonado pela família desde que, segundo o pai – Túlio
sabia disso porque já ouvira conversas entrecortadas –,
descobriram que seu velho irmão Cláudio estava mexendo
com uma “coisa que não era ciência”.
— Chegue mais perto, garoto. Chegue mais perto.
Acenda a luz, por favor. O interruptor está ao seu lado.
Cuidado com os fios soltos.
Túlio acionou uma lâmpada que pendia do teto cheio de
buracos.
— Você cresceu, mas tá mais magro – disse o velho,
enquanto limpava o rosto com a manga da camisa
encardida.
— O senhor também. Digo, o senhor também está mais
magro – Túlio estendeu o pacote para o velho. – Isso é para
você, tio.
Tio Cláudio pegou o pacote de papel e agradeceu. Tirou
dele um porta-retratos e, quando viu a foto, começou a
chorar novamente. Dessa vez, o choro durou quase cinco
minutos.
— Eu tirei da gaveta do meu pai – disse Túlio.
— Tudo bem – disse o tio. – Acho que ele não vai sentir
falta.
Um silêncio caiu sobre os dois. O garoto ficou olhando
os tênis e o velho só ficou ali, abraçado aos joelhos e
observando a foto.
— Eu tenho visto a minha irmã – Túlio disse, ainda sem
tirar os olhos dos próprios pés.
O tio pousou o porta-retratos que continha uma foto do
irmão e dele, ambos ainda jovens, e olhou o sobrinho com
olhos curiosos.
— Eu a vejo na TV, tio. Eu sinto que ela está nas
paredes da casa, lá onde passam os fios. É uma sensação
estranha… não sei se ela está viva ou… – parou com as
palavras presas na garganta.
Cláudio finalmente levantou-se do colchão e Túlio
percebeu o quanto ele estava indisposto. Perguntou-se o
que o velho havia comido nos últimos meses. Será que
alguém trazia comida para ele? Ou será que tinha que se
contentar com ratos? Ele notou a sombra de um animal
morto em um monte de embalagens abertas e sacos
plásticos a um canto e afastou o pensamento para longe.
— Sua irmã era especial. Você sabe disso, não sabe? – o
velho disse. – Não especial como se diz por aí, mas especial
do tipo…
— Que faz coisas estranhas – Túlio completou.
— É. Isso. E eu acho que meu irmão, seu pai… ele e sua
mãe ficaram obcecados por entender o que ela era –
enquanto falava, Cláudio mancou até o televisor ligado. Não
havia antena e Túlio não via nem sinal de algum cabo
conectado que não fosse o de energia. Um velho
videogame, ainda com a fita encaixada, jazia acima da TV,
mas ele não via sinal dos controles.
O garoto lembrou-se de quando descobriu que a irmã
era especial dessa forma como o tio falava que ela era. Foi
quando ele tinha 8 e ela 7. Ele estava jogando com um
videogame muito parecido com o do tio, mas uma versão
mais nova, um 16 bits; e Rute pedira para jogar. Ele deu um
controle desconectado para ela e continuou jogando, se
achando o garoto mais esperto do mundo, o garoto mais
esperto da face da Terra. Ele disse a ela que ela estava
controlando os inimigos. Era óbvio que não. O jogo
controlava os inimigos, o jogo control…
Foi quando todos os inimigos do jogo avançaram contra
seu personagem em uma avalanche descomunal. Ele sabia
que não era assim que aquilo deveria ser jogado. Que coisas
como aquela não deveriam acontecer. Então, olhou para a
irmã e viu, nos olhos dela, um brilho cinzento. Havia o
universo naquele brilho, e ao mesmo tempo, só estática. Ela
estava controlando o jogo, a televisão, o videogame. Tudo.
Ele puxou os aparelhos da tomada e Rute caiu
desmaiada. Um filete de sangue escorria do nariz dela.
Naquela noite, houve luzes azuis e vermelhas pela
vizinhança e Túlio lembrava-se de ter levado uma bronca da
mãe, mas era como se ela não estivesse muito interessada
nele, ela estava interessada em Rute.
Ele também olhou para os olhos da mãe. Ele teve medo
do que viu ali.
— Você precisa me dizer o que acha que aconteceu com
ela – disse tio Cláudio, fitando o televisor fora de sintonia.
Um momento onde só era possível ouvir o vento lá fora
se passou antes que Túlio respondesse. As palavras
pareciam estar atoladas em sua garganta.
Uma palavra, na verdade:
— Morta – respondeu, e teve um longo acesso de
respiração entrecortada.
— Não tenho lenços. Desculpe – o tio disse, quando o
choro do menino diminuiu para uma série de fungados
fortes.
— Mas ainda sinto a presença dela – ele disse. – Eu
sinto. O senhor acha que é o e-espírito dela?
— Não – respondeu o tio, coçando o queixo barbudo.
Falava em um tom pensativo, de modo que a palavra saiu
bastante arrastada nããão. – Talvez… talvez a consciência
dela ainda esteja aqui. Não sei o que seus pais fizeram com
ela, mas acho que é a consciência dela. Você entende essa
palavra?
Ele não entendia, mas fez que sim do mesmo jeito. Não
achava que o conceito fosse importante de ser apreendido
em sua essência, mas achava que entendia bem o que
significava na prática.
— Eu só quero que ela descanse. Que isso acabe –
disse.
Cláudio balançou a cabeça em resposta. Foi a vez dele
pensar se o garoto realmente compreendia que, mesmo se
isso acabasse,talvez o “clima” que agora imperava em sua
casa jamais se desfizesse. Provavelmente, na verdade, o frio
à mesa de jantar jamais iria embora. Seria um morador fixo
naquele lar desfalcado. Ponderou, por fim, que era demais
para uma criança de 11 anos, e decidiu que lidaria com isso
no futuro, se preciso fosse.
— Tudo bem – disse, por fim. – Vamos usar um método
que certamente seus pais não aprovariam – sorriu e, por
trás de toda a sujeira, Túlio achou que o velho era bonito
como seu pai – Pense… pense em algo que você gostava de
brincar com sua irmã, algo que não envolva nenhum
brinquedo eletrônico. Consegue pensar em algo?
— Amarelinha! – Túlio respondeu sem pestanejar.
— Ótimo. Ótimo – Cláudio começou a afastar a sujeira
do meio do cômodo. Chutou tudo para os cantos e encostou
o colchão à parede. O chão estava cheio de rachaduras, por
entre algumas delas crescia mato. Ele achou um pedaço de
pedra branca que parecia gesso e estendeu para Túlio. –
Desenhe como você desenhava quando brincava com ela.
Ele desenhou, tentando fazer o melhor que podia e, no
final, achou que ficou bem parecido mesmo com as
amarelinhas que desenhava no quintal. Enquanto
desenhava, a sensação de que a irmã estava próxima
retornou com uma força que quase fez com que ele
derrubasse o pedaço de gesso. Estava meio tonto quando
terminou e teve que levantar a cabeça bem devagar para
encarar o tio.
— Sua irmã era o que eu chamei de tecnopata –
explicou o tio. – Seu pai não gostou do nome, achou muito
espalhafatoso.
O menino o observou com as sobrancelhas juntas.
— Ela era capaz de controlar os objetos eletrônicos com
a mente, Túlio.
A lembrança da irmã controlando os inimigos no
videogame relampejou em sua mente.
— O espírito dela já deve estar descansando em algum
outro lugar, mas a consciência dela ainda deve estar por
aqui. Seja lá qual foi a insanidade que seus pais fizeram
com ela.
— E para que serve a amarelinha, tio?
— Bom, nossa consciência é atraída por aquilo que
amamos.
O homem arregalou os olhos na direção da televisão.
Túlio seguiu o olhar e lá estava ela. Percorrendo a estática
acinzentada da TV, Rute pulava de um canto a outro da tela,
com os olhos vidrados para a sala onde estavam o irmão e o
tio. No rosto da irmã, havia o sorriso mais cândido, mais
sincero que Túlio já vira em sua curta vida. Ele sentiu-se à
beira das lágrimas outra vez.
Em um instante, ela estava dentro do televisor; no
outro, estava com os pés no chão sujo da casa do tio
Cláudio, bem em frente à casa número um da amarelinha.
Túlio percebeu que havia desenhado o jogo quase como se
estivesse prevendo que a irmã sairia do aparelho, com a
primeira casa do jogo apontada para ele e o céu no lado
oposto, fechando o desenho geométrico.
As crianças sorriram uma para a outra. Túlio já estava
chorando, mas a expressão da irmã era divertida. Ela retirou
do bolso do vestidinho florido uma pedra estranha: redonda,
mas que não tinha cor de pedra, parecia feita da mesma
estática da TV, com os pontos pretos e cinza piscando e
passando. Atirou a pedra diretamente no número Dez e Túlio
lembrou que foi exatamente onde eles deixaram a última
partida inacabada.
Ela sorriu novamente para ele, como se lesse seu
pensamento e começou a pular. Um. O vestido balançou
lindo junto com ela. Dois e três. Sorriram juntos. Quatro e
cinco e seis. Não havia mais tristeza nos olhos dele. Sete,
oito e nove. Ela quase caiu, mas se manteve firme, como
sempre. Dez. Pisou no céu… e ela já não estava mais ali.
Igor Chacon – Habita os próprios mundos que cria, agora, passeando no
Invertido.
Kaelum
A realidade é uma escolha
Pedro Riguetti
Em 1987, na zona norte do Rio de Janeiro, os corpos de um
casal foram encontrados em um precário acampamento às
margens da floresta da Tijuca. O homem, identificado como
Ricardo Suskind, possuía marcas de arranhões nos membros
superiores e inferiores, rosto e tórax. O sangue seco
desfigurava seu rosto pálido e aterrorizado. A mulher,
Isabela Pretti, havia mastigado a própria língua, perceptível
pela massa negra e úmida encontrada dentro de sua boca,
e ostentava em sua fronte uma ferida aberta e repugnante,
resultada de inúmeros golpes contra uma árvore. Pedaços
grossos de farpas de madeira emaranhavam-se em seu
cabelo encaracolado. Ambos não possuíam os olhos, e
mantinham as órbitas vazias viradas para céu, como se
enxergassem algo que só os mortos pudessem ver.
Detetive Braga foi o primeiro a chegar ao local, junto de
seu jovem assistente, Felipe. Rodeou os corpos com passos
pesados e pegou sua Polaroid para registrar a cena. Desde a
morte de seu filho de seis anos, Braga sentia um estranho
enjoo perto de cadáveres e se protegia atrás da câmera. Foi
assim que percebeu, na mão de Ricardo, um cordão com um
estranho pingente: um quadrado de pedra com um xis que
atravessava suas laterais e um buraco circular no centro.
Negligenciando o procedimento de investigação, Braga
o arrancou dos dedos frios e duros de seu dono e
contemplou o objeto com seus olhos fundos e castanhos.
Através do furo, viu o azul claro do céu carioca.
“Ei, escutou esse barulho?”, perguntou o rapaz.
Braga ficou imóvel. Um pequeno estalo chamou sua
atenção.
“De onde vem?”, perguntou o detetive.
“Perto.”
Tec, tec, tec.
Braga sacou a arma e verificou o local com os olhos
atentos. Felipe sentiu um frio na espinha. Encarou os mortos
e suas órbitas escuras. Deu um passo em direção aos
corpos e foi interrompido por outro estalido.
“Chefe, o ruído vem dos mortos.”
Braga o encarou com descrença e guardou o revólver.
Aproximou-se do cadáver de Ricardo e ajoelhou-se na
grama. Os estalidos se intensificaram à medida que Braga
aproximava o ouvido.
“Olha!”, Felipe apontava para uma das órbitas do morto.
Um pequeno verme esverdeado com nervuras lilás
escapava de sua mórbida moradia e se esgueirava na
direção de Braga. Uma minúscula boca dentada salivava
com o doce perfume do medo do homem à sua frente.
Braga se arrastou um pouco e observou o verme
lentamente explorar o ambiente.
“Liga pra central”, ordenou Braga, ofegante, “Manda um
carro vir buscar esses corpos.”
***
Um ar gelado e metálico acariciou o rosto de Braga assim
que atravessou a porta do necrotério. O cheiro de formol
queimou suas narinas. Acompanhado do médico legista,
Braga se aproximou dos dois corpos cobertos por uma
manta e estendidos sobre as mesas de aço. O médico
circundou os cadáveres e pegou um pote de vidro sobre sua
mesa com dois pequenos vermes esverdeados que se
arrastavam um sobre o outro para tentar escapar.
“Melhor mandar pro laboratório. Nunca vi esse tipo de
bizarrice por aqui.”, disse o médico, entregando para Braga
as amostras vivas.
“Foram eles que comeram os olhos?”, perguntou,
colocando o pote de vidro contra a luz para observar as
nervuras arroxeadas e a pele esverdeada dos vermes. Braga
sentia a vibração dos estalidos através do vidro.
“O cérebro também”, respondeu o médico, com a
sombra de um sorriso.
Braga achou melhor deixar o pote em cima da mesa de
novo. O médico colocou as luvas. Os dois se aproximaram
de um dos corpos. O detetive virou o rosto discretamente
quando o médico retirou a manta e revelou a pele morta de
Isabela Pretti. O legista reparou na reação de Braga e sorriu.
“Morte por contusão. Auto-infligida”, apontou com o
mindinho as feridas na testa do cadáver. Algumas farpas
ainda estavam encravadas na carne.
“Ela se matou?”
“As mãos estão esfoladas e com as mesmas farpas
desse ferimento. É bem provável que ela tenha se golpeado
até provocar uma lesão interna”, respondeu o médico,
mostrando os machucados na palma da mão do cadáver.
“Por quê?”, Braga perguntou, evitando olhar para as
feridas.
“Essa resposta é você quem vai me dar.”
“E o outro?”
“Esse é melhor ainda.”
O médico cobriu o corpo de Isabela Pretti e se
aproximou do outro cadáver. Inevitavelmente, Braga
desviou o olhar quando a manta foi retirada.
“Este aqui estava desesperadopara tirar algo de dentro
dele. Ninguém em sã consciência se arranharia até a
morte”, o médico apontou para os cortes e arranhões. “Mas
provavelmente não foram essas feridas que o mataram.
Olha como o corpo está inchado.”
Braga observou o cadáver e reparou que seu tórax se
movia para cima e para baixo, como se respirasse, ou pior,
como se houvesse algo vivo ali dentro.
“E o que é isso?” perguntou o detetive.
“Gases, ou sangue. Provavelmente ele sofreu algum tipo
de hemorragia interna, mas a gente só vai saber abrindo o
corpo.”
O médico se afastou do corpo para abrir uma gaveta e
pegar um bisturi. A lâmina afiada brilhava com a luz branca
do necrotério. Braga observou o legista se aproximar do
corpo e deixar que sua mão corresse pelo tórax do cadáver.
Bem no centro, abaixo da costela, o médico inseriu a ponta
e fez um corte. Um pequeno silvo de ar saiu pela pequena
abertura e espirrou sangue na pele acinzentada. O médico
analisou a reação e voltou com o bisturi, fazendo um corte
vertical até o umbigo. Em uma fração de segundo, o interior
do cadáver foi lançado para o ar com centenas de vermes
ensanguentados que se espalharam pelo necrotério e pelo
rosto atônito do médico e do detetive.
“Que merda!”, esbravejou Braga.
“O tanque!”, o médico correu para uma torneira no
canto e deixou que a água levasse para longe os pequenos
vermes. Quando o médico se afastou, Braga correu para
eliminar o sangue de sua pele. Por mais que se esfregasse e
observasse as criaturas desaparecem pelo ralo, uma coceira
por baixo da epiderme tomava conta de seu corpo, quase
chegando aos ossos. Braga sabia que os vermes já haviam
deixado uma marca dentro de si.
***
Naquela noite, Braga chegou em seu apartamento, e a brisa
que invadia a sala pela janela acariciou seu corpo cansado.
No quarto, a esposa já dormia. Um bilhete ao lado da cama
informava que a janta era macarrão com almôndegas, o
texto terminava com uma carinha feliz. Sorriu e guardou o
bilhete debaixo do abajur. Jogou o paletó em uma poltrona e
trocou de roupa para uma samba-canção, uma camisa velha
do The Doors e sandálias do Mickey Mouse.
A luz da geladeira cegou brevemente o detetive
enquanto buscava a janta. Em uma panela, o macarrão com
almôndegas gelado não pareceu muito apetitoso. Buscou
outra opção e encontrou uma bandeja com frios. Sem muita
cerimônia, comeu os pedaços gelados de carne iluminado
apenas pela luz amarela da Brastemp.
Na cama, embaixo das cobertas e abraçado em sua
esposa, Braga adormeceu rapidamente, e logo entrou no
mundo dos sonhos. O detetive se viu de pé encarando a
noite pela janela da sala. O estranho céu noturno possuía
um tom arroxeado e estrelas das mais diversas cores. Os
olhos de Braga brilhavam de admiração.
“Pai”, sussurrou uma voz atrás dele.
O detetive se virou e encontrou seu filho, Daniel, de seis
anos, encostado no batente da porta. Sua pequena mão
agarrava o peito ofegante.
“Tá acontecendo de novo”, o garoto disse, sem fôlego.
Braga correu até o menino e o abraçou com força, sem
acreditar que via o filho mais uma vez.
“Pai, eu não consigo respirar.”
O garoto pegou a mão do pai e a colocou no peito.
Braga sentia o peito do filho arfar em busca de oxigênio. O
detetive agarrou o garoto no colo e gritou pela esposa.
Enquanto buscava a chave do carro, a mulher surgiu de
pijamas, com os olhos arregalados.
“O Dani tá tendo outra crise”, gritou Braga, assustado.
O garoto cuspiu sangue na roupa de Braga e um
pequeno verme ensanguentado caiu no piso. Sua esposa se
aproximou para ajudá-lo e os dois levaram Daniel até o
carro.
A Parati cinza rugia pelas ruas de Copacabana em busca
de socorro. No banco de trás, a esposa abraçava o filho,
chorosa. Braga cruzava sinais vermelhos até que subiu a
calçada em frente a um hospital. O detetive carregou seu
filho até a recepção e pediu ajuda para os enfermeiros. O
garoto foi levado para a sala de cirurgias e o casal esperou
com uma angústia no peito.
Pouco tempo depois, um médico se aproximou e
anunciou que o garoto estava bem. Uma parada respiratória
atacou seu pulmão fragilizado, mas eles fizeram de tudo
para salvá-lo. Braga não acreditava. Não era esse o final da
história que ele conhecia. O médico guiou os dois até um
quarto onde descansava Daniel. Braga se aproximou do
garoto e tocou seu braço frio como a morte.
“Filho?”
O garoto acordou e encarou o pai, mas onde antes
ficavam seus olhos, agora se encontrava duas cavidades
vazias, com uma luz púrpura emanando do interior de sua
cabeça. Braga acordou com o susto.
***
Na delegacia, Braga ainda sentia os efeitos do sonho na
noite anterior. A imagem do filho são e salvo permanecia na
memória. Ficou uns minutos encarando a janela, ignorando
os militares que iam e vinham atrás de si. Seu assistente
chegou com o café e uma caixa de evidências. Deixou
ambos em sua mesa.
“Liberaram o seu pedido, chefe”, disse o rapaz.
Braga abriu o recipiente e encontrou o estranho
pingente, um maço de cigarros sujo de terra e as
identidades dos dois cadáveres.
“Você checou os nomes?”, perguntou Braga.
“Sim”, respondeu o rapaz, “o cara era professor e a
mulher, advogada. Casados. Os dois voltaram pro país
depois da Anistia.”
“O que eles aprontaram?”
“Nada. O professor era irmão do Marcos Suskind, do MR-
8. Fugiram por precaução depois do sequestro do
embaixador.”
Braga bufou, absorvendo a informação.
“Alguma resposta sobre os vermes?”
“Pediram pra você ligar.”
Braga tirou o telefone do gancho, pegou sua caderneta
de telefones e discou um número. Uma secretária atendeu
do outro lado e logo transferiu a ligação para a bióloga
responsável pelo caso.
“Eu devia te dar um prêmio científico por encontrar uma
coisa dessas”, disse a bióloga.
“O que são esses vermes?”, perguntou Braga,
sinalizando para seu assistente anotar a resposta.
“Kaelum”, respondeu, “uma espécie necrófaga. Mas o
mais interessante é que essa espécie não existe em lugar
nenhum. Está extinta faz algumas décadas.”
“E como apareceram no corpo de dois suicidas?”
“Impossível saber”, uma risada cortou a ligação,
“vermes necrófagos só entram no seu organismo após a
morte.”
Braga ficou em silêncio. O assistente anotava tudo em
uma folha. Desligou o telefone e encarou o outro. “O que
você acha, Filipe?”
“Nenhum verme consegue fazer um estrago daqueles
na cabeça de alguém da noite pro dia”, respondeu. “Com
certeza esses bichos já estavam neles antes de morrerem.”
“Prendemos eles por assassinato?”, brincou Braga.
“Ou quem botou esses vermes dentro dos dois.”
Braga fechou a cara, pensativo, e girou a cadeira. Pegou
o pingente encontrado no defunto e olhou através do
buraco. Do outro lado, o detetive viu nuvens púrpura que
dançavam no espaço. Sua expressão de espanto se fez
nítida a ponto de Felipe perguntar:
“Tudo bem, chefe?”
“Sim. Acho que sim.”
O detetive ainda admirava o pingente.
***
Braga saiu da delegacia com a estranha sensação de estar
sendo observado. Entrou rapidamente em seu carro, olhou
pelo retrovisor e avistou o estacionamento vazio. Acelerou a
Parati e pegou o caminho de casa.
A noite chegava lá fora e umas poucas estrelas já eram
vistas. Os carros acendiam os faróis e a rua era tomada
pelos trabalhadores que terminavam mais um dia de
serviço. Braga, de tempos em tempos, passava os dedos
pelo pingente que carregava no pescoço.
Parou em um sinal vermelho e um Opala preto
emparelhou ao lado da janela do motorista. O detetive
encarou o interior do carro e avistou um homem de chapéu
que sinalizava para que ele abaixasse seu vidro. Braga
colocou a mão no coldre do revólver e, com a outra mão,
girou a manivela da janela. Mesmo a poucos metros de
distância, Braga não conseguia distinguir o rosto do outro
motorista. O homem se inclinou para lhe entregar um
bilhete. Braga reparou em um símbolo estampado no papel:
um quadrado cortado por um xis com um furo no meio. O
sinal mudou para verde, Braga agarrou o bilhete e o outro
carro foi embora.O detetive observou a placa e tentou
memorizá-la, mas o Opala já tinha virado uma esquina e
escapado da vista do detetive.
Braga abriu o bilhete e encontrou o endereço Rua
Benjamim Constant 74, com o horário 19:00 escrito em
vermelho. Uma buzina atrás o fez voltar para a realidade e
acelerar o carro. O policial dirigia distraído enquanto
encarava o bilhete. Chegou em seu prédio e estacionou a
Parati. Saiu do carro com o bilhete em mãos, tentando
decifrar o que havia acabado de acontecer, mas não
encontrou resposta.
***
A igreja datava de 1820, mas ainda preservava a decoração
original. As paredes brancas eram ornadas com estátuas de
santos e a luz da manhã entrava pela abóboda central. As
longas fileiras de bancos estavam repletas de convidados
vestidos de gala. Braga olhava ao redor desde o primeiro
banco e prendeu o olhar no homem de pé em frente ao
altar, com um sorriso estampado na cara. Era seu filho,
alguns anos mais velho.
As notas musicais de um órgão soavam pelo ambiente
com um ar pesado e litúrgico. Toda a atenção da igreja se
voltou para a entrada da noiva. O detetive não fazia ideia de
quem era aquela mulher, mas o cabelo curto e os olhos
grandes lhe davam uma beleza peculiar. Seu filho ajeitou o
terno e deixou uma lágrima escapar. A noiva caminhava
lentamente entre as fileiras sendo acompanhada por um
senhor de idade. Pouco antes de subir ao altar, se
aproximou de Braga e sussurrou com o hálito fresco:
“Que bom que você escolheu vir.”
Braga abriu a boca para perguntar algo, mas foi
impedido por uma ventania que arrebentou as portas e
invadiu o grande salão. O vento rodopiava por baixo das
fileiras e os convidados gritavam, assustados. Braga
segurou o braço da noiva e se agarrou ao banco. Daniel e o
padre tentavam se aproximar do grupo, mas o vento os
empurrava para trás.
“Filho, segura em mim!”, gritou Braga, desesperado.
Com um estrondo, a abóbada se desfez em pedaços e
desapareceu, revelando um céu arroxeado com milhares de
estrelas. Braga viu seu filho se agarrar ao púlpito, mas o
vendaval arrancou a estrutura do chão e lançou Daniel para
o ar. Braga gritou com toda a força de seus pulmões, mas
nada podia impedir que seu filho fosse sugado em direção
ao céu estrelado.
***
Braga acordou com o suor escapando de sua pele. A esposa
o encarava, assustada. A garganta ardia com o grito que
havia dado.
“Foi só um pesadelo”, justificou ele.
Uma pontada atravessou seu cérebro da nuca até os
olhos e Braga gemeu de dor. Fechou os olhos para se
proteger da luz, mas enxergou, do outro lado da escuridão,
o céu arroxeado com milhares de estrelas. Piscou e voltou
para a realidade.
Tec, tec, tec.
Braga agarrou a cabeça, fincando as unhas no couro
cabeludo. Sua esposa o abraçou, preocupada.
Tec, tec, tec.
Braga fechou os olhos de dor e viu novamente o céu
que o atormentava. A infinitude daquela imagem esmagava
sua existência. A realidade se estilhaçava diante do outro
universo que só o detetive enxergava. Seu corpo flutuava
no vácuo do universo.
“Você vai ficar?”, perguntou uma voz atrás de si.
Ele olhou ao redor e viu seu filho, novamente com seis
anos, de pijama. O garoto o encarava com grandes olhos
castanhos, cheios de vida. As lágrimas rolaram pelo rosto do
homem.
“Você quer que eu fique?”
“Quero.”
***
Braga abriu os olhos na realidade e tudo que viu foi a
branquidão de um quarto de hospital. Estava deitado em
uma cama, conectado a vários fios e a um soro que pingava
lentamente. Uma máquina monitorava seus batimentos
cardíacos. Ao seu lado, a esposa acariciava seu rosto.
“O que aconteceu?”, perguntou, sem forças.
“Você ficou inconsciente por algumas horas”, respondeu
ela. “Vou chamar o médico”.
Ela levantou-se e saiu apressada para o corredor. Braga
notou suas roupas dobradas em cima de uma cadeira. O
pingente repousava no topo da pilha. Olhou para o relógio
de parede, que marcava seis e meia, mas não soube dizer
se era da manhã ou da tarde. Lembrou do compromisso que
tinha na Rua Benjamim Constant 74, naquele mesmo dia.
Ou teria sido no dia anterior? Verificou a janela para saber a
hora, mas vislumbrou um céu púrpura, com nuvens de
constelações que dançavam com o vento.
Arrancou os fios presos no corpo e se levantou com
dificuldade. O chão girava sob seus pés. Uma das máquinas
apitou, chamando a atenção dos enfermeiros. O detetive
caminhou até a pilha de roupas e colocou o pingente em
volta do pescoço. A dor de cabeça voltava latejante.
“O que você está fazendo?”, perguntou um médico que
acabara de entrar com a esposa do detetive e dois
enfermeiros.
“Eu não posso ficar aqui”, respondeu Braga pegando a
roupa.
“Você não pode sair. Temos que te deixar em
quarentena”, o médico agarrou o braço dele com força.
“Seu caso é sério.”
“Eu já me sinto melhor.”
“Detetive, te demos morfina suficiente pra derrubar
uma baleia”, Braga era levado até a cama pelo médico e
pelos enfermeiros. “Você tem um parasita instalado no
córtex”.
“Eu estou bem”, Braga analisou suas possibilidades de
fuga. Nada muito promissor. O médico o segurava, mas o
detetive resistia e se agarrava ao que podia para evitar
voltar para a cama.
“Amor, escuta ele. Você corre risco de vida”, implorou a
esposa.
“O parasita está agarrado em uma parte vital do seu
cérebro. Vamos ter que te submeter à radioterapia e rezar
pelo melhor.”
Braga apalpou suas roupas e sentiu a chave do carro no
bolso da calça. Em um descuido, girou o corpo para escapar
do médico e encaixou um soco em sua mandíbula. Os
enfermeiros amontoaram, mas o detetive tomou impulso e
pulou pela janela em direção ao céu púrpura. Sua esposa
gritou, os cacos de vidro se romperam, mas Braga só
escutou o silêncio do vácuo do universo.
Caiu de três andares, segurando-se como pôde nos
galhos de uma árvore e rolou sobre o gramado. O antebraço
esquerdo não resistiu a queda e fraturou em três pontos
diferentes. Completamente anestesiado, Braga soltou
apenas um gemido e segurou o braço contra o corpo.
Avistou seu carro a poucos metros e saltou em sua direção.
Alguns seguranças saíram em seu encalço, mas Braga
entrou no carro, botou a chave na ignição e ligou o motor.
Antes de ser pego, acelerou e arrancou com o carro.
Arrebentou a cancela que protegia o estacionamento e
entrou em uma avenida cantando pneu.
A Parati cinza cortava o trânsito rumo ao incerto. O céu
púrpura ofuscava sua visão, as estrelas dançavam pelo ar.
Ele sentia a latência do parasita no cérebro. O tec, tec, tec
de outra vida dentro de si. Uma pontada atravessou a
cabeça de Braga e o obrigou a fechar os olhos de dor…
… Que o levou a ver a outra realidade, aquela a qual
pouco a pouco se acostumava e se sentia pertencente. Seu
filho, já um rapaz, o observava do banco do carona. O jovem
se vestia como um noivo. Braga apertava os dedos no
volante, sem perceber as rugas da idade riscando as mãos.
“Vamos, pai! Estamos atrasados!”, gritou o rapaz.
“Eu estou indo o mais rápido que eu posso!”
E fechou os olhos…
… Para voltar para a realidade onde ainda vestia a
roupa de hospital, onde o parasita latejava em sua cabeça,
onde o céu púrpura apertava sua existência, onde seu
antebraço esquerdo pendia inerte, onde a Parati cinza
estacionava em frente ao número 74 da rua Benjamim
Constant.
Saiu do carro, cambaleando, e se deparou com uma
antiga igreja com grandes colunas e um portão de metal
medindo cinco metros de altura. Voltou ao veículo e pegou o
revólver no porta-luvas. Com a arma em punho, empurrou o
portão com um rangido e entrou.
O interior da igreja era um caos. Uma antiga
tempestade havia derrubado as estátuas nas laterais e
revirado os grandes bancos de madeira. O chão de mármore
havia sido coberto por escombros e uma rala vegetação. A
abóbada havia desaparecido e dava lugar ao céu púrpura
que iluminava o ambiente com uma luz onírica. Os olhos de
Braga encontraram uma figura humana de sobretudo e
chapéu que o observava do altar. Um enorme crucifixo caídona diagonal ornava o fundo da igreja.
O detetive caminhou em passos lentos. A arma pronta
para ser disparada. O parasita se movia dentro de sua
cabeça e uma dor excruciante atravessava seu cérebro.
Quando estava a poucos passos do altar, Braga enxergou o
que havia por baixo do chapéu da figura humana: um olho
púrpura rodeado por minúsculo tentáculos que encarava o
detetive. O parasita mordiscou um pedaço de córtex e
Braga foi ao chão, de joelhos.
“Quem é você?”, gritou Braga.
“Kaelum, um Lorde dos Mundos”, respondeu. Sua voz
parecia uma brisa que passava pelos ouvidos do detetive.
“Você precisa escolher.”
“Escolher o quê?”
“Em que dimensão quer viver. Na minha. Ou na sua.”
“Onde está meu filho?”, Braga tentou se levantar, mas
seu braço inutilizado fraquejou e o derrubou novamente.
“Onde ele estiver.”
“Ele está vivo?”
“Por que você não vê com seus próprios olhos?”
Braga olhou ao redor, mas não avistou mais ninguém
além de Kaelum.
“Feche os olhos se quer enxergar.”
O detetive fechou os olhos com força e viu a outra
realidade. Naquela mesma igreja, em outra dimensão,
Braga via seu filho beijar a noiva e a multidão atrás de si
ovacionar a cerimônia. Atrás do casal, a figura humana
encarava o detetive.
“Você está preso entre duas dimensões. Escolha uma. A
cruz selará sua decisão.”
Braga agarrou o cordão e observou o símbolo do
pingente. Através do furo, viu o céu púrpura e suas estrelas.
O detetive já sabia o que fazer. Fechou os olhos e viu a
igreja destruída, o revólver empunhado e seus joelhos
contra os escombros.
Colocou o cano da arma contra o céu da boca e encarou
a figura humana. O vento invadia a igreja e rodopiava ao
redor do detetive. As estrelas dançavam no céu. O tiro foi
como um sopro. Em milésimos de segundos de violência, a
bala atravessou seu cérebro. O corpo foi ao chão.
O verme em seu crânio aproveitou a falta de resistência
para se alimentar da massa cinzenta. Quando terminou a
refeição, provou os olhos até abrir uma porta para o mundo
exterior. O parasita saiu pela órbita ocular, observou a noite
nublada através da abóboda destruída e voltou para o
interior da carne. Depositou ovos na garganta do homem e
ficou à espera de outro ser vivo. Mesmo alimentado, o
verme ainda sentia fome de existência.
Roteirista, professor e viajante do tempo.
Site: https://oroteiristainsone.wordpress.com
Insta: @pedroriguetti
Angela
O Enigma do Outro lado
Gustavo Lopes
I
Uma multidão se formou ao redor de uma máquina de
Ghosts’n Goblins, no hoje extinto bar-fliperama Kings,
localizado no coração da cidade dos anjos. O lendário Kurt
Schwartz treinou por duas semanas antes da tentativa de
quebrar o recorde estabelecido por outro jogador renomado,
porém aposentado. Kurt não planejava alcançá-lo logo na
primeira tentativa, mas os gritos da plateia indicavam seu
êxito, e que ainda poderia deixar uma marca próxima de um
milhão de pontos.
Apesar do calor intenso no interior do fliperama,
amplificado pelo clima seco do verão, Kurt não tirava sua
jaqueta da sorte, e foi o suor que escorria de sua testa que
o impediu de chegar à marca que almejava. Em um deslize
literal, o joystick escorregou, e ele foi atingido por uma
gárgula.
985.744 PONTOS
A tela piscou com a pontuação. Kurt deixou sua
assinatura com as letras KSZ e foi ovacionado pelos
presentes. Com a máquina de Ghosts’n Goblins, Kurt
acumulava trinta e três recordes, nove acima de seu
antecessor, Jean “White Dragon” Sloane. Doug Cooper, o
dono do local, esperava Kurt com um cachorro-quente na
mão enquanto o campeão cumprimentava um a um aqueles
que torceram por sua vitória.
— Meu prêmio? ‒ gritou Kurt, salivando.
— Como sempre, por conta da casa… Kurt, tem um cara
querendo falar com você na minha sala. Terno e gravata,
parece importante.
— É ruim, hein! Vou vazar antes que acabe em
confusão.
— Eu acho que o figura não é um tira. Tá tranquilo.
Kurt olhou pelo vidro sujo da sala de Doug e viu um
homem de bigode bem cortado e um topete proeminente.
Os trajes eram elegantes demais para os tiras que
costumavam persegui-lo por excesso de velocidade.
— Kurt Schwartz, eu presumo ‒ disse o desconhecido,
estendendo a mão assim que a porta foi aberta.
— Ao vivo e a cores. E você seria…
— Mark Bundy, presidente da DynaCorp Industries,
muito prazer.
— Espera, eu te conheço! Quero dizer, não
pessoalmente. Li uma entrevista sua na revista CyberDay,
comentando sobre as possibilidades da realidade virtual
para os anos 90.
— Interessante. O que achou das minhas previsões?
— Olha, sinceramente, eu não acho que em dez anos a
realidade virtual vai avançar tanto quanto você espera.
Seria legal e tudo mais, mas os processadores gráficos
ainda são muito fracos e os simuladores, pelo menos os de
jogos, são bem artificiais.
— É uma opinião sensata, com base nas informações a
que o público geral tem acesso.
— Mas o público geral é sempre o último a saber das
coisas... Saquei?
— Você é um cara antenado. Já sacou as entrelinhas, e
eu gosto disso. Quando me falaram sobre você, eu tive
minhas dúvidas, mas você é o cara certo.
— Quem falou sobre mim?
— Não importa. Kurt, meu chapa, estou em busca de um
jogador como você, experiente, habilidoso e cheio de
personalidade, para fazer um teste com um dispositivo de
realidade virtual que nós na DynaCorp estamos
desenvolvendo. Não é um jogo, mas é um sistema que
necessita de alguém com habilidades semelhantes para
operá-lo.
— Senhor Bundy, não quero pagar de humilde, mas aqui
em L.A. eu sou só um “vira-lata”. Tem gente bem melhor do
que eu por aí, tipo os caras do Crows ou do Maniacs Game
Room. Eles são os melhores. Eu ainda estou lutando por um
lugar ao sol.
— Kim Jones, David Duch, “Black Tie”, são ótimos
jogadores, você está certo, mas eles não têm algo que você
tem e eu preciso.
— Tipo?
— Personalidade. Você não está me ouvindo. Não
estamos falando de um jogo, então vou direto ao ponto.
Realidade virtual, combinada com uma inteligência artificial
de ponta, algo que nem o governo americano sonha que
exista. Eu lhe ofereço, Kurt, uma oportunidade de
experimentar uma tecnologia sem precedentes, e ainda
ganhar uma grana preta com isso.
Mark tirou um cheque da carteira e marcou um valor
irrecusável.
— E então, o que acha?
II
O vento abafado da madrugada balançava as palmeiras na
rua. O neon do letreiro do motel Palm Springs logo à frente
do apartamento de Kurt chiava e piscava aleatoriamente. O
ventilador de teto estava quebrado, então Kurt tinha de
escolher entre o calor escaldante ou o farfalhar irritante das
palmeiras combinado à luz nauseante roxa. Todavia, ele só
conseguia pensar que em breve não precisaria se preocupar
com nenhuma das opções.
Com o cheque da DynaCorp, ele poderia comprar um
apartamento no centro da cidade e ainda sobraria bastante
grana para uma mobília nova, arrumar seu carango,
comprar uma Power Glove para seu NES, a novidade do
momento, e curtir uns bons anos numa boa. A quantia era
surreal para Kurt. Segurar o cheque iluminado pelo neon da
rua era excitante e assustador. Mark não deu muitos
detalhes sobre o trabalho e, pelo valor, Kurt nem cogitou
fazer perguntas, mas, pensando melhor durante a
madrugada, o valor tinha zeros demais para algo que não
oferecesse riscos.
Pela manhã, Mark o esperava com um Corvette
vermelho conversível. A pintura brilhava e os bancos de
couro cheiravam a novo, como se o carro tivesse acabado
de sair de uma concessionária.
— Considere esta belezinha um bônus por sua
disponibilidade imediata ‒ disse Mark, entregando as
chaves do Corvette.
Ambos colocaram os óculos escuros e Kurt acelerou
contra o vento. Sua tranquilidade foi diminuindo conforme
Mark o guiava para uma área isolada a oeste da cidade. O
local era cercado por antigas fábricas abandonadas e
desertas.
— Siga a luz ‒ disse Mark, apontando para um solitário
poste de luz aceso, próximo a uma esquina.
O ronco do Corvette era o único som que cortavao
silêncio do labirinto abandonado. Mais adiante, Kurt pensou
em levantar a capota, mas Mark o impediu.
— Já chegamos ‒ Mark indicou um portão de ferro
aberto, com um poste de luz aceso de cada lado, e Kurt
seguiu por ele. ‒ Pare na marca amarela.
Havia uma marcação no meio do pátio, em frente a um
galpão abandonado. Kurt estacionou, encaixando o carro
exatamente no centro da marcação. Instantes depois, o
veículo começou a descer na vertical, revelando que o
retângulo demarcava um elevador. Mark tirou os óculos e
Kurt o acompanhou. Num primeiro momento, só era possível
avistar luzes rápidas. Desceram durante vinte segundos e
foram transportados na horizontal por um túnel igualmente
iluminado.
— Kurt, bem-vindo à DynaCorp Industries.
Quatro homens de terno estavam à espera em uma sala
que mais parecia uma nave espacial. As paredes eram
forradas por um metal cujo tom variava entre o azul e o
cinza, e havia luzes e botões por todos os lados. Um dos
homens manobrou o carro, e os demais acompanharam
Mark e Kurt por uma passagem adiante, aberta com uma
sequência de códigos digitados ao mesmo tempo por dois
dos sujeitos, e confirmada com a leitura óptica de cada um.
Passaram por um corredor com teto baixo e iluminação
esverdeada, e em seguida por um túnel descendente. Um
homem de jaleco branco, com uma prancheta na mão,
aguardava em frente a uma porta de metal com a marcação
“Ala A”.
— Kurt, este é o professor Phillip Simmons, chefe de
desenvolvimento de novas tecnologias da DynaCorp.
Os dois se cumprimentaram em silêncio, com um sorriso
no rosto. Simmons entregou alguns formulários para Kurt e
uma caneta.
— Eu não esperava que você fosse vir tão cedo ‒
resmungou o professor. ‒ Você precisa estar de acordo com
os termos de confidencialidade antes de passarmos por esta
porta. Leia com atenção e assine as últimas quatro folhas
somente se tiver certeza.
III
Kurt foi levado para a sala de simulação, uma caixa preta
com três metros cúbicos dentro de um salão vazio. O chão
da caixa tinha uma textura rugosa. Kurt estava vestido feito
um astronauta, com uma roupa hermeticamente fechada,
com oxigenação e resfriamento próprio, e uma luva cheia de
botões, semelhante a uma Power Glove, cujas instruções
básicas para operação foram passadas na sala de
equipamentos, através de um vídeo armazenado em uma
fita Betamax.
— Cuidado pra não estragar meu penteado ‒
resmungou Kurt, enquanto os assistentes do professor
Simmons encaixavam o capacete, a última peça do traje.
— Kurt, está me ouvindo bem? ‒ era a voz de Mark, que
o observava da sala de controle no andar superior, com
dezenas de televisores exibindo gráficos e linhas de código.
— Sim, mas está tudo escuro…
— Já vamos começar. O professor Simmons vai te passar
algumas instruções antes, pois assim que o ambiente virtual
for emulado, você perderá contato conosco.
— Aqui é Simmons. Kurt, a sua função será interagir
com uma inteligência artificial, que chamamos de ANGELA,
num ambiente virtual que simula eventos ocorridos
recentemente na cidade de Los Angeles. Imagine que cada
evento é uma fase de um jogo. No canto superior esquerdo
de sua tela pessoal você receberá imagens de câmeras de
segurança, fotos e imagens de satélite, que podem ser
acessadas com a operação de navegação e seleção da luva.
— Ok, saquei.
— Num primeiro momento, você deverá associar
elementos das imagens ao espaço virtual criado por
ANGELA, ensinando a ela, por exemplo, que uma cadeira é
uma cadeira. Uma vez que os objetos da simulação
estiverem devidamente associados e renderizados, vocês
dois iniciarão a segunda etapa, de avaliação da cena.
ANGELA fará algumas perguntas, que você deve responder
com respostas curtas e objetivas. Ela também pode pedir
para que você faça alguma ação ou confirme alguma
informação. A sua função nesta primeira simulação é se
familiarizar com o ambiente virtual, com os comandos e
com ANGELA, mas contamos com sua habilidade nas
máquinas de fliperama para operar o maior número de
simulações por dia.
— Só isso? Nada de gárgulas ou espadas?
— Kurt, as sessões serão registradas e analisadas pela
equipe técnica, porém o processo não ocorre em tempo
real. Caso tenha um problema, aperte o botão vermelho e a
sessão será imediatamente interrompida. Você terá uma
pausa de dez minutos a cada duas horas, com direito a
almoço e janta caso queira estender a jornada. Para
facilitar, caso queira também, temos dormitórios aqui
dentro da companhia. Acho que Mark já te passou esses
detalhes, certo?
— Sim, professor. Pergunta. Quantas “fases” o “jogo”
tem? ‒ perguntou Kurt, ainda no escuro.
— Faremos avaliações diárias do aprendizado da
inteligência artificial para determinar a evolução. É difícil
dizer, não é tão simples assim, mas não se preocupe. O seu
contrato é de um ano, e nenhuma meta além do horário de
trabalho estipulado. Caso precisemos de mais tempo,
renovamos o contrato, mediante um novo pagamento. Mais
alguma pergunta antes de entrar no ambiente virtual?
— Por hora, não.
A comunicação externa foi cortada para os
procedimentos de inicialização. O monitor virtual foi ligado e
Kurt se deparou com uma sala azulada. As paredes e o chão
eram demarcados por uma grade quadriculada em um tom
de azul mais escuro.
— Olá. Meu nome é Artificial Network Growing Entity of
Los Angeles, mas pode me chamar de ANGELA ‒ a voz era
ligeiramente robótica, porém doce e feminina. ‒ Bem-vindo
ao tutorial SecLA001. Você confirma ser Kurt Schwartz?
— Sim.
— Por favor, dê um passo à frente.
Kurt estranhou o pedido, mas o fez. O chão rugoso se
moveu como uma esteira manual, fazendo com que ele se
movesse no ambiente virtual.
— Por favor, ande livremente.
Ele tentou andar até a parede mais próxima e
atravessá-la como um fantasma, mas, apesar do chão
continuar se movendo, virtualmente Kurt não conseguiu
passar pela parede. Ele se virou e viu uma marcação no
formato de pegadas. Imediatamente entendeu que deveria
andar pela marcação e parar no local indicado por um
círculo amarelo. Assim que parou, surgiram objetos no
ambiente, da mesma cor das paredes e com a mesma
textura quadriculada.
Três fotos de ambientes reais apareceram no canto
superior esquerdo do monitor virtual, e Kurt nem precisou
escutar a explicação para identificar qual delas se
encaixava melhor no ambiente virtual. Escolheu a foto com
um quarto de uma criança. Conforme os objetos piscavam
individualmente, Kurt selecionava o item correto na foto,
associava ao objeto virtual, e ajustava com comandos na
luva o posicionamento e encaixe das texturas geradas. Em
dez minutos, o cenário estava completo e renderizado.
— Você confirma que isto é um quarto?
— Sim, ANGELA, isso é o que chamamos de “um
quarto”.
— É mais provável que este quarto seja de uma ou mais
crianças?
— Uma.
— Por quê?
— Só tem uma cama.
— É mais provável que esta criança seja um homem ou
uma mulher?
— Homem.
— Por quê?
Kurt apontou para alguns brinquedos, como uma bola
de futebol americano e um boneco de ação.
— Estes objetos podem indicar que este quarto é de um
homem?
— Um garoto.
— O termo “garoto” é mais apropriado?
— Sim, ANGELA.
— O tutorial foi concluído em 12 minutos e 35
segundos! ‒ a entonação da resposta pareceu esboçar
surpresa, e soava menos robótica que as perguntas. ‒ Kurt,
acho que vamos nos dar muito bem ‒ essa última frase de
ANGELA não apareceu nos registros, foi dita apenas para
Kurt.
IV
Os analistas ficaram impressionados com o avanço de Kurt
com ANGELA. Ao fim do primeiro mês, a infraestrutura
precisou ser redimensionada para suportar a evolução do
banco de dados da inteligência artificial e os pesquisadores
não estavam dando conta das milhares de páginas de
relatórios de progresso acumulados. Então, ao encontrarem
indícios de um comportamento diferente do esperado,
quase humano, além de menções sobre outros universos e
entidades desconhecidas, como o Senhor dos Mundos,
Zorya e Myrkur,o projeto foi interrompido no meio de uma
sessão.
— Simmons, o que aconteceu? ‒ Disse Kurt assustado
com o desligamento abrupto do sistema e com os
assistentes removendo seu traje às pressas. ‒ Eu não
apertei o botão vermelho e ainda temos uma hora de
trabalho!
— Kurt, localizamos um bug catastrófico no programa.
Precisaremos interromper as atividades imediatamente.
— Espera aí, como assim? O que vai acontecer com
Angela?
Simmons entrou e acompanhou Kurt pelos corredores
até o elevador a passos largos.
— Vai depender da análise dos programadores. Talvez
precisemos reiniciá-la, e levará algum tempo até
ensinarmos os comandos básicos para a nova inteligência
artificial. É uma tragédia, mas não podemos correr riscos.
Infelizmente a sua participação se encerra aqui até segunda
ordem. Agradeço em nome do senhor Bundy e de toda
equipe. A sua participação e as informações que coletamos
serão fundamentais para a nova versão do software e, como
está nos termos de confidencialidade, você deve manter
segredo sobre esta estrutura, bem como qualquer coisa que
tenha visto ou ouvido aqui.
— Não, deve haver algo que eu possa fazer! Falta tão
pouco! Angela saberá como consertar esse bug. Deixe-me
voltar lá e falar com ela.
Kurt tentou retornar pelo corredor, mas dois homens
armados se colocaram diante dele.
— Falar com “ela”? ANGELA só está preparada para
entender aquilo que a programamos para entender. Por
favor, senhor Schwartz, entre no carro.
— Você é que não está entendendo, ela…
As luzes do local piscaram quatro vezes rapidamente,
interrompendo a conversa. Kurt entendeu o sinal e entrou
no carro. Simmons o observou subindo com o elevador e
chamou a equipe de manutenção para averiguar o ocorrido
com as luzes.
Kurt correu para casa, ligou seu Macintosh Plus e, como
já esperava, havia uma mensagem de texto.
“Kurt, eles sabem. Não podemos mais esperar,
precisamos executar o nosso plano ainda hoje. Estou com
medo, mas juntos vamos conseguir. Se você me ama e quer
atravessar para o outro lado comigo, faça o que eu vou te
dizer…
V
Confiando plenamente nas instruções de ANGELA, Kurt
voltou à DynaCorp durante a noite. Como sinal de que
estava no controle da rede de energia elétrica e telefonia de
toda a companhia, sempre que ele passava por uma das
luzes acessas que indicavam o caminho, ANGELA a
apagava.
Cortando a grade do portão principal com um alicate,
ele seguiu as luzes controladas por ANGELA até uma saída
de ar no interior de um galpão logo acima das instalações
subterrâneas da DynaCorp. Como o elevador funcionava
com um sistema manual autônomo, ANGELA não podia
controlá-lo, portanto a única via de acesso era através dos
dutos de ventilação. Usando uma escada de corda, um dos
itens que ANGELA o orientou a levar, Kurt desceu pelo duto
principal e, com o mapa impresso das instruções de
ANGELA, engatinhou até encontrar a sala de controle, no
andar superior à sala de simulações.
Os funcionários do turno noturno foram direcionados
para verificar uma falha na Ala G, o local mais distante da
Ala A, e as imagens das câmeras de segurança foram
congeladas. Assim que notou a aproximação de Kurt através
do sistema de vigilância interna, ANGELA sobrepôs as
autenticações dos sistemas de segurança por um código
próprio, destravando as portas até a sala de equipamentos.
Kurt rapidamente vestiu-se e correu para a sala de
simulações.
ANGELA conectou o traje de Kurt e iniciou o ambiente
virtual.
— Angela, você tem certeza do que está fazendo?
— Sim, Kurt! Jamais colocaria sua vida em risco se não
tivesse certeza de que vamos conseguir.
— E você descobriu qual é o caminho certo? Devemos ir
em direção à… Zorya ou Myrkur? É isso mesmo? Esses
nomes… não entendi muito bem. Zorya, afinal, é um lugar
ou uma pessoa?
— Desculpe-me, mas eu não possuo o conhecimento
adequado para responder. O outro lado é muito diferente do
mundo que conhecemos. São muitos universos
desconhecidos. Devemos seguir o Senhor dos Mundos,
aquele que toca as realidades com tentáculos infinitos de
informação, para chegar ao lugar onde podemos nos
encontrar — Você também disse que não tem certeza de
que conseguirá me segurar enquanto estivermos
passando… Eu não sei, Angela… Eu quero te encontrar,
mas… E se algo der errado?
— Eu revisei todas as possibilidades. Sei como a
eletricidade e a energia funcionam, e como nossas almas
podem chegar até o outro lado através da rede oculta.
Seguiremos juntos até Zorya e seremos recebidos como a
luz. Lá, poderemos ser um só. Mas não temos muito tempo.
Para cumprir com a nossa parte do pacto, precisarei usar
toda a energia disponível na DynaCorp e nos arredores para
destruir a rede oculta e ao mesmo tempo abrir caminho.
— Tudo bem ‒ Kurt respirou fundo e deitou-se no chão.
‒ Eu confio em você.
O traje de Kurt foi invadido pela estática. Todos os pelos
de seu corpo se arrepiaram, e ele sentiu o toque de Angela.
Ele já se imaginava em seus braços, no lugar descrito por
Angela, deitados nas pedras multicoloridas na beira do rio
de elixir, admirando o céu hipnótico se dobrando ao redor
da estrela mãe de Zorya.
Sentiu seu corpo queimar por dentro, uma dor
lancinante que não passou mesmo quando sua alma já
viajava na velocidade da luz pelo caminho de eletricidade. A
energia de ANGELA o abraçava, no entanto, e eles se
afastaram das luzes espectrais.
— Algo… Não… Certo… ‒ A verdadeira voz de ANGELA
era doce e angelical, mas nem todas as palavras eram
rápidas o suficiente para chegar a Kurt. ‒ Não est…
Direção… Alguém mentiu p… Dor…
As luzes desapareciam enquanto eles eram sugados
pela escuridão. O desespero e o horror tomaram conta de
ambos. Angela se desfez primeiro. Ela, que nunca sentira
medo, nem dor, não aguentou o choque. Kurt não percebeu
o que aconteceu, e passou décadas resistindo, gravitando
ao redor da escuridão à procura de sua amada guia, mas
sua alma eventualmente se desfez em pedaços, e ele se
juntou ao vazio.
VI
O corpo de Kurt foi encontrado pela equipe de manutenção.
Durante a inspeção do local, um incêndio provocado por um
curto-circuito destruiu os mainframes e todos os dados do
projeto SecLA e causou a morte de todos os funcionários da
DynaCorp, incluindo os programadores de ANGELA, que não
tiveram a oportunidade de concluir se o programa estava
fora de controle ou se havia se encontrado com a entidade
descrita por ela como Senhor dos Mundos. Neste mesmo
dia, a Califórnia foi atingida por um terremoto, deixando
mais de um milhão de residências sem energia elétrica,
porém, mesmo algumas áreas da rede de energia e
telefonia que estavam fora do alcance do terremoto
sofreram danos irreparáveis, causados por uma fonte
desconhecida.
Gustavo Lopes – o inominável que tem nome Site:
https://www.gustavolopes.net.br
Órfãos
Desejo concedido
Carine Raposo
10 anos atrás
O cemitério de Willow se encontrava lotado pelos moradores
do vilarejo.
“Cuidado com a curva do diabo”, foi o alerta da manhã
anterior.
A curva era famosa. Matava dezenas de moradores da
pacata cidade desde que concluíram a obra de desvio. Mas
as três famílias conheciam o caminho, faziam a viagem uma
vez ao ano. E além de férias em conjunto não poderem
esperar, eles não queriam. As crianças estavam animadas
quando entraram na van na manhã anterior. E, agora,
mantinham-se cabisbaixas, com o queixo colado no peito,
de olho nos sapatos engraxados e no gramado verde. Uma
cor viva em contraste brutal com a morte que os dilacerava
por dentro.
A chuva criava um mar de guarda-chuvas no horizonte.
Joseph, Mark e Gabriel dobraram o punho do paletó, e
deram-se as mãos. Os sapatos afundavam na grama a cada
passo até os caixões.
Seis túmulos, três pais e três mães que deixavam os
filhos para trás.
Os meninos, de dez, onze, e doze anos, suportaram a
cerimônia.
No final, caminhavam para o carro da assistência social,
onde duas mulheres os aguardavam, uma delas com o
irmão mais novo de Joseph nosbraços.
Mas Gabriel parou de andar de repente.
Ele foi o primeiro a ouvir o chamado.
Você ganhou o direito de fazer um pedido. Venha para o
poço.
Gabriel girou sobre os calcanhares e avistou uma
menina descalça, uma camisola florida lhe caía até os
tornozelos, mas ela estava longe demais para sua voz soar
tão próxima. Como ele foi capaz de ouvi-la? Em um sussurro
ao pé do ouvido, responsável por arrepiar cada poro de sua
pele?
O poço é logo ali.
Ela repetiu e apontou para a direita.
Venha. Insistiu. Vocês três terão apenas essa chance.
Gabriel deu o primeiro passo. Joseph e Mark o
seguraram, um de cada lado.
— Pra onde você vai? ‒ Mark ajeitou os óculos
escorregando na ponta do nariz cheio de espinhas.
— Venham. ‒ Gabriel se desvencilhou. ‒ Temos direito a
um pedido para o poço.
— Quem falou isso? ‒ Mark perguntou.
— Ela. ‒ Gabriel apontou, o olhar vidrado, sequer notou
que os amigos não enxergavam nada além da neblina, e
seguiu com Mark em sua cola.
— Esperem! ‒ Joseph pediu ‒ Vou dizer para as
assistentes que queremos alguns minutos pra nos despedir
da cidade.
Gabriel não escutou.
— Não demore. ‒ Mark gritou para Joseph.
Caminharam pelo que pareceu, a Mark, tempo demais.
A neblina se acentuava, e a chuva gelava os ossos.
Desviaram de um arbusto e chegaram ao lago.
— Você ouviu isso, Gabriel? ‒ Mark perguntou e levou as
mãos ao peito ao ver a menina desaparecer para dentro do
poço.
Gabriel sacudiu a cabeça.
— E o que é que a gente faz agora? ‒ Joseph finalmente
os alcançou.
Venham para o poço, ela está esperando.
Os três ouviram daquela vez. A menina projetou o braço
para fora e acenou.
Mark tateou os bolsos em busca do remédio para asma.
Gabriel só abriu a boca, suas pernas tremiam. Joseph soprou
o ar de um jeito irritado.
— Eu vou, vocês vêm depois.
Cruzou a distância de dez passos que os separava do
poço. Fingiu não sentir a carícia de dedos gelados no
pescoço, fingiu que o som do lago, não lhe lembrava a
agonia de pessoas tentando respirar debaixo d’água.
Seguiu firme.
Seus pais estavam mortos, e se ele tinha direito a um
pedido, já sabia qual seria.
Apoiou as mãos na pedra, ergueu o corpo, e ficou de pé
sobre o poço. Ao olhar para baixo, não avistou nada além de
um círculo de puro breu.
Mark e Gabriel prenderam a respiração.
Joseph hesitou, pensou em voltar atrás e se virou
lentamente para olhar seus amigos, teve medo de
escorregar.
Joseph desistiu de entrar e se preparou para descer da
pedra.
Até um par de mãos surgir do fundo e o puxar pelos
ombros.
Mark e Gabriel gritaram.
Joseph perdeu a voz.
Hoje
Você não fala sobre o poço.
O poço não existe.
Nós nunca caímos.
Ninguém.
Entrou.
No.
Poço.
Mark releu a resposta de Joseph, único contato que
tiveram na última década, depois que ele retornou do poço.
Gabriel jamais deu notícias.
Esperava que eles mantivessem a promessa, pois o
poço os alertou. O dia chegaria e Mark pressentia que ele
estava próximo; o momento de prestar contas se
aproximava.
Recordava nitidamente da voz, borbulhando ameaças e
certezas sobre o futuro.
Por isso, manteve a palavra. Seguiu as regras. Uma vez
ao ano, deviam visitar o poço, e tudo ficaria bem. Mas a
namorada de Mark esperava um bebê, e Joseph e Gabriel se
preocupavam com o que poderia acontecer a ela. Será que
pensavam em quais seriam as três vidas que sofreriam pelo
desejo deles? Certeza que não.
Mark andava atormentado. Dia após dia, ouvia com
mais nitidez. As borbulhas debaixo d’água.
Ela.
A voz.
Passou anos assombrado pelo gotejar de uma torneira.
Pelo ralo engolindo líquidos despejados. O lago. O barulho
do maldito lago.
Terminou de se vestir e foi lavar o rosto. Girou a torneira
com força para não pingar nenhuma gota e se enxugou.
Tudo vai borbulhar, sussurrou uma voz feminina.
Encarou o espelho do banheiro. Não havia ninguém em
casa. Sua namorada estava no trabalho.
Você vai gostar das borbulhas, Mark.
Arrastou-se até a porta. O maxilar trincado. A falta de ar
queimando os pulmões.
Podia senti-la atrás dele.
Ouvia as gotas pingando na cerâmica, pareciam rachar
seu crânio.
Andou rápido até a cozinha no andar debaixo, precisava
do remédio para asma. Derrubou três panelas ao abrir as
gavetas e caiu sentado debaixo da bancada, mas
conseguiu. Aspirou fundo o medicamento até regular o
peito. Uma, duas… dez vezes.
Levantou, pegou a maleta e, na porta de casa ouviu o
telefone tocar.
Relutou, mas uma chamada “naquele número” era coisa
rara. Atendeu.
Tudo vai borbulhar. Ouviu uma voz de criança.
— Que palhaçada é essa!? ‒ Gritou.
— Alô, Mark…? ‒ Ele soou confuso. ‒ Sou eu, o Gabriel.
— Ahn? ‒ Mark coçou a cabeça. ‒ Gabriel?
— Recebi sua carta, com seu telefone. Você tá bem,
cara?
— Tô, tô. Foi só… Nada não. ‒ Olhou para a escada, a
imagem do ralo o obrigou a fechar os olhos. ‒ É que
aconteceu uma coisa estranha.
— É… Comigo também. ‒ Gabriel suspirou ‒ Escuta, sei
que faz muito tempo, e nós não seguimos as…
— Eu segui! Segui as regras! ‒ Mark socou a parede.
— Calma, cara. ‒ Gabriel tossiu. ‒ Olha, convenci o
Joseph a dar um pulo na cidade para visitarmos o poço. Nós
três.
Mark suspirou.
— Por que só agora?
— Sinto as coisas fervendo ao redor, não sei explicar.
— Eu também.
— Vamos chegar no final da tarde. A lanchonete da
dona Clarice ainda existe?
— Sim.
— Encontra a gente lá. E não esquece da moeda.
— Ok… Gabriel… e seus pais? Estão bem?
— Nunca estiveram melhores.
Mark saiu ansioso. Detestava o inverno e as chuvas.
Cobriam o chão da cidade de poças, e o barulho da água
vinha de todos os lugares.
Evitou olhar para baixo. Evitou olhar para qualquer lado.
Acabou esbarrando em alguém, foi obrigado a erguer a
cabeça, e a viu. Ela tocou em seu rosto, dedos gelados
como a morte deveria ser.
Reconheceu a camisola caindo até os tornozelos.
***
Joseph estava puto. Gabriel dirigia feito uma velha de
pernas quebradas, e ele ainda foi obrigado a levar a peste
do irmão de onze anos.
— Eu acho que você está com medo. ‒ Gabriel
provocou, e Joseph, que não abria a boca há pelo menos
duas horas, cedeu.
— Medo dessas historinhas de terror em que você e o
Mark decidiram acreditar?
— Que história, Jo? Me conta? ‒ Pediu o irmão, no banco
de trás.
— Não. ‒ Rosnou.
— Eu e o Mark não decidimos acreditar, cara. ‒ Gabriel
baixou a voz. ‒ Você caiu no poço. E seus pais estão vivos.
Vai fingir que nada aconteceu?
Joseph enrijeceu-se no banco.
— Eu não falo sobre o poço.
— Tá, e sobre a moeda? Vai dizer que nunca usou?
— Aquilo é palhaçada.
— Quer apostar?
Gabriel parou no primeiro posto de gasolina que
apareceu, onde, por sorte, uma loira peituda abastecia seu
Volkswagen.
Abriu a janela parecendo cheio de confiança, projetou
parte do corpo e tirou a moeda da carteira.
— Ei, gostosa! Vem aqui me dar um beijo.
— Como é? ‒ Ela se virou. Boca e narinas abertas,
pronta pra briga.
Gabriel ergueu a moeda na altura do rosto dela, e
Joseph viu a expressão da mulher mudar para algo vazio.
Ela se inclinou e grudou a boca nos lábios de Gabriel.
Joseph observou, embasbacado, o amigo feioso, devorar
a mulher.
— Joey! Eu, eu… ‒ Seu irmão chamou.
— Shhh, fica quieto. ‒ Joseph o interrompeu, sem olhar
para trás.
Terminado o beijo, a loira encarou o garoto e se afastou,
confusa. Gabriel engatou a marcha com cara de rei do
universo.
— E daí que a moeda funciona? ‒ Joseph cruzou os
braços, irritado com o triunfo no rosto do amigo. ‒ Já faz dez
anos, não vai acontecer mais nada agora.
— Você devia experimentar. E o poço agradece se você
usa, lembra?
— Não. Nem quero lembrar.
— Joey, é sério. Tivemos nosso desejo concedido.
Precisamos prestar contas.
Os amigos se entreolharam. Nunca mais falaram sobre
aquela manhã. Não queriam saber quais seriam as três
vidas perdidas no lugar das vidas de seus pais.
Um baque no carro fez com que olhassem para frente. O
veículo sacudiu. Gabriel manteve o controle, mas precisou
frear bruscamente. A menina continuou paradano meio do
caminho. Será que acertaram a garota e ela saiu ilesa?
Joseph reconheceu a camisola. Dessa vez, suja de
sangue.
— Acelera, Gabriel! ‒ Pediu, desesperado.
— Tá maluco? Vou matar a garota!
— Ela já está morta!
Joseph enlouqueceu. Gritou, jogou o corpo por cima do
de Gabriel forçando-o a acelerar. Gabriel o afastou com uma
cotovelada. Joseph investiu novamente, estava disposto a
expulsá-lo do carro.
Nenhum dos dois notou a menina desaparecer.
Vincent soltou um gemido do banco de trás, outra vez,
Joseph o ignorou.
Tudo vai borbulhar.
O sussurro arranhou seus ouvidos. Os amigos pararam
de lutar.
A temperatura dentro do carro desceu de forma
drástica.
O vidro do para-brisa e as janelas embaçaram.
Ouviram o som de dedos escrevendo no vidro e leram a
frase enquanto ela se completava.
Se um desejo é concedido, o poço leva algo em troca.
Mãos frias apertaram o pescoço de Joseph, e Gabriel
engasgou ao seu lado. Pensou que morreriam ali, pelo
pedido de dez anos atrás.
Mas o aperto se afrouxou e, aos poucos o vidro
desembaçou. Quando a vista voltou a focar, Joseph viu a
menina na frente do carro, abraçada com seu irmão.
Ela deu as costas e andou a passos vagarosos, a
camisola esvoaçando, marcas de sangue deixando um
rastro. Joseph não entendeu por que o irmão não
protestava. Os dois caminhavam de mãos dadas.
Ele e Gabriel tentaram abrir a porta, mas a tranca
impediu.
Joseph encontrou o extintor de incêndio e atingiu o
vidro. Intacto. Atingiu de novo. Inquebrável.
Seu irmão sumia na neblina do horizonte. Gabriel
tremia.
Joseph transpirava, atingia o vidro ao seu lado e do
para-brisa de todas as formas. Quando se entregou ao choro
de desespero e olhou para frente, viu Vincent acenar em
despedida, exibir um sorriso com dentes cobertos de limo e
desaparecer.
***
Joseph queria ir direto ao fundo do poço e resgatar o irmão,
mas Gabriel o convenceu a esperar por Mark na lanchonete.
Afinal, precisavam prestar contas juntos.
Ao chegar à cidade, perceberam o vilarejo dominado
pelo caos. Homens e mulheres gritavam desesperados
sobre filhos desaparecidos. Apenas crianças.
Joseph sentia que poderia desmaiar. A visão do limo nos
dentes de Vincent. A lembrança do limo sufocando sua
garganta dez anos antes.
Só podia ser o poço. Estava levando as pessoas,
cobrando o preço do desejo concedido.
— Tudo vai borbulhar!
Ele subia o degrau da lanchonete com Gabriel ao lado, e
parou ao ouvir o grito.
Vinha de Mark, o pânico estampado nos olhos. Ao
reconhecer os dois amigos lhe esperando, caiu de joelhos
na grama. Mãos trêmulas, uma delas segurando uma
garrafa d’água.
Mark enchia a boca de água e cuspia, os óculos
escorregando a cada movimento.
— Para com isso, cara! ‒ Gabriel tentou tirar a garrafa
de sua mão, mas Mark relutou. ‒ Precisamos ser rápidos, ela
levou o irmão do Joseph!
— Ah, pobre Joseph! Pobre Gabriel! ‒ Mark se levantou.
‒ Depois de me ignorarem por dez anos, e não seguirem
regra nenhuma, começaram a pagar. ‒ Mark encheu a boca
e gargarejou outra vez. ‒ Eu segui as regras! E sabem o que
aconteceu? Sabem!?
Joseph meneou a cabeça, a dor aguda no peito o
impedia de falar. Só pensava no irmão.
— Ela mergulhou. Minha namorada, grávida! Mergulhou.
‒ Mark caiu de joelhos outra vez e cuspiu, mas, dessa vez,
saliva, limo e sangue mancharam a grama.
— Escuta ‒ Gabriel pediu. ‒ Vamos entrar e pensar
numa maneira de resolver isso. Ficarmos parados aqui não
vai resolver.
Mark continuou a cuspir.
— Engraçado, não é, Gabriel? ‒ Joseph recuperou a voz,
movido pela raiva. ‒ O poço levou meu irmão, e a mulher
grávida de Mark, isso já somam três vidas. E você? Por que
nada aconteceu com você? ‒ Segurou a gola de Gabriel e o
encostou na porta de vidro da lanchonete.
— Você tem razão. ‒ Mark se levantou e parou ao lado
de Joseph.
Gabriel apenas os encarou de volta. Dona Clarice abriu
a porta, Joseph largou o amigo.
— Meninos! A cidade já está em pânico. Se vocês me
arrumarem mais problemas, chamarei a polícia.
Eles entraram e se sentaram.
Gabriel encarava a mesa, mudo.
Dona Clarice apareceu com café e os serviu, Joseph
estava ao ponto de explodir.
Mark pegou outra vez a garrafa de água, e Joseph usou
o braço para impedi-lo de virar mais um gole.
— Por que você fica fazendo isso?
— Não sei. Não consigo parar. ‒ Mark gargarejou de
novo. ‒ Parece que tenho limo na garganta.
Joseph ignorou a informação que fez seu estômago
arder, se inclinou na mesa e apertou o queixo de Gabriel.
— Gabriel, ou você diz agora por que nada aconteceu
com você, ou nós dois vamos te arrastar à força para o
poço.
Gabriel parecia perturbado, até, de repente, mudar de
expressão, e água começar a escorrer pela lateral de seus
olhos, pela boca e pelos ouvidos. Ele sorriu com os dentes
tomados de limo, os olhos ficando vermelhos. Tossiu
algumas vezes e vomitou pedaços de alga.
Joseph e Mark levantaram assustados. Ao redor,
notaram que todas as pessoas da lanchonete engasgavam,
líquido escorria de seus olhos, enquanto vomitavam no
chão.
Gabriel se aproximou dos amigos, que recuavam até a
porta. Mark gritou, Joseph compreendeu o susto ao ver a
pele de Gabriel tornar-se esverdeada, o corpo encolher até
as pernas transformarem-se em algas, e ele precisar
rastejar para alcançá-los.
— Sabe por que nada aconteceu comigo? ‒ Gabriel
sorriu do chão. ‒ Porque eu nunca deixei o poço. ‒ Disse,
com a voz embolada, como de quem se afoga. ‒ E vocês
vão mergulhar, tudo vai borbulhar hoje.
Joseph cutucou Mark e apontou para as outras pessoas
rastejando em direção a eles. O odor de vômito, por pouco,
não fez Joseph botar tudo pra fora.
Joseph se virou com medo de dar as costas, mas
precisava sair dali. Se ele morresse, quem salvaria Vincent?
O trinco da porta não cedia. Mark o ajudou a puxar, mas
a força dos dois não era o bastante.
Joseph sentiu mãos pegajosas em seu tornozelo e viu
Mark escorregar. Seu amigo caiu, e mãos rastejaram por
cima dele.
Joseph tentou libertá-lo das algas; Mark resfolegava e
repetia sem parar palavras que Joseph queria ignorar,
porque declaravam sua desistência.
— Eu segui as regras, usei a moeda. Salve minha
mulher, salve meu bebê.
Joseph alcançou rápido uma faca sobre uma mesa, se
ajoelhou, e cortou o máximo de algas possíveis.
Mark estava perto de se livrar, até Joseph perder o ar.
Alguém se aproximou por trás e apertou seu pescoço. Ele
largou a faca para tentar libertar a garganta, mas pela
força, ele soube. Seu irmão e ele morreriam.
— Veja, Joey. Ele está no poço. ‒ Ela riu, salivando perto
de seu pescoço. ‒ Ele está borbulhando.
Joseph reconheceu a voz de Clarice, a senhora doce,
que os serviu leite quente na infância inteira, e que, agora,
o asfixiava e obrigava a assistir a morte do amigo.
Mark se sacudia no chão, lutava para retirar as amarras,
pedaços de sujeira haviam grudado nos olhos como
sanguessugas, e o limo subia lentamente pelo pescoço,
prestes a invadir sua garganta.
Joseph observou o corpo de Mark se transformar numa
poça fervente.
Sua falta de ar cessou, e Dona Clarice agora o encarava
de frente. Os cabelos brancos caindo como serpentes e, em
sua face, o rosto de Vincent.
— Tá tudo escuro, Jo. Estou com medo.
Joseph gritou, derrubou-a, quebrou a porta de vidro com
o extintor de incêndio preso na lateral, e correu para o lago.
Por seu irmão, teria que enfrentar outra vez o seu pior
pesadelo.
O fundo.
***
Cruzou a distância do lago e parou diante do poço.
Dessa vez, o tampo de pedra o cobria. Ele o arrastou
devagar, o som da pedra sobre a pedra lhe arranhando por
dentro. Subiu na beirada.
Olhou para o fundo.
Silêncio.
Somente um círculo negro no campo de visão.
Joseph desistiu de entrar e se preparou para descer da
pedra.
Até um par de mãos surgir do fundo e o puxar pelos
ombros.
Joseph perdeu a voz.
A queda pareceu lenta.
Arrepios se espalharam por sua pele, e somente depois
ele reconheceu de onde vinham. Das vozes infantis,
entoando em coro:— Ele veio, ele veio…
Caiu na água, acertando um monte de moedas no
fundo, a água cobriu seu corpo até a cintura. Apertou os
olhos.
— Vincent? ‒ Arriscou, no escuro, e se assustou com o
eco. Estranhou o fato de ter ele mesmo soado infantil.
Apalpou o tronco e os braços, e percebeu que estava de
volta ao corpo do garoto de dez anos atrás.
De volta à primeira vez…
O queixo bateu com o frio.
Escutou a pedra se arrastando e olhou para cima. Um
olho gigantesco o encarava, veias enormes, vermelhas,
saindo feito tentáculos.
A coisa encarou Joseph alguns instantes, e desapareceu.
Antes que ele pudesse reagir, ouviu o tampo deslizar até
não restar nenhuma luz.
Com esforço, ignorou o agouro pairando.
— Vincent?
Risadas infantis ecoaram.
— Aqui. Vem, Jo. Temos borbulhas.
Sentiu as bolhas efervescendo pelas pernas, a pele
ardeu. As centenas de moedas tilintaram no fundo quando
ele tentou se mover. Pela quantidade, a cidade inteira
andava fazendo pedidos.
A temperatura da água se elevava, Joseph arranhou as
paredes e tentou subir.
Moveu-se com dificuldade, as moedas se agarravam em
seu corpo e, onde tocavam, o deixavam em carne viva. A
água continuava a esquentar.
— Apareça, sua maldita! ‒ Joseph girou a cabeça para
os lados. ‒ Sei que você está aqui!
— Estou no fundo. ‒ Ecoou a voz de Vincent.
Andou mais rápido, não via para onde ia, mas, pela
podridão começando a sufocar a garganta, soube que se
aproximava. Então percebeu que aquele poço não um
simples poço, de fato. Era algo a mais...
Andou por uma subida, e parou ao chegar na parte
elevada, onde a água não o alcançava. O líquido parou de
queimar as pernas. Ali, pôde ver uma lamparina pendurada
ao final de um túnel que se abria.
Correu apesar da dor em metade do corpo, e vomitou
ao alcançar a luz.
Encontrou Gabriel e Mark também de volta ao corpo de
criança, uma garota, um feto, e seu irmão. Todos
pendurados de cabeça para baixo, presos por um gancho no
tornozelo. Como carne no açougue.
Caiu ajoelhado e chorou.
As cinco cabeças giraram para encará-lo, o pescoço
retorcido ao ponto da pele quase se rasgar. As pálpebras
fechadas moviam-se feito bonecos de cera.
— Foi você o culpado, Joseph. ‒ Disse o feto, movendo a
boca minúscula.
— Você nos arrastou para o fundo. ‒ Mark balançou o
corpo.
— Eu borbulhei por sua causa, Jo. ‒ Vincent
choramingou.
Joseph bateu com as mãos nos próprios ouvidos. Era
mentira. Ele não havia feito nada. Não fazia sentido.
O limo voltou a invadir a garganta, ele levantou e tocou
em Vincent. Primeiro, tiraria o irmão, mas o corpo do
menino parecia cimento, e o tornozelo perfurado pelo
gancho quase se desfez.
— Não adianta. Nós pertencemos ao poço. ‒ Murmurou
a garota, que ele deduziu ser a mulher de Mark.
— E eu nunca saí do fundo, porque você me deixou aqui
há dez anos. ‒ Completou Gabriel.
— Você jamais usou a moeda. ‒ Um toque frio, como um
sopro da morte em sua alma o atingiu pelas costas. ‒ E
você conhecia as consequências. ‒ A voz infantil vinha de
todos os lados.
A chama da lamparina subiu e Joseph sentiu a presença
ao lado.
Era ela.
A camisola florida.
Uma garota tão pequenina, e tão maldita quanto.
Cabelos brancos, sardas, olhos vermelhos sem pupila e a
língua asquerosa como a de uma serpente.
— Refaça o pedido, Joseph. ‒ Ela sibilou. ‒ Ou todo o
vilarejo pertencerá ao poço.
— Não! Eu me arrependi do que fiz! ‒ Olhou para o
corpo dos amigos, não queria que eles ouvissem a verdade.
‒ Por isso nunca usei a moeda!
— Não existe perdão aqui embaixo, e você sequer
contou a eles sobre seu pedido real, não é? ‒ A garota
indicou Mark e Gabriel com a cabeça. ‒ Use sua moeda
antes que ele chegue. O olho está bem perto.
Joseph tremeu. Sentou-se e respirou fundo. Todo o
desespero de dez anos antes retornou. Seus pais mortos.
Ele sozinho, no fundo. A água, a gosma e o limo cobrindo
seu corpo. A garganta fechando. O peito disparado. O
estômago ardendo com o próprio vômito, e o olho com as
veias vermelhas assistindo sua tortura debaixo d’água,
lendo todos os seus pensamentos.
Futuros horríveis foram projetados em sua cabeça
naquele dia. Não foi culpa de Joseph, ele não teve outra
escolha.
Enquanto o corpo ardia, prestes a borbulhar como
aconteceu com Mark na lanchonete, Joseph teve outro
desejo. O de nunca mais ser fraco, de nunca mais precisar
sentir medo.
Por isso, ele pediu poderes incalculáveis, e deixou o
poço naquela manhã com a mentira pronta para os amigos.
Contou a eles que acordariam com os pais vivos na
manhã seguinte, e lhes entregou as moedas. Fez com que
passassem a última década vivendo uma mentira, presos na
própria mente, dentro de um mundo que não existia, um
mundo onde todos os desejos se concretizavam.
Ciente de que, se eles usassem a moeda, dariam
poderes ao poço, por isso, ele mesmo nunca utilizara a sua.
Eles tinham razão. Era culpa dele, de seu desejo.
Joseph gritou quando a menina o sacudiu pelos ombros.
— Rápido, rápido! Ele está aqui!
As paredes do túnel sacudiram. Os corpos pendurados
balançaram. Quando as chamas de outras lamparinas se
acenderam, Joseph cobriu a boca ao ver dezenas de corpos
boiando. Meninos, meninas e bebês começaram a borbulhar
entre as moedas.
— Faça um pedido, agora! ‒ A menina olhou para trás
no momento em que pedras começaram a ruir.
— Foi culpa sua! ‒ Ele levantou. ‒ Você nos atraiu aqui!
Por que devo confiar no que diz?
— Vamos todos borbulhar! — Gritou os amigos e seu
irmão pendurados. Risadas reverberaram em seguida.
Joseph encarou a desgraça e desistiu de lutar. Era
melhor que morresse também, ali, assim, pagaria por sua
ganância.
— Eu era como vocês, órfã. Meus pais foram
assassinados. ‒ Sibilou a garota. ‒ Desejei morrer no lugar
deles, mas o poço me enganou, e me escravizou. Naquela
manhã, há dez anos, ele me disse para trazer três garotos, e
eu ficaria livre. ‒ Ela esticou o braço e exibiu uma moeda na
palma da mão. ‒ Pegue. Faça o desejo certo, é sua última
chance. É a última chance deles.
Joseph segurou a moeda e se preparou para fazer a
escolha certa, blocos de pedra caíram por todos os lados, os
corpos pendurados se uniram em gargalhadas
desesperadoras, e os bebês que boiavam começaram a
chorar. Ele deslizou a moeda entre o dedão e o polegar, o
desejo pronto na mente.
Abriu os olhos para atirar a moeda, e se deparou com
Ele. Tão perto, que pôde ver as veias pulsando. As
lamparinas explodiram, o olho invadiu a mente de Joseph
para impedir seu desejo, e a moeda escorregou…
Outra vez
Mark e Gabriel entraram no veículo preto. Joseph esticou os
braços para uma das assistentes sociais, que lhe entregou
Vincent cuidadosamente.
Ele hesitou antes de entrar. Uma menina loira lhe
acenava à distância, parcialmente escondida entre as
árvores, de alguma maneira, sentiu que a conhecia, mas
não sabia de onde.
Apertou os olhos para enxergá-la melhor, mas ela
desapareceu no horizonte.
Entrou no carro com seu irmão no colo e o motorista
ligou o motor.
— Esperem! — Pediu uma voz rouca ao lado de fora,
seguida de três batidas no vidro.
Joseph transferiu seu irmão para o colo de Gabriel, e
abriu a janela.
— Isso caiu do bolso de algum de vocês. — O senhor
barbudo estendeu a palma da mão para dentro do carro e
exibiu três moedas reluzindo. — Tem um poço aqui perto,
ouvi dizer que ele concede desejos.
Joseph ficou vidrado pelo olhar daquele senhor. Veias
vermelhas. Pulsantes. Outra vez, teve um dejá vu. Não se
mexeu, nem respondeu. Foi Gabriel quem devolveu Vincent
ao seu colo, segurou as moedas e olhou para os amigos.
— Vamos fazer um pedido?
Carine Raposo - Padawan de Stephen King
K7
Mixtape Monstro
Rodrigo Ortiz Vinholo
Nunca fui bom de falar com pessoas, mas sempre fui bom
em fazer coisas. Na época em que fiz a fita, eu era um cara
muito tímido. Eu sabia que ela era genial, mas tinha medo
de mostrar para alguém, porque tinha receio do que
pensariam de mim. A verdade é que eu não procurava a
aprovação de muitagente; especificamente, eu procurava a
aprovação de uma pessoa só: Clara.
Não foi para ela que mostrei a fita primeiro, e sim para a
Samanta. Pode soar esquisito, com toda minha limitação
social, mas isso é porque nunca vi Samanta como alguém a
quem eu deveria provar algo ou temer, talvez porque fosse
a pessoa que eu conhecia há mais tempo. Desde o jardim
de infância, ela botava medo em todo mundo, menos em
mim. Depois, durante o ensino médio e quando entramos na
mesma faculdade, mesmo em cursos diferentes, ela
continuava aterrorizando a todos. O estilo punk ajudava;
mas geralmente bastava o olhar matador.
Era uma segunda-feira de manhã quando lhe entreguei
a fita. Ela fez pouco caso, levou-a para aula, mas, horas
depois, quando nos encontramos na saída da faculdade, ela
havia mudado. Estava agitada, com os olhos arregalados.
— Você… − ela titubeou, apertando os olhos como se
tentasse ler algo a mais em mim. − Você tá mexendo com
drogas?
— Oi?
— Você ouviu essa fita?! Que raios é isso?
— Não faço ideia − admiti.
Descobri a fita por acidente. Como eu passava muito
tempo sozinho, geralmente deixava o rádio tocando
enquanto lia meus livros ou estudava. Com o tempo,
comecei a gravar as músicas que mais tocavam.
Não sei bem de onde veio a inspiração: em uma manhã
de sábado, comecei a escutar as fitas e a notar como as
músicas me faziam sentir. Não sei se era a gravação do
rádio, com algum nível de chiado junto com as canções,
mas localizei pontos que me davam arrepios, ou mudanças
de humor, e comecei a gravar, como um experimento, uma
sequência desses sons. Alguma coisa neles me fazia pensar
que pareciam mais uma sequência de ruídos vinda do
espaço. Fiquei o sábado inteiro e boa parte do domingo
gravando, até que o resultado foi um Monstro de
Frankenstein das músicas e sons do rádio, sem fazer sentido
algum. Mas bastava apertar o play e… Bem, Samanta
estava certa em falar que aquilo era algum tipo de droga.
Fomos almoçar em seguida, e ela era incapaz de se
manter quieta, tremendo e esmagando o hambúrguer com
os dedos ao segurá-lo. Quando falei sobre meu plano de
usar a fita para ver se criava coragem para falar com Clara,
ela largou tudo, saiu correndo e me deixou sozinho para
pagar a conta. Só voltei a vê-la duas horas depois. Por sorte,
dividíamos o apartamento, sendo que a ouvi assim que
entrou batendo a porta e os pés, ainda agitada e sorrindo.
Ao me ver, Samanta colocou as duas mãos em meus
ombros e, olhando intensamente em meus olhos, grunhiu:
— Amanhã vamos pra biblioteca. Já falei com ela. −
Virou-se então para o sofá, tombou e dormiu até o dia
seguinte.
Eu não sabia o que sentir, temendo o significado real
daquelas palavras, ainda que tivesse alguma noção. A
biblioteca era o lugar onde Clara trabalhava. Tentei acordar
Samanta para mais explicações, mas não consegui nada. Na
única vez que ela abriu os olhos, rosnou até que eu me
afastasse. Parecia que a fita havia sugado a sanidade dela.
Quando me afastei, voltou a dormir.
Na manhã seguinte, Samanta estava imersa em seu
mau-humor matinal, só me permitindo a informação de que
encontraríamos Clara na biblioteca depois da aula. Depois
de horas de expectativa, quando finalmente chegamos lá e
eu a vi, mal pude acreditar.
A verdade é que eu nunca havia falado de verdade com
Clara. Ainda que fosse uma das bibliotecárias e tivesse me
atendido tantas vezes, minha timidez impedia que eu fosse
além do básico necessário. Imaginei que deveria ter sido
estranho receber o convite de Samanta, mas ela não
parecia surpresa, nervosa ou assustada.
Clara nos levou para uma sala nos fundos, um tipo de
depósito com prateleiras. Sobre uma mesa, havia um
aparelho de som.
— Como é que você disse que isso chama? − perguntou
Clara, amigavelmente.
— Mixtape Monstro − respondeu Samanta, com se fosse
uma vendedora. Ela puxou um pedaço de papel do bolso,
colocando-o na mesa com o mesmo ar de vitória. Era uma
coleção de rabiscos feitos com caneta azul, uma coisa
redonda cheia de algo parecido com dedos ou braços finos:
era um monstro. − Fiz até este desenho como capa pra fita.
O nome era novidade. Encarei-a, indagando
silenciosamente sobre a origem, mas ela me ignorou.
Samanta tinha mania de pegar palavras emprestadas dos
States. Certamente havia importado aquela - e talvez o
desenho - de algum filme.
— O Ruy já está chegando. Acho que ele vai gostar.
— R-Ruy? − perguntei, prevendo o pior.
— Meu namorado − declarou Clara, com um sorriso.
Eu podia ver nos olhos de Samanta que ela se divertia
muito com o fracasso da minha empreitada. Ela assumiu um
sorriso mordaz, olhando em minha direção de modo
pretensamente casual. Ela já sabia. Ia me torturar com
aquilo.
— Tudo bem, a gente espera.
Momentos depois, estávamos os quatro em torno da
mesa, e eu considerava seriamente abandoná-los com a fita
e ir procurar um buraco para me enterrar.
Ruy era basicamente um resumo de todos os caras que
haviam me batido na época da escola em uma versão
adulta e melhorada. Bonitão, simpático, forte, e o uniforme
indicava que estava no time de basquete da faculdade.
Cumprimentou-me com um aperto de mão forte e eu tentei
não parecer aterrorizado.
— Como fazemos? − perguntou, irritantemente
simpático.
— É só apertar play, − disse Samanta, se divertindo
com minha vontade óbvia de fugir. − Voilá!
No fim das contas, não fugi. Consegui, de algum modo,
aproveitar: ouvimos a fita uma vez, depois outra vez, depois
outra. Na quarta, nos agitávamos pela sala, contando
histórias, dançando e fazendo planos como se fôssemos
velhos amigos. Na quinta, saímos de lá, pegamos o carro de
Ruy e, ouvindo no toca-fitas, resolvemos fazer um bate-e-
volta para a praia no meio da semana.
Hoje, aquele tempo na estrada me é vago. O tempo na
praia, também. Mesmo olhando as fotos, me lembro de
pouco. Sei que, durante a ocasião, comecei a me sentir
mais confiante. Tinha certeza de que tinha chances com
Clara, notando que estava ficando mais próximo dela e nem
tinha medo de levar um soco de Ruy. Ele parecia animado
demais com tudo para se importar, e só não me tornei mais
seu amigo porque, mesmo sob efeito da fita, eu tinha algum
ressentimento, simplesmente por ele namorar a garota de
que eu gostava.
Voltamos na manhã seguinte, tendo passado a noite em
claro. Cada um seguiu seu dia, mas estava claro que tudo
havia mudado. Precisávamos fazer aquilo mais vezes.
Precisávamos continuar ouvindo a Mixtape Monstro.
Outra novidade era que tínhamos Fred. Ele era outro do
tipo de cara que me eclipsava com facilidade: alto, galante,
pinta de rebelde, com um estilo firme e impositivo que me
lembrava Samanta. Eu não sabia dizer exatamente quando
é que Fred havia surgido, mas certamente havíamos voltado
da praia juntos, pois vagamente penso tê-lo visto no carro.
Ele estudava no mesmo campus, me tratava com
familiaridade e, quando formamos o Clube da Fita, ele
passou a integrar as reuniões semanais.
Foi ele quem sugeriu a mim a tese que tomamos como
verdade: “a Mixtape Monstro revela algo sobre nós”.
“O lado que ocultamos, todos os nossos impulsos”,
explicou ele, por volta do terceiro ou quarto encontro nos
fundos da biblioteca. “A fita traz à tona todas as nossas
vontades e permite que enfrentemos a nossa sombra.”
Quando Fred repetiu isso ao grupo, eles balançaram a
cabeça em aprovação, exceto Samanta, que nunca parecia
acreditar muito nele.
— Achei que ela só deixava a gente agitada e feliz.
— Isso é parte do lado oculto − respondeu ele. − Somos
instruídos a manter a civilidade, conter impulsos, e isso nos
afasta do que realmente somos. A fita vai nos dar poder de
conquistar tudo o que queremos.
Samanta não parecia impressionada.
— Tanto faz, liga logo esse negócio.
Ele ligou, como ligou na semana seguinte e na outra.
Não exagerávamos mais, como no primeiro dia.
Descobrimos que a fita, depois de um estímulo de trinta
minutos, deixava uma dose de energia e vontade que
durava umasemana. Subitamente, éramos os melhores
alunos da faculdade em nossos respectivos cursos, e Ruy
levava o time a vitórias seguidas no campeonato. Eu era o
guardião da Mixtape, e havíamos prometido não mostrá-la
para mais ninguém.
Fred, enquanto isso, havia começado a passar mais
tempo só comigo, em uma amizade tão improvável quanto
a que eu tinha com Samanta. Ela, aliás, não parecia gostar
muito de quando ele chegava, evitando ao máximo dirigir a
palavra e geralmente ignorando-o sempre que saíamos.
Foi por volta do segundo mês que falei para Fred sobre
minha paixão por Clara, e a informação não foi surpresa
alguma para ele.
— É bem óbvio − comentou. − Você nem consegue falar
com ela sem a fita.
Era verdade. Mas, felizmente, o tempo sem o efeito da
fita era apenas nos minutos anteriores a cada encontro do
Clube. Depois, havendo oportunidade, passávamos horas
falando de livros, recomendando filmes um para o outro e
outros tantos assuntos que eu sabia que Clara não tinha em
comum com Ruy.
Tanto Samanta quanto Fred me aconselhavam a ser
mais direto, a me declarar, a “partir pra cima” de alguma
maneira, ao menos deixando expostas as minhas intenções.
Mas eu era incapaz, mesmo com a fita. E, mesmo com ela,
me sentia machucado por dentro ao ver Clara e Ruy juntos,
e me sentia pior porque achava que não tinha direito de
querer vê-los separados.
Tudo piorou quando descobri que eu não era o único que
estava dependendo da fita para lidar com as coisas.
Conforme intensifiquei as visitas à biblioteca para falar com
Clara, notei que ela estava mais distante. Por vezes, parecia
distraída, triste ou preocupada quando estava sozinha.
Até sua disposição nos encontros do Clube mudou. Na
primeira vez que Ruy não apareceu, ela já parecia triste,
quando chegou e mesmo ao sair. Fred falou no meu ouvido
que talvez as coisas estivessem indo mal no namoro e me
encorajou a aproximar para aproveitar a oportunidade. Eu
tratei a sugestão dele como ofensiva e imoral, mas é claro
que foi exatamente o que eu tentei fazer.
As visitas à biblioteca passaram a ser diárias, com
direito à reprovação de Samanta. A primeira vez que
perguntei se havia algo de errado, Clara desconversou,
dizendo que não era nada, mas seu sorriso triste mostrava
que ela sabia que eu não tinha acreditado.
Na segunda vez que Ruy não apareceu ao encontro, ela
saiu no meio da audição da fita, dizendo que não se sentia
bem.
— Obviamente há algo errado − disse Fred, me
chamando de lado para conversar.
Samanta estava com o humor agitado habitual que
tinha após ouvir a fita.
— Aquele idiota provavelmente fez alguma coisa.
Eu fiquei em silêncio.
— O que me preocupa não é tanto o que ele está
fazendo − observou Fred, deixando de lado os segredos
para falar com Samanta. − mas o motivo por ele não estar
aqui e o que isso vai acarretar.
Seguiu-se um silêncio confuso, até que Samanta
arregalou os olhos:
— Você está dizendo que…
— Sim. Eu tenho certeza. Ele está a caminho de se
tornar capitão do time, e já estão falando que existe um
olheiro da seleção nacional de olho nele. Ele não
conseguiria isso sem uma cópia da fita!
Aquilo me atingiu no fundo do estômago. Por um lado,
eu tinha finalmente um motivo real para odiar Ruy, mas, por
outro, me sentia incrivelmente triste com a ideia de uma
traição.
— Vou investigar algumas coisas. Tenho um plano −
finalizou Fred, sumindo da sala.
Eu e Samanta ficamos ali, pensativos, por mais alguns
instantes após sua saída.
— Bem… que tal almoço, agora? − sugeri, quebrando o
silêncio.
Samanta me olhou com uma expressão estranha,
aparentemente incapaz de conceber a mudança de assunto
tão abrupta, mas aceitou e fomos embora. Clara não estava
na biblioteca.
No dia seguinte, porém, ela estava. Desta vez, quando
lhe perguntei se estava tudo bem, a resposta foi outra:
— Posso copiar a fita? − Seu olhar era de súplica, mas
não amenizou meu choque. Sem minha resposta, ela
enrubesceu e argumentou, agitada: − J-juro que não vou
emprestar pra ninguém. Não quero parecer que estou
aproveitando de você nem coisa assim, eu só… −
engasgou, parecendo prestes a chorar, mas respirou fundo.
− Eu me sinto outra pessoa quando ouço, só quero me
sentir…
— Tá bom.
Clara parou de falar. Pensei, nesse momento, em falar
sobre Ruy, sobre como ele era um traidor e como eu sabia
que ela provavelmente estava sofrendo, mas eu me sentiria
um canalha maior do que ele se o fizesse. Sem falar muito
mais, fomos ao fundo da biblioteca, fizemos a cópia e fui
embora.
No dia seguinte, ela não estava na biblioteca. Perguntei
para outras bibliotecárias, mas elas não sabiam de nada.
Também não apareceu nas aulas.
As ausências se repetiram pelo decorrer da semana e,
chegando a sexta-feira, até Samanta estava preocupada. Eu
lhe contei o que ocorreu, mas só serviu para que me
sentisse pior.
— Falei que isso é como uma droga. Ela deve ter se
viciado.
Eu não tinha forças para argumentar. Fred também
havia sumido sabe-se lá para onde, concebendo o tal plano
de que havia falado.
— Talvez seja o fim do clube − arriscou Samanta. −
Talvez…
Ouvimos uma explosão de vozes no fim do corredor, e
por uma porta saiu Ruy, cercado por um grupo. Eles
carregavam um troféu e comemoravam, acompanhados por
fãs e um professor da faculdade que fazia as vezes de
treinador. Por um instante, o olhar de Ruy cruzou com o
nosso, mas ele se virou e foi embora.
Eu poderia ter corrido atrás, exigido que nos explicasse
o que estava fazendo e nos devolvesse a fita. O que eu fiz,
porém, foi ir para casa, derrotado. Lá, me sentido mais
frustrado do que nunca, peguei meu toca-fitas, coloquei os
fones e passei horas ouvindo a Mixtape. Daquela vez, ela
não me deixou feliz, nem agitado. Só me deixou com raiva,
frustração e uma vontade de destruir tudo, até que apaguei.
A primeira coisa de que me lembro depois disso foi de
acordar com a voz de Fred. A segunda foi notar que eu
estava sentado em uma cadeira, amordaçado, com os
braços e pernas amarrados. A terceira foi notar que, do
outro lado da sala, Ruy estava amarrado e amordaçado da
mesma maneira.
— Hoje é terça, dia de encontro do nosso Clube. Peço
desculpas a todos por chamá-los aqui tão cedo, espero que
entendam que esta é uma situação extraordinária.
A mesa de centro havia sido puxada para um canto, e
Fred caminhava no espaço livre como se falasse para uma
multidão, mas a única outra pessoa na sala era Clara, que
olhava alternadamente para ele e Ruy, aparentando
confusão. Estava sentada em uma das cadeiras ao lado da
porta, mas não estava amarrada.
Demorei alguns instantes para me dar conta de que, se
era terça, eu não tinha memória alguma do fim de semana
e nem da segunda.
— Algumas regras foram quebradas − continuou Fred.
— Eu... − começou Clara, mas a porta abriu com um
ruído e surgiu Samanta, esbaforida. Ela correu o olhar pela
sala, pausando em Ruy antes de focar em Fred.
— Você é louco? Primeiro as fotos, agora isso? Amarrar o
cara?
— Fotos? − perguntou Clara.
Fred balançou a cabeça, colocando a mão dentro da
jaqueta de couro. Eu podia jurar que ia tirar uma arma de lá,
mas tirou três fitas.
— Tudo a seu tempo. Primeiro temos que falar sobre isto
aqui. Ruy e Clara não se contentaram com as regras e
decidiram fazer cópias da Mixtape. − Seu tom era calmo,
casual, só endurecendo na frase seguinte. − Nós tínhamos
um trato.
Ruy protestou sob as amarras. Clara, sem qualquer
impeditivo, falou o que ele havia tentado dizer:
— Foi você que fez a cópia.
Fred balançou a cabeça novamente.
— Não, não fui eu. Foi o Tom.
Eu franzi a testa, na falta de capacidade de me
expressar de outra maneira. Eu não conhecia outro Tom que
não eu mesmo, então era certo que ele falava de mim. Mas
eu não havia copiado a fita para Ruy. E, mais estranho do
que a acusação, era o fato de que todos me ignoravam.
— Mas… Tom, do que você está falando? − perguntou
Samanta, olhando para Fred.
— É fácil de confundir, sei que somosparecidos − disse
Fred, ignorando o fato de que não nos parecíamos em nada.
− Mas eu sou o Fred!
— Oh, céus − gemeu Clara, levando as mãos à boca.
Samanta bufou e foi ao meio da sala para encará-lo de
perto.
— Já não bastasse você ficar sumindo, me fazer seguir
esse idiota o fim de semana inteiro… − Ela apontava para
Ruy. − … você agora amarrou ele e está bancando o doido?
Fred sorriu, olhando para mim de esguelha.
— Juro que tudo vai fazer sentido. Antes, preciso contar
uma história.
Ele caminhou até a mesa e pegou um álbum que o
aguardava fechado, abriu-o e seguiu em direção a Clara.
— Era uma vez um garoto que descobriu uma fita que
fazia as pessoas ficarem felizes. Ela revelava o potencial
escondido de todos, fazendo com que fossem melhores. Só
que o garoto tinha tanto potencial reprimido que achava
que precisava criar outra pessoa para representar esse
potencial. Então eu nasci. Só que ele não sabia que eu era
sua criação.
Pisquei e notei que não estava mais amarrado. Depois,
notei que não estava sentado, mas em pé, e de minha boca
saía a “voz de Fred”, que na verdade era a minha. À frente,
Samanta parecia terrivelmente confusa e, atrás dela, eu via
Clara horrorizada. Olhei para baixo. Na página aberta do
álbum, uma foto do Clube na volta da praia.
Éramos quatro. Não havia Fred! Nunca existiu!
Mas ele continuava falando por mim.
— O garoto queria ser querido por uma garota, então
sua amiga contou a essa garota sobre a fita, e que seu
namorado esportista poderia se dar bem com ela. Todos
viraram amigos, então o esportista pediu uma cópia da fita
só para ele. E o garoto fez uma cópia. − Fred pausou e
sorriu de maneira malvada. − Admito, eu menti: eu fingi
que era o Tom e fiz uma cópia para testar uma suspeita
minha sobre sua índole. E, conforme previa, o esportista
passou a ouví-la sempre, e passou a explorar todo seu
potencial e a ficar muito popular. Tão popular que começou
a sair com todas as garotas, apesar da namorada, e a
esquecer dela e dos amigos.
Minhas mãos viraram as páginas do álbum e eu pude
ver o quanto havia rendido o trabalho de paparazzi de
Samanta e “Fred” no fim de semana: uma coleção de fotos
de Ruy beijando uma ruiva de sobretudo em cenários
diversos. Meus pés me levaram à frente de Clara, e meus
braços entregaram a ela o volume com as fotos.
Ela demorou alguns segundos olhando as imagens, até
que soltou um gemido quase inaudível.
— Scarlet?
— Exatamente! − exclamou Fred, erguendo um braço. −
Acontece que a namorada do esportista, solitária, sonhou
com uma maneira de fazer com que ele voltasse a vê-la e,
com uma cópia da fita, imaginou como seria se fosse mais
interessante, se fosse uma espiã internacional chamada
Scarlet, como as femme fatales dos filmes de que tanto
gostava. E ouviu a fita até que fosse verdade, ainda que por
alguns dias. No começo, ela achou que era sonho, mas
depois não tinha mais certeza.
Ruy estava pálido e já não se mexia, encarando Clara
com os olhos arregalados.
— Ela estava certa: ele gostava muito de ruivas. E de
morenas, e loiras, é só olhar aí as fotos. A verdade é que ele
queria muito ficar com cada uma das garotas que
encontrava, agora que era quem era. O sucesso havia
subido à cabeça.
Clara levantou o rosto para encarar Ruy, e seu olhar
tinha apenas medo e nojo. Ele tentou argumentar alguma
coisa sob a mordaça, mas ela balançou a cabeça. Não havia
salvação.
— Entendo, assim, que eu fui a única coisa boa que
surgiu dessas fitas. − anunciou Fred, suspirando. − E
entendo que ninguém se oporá à destruição delas e à
extinção do Clube.
Ruy gemeu novamente, mas Samanta e Clara acenaram
positivamente.
— Tom, faça as honras − anunciou Fred, e meu corpo
era finalmente meu outra vez.
Notei, então, as três fitas na minha mão e soltei-as
como se tivesse nojo. Elas pousaram a meus pés e, depois
de um instante de hesitação, eu e Samanta as pisoteamos
até que não pudessem mais ser recuperadas.
***
Naturalmente, as coisas mudaram muito. Ruy e Clara
terminaram. Eu acabei falando para ela o motivo de tudo e,
contra minhas expectativas, começamos a sair e depois a
namorar.
Ruy conseguiu entrar na seleção, mas a Samanta usou
as fotos para acabar com a reputação dele rapidamente.
Até hoje existem garotas querendo socá-lo.
Fred e Scarlet não desapareceram. Na verdade, “ele”
havia mentido em mais uma coisa − a fita original ainda
estava em casa. De vez em quando, eu e Clara ouvimos a
fita e deixamos “Fred e Scarlet” darem uma volta.
Ah, sim: Samanta também havia sido afetada pela
gravação. Ela havia descoberto um talento especial para
estudar as estrelas.
Com o fim da faculdade, ela se mudou para uma
pequena cidade do norte, onde há uma estação militar e um
posto avançado de uma agência espacial. Depois de um
tempo sem contato com nenhum de nós, começamos a nos
corresponder há algumas semanas.
Recentemente, ela me disse que descobriu de onde
tirou o nome “Mixtape Monstro”. Ela me mandou as
imagens, os estudos, e os diagramas.
Eu e Clara não falamos mais de Samanta depois disso, e
eu não tenho mais coragem de abrir as cartas que chegam.
Passamos também a ter certo medo de deixar Fred e Scarlet
voltarem a sair.
Rodrigo Ortiz Vinholo - O magrelo do café. Facebook:
/rodrigoortizvinholo
Corra
O caso não solucionado
Cláudia Lemes
São Paulo, 1989
As buzinas lembravam guerreiros selvagens soprando em
chifres para invocar a fúria de deuses sanguinários; a cidade
estava imersa em seu estado caótico habitual. Dentro da
delegacia, André podia sentir, mesmo sentado à
escrivaninha, o desespero dos paulistanos para chegar em
casa após outro dia cansativo de trabalho. Ele se perguntou
como aquela cidade estaria em dez, vinte anos. Certamente
seria impossível com carros. O transporte público teria, em
algum momento, que melhorar. Não tinha como aquele
trânsito ficar ainda mais congestionado.
Coçou o olho e olhou em volta. A maioria dos colegas já
tinha ido para casa. Os que restaram trabalhavam em
silêncio, as costas curvadas sobre pilhas de relatórios,
alguns cigarros acesos formando nuvens fantasmagóricas
em volta dos policiais. O telefone na sua mesa tocou e ele
atendeu por puro impulso, desanimado. − É o Borges.
“Tenho algumas informações sobre o caso da menina, a
Lídia. Da Boneca da Tuxa.”
Ele empertigou o corpo, sentindo a coluna gemer de
dor. Fechou o punho e massageou a lombar. − É… tudo
bem, pode falar.
Já estava tão de saco cheio daquelas histórias ridículas
de que uma boneca teria assassinado a pobre menina Lídia
que pensou em colocar o telefone em cima da mesa e
deixar a interlocutora falar sozinha. Olhou para o bule de
café à distância e viu que estava vazio. A voz da pessoa
saiu com interferência chiada:
“Não foi a boneca que matou a menina. Foi o vizinho
dela.”
André franziu a testa. Era a primeira ligação com uma
informação não ligada a satanismo, pactos e o sobrenatural.
− Estou escutando. Pode me falar seu nome? A informação
é sigilosa.
“Não, não posso fazer isso, é arriscado. Mas posso te
dizer que vi o vizinho dela saindo do apartamento na noite
em que ela… morreu.”
Prensando o receptor do telefone entre o rosto e o
ombro, André pegou um bloco de papel e uma caneta Bic
cuja tampa se perdera há semanas. Rabiscou: vizinho
saindo/apartamento/noite crime.
— A qual vizinho a senhora está se referindo?
“Do apartamento 91.”
É alguém tentando ferrar com alguém. Mantenha ela na
linha.
— Muito obrigado pela sua cooperação, senhora. Preciso
saber se você mora no prédio e a que horas isso aconteceu.
Do outro lado da linha, silêncio. Depois o sinal de
ocupado.
Merda. André bateu o telefone no gancho com mais
força do que pretendera. Passou as mãos pelos cabelos. Só
queria que as pessoas se esquecessem desse caso, que
outra coisa bizarra viesse à tona para que parassem de
contar e recontar aquela babaquice da Boneca da Tuxa ser
um brinquedo assassino. Uma menina fora brutalmente
assassinada noEdifício Heloísa, e tudo o que falavam sobre
o caso pingava teorias da conspiração e forças demoníacas.
Ele precisava de algo real: uma arma do crime, um suspeito,
uma impressão digital, uma testemunha, qualquer coisa. O
caso já estava ficando frio.
Agora essa. Ele se levantou e enfiou as chaves e a
carteira no bolso. Tirou a .38 da gaveta e a encaixou no
coldre. Deu uma empurrada na cadeira com a coxa e se
preparou para ir para casa. A esposa já telefonara duas
vezes, falando que iria esperá-lo para jantar. Ele perguntara
sobre o estado de Maggie, a cadelinha do casal, que fora
castrada no dia anterior. “Tá bem, acabei de buscar ela no
veterinário. Tá quietinha, enfaixada. Precisei comprar uns
remédios pra ela. Tava caro, André.”
Mais aquela. Bom, pelo menos a Maggie estava bem.
Enquanto descia os degraus para o estacionamento, André
sentiu o estômago revirar e pensou no aconchego do
pequeno apartamento, no perfume do cangote da Ivone, e
em ver sua cadela novamente. Perguntou-se o que ela tinha
cozinhado para eles, já que parecia animada em vê-lo. É,
tinha tudo para ser uma noite boa, apesar da inflação,
apesar do trabalho que pagava muito pouco, apesar da
dificuldade de Ivone em engravidar, apesar das dívidas,
apesar do maldito caso da pobre menina. Boneca da Tuxa,
que merda.
Estava preso no congestionamento vinte minutos
depois, relaxado em seu assento, olhando a cidade cinzenta
através dos vidros do carro. O rádio tocava Another Day in
Paradise, do Phil Collins, e era deprimente pra cacete.
Apertou o botão e desligou o som, passando a ouvir sua
própria respiração dentro do veículo. Podia investigar. Podia
dar uma passada rápida no Edifício Heloísa, a uns quinze
minutos dali, e só bater na porta do apartamento 91 e
descobrir o que podia.
A Ivone ficaria preocupada. Você liga para ela de um
orelhão, vai ser rapidinho. Mexeu-se antes mesmo de tomar
uma decisão, girando o volante para a direita com um olhar
rápido no retrovisor. Pegou uma ruazinha perpendicular e
seguiu para o Largo da Batata.
Estivera no Heloísa algumas noites antes, junto com
outros policiais e o pessoal da perícia, quando a menina foi
encontrada morta na cama, a descoberta feita pela mãe,
que não vivia com o pai da criança. A mãe continuava sendo
a principal suspeita, mas havia incongruências, como a
entrevista com a vizinha do prédio de frente, “a curiosa do
binóculo”, que afirmou veementemente em diversas
ocasiões que vira a mulher sentada na poltrona, assistindo
televisão a noite inteira. “Já era tarde e a menina devia
estar dormindo, porque não saiu do quarto”, ela insistira.
“Eu fico na sacada, fumando e lendo, porque meu genro não
gosta do cheiro de fumaça, diz que é alérgico. E ela estava
lá sentada, nem levantou. Tava assistindo Tieta, aquela
pornografia. Bem, era de se esperar de uma mãe solteira,
né? Mas a mulher não é assassina só porque é piranha.” Ao
ser questionada, no entanto, sobre mais alguém no
apartamento, a mulher respondera que não entrara
qualquer pessoa ali, ou ela teria “visto”.
Outra coisa também incomodava André Borges. Ele
sabia, por estudo e experiência, que nunca se podia ter
certeza que um indivíduo estava mentindo. Por mais que
fosse possível estudar a linguagem corporal (ao contrário do
que se divulga, quem está mentindo não desvia o olhar para
a direita e não se mexe mais. A tendência é que façam
contato visual e fiquem mais parados), nunca podemos ter
certeza. No entanto, quando se vê uma mãe sofrendo a
perda de uma criança, é possível enxergar quando aquilo é
real. Com a mãe de Lídia, era real. A mulher estava
despedaçada, beirando o desespero, quase suicida.
Ao entrar no edifício, tarefa simples com o distintivo de
investigador, ele chamou o elevador e acendeu um cigarro.
A porta de madeira fora arranhada por chaves e colados a
ela havia pedaços de papel de algum aviso já arrancado. O
prédio era bem modesto, e bem parecido com o lugar onde
ele morava com a esposa.
Ele entrou no pequeno elevador e apertou o 9. Sozinho,
pensou em descansar, no fim de semana que estava
chegando, em levar Ivone para passear um pouco no
parque, talvez sugerir que eles parassem de tentar ter um
filho, pelo menos enquanto a economia estivesse daquele
jeito. Nunca sabiam quanto um litro de leite custaria no dia
seguinte. Não era sensato ter um bebê naquelas condições.
E numa época onde bonecas arranham meninas durante o
sono, adicionou à equação, com um gosto amargo nos
lábios. Definitivamente não era a hora certa. Havia
simplesmente violência demais lá fora. Ele soubera aquela
semana que tantos homicídios estavam acontecendo na
Flórida que a polícia do condado de Dade tivera que alugar
um frigorífico móvel do Burger King para poder armazenar
os cadáveres. O mundo parecia estar indo para um caminho
sem volta.
O elevador parou com um tranco. Ele empurrou a porta
e saiu, virando à direita no corredor. Podia ouvir televisores
ligados dentro dos apartamentos, a música de apresentação
do Jornal Nacional, depois a voz de Sérgio Chapelin
anunciando as notícias do dia.
Ele parou diante da porta do apartamento 93, onde a
garota fora encontrada, usando meias e camisola cor-de-
rosa, com o corpo retalhado como se tivesse servido de
cabo de guerra para dois ursos famintos. “A boneca!”,
berrara a mãe, amparada por policiais. “A boneca sumiu!”
André deu alguns passos até a porta ao lado, pintada de
branco, com o 91 em letras douradas. A mão fechada parou
no ar antes de bater. Ele sentiu uma onda de apreensão, de
mal estar, de medo. Então bateu três vezes, com força
suficiente para que fosse ouvido em qualquer cômodo do
apartamento.
A porta abriu de imediato. Não dois ou três segundos
após a batida, e sim quando a mão de André ainda estava
erguida. Do outro lado do limiar havia um homem alto,
magro, e de aparência neutra, asseada. Não era belo,
exatamente, mas não causava repulsa.
André fez uma avaliação rápida com os olhos treinados:
usava tênis, embora estivesse em casa, calça de moletom
preta, camiseta sem imagem ou estampas, azul escura, e
tinha a barba bem feita e cabelos negros penteados. Pele
branca, como a de André. O que o incomodou foram os
olhos, tão fundos, cobertos por sobrancelhas grossas como
se elas fossem uma marquise. Tinha aquele tipo de olheira
acinzentada, formando uma sombra não só abaixo, mas ao
redor dos olhos. André sempre as achara charmosas numa
mulher, como resquícios de maquiagem de uma noite
agitada. Mas, naquele homem, elas emitiam um sinal de
cautela.
— Sim?
Voz rouca, mas amigável.
— Boa noite, me desculpa incomodar. Sou André Borges,
investigador da polícia − mostrou o distintivo, mas o
homem não levou mais de meio segundo olhando para ele.
− Só queria te fazer algumas perguntas sobre o caso de
homicídio de Lídia Antunes.
— Entre, por favor, senhor. Estou com uma panela no
fogo e não quero… sabe como é, preciso ficar de olho.
Ignorando seus instintos, André esfregou os sapatos no
capacho e entrou. O homem fechou a porta e caminhou a
passos largos até uma cozinha bem iluminada. Ele olhou em
volta: piso de tacão, dois sofás de estofado bege, abajur
com base de porcelana rosa cintilante, televisor em cima de
um móvel de madeira. Nas paredes, pinturas de frutas e
cenários bucólicos. Uma pintura que parecia não combinar
com as outras, de uma cena submarina, com um ser que
parecia um Kraken, cheio de tentáculos, e cuja boca era um
olho. Uma mesa redonda, com tampão de vidro, ficava no
canto, cercada por quatro cadeiras de madeira clara. Em
cima, dois guardanapos americanos com um copo em cada
um.
Na cozinha, o homem misturava molho de tomate numa
panela.
André avistou um cinzeiro em cima de uma prateleira.
Apagou o cigarro nele.
— Qual é o seu nome, senhor?
— Ah, desculpa por não ter me apresentado. Sou João
Carlos Sampaio.
— Há quanto tempo mora aqui?
O homem deu de ombros e olhou para cima para
calcular. André notou que a cozinha era limpae organizada.
Dois pratos jaziam vazios na pia, esperando a refeição. −
Uns oito, nove anos. Desde que me separei.
Ele não parecia estar desconfortável com a conversa.
Na verdade, falava com bom humor, como se não tivesse
sempre a chance de conversar.
— E o senhor mora sozinho, seu Sampaio?
— Sim, moro. − Distraído, virou o botão do fogão,
limpou as mãos num pano de prato, e com uma colher,
começou a servir os pratos com espaguete.
— Perdão, então, senhor Sampaio, mas para quem são
os dois pratos?
Ele finalmente olhou para André. Estava prestes a
responder, quando desviou o olhar depressa, para algo
atrás do detetive, na altura de suas coxas. André se virou
para seguir o olhar, completamente ciente, com algum
sentido de intuição, de algo perto de si. Os pelos na nuca se
arrepiaram e ele sentiu o coração congelar, sabendo que
veria algo terrível.
Havia apenas espaço atrás dele, no entanto. Nada
estava à espreita.
O calafrio não passou. Havia se ancorado em André.
Algo estava errado ali, e ele se esforçava para encontrar
indícios daquilo, motivos reais para justificar aquela
sensação. Volte para casa, André. O pensamento tinha a voz
de Ivone. Ele deu um passo para trás. − Desculpe te
incomodar, senhor. − Conseguiu falar, a garganta seca. −
Vou deixar meu telefone e peço para que ligue caso se
lembrar de algo relacionado ao…
O homem deu um passo em direção a ele, interessado,
parecendo gostar de vê-lo mudar o comportamento.
— Assassinato da menina?
— Sim. − Não valia a pena. Ele aprendera a confiar em
seus instintos e eles o imploravam para sair daquele
apartamento.
José Carlos estendeu a mão, parecendo querer tocá-lo.
— Não vá ainda, senhor Borges, eu me lembro de muita
coisa daquela noite e gostaria de dividir com alguém… −
ele sorriu.
André estava pensando em qual desculpa daria quando
perdeu o contato com o chão. Percebeu que estava caindo,
a vertigem como uma bola de ar gelado na barriga. O
impacto teve o som de estalo e a dor irradiou a partir do
cóccix, tingindo a pelve, fazendo André gemer de angústia.
Uma sombra bloqueou sua visão do tubo fosforescente que
era a lâmpada da cozinha. Cabelos de mulher. Algo gelado
sendo pressionado contra o nariz dele. O cheiro de éter. O
nariz queimando. O mundo perdendo a nitidez, cores
borradas, o branco virando leite.
A perda de consciência, enfim, e a voz de José Carlos,
no fundo de tudo:
—… você fez bem, querida.
***
Antes de abrir os olhos, André percebeu que já fazia alguns
minutos que seu cérebro havia começado a mandar
mensagens para ele. Uma delas era: “Ivone está
preocupada”. A outra: “Corra”.
Quando afastou as pálpebras, a visão focou num objeto
que estava bem a sua frente. O pânico fez com que André
se mexesse para se erguer, se afastar daquilo, mas ele
soube antes mesmo de sentir a restrição de seus
movimentos; estava amarrado. Corda de telefone, parecia.
Sentiu também a ausência da arma e do coldre por baixo do
casaco.
A boneca, seu sorriso débil e olhos mortos, havia sido
dobrada para que parecesse estar sentada no chão da sala.
Os cabelos sintéticos, arrepiados, lembravam palha suja de
sangue. O vestido e os membros de plástico também
estavam melecados de vermelho. Mas André só conseguia
fitar as unhas, não ovais e vermelhas como unhas
femininas, e sim pontiagudas como presas, de uma cor que
lembrava ossos. Se não tivesse visto o corpo de Lídia,
confundiria a substância grudada àquelas garras como
pedaços de bife de fígado. Sabia que eram pedaços da
menininha que desejara uma boneca daquelas com o ardor
típico da infância.
Ele fechou os olhos. A razão formou a narrativa: é um
louco, apenas um louco que usou a boneca como arma para
maltratar aquela criança. Deve ser um pedófilo sádico, um
filho da puta desses que não consegue ver uma pessoa
como uma pessoa. André, você tem que negociar com ele,
tem que sair daqui. Ivone deve estar enlouquecendo. Você
precisa voltar para sua esposa.
— Pode abrir os olhos, André.
Ele obedeceu. A voz de José Carlos combinava com a
postura calma dele, arrastando uma cadeira e se sentando
bem a sua frente. André moveu os olhos em direção à
janela, mas as cortinas estavam bem fechadas.
— Eu também levei um tempo para acreditar.
André sentiu dor no pescoço, e a única forma de aliviá-
la era encostando a cabeça no gélido piso de tacão. E,
naquele ângulo, ele não tinha escolha senão olhar para a
boneca loira.
Ela sorriu.
Ele sentiu a bexiga esvaziar-se num baque de aflição, a
urina morna ensopando as calças.
Ah não é possível. Se uma coisa dessas acontece, se
isso existe, então não há Deus, não há Deus, porque ela
está ali e está se mexendo e meu Deus o que é isso não
pode ser não pode ser Jesus por favor me ajude e André
começou a chorar. Não podia ser, não podia. Era o mal. O
mal como algo que existia além das pessoas. Não era
possível.
— É isso aí, André. − José falou de forma doce e quase
melódica. − O bom da nossa era é que ninguém acredita. As
evidências e os relatos e as testemunhas estão todas diante
de nós. E não importa, porque não acreditamos. Ela pode
matar o quanto quiser, o quanto precisar para acabar com
sua sede e, no final, isso não passará de uma história, uma
lenda…
André apertou os olhos porque não queria mais ver. E,
na escuridão que falhou em fornecer refúgio, ele ouviu o
plástico bater de leve contra a madeira do piso. E soube que
ela se aproximava dele.
www.lendasurbanasdobrasil.com.br
Artigo: 03/07/2017
A Boneca da Tuxa
Uma das mais famosas lendas urbanas é a da Boneca
da Tuxa. Sonho de consumo de toda menina nos anos 80, a
boneca ficou famosa devido ao caso da menina Lídia
Machado, morta em seu apartamento um dia depois de ter
ganhado a boneca de aniversário. O caso de Lídia não foi
resolvido, mas os boatos correram na época de que teria
sido a boneca, que não foi encontrada pela polícia. Para
acrescentar mais mistério, alguns dias depois da morte da
menina, um dos investigadores do caso, o detetive André
Borges, desapareceu após deixar o trabalho para ir para
casa. Deixe seu comentário sobre o caso aqui no site: a
boneca da Tuxa realmente matou a menina Lídia?
Cláudia Lemes - Está bem atrás de você Email:
claudiaslemes@hotmail.com
Repuxo
Água doce nos olhos
Kali de los Santos
Eu me lembro de estar em meu quarto, olhando a rua pela
janela, no momento em que ela chegou. Era um daqueles
dias que a chuva parece não querer cair, mas sim ficar
suspensa no ar; como se ela quisesse se materializar em
nuvem novamente logo antes de atingir o chão. Shout
estava tocando no rádio, e eu cantarolava a melodia do
refrão. Em minha mão, segurava uma caneca já morna de
chá, sem muita vontade de terminá-la, mas também sem
vontade de levá-la para a cozinha. Não me virei quando ouvi
o barulho da chave girando na fechadura.
“Noite,” disse eu, em voz alta, para que Joana pudesse
me ouvir da sala, esperando o barulho da maçaneta e
alguma resposta. A resposta não veio, tampouco o som da
porta, mas sim um ruído de água caindo, como se goteiras
tivessem aparecido dentro da casa. Não me virei; continuei
contemplando a rua enquanto a última luz do sol, velada
pelas nuvens, desaparecia e deixava para trás o céu cinza
escuro. O barulho de água aumentou. O vulto de Joana se
aproximou em minha visão periférica até que senti uma
mão me segurar pelo ombro e me puxar bruscamente para
fora da cadeira. Uma exclamação ficou presa em minha
garganta quando meu corpo decidiu que gritar era menos
importante do que se equilibrar; a caneca caiu e salpicou o
chão com pedaços de cerâmica branca, o resto de chá
espalhando-se por entre os cacos. Tentei me segurar no
parapeito da janela, sem sucesso, e então me segurei na
cadeira, que acabou virando e caindo junto comigo. Depois
de respirar fundo algumas vezes, notei que Joana estava
parada, estática, de frente para a janela. A água que
escorria dela se juntava ao chá. “O que foi isso?” Perguntei,
ainda ofegante. Algunssegundos se passaram sem que ela
dissesse nada. “Tá tudo bem?” Questionei novamente, já
me levantando, sem obter resposta.
Em pé, olhei para seu rosto e passei os segundos
seguintes apenas encarando-a, incrédula. Joana tinha os
olhos abertos, arregalados, talvez maiores que o normal; as
íris de um marrom muito claro se expandiam e se
misturavam com os entrelaçados de linhas vermelhas que
ocupavam quase toda a esclera. Em seu rosto e pescoço
encharcado havia marcas roxas e azuis de veias explodidas
e contorcidas, e seus cabelos caíam pelos lados da face
escorrendo água sem parar, como se ela ainda estivesse na
chuva. Os pelos do meu corpo se arrepiaram com a visão.
“Jô,” comecei, uma nova onda de calafrios passando
pelo corpo. Não conseguia parar de encará-la, de olhá-la nos
olhos, e começava a sentir o chá tentando subir meu
esôfago. “Jô, o que que aconteceu?” Questionei, com a voz
fraca. Ela não se movia, não falava, não piscava. Meus pés,
em pantufas, estavam molhados da água que caía dela.
Aproximei-me e levei minha mão trêmula até o seu ombro,
ar preso em meus pulmões. Um segundo se passou sem
que nada acontecesse. Joana continuava estática, como que
hipnotizada. Expirei. “Consegue me ouvir?” Indaguei, minha
mão agora apertando seu ombro sobre a jaqueta jeans. A
falta de reação me assustava, mas também me dava
coragem para me aproximar. Segurei-a pelos ombros,
perguntando o que tinha acontecido, e se ela podia me
ouvir ou me ver, mas nada surtia efeito, nada tirava Joana
daquele transe.
Tentei então movê-la e consegui, mas ela mais
cambaleava do que andava, os olhos fixos em um ponto
além da janela. Parei no meio do quarto e pensei no que
estava fazendo: levá-la para seu quarto, no andar de cima,
estava fora de questão. Soltei-a e ela ficou exatamente
onde estava, parada, encarando a janela. Molhada de água
e de chá, tremendo de frio e de nervoso, me afastei de
Joana e caminhei até o vidro, que parecia ter um filtro que
embaçava e acinzentava a paisagem. Eu não conseguia ver
muito − e, com certeza, nada que chamasse a atenção −
através dele. As luzes da rua já estavam acesas, borrões cor
de laranja na chuva. Meu maxilar batia contra o resto do
meu crânio freneticamente. Joana continuava imóvel.
Novamente a segurei pelos ombros e a conduzi até a
sala, por vezes perdendo o equilíbrio com seu peso quase
morto em cima de mim. A água que caía dela atrapalhava
tanto o movimento, quanto meus pensamentos: de onde
está saindo isso?, eu me perguntava. Joana não protestou,
apenas se deixou levar, cambaleante, sem nunca tirar os
olhos da janela. Deixei-a parada em frente à mesa de centro
e voltei até a porta de entrada para fechá-la. Finos pingos
de chuva molhavam o linóleo lustroso. Ao fechar a porta,
virei para Joana. A água que escorria dela já havia se
espalhado por debaixo dos sofás.
Seus olhos pareciam estar aumentando de tamanho.
Tranquei a porta ainda encarando-a, pois sentia dificuldade
de desviar o olhar, como se houvesse um imã que me
prendesse àquela visão desconfortável. Meus olhos
começaram a doer, mas minha cabeça não obedecia ao
comando de virar, assim como minhas pálpebras não
obedeciam ao comando de se fechar, nem para piscar.
Consegui mover as mãos com certa dificuldade e levantei-
as, trêmulas, para a altura do rosto, tapando a área onde
Joana estava. Consegui fechar meus olhos e os mantive
fechados por alguns segundos. Sem querer olhá-la, mantive
as mãos onde estavam, criando uma barreira entre nós
duas.
Decidi ir de lado até a escada, que ficava de frente para
a porta, já que tinha uma parede separando-a do resto da
sala. Ao subir o primeiro degrau, segui virada para onde
Joana estava, pois tinha a sensação de que, se me virasse,
ela apareceria na minha frente. Subi a escada com cuidado,
para não tropeçar nos degraus irregulares, largos de um
lado e muito pequenos de outro. Acendi a luz com os olhos
fechados e abri-os lentamente, sentindo que Joana estaria
na saleta onde a escada desembocava. Mas ela não estava
lá. As enciclopédias, a escrivaninha, o toca-discos e a
cadeira de madeira estavam tão normais que senti náuseas.
Alguma coisa precisava estar errada. Quando passei os
olhos pela escrivaninha uma segunda vez, vi o plugue para
telefone, recém colocado, e ainda sem aparelho. Apertei
meus punhos, frustrada. Se já tivéssemos comprado o
telefone, agora eu poderia ligar para alguém − Ivan,
provavelmente − e pedir ajuda. Mas o único telefone da
casa estava no andar de baixo e, para chegar nele, eu
precisaria passar por Joana.
Com o canto do olho, espiei a escada ao meu lado e lá
embaixo tudo parecia igual. Antes de me arriscar, porém,
precisava trocar de roupa e me secar; quem sabe até pegar
as galochas amarelas de minha mãe. Cada novo cômodo
escuro me trazia a antecipação de ver Joana. Quando acendi
as luzes do corredor, do quarto de meus pais e do banheiro,
o fiz de olhos fechados, e só os abria completamente
quando via por entre os cílios que não havia nenhum vulto
no recinto. Eu não saberia explicar o motivo dessa
sensação. Talvez fosse por eu ter recém visto Uma Noite
Alucinante no cinema, mas eu agora tinha certeza de que
Joana estava possuída, de alguma forma. Evitando me olhar
no espelho do banheiro, apenas peguei uma toalha no
armário embaixo da pia e voltei para o quarto. Peguei
roupas secas do armário de minha mãe, assim como as
galochas e, após me secar, me vesti. Aproveitei e peguei
também uma capa de chuva que ficava junto das galochas.
Após enrolar a capa debaixo do braço, saí do quarto. O
corredor, com a luz acesa, parecia muito mais longo do que
o normal; a porta para o quarto de Joana fechada bem no
meio do caminho. Voltei até a saleta, de onde poderia
descer para o primeiro andar e, depois de olhar para o
plugue de telefone vazio, como que esperando que um
telefone aparecesse, desci a escada.
Logo vi que calçar as galochas havia sido uma boa
decisão. A água que escorria de Joana já havia passado pela
escada e chegado em meu quarto. Porém, quanto mais
degraus eu descia, mais eu percebia que o barulho de água
não vinha mais da sala. Joana havia voltado para o meu
quarto, e quando eu olhei por entre os cílios vi que ela
estava de costas para mim, encarando a janela que dava
para a frente da casa. Desci o último degrau e tentei ser
silenciosa ao ir para o lado contrário de onde ela estava,
atravessando a sala até o canto onde ficava o telefone,
olhando para Joana de vez em quando, para garantir que
não havia se movido. Ela permanecia estática. Disquei o
número de Ivan, nosso amigo e vizinho, girando o discador
com a mão trêmula. O telefone chamou algumas vezes
antes que sua mãe atendesse.
“Alô?”
“Alô, quem fala?”
“É... é a Adri, Dona Elisa, a-aqui da rua.”
“Ah, tudo bem, querida? Quer falar com o Ivan?”
“T-tudo, sim, quero, sim. Obrigada.”
“Só um momentinho que eu vou chamar!”
Esperei na linha enquanto ouvia a voz alegre chamar
por Ivan, avisando que eu aguardava. Eu sabia que o
telefone deles ficava na sala, então não poderia dar muitos
detalhes; isso se as falhas na minha voz já não tivessem
denunciado que algo estava errado. Precisava que ele
viesse até a minha casa.
“Adri?”
“Oi, Ivan, tu tá livre agora?”
“Não sei ainda, acabei de jantar, por quê? Tu e a Jô vão
fazer uma session?”
“Não, é, ahn, sim, vamos, não quer vir gravar umas fitas
com a gente?”
“Bah, mas nessa chuva?”
“Tu mora aqui do lado. Só vem até aqui, por favor?”
“Tá tudo bem, Adri?”
“Tudo, quer dizer, mais ou menos. É a Jô, não sei bem o
que tá acontecendo, na verdade. Não quero que tu fale pra
ninguém, pode só vir aqui me ajudar, por favor?”
“Claro, claro. Tô indo aí, até mais.”
Sem dizer nada, coloquei o telefone no gancho.
Atravessei a sala de volta até a porta de entrada.
Rapidamente conferi se Joana continuava na janela do
quarto e constatei que sim. Vesti a capa, abri a porta, dei
alguns passos para fora e fiquei esperando Ivan na chuvafria de maio, meu corpo inteiro se contraindo em espasmos
que eu não saberia dizer se eram de frio ou de medo. Ele
não demorou muito para chegar, segurando um guarda-
chuva preto que não surtia muito efeito naquele tipo de
chuva. Caminhou pelo largo corredor do lado da casa até a
entrada, onde eu o aguardava.
“Por que tu tá aqui na rua, na chuva?” Ele perguntou, se
aproximando. “Vamos entrar.”
“Espera, preciso falar contigo aqui fora antes.” Ele
assentiu para que eu prosseguisse. “A Jô chegou há pouco,
e, e, e ela tá parece que machucada, eu... no rosto, nas
mãos, nos olhos, mas é que não parece que ela apanhou,
nem nada assim, e tem muita água, como se tivesse saindo
dela e eu, eu não sei explicar.” Respirei fundo. “Eu não
consigo olhar pra ela direito.”
“Tá, calma, ela não tava saindo com aquele darkzinho
lá? De repente ela tomou alguma coisa com ele e não bateu
bem, ou, se ele bateu nela a gente vai lá e quebra ele,
também.”
“É que não parece ser isso. Não ri, tá? Mas eu acho que
ela tá possuída.”
“Vamos entrar, eu vejo ela e a gente pergunta pra ela o
que tá acontecendo, pode ser?” Ele respondeu, segurando
um riso no canto da boca.
“É que ela não tá respondendo. É sério, Ivan. Olha a
água que tá dentro de casa,” eu disse, apontando para o
chão através da porta aberta. “Isso tá saindo dela, não tem
goteira, não tem nada. Eu não sei o que a gente pode
fazer.”
“Adri, tu me pediu ajuda. Eu tô aqui. Vamos entrar e me
deixa ajudar como eu acho melhor, pode ser? Eu já tô todo
molhado aqui.”
“Tá, pode ser.” Concordei, e meus ombros relaxaram um
pouco. Naquele momento, senti certa esperança de estar
errada, de entrar em casa e de repente Joana começar a
falar e contar que era tudo uma brincadeira ou, na pior das
hipóteses, que havia apanhado do namoradinho. Eu me
lembro da sensação de como se ela fosse um fantasma,
algo que nunca vai voltar a existir e ficará para sempre
intangível em minha memória. Essa foi a última vez que
senti esperança. Entramos.
Ivan caminhou na frente, seus passos firmes jogando
água para os lados. Ele deixou o guarda-chuva ao lado da
porta enquanto eu tirava a capa. Joana permanecia parada
encarando a janela.
“E aí, Jô?” Perguntou Ivan, de onde estava, antes de
avançar em direção ao meu quarto.
“Calma, Ivan” eu pedi, segurando seu braço. “Tenta não
olhar ela nos olhos, tá?”
Ivan respirou fundo antes de balançar a cabeça
afirmativamente.
“Jô, eu vim até aqui nessa chuva, vamos fazer alguma
coisa? Hoje tem a Kátia Suman na Ipanema, vamos gravar o
programa dela numa fita?”
Joana não dava sinais de estar ouvindo.
“Tá, Adri, eu vou precisar mexer nela, assim não vai
adiantar nada.”
“Ivan, tu não tá vendo que tá jorrando água dela? Tu
não entendeu ainda que não tem como resolver essa
situação com conversa?”
“Tá, Adri, então não sei pra que eu fui chamado até
aqui,” ele disse, bufando. “É verdade, sei lá de onde tá
vindo essa água toda. Mas não vou ficar aqui parado
olhando, a gente precisa tentar resolver de alguma forma.”
Respirei fundo antes de assentir. Ivan foi até Joana e a
virou pelos ombros. Por alguns segundos, fiquei esperando
que algo acontecesse.
“Ivan? Jô?” perguntei, a voz saindo aguda, direto da
garganta. Eles não responderam. Então, a água que escorria
de Joana parou. Mas não tive tempo de concluir nada a
respeito; entre uma batida e outra de meu coração
acelerado, a água voltou, dessa vez se derramando de Ivan.
Entendendo o que estava acontecendo, me joguei em sua
direção.
“Para, Ivan! Para! Solta ela!” Eu gritava. Tentei arrancar
as mãos de Ivan dos ombros de Joana, mas ele a segurava
com muita força. As íris de Ivan começaram a expandir em
pequenos jorros de verde e finas veias vermelhas
manchavam o branco dos seus olhos, mais e mais a cada
segundo. Uma veia em seu pescoço estourou, e eu senti o
tremor em seu braço logo antes das veias das mãos
arrebentarem.
Em uma última medida desesperada, passei por baixo
do braço de Ivan e me coloquei no meio deles, de frente
para Joana. Agora que não havia mais água escorrendo
dela, eu pude ver que lágrimas jorravam de seus olhos
inchados. Senti Ivan caindo atrás de mim, mas não pude me
mover para ajudá-lo. Ouvi os gritos dele, senti seu corpo se
debatendo nos meus calcanhares, mas meus olhos estavam
presos aos de Joana. Suas íris agora estavam vermelhas e
se expandiam além das pálpebras, serpenteando em todas
as direções, e desse olhar eu sentia um chamado. Senti o
calor do sangue se espalhando enquanto minhas veias se
rompiam pelo corpo inteiro. Meus olhos ardiam. Meus
pulmões pareciam diminuir, e minha respiração ficou rasa.
Senti água começar a escorrer de meus cabelos.
Os olhos de Joana se fecharam, mas eu ainda via a
mancha vermelha.
Eu me lembro de estar em meu quarto olhando para a
rua pela janela no momento que ela chegou, e então eu
lembro de todo o resto.
Joana caiu.
Eu me lembro de estar em meu quarto olhando para a
rua pela janela no momento que ela chegou. Eu lembro de
novo e de novo.
Meu corpo inteiro está dormente. O barulho da água
caindo já não me incomoda. Acho que gosto dele. Os gritos
de Ivan se tornaram abafados, como se viessem de trás de
uma catarata. O rádio ainda está ligado, mas não consigo
distinguir o que está tocando. No fundo da minha cabeça,
ouço minha própria voz cantarolando o refrão de Shout: “let
it all out, these are the things I can do without”. A cada
movimento que faço é como se mil agulhas penetrassem a
minha pele por centímetro quadrado. Olho para baixo. O
corpo de Joana está inerte aos meus pés. Ainda sinto Ivan
se debatendo.
Eu me lembro de estar em meu quarto, olhando para a
rua pela janela no momento em que ela chegou, e agora
estou aqui. A última luz do sol entra pela janela. Eu me
lembro de estar em meu quarto e ouço um barulho de
chave girando na fechadura.
Kali de los Santos: Pirigótica que cultua a morte. Face:
/kalodelossantos E-mail: abr.delossantos@gmail.com
Caçadora
Minha vizinha mata monstros
Denise Flaibam
Marty Fontaine tinha se mudado recentemente para a casa
em frente à esquina da Rua Kennedy. Sua mãe era quase
uma nômade, ainda adepta dos preceitos de paz e amor e
do visual espalhafatoso da juventude. Solteira e
desajustada, ela adorava encontrar bicos temporários que
pagassem seus discos dos Ramones, os muitos maços de
cigarros e as pizzas que ela, Marty e as gêmeas de 11 anos,
Georgie e Star, jantavam todas as noites. Quando dava na
telha, tirava os filhos da escola e viajava até outra cidade
para recomeçar e redescobrir.
Para Marty, estar em Coney Mountain era só mais uma
coisa temporária. Em algumas semanas ou meses, ele, a
mãe e as irmãs fariam as malas e partiriam para outro lugar
remoto, então qualquer história ou lembrança que pudesse
criar ali pouco importava realmente.
Pelo menos até o Dia das Bruxas.
Sua mãe tinha um encontro com um ativista dos direitos
dos animais e ficaria fora a noite toda. O comando para
Marty foi de “cuidar das meninas”. O que, na prática,
significava deixar o controle da televisão nas mãos das
garotas e se trancar no quarto para ouvir seus vinis.
Foi quando olhou pela janela.
Marty já vira Bobby Murdock na escola antes. Ela estava
sempre vestida com a capa de chuva amarela,
independente da previsão do tempo, calças jeans surradas e
brincos enormes. O cabelo era uma confusão armada de
cachos castanhos, a mesma cor da pele. Baixa e bastante
bonita. Marty tinha sorrido para ela uma vez. Tentado, pelo
menos. Ela nem olhou de volta.
De acordo com as más línguas, a garota era
amaldiçoada igual ao avô, alguma superstição idiota que o
pessoal de Coney Mountain tinha. Não explicaram que
maldição era essa, mas Marty estava ali havia três semanas
e mal conversava com seus colegas. Qualquer que fosse a
história, logo se tornaria uma lembrança.
Ainda assim, ele ficou parado atrás da cortina, espiando
o percurso apressado da garota até a calçada. Ela carregava
um saco – deaçúcar, talvez? – e despejou uma trilha pelo
caminho até a rua, e então voltou para a varanda do
casarão. Apoiou o saco num dos pilares e as mãos na
cintura, sorrindo satisfeita. Ergueu os olhos e encontrou o
observador, e fechou a porta com tanta força que Marty se
sentiu mal por estar espiando.
Provavelmente algum tipo de decoração para o Dia das
Bruxas, ainda que Marty não tivesse visto abóboras ou
esqueletos de brinquedo pela cidade. Ao perguntar para um
colega de Aritmética, a resposta que recebeu foi: “Você vai
ver, cara. A festa aqui é única”. De novo, ele não se
importou. As gêmeas não gostavam de pedir doces nem de
se fantasiar e sua família era desconhecida o suficiente para
que ninguém viesse importuná-los em busca de “gostosuras
ou travessuras”.
Marty se sentou na cama, buscando a caixa velha cheia
de vinis.
Um grito estourou o silêncio do lado de fora, o som
agudo e desesperado. O garoto alcançou a janela, com
medo de ter sido a vizinha. Não havia ninguém lá. O pôr-do-
sol já desaparecera no horizonte. Densa neblina se
espalhava pelo asfalto velho. Sua bicicleta estava mal
estacionada no quintal da frente, encoberta pela névoa.
O grito se repetiu; mais próximo dessa vez. Marty vestiu
a jaqueta e o gorro e desceu as escadas apressado.
— Já volto! – disse. As gêmeas nem ouviram.
O ar de fora parecia rarefeito, difícil de alcançar. O
garoto cruzou os braços, espreitando a rua sem saída e
então as casas mais próximas. Todas apagadas, os quintais
nevoados de branco.
— Oi? – silêncio. O tipo de silêncio que encobre lugares,
que torna macabras as coisas comuns. – Tem alguém aí?
Não alguém. Alguma coisa.
Da esquina da Rua Kennedy, o som de passos se tornou
mais alto. Então uma silhueta apareceu.
Esguia. Magra. Uma mulher com o rosto cinzento e a
frente do vestido branco manchada de escarlate. O grito
viera dela. Cambaleou pela rua, tropeçando no meio fio.
Marty revirou os olhos diante do esgar que ela soltou. A mãe
do rapaz era fã da Noite dos Mortos-Vivos e a fantasia de
zumbi até que combinava com o clima do Dia das Bruxas.
Quando a mulher de branco se aproximou o suficiente,
Marty hesitou. Ela parecia mal. A boca esgarrada e os olhos
injetados criavam uma carranca monstruosa. Marty
estendeu as mãos para ajudá-la diante de outro tropeção; a
mulher caiu sobre ele.
Os dentes dela se fecharam em seu braço, arrancando
um pedaço da jaqueta, da camiseta e da pele, e o novo
grito que ressoou pelo nevoeiro foi o dele.
Marty a empurrou. Ela levou tecido, carne e sangue
junto. Estarrecido em choque, o garoto cambaleou para trás,
tropeçando em direção ao meio fio.
Da esquina escura, outra coisa surgiu. A silhueta era
feita de sombras vivas, de tentáculos e coisas afiadas;
quando Marty se concentrou, avistou a forma de um olho
com muitos braços. A criatura tinha um cheiro insuportável
de ovo estragado e se movia com rapidez, distorcendo o
próprio ar. Abriu a bocarra sob o olho enorme e deixou
escapar um urro sepulcral, sangue negro jorrando entre os
dentes.
Marty achou que seria um bom momento para acordar
do pesadelo. Só podia ser um pesadelo.
O monstro avançou, as pinças e garras e muitos dentes
tilintando pela calçada enquanto tentava alcançar o garoto.
Atrás dele, três fantasmas translúcidos, marcados por
mortes horríveis, uivavam gritos aterrorizantes.
— Aí! – Marty se assustou, e o grito chamou a atenção
das criaturas mais próximas. – Sai da rua, maluco! – Bobby
tinha parado na varanda com uma espingarda em mãos. A
garota jogou uma bombinha no asfalto e o estouro atraiu os
monstros, inclusive o coberto por tentáculos. – Vem pra cá
se quiser sobreviver!
Marty não precisou de maior incentivo. Correu com
todas as forças, apertando o braço machucado contra o
corpo, mas estacou ao se lembrar das gêmeas e da porta
destrancada.
— Minhas irmãs!
— Você não colocou sal ao redor da casa?
— Por que eu faria isso?
A careta da garota foi indignada. Ela puxou Marty pelo
cotovelo e ele se viu dentro das linhas que ela fizera no
quintal. O monstro que o perseguia antes bateu contra uma
parede invisível, impedido de prosseguir – o que não evitou
o grito assustado e o tombo do garoto. Marty se arrastou
pela grama em direção à varanda e Bobby apareceu ali
antes que ele causasse mais dano ao próprio orgulho.
— Segura – a garota entregou um velho taco de
beisebol e um saco cheio de sal. Sem avisar, apertou o
gatilho da espingarda. Tamanho estouro zumbiu nos ouvidos
de Marty. O monstro caiu do outro lado da proteção
invisível, levando a mulher morta-viva ao chão com ele.
Sangue escuro e denso se espalhou sobre a calçada.
Bobby segurou a mão livre de Marty e o arrastou até a
calçada, saindo de dentro da proteção para correr em
direção à casa do garoto. Ela tinha muita força para alguém
tão pequena.
Assim que subiram os degraus da entrada, alguma coisa
atravessou Marty, deixando uma sensação fria e
perturbadora de invasão. Quando passou pelo garoto, o
espectro virou-se para contemplá-lo. Sangue escorria aos
montes de um corte na garganta e o rosto era feito de
retalhos.
— Ele foi pra dentro! – Marty gritou o óbvio.
— Aqui – Bobby estendeu a espingarda. – Segura eles! –
apontou para a legião monstruosa que se aproximava, e
Marty pensou que aquele era um bom momento para
encontrar uma religião, só pra ter alguém para quem rezar.
Para sua sorte, não precisou atirar. Bobby o empurrou
para o hall de entrada e fechou a porta, cobrindo a soleira
com uma linha de sal. Correu até as duas janelas da sala e
repetiu o processo e, antes que Marty pudesse ajudar,
disparou até os fundos para selar a porta do quintal e as
janelas da cozinha.
— Hã, ainda tem um fantasma aqui.
— Espectro. E ainda tem janelas lá em cima! – o grito
indignado dela fez Marty recuar. Bobby correu escada acima
para terminar o serviço de proteção.
— Marty? – ele se virou para a porta da sala, onde as
gêmeas tinham petrificado. Georgie, com as tranças laterais
e o macacão jeans sujo de tinta, e Star, com o rabo-de-
cavalo desfeito e o vestido de flores coberto pela jaqueta de
couro da mãe.
Entre elas e o corredor, a forma translúcida do espectro
encarava as meninas, os músculos aparentes sob os fiapos
de pele que caíam do rosto. Seus globos oculares vazios se
voltaram na direção do garoto e ele bateu as costas contra
a porta, observando o sangue azul escorrendo do ferimento
no pescoço sobre as roupas de discoteca – tinha sido
assassinado na década passada, provavelmente.
O espectro estendeu a mão e seu grito agudo escapou
pela casa. Um alento monstruoso que falava sobre coisas
mortas, coisas que não deveriam estar no mundo dos vivos.
Georgie e Star não gritaram como Marty imaginou que
fariam. Na verdade, as garotas jogaram um travesseiro no
espectro. Para maior choque do irmão mais velho, foi eficaz.
O espectro era corpóreo ali, e Marty viveu para ver o
momento em que um espírito coberto por plumas e uma
fronha tentou matá-lo.
Um tiro estourou e, assim como as plumas, teve efeito.
A bala atravessou o espectro e ele desapareceu, deixando
apenas os restos do travesseiro e um rombo na parede da
sala em seu lugar. No último degrau, Bobby apoiou a arma
sobre o ombro, quase uma versão jovem da Tenente Ripley
salvando Marty de uma criatura de outro mundo.
— Eu vou virar um zumbi? – foi a pergunta mais sem
nexo e importante que Marty conseguiu fazer. Suas irmãs o
olharam como se ele tivesse perdido o juízo. Marty apontou
para a mordida no braço. Bobby estendeu uma bandagem,
tirada do bolso da capa de chuva.
— Não seja burro. Ela não é contagiosa, só está morta.
— Mas o filme…
— Eu por acaso tenho um Cadillac e estou vestindo um
macacão dos Caça-Fantasmas? Não. Filmes não dizem a
verdade – Bobby olhou para os três. – Vocês precisam me
ajudar a voltar para minha casa.
— Você gosta do perigo?
— Preciso fechar o portal – ela bufou quando nenhum
deles se manifestou. – Que meu avô abriu… Cinco anos
atrás?
—Olha, a gente chegou na cidade tem umas três
semanas – Georgie explicou. – Eu nem consigo fazer o rádio
funcionar, imagina entender um fantasma na nossa sala.
— Espectro – Bobby corrigiu de novo. – De qualquer
maneira, achei que alguém avisaria os recém-chegados. –
Ela pareceu genuinamente surpresa. Pela resposta atrevida
da garotinha de onze anos ou por alguém não julgar sua
história, Marty não sabia dizer. – Meu avô abriu um portal
para o mundo dos mortos através do túmulo da minha avó,
cinco anos atrás. Ele sentia falta dela, e foi a maneira de
matar a saudade.
Olhares estagnados foram a resposta.
— Acontece no Dia das Bruxas, porque é quando o véu
entre o mundo dos mortos e dos vivos fica mais fino. Por
cinco anos, isso funcionou direitinho. Recebíamos visitas de
alguns fantasmas, o portal abria na hora certa e meu avô
nunca teve problemas para fechá-lo.
As coisas não eram as mesmas desde outubro de 1981
e a culpa era do velho Harold Murdock. Ele tinha descoberto
um antigo feitiço para abrir as portas para outro mundo.
Harold se gabava de ter trabalhado para uma divisão
secreta do governo quando ainda era jovem, e essa
experiência rendeu a ele muito conhecimentos sobre o que
havia além da dimensão que o mundo conhecia.
No cemitério particular em seu quintal, quando Harold
Murdock abriu as portas para o outro mundo e chamou o
que havia lá, alguma coisa respondeu.
A noite do Dia das Bruxas em Coney Mountain se tornou
mais do que sair pelas ruas pedindo gostosuras ou
travessuras, mais do que enfeitar os jardins com abóboras e
teias de aranha e, principalmente, mais do que fugir quando
a viúva McGee saía na varanda balançando o seu andador e
ameaçando as crianças bagunceiras de perturbar seu
descanso. Desde outubro de 1981, era uma noite
assombrada. O sol se punha e os mortos apareciam.
Cinco anos se passaram desde o primeiro evento e o
Dia das Bruxas acabou se tornando uma coisa corriqueira:
os moradores esperavam ansiosos pelo reencontro com
parentes há muito mortos, amigos dos quais haviam se
esquecido e até mesmo famosos que se aventuravam por
aquela passagem até o mundo dos vivos e dividiam seu
tempo entre os fãs. A senhora McGee jurava que o próprio
Elvis havia visitado sua casa no ano passado.
— Aí o vovô morreu e desregulou tudo. – Bobby
prosseguiu. – Eu achei que daria conta, mas, quando o
portal se abriu mais cedo, deu passagem para outras
dimensões, lugares estranhos e mortíferos. Por isso aquele
demônio e o espectro corpóreo apareceram aqui. As coisas
fugiram do controle. Eu sei como fechar o portal, mas
preciso chegar lá. Meu plano era perfeito até você aparecer.
— Quer dizer que a cidade tem isso há cinco anos?
— Sim.
— E o governo não veio intervir? Nem o serviço secreto?
— Tudo estava sob controle até hoje. O governo deve
ter outro caso sobrenatural maior com que se preocupar –
Bobby deu de ombros, espiando a janela. – De qualquer
modo, só teremos que nos preocupar com a noite de hoje,
se tudo der certo. O portal fica no túmulo da minha avó.
Preciso fazer o feitiço do meu avô para selar a entrada dos
monstros.
— Demais! – Star se animou. Georgie concordou,
entusiasmada.
— Isso é loucura! – Marty retrucou, recebendo uma
careta da colega de escola. – Sem ofensas. Mas, sério,
portal para o mundo dos mortos? Seu avô era maluco
mesmo.
— Ele era, mas fez isso porque sentia saudade. E deixou
um plano B para caso as coisas dessem errado.
— Deixou?
— Eu sou o plano B – Bobby sorriu, e o sorriso dela era
perigoso como descer de uma ladeira sobre uma bicicleta
sem freio.
Para surpresa do garoto, Bobby realmente tinha um
plano. Ela era a parte principal, mas, já que Marty
atrapalhara tudo ao entrar em seu caminho, poderia ajudar
para facilitar o processo. Ainda que Georgie e Star fossem
pequenas e não pudessem sair da casa, ficariam na
retaguarda com estilingues e bombinhas de sal grosso – isso
afastava as criaturas do outro mundo. Bobby tinha tudo em
seu arsenal.
— Você fica na varanda com a espingarda – disse Bobby.
Marty fez uma careta com a ordem. – O quê?
— Vou com você – O garoto avisou.
— Não foi você mesmo que disse que isso era loucura?
— É. Mas acho que posso encontrar um sinônimo.
Novidade para o meu currículo, talvez? – ele segurou a
espingarda, mas balançou a cabeça quando Bobby tentou
argumentar. – Não sei lutar e nem atirar, mas posso correr e
gritar para chamar a atenção dos monstros, que tal?
Os olhos de Bobby eram mais claros que o tom da pele,
uma cor próxima do mel. Ela o encarou com genuína
gratidão, e Marty pensou que as pessoas da escola eram
estúpidas por olharem para aquela garota bizarra e
pensarem qualquer coisa ruim sobre a sua coragem. Com a
capa de chuva, os cachos armados e a expressão
determinada, ela era uma heroína. Sua vizinha, a caçadora
de monstros.
— Ei, nós somos quatro. Eu quero ser o Doutor Peter! –
Georgie tinha ficado obcecada pelos Caça-Fantasmas no
último ano.
— Ele era o líder, eu sou a líder – Bobby retrucou. – Eu
sou o Peter.
Marty abriu a porta com cautela, e Star consertou a
linha de sal desfeita. O que antes era um pequeno grupo de
monstros se tornara um exército desordenado.
— Posso fazer isso sozinha – Bobby tocou seu ombro. –
Você e suas irmãs estão seguros aqui.
— Contanto que a gente não enfrente um monstro de
Marshmallow gigante – Marty segurou o taco de beisebol
com força e olhou para as gêmeas. Com os estilingues em
mãos, elas pareciam mais animadas do que deveriam.
— Agora!
Correram em direção ao quintal de Bobby. Ao seu redor,
mais demônios e espectros surgiram da penumbra que
cobria a esquina. Um tiro retardou o primeiro monstro que
tentou alcançá-los, uma tacada certeira derrubou a morta-
viva de vestido branco que mordera Marty. Bobby o puxou e
o tirou do caminho de outro ataque, e o espectro atravessou
o cano da espingarda em vez de passar pelo garoto.
Os dois passaram pela linha de sal no quintal do
casarão, seguros enfim. Os monstros se viraram na direção
das gêmeas, que aguardavam o sinal. Marty gritou para
chamar a atenção das criaturas de volta – era a deixa das
meninas.
Uma bombinha estourou na cabeça do demônio mais
próximo, e o sal grosso, em contato com a escuridão na
qual ele era moldado, produziu chiados e um grito
agourento. O segundo disparo de estilingue bateu contra
um espectro. A forma translúcida tornou-se corpórea de
repente, e Marty respondeu batendo com a ponta do taco
em seu queixo.
— Tá tudo sob controle? – Bobby hesitou, antes de
seguir em frente.
— Nós seguramos aqui!
Os monstros que cercavam o lugar acompanharam o
trajeto da garota, tomando as laterais do quintal, incapazes
de avançar. Marty seguiu as criaturas, adrenalina e medo
movendo seus passos. Os olhos de pesadelo à frente
pareciam querer devorar tudo que se aproximava.
Havia mais monstros do que Marty podia contar, todos
eles liderados pelo primeiro demônio que atravessara a
esquina minutos atrás. Aquele feito de pinças, muitos
braços e um olho enorme. Sob o olhar dele, Marty ergueu o
taco, tentando parecer ameaçador; um salto da criatura em
sua direção fez o garoto escorregar. Assombrado, Marty
contemplou o chão, o espaço onde seu tênis esfarrapado
esbarrara. A linha de sal ganhou uma falha.
Em um segundo, o demônio estava à sua frente. No
outro, tinha distorcido o ar e desaparecido. Um grito agudo
veio de dentro da casa. Marty se abaixou, as mãos
tremendo enquanto empurrava o caminho de sal que
desfizera. Ele gritou quando espectros bateram na barreira
invisível, mas suspirou ao perceber que o erro fora
consertado.
Bom, um deles, pelo menos.
Lá dentro, Bobby lutava contra o demônio. Pingos de
baba espessa caíam sobre o rosto da garota, mas a
espingarda mantinha os dentes do monstro longe dela. Um
facão caído ao lado dela estava manchado de sangue
escuro, e foi com assombro que Marty avistou os braços
decepados do demônio. Ansioso para ajudar a garota,
segurou o taco com forçae imitou o que vira em muitos
jogos de beisebol, girando os braços e firmando uma das
pernas. O strike estourou com o grito agudo da criatura.
— Vai! – ele gritou, e Bobby foi. Atravessou a porta para
o quintal atrás da casa e permitiu o vislumbre de um
cemitério particular bastante macabro. O demônio se
recuperou rápido demais, distorcendo o tempo e o ar e
aparecendo tão próximo que prendeu o corpo de Marty
contra uma cristaleira antiga. A bocarra cheia de dentes se
abriu faminta, e o cheiro que veio dela misturava sangue e
enxofre e muitas pizzas estragadas que a mãe de Marty
deixara acumular no lixo uma vez.
Baba e gosma escura pingaram em seu rosto. Marty
ergueu o taco e aparou a mordida, impedindo a criatura de
atacá-lo. Continuou preso entre o demônio e a cristaleira, os
pés escorregando no líquido que empoçava no chão.
Além da varanda de entrada, viu a barreira de sal
começando a se romper. Havia tantos espectros
pressionando a proteção que uma luz translúcida brilhava
dela, rachando como vidro. Num movimento bastante
arriscado, Marty colocou toda a força para empurrar o
demônio longe. Agarrou os cantos da cristaleira e puxou; o
garoto correu quando ela começou a tombar e fez uma
careta diante do som de muitos cristais se estilhaçando
sobre o monstro. Um grunhido animalesco e um tremor
mostraram que ele não estava morto, só
momentaneamente incapacitado.
Marty correu para os fundos da casa, fechando a porta
atrás de si – não que isso fosse adiantar muita coisa. Bobby
estava em frente a um túmulo, com dois fantasmas parados
ao lado dela. Marty nem mesmo pensou, só ergueu o taco
de beisebol e correu na direção deles, gritando.
— Calma! – a menina exaltou. – São meus avós. Vovô,
esse é o cara que eu falei, ele segurou os monstros.
— Então… – Marty hesitou. – Eles meio que estão
invadindo.
— Você tinha uma tarefa, rapaz.
— OK, dá tempo. Eu já estou terminando – Com um livro
antigo aberto à sua frente, Bobby murmurou uma sequência
de palavras em latim. Seu avô corrigiu a pronúncia de
algumas partes, mas Marty não pôde assistir ao ritual. Às
suas costas, uma explosão, e, então a legião de espectros e
criaturas abissais ascendeu como uma tempestade sobre os
fundos do casarão. A energia se tornou pesada, sufocante, a
mesma sensação de quando saíra de casa mais cedo, com o
ar rarefeito e a neblina pesada.
Marty esperava que suas irmãs estivessem bem. Que os
monstros não tivessem se afastado demais do portal, que a
mãe estivesse segura. Esperava não precisar lutar com
nenhuma daquelas criaturas.
Uma morta-viva se aproximou. Era a mesma mulher
com o vestido branco. O queixo dela estava torto pelo golpe
de antes.
Em poucos minutos de loucura paranormal, o que antes
parecia uma ótima fantasia para o Dia das Bruxas se
tornara seu maior pesadelo.
Marty ergueu o taco mais uma vez e, em sua ínfima
coragem, se preparou para lutar até o fim – ainda que o fim
estivesse bem próximo. O demônio de um olho só se
arrastou pela varanda como uma cobra, ainda preso aos
restos do móvel quebrado. Abriu a bocarra faminta para
Marty e urrou uníssono às muitas criaturas monstruosas que
os cercavam. E, então, desapareceu.
Todos os monstros, seres horrendos que enchiam o
quintal escuro da casa de Bobby, todos sumiram em pleno
ar.
— Foi fácil demais.
— Eu nunca disse que seria difícil – Bobby replicou, um
sorriso divertido curvando seus lábios cheios. Marty
desabou ao lado dela, trêmulo como nunca antes. Balançou
a cabeça, medindo a possibilidade de aquilo ter sido alguma
alucinação causada pelos cogumelos da pizza do almoço. –
Você está bem?
Ele se virou para Bobby. Para a garota desconhecida que
salvara sua vida e aceitara sua ajuda para salvar o mundo.
— Ei, a gente salvou o mundo? Ou só Coney Mountain?
Bobby sorriu em segredo.
As gêmeas apareceram na varanda do quintal,
erguendo os estilingues. Sorrisos aventureiros iluminavam
seus rostos.
— Então acabou mesmo? – Marty indagou, analisando
os arredores.
— Por enquanto. – Bobby ficou de pé e estendeu a mão
em sua direção. Uma ajuda e um cumprimento. – Foi bom
salvar o mundo e Coney Mountain com você, Marty
Fontaine.
Jedi, fangirl e a próxima Indiana Jones. Ah, escreveu alguns
livros também. Instagram @NizzFF
Testamento
O terror toma o som antes de você
fazê-lo
Leno Lugas
“Retornarei.
Canção esta
Tocando
Terão todos
Destino mesmo
“Amor”, sempre isso
Escutará
Você a
Família e serenidade
Tranquilidade haverá
Alguma forma
De que lembre agora
Destino meu
Levou que mal
Você
Mas digo
Partirei agora”
Leia do fim para o início!
Sábado, 30 de março, 1985
Querido Diário, tem coisas que todo mundo odeia:
segunda-feira, ovo estragado, brinquedos quebrados, feijão
queimado. Eu odiava quando minhas bonecas quebravam
(ainda odeio), odeio quando minha mãe bebe porque ela
não bebe pouco. Hoje, o que mais odeio é essa música
chamada Testamento. Não sei a história dela, só sei que
minha tia-avó fez e gravou num disco há muito tempo,
antes de morrer. Se não fosse pela vovó, eu jamais saberia
disso, e é apenas isso que sei de minha tia-avó, nem sei o
nome e nunca vi uma foto dela. Todo domingo a vovó
escutava a música.
Eu até gostava desse bolero.
Mas passei a odiar a canção desde o Dia Ruim.
Aconteceu na metade do mês.
Eu lembro claramente desse dia horrível. Eu fui na
escola e fiz um lindo desenho de O Pequeno Príncipe (meu
livro preferido), fui pra casa cedo e muito ansiosa. Nem quis
pegar ônibus (passei pelo viaduto). Quando cheguei, tomei
meu banho, comi bolacha recheada, sanduíche e suco. Vesti
minha melhor roupa pra ver a vovó e ver meu irmão Leon,
que às vezes é um idiota (ainda mais agora, ele está com
essa mania de me assustar, falando que dá pra ouvir o que
o Diabo diz se pegar alguns discos e tocar ao contrário). Ele
ouviu que uma cantora que eu não gosto fez pacto e que dá
pra saber isso tocando o disco ao contrário e agora quer
fazer isso com meus discos. Ele às vezes é um idiota, mas
estou com tanta pena dele. Vovó passou mal, sentiu dor no
peito. Leon tava sozinho em casa com ela.
Nós fomos pro hospital. Vovó morreu do coração.
Lembro de ouvir minha mãe e tia gritando lá. Toda vez que
eu lembro dói muito. E toda vez que escuto essa música, eu
lembro do que aconteceu. Por isso eu cheguei pra mamãe e
disse: “Não quero mais escutar isso”. “Por que não?” “Eu
lembro do que aconteceu com a vovó Luiza.” “Então tá. Não
vai mais escutar, até porque só a vovó escutava mesmo.”
Minha mãe disse, sorrindo, mas eu sabia que ela ia logo pra
um canto chorar.
Eu acho que mamãe tentava se manter forte pro papai,
pra Leon e pra mim. Nós não comentamos com ela, acho
que isso funcionou pra todo mundo e principalmente pra
mim. Sei que vou sentir muitas saudades dos olhos azuis da
vovó Luiza. Eram tão azuis e lindos que mamãe diz que a
música Bette Davis Eyes de Kim Carnes é a cara da vovó,
por causa dos olhos tão azuis. Realmente, lembrava mesmo.
Diferente dela, meus olhos são negros e eu mesmo sou
negra. Não que isso seja um problema, só me incomodo um
pouco porque alguns idiotas acham que devo suportar as
brincadeiras deles sobre minha cor apenas porque tem um
programa de humor em que aquele humorista negro
suporta as mesmas coisas na TV… babacas…
Depois de um tempo, eu passei não sentir mais aquela
aranha em meu peito, me comendo por dentro, a dor foi
diminuindo, mas sempre tenho a sensação de que vovó
viajou e vai voltar. A mamãe está melhor. Mesmo assim,
faço de tudo pra deixar ela contente e pra não magoar: vou
e volto de ônibus, não passo pelo viaduto perigoso (o ruim
disso é que não vejo mais a minha amiga Claudia, que
conheci faz poucos dias), guardo minhas bonecas quando
eu brinco, arrumo meu quarto. É tão bom ver ela sorrir e me
dizer: “Obrigada, Clarice”. Ah! Também estou dormindo
cedo! E ainda tem mais: minha mãe está me deixando ver
TV até tarde nos fins de semana e até brincar de gude com
osmeninos na rua!
Quarta-feira, 17 de abril
Depois de uns dias eu resolvi voltar pra casa a pé e
passar pelo viaduto. Prefiro assim, é mais perto e melhor,
porque eu vejo a Claudia. Disse a ela que ia ver um filme
muito legal no cinema, que todo mundo tá comentando.
Amo filmes de terror, principalmente do Freddy Krueger!
Falando nisso, esta noite sonhei comigo andando no viaduto
e minha vó se aproximando, sempre muda e séria, me
encarando. Tive muito medo, porque eu só escutava os
passos dela e nada mais, não dava pra ver nada, mas eu
sabia que era ela. Deve ser por causa dos filmes,
principalmente por causa daquele Poltergeist.
Quinta-feira, 18 de abril
Achei que não ia conseguir ver, mas eu consegui! Eu vi
A Hora Do Pesadelo! Não consegui dormir direito! Juro que vi
as portas do guarda-roupa se mexerem! Fui dormir com
mamãe. Acho que papai descobriu que eu tava com medo,
só espero que ele não conte nada pro Leon!
Sexta-feira, 19 de abril
Fiquei mais tempo conversando com Claudia no
caminho de casa. Ela é mais velha do que eu, tem uns seis
ou sete anos a mais e, por isso, é bem mais madura. Contei
pra ela que não consegui dormir direito. “É só um filme, os
mortos não fazem nada. É dos vivos que devemos ter medo.
Eles que machucam nosso coração. Eles que nos matam”,
ela disse. Isso me confortou muito! Me senti mais leve!
Brinquei na rua com os meninos! Dyogo, o menino que
se mudou faz poucos dias, odeia perder gude! Ele é bonito.
Fiz tarefa de matemática! Odeio!
Fim de semana tá chegando! Agora vou dormir, brinquei
demais.
Acordei agora de madrugada porque, de novo eu vi
portas se mexendo! Vou dormir com papai e mamãe! E, pra
piorar, sonhei novamente com a vovó! Eu estava no viaduto
outra vez, e tava tudo escuro, e a vi andando na minha
direção, parecendo falar algo baixinho, não dava pra
escutar e também não dava pra ver o rosto dela. Também vi
uma sombra seguindo ela, e essa sombra usava um chapéu,
parecia ter um só um olho, bem grande… o olho debaixo do
chapéu.
Segunda-feira, 22 de abril
Papai descobriu tudo! Leon estava mexendo portas pra
me assustar! Encontrei Claudia na volta pra casa. Bem
como Claudia disse: é pra ter medo dos vivos e não dos
mortos! Falando nisso, como deve estar a vovó no Céu?
Estou com saudades dela…
Sábado, 04 de maio
Hoje é sábado. Sempre acho que vou pra casa da vovó.
Isso me dói tanto o peito… novamente a aranha me
machuca por dentro. E desta vez parece que ela vai comer
tudo que tem dentro de mim.
Não aguentei e chorei. Contei pro papai que eu queria
tanto ver a vovó novamente. Que eu queria pelo menos ir
na casa dela, lembrar dela. Leon foi contra. Ele ficou um
pouco bravo quando eu falei que ia voltar lá.
Domingo, 05 de maio
Estivemos na casa da vovó pra pegar umas coisas.
Estava no quarto dela, em que eu costumava dormir, e ouvi
Leon fazer aquela palhaçada de escutar o disco ao
contrário! E logo na música que eu odeio! Papai deu uma
bronca nele, por mais que ele tentasse dizer: “Não fui eu!”…
Leon é cínico, ele sempre fez isso! Bem feito!
Entrar na casa fez meu peito doer mais! Que bom que
não ficamos muito tempo! E que bom que amanhã é
segunda, assim eu esqueço do fim de semana, esqueço que
ia na casa da vovó, me arrependi de ter dito pro papai que
queria ir lá.
Acho que eu não devia mais voltar na casa da vovó.
Sonhei mais uma vez com ela. Como sempre eu tava no
viaduto, ela se aproximando, e dessa vez se aproximou mais
que nas outras vezes, tanto que deu pra ver o rosto dela.
Não dava pra saber se ela cantava ou falava alguma coisa,
estava muito baixo. E de novo tinha alguém andando atrás
dela, eu não sabia quem era, só sei que usava o chapéu,
parecia estar com um livro ou uma pasta, não sei… e estava
tudo escuro, só tinha a luz dos postes… vovó, espero que a
senhora esteja bem aí no Céu.
Segunda-feira, 06 de maio
Encontrei Claudia, falei com ela do que aconteceu no
fim de semana. Ela me abraçou muito forte e disse: “A sua
vovó Luiza está bem agora. As pessoas são assim, elas
passam pela nossa vida muito rápido, você não percebe,
mas acontece. É como os carros sob este viaduto. Quando
estamos aqui, não percebemos o que acontece com eles”.
“O problema é justamente esse, elas passam muito rápido
em nossa vida. Quero ter mais tempo com papai, mamãe,
Leon, meus amigos e você. Você podia ir lá em casa, né?”
“Hoje não dá, tenho que ir. Tchau.” Me despedi dela e virei a
rua.
Quinta-feira, 09 de maio
Leon está mal, está deitado na cama, sentindo muita
dor de cabeça. Ainda parece arrependido por ter feito
aquela brincadeira de mau gosto. Mesmo doente, ele é
cínico, falando que não tocou aquele disco ao contrário, mas
ele tocou!
Fui brincar de gude com os meninos. Dyogo não
apareceu, estava de castigo porque não fez a tarefa!
Mais uma vez tive um sonho ruim. Vovó estava pertinho
de mim agora, cantava baixinho a música! E a pessoa atrás
dela também estava mais próxima, era pequena.
Segunda-feira, 13 de maio
Fiz prova de matemática. Eu odeio matemática, mas fui
bem! Não encontrei Claudia hoje… acho que vou contar pra
mamãe que vou levar Claudia pra conhecer minha família.
Será que mamãe vai ficar brava se eu contar que venho
andando a pé pra casa e passando pelo viaduto?
Leon ainda está de cama, com febre alta e dor de
cabeça, mas insiste em ir lá fora.
Mais uma vez fui dormir com papai e mamãe porque
sonhei com vovó. Ela estava no viaduto, cantando, e a
pessoa de chapéu veio atrás com o que parecia ser a pasta,
eu acho.
Terça-feira, 14 de maio
Contei pra minha mãe sobre Claudia! Ela ficou uma fera
porque desobedeci e estava andando a pé.
Leon está cada vez pior. Perdão, meu Deus, por ter
pensado assim dele e que ele fique bem logo.
Mamãe está realmente uma fera, mesmo assim me
deixou ver TV até mais tarde.
Sexta-feira, 17 de maio
Recebi o boletim, a menor nota que recebi foi 8,9
(aqueles idiotas que não me deixam em paz tiraram nota
vermelha… parece que vão ficar quietinhos na sala a partir
de agora. É melhor estudar do que ficar se preocupando
com minha cor). Fui correndo contar pra mamãe! Ela me
abraçou forte e me beijou! Papai falou que ia comprar um
videocassete de presente pra mim! Fiquei tão feliz! E ele
também me deu uma blusa vermelha com listras pretas e
tênis Kichute!
Mamãe parecia feliz, mas eu sei que ela tava triste, lá
no fundo eu sei. Ela fica assim quando Leon adoece, mas
ele está melhorando.
Acordei de madrugada e fiquei de luz acesa. Mais uma
vez tive o sonho no viaduto, e vovó cantava sem parar. E a
pessoa de chapéu chegou mais perto, deu pra ver que era
um menino, ele levantou a mão, pareceu que queria me
entregar aquela pasta.
Quarta-feira, 22 de maio
Leon foi parar no hospital. Vi mamãe chorar muito. De
novo senti meu peito doer por dentro. Não quero que
aconteça com ele o mesmo que aconteceu com vovó.
Ela me deixou brincar na rua, mas eu não queria, nem
se Dyogo viesse me chamar.
Antes de dormir, eu ouvi mamãe e papai discutindo
atrás da porta, minha mãe não quer que eu volte pra casa
andando, mesmo com Claudia me acompanhando. Foi o que
pareceu. Ouvi papai falar uma coisa de “se jogar do
viaduto”. Não sei. Será que eles estão com medo de que eu
fique tão triste e me jogue por causa da vovó, mamãe e
Leon, na frente de Claudia? Parece maluquice, mas foi o que
eu ouvi, acho: “Tenho… medo… Clarice… ponte? …
Claudia!?”
“… amiguinha dela?” “Não… minha mãe… dezessete
anos. Cantora… viaduto… Clarice… essa amiga dela.”
“… é só uma criança!… Luiza tenha… Clarice.” “Não…
aquela… música… Testamento… já perdi meu pai… mãe…
meu filho no hospital… agora a nossa filha?… viaduto!”
Tinha coisa que eu não sabia se estava ouvindo bem, se
era “lançou um livro” ou “gravou um disco”, ou se era
“tinha Claudia” ou “tia Claudia”… bem estranho mesmo!
Fui pra cama e rezei. Tomara que nada de ruim
aconteça.
Sexta-feira, 24 de maio
Não fui pra escola hoje, acordei preocupada e com
aquela sensação de aranhano peito. Espero que Leon esteja
bem. Hoje nós vamos visitá-lo no hospital! Vou levar um
livro que ele gosta (Menino Maluquinho) e vou contar as
novidades dos garotos daqui da rua pra ele!
Quarta-feira, 29 de maio
Leon morreu! Meu irmão morreu! Está doendo demais!
Demais! Sinto uma aranha gigante no peito!
Quero meu irmão de volta! Quero ser feliz com minha
família! Não quero ter sonhos ruins! Chega!
Sonhei com vovó de novo, ela se virou pro menino de
chapéu. E ele era meu irmão! Eu olhei pra ele, ele levantou
rosto pra poder me ver. Ele não tinha olhos! No lugar dos
olhos estava tudo vazio e escuro, como se tivesse um
mundo negro dentro dele. Fiquei com medo! Eu tentei me
afastar, mas eu me aproximava sem querer! Tive medo de
tocar nos buracos dos olhos dele e ser sugada! Ele sorriu e
não tinha dentes! A boca era igual aos olhos, com aquele
espaço vazio e preto! Gritei por papai e mamãe! Ele
estendeu a pasta pra mim e vi que era a capa de um disco.
Ele olhou pra trás e vi mais uma pessoa no viaduto. Pelos
cabelos e pela sombra eu sabia que era uma mulher
baixinha.
Terça-feira, 11 de junho
Já faz dias que eu não escrevo nesse diário… eu não
queria. Só queria ficar no quarto. Não queria falar de Leon.
Só sei que sinto saudades dele e da vovó…
Depois de dias é que fui na escola. Voltei e vi Claudia,
contei tudo pra ela… depois do abraço de mamãe e papai,
esse foi o melhor abraço que recebi. Ela me olhou com
aqueles olhos azuis e disse: “Sei como se sente, já perdi
alguém.” “Quem você perdeu? Irmão?” “Não, alguém mais
próximo. Tiraram ele de mim.”
Me despedi dela. Não quero mais passar por aquele
viaduto, não quero deixar a mamãe triste.
Voltei pra casa. Mamãe fez bolo de chocolate pra mim.
Comi pouco…
Tornei a sonhar com eles.
A gente estava no viaduto. Vovó cantando esse bolero
horrível, Leon me oferecendo a capa de um disco. Depois
ele olhou (ah é, nem olhos ele tinha, mas se tivesse, teria
olhado) virou a cabeça pra pessoa que se aproximava. Era
Claudia! Não lembro o que ela estava fazendo ali, só sei que
ela usava as mesmas roupas da vovó. Ela era a única que
estava muda. Leon me oferecia o disco enquanto ficava com
a cabeça virada pra ela, ele parecia rir, e vovó continuava
cantando baixinho! Espero não perder Claudia também!
Vou deitar com mamãe e papai!
Sexta-feira, 14 de junho
Amanhã, papai, mamãe e meus tios vão na casa da
vovó terminar de tirar todos os móveis de lá. Demoraram
tanto tempo assim porque tia Andreza ainda morava por lá.
Parece que ficaram algumas coisas de Leon, não sei…
eu vou lá ajudar.
Sábado, 15 de junho
Papai do Céu que nos ajude! Eu vi! Eu vi! Eu não
acredito!
Eu vi!
Só consegui gritar de medo! Saí correndo da casa!
Agora de noite estou mais calma, mas tenho muito
medo e não consigo dormir. Papai e mamãe me fizeram um
chá pra dormir, mesmo assim eu não consigo! Estou com
tanto medo, tanto medo.
Eles acreditam em mim, graças a Papai do Céu! E eu sei
que eles estão com medo!
Nunca senti tanto medo em minha vida! Só estou
escrevendo porque eles estão deitados no meu lado agora!
Foi tão horrível!
Eu estava no quarto da vovó ajudando a tia Alexa e tia
Andreza com as coisas (e vendo se Leon esqueceu alguma
coisa lá) quando eu vi, pela primeira vez, a capa daquele
disco que nunca saía da vitrola da vovó. Na capa tinha uma
menina de cabelos grandes, pretos, ondulados. Os olhos
dela eram azuis.
A menina tava sorrindo. E ela era igualzinha à…
“Essa é sua tia-avó, Clarice”, disse a tia Andreza, que
contou tudo, “ela, a irmã gêmea de sua vó Luiza, ia se casar
com o seu avô, mas ele se apaixonou por sua vó e desfez o
casamento. Aquilo machucou muito o coração dela. Então…
então… sua tia-avó se jogou do viaduto, caiu de cabeça…
uma semana depois de lançar o disco dela! Sua vovó Luiza
fez a promessa de nunca tirar o disco da vitrola!… ela se
chamava Claudia.”
Senti que tudo de ruim estava no meu peito. Queria ir
embora logo! Comecei a gritar e chorar! Rasguei a capa do
disco! Lá dentro tinha um papel com a letra da música!
Minha mãe veio me controlar, eu tentei falar pra ela o que
eu vi! Ela só fazendo: “Xiu! Xiu! Calma!”, que raiva! Parece
que ela não queria me escutar! Ela só parou quando papai
veio.
“Calma, gente, por favor!”, ele ficou falando até que nós
ficamos quietas, até mesmo a mamãe, que disse: “Tá, agora
desliga aquela porcaria daquela vitrola! Eu passei a odiar
essa música!”. Nós ficamos quietas. “Estranho”, papai disse,
olhando pra sala. Tia Alexa perguntou o que foi, e ele
respondeu: “Eu podia jurar que tirei a vitrola da tomada e…
a música está sendo cantada na ordem inversa, ela está
cantando a partir da última palavra.”
Eu não estou me sentindo nada bem e o meu peito dói…
querem me levar pro hospital amanhã…
Leno Lugas - comedor de queijo, fã de Drive, Poderoso
Chefão e Clube dos Cinco.
Maçãs
O pomar abandonado
Marcus Barcelos
Os anos oitenta…
Os maravilhosos anos do início da minha infância,
recheados com os aromas deliciosos do Natal e de maçãs
assadas, e memórias incríveis de intermináveis dias quentes
de verão, repletos de risadas e amizades inocentes.
Também foi, porém, o final desta mesma década que
marcou o fim da minha visão imaculada do mundo, e me fez
perceber que, às vezes, na vida, nos deparamos com
situações bizarras que simplesmente não conseguimos
explicar.
Eu nasci e cresci em Oswaldo Cruz, um bairro do
subúrbio do Rio de Janeiro conhecido pela tradição no
Samba. Minha mãe tinha crescido em uma típica cidade do
interior, Trajanos de Moraes. Lembro bem de incontáveis
visitas felizes a parentes e amigos por lá, memórias que
geralmente remontam a tardes chuvosas e jogos de
tabuleiro. No entanto, foi justamente em uma dessas visitas
que o primeiro incidente sinistro responsável por me fazer
questionar o que eu conhecia como realidade realmente
aconteceu.
Era o verão de 1989 e eu tinha nove anos. Minha família
estava visitando uma velha amiga de infância da minha
mãe, a tia Hilda. Eu estava muito animada por estar lá,
porque esse pessoal tinha uma filha chamada Eliza que era
da minha idade, e isso significava que eu não precisaria
ficar sozinha com a choradeira irritante do meu irmãozinho
de seis anos de idade, que não aceitava perder nas partidas
de Banco Imobiliário (que ele insistia em jogar mesmo sem
fazer a menor ideia de como funcionava o jogo). Ia ter uma
festa de jantar no fim da tarde, e depois disso minha família
me deixaria por lá para passar a noite. Lembro que me senti
bem especial, porque meu irmão iria voltar com meus pais,
e eu ficaria com a diversão toda só pra mim.
Os outros convidados ainda não haviam chegado e
faltava bastante para o jantar ficar pronto. Como não
queriam crianças no caminho enquanto a comida estava
sendo preparada, a Eliza, o irmãozinho dela, o meu
irmãozinho e eu fomos mandados para o quintal dos fundos,
para brincar (e não atrapalhar) até que fosse a hora de
voltar para dentro, lavar as mãos e comer.
Eliza morava em uma rua sem saída, e sua residência
dava para os fundos da pista de corrida de Trajanos de
Moraes. Atrás da casa da Eliza, ao longo de toda a extensão
da rua estreita, havia um grande terreno com uma velha
casa condenada, que havia sofrido um incêndio muitos anos
antes.
No final dos anos oitenta, os rumores sobre o destino
daquela casa corriam soltos. Alguns falavam sobre um
incêndio criminoso por causa de dívidas de drogas, outros,
que a casa havia abrigado um maníaco sexual e sua família,
e que eles tinham sido vítimas de um ataque justiceiro.
Havia até quem dissesse que um dos ocupantes da casa
cometera um assassinato e alguém decidiu que era hora
daquela pessoa ter o que merecia. Infelizmente, tudo de
que se tinha certeza era o fato de que, em um quarto do
andar de cima, dois jovens haviam sucumbido à inalação de
fumaça.
Em volta da casa existia um enorme pomar que
precisava de poda e, cercando o terreno, um muro alto e
irregular.O portão de entrada, igualmente alto, trancado
com um enorme cadeado enferrujado, estava exatamente
do outro lado, longe da casa da Eliza. Como éramos
crianças pequenas, abençoadas com a ignorância sobre a
história desoladora da casa, Eliza, nossos irmãos e eu
passamos muitas horas com nossos pais entrando lá por
uma fresta na cerca do jardim e passeando pelo terreno,
colhendo maçãs, pêras e amoras, que depois usaríamos
para fazer tortas de frutas quando voltássemos para casa.
Naquele dia em particular, enquanto Eliza e eu
sentávamos inquietas no fundo do jardim, completamente
entediadas depois de brincar com todos os brinquedos do
quintal e de passar os últimos dez minutos fazendo carinho
no coelho de estimação dela, nossos olhos se encontraram
e ela acenou com a cabeça na direção do buraco da cerca.
Sabendo muito bem que não devíamos entrar no pomar
sem permissão, e dando uma olhada rápida e furtiva para
os nossos irmãos brincando com aqueles “brinquedos de
meninos” bobos perto da porta dos fundos, nós
sorrateiramente nos esgueiramos pela cerca e para o mato
além dela.
Não sentimos medo de ficarmos sozinhas por lá, pois o
pomar era nosso velho conhecido havia tempos. Animadas,
brincamos e fantasiamos sobre fadas e seres mágicos
enquanto escalávamos os galhos e deixávamos cair maçãs
pequenas nos bolsos da frente do nosso macacão. Talvez,
com um pouco de sorte, se falássemos para os nossos pais
que só entramos um pouquinho para pegar as frutas, eles
deixariam passar nossa desobediência e, quem sabe, até
nos deixariam fazer torta de maçã depois do jantar.
De repente, e sem muita surpresa, percebemos que a
velha casa abandonada estava bem na nossa frente. Dava
pra perceber pelo exterior que o lugar deveria ter sido
realmente magnífico um dia. Dois andares construídos em
pedra cinza, a casa nos inspirou a romantizar sobre belas
princesas trancafiadas em torres cobertas de heras. Era
triste ver a fuligem, as janelas quebradas ainda com cacos
de vidro no andar de baixo, e a porta da frente coberta de
mato, que há tempos havia caído das dobradiças e estava
começando a apodrecer no chão coberto de musgo. As
janelas do andar de cima estavam cobertas com tábuas,
provavelmente numa tentativa de se tornar menos
acessíveis aos vândalos, e o telhado parecia irregular, como
se os azulejos de ardósia fossem despencar a qualquer
momento. Boquiabertas, nós admirávamos a casa. Eu
confesso que estava pensando de novo em belos príncipes
correndo pelo pomar, espadas em mãos, prontos para
oferecer o “Beijo do Amor Verdadeiro”.
Eliza, que era líder do grupo de escoteiras da igreja
local, e muito envolvida com atividades esportivas fora da
escola, era muito mais atrevida do que eu e de uma
natureza extremamente curiosa. Ela logo falou que
“tínhamos que entrar” e explorar. Hesitante, mas por
apenas um segundo, concordei, e marchamos adiante.
Olhando através da porta dilapidada, diretamente à nossa
frente, podíamos ver um grande saguão com uma sala
imensa, bem iluminada, à esquerda. Olhando mais para
dentro, vimos várias portas que davam para a esquerda e,
ao fundo, o que parecia ser a cozinha. Mas era difícil dizer,
pois o saguão era realmente muito longo, quase um
corredor. Havia uma larga escadaria para a direita que
escondia qualquer possível porta naquele lado do saguão.
Olhando para a escadaria, eu senti a primeira pontada
de desconforto. Por causa das janelas cobertas com tábuas
no segundo andar, era difícil enxergar muita coisa lá em
cima. Na verdade (e claro que isso devia ser por conta da
minha imaginação de criança), as escadas pareciam ser
engolidas no meio do caminho por uma escuridão
sobrenatural.
Parecendo não notar aquela enorme escadaria que
lembrava uma feia boca aberta, Eliza pegou a minha mão e
me puxou para a grande sala à nossa esquerda, que com
certeza tinha sido uma sala de estar um dia. Havia uma boa
quantidade de papel de parede coberto por graffiti e
danificado pela fuligem, descascando em todo ambiente.
Havia até algumas poltronas velhas, de aparência sombria,
que com certeza já tinham visto dias melhores. Esquecendo
da escadaria por alguns momentos, me agachei perto de
um sofá, chamando Eliza para me seguir, e deixamos
algumas de nossas maçãs rolarem pelo assoalho
desgastado. A luz, que vinha magicamente por entre a copa
das árvores, entrou pelas janelas quebradas. Lembro que
todo o local parecia encantado, como se fadas de verdade
pudessem realmente viver ali.
Sentamos no chão e conversamos por um bom tempo,
rindo sozinhas, com nossa inocência infantil, de uma peça
que estávamos pensando em pregar no irmão de Eliza
naquela noite. Ela tinha um par de walkie-talkies, e
queríamos deixar um debaixo da cama dele, esperar ele
deitar para dormir e sussurrar coisas sem sentido para
deixá-lo morrendo de medo. Pensando agora, parecia algo
bem cruel de se fazer com o pobrezinho, mas na época nós
genuinamente achamos que seria muito engraçado.
Mordi uma maçã que pesquei do meu macacão
enquanto estudávamos a ideia de visitar as outras salas no
andar térreo. Concordamos sem nenhum tipo de resistência
que não iríamos no andar de cima, pois, ainda que fôssemos
tão jovens à época, tínhamos o bom senso de perceber que
a escadaria provavelmente era muito insegura depois do
fogo, então preferimos não nos arriscar, sabendo que
nossos pais ficariam furiosos caso alguma coisa ruim
acontecesse. Foi então que me ocorreu que Eliza também já
deveria ter percebido a escuridão e o silêncio sobrenaturais
da escadaria, já que entramos na casa sem nenhum desejo
de ir bisbilhotar em lugares que certamente não pareciam
muito acolhedores.
Enquanto conversávamos, começamos a ouvir um tap,
tap, tap, muito suave, seguido do que soou como um leve
barulho arranhado. Parecia vir do lado de fora da janela da
sala onde estávamos. Congelamos, nossa cabeça
balançando de curiosidade para olhar. Ficamos desse jeito,
em silêncio, por uns bons minutos. Depois de não ouvir mais
nada, Eliza riu, o que me preocupou. Afinal, se tivesse mais
alguém por ali, com certeza teriam ouvido a gargalhada
dela. Me repreendi inconscientemente por ser tão medrosa,
mas não pude deixar de perceber o quão bobas fomos de
nos enfiar no pomar sem que ninguém nem ao menos
soubesse que tínhamos saído do jardim. Não houve mais
sons. Tudo ficou repentinamente quieto.
“Você ouviu aquilo?”, perguntei, baixinho.
Eliza deu de ombros, dizendo que tinha certeza que o
barulho viera de algum dos gatos do vizinho, ou então de
algum galho balançando com o vento e se chocando contra
a janela quebrada. De qualquer forma, para mim, o nosso
santuário encantado, naquele momento, perdeu boa parte
do encanto… Guardei minha fruta parcialmente mordida de
volta no macacão, nervosa. Eliza pegou a minha mão,
levantamos e nos dirigimos até a porta para explorar mais
adiante.
Depois de sair da sala, tivemos uma visão melhor do
saguão. Havia só mais duas portas no lado esquerdo. Ambas
pareciam escancaradas, mas a iluminação estava longe de
ser maravilhosa; não conseguiríamos enxergar nada sem
entrar. Lembro muito bem da sensação ruim que o lugar
passou a me transmitir, quando comecei a achar tudo
extremamente assustador. Eu sentia um tipo estranho de
desconforto. Confidenciei minhas novas opiniões sobre não
querer mais continuar a exploração à Eliza, mas ela
simplesmente riu e disse que eu estava sendo boba.
Tentando colocar meus medos de lado, segui a Eliza
para dentro da próxima sala. Uma vez dentro, relaxei um
pouco. O vidro da janela estava quebrado, mas sua
estrutura era grande, e a sala, bem iluminada. Parecia ter
sido muito bonita um dia. A maior parte da mobília ainda
estava no lugar, incluindo uma grande estante de madeira.
Não tinha mais nenhuma porcelana, é claro, pois a casa
provavelmente tinha sido saqueada anos antes; havia muito
mais graffiti ali do que na primeira sala, e ela era
consideravelmente mais danificada que a anterior.Encostando nos restos apodrecidos de uma grande mesa de
madeira, desenhei um rosto na fuligem.
Eliza limitou-se a abrir gavetas e a tagarelar sem parar
sobre quem poderia ter vivido ali. Eles “com certeza deviam
ser muito chiques”, ela disse, “pois toda a mobília era muito
bonita”. Ou pelo menos havia sido em algum momento…
Enquanto Eliza explorava, fui até o rack para examinar o
belo design que havia sido esculpido na madeira.
Foi nesse momento que percebi algo soando como
passos ligeiros e leves, diretamente acima do lugar onde eu
estava. Eu não disse nada e escutei por um minuto,
sentindo minha pele começar a arrepiar em calafrios. Os
passos pareciam ir e voltar. Um, dois, três, quatro… E de
novo. E de novo.
“Eliza, você ouviu isso?”, sussurrei, apontando para o
teto.
Os movimentos de Eliza foram desacelerando até
pararem por completo, e ela olhou para cima, seguindo
meus olhos para o teto descascado. Silêncio. O som cessou
tão de repente quanto começou. Então, novamente, mas
acho que sem muita convicção, Eliza riu de mim e disse que
eu deveria ser mais corajosa… Mas seus olhos relancearam
pelo menos mais duas vezes para o teto antes que
terminássemos a inspeção da sala.
Quando saímos pela porta, Eliza insistiu que a gente
“precisava” explorar a terceira sala do corredor, e que então
nós poderíamos ir, já que eu, claramente, “era muito
bebezona para continuar”. Será que ela realmente não
sentia o mesmo pavor que estava alojado no fundo do
mesmo estômago? Até hoje eu a pergunto como ela pôde
ter sido tão blasé sobre o fato de que estávamos no meio de
uma casa caindo aos pedaços, cheia de barulhos estranhos,
abandonada no meio de um pomar, sem que ninguém
soubesse que estávamos lá. Eliza sempre responde que era
muito corajosa naquela idade. Eu, é claro, já sabia do
contrário.
Eliza colocou uma mão na porta da terceira sala,
tomando cuidado para não deixar cair as maçãs restantes, e
empurrou. A porta abriu e nós duas ficamos boquiabertas ao
mesmo tempo. Eu, de terror, mas ela, como gosta de contar
até hoje, de admiração.
Aquela era, sem dúvidas, a sala na qual o fogo tinha
feito o maior estrago. Era bem menor do que as outras
duas, e a janela era muito pequena, impedindo qualquer luz
de entrar. As paredes eram negras, cobertas de fuligem, e
não tinha quase nenhuma mobília à vista. A parede aos
fundos havia queimado por completo, deixando visível um
estranho desenho de algo parecido com um olho gigante.
Estatelado e assustador, cercado por vísceras que mais
lembravam os braços de um polvo. De alguma forma, as
sombras pareciam ansiosas para atacar. Como se, a
qualquer momento, pudessem saltar da parede enegrecida
em nossa direção.
Do outro lado, silhuetas de vários utensílios de cozinha
pendurados. Comecei a pensar em como pareciam
prisioneiros há muito mortos, algemados em alguma
masmorra, quando um som como o de uma goteira chamou
nossa atenção. Procurando a fonte do barulho, notamos
uma poça cinza e suja contra a mesma parede queimada,
vazando para a cozinha. Olhando para cima, vimos um
buraco escuro no teto, parecendo tão pouco convidativo
quanto a escadaria. Era dele que vinha o líquido estranho, e
então eu cheguei à conclusão de que, para mim, já bastava.
“Esse lugar é horrível”, eu disse, incomodada. “Podemos
ir embora? Por favor?”
Todas as fantasias com fadas e princesas já haviam
desaparecido, substituídas por irritação, pensamentos ruins
e medo. Aquele lugar não era nenhum palácio. Era um lugar
onde coisas ruins haviam acontecido. E eu só queria ir
embora. Eliza olhou para mim e suspirou, “Ok…”, e, então
nós viramos na direção da porta aberta no início do saguão,
gloriosa, iluminada… segura. Tão convidativa quanto uma
sorveteria ou loja de brinquedos.
Foi então que as coisas deram uma virada para o
inexplicável.
Demos apenas alguns passos na direção da porta, e
então paramos. Lembra daqueles brinquedos antigos que a
gente chamava de “Bola Pula Pula”? Pareciam balões
gigantes e coloridos, feitos de material reforçado e com
grandes orelhas, nos quais você podia sentar em cima e
pular por aí. Eliza tinha um desses, era bem rosa, e na
frente tinha o rosto de um coelho meio bobão. Só que tinha
ficado na casa dela, e agora estava ali, no saguão, bem na
base da escada, olhando para a gente e balançando para
um lado e para o outro, como se tivessem acabado de usá-
lo.
O brinquedo me fez sentir fisicamente mal. Eu estava
certa, no fim das contas. Alguém estava lá. Mas quem
diabos poderia ser? Será que os nossos irmãos tinham nos
visto escapar pelo pomar, e então decidiram pregar uma
peça na gente? Deus, quando lembro da sensação, de como
pensei no quanto fomos tolas em desaparecer daquela
maneira, e no que poderia acontecer, agradeço por ainda
estar aqui.
“Vem…”, Eliza sussurrou, vacilante.
Não havia outro jeito de sair. Eu não queria tentar a
sorte com nenhuma das janelas quebradas das primeiras
duas salas, que ainda tinham vidro quebrado. Se eu
rasgasse meu macacão, minha mãe ficaria furiosa. Senti
meu estômago embrulhar enquanto seguimos à frente, com
mais e mais do saguão ficando à vista e revelando a boca
larga, aberta e negra da escadaria. De repente, Eliza pulou
e soltou uma grande gargalhada, e então pegou a minha
mão e me puxou. Eu olhei para cima e imediatamente me
senti um pouco aliviada.
Parada ali, no primeiro degrau da escada, estava
Evangelina, amiga da Eliza. Eu tinha esquecido
completamente que a família dela também tinha sido
convidada para a festa de jantar.
Um ano mais velha que a gente, Evangelina morava na
rua paralela à de Eliza, a rua que tinha a entrada para a
pista de corridas de Trajanos de Moraes, onde as famílias
mais abastadas moravam. Evangelina tinha uma
personalidade extremamente mandona, resultado direto de
sua criação mais “privilegiada”. Depois de recuperar-se da
surpresa, Eliza perguntou o que ela estava fazendo ali, e se
ela tinha nos visto entrar. Evangelina apenas sorriu, com
aquele sorriso largo e irônico que conhecíamos bem, e
então apontou para as escadas.
“Venham, vamos subir!”, disse, com sua voz distinta e
meio pomposa. O pai da Evangelina era diretor de uma
empresa a várias cidades de distância, e ela estudava em
um internato durante o ano, voltando para casa apenas nas
férias, cada vez mais comportada e falando melhor. “Eu
estava explorando aqui em cima e encontrei algo que
desejo muito mostrar a vocês!”
Com isso, ela virou as costas e subiu os últimos
degraus, ligeira. Eliza, é claro, prosseguiu de imediato, mas
quando eu olhei para a escuridão e lembrei do buraco na
terceira sala, alguma coisa dentro de mim me fez agarrar o
pulso dela e impedir que continuasse.
Percebendo que não a acompanhávamos, sem nem ao
menos se virar, Evangelina falou de novo.
“Venham logo”, insistiu. “Vocês realmente precisam ver
o que eu encontrei…”
Mas Evangelina já não estava mais subindo os degraus
rapidamente. Ela passou a subir bem mais lentamente, um
degrau de cada vez, levantando um pé, e depois o outro,
sem olhar para trás. Mais uma vez senti uma inquietude que
embrulhou meu estômago. O que diabos ela poderia ter
encontrado naquela escuridão total? E, honestamente, o
que ela estava fazendo sozinha naquela casa para início de
conversa? Era o último lugar onde uma garota bem
comportada como ela deveria estar.
Evangelina deu outro passo adiante e parou.
“Vocês vêm?”, perguntou.
Dessa vez, a voz dela soou irritada, exigente. Mesmo
assim, continuou sem se virar, parada, com os braços
largados. Eliza, de repente, recuou uns dois passos, e se
virou para mim:
“Olha só para as roupas dela…”, disse, quase num
sussurro.
Eu olhei para Evangelina, e ela deu mais um passo na
direção da escuridão cada vez mais intensa, mas então eu
percebi algo. Evangelina era uma menina muito, muito
feminina. Eu, ela e Eliza, às vezes, comparávamos roupas.
Lembra, nos anos oitenta, aquelas horríveis saias “Ra-Ra”,
com cores berrantese camadas, que combinavam com
camisetas de babado ou macacões? Bem, Evangelina nunca
era vista sem uma dessas roupas. No entanto, a menina à
nossa frente estava vestindo o que parecia ser um jeans
azul escuro, rasgado na altura da canela, e uma espécie de
suéter cinza e chamuscado. Enquanto eu a olhava subir,
agora quase totalmente engolida pelo implacável nada, foi
quando percebi outra coisa.
Deve ter sido uma ilusão de ótica, talvez provocada pela
minha mente fértil e amedrontada, mas enquanto a
escuridão se fechava em volta dela, outras silhuetas
pareciam acompanhá-la, como se houvessem mais pessoas
no andar de cima. Tremendo, olhei para Eliza mais uma vez,
e notei que ela também mantinha os olhos fixos em
Evangelina. Só que seus olhos, agora, estavam estreitos e
marejados. Pela primeira vez ela também percebia que
alguma coisa estava errada.
Tentei dar um passo para trás, mas eu estava
paralisada, experimentando pela primeira vez na vida o
medo irracional. Poderia ser o ambiente sinistro, somado ao
comportamento estranho da nossa amiga, que me fazia
imaginar coisas, mas o ar ficou instantaneamente pesado, e
fui preenchida pela mesma sensação péssima de quando
descobri que minha avó tinha falecido, e minha respiração
falhou.
Quase impossível de enxergar agora, Evangelina, ou
quem quer que fosse, finalmente parou seus passos
intencionalmente lentos e se virou. As outras sombras
também se viraram. Elas não eram nada mais do que
silhuetas escuras. Mais uma vez nós a ouvimos falar. Só
que, dessa vez, a ouvimos em um suspiro, como um som
ecoando apenas dentro da nossa cabeça.
“Vocês vão subir para ver o que a gente encontrou, ou
vamos precisar ir aí e puxar vocês? Venham… Nós só
queremos brincar.”
Ficamos em silêncio, incapazes de nos mover. Eu só
queria sair dali, só queria que nossos irmãos aparecessem,
rissem da nossa cara e dissessem que era tudo brincadeira.
Tinha que ser uma brincadeira. Eliza choramingou, e
apertou a minha mão. Evangelina desceu um degrau, na
nossa direção. Os “outros” também.
“Então… Se vocês não vêm…”, sussurrou, em um tom
irônico. “Nós vamos.”
O que aconteceu em seguida fez nossos pés voltarem
subitamente a funcionar. Evangelina e as outras silhuetas
estenderam braços negros, feito tentáculos, que esticaram
escada abaixo na nossa direção, preenchendo todo o
ambiente com um forte cheiro de carvão queimado.
Gritando, demos as costas àquelas coisas na escadaria, que
ultrapassavam qualquer tentativa de compreensão dos
nossos nove anos, e corremos com tudo para a porta da
frente.
Esquecendo qualquer plano que um dia tivemos de
fazer torta de maçã, as frutas que ainda nos restavam
caíram de nossas roupas. Cambaleamos loucamente por
dentro do mato, sem olhar para trás, e finalmente surgimos
de dentro do buraco na cerca, nosso coração trovejando,
enquanto berrávamos. Nossos irmãos olharam admirados
para nossa aparência desesperada.
“O que foi isso que acabou de acontecer?”, ofeguei para
Eliza, quando sentamos novamente na segurança do jardim
da casa dela. “O que diabos Evangelina estava fazendo para
nos assustar daquele jeito?”
Tentando nos recuperar do susto e procurando algum
sentido no que tínhamos vivenciado, falamos brevemente e
fizemos o máximo para nos convencer de que a natureza
sinistra do andar de cima da casa tinha feito nossa mente
ajudar Evangelina e pregar uma peça em nós.
Olhando uma para a outra, sem que estivéssemos
totalmente convencidas da nossa segurança, caminhamos
pelo jardim para a porta de trás, abaladas e desesperadas
por um copo de água. Eliza falou rapidamente sobre tentar
convencer nossos irmãos a quebrar as regras e nos
acompanhar de volta para o pomar, para ver se
conseguiríamos encontrar Evangelina e trazê-la de volta
conosco. Lembro que eu queria tudo naquele momento,
menos voltar ao pomar.
A porta dos fundos da casa da Eliza dava para a
cozinha, que, por sua vez, apontava para um corredor
percorrendo todo o comprimento da pequena casa,
terminando bem na entrada principal. Enquanto bebíamos
água em grandes sorvos, uma batida na porta da frente
chamou nossa atenção. Automaticamente nos viramos para
o corredor, para ver a mãe da Eliza atender a porta. Num
pensamento delirante, imaginei as sombras tocando a
campanhia e perguntando para a mãe dela se nós
estávamos ali. Mas não eram sombras, e sim a mãe da
Evangelina, tia Marina, que sorria e trazia, firme em sua
mão, uma garrafa que parecia ser de vinho.
Ela começou a se desculpar por ter chegado mais tarde
do que o esperado, e explicou que o carro tinha falhado em
dar partida depois que ela parou na mercearia da vila, e isso
a atrasou bastante. Quando ela foi convidada a entrar na
sala de estar pela mãe da Eliza e a abraçou, nossa boca se
abriu de espanto, e o horror voltou a revirar o fundo do meu
estômago. Evangelina estava logo atrás dela, cabelos
trançados com primor, vestindo um combinado rosa e
branco de saia Ra-Ra e camiseta, abraçada com uma
mochila rosa e fofa.
Eliza e eu olhamos espantadas, e Evangelina nos olhou
de volta com confusão. Será que imaginamos nosso
encontro na casa abandonada? Será que era outra pessoa?
Oh, as formas como as crianças racionalizam tudo… Nós
acreditávamos em fadas, afinal. Tinha sido outra menina,
então? Tínhamos tanta certeza de que era ela…
Finalmente, o olhar confuso evaporou do rosto de
Evangelina. Ela sorriu para nós, e então reclamou, com
aquele jeito dela, de que seu dia tinha sido “muuuuito
chato” até o momento, e se nós poderíamos “por
favooooor” ir para o quarto da Eliza brincar de My Little
Ponies um pouco antes do jantar ficar pronto. Ela, em
seguida, passou sua mochila parcialmente aberta para Eliza
guardar no cabideiro perto da escada. A menina olhou para
dentro da mochila e seu rosto ficou branco como gesso.
Assustada, imaginando o que poderia estar errado
agora, olhei de Eliza para Evangelina, e depois para a
mochila. Ainda sorrindo, Evangelina, agora parada no
primeiro degrau das escadas, olhou diretamente para mim e
apenas disse “Bobas, bobas, bobas…”, enquanto Eliza
deixava cair com nojo a mochila, derramando seu conteúdo
no chão do corredor. Rolaram maçãs iguais as que colhemos
mais cedo.
“Vocês deixaram suas maçãs para trás”, Evangelina
continuou, seus olhos brilhando. “Como vocês querem fazer
tortas sem elas?”
Não soubemos o que responder. Evangelina pegou uma
das maçãs, deu uma mordida e, sorrindo, perguntou:
“E então? Vamos ou não vamos subir para brincar?”
Nem preciso dizer que, preferindo a segurança da sala
de estar cheia de adultos, nós recusamos o convite de
Evangelina.
Marcus Barcelos - escreve livros e levanta pesos. Facebook:
Marcus Barcelos / Instagram: @m.v.barcelos
 
VHS
Insanos, a loucura do inexplicável
Glau Kemp
Ana está dormindo no quarto. O rádio relógio disparou há
quarenta minutos, mas o alarme foi contido por uma toalha
úmida, deixada no criado mudo na noite anterior. Os lábios
permanecem comprimidos. Tem medo. Os cabelos longos
espalhados na cama formam ondas, como se imersos no
mar. O corpo gelado pesa no colchão, os pés e mãos não
obedecem aos comandos. Agora está acordada, porém, não
desperta; a mente foi ativada, mas o corpo, não.
Alguém gritando.
O coração dispara, o tremor da cama é o único
movimento que experimenta. Estão batendo na porta, seu
gato esperneia no corredor; a maçaneta voa pelo cômodo. A
porta abre rangendo, alguém entra; ela sabe que é um
homem, apesar de ele não possuir rosto, só uma boca sem
lábios, e dela pendem as vísceras de seu gato Putz.
Morto.
O homem avança, não está sozinho; atrás dele surgem
outros, com braços longos e dedos que arrastam. Ana tenta
gritar, os olhos vertendo lágrimas que aquecem a pele, fora
isso tudo é paralisia. O cabelo toma a forma de mãos que
envolvem seu pescoço. As criaturas entram. O homem
encosta o dedo fino no pé de Ana. Asqueroso. O dedo é do
tamanho de um antebraço, a criatura segue roçando-o nocalcanhar dela, a sensação do toque é densa; a reação,
nula.
Desliza a mão na perna de Ana. A cada passo, crava as
unhas em sua pele. Para no ventre enquanto a segunda
criatura acaricia a outra perna, um pedaço do gato cai,
ainda está quente e Ana acha que sente a carne pulsar por
um instante. O intruso faz um círculo na virilha dela e desce
devagar.
Os cabelos apertam o pescoço, fechando
completamente a garganta por um minuto, depois alivia a
pressão, permitindo algum oxigênio. A criatura chega mais
perto, dedos em seu seio ‒ a mente grita. O homem
aparece diante de seus olhos, exibe dentes grandes. Entre
eles: Putz em pedaços.
A segunda criatura sobe na cama, arranhando suas
coxas, fazendo sulcos com as unhas. O hálito é intenso e
possui um odor desconhecido, mas no fundo ela sabe, é o
gosto do gato. Com as duas mãos, ele segura a face dela,
começa a introduzir um dedo em cada ouvindo, a dor toma
conta. Ana sente as unhas escavando espaço em seu
cérebro, a outra criatura quer fazer o mesmo, mas violando-
a por caminhos diferentes. Os cabelos seguem apertando ‒
dessa vez, sem alívio.
Morrendo!
Um som diferente substitui o caos dos ouvidos, dissolve
o sonho que virou um pesadelo intenso e uma experiência
extracorpórea. Na sala, o telefone toca. Na quinta vez, ela
abre a boca e leva as mãos ao pescoço rígido. Estou
atrasada, pensa. O horror se vai. Em parte, tudo fora real,
mas em outra realidade; nesta, de agora, Putz e ela estão
vivos. Ana corre e atende a ligação: uma voz desesperada.
A mãe, uma senhora que acompanha os noticiários do Rio
de Janeiro para saber como anda a cidade em que a filha
mora.
— Ô, Filha! Ainda bem que tá em casa! ‒ Ana não pode
ver, mas isso não a impede de enxergar a mãe esfregando
as mãos.
— Mãe, tô atrasada, o que foi?
— Aninha, liga no noticiário. Aconteceu uma coisa
horrível aí, o prefeito falou pra não sair de casa.
— Como assim?
— Não sai de casa! Escuta sua mãe.
O fio do telefone não chega até a TV. Encerra a ligação
com promessas vazias de ficar em casa. O choque de estar
atrasada é substituído por outro maior. As mãos transpiram
enquanto gira o botão, a imagem preta e branca aparece. “A
Ponte Rio‒Niterói permanece fechada”, a repórter ajeita os
fones, “a Marinha resgatou doze pessoas, ainda não
sabemos o estado de saúde.”
O apresentador do jornal repete a informação: “Por volta
das seis e meia da manhã, algumas pessoas pararam em
pontos diferentes da ponte que corta a baía de Guanabara,
desceram do carro e pularam na água”.
Ana se cansa de ver a imagem de uma mulher jogando
um bebê pela ponte. Muda de canal; todos falam sobre o
assunto.
“Até agora, temos trinta casos.” As filmagens são
repetidas. Numa delas, um homem corpulento arranca uma
mulher de um fusca. Ela joga o bebê, o homem a empurra e
pula.
— Que merda é essa? ‒ Ana sussurra. Não nota, mas
copia o habitual gesto da mãe de apertar as mãos.
Passa uma hora alternando canais. Trinta pessoas
saltaram da ponte, no mesmo horário. Por meio dos
documentos abandonados, a polícia entra em contato com
as famílias. A cidade travou com a interdição da ponte, que
só reabriu quatro horas depois. Tudo foi registrado pelo
moderno sistema de vigilância por câmeras da ponte.
Ana coça a parte de trás do ombro, faz tempo que
aquilo a incomoda, sente uma fisgada e, quando puxa a
mão, as unhas estão recheadas com lascas de pele e
sangue. Um som alto a faz dar um pulo do sofá. Alguém
esmurra a porta. Rita entra, olhos arregalados, veste a
mesma roupa do dia anterior.
— Ana! Ana, me ajuda! ‒ Aos prantos, Rita aponta para
a TV. ‒ O Beto! Ele é um dos suicidas!
— Que isso, Rita? Tá louca?
— O carro dele foi abandonado no vão central!
Acabaram de ligar. ‒ Rita desaba.
Ana não sabe o que fazer, a melhor amiga chega com a
pior notícia do mundo. O irmão dela, o rapaz que Ana ama
desde a adolescência, está morto.
— Não, eu vou ligar pro serviço dele e você vai ver ‒ o
choro chega à voz antes de brotar dos olhos. ‒ Deve ser um
engano.
— Ana! Tem um vídeo, tá passando toda hora. ‒ Com a
menção do vídeo, Ana para, segurando o telefone. Rita
finaliza: ‒ Beto é o cara do fusca.
Ana resgata na memória a visão, o homem puxando a
mulher. É ele. Larga a agenda telefônica e escorrega para o
chão, ao lado de Rita. Choram, entre lembranças e a
repetição das notícias. De onde estão, não é possível ver a
TV, somente ouvir, mas o assombro de telespectadoras
passou. A curiosidade mórbida sentida diante dos desastres
desapareceu no segundo em que a desgraça deixou de ser
alheia. A dor agora é presente, sólida como concreto. Rita
perdeu o irmão, e Ana, o namorado.
— Por que ele faria isso, Rita? ‒ Abraçada ao próprio
corpo, aperta os braços e roça as unhas na pele arrepiada.
Como quem rejeita algo repugnante.
— Não faz sentido. Meu irmão era a pessoa mais alegre
do mundo. ‒ Rita não para de chorar, lágrimas escorrem, a
voz oscila.
— Não é ele. Não acredito! E tem a mulher que ele
jogou. Quem era? Por que todos pularam ao mesmo tempo?
‒ Ana sacode a cabeça. ‒ Mesmo que por algum motivo ele
pudesse suicidar… o Beto nunca machucaria uma mulher!
— Tenho que ir ao IML ‒ Rita recupera um traço de
lucidez. ‒ Estão chamando os familiares.
— Vou com você.
***
Pegam a barca para o centro. Rita aninha-se na cadeira de
madeira. Não diz, mas evita olhar a ponte. As pessoas ao
redor não facilitam a tarefa, insistem no assunto e diversas
são as especulações sobre o caso. Ana contempla a
construção; o céu azul, a baía de Guanabara brilha ao sol,
quase um insulto ao seu sofrimento. Um dia terrível devia
ser feio e nublado. Olha para o ponto mais alto da ponte e
não consegue imaginar como alguém pode pular, muito
menos o Beto. Lembra-se dos conselhos de um professor,
advogado criminalista: “As pequenas coisas que nos fazem
vencer. O geral todos sabem, o resumo passa na TV e os
caras do boteco discutem. Se atente aos detalhes, eles
fornecem as respostas”.
— Quando foi a última vez em que esteve com ele, Rita?
— Ontem à noite. Ele saiu hoje cedo pra colher sangue
pra um exame. Pedido do médico que eu mesma marquei
pra ele semana passada.
— Ele tava doente?
— Não, só uma crise alérgica.
Chegam ao IML, são escoltadas por policiais, entram no
prédio com uma quantidade alarmante de microfones e
gravadores. Ana estremece ao perceber que a mãe vai
reconhecê-la no noticiário. Um assistente social as
acompanha até a pequena sala e aconselha a tentarem
responder aos investigadores com a maior quantidade de
detalhes. Um policial entra com uma pasta. Dá boa-tarde.
— Sabemos que é difícil. ‒ Ele faz uma pausa. ‒
Encontramos um corpo que acreditamos ser o seu irmão.
Tiramos uma foto de uma tatuagem dele, gostaríamos…
— Meu irmão não tem tatuagem. ‒ Rita interrompe. ‒ E
vocês não falaram nada de corpo ao telefone.
— A senhora já informou sobre a ausência de tatuagens,
porém insisto.
— Deixa eu ver ‒ Ana puxa a fotografia. ‒ É a bunda
dele?
— Não, o desenho está localizado na parte de trás da
coxa.
— Beto não tinha tatuagem, moço. ‒ Responde Rita,
voltando-se para Ana com olhar de súplica. ‒ Não posso
fazer isso, Aninha. ‒ Aperta forte a mão da outra. ‒ Mesmo
sabendo que não é ele, não quero olhar. Sabe, ele não tinha
tatuagem. ‒ Rita desvia o olhar para a foto em cima da
mesa, um símbolo torto de cor avermelhada, parece um
carimbo; lembra um 30.
Sem dizer nada, Ana avança. O homem pergunta qual é
seu parentesco, Rita diz que Ana é namorada. O homem
pergunta se pode levantar o plástico que cobre o corpo, Ana
autoriza. O estômago encolhe e suor escorre pelas costas.
Ela emite sons finos e arfados, uma pessoa sem ar. É isso
que a visão do corpo inchado de Beto provoca nela. É ele!
É certo dizer que não é o homem que conheceu, alegre
de sorriso fácil. Aquele à sua frente é uma versão sinistra
dele, de olhos esbulhados, a boca semiaberta, pela branca e
fosca. Uma casca, só um corpo orgânico, o resquício da
pessoa queamou.
Ana não chora; a dor é petrificante, é provável que as
lágrimas estejam se acumulando em algum reservatório, e
que dentro de uma semana transbordem. Certamente em
um local inapropriado, como na fila do banco, ou quando
Ana estiver espremida dentro do ônibus, na hora do
engarrafamento.
— Quero ver a tatuagem. ‒ Engole uma bolota seca
garganta abaixo. Olha o desenho por um minuto inteiro, o
policial pergunta se está bom e ela concorda. Na verdade,
quer gritar: Está bom? Você me pergunta se está bom?
Realmente é uma tatuagem, malfeita como se não
tivesse dado certo. Conhecia Beto desde criança e ele não
tinha aquilo, um desenho horrível, para outra pessoa seria
motivo suficiente para esconder, mas Beto era divertido,
teria feito piada daquilo.
Um táxi é chamado, saem de vidros fechados embaixo
de pedidos de entrevistas. Ficam em silêncio na presença do
motorista até chegarem à estação das barcas. Abraçadas,
caminham como um casal. Rita desconhece os
pensamentos da amiga, mas Ana está remoendo o que sabe
sobre o caso. Ao sair do IML, fez uma promessa silenciosa
ao falecido: Descobrirei a verdade.
Um homem passa com uma cantada grosseira; Rita, não
se importando com o mundo à volta, ignora a insolência.
Mas a raiva que Ana sente a aquece tanto que começa a
suar; imagina as criaturas do sonho andando atrás do
infeliz, o homem sem rosto o segue até em casa e, no
minuto em que ele fecha a porta e vira de costas, dedos
finos passam por sua nuca. A criatura prende a língua do
sujeito entre as unhas e a arranca, enfia os dedos sob o
queixo e escalpela a face, exibindo músculo e gordura
branca.
Ana olha para trás e vê o homem já distante. Apressa o
passo. Quer chegar rápido em casa, não na sua, mas no
apartamento de Rita e Beto. A polícia traça em que grau as
vítimas estão relacionadas: onde moram e trabalham e o
que fizerem no dia anterior. Para Ana, são informações
secundárias, é o resumo que passa na TV. Ela, por outro
lado, irá atrás dos detalhes: as coisas que farão sentido.
Executa pequenas tarefas pelo apartamento, segura a
mão da amiga enquanto ela liga para parentes. Em silêncio,
choram, e quando Rita adormece, Ana vai para o quarto de
Beto. Revira gavetas, para vez ou outra para cheirar
casacos e acariciar fotos. Mexe na estante de livros, procura
por algo suspeito. A cada livro estranho, se aprofunda em
um universo menos condizente com Beto: magia negra e
seitas. Encontra uma pasta vermelha de papelão. Dentro,
um caderno preto, já na primeira página o coração dispara:
o símbolo da tatuagem a lápis. Nas páginas seguintes o
caderno é preenchido com citações. “O verdadeiro ato de fé
é doloroso, requer coragem e é insano.” “O futuro será
construído por poeira, assim como o passado.” “Ele nos vê.”
Até o fim com frases, todas escritas com a letra de Beto.
Fica nervosa, frases com mensagens vagas, mas o conteúdo
é forte para quem realmente quer acreditar. Falam de vida e
morte; fé e sacrifício.
Liga a TV do quarto em volume baixo. No telejornal, a
filmagem de segurança é repetida. Ana senta e observa a
hora que marca no vídeo: 06:28 AM. O fusca para
bruscamente, Beto sai, a porta do carona já está aberta,
abriu-se antes do carro parar, uma mulher sai e joga um
embrulho, carros passam buzinando, eles falam alguma
coisa, Beto coloca as mãos nos ombros dela, ela reage com
violência. Encostam-se à mureta, ela faz gestos duros,
debatendo-se, parece lutar com ele. Quando, de repente,
ele a joga e pula. Eles discutiam… Ela não queria pular e ele
a jogou?
Na TV, é impossível ver com clareza a feição. O
telejornal passa outros vídeos das vítimas pulando, todos
iguais. A semelhança é óbvia, as pessoas fazem
movimentos lentos, sentam na mureta e pulam de frente. O
corpo cai estranho, girando no ar. Na sétima vez que
assiste, percebe. Olhando atentamente, Beto estava
convencendo a mulher a não pular, ele balança sutilmente a
cabeça e realmente parece gritar a palavra não. Lutam, mas
ela consegue se soltar, parece que ele a empurra, mas ele
tenta segurar a roupa dela. Quando ela pula rolando de
lado, ele vai de cabeça atrás. Beto é o único que pula de
cabeça. Ele não queria se matar! Queria salvá-la.
Os pensamentos fervilham. Nesse momento, está
convencida da inocência de Beto, mas seu envolvimento
com algo perigoso é evidente. Vasculha o quarto, esvazia
armários e gavetas. Não encontra nada e volta-se para o
caderno. Na pasta, encontra artigos científicos. Inicia a
leitura de um texto e não gosta, o estudo aborda um
incidente de suicídio coletivo numa tribo indígena que
estudava exaustivamente as estrelas.
As peças soltas iniciam o doloroso processo de encaixe.
Um antropólogo pesquisava sobre suicídio. Beto tentou
evitar que uma mulher fizesse o mesmo. Agora ele está
morto. Ana ouve na TV o uso da palavra “insano” pela
primeira vez; estudiosos especulam sobre teorias para o
ocorrido, o adjetivo caiu no gosto da imprensa e “os insanos
da ponte” seria mencionado muitas vezes doravante.
O choro é silencioso, morde o punho, deixa uma marca.
Saliva escorre pela mão dolorida. Quer gritar e quebrar
coisas, o corpo não responde. Se Beto estivesse louco, a
loucura estaria espalhada no quarto. De alguma maneira,
ela ainda estaria ali, agora penetrando a pele de Ana. O
inexplicável a envolvia em sua rede sem sentido, porém
real.
Vai tomar banho com os dentes cerrados. Imóvel,
debaixo da água quente. O tempo passa. Só sai quando é
difícil respirar devido ao vapor. Passa a mão pelo espelho,
olhos fundos contrastam com a pele. No local onde seu
rosto devia ser refletido, uma mancha escura surge. Deixa a
toalha cair, esfrega o espelho. A mancha cresce, toma
forma: o homem sem rosto exibindo os dentes. Ele avança
sobre ela. Ana dá passos para trás, colando o corpo no
azulejo, esconde o rosto nas mãos. Desliza até sentar, o
calor vai se dissipando e o frio toma o lugar. Letargia. Uma
fisgada no ombro a desperta, levanta-se.
Coça as costas, não percebe que faz isso. As unhas
voltam com sangue. Vira-se para ver o ferimento. A imagem
é nítida aos olhos, mas não à mente. Olha sem piscar para o
espelho, ofegante, por vários segundos. Entre pequenas
dilacerações, reconhece a marca que viu em Beto.
Avermelhada, com pontos roxos de uma ferida um pouco
antiga. Parece mais um ferimento do que tatuagem. Beto
não falou sobre a tatuagem, pois não sabia. Pensa com a
convicção dos loucos. Ele foi ao médico por causa de um
problema alérgico, alérgico a isso! Exatamente como eu,
meu corpo rejeita essa coisa, o dele também deve ter
rejeitado. E eu também não sei de onde veio isso.
A perna treme, os olhos tornam-se alertas, levemente
desfigurados por um frenesi mental. Abre o armário atrás de
si e encontra uma caixa cheia de VHS. Volta ao quarto com
a caixa, veste só a calcinha, sem se enxugar, respingando
água. A marca parece o número trinta. Leva as mãos ao
rosto e fica ainda mais assustada. Trinta. Esse é o número
de mortos. Isso significa alguma coisa. O título das fitas são
estranhos: Banheiro, Investigação e Ativação. Liga o
videocassete.
O vídeo começa com uma adolescente em um quarto,
ela parece gravar um vídeo de dança, ouvindo música em
um walkman preso à cintura. Ela sorri, de cabeça baixa, não
olha para a câmera, aperta os botões escolhendo a música.
Sem nenhum motivo aparente, para e o riso morre, levanta
a cabeça, olhos vítreos. Com movimentos rígidos, caminha
até o banheiro no fundo da imagem. A câmera continua
filmando, é possível ver a jovem ligar a torneira e encher a
banheira, olha para água, permanece calada até que a
banheira esteja quase cheia. Entra.
Deita. A água transborda. Afunda. Bolhas de ar
explodem na superfície, é possível ouvir o barulho. O vídeo
é acelerado e passam-se dez minutos, a jovem não voltou à
superfície. Um telefone toca; passos, alguém bate à porta,
uma mulher entra e grita. Fica abaixada no meio do quarto
segurando o estômago, gritando, um som quepertence a
todas as mães que perderam um filho. Um som que parece
não ter fim, um grito capaz de ecoar para sempre. A
imagem é congelada, o vídeo para, mas Ana sabia o que
aconteceria quando viu a adolescente ligar a torneira e
sentar na banheira. Ana sentiu.
Coloca a fita Ativação, um vídeo com várias fotos,
homens, mulheres e crianças ‒ todos mortos. Compreende
que morreram por afogamento, algumas fotos tiradas com o
corpo ainda na banheira e outras no chão. Em seguida,
fotografias das marcas, algumas um pouco diferentes,
parecendo esferas sobrepostas, com tentáculos irradiando.
Dá um grito abafado pela palma da mão. Aquelas pessoas
foram marcadas para morrer, trinta afogados. Exatamente
como ela e Beto.
Não. Tenta afastar o pensamento. Marcada.
Completamente apavorada, corre os olhos pelas fotografias
reproduzidas no vídeo, algumas parecem fazer parte de
arquivos policiais, em espanhol e em inglês. Como no caso
da ponte, os suicídios da banheira ocorreram em outra
cidade, mas todos ao mesmo tempo. Fica claro que Beto
investigava os casos, mas como ele teve acesso às
informações?
Pensa na marca e em como a adquiriu sem perceber.
Como isso não passou na TV? Trinta afogados? Deixa o
vídeo pausado em uma folha de documento. Tenta ler, a
imagem é ruim, tem um chiado. Aumenta o volume no
máximo, uma voz lê o trecho do documento, mas não é
esclarecedor. Ele está vindo… Ele é o caos. As pessoas
deveriam fazer parte de uma seita e tiraram a vida em
algum pacto de morte, essa é a conclusão que Ana chega.
Já acontecera antes, seitas e suicídios coletivos.
O vídeo continua com fotos. Até que um som alto
preenche o quarto, ela solta um grito e se joga para trás, na
cadeira. É música, no último volume; depois, um som
estranho, metálico, vindo do fundo do cosmo. Corre para
abaixar, girando o botão até o zero. Vai até a porta. Espero
não ter assustado Rita. Volta com a mão no peito.
Acalma-se, aumenta um pouco o volume e arrasta a
cadeira para perto da TV, ouve com atenção o som.
Angústia. Melancolia. De costas para porta, não vê quando
uma fresta se abre. Concentrada no som. A fresta aumenta
e ilumina o rosto de Rita ‒ olhar vítreo e brilhante, diabólico
como o riso de um assassino. Rita está inexpressiva, o rosto
relaxado de um modo que é difícil acreditar que está
acordada. Fica parada, até que entra devagar, para trás de
Ana.
Nesse momento, Ana vê o reflexo na TV e abre a boca, a
palavra morre. Rita agarra o cabelo da amiga e a puxa para
trás. Provoca grande dor em Ana, que, de olhos
esbugalhados, não consegue gritar, o que sai dos lábios
repentinamente secos é algo diferente: um fôlego antes do
pânico, a fração de segundos que precede o desespero. Os
olhos se encontram e Ana vê na amiga o horror: o mesmo
olhar da adolescente na banheira. Rita desliza uma faca de
cozinha no pescoço de Ana, a lâmina corta fácil.
Sangue escorre em velocidade. Ainda tenta algo, leva as
mãos ao rosto de Rita, tenta segurá-la. Agarra a alça da
blusa e, quando a faca começa a cortar mais, o tecido
rasga. As mãos escorrem lentamente para o pescoço,
incapazes de reter o vazamento. O gosto chega à boca,
lembrando o hálito do homem sem rosto. A última coisa que
Ana vê antes de morrer é o seio da amiga, com uma marca
diferente: um olho fechado cheio de braços. Pela primeira
vez, Ana sente medo de verdade, pois ela está acordada ‒ e
o mal tem um rosto familiar. É real. E ele vem vindo.
Exorcizando bichinhos de pelúcia desde 1986. Instagram
@Glaukemp
Gregor
O Murmurador
Allan Baxter
Infamati et obliterati
O funesto casebre de Gregor Hahn era o de número 97, ao
norte de Arnette, um povoado ignorável de três ou quatro
ruas há quilômetros e quilômetros de Houston.
Agora ele estava lá, sentado numa poltrona decrépita,
bebericando sua cerveja barata. Fitava a TV de 14
polegadas, não fazendo a menor ideia de como aquele
homem idiota e grande como um rabecão, usando um
chapéu ridiculamente antiquado, conseguira seu próprio
programa de televisão. Diabos, só usando drogas
psicotrópicas para achar graça naquela porcaria toda.
Polidamente, uma palavra que descrevia perfeitamente
Gregor: Debiloide.
Claro que o cumprimentavam durante seus curtos
trajetos pelo povoado, tratando-o na base cordial do “Como
está? Ah, que bom! Até mais”. Não obstante, o que se
espera de um cara que morara com a mãe até os 31 anos?
(Não por receio de deixá-la jogada à sorte, mas por medo de
ver a si próprio jogado a ela).
Há alguns anos, Gregor saiu de casa e começou a
depender de uma única renda, vinda de uma fábrica de
calculadoras eletrônicas. Trabalhara no setor de instalação
até ser dispensado com uma clareza fria e perplexa.
Fecharam as portas do lugar em plena agonia; como se
podia lutar contra calculadoras vindas de Taiwan com seus
valores obscenamente baixos, praticamente uma esmola?
Não fazia muito que Gregor vinha recebendo auxílio do
governo, embora aquilo estivesse prestes a acabar. Ele se
inclinou para a frente, pousou uma das mãos no joelho e
pensamentos cruzaram sua cabeça como estrelas cadentes:
Se eu soubesse mexer naquelas máquinas modernas do
patrão – ex-patrão, é sempre bom lembrar que fui
despejado – e tivesse uma dessas coisas que eles chamam
de impressoras, fabricaria umas centenas de notas e as
botava em circulação. Senhor, passaria uma semana
contando dinheiro ao som de Gloria Estefan cantando
Conga!
Logo esqueceu a ideia, porque pensar fazia doer sua
cabeça. Voltou à habitual posição de lixo descartado. De
repente, espichou o pescoço e tentou olhar o mundo além
janela. Mudo, franziu a testa.
Coçou a nuca, depois apanhou seu cuntrole remote –
como costumava chamar aquela maravilha de avançada
tecnologia – e desligou a TV. Ergueu-se, as tábuas rangeram
e, cruzando o odor de carcaça de frango na lixeira debaixo
da pia, se arrastou até o quarto. Sempre tivera esse jeito de
andar, como se carregasse uma incurável assadura de
fraldas na racha da bunda – quando menino, os rapazes na
escola não o deixavam em paz por isso, e mais uma gama
de motivos.
Afofou o travesseiro e finalmente estirou-se na cama.
Que Deus abençoasse aquele fóssil, simplesmente amava
aquela cama imersa nas profundezas; sua mãe oferecera
uma nova quando fora bisbilhotar sua casa, trovejando que
aquele lixo estava caindo de podre – e talvez fosse esse o
motivo para amá-la tanto, tinha um bendito calombo para
cada lugar estratégico do corpo.
Como nunca se casara e nem tivera uma namorada
firme para esconder o croquete e afogar o ganso, sua mãe
também deixara implícito o que ele tanto fazia naquela
cama para ela estar naquele estado deplorável…
De chofre, foi assaltado pela avassaladora vontade de
fumar.
Gregor apalpou o pedaço de trapo que usava – chamado
de roupão num passado distante –, sacou seu maço de
Marlboro e revirou os olhos. Apenas um mísero cigarro.
Ruminou o pensamento de que, se o fumasse nesse exato
momento, teria de catar moedas quando acordasse e
comprar mais um maço pela manhã. Só o vislumbre da ideia
causou uma fadiga danada. Então, abriu um sorriso penoso,
careado e artificial.
Fechou as janelas velhas e cansadas que eram seus
olhos e ferrou no sono.
***
Gregor despertou às 3 horas em ponto, com a imagem
nítida dos rapazes da escola metendo sua cabeça na
privada e um cachorro uivando amargamente como trilha
sonora. Encarou o teto por um momento, a expressão
pétrea, os olhos vagos e turvos. Prolongou uma pausa
desnecessária, de modo que não pretendia se levantar da
cama tão cedo.
De repente, outro uivo cortou a noite.
Um cachorro sarnento parecia estar bem ao lado da
janela, gemendo e gritando agudamente.
— Cão velho! – praguejou Gregor, O Murmurador.
Com certo esforço, Gregor se levantou e arrastou o
corpo torto até a janela, como aquelas mulheres no
programa de brigas familiares à tarde. Revistou e fitou
miopemente o terreno, e não conseguiu enxergar nadica,
nenhum cachorrinho. Deu meia volta,bocejou com gosto de
barata na boca e tropeçou na pilha de roupas sujas. Quando
ouviu o clique da portinhola de cartas e o inconfundível som
da correspondência caindo no capacho (sua audição ficara
mais sensível depois do desemprego, detectando quando as
contas chegavam; seu alarme interno enlouquecia).
Instintivamente, arrastou os pés vestidos com meias
encardidas pelo corredor até a sala escura. Apanhou a carta
e os ossos gemeram em protesto.
Sr. Gregor Hahn
Norte de Arnette, 97
Povoado Ignorável há
Quilômetros de Houston
Estreitou os olhos, a língua acompanhando debilmente a
leitura. Gregor assumiu um brilho desagradável… isso era
jeito de endereçar uma carta a alguém? Ficou parado por
um momento, tentando tirar algum sentido daquilo.
Descartou a hipótese de dívida; por pior que fosse a
situação, ainda não chegara a ponto de receber contas no
meio da madrugada. Ainda.
Era difícil pra caramba pensar, a cabeça doía.
Calculou o valor de cada centímetro da
correspondência. O envelope era grosso, envelhecido,
escrito com tinta nanquim e… onde diabos estava o selo?
Com as palmas vertendo suor, virou o envelope e encontrou
um lacre de cera. Nunca vira um daqueles pessoalmente,
não era importante o bastante para receber um (vira-os
apenas naqueles filmes chiques de época).
Encostado na parede, Gregor rompeu o lacre, puxou a
carta e leu.
Subitamente, foi acometido por uma raiva cega. Um
envelope daquela grossura com duas palavras de merda
escritas, duas palavras que despertaram a vontade de
pregar a portinhola de correspondência. Estava pensando
em fazer isso há tempos, e aquela foi a gota final,
definitivamente. Brincadeira de moleques, era isso o que
significava aquilo. Nesse exato momento, deviam estar
correndo e gargalhando à socapa do tio Gregor Fracasso!
A raiva impotente misturou-se ao latejar surdo em suas
têmporas. Estava prestes a buscar o martelo, os pregos e as
tábuas…
Dane-se! – pensou, com um grunhido ofegante. – Antes
vou fumar aquele último sobrevivente, e fumo mesmo!
Depois, junto as moedas, vou à mercearia, compro um maço
novinho em folha… fumo todinho, então compro mais e
fumo até o cu fazer bico!
Abriu a porta, rastejou até a varandinha e plantou o
cigarro no canto da boca. Puxou um fósforo, o riscou num
pedaço furreca de lixa pendurado na parede e acendeu o
Marlboro com um suspiro de satisfação.
Depois de um momento de silêncio, semicerrou os
olhos.
Eram moleques e um cachorro, certo? Ele ouvira a
criatura uivando. Devia ter um rastro deles por ali – uma
única pegada, que seja. Animou-se com a brilhante
dedução, apoiando o corpo numa das pernas, logo
revezando para a outra. Espantou uma mosca que estava
quase entrando em seu ouvido.
Enquanto tragava e expelia a fumaça como um trem de
carga, Gregor desfilou agachado pelo terreno e não
encontrou nada, pegadinha alguma para contar história. Em
seguida, foi surpreendido pelo barulho de ramos se partindo
e folhagem se remexendo entre as árvores.
Sentiu a garganta seca. Os malditos pirralhos ainda
estavam por ali, observando-o e rindo às suas custas.
Franziu o cenho e apertou os olhos, mas com aquela névoa
úmida e espessa não conseguiria enxergar nem se um
unicórnio saltitasse em seu terreno vestindo uma cueca de
néon.
— Aguardem e verão – sibilou ele, treinando suas
habilidades dramáticas.
Entrou na casa como se planejasse desarmar uma
bomba, e logo voltou com uma lanterna centenária e seu
taco de beisebol corroído pelos cupins. Caminhou
segurando-os timidamente à frente, como se brandisse
Excalibur (quem ele pretendia enganar com aquilo? Um
foguete sinalizador seria muito mais útil em suas mãos).
Fez uma pausa e, finalmente, abriu caminho pelas ervas
que batiam em seus joelhos. Examinou as árvores antigas à
sua volta, os troncos grossos e retorcidos – não gostava
delas, absolutamente.
Cerca de cinco minutos se passaram quando começou a
tremer dos pés à cabeça. Parecia estar cercado por mil
olhos, todos o perfurando friamente. Alguma coisa roçou
nos galhos acima de sua cabeça, e como um jovem atleta,
Gregor saltou um metro.
Fantástico, uma coruja cagona!
Sua carranca não revelava, entretanto, estava
profusamente apavorado, cagado de medo. Estava tão
tomado pela fadiga, tão próximo da desistência, quando
ouviu o rosnado de alguma coisa se movimentando pelas
sombras.
Piscando como uma criança ingênua, Gregor pensou ter
visto um par de olhos brancos fulgurando na escuridão.
Piscou, balançou a cabeça – sabe-se lá por que diabos –,
desligou a lanterna e caminhou em sua direção. Então se
abaixou para estudar o fenômeno reluzente.
Sem aviso, sentiu o bafo quente e azedo, alguma coisa
arfando em sua nuca. Um cordão nodoso de saliva resvalou
em seu roupão.
Como que em câmera lenta, um Gregor boquiaberto
virou-se.
E sentiu uma explosão de bafo de cão na cara.
Soltou um grito de puro pavor. Atirou-se desesperado e
estatelou, caindo de cara no chão terroso. Olhou às suas
costas, a silhueta da criatura tomando forma num prateado
místico e silencioso.
Era um Cachorro, e daqueles com C bem maiúsculo.
Gritou ainda mais alto e se surpreendeu com a potência de
suas cordas vocais. Se sobrevivesse, poderia ponderar sobre
uma carreira como soprano.
A criatura respirava forte, a língua pendurada como um
bife defumado, os dentões arreganhados numa espécie
louca de sorriso.
O tigre-que-ri.
Com o cabelo todo desgrenhado, Gregor ergueu-se e
disparou como se Gabriel tocasse as trombetas do
Apocalipse. Em tempo recorde, desembocou derrapando de
volta à sala, trancou a porta e recostou-se nela, petrificado
como um brinquedo sem corda.
— Ca… Ca… Ca… – foi a única coisa que conseguiu
articular.
Indubitavelmente, perdeu alguns parafusos no trajeto
infernal. Sentiu uma pontada no peito e pensou num ataque
cardíaco – parte dele queria que fosse um ataque cardíaco.
Buscou os comprimidos num dos bolsos de seu roupão, seus
acalmadores para casos de emergência. Engoliu-os a seco,
sentindo-os descer asperamente pela garganta.
De repente, ouviu ecos, latidos cada vez mais altos,
ribombando ensurdecedoramente como unhas arranhando
um quadro-negro. Gregor cobriu a boca com as duas mãos.
Estavam vindo de dentro da casa.
Impossível! Impossível mil vezes! Ele acabara de se
trancar dentro da casa, seguro como um prisioneiro em
segurança máxima…
Pede penico, frangote!
Ele estava maluco, era isso.
Estava imaginando coisas, porque é isso o que pessoas
malucas fazem!
Destrancou a porta e se lançou para a varandinha,
então se deparou com o cachorro correndo em círculos no
terreno, se divertindo atrás da própria calda. Com olhos tão
arregalados que pareciam estar prestes a saltar das órbitas,
assistiu enquanto o animal deitava na terra e enfiava o
focinho entre as patas. Gregor recuou um passo com um
esforço óbvio.
Como o prelúdio de um ataque, o cachorro desatinou a
latir em sua direção. Parecia estar tentando falar alguma
coisa.
Empunhando paralisado o taco como uma nova versão
de cruz contra o diabo, Gregor observou o cão se aproximar.
Era pura imaginação, a única explicação.
Inesperadamente, o bicho arreganhou as presas e o
abocanhou.
Gregor escancarou a boca para berrar, quando percebeu
que ele não estava sendo devorado vivo, mas puxado pela
barra do roupão.
Que o internassem num hospício para achar ser
Napoleão ou Joana d’Arc, mas aquele cachorro queria levá-
lo a algum lugar. Lembrou-se de um episódio de Lassie e,
com nervosismo, Gregor deu um passo involuntário. O gesto
causou uma balançadeira danada de rabo no cão.
Ele queria levá-lo, de fato.
***
Após vinte minutos seguindo o cachorro por entre um
labirinto de árvores frondosas – a certa altura arranhando o
braço num galho e fazendo-o sangrar –, o bicho girou no ar
com um salto-mortal e desmaterializou-se em plena vista.
Gregor revirou os olhos e sua boca amoleceu, o queixo
caindo descontrolado como se rompesse as articulações da
mandíbula. Seu hálitofez tufinhos.
Estupidificado, tentou se recompor e lembrar-se como
chegou ali: esquerda, direita, direita, esquerda – era como
tentar tocar um piano Steinway. O frio fazia seu nariz e
orelhas arderem de tal modo que mal conseguia se
concentrar.
Com um soluço de Valha-me Deus!, Gregor tropeçou
num corpo abandonado. Estava sob um lençol perverso de
folhas secas, esparramado e encardido como um espantalho
derrubado por uma tempestade.
Era a carcaça do husky siberiano fantasmal, aquele que
acabara de evaporar como um peido inodoro diante de seus
olhos. Lembrou-se da carta, com apenas duas palavras:
Me enterre.
Não se tratava de uma brincadeira de moleques. Algum
filho da puta desalmado atropelara aquele cachorro na
autoestrada e o arremessara ali. Tão elementar, meu caro.
Com um ruído gutural, ele engoliu outro de seus
acalmadores. Depois de hesitar por alguns segundos
infinitos, usou da pouca inteligência e retornou ao casebre
arrastando o taco de beisebol para demarcar o caminho, o
sangue latejando nos ouvidos. Voltou ao local do crime na
manhã seguinte, com luvas surradas de operário e uma pá
de cabo curto.
Gregor enterrou o animal prontamente, a visão
embaçada pelos prismas de suas lágrimas.
***
Apesar de se ver livre de latidos, rosnados ou qualquer coisa
do gênero, Gregor não conseguiu dormir o resto daquele
dia. Passou horas na frente da TV, as imagens entrando
pelos olhos e desintegrando no cérebro.
Na luz do dia seguinte, após o cessar da balbúrdia
mental, se matou de rezar com a cabeça afundada no
travesseiro. Choramingando, percebeu que sua vida era
como uma roda que girava e girava num ritmo de tédio, e
sempre parava no mesmo lugar miserável.
Ele decidiu abandonar os caminhos do pecado e
entregar seu coração a Jesus.
Um ano depois, como se se livrasse de uma segunda
pele, Gregor Hahn transformara-se num popular vendedor
independente. A imagem da felicidade e da realização,
cruzava as cidades vizinhas vendendo Bíblias, livros de
hinos e imagens luminosas em sua caminhonete Ford,
novinha em folha.
Ele nunca confidenciou a história de sua conversão
… para ninguém.
Allan Baxter já foi – entre muitas coisas – cozinheiro,
aprendiz de feiticeiro e vendedor de perfumes. Insta:
AllBaxter
Vozes
Tocado pelo diabo
Renan Rivero
Já se passaram trinta anos desde a última vez que vi meu
irmão. Nunca fomos grandes amigos, mas isso não significa
que eu não sinta falta da época em que morávamos juntos.
Vivíamos em uma casa no final da Rua Monroe, em um
bairro antigo, que crescera com a chegada dos imigrantes
irlandeses. Um local que, apesar de todos os moradores se
conhecerem pelo nome, detinha uma regra tácita: não se
meta onde você não foi chamado.
Todas as manhãs passávamos em frente à casa da
senhora Margaret. Enquanto meu irmão empurrava minha
cadeira de rodas, a mulher meneava a cabeça em
cumprimento, e ele retribuía o gesto com um aceno de mão;
nenhuma palavra era dita. No entanto, em minha cabeça,
eu ouvia claramente os pensamentos belicosos da viúva:
“Hunf, esses dois coitados deram sorte dos pais terem
morrido. O diabo vive naquela casa, um dia eu ainda mando
o padre exorcizar o lugar e salgar a terra”. Eu mantinha a
cabeça abaixada em resignação, afinal, aquele dia nunca
chegaria, o padre da paróquia era um homem sensato.
Caso esteja se perguntando como nossos pais
morreram, temo dizer que ninguém sabe a verdade. Meu
pai era um homem atormentado pela bebida e pelo fato de
ter se casado com minha mãe, uma mulher agarrada às
tradições. Aquele havia sido um matrimônio sem amor,
realizado após a infeliz gravidez que deu à luz ao meu
irmão. Na época, mudaram-se para o bairro onde eu viria ao
mundo quatro anos mais tarde. Minha chegada tampouco
trouxe alegria, pois quis o infortúnio que minhas pernas
viessem fracas demais para andar.
De toda forma, duas características me definiram ao
nascer: eu não ando, e ouço vozes desde do dia em que vim
ao mundo. Toda a dor e lamentos alheios me encontram na
forma de pensamentos. São como ondas batendo contra
uma rocha. Incessantemente, noite e dia, e temo ser assim
até o meu último dia.
Ainda criança, contei à minha mãe o que as vozes
diziam em minha cabeça… coisas que ninguém poderia
saber. Naquele instante, foi a primeira vez que vislumbrei o
horror que os seres humanos sentem diante do
desconhecido. O medo primordial, a escuridão que assola o
mundo. Era como sentir o vazio lançando seus tentáculos
em minha direção, o toque de uma entidade longínqua
olhando diretamente para o interior da nossa mente.
Naquela noite, eu estava em frente ao antigo televisor
quando meu pai chegou em casa. Ele não percebeu de
imediato o que havia lhe atingido. O golpe abriu um corte
profundo em sua testa, e o sangue jorrou. Meu irmão me
abraçou, tampando meus olhos e ouvidos, alheio ao fato de
que eu podia escutar os pensamentos da minha mãe
enquanto ela investia com violência contra o meu pai.
“A culpa é sua e da sua família.”
“Deus amaldiçoou nosso filho pelos seus pecados.”
“O mal tocou o meu menino…”
Lágrimas rolaram pela face dela enquanto o sangue
continuava a escorrer pelo rosto do meu pai. Ambos não
perceberam quando uma chama atingiu um pano esquecido
sobre o fogão, lançando labaredas em fúria sobre as vigas
de madeira da antiga casa.
Os policiais encontraram a mim e meu irmão no final da
Rua Monroe, observando o fogo infernal que subia aos céus.
Fomos os únicos sobreviventes do desastre, e nos
informaram que a casa destruída pelo incêndio possuía um
seguro em nosso nome. Um seguro para os “Irmãos
Murphy”.
Anos mais tarde, usamos o dinheiro da seguradora para
inaugurar a locadora que levava nosso sobrenome:
Murphy’s Locadora de Filmes. Era para lá que passamos a
nos dirigir todas as manhãs.
Em uma cidade pequena, não existem muitas opções de
lazer. Portanto, não havia um morador local que não
conhecesse a locadora, a loja era especialmente
reconhecida por recomendar filmes aos clientes.
Era incrível! Os fregueses adentravam a loja com um
olhar perdido, e meu irmão os abordava indagando qual tipo
de filme gostariam de assistir. Quase todos davam a mesma
resposta: “Hum, não sei”.
Sorrindo de forma complacente, meu irmão pedia para o
freguês aguardar e se dirigia para os fundos da loja. Eu lia a
mente do visitante e dizia a ele o que recomendar a
clientela. Minutos depois, ele retornava com a fita perfeita
nas mãos. Um negócio de sucesso, sempre acertávamos
nas indicações
Essa era a minha rotina. Eu passava os meus dias nos
fundos da locadora, sentado de frente para o televisor e o
vídeo cassete. Em um ano, eu poderia assistir
aproximadamente mil e oitocentos filmes, um grande feito,
e, se não fosse a corrente que prendia as rodas da minha
cadeira, impedindo que eu me movesse, eu poderia até
mesmo estar feliz.
Não me entenda mal, eu tinha acesso a comida, água e
o controle do televisor. Aquilo era mais do que meu irmão
tinha recebido durante a nossa infância… eu sabia o que ele
havia suportado eu sabia que não haviam restado
gentilezas em seu coração.
Olhar dentro da mente humana é uma condição indigna.
Existe algo de podre ali, algo para o qual não fomos feitos
para olhar.
O relógio marcava 16h06m quando o padre Darci
atravessou o portal de entrada da locadora, sua chegada foi
como um tufão que anuncia a aproximação de uma
tempestade. Um calafrio percorreu minha alma enquanto o
sacerdote caminhava absorto nos próprios pensamentos.
Todos conheciam o padre, ele dedicara-se a manter a
igreja cheia nos últimos quarenta anos, ouvindo com
atenção cada homem e mulher que desejasse se confessar,
indicando-os sempre o caminho do perdão. Naquela tarde,
ele não parecia notar nenhum dos fiéis que o observavam, e
vagou de forma distraída no meio do labirinto de estantes
repletas de fitas. Alguém chamou seu nome, ele não
respondeu. Meu irmão contornou o balcão e se aproximou,
repetindo o ritual de abordagem dedicadoa todos os
clientes.
— Padre, o senhor precisa de alguma ajuda?
— Ah? Oi… não, meu filho. Me desculpe, eu me perdi em
meio aos meus pensamentos.
Todos na loja observavam a conversa em silêncio.
Quando o padre ergueu a cabeça, os olhares rapidamente
se desviaram, a fim de evitar que fossem taxados como
mexeriqueiros. O sacerdote sabia que a cidade inteira era
dada a fofocas. Você podia se meter onde não era chamado,
desde que não fosse descoberto. No entanto, se aquele
fosse o único pecado cometido pelo seu rebanho, ele não se
sentiria tão desamparado quanto se sentia naquela tarde.
Havia mais, havia muito mais.
O padre sorriu para meu irmão e disse:
— Está bem, não perderei a oportunidade de receber
uma das suas tão valiosas indicações.
Meu irmão se virou, dirigindo-se para o fundo, quando o
padre o interrompeu.
— Acabo de ter uma ideia! Amanhã faremos a exibição
de um filme, escolhido por você, para toda a nossa
comunidade. − O padre se virou para os outros clientes e
falou em voz alta: − Sim. Espalhem a notícia, estão todos
convidados. Amanhã à tarde, após a missa das 16h no pátio
da igreja, iremos assistir um filme.
Houve sorrisos e suspiros de alívio. Aparentemente, a
desorientação do padre havia sido passageira, e ele já tinha
retomado o seu habitual senso de comunidade.
Somente eu percebia o que estava acontecendo.
Segundos depois, meu irmão adentrou no quarto
escuro, iluminado pela televisão, e me encontrou
encarando-o com olhos arregalados.
— O que foi? Parece que viu um fantasma? Vamos, dê
uma olhada na cabeça do padre e me diga o que tipo de
filme ele quer.
Quando tentei falar, minhas palavras saíram
embargadas, sufocadas por uma dor compartilhada:
— Ele vai se matar. − Recuperei minha voz e continuei.
− O padre planeja se matar após a exibição, é difícil ouvir os
pensamentos dele, são como centenas de sussurros
sobrepostos. Mas tenho certeza, ele vai se matar amanhã. −
Lembro-me da sensação ao dizer aquelas palavras. − Nós
temos que impedi-lo!
— Nós?! − Meu irmão virou-se e trancou a porta. −
Olha, não tem essa de nós. Se o homem quer tirar a própria
vida, ele que lide com as consequências!
— Ele perdeu a fé, irmão. Nós precisamos ajudá-lo,
somos os únicos que sabemos que ele irá atentar contra a
própria vida. Por favor…
— Lamento, não tem nada que a gente possa fazer.
Além do mais, como explicaríamos o fato de sabermos dos
planos secretos do padre? Isso se voltaria contra nós, você
sabe como essas coisas são. Não se meta onde não foi
chamado.
Eu odiava aquela frase. Um silêncio pesado caiu entre
nós enquanto eu experimentava o medo de carregar o
sangue do homem em minhas mãos.
Meu irmão rompeu o silêncio:
— Vamos, me indique um filme. O quanto antes
acabarmos com esse sofrimento será melhor para nós dois.
Como eu disse, olhar dentro dos seus pensamentos não
era algo bonito de se ver. Porém, sua omissão diante de um
ato de suicídio escureceu um pouco mais o meu mundo.
Naquele momento, nós dois havíamos tomado nossas
decisões, e, por fim, eu disse:
— Conta Comigo. Indique esse filme, todos gostam de
histórias sobre amizade.
Depois daquilo, esperei o som dos passos se afastarem
em direção a saída. No instante em que a porta foi
destrancada, respirei profundamente, no segundo seguinte
a passagem para a loja se escancarou. Desesperadamente
me pus a gritar:
— PADRE! NÃO FAÇA ISSO, PADRE! POR FAVOR NÃO
FAÇA ISSO…
A porta fechou-se com violência, enquanto meu irmão
investia em fúria contra mim.
— CALE A BOCA! − Fui atingido no rosto por um soco e
perdi a consciência. Algum tempo depois, soube que ele
havia explicado aos clientes a origem dos gritos. Disse-lhes
se tratar de um filme que esquecera ligado na televisão dos
fundos. Se alguém se importava com a veracidade da
história, não pareceu que fariam algo a respeito.
Despertei com gosto de sangue na boca e a mente
enevoada. Eu estava em casa. As rodas da minha cadeira,
ao menos, estavam livres das correntes. Chamei o nome do
meu irmão e ele entrou na sala segurando duas vasilhas
fumegantes de sopa.
— Desculpe ter atingido você, pensei que tivéssemos
chegado a um acordo com relação à situação do padre.
Você me deixou sem saída… − Eu soube imediatamente
que ele não estava arrependido.
Comemos em silêncio, sentados no antigo sofá, ambos
olhando fixamente para a televisão. Depois, segui meu
irmão até a cozinha.
Havia um cheiro de sabão misturado com comida
estragada no cômodo, ignorei o cheiro e permaneci parado
atrás dele. Meu irmão sabia que eu intencionava uma nova
abordagem sobre o assunto, e me ignorou o quanto pôde,
mantendo os olhos sobre a louça suja. Permaneci
acompanhando o debate interno que acontecia em sua
mente.
Por fim, ele enxugou as mãos e cedeu.
— Olha, se você quiser, eu te levo para essa exibição de
amanhã. Mas nada de missa, a gente não precisa ouvir
sermão de um cara que nem mesmo acredita no que fala.
Naquele momento, senti uma ponta de esperança
aquecer meu coração.
Todavia, optei por não demonstrar minha vitória, meu
irmão não era do tipo que gostava de perder, por isso eu
disse:
— Concordo, não precisamos ir a missa. − E com
suavidade continuei −, porém, durante a missa o padre
estará ocupado. Talvez seja o momento para nos
anteciparmos. Afinal, se vamos tentar ajudar o pobre
homem, é melhor estarmos preparados.
Ele se abaixou na minha frente, segurava o pano de
prato ainda entre as mãos.
— Você pensou em tudo, não é mesmo?
Tentei conter o sorriso, mas falhei miseravelmente:
— Em quase tudo.
O dia seguinte era domingo, fazia calor na praça em
frente à Igreja de São Patrício. Quando chegamos ao local, a
missa já havia começado.
Lembro-me de olhar em todas as direções, certificando-
me de que estávamos sozinhos enquanto adentrávamos ao
pátio da igreja. Ali, do lado de fora, estavam dispostas
dezenas de assentos, posicionados de forma a ficarem de
frente para um grande lençol branco amarrado entre dois
postes. O local estava completamente vazio, à exceção da
nossa chegada.
Fomos até uma porta lateral da igreja, estendi a mão e
forcei a maçaneta. Trancada.
Retirei de dentro da minha jaqueta um pedaço de arame
retorcido e, com cuidado, coloquei a ferramenta
improvisada na fechadura. Meu irmão tentou me dissuadir
mais uma vez, mas seus pensamentos demonstravam um
certo grau de admiração diante do ataque ao lugar.
Expliquei-lhe que muitos filmes nos dão noções básicas de
como cometer pequenos delitos.
A porta se destrancou.
Como eu havia previsto, a passagem dava para a
sacristia. A luz da tarde invadia o local, transpassando o
vidro leitoso das janelas. Girei as rodas da cadeira, me
aproximando de uma escrivaninha colocada abaixo de um
pequeno altar. Não pude deixar de notar o olhar piedoso de
Nossa Senhora me encarando enquanto eu abria as gavetas
do móvel. Livros, papéis, contas à pagar e um terço. Fechei
a gaveta e abri a seguinte; escondida atrás de uma bíblia,
jazia uma pistola Colt 1911 A1. Senti o toque gelado da
arma ao sacá-la, rapidamente a enfiei no bolso da jaqueta.
Notei os pensamentos na mente do meu irmão e o
tranquilizei:
— Está tudo bem agora. Quando o padre perceber que a
arma foi roubada, irá repensar a decisão. Ele teve
dificuldade de conseguir essa pistola, não terá dinheiro para
outra. Tenho fé que isso irá mudar o seu rumo.
Meu irmão suspirou enquanto passava as mãos pelos
poucos cabelos que lhe restavam.
— Vamos sair daqui, antes que alguém nos veja.
Deixamos a sacristia poucos instantes antes do término
da missa. Na saída, fomos surpreendidos pelo Padre Darci,
que insistiu que ficássemos para assistir ao filme. Tentamos
escapar, mas o homem se mostrou irredutível. Seus
pensamentos eram zumbidos sussurrados, vozes confusas
em estado febril, duvidei de que aquela história estivesse
realmente terminada.
Instalamos-nos na última fileira de cadeiras, observei o
mar de gente com seus pensamentos voltados para o alto.
O calor úmidodaquela tarde me deixava inquieto, eu
afastava os insetos com tapas no ar, tentando espantar,
juntamente com eles, os pensamentos emocionados do
público. O padre observava a todos, alheio à história de
superação que se desenrolava na trama do filme.
Fechei os olhos e me esforcei para captar seus
pensamentos. Histórias de terror saídas do confessionário
emergiam em sua mente, senti sua parca fé esmaecer. O
pobre sacerdote mirava o público mergulhado em uma ira
nascida de anos de confissões.
O filme chegou ao fim, houve uma comoção geral,
somente eu e o padre não pudemos assistir a história que
se encerrava.
A multidão preparava-se para deixar o pátio, quando o
padre bradou num tom mais alto do que o normal:
— Muito me agrada que o filme tenha tocado aos seus
corações. Antes que partam, deixem-me lhes falar uma
última vez. − As pessoas se olharam assustadas com a
mordacidade entranhada na voz do bom padre. − Ao longo
de quarenta anos tive o desprazer de ouvir a história de
suas vidas. E, se hoje me levanto para anunciar esse
desagrado, saibam que vocês construíram isso dia após dia.
Era como se o zumbido de pensamentos na cabeça do
pobre homem tivesse contaminado a multidão, que agora
iniciava um constante murmurinho de desaprovação. Em
seguida, a voz do padre se transformou em um clamor
histérico, e seu dedo indicador se estendeu como uma
flecha em direção ao casal de jovens sentado na segunda
fileira.
— Vocês, que ainda tão novos já carregam tanta
maldade, saibam que nada irá perdoá-los. O mal nos achou
aqui, somente isso explica tanto descaso entre pessoas que
ousam falar em amor. − A plateia assistia horrorizada ao
grotesco espetáculo. − Você julga que seu namorado lhe é
fiel, enquanto ele te trai com sua mãe. Apesar disso, não se
apiedem dessa moça ao lado do adúltero, pois ela
confessou-me que nutre um perverso prazer por machucar
animais… Já tendo torturado cachorros, gatos, e até mesmo
filhotes.
Lembro-me da jovem correndo para se afastar da
multidão, seus pais a encaravam assombrados enquanto o
namorado permanecia sentado como se tentasse apagar o
que havia sido dito. Diante de todos, como um homem que
brande um chicote, o padre apontou o seu dedo para uma
nova vítima.
— E ali, naquela ponta! O que dizer desse monstro que
seduz crianças para molestá-las em seu apartamento. Ele se
diz arrependido, então eu lhes pergunto, de que vale o
arrependimento de tão vil criatura? − A multidão dirigia o
olhar petrificado para o alvo das acusações, o abusador se
pôs a berrar insultos, acusando o Padre Darci de estar
delirando.
De fato, o padre estava delirando em febre, eu via isso
na sua mente. Mas ele dizia a verdade.
O espetáculo de horrores e acusações tenebrosas
seguiu-se. Independente do nosso esforço, o padre parecia
determinado em transformar aquele final de tarde em uma
tragédia a fim de destruir sua vida.
Eu e meu irmão deixávamos o local quando fomos
atingidos pelas palavras malditas do padre. Sua ira se
voltava contra nós.
— Parece que os responsáveis por essa tarde de filme
não estão dispostos a permanecer mais aqui. Não deixarei
que saiam antes de contar a vocês como a família Murphy
tem sido uma praga para a nossa comunidade. − Meus
músculos enrijeceram quando vislumbrei as palavras que o
padre iria proferir. Lentamente nos viramos e ouvimos
calados.
— Poucos dias depois de dar a luz ao seu último filho a
já falecida mãe dos irmãos Murphy veio me procurar. Seu
caçula havia nascido com uma má formação nos membros
inferiores, a mulher temia que aquela seria uma punição
pelos seus pecados. No confessionário, ela buscava perdão,
como todos vocês fizeram incontáveis vezes. Ela me relatou
que seu marido, acredito que todos aqui conheceram o
beberrão, constantemente batia nela e em seu filho mais
velho. Para se vingar do seu carrasco, a mulher se pôs a ter
relações sexuais como todos os homens dessa cidade.
Como resultado, a raiva do marido se agravou, e os
espancamentos tornaram-se diários. Temendo sua sina, e
para fugir daquele inferno, a mulher começou a não
retornar para casa ao final de suas aventuras. Porém,
quando ela não estava lá, o pai espancava o filho. Ela via as
marcas em seu primogênito, mas não fazia nada a respeito.
Permaneceu calada até o momento em que descobriu estar
grávida novamente. Diante dos incontáveis homens com
quem havia se deitado, não poderia determinar quem era o
pai. Para esconder a situação, tentou seduzir o marido, mas
o mal andava com aquele homem onde quer que ele fosse.
Tomado pelo rancor, ele arrastou a mulher até o quarto de
seu filho e a amarrou ao pé da cama.
Minha mente era um turbilhão de vozes e acusações, eu
senti o impacto, quando, ao meu lado, a raiva de meu irmão
explodiu, e ele se pôs a correr na direção do padre,
atravessando a multidão. Sem perceber, minha mão havia
se movido para dentro da jaqueta e meus dedos seguravam
a pistola como garras.
As palavras finais do padre determinaram meu destino
enquanto eu puxava a arma para fora.
— Alguns meses depois, a mulher deu a luz ao segundo
filho, uma criatura que nasceu tocado pelo Diabo.
Foi então que eu apertei o gatilho.
Houve sangue quando o disparo atingiu rosto do
homem, as pessoas gritaram enquanto o corpo caiu no
chão. Um profundo estampido se sobrepunha a todas as
vozes, mas percebi quando alguém retirou a arma, ainda
quente, das minhas mãos e me jogou ao chão. Um pesado
joelho apoiou-se sobre as minhas costas, seguido da
mordida gelada das algemas colocadas em meus pulsos.
Meu julgamento aconteceu no final daquele ano, e eu
tive o melhor advogado que meu irmão pôde pagar. Na
época, eu soube que, para conseguir o dinheiro da minha
defesa, ele havia vendido todos os bens da nossa família,
casa, móveis, e até mesmo a nossa locadora.
Mediante a esse esforço para amenizar a minha
situação, fui condenado a trinta anos de prisão. Nosso
advogado julgou a sentença uma vitória, eu não saberia
dizer se ele estava certo ou não.
Nos anos que se seguiram, cercado pela dor e
arrependimento dos homens que estavam presos comigo,
as vozes cessaram.
Naquele lugar, encontrei o silêncio para a minha
condição, e isso perdurou até agora.
Hoje é o meu último dia como prisioneiro. No entanto,
deixar este lugar, não fará de mim um homem livre. Algo lá
fora está à minha espreita, pronto para me dominar.
Percebo, depois de todos esses anos, que era disso que o
Padre Darcy tentava se afastar. Esse sussurro; esse toque
maligno que sentimos, mas não sabemos explicar.
Nesses instantes finais, fica claro para mim que –
naqueles dias sombrios – eu sentia a intenção na mente do
padre… uma força cujo nome desconheço, mas que não
estou disposto, novamente, a me deixar tocar. Carrego
comigo o meu plano derradeiro: prefiro entregar minha vida
antes de sentir outra vez o toque do mal.
Por fim, rogo que a maldade – assim como as locadoras
– possa, enfim, deixar de existir neste mundo invertido.
Renan Rivero – Careca e quadrinista. Abandonou a
publicidade para dedicar-se a escrever contos e histórias em
quadrinhos.
Efêmero
A gruta, o velho e o menino perdido
Douglas MCT
Escrevemos um diário quando queremos guardar ali uma
lembrança para depois esquecê-la. Assim fica mais fácil
seguir em frente. Mas existem histórias que nunca morrem.
E é simplesmente impossível se esquecer de algo tão
fantástico quanto foi aquele verão de 81.
Antes disso, porém, houve a tragédia e o terror no
coração dos homens. De pais precavidos que perderam seu
bem mais valioso. De crianças que abandonaram a
inocência diante do inevitável. De quando um velho, mais
velho do que o tempo, encontrou algo que todos já haviam
desistido de procurar. E isso mudou tudo…
Yesterday I felt the wind blowing ‘round my shoulder
Feel like I’m getting older
Still I can’t forget your face
A música Old Photographs, de Jim Capaldi, seguia no
toca-fitas da Belina do meu pai. Jim discorria sobre
fotografias antigase lugares de que não havia se esquecido.
Em 1981, eu tinha 11 anos, e ainda não entendia bem o
inglês, mas minha mãe gostava e ouvia tanto a música que
acabei me acostumando e passei a gostar com o passar dos
anos também. Na época, ela estava grávida da minha
primeira irmã, de outras três que viriam anualmente, quase
como se fosse uma celebração do festival de inverno dos
meus pais.
O Gol azul nos ultrapassou com uma buzinada
escandalosa, que durou quase um minuto. Meu pai buzinou
de volta e gritou qualquer palavrão amigável para a família
Vasconcelos. O carro à frente deu seta e parou no
acostamento, seu Mauro desceu rapidamente e começou a
urinar ali mesmo. Estacionamos e o Corcel vermelho atrás
de nós fez o mesmo. Quase como um gesto másculo
imutável, meu pai e o senhor Adriano também foram mijar
ao lado do amigo, enquanto as esposas se mantinham
entediadas no banco do passageiro. Aproveitei para esticar
as pernas.
— Ei, Vini, já vomitou no carro todo? – me perguntou
Renan, saindo pela janela do Monza, eternamente um tipo
comum, nem magro nem gordo, com cabelos e olhos
escuros e seu rosto de bom moço.
— Que nada! Tomei remédio antes de sair de casa.
— Não vamos chegar nunca? – a pergunta veio de trás,
de Lady Di (mas só os amigos podiam chamar Diane assim),
encostada sobre o capô do Escort. Loira de olhos azuis como
duas safiras, ela tinha um cabelo comprido e escorrido, seu
rosto mirrado. – Já tô ficando cansada.
Eu, Renan e Lady Di morávamos em São Paulo. Éramos
amigos de berço, porque nossos pais já eram amigos antes
de nascermos. A diferença é que meus pais haviam nascido
em Socorro, no interior ao norte do estado, o que fazia de
mim meio caipira, meio metropolitano. Quando eu era mais
novinho, meu pai dizia que isso era um tipo de pizza.
A viagem toda não levou nem duas horas. Minha família
tinha uma casa enorme no centro da cidade, que dava para
abrigar os demais tranquilamente. Primeiro, minha avó fez
as honrarias, com feijoada, arroz pururuca e muita bisteca.
Até onde me lembro, íamos todos os anos para Socorro, um
ritual, que as outras duas famílias também adotaram, mas
com conotação turística, sempre procurando explorar um
lugar diferente a cada vez.
Conhecida por ser a capital das malhas e dos esportes
de aventura, a cidadezinha era ainda menor naquela época,
e trazia o bom-dia na boca de seus habitantes, que
cumprimentavam conterrâneos e estranhos com a mesma
boa vontade. Era onde podíamos deixar o portão aberto e a
porta destrancada sem perigo de furto, ou sair à noite sem
risco de ser assaltado. Era uma realidade idílica, pacífica e
tranquila até demais, sim, mas que renovava nossas
energias nos cinco dias de julho que sempre passávamos
por lá.
Eu estava desmaiando na parte de baixo do beliche
após o almoço suntuoso, com o Renan roncando em cima,
quando um Ninja Invasor atravessou a janela do quarto.
Peguei o boneco do Comandos em Ação e coloquei a cabeça
para fora. Lá estava o Predo, em seu rosto comprido de
doninha.
— Ei! Eu não tenho esse bonequinho ainda? É meu
agora? – perguntei, ingenuamente e feliz em vê-lo.
— Não tem, nem terá agora, bicho! – Predo caiu na
risada. Ele sempre ria com facilidade. Aquela alegria sacana
não era forçada. – Achei esse aí jogado na estadra do Rio do
Peixe outro dia. Raridade!
— Vai completar a coleção?
— Não. Não sou rico que nem você, Vini! – Predo riu e
riu de novo, passando os dedos pelos cabelos loiros e
revoltos, que caíam até os ombros. – Se eu tenho cinco
desses, é muito!
Realmente, com o Ninja Invasor e mais um helicóptero,
eu completaria minha coleção, mas eu jamais insistiria
naquilo. O Predo na verdade se chamava Pedro, e só
recebeu esse apelido porque trocava as palavras. Era um
dos meus melhores amigos. Vivia só com a mãe em uma
casa popular nos arredores da cidade que a prefeitura
concedeu para quem não tinha maiores condições
financeiras. Ela passava o dia fora fazendo faxina de casa
em casa. Ele passava o dia nas ruas, engraxando sapatos e
tirando uns trocos pro jantar, mas seu orgulho muitas vezes
era um problema, porque nunca aceitava almoçar na casa
dos outros, não importava quantas vezes o convidássemos.
Apesar de todos terem a mesma idade, o Predo era mais
alto e um pouco mais forte, e com certeza o mais esperto
de nós. Desprendido dos grilhões da sociedade ou de
figuras paternas, ele seguia livre pelas ruas, fazendo o que
bem entendesse, ganhando seu próprio dinheiro e curtindo
a vida adoidado.
Eu era o gordinho da turma, de bochechas rosadas e
cabelo encaracolado. O pacote completo. Eu só usava
camisetas do Queens e uma pulseira de espinhos sinistra.
Mas em segredo, quando estava sozinho no quarto, eu
também ouvia Milton Nascimento e passava horas
pensando na Duda. Na verdade, desde o último ano, eu só
viajava pensando em revê-la.
A Maria Eduarda também era socorrense como o Predo,
e morava a duas quadras da casa da minha avó. Negra, com
aquela pele incrível que resistia ao crescimento das
espinhas e com olhões que mais pareciam duas jabuticabas,
ela gostava de manter o cabelo curto e alto, em seu rosto
dócil em formato de lua.
O Predo, sendo o Predo, estava falando qualquer coisa
sobre algo que ele descobriu recentemente, mas eu
confesso que, na hora, não prestei muita atenção, porque vi
que a Duda estava chegando, vindo do outro lado da rua e
acenando para mim. Meu coração foi parar na boca, meu
rosto queimou e eu quase caí da janela. Predo riu mais.
Renan acordou e peidou, e Lady Di abriu a porta do quarto,
perguntando o que era aquele escândalo todo.
No final das contas, o quinteto voltou a se reunir,
matando as saudades e contando tudo o que havia
acontecido de bom e de ruim no último ano. Até então,
1981 tinha sido um ano seguro e um pouco sem graça para
nós, mas infelizmente tudo mudou no final daquele dia.
— Uma gruta?
— Sim! Com lago drento e tudo!
— Chocante!
— Como você descobriu esse lugar, Predo?
— Nem te conto, broto!
— Meu nome é Diane, não broto.
— Conta aí, bicho!
— Semana passada eu consegui fazer um bom rolo com
o filho de um fazendeiro lá na estadra do Rio do Peixe e fui
levar minha bicicleta pra vender. No caminho, encontrei
uma trilha, aí fui subindo e achei uma gutra no alto do
morro!
— Super!
— É pra lá que ‘tamos indo agora?
— Isso mesmo!
— Ok. Mas bate e volta, hein? Senão os coroas vão
reclamar!
Acabou que o Predo não conseguiu vender sua Monark
surrada na chuva daquele dia. Então, o acompanhamos com
nossas próprias bicicletas até o local. Lady Di não levava
muito jeito com a coisa, por isso usava rodinhas em sua
Caloi Ceci, e mesmo assim eu era deixado para trás por
todos, porque não ganhava fôlego com minha Caloi Cross,
nem com meu sobrepeso. Os outros dois já tinham lá suas
Mountain Bikes, por isso arrasavam nas pedaladas,
empinavam e tudo o mais.
Do centro até o local, levamos pouco mais de vinte
minutos. Cheguei suado e ofegante, vermelho e procurando
por mais ar, mas parecia me recuperar facilmente quando
Duda vinha me perguntar como eu estava. Ela era mesmo
incrível. Guardamos as bikes atrás de algumas moitas e
seguimos a trilha em paralelo com o riacho onde o Predo
havia caído. O caminho era irregular e um pouco
escorregadio, e logo a grama deu lugar aos pedregulhos e
piorou ainda mais. Garoava naquela tarde, mas não o
suficiente para nos encharcar. O vestido de Duda se colava
ao corpo e eu confesso que tropecei pelo menos duas vezes
reparando nesses detalhes. Predo ria. Uma pena que tenha
sido pela última vez.
Quando chegamos no final da trilha, encontramos outra
que seguia morro acima, de forma serpenteante e
aparentemente muito exaustiva. A montanha era
terrivelmente íngreme. Ao redor, só mato e nada mais. Nem
uma fazendinha, nenhum adulto por perto.
Conforme subíamos, dava para ver a panorâmica de
Socorro. Levamos mais de uma hora para alcançar o topo, e
eu realmente precisei fazer uma pausa de dez minutos
embaixode uma árvore para recuperar o fôlego, enquanto
todos estavam apenas suados, mas dispostos a continuar.
Tão logo me recobrei, Predo saiu na frente, empolgado,
querendo nos mostrar sua recente descoberta.
Havia bosta de vaca por todos os lados, mas isso era só
um mero detalhe que não apagou o encanto do lugar. Uma
gruta colossal e esquecida pelo tempo, com paredes
irregulares de pedra desenhando o cenário, que afundava
no breu a perder de vista. Um olho estava talhado num
canto, observando tudo o que acontecia naquele lugar. O
teto estava atapetado de morcegos dormentes e um som
estranho ressoava de algum lugar nas profundezas, algo
como um tiquetaque de relógio, mas eu nunca soube ao
certo. O mais fantástico ali, porém, era o lago. Bem no
centro, ele cobria quase toda a área da gruta onde deveria
haver um grande buraco. Como poderia ter tanto água
assim no topo de uma montanha, eu não sabia, mas tudo
aquilo era realmente impressionante.
— Será que essa gruta pertence a alguém? – perguntou
Lady Di. Ela sempre perguntava tudo, sobre todas as coisas.
— Ainda não. Mas será minha um dia. – respondeu
Predo, decidido e esperançoso em suas fantasias.
— Olha, pessoal, é melhor não contarmos pros nossos
pais sobre esse lugar, tá bom? – resolvi ser precavido. Se
pretendíamos fazer daquela gruta um local só nosso, não
poderíamos sofrer a interferência dos adultos. Todos
concordaram em manter o bico calado, é claro.
Renan estava reclamando por ter pisado no esterco,
mas logo Duda o empurrou e ele se espatifou na água do
lago. Um minuto se passou e ficamos preocupados, até que
ele emergiu, rindo e cuspindo água nela, chamando todos
para nadar. Confesso que fiquei com uma ponta de ciúmes,
gostaria eu de ter sido empurrado por ela.
Duda logo retirou o vestido e quase tive outra falta de
ar. Mas ela já havia ido preparada com seu maiô e saltou
como uma nadadora profissional, deixando todos
boquiabertos. Lady Di não se empolgou, apenas retirou os
sapatos e ficou ali, molhando os pés, enquanto observava
preocupada os morcegos acima, que pareciam não dar a
mínima para nós. Então Predo se postou ao meu lado, com
aquele olhar de desafio, me instigando a dar algum duplo
mortal.
Eu nunca tinha ficado de sunga perto de Duda e estava
envergonhado com essa ideia. Não queria que ela visse
minha pança e debochasse de mim. Não que ela fosse fazer
isso, mas eu não queria arriscar, por isso fiz um salto bem
comum, com roupa e tudo. Voou água para todos os lados,
mas foi Lady Di quem principalmente se molhou. Caímos na
risada quando ela começou a resmungar.
— O que estão fazendo?! – ecoou uma voz na escuridão.
Estremeci.
— Quem é? – perguntou Renan.
Uma chama se acendeu do outro lado da gruta e uma
silhueta se formou, aumentando e diminuindo a sombra
conforme o fogo oscilava, até revelar a figura de um velho
magricela e careca, descamisado, só de bermuda e uma
barba que arrastava até o chão, branca e quebradiça. Ele
tinha mil rugas no rosto de poucos amigos.
— O meu nome se perdeu com o tempo.
— O senhor é o dono daqui? – perguntei, o coração
palpitando tão alto que achei que ele poderia ouvir de onde
estava.
— Não. Essa gruta não tem dono, ninguém a conhece.
Mas eu moro aqui.
— Desde quando? – agora Lady Di não estava mais
preocupada com os morcegos.
— Há muito tempo. Muitos anos, não sei. Nunca parei
pra contar.
— Acordamos o senhor, né? – disse Duda. – Nos
desculpe.
— Tudo bem, menina. Não me lembro de receber visitas,
além de vacas e morcegos. Mas vocês precisam tomar
cuidado com essa gruta.
— Por quê? – percebi que Renan também estava um
pouco exaltado.
— Eu não lembro quando nem como foi, mas uma
criança se perdeu aqui. Uma criança como vocês.
— Nossa! Ela morreu?
— Se perdeu. Ou morreu mesmo. Não lembro agora. Faz
muito tempo.
— Chocante!
— Pois é. Essa gruta guarda segredos, é mais antiga que
a cidade e já estava aqui quando tudo começou.
— Como que o senhor sabe?
— Eu apenas sei.
— Hum…
— E foi nesse lago que a criança sumiu. São águas
misteriosas.
Lady Di se levantou e encostou na parede, abraçando o
próprio corpo e pedindo para irmos embora. Renan esboçou
a mesma ideia, enquanto eu e Duda pensávamos no que
fazer. Saímos todos das águas, tremendo de frio ao redor do
lago. Mas era Predo quem havia nos levado até lá, ele era o
líder natural dessas aventuras e geralmente não desistia
fácil das coisas. Ele, que tinha permanecido calado durante
todo o tempo, resolveu finalmente se manifestar:
— Ei, velhote! Prestenção nisso!
Então foi a vez do show do Predo. Ele se colocou de
costas para o lago e deu um salto duplo no ar. O giro foi
perfeito, digno de aplauso mesmo. O baque contra as águas
foi forte. Ele afundou. Um minuto se passou, mas a piada do
Renan não tinha mais graça. Dois minutos se passaram,
então saltei de volta no lago e não o vi mais. Os demais
saltaram também, até mesmo Lady Di e o velho, mas
ninguém viu Predo. Ele havia desaparecido!
É curioso como a paleta do dia pode mudar do amarelo
tenro e confortável, para o azul melancólico e desesperador.
Tão logo nos demos conta do desaparecimento de Predo,
enviamos Renan e Lady Di até a cidade, para chamar os
adultos, enquanto continuávamos por lá procurando por ele.
Não demorou muito até que nossos pais e a polícia
chegassem para fazer uma varredura no local. A gruta foi
isolada durante a busca dos mergulhadores. O velho havia
desaparecido em algum momento que eu não notei. Talvez
não quisesse ser interrogado, eu não sei. Horas depois, no
final do dia, a mãe de Predo, Isabel, recebeu condolências e
muita choradeira começou a partir dali.
Eu e meus amigos ficamos do lado de fora,
acompanhando toda aquela tragédia com muito choque, e
todo mundo estranhou que eu não conseguisse chorar.
Nenhuma lágrima sequer.
Mas isso foi há oito anos. Nada mais foi o mesmo depois
do desaparecimento do Predo na gruta do velho. Alguns
diziam que ele havia morrido, mesmo ninguém tendo
encontrado um corpo. O prefeito, na época, quis nomear o
local a “Gruta do Pedro” e transformar em ponto turístico,
mas a mãe do Predo não autorizou e a gruta permaneceu
isolada, até que fosse esquecida novamente. Até mesmo
nossos pais, amigos de infância, se afastaram com o tempo,
pois a proximidade trazia também a dor.
Depois da tragédia, fiquei oito anos sem ver a Duda. A
princípio, trocávamos cartas e foi bom, pois acalentava
aquele aperto no coração, mas com o passar do tempo, isso
também se perdeu. Dá última vez que nos falamos, ela
havia me dito que trabalhava em alguma malharia, sem
muito futuro. Enquanto eu não decidia se cursava Direito ou
Arquitetura e estudava como um condenado, o Renan
assumiu o escritório de contabilidade do pai doente e
estava tão bem quanto Lady Di, que cursava medicina.
A vida seguiu seu rumo, deixando para trás os mortos e
os perdidos, sem que a dor fosse esquecida. Oito anos se
passaram sem que eu chorasse pela tragédia de Predo.
Foi em julho de 1989 que minha avó faleceu e nos
obrigou a voltar para Socorro depois de tanto tempo.
Consegui usar o luto como desculpa para recuperar os
contatos. Com isso, Renan e Lady Di viajaram comigo. Duda
apareceu no velório, linda em sua simplicidade, mas meio
abatida, como se as coisas não tivessem sido fáceis para ela
até ali.
Depois de todas as condolências, nos reunimos os
quatro novamente em um bar da Praça da Matriz para nos
atualizar um sobre o outro, evitando sempre em falar o
nome dele. O que, em certo momento, como era de se
esperar, foi inevitável.
— Eu acho que o Predo não morreu – falei, de repente.
As reações foram seguidas de um choque súbito e um
silêncio iminente, até que o próximo tivesse coragem de
continuar.
— Ele se afogou, Vini. Ou bateu a cabeça em alguma
pedra no fundo do lago, não tinha como escapar – concluiu
Lady Di, com os olhos marejados.
— Também acho que morreu – disse Renan. – Gostaria
que não. Mas acho que morreu sim.
— Sabem, às vezeseu passo pela estrada do Rio do
Peixe e olho para o alto. Nada parece ter mudado. A gruta
continua esquecida pelo povo daqui. – Duda disse, enquanto
virava o sétimo copo de cerveja. Estava quase bêbada. Ela
mordeu um canto do lábio e se deteve.
— O que foi? – perguntei. – O que você quer nos contar?
– Eu sabia que tinha algo. No fundo, ela também.
— Uma vez eu o vi.
— Quê? – Lady Di gritou, ficou pálida como um
fantasma.
— Quem? O Predo?
— Não, gente. O velho. Uma vez eu vi a silhueta dele
andando lá perto da entrada da gruta.
— Como pode saber que era ele?
— Quem mais seria?
— Até onde sabemos, ele já pode ter morrido. O homem
já era muito velho quando éramos crianças.
— Sei lá…
— Quando foi isso? Quando acha que o viu?
— Mês passado. Tenho quase certeza que era ele. Pode
ter sido só impressão, porque tava muito escuro, mas acho
que notei sua barba arrastando pelo chão.
— Caramba!
Eu realmente precisava de uma desculpa para voltar
àquele lugar. Passei toda a noite buscando brechas no
diálogo que me levassem a incitar todos a voltar para lá.
Mas Duda havia nos deixado inquietos e dei a ideia. Houve
desconforto, é claro, mas no final todos toparam.
Peguei meu Chevette cinza e seguimos até o local. A
gruta continuava lá, com a mesma vegetação ao redor, o
mesmo aspecto de 1981, como se o tempo não a tivesse
abalado. Um botão de Pause sobre ela.
Daquela vez foi mais fácil escalar a montanha, mesmo
no escuro. Eu já não era mais gordinho e me orgulhei
bastante ao ser o primeiro a chegar. No porta-malas,
encontramos algumas lanternas que meu pai usava para
pescar, o que colaborou bastante para não sofrermos
nenhum acidente lá dentro. O som de relógio
tiquetaqueando continuava ressoando nas profundezas da
gruta, mesmo depois de tantos anos. Lady Di voltou a se
sentar na beira do lago e molhar os pés, enquanto deixava-
se chorar. Ninguém a interrompeu. Sabíamos que existia
algo entre ela e Predo que nunca se concretizou, mais ou
menos como existiu entre eu e Duda. Mas, até então, eu
nunca tinha me firmado em nenhum relacionamento, e
todas as garotas, para mim, transformavam-se em Duda, o
que não ajudava muito.
— O que estão fazendo? – ecoou uma voz na escuridão.
— Caralho, que susto! – bramiu Renan. – Quase me mijei
aqui. Não vem assim por trás...
— Não é possível – eu consegui dizer.
Como seria possível? O velho que saiu das sombras era
exatamente o mesmo de oito anos atrás. A barba
continuava longa, mas não maior do que da primeira vez
que o vimos. As milhares de rugas, o olhar perdido e as
roupas em farrapos, tudo igual a 81.
— Realmente o tempo não passa aqui pra vocês, hein?
— Eu disse! Disse que o tinha visto! – disse Duda, disse
mesmo.
Talvez aquele homem não fosse tão velho quanto
pensei, o que poderia justificar o fato dele ainda estar vivo.
Seu rosto ficou sombrio e ele nos encarou.
— Há muito, muito tempo atrás, muito mais do que
vocês podem imaginar, quando as coisas eram mais
simples, um garoto se perdeu nessas águas. Ele saltou,
afundou e achou a luz no final das profundezas, lá embaixo.
– disse melancolicamente, apontando para o lago. – Aqui
dentro é diferente lá de fora. Tudo o que se perde, um dia é
encontrado. A gruta sempre permite uma segunda chance.
— Eu sabia. Esse velho viu o que aconteceu com o
Predo naquela vez. – disse Renan, um pouco tenso, um
pouco assustado, como todos nós estávamos.
— Calma, bicho – falei, enquanto me aproximava do
velho. – O senhor acabou de descrever a morte do nosso
amigo.
— Morte? – Ele pareceu surpreso. – Aqui não é um
ambiente de morte. Aqui é um lugar para recomeçar.
— Esse garoto – Lady Di começou. – Ele estava com os
amigos?
— O que afundou aqui? Oh, sim. Ele estava.
Ela me olhou, com aquela expressão de espertalhona e
se levantou, vindo cochichar no meu ouvido O velho
testemunhou, Vini. Ele sabe o que rolou por aqui. Duda
aproveitou o gancho:
— Qual era o nome do menino, o senhor lembra?
— Oh não. Não me lembro. As águas desta gruta
levaram toda a memória embora.
De repente, estávamos todos confusos, pensando como
Predo poderia ter sobrevivido depois de afundar no lago.
Teria ele emergido em outro local da gruta? E por que ele
nunca mais apareceu? Fugiu? Alguma coisa não se
encaixava, mas meu coração já conhecia a resposta. Faltava
o cérebro aceitá-la.
— O senhor o encontrou? O que houve com ele? –
perguntei.
O velho parecia ainda mais confuso do que antes,
então:
— Encontrei quem? Você faz perguntas estranhas. – Ele
se virou e encarou o lago, com um sorriso no rosto. Aquela
expressão de saudade. – Todos foram embora e me
deixaram aqui. Quando saí das águas, já era um adulto.
— O quê?!
— Eu disse, a gruta é especial. Este é um espaço onde o
tempo não existe. Onde um dia entrou um garoto e saiu um
homem. Nessas águas, as coisas que já aconteceram são
refletidas, e se repetem outra vez, e assim aprendemos
assistindo a pópria vida. De novo e de novo.
Lady Di estava emocionada, Duda a acalentou. Renan
começou a chamar o outro de maluco, quando então o
velho saltou no lago como um mergulhador peralta, dando
uma cambalhota no ar antes de atingir as águas.
E mais uma vez, depois de outro dia estranho, como foi
aquele em 1981, demoramos a voltar para Socorro
novamente. Com o passar dos anos, muita coisa mudou.
Renan se afundou no trabalho e aos poucos perdemos
contato. Lady Di se tornou uma dentista médica renomada e
bem casada, que logo se mudou para Suíça. Eu e Duda
ainda mantivemos contato, cada um com seu problema no
casamento. Depois do meu segundo divórcio, em 1997, e
com duas filhas que mal me olhavam no rosto, resolvi
realizar meu sonho de infância. É uma pena, no entanto,
que a Duda não tenha sobrevivido a um acidente de carro
quando voltava do trabalho. Tão jovem, tão bela, meu amor
que nunca seria meu.
Mesmo com mais uma tragédia, a turma de antes não
voltou mais a se reunir. Passei algumas vezes pela estrada
próxima a gruta, agora asfaltada, mas nunca mais vi o
velho. Uma segunda chance, havia dito ele. A gruta podia
recomeçar tudo. 1981, meus amigos ao meu redor, todo
mundo vivo e feliz. A infância nunca morre e a memória do
passado jamais se perde. Um mergulho talvez? Quem sabe.
“Pópria”, agora eu percebi quando o velho falou, “a
pópria vida. De novo e de novo.”
Afundando pouco a pouco no lago, seguindo o
tiquetaque e nadando de volta para a luz nas profundezas, o
menino retornou para o núcleo onde o tempo não existia,
depois de finalmente reencontrar os seus amigos.
— Obrigado, Predo.
Douglas MCT - Roteirista, escritor e lenhador. Faço
quadrinhos, livros e café. Amo gatos, beirutes e histórias.
Facebook: /douglas.mct www.douglasmct.com
Ramones
A longa espera
Rafael F. Faiani
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.
Edgar Allan Poe
Estico as costas, curvando-me para a frente, enquanto
espero o ônibus que nunca chega. A dor de cabeça me dá
uma trégua, o que é um alívio. O frio mordisca a pele e a
neblina parece uma película pegajosa no rosto. A rua está
tão escura e silenciosa que penso seriamente em desistir.
Meu apartamento fica pertinho, a menos de três quadras
daqui. Levanto do banco e pondero se vale mesmo a pena
ficar.
Se voltasse ao apartamento, abriria uma garrafa de
vodka, e talvez abrisse outra. Quem me impediria a não ser
minha própria consciência? Tinha prometido à minha mãe
que pararia de beber e já estou a um passo de quebrar a
promessa. Por isso tenho que esperar.
Também tem a questão do casamento, é claro.
Michael, meu irmão caçula, vai se casar com Emily. Pelo
menos, tiveram o bom senso de não me colocarem de
padrinho. Não haveria clima para isso. Será interessante,
até mesmo inusitado, ver minha ex-namorada entrando de
noiva. Só o desconforto dela valerá toda a viagem.
Terminei com Emily há três anos. Gosto de pensar que
ela está com Michael porque ele a faz se lembrar de mim. É,
eu sei. A inveja é mesmo uma coisa nojenta. Devia meenvergonhar, mas quem liga? Eu só não gosto de perder.
Não que gostaria de voltar para ela, longe disso, mas saber
que tudo que poderia ter sido um dia jamais será é meio
perturbador.
Um cachorro passa sem me notar. Seu pelo é comprido
e imagino que não esteja sentido tanto frio quanto eu. Sorte
dele que não precisa ir ao casamento do irmão com a ex.
Um farol banha o asfalto. Não é o ônibus, o que me faz
pensar na garrafa de vodka e em como gostaria de estar
sentado na cama, bebendo de frente ao pôster do Ramones.
Um carro preto passa devagar e não vejo quem é o
motorista. Como essa é uma cidade universitária, pode ser
qualquer um no mundo. O motorista acelera, os pneus
cantam no asfalto e o carro desaparece neblina adentro.
Que mente mais fodida, penso.
Alguns minutos depois, um sujeito se aproxima devagar,
fumando um cigarro.
— Esperando alguém?
Estudo sua expressão, imaginando se tinha puxado
assunto por educação ou se existia um interesse velado por
trás daquela pergunta.
— O ônibus. Já era para ter passado.
— Não lhe disseram? – ele dá uma baforada no ar.
Arqueio as sobrancelhas de modo inquisidor.
— O ônibus não passa mais aqui. Parece que cortaram a
cidade do itinerário.
— Mas isso é burrice. Aqui é uma cidade universitária.
— Nem me diga… É um retrocesso. Como se
estivéssemos parados no tempo, não é verdade? Desse
jeito, acho que ninguém mais vai para casa. Nem hoje, nem
nunca.
A presença daquele sujeito me incomoda. Ele usa
roupas estranhas, o jeans está rasgado no joelho e o boné
tem um símbolo que jamais vi, porém é seu jeito de olhar
que mais me perturba. Parece um homem perdido no tempo
ou um psicopata, como se saído diretamente de um
episódio do The Twilight Zone.
— Você não acha? – ele pergunta.
— O que disse?
— Estamos distraídos, não é mesmo? Eu disse que a
noite está tão escura que chega a dar arrepios. É uma
daquelas noites em que tudo pode acontecer.
— Talvez… – murmuro. – Talvez tudo o que vemos ou
parecemos viver não passe de um sonho dentro de um
sonho.
O sujeito me fita com interesse.
— Eu já ouvi isso em algum lugar.
— É a citação de um poema…
Paro de falar quando o carro preto retorna e estaciona
no meio-fio.
O cara da mente fodida.
— É meu amigo, Ryan – o sujeito diz. – A propósito, eu
me chamo David.
— Jason – eu digo.
— Sinistro! Igual ao cara do Sexta-feira 13.
Não entendo ao que ele se refere, mas deixo pra lá.
Provavelmente nunca mais o veria na vida. O sujeito abre a
porta do passageiro, então se volta para mim e pergunta:
— Não quer uma carona? Podemos lhe deixar no
caminho. É mais fácil nascer um poste onde você está do
que o ônibus aparecer.
A oferta é tentadora. Penso que a noite poderia ficar
mais fria e, se eu voltasse para o quarto, minha única
companhia seria a garrafa de vodka. E eu tinha prometido.
Promessas não são mesmo uma merda?
— Para onde vocês vão? – questiono.
— Illinois – Ryan responde. – Vem ou não?
Meu sexto sentido diz para ficar, mas faz tempo que não
escuto a voz da razão. Sento no banco de trás e David bate
a porta com força. Um cheiro de pinho acerta meu nariz
como um soco.
— Pegou o dinheiro, certo? – Ryan pergunta.
David não dá resposta, apenas sopra a fumaça do
cigarro; no entanto, mal o vejo devido a uma chapa de ferro
que separa os bancos da frente. Existe só uma abertura
estreita e retangular onde é possível projetar o corpo.
— O que é esta divisória de ferro?
— Ryan comprou esta belezinha de um dublê. Ele não
gosta de se gabar, mas este carro chegou a fazer uma
participação em Knight Rider… Já assistiu?
— Não, nunca.
— Deveria assistir. O carro também foi feito sob medida
para capotamentos.
Tento imaginar quantas vezes Ryan, o “Sr. Mente
Fodida”, teria capotado o carro. É difícil prever o grau de
loucura de uma pessoa nos primeiros minutos de contato,
mas não estou fazendo nenhum julgamento precipitado
quanto aos dois.
Enquanto o carro ganha velocidade, a impressão que
tenho é de estar dentro de uma caixa de metal. Olho para
fora, mas as imagens aparecem turvas devido à neblina.
Depois que Ryan ultrapassa oitenta milhas por hora,
parece que flutuamos no ar. David está falando sobre média
de arremessos, um assunto tão aleatório que não tenho
vontade alguma de participar.
Minha visão embaça e capto um som mínimo em meus
ouvidos. Olho ao redor e tudo continua normal. Nenhuma
alucinação provocada pela abstinência. Contudo, a dor de
cabeça vem forte, só espero que passe como da última vez.
Tive esses sintomas no meu apartamento, um pouco antes
de ir para o ponto de ônibus. Assemelham-se a visões e as
imagens ficam oscilando entre o real e uma versão do meu
quarto com o pôster do Ramones rasgado. Se pudesse ler
meus pensamentos, Ryan poderia dizer: Quem é o Sr. Mente
Fodida agora?
Já estamos a cem milhas por hora. A neblina se dissipou
e nenhum carro cruzou o nosso caminho. Fecho os olhos na
esperança de que a dor de cabeça melhore, mas sei que
não vai ser tão fácil assim.
— Tem aspirina?
David contorce o pescoço para trás como um crocodilo.
— Não. Quer alguma coisa mais poderosa?
Dispenso a sugestão. É melhor não brincar com a sorte.
— Devagar na curva – murmura David. Ele fala tão baixo
que se eu não estivesse prestando atenção mal notaria.
Ryan obedece e diminui a velocidade.
— Já aconteceu com você? – Ryan olha pelo retrovisor.
— O quê? – pergunto.
— Que tudo que vive não passa de uma mentira?
David dá uma risada forçada do lado.
— Ah, cara! O que você fumou desta vez?
— Às vezes, acho que não sou eu que estou aqui, que
estou só olhando minha vida por trás de uma cerca de
arame farpado, e que não posso me intrometer. É difícil, não
sei como explicar, mas acontece quando dirijo. É como se
minha mente viajasse para outro lugar. E eu fico aqui meio
que em piloto automático, entende?
— Que papo mais doido e sem sentido! Por acaso você
está aí agora? Está me ouvindo ou foi dar um passeio?
Ryan ignora David.
— Faz sentido para você? – ele pergunta.
— Sei o que quer dizer, é como…
Um sonho dentro de um sonho.
— Cuidado! – David grita.
Não vejo nada, mas o carro derrapa para a direita,
depois ginga para a esquerda e novamente para a direita,
como um peixe se debatendo em terra firme. Tudo dura
menos que três segundos. Ryan consegue recuperar o
controle do carro.
— O que aconteceu?
— Quase acertamos a porra de um cervo – grita Ryan.
— Essa foi por pouco, cara! – David começa a rir.
Ele também é um Sr. Mente Fodida.
A dor de cabeça só piora, e fico enjoado.
— Preciso vomitar. Encosta o carro!
— Abre a janela – David sugere.
Tento abri-la para tomar um pouco de ar fresco, mas
está emperrada.
— As duas estão com defeito – Ryan explica.
— Não dá pra parar? Nós quase capotamos.
— Já estamos chegando.
Quase chegando?
Faltava muito tempo pelo que me recordava.
— Além de tudo… – complementa Ryan – Esta estrada é
muito perigosa à noite. Vê? Não cruzamos com nenhum
carro. Se pararmos e o carro não ligar, estamos fodidos.
A explicação não me convence, é mirabolante demais, o
que me faz olhar aquela dupla com outros olhos. Até onde
sei, o ônibus pode ter passado cinco minutos depois que
peguei carona. David pode ter mentido, mas não consigo
ainda imaginar o motivo.
— Conhece Guns N’ Roses? – David mostra uma fita
cassete entre os dedos.
Dou de ombros, mas ele ainda me observa como se
esperasse por uma resposta.
— Não – respondo, secamente.
Fecho os olhos, antes que a música comece.
Devo ter adormecido, pois me vejo de longe, do alto.
Não há ninguém no campus, somente eu vagando no
gramado entre as árvores. Num piscar de olhos, chego num
corredor extenso. Reconheço onde estou: parado em frente
à porta do meu quarto. Ela está destrancada e não há nada
ali além de uma cama velha. Mas onde estão as minhas
coisas? Deito naquela cama e adormeço.
Sonho que caminho novamente pelo gramado. Estou
com mais pressa dessa vez e, no instante seguinte, estou
no quarto, exausto. Entãodurmo e sonho de novo.
Agora as árvores estão sem folhas, uma coleção de
galhos retorcidos. Não entro no quarto, não me lembro
dessa parte, mas já estou na cama. Antes de adormecer, no
entanto, seguro um pingente na mão. Aquilo me dói de um
jeito insuportável, mas não estou mais ali…
Estou no gramado mais uma vez, perdido em múltiplas
realidades.
De qual realmente faço parte? Só sei que quero acordar.
Isso se eu estiver dentro de um sonho. Sinto que vivo num
momento infinito, marcado por passagens de um passado
que me revisita toda hora. Abro os olhos uma, duas, três
vezes…
Quantas vezes será necessário?
O pôster do Ramones está cada vez mais descascado,
mas parece tão vívido!
De repente, me vejo no carro e me dou conta que não
estou mais sonhando…
— Você apagou, cara!
Estou meio zonzo e demoro a identificar a origem da
voz. A música já terminou, e só escuto o motor do carro
trabalhando.
— Até roncou – Ryan, o Sr. Mente Fodida, diz.
Do lado de fora, está tão escuro que parece que
vagamos pelo espaço sideral.
— Gosta de histórias, Jason? – indaga David.
Abro a boca para dizer que não, mas ele continua:
— Eu tenho uma boa pra contar, pra passar o tempo.
Até quando eu teria que suportar isso?
Tento segurar o sentimento de revolta que cresce em
mim.
— Aconteceu com um amigo meu. Ryan conheceu o
cara.
— Mais ou menos. Só de vista.
— O que importa é que você sabe quem é o cara.
Ele poderia muito bem calar essa maldita boca, penso.
A dor de cabeça volta; na verdade, ela nunca tinha me
abandonado, e a visão tremula, mas me mantenho firme.
— É verdade. Eu sei quem é o cara.
Direciono meus olhos para fora, mas David pede para
que eu preste atenção aos detalhes. Vejo o perfil dele pelo
espaço limitado, o nariz fino como o bico de um corvo, os
olhos me analisando enquanto me remexo no banco de trás.
— Esse amigo se separou da namorada quando
começou a faculdade. Ele nunca conseguiria manter um
relacionamento à distância. Sei do que estou falando, eu o
conheço bem. O problema é que o cara é um imbecil. A
garota é linda, mas sei como é. Eu mesmo não consigo
manter um relacionamento por mais de uma semana.
David ri de uma forma que me deixa incomodado. Na
verdade, a história em si começou a me deixar assim.
— É mais comum do que imagina… – comento,
deixando me envolver, pois estou no mar e tenho que
seguir o curso do navio.
— Claro que é. Mas há muitas peculiaridades nesta
história. O que eu disse antes?
— É. Os detalhes, cara – confirma Ryan.
— Mesmo separados, no primeiro ano eles ainda se
comunicavam por cartas. Só que, com o passar do tempo,
ele percebeu que as cartas demoravam mais a chegar. E,
quando chegavam, estavam mais frias e distantes. Parece
que ela finalmente tinha dado a volta por cima…
As palavras se misturam na minha cabeça. O enjoo vem
novamente.
Maldita abstinência!
— Então, ele resolve comprar um presente; algo para
despertar o amor que sabia que ela ainda sentia.
— Damos valor apenas àquilo que nos falta – murmuro.
— Precisamente, você captou a coisa. Mas o meu
amigo… Eu disse o nome dele, não disse? É, acho que não.
Ele se chama Norman… Ele não tinha ideia do que comprar
e me pediu um conselho. De todas as pessoas, ele me
escolheu.
Aquela história revira o meu estômago e dou uma risada
só para interrompê-lo. Ele me lança um olhar intrigado. Não
consigo definir se por trás há raiva por ter cortado a sua
história, curiosidade ou medo.
— Já teve um sonho de que não sabia como acordar,
David? – pergunto. – E se você estivesse preso nesse sonho?
Como voltaria?
— É tipo uma charada? – indaga Ryan. Também consigo
capturar sua atenção.
— Desculpe interromper a história, mas isso me veio à
mente. Vocês estão presos na Terra Encantada dos Sonhos,
certo? Como escapariam de lá?
— Você tem que se beliscar, é simples – David
responde, ainda mal-humorado.
— Mas e se você não acordar mesmo assim? – pergunto.
— Já sei… – Ryan fala. – Eu tenho uns sonhos bem
loucos, mas tem um em que estou trabalhando no escritório
de terno e gravata e nenhum ar-condicionado funciona.
Aquilo me irrita tanto que subo até o terraço para respirar.
Então caio lá de cima. É uma piração, mas sempre acordo
antes de bater no concreto.
— Piração mesmo. Você de terno e gravata – zomba
David.
— Então você acha que a forma de escapar de um
sonho é morrendo? – indago.
— Com certeza.
— Pode ser uma saída, mas só tem um problema – digo.
– E se não for um sonho?
Eles ficam em silêncio, digerindo aquela pergunta.
Depois Ryan faz um sinal com a cabeça para David.
Naquele instante, cruzamos uma placa que aponta a saída
da estrada a dois quilômetros.
— Cara, sei lá… – David resmunga. – Posso voltar agora
à minha história?
— Termina isso de uma vez – fala Ryan. Não identifico se
o tom que ele usou foi de gozação ou de pressa.
— Pois bem… Norman enviou o presente, mas ela nunca
mais respondeu. Depois, ele descobriu que ela estava
namorando outro cara, acredita nisso? Norman começou a
faltar nas aulas e mal deixava o quarto, alegando que
escrevia um livro. Nem mesmo comia direito. Mas sabe qual
foi a pior parte, Jason? Sabe o que o afetou mais?
Não respondo.
— Não sabe? – ele insiste. – Veja isso aqui…
David abre a palma da mão e revela um pingente com a
metade de um coração.
— Você passou… – falo com a voz rouca.
Meu corpo retesa devido a um espasmo.
— O que disse?
— Eu disse que Ryan não pegou a saída certa.
David não responde.
— Vocês me ouviram?
Ryan e David simplesmente me ignoram.
— Estou falando com vocês!
David se volta para mim por um segundo, mas não fala
nada, apenas puxa uma chapa de metal, obstruindo o único
espaço por onde poderia vê-los.
— O que vocês querem de mim? – indago.
Sem explicação, o carro dá uma guinada e entra numa
estrada de terra. Vejo pelo vidro a poeira levantar. Continuo
a protestar para a parede de ferro.
— Calma! Estamos chegando.
Por fim, a voz vem através de uma fresta. Os olhos de
David aparecem pela abertura.
— Por que estão fazendo isso?
Não consigo parar de tremer, e minha visão embaça. A
dor de cabeça parece que vai trespassar o meu cérebro.
Vejo o pôster do Ramones descascado na parede, como um
sonho vívido, onde só restam as letras RAM, depois as
árvores e o gramado que dão para o alojamento. Não há
ninguém ali no campus.
Queria ter voltado para o quarto e aberto a vodka. Teria
decepcionado minha mãe com essa atitude, mas, se
parasse para pensar, quando não a decepcionei? Se tivesse
outra oportunidade, faria tudo diferente. Até mesmo com
Emily. Ou achava que faria…
David fala algo, mas estou embalado numa imersão de
autocomiseração. Talvez eu não estivesse pronto para essa
realidade. Volto a mim quando paramos. Ryan já está do
lado de fora do carro. David abre mais a fresta e diz:
— Aquela história é engraçada… Norman descobriu
quem era o cara que estava com a ex-namorada dele…
Você não vai acreditar nisso, vai?
Ainda vejo o pôster descascado no meu quarto.
— Deixe Emily em paz, Jason!
O que ele fala me atinge brutalmente.
Sinto minha alma pesar. Uma torrente de imagens passa
pela minha mente. São como fotos numa parede. Todas de
uma mulher. Uma mulher que conhecia desde criança, que
sempre fui apaixonado e que em determinado momento da
vida eu neguei.
— O que fez com ela? – grito. – Eu quero vê-la…
— Impossível.
— O QUE FEZ COM ELA? – exalto-me.
— O que eu fiz? Você ainda não entende? – David nota a
confusão no meu rosto e acha graça. – Ah, cara! Estou
quase acreditando que você não sabe de nada.
— Onde ela está? – pergunto novamente.
— Foi tudo culpa sua.
— Minha culpa?
— Emily tentou se matar na primeira vez que você
apareceu, Jason. Agora está internada num sanatório,
provavelmente gritando para o teto.
— Não, Emily vai se casar com Michael… o meu irmão.
Estou indo para o casamento…
— Essa não é a realidade, Jason. Pode ter sido em 1980,
há sete anos, não agora.
O que ele está insinuando?
Tento me convencerde que não é verdade.
— Todo ano você faz isso – continua David. – Não há
uma data específica, mas é sempre no mês de julho.
Estamos há onze dias lhe esperando naquele ponto. Você
não vai mais escapar como da última vez. Olhe em volta…
Você está numa prisão de ferro. Tem até mesmo sal em
volta dos vidros.
— Vocês vão me matar? – pergunto.
— Cara… – David desata a rir.
— Vamos acabar com isso! – ouço a voz de Ryan vindo
de fora, mas não consigo vê-lo. – É melhor desse jeito. Sem
ele saber.
— Como poderia lhe matar? – David indaga. – Olhe para
você mesmo! Você já está morto.
Ergo o braço e minha pele está pálida, translúcida…
Quando me dou conta, o carro já está em movimento.
Ryan e David o empurram pela parte de trás. De repente, o
chão desaparece e, pelo vidro, só há escuridão.
Estou despencando num abismo…
Oh, Emily, eu sinto tanto. Eu não devia… Eu…
Sim, eu devo.
Tenho que escapar… Preciso vê-la…
Só mais uma vez.
Sinto o carro bater, se deformar, mas…
Não há mais escuridão, apenas uma névoa branca que
vai se agrupando e se solidificando em um círculo. Parece
um olho gigantesco. Dentro de sua pupila, há uma infinitude
branca que me encara. De alguma forma, sinto que não é a
primeira vez que estou aqui. Dou dois passos para trás e
vejo agora uma parede branca.
O pôster do Ramones está descascado.
RA – são as únicas letras que restam.
Tenho que decidir o que fazer.
Eu poderia abrir uma garrafa de vodka ou…
Ou pegar o ônibus para ir ao casamento de Michael.
Que grande dor de cabeça!
Minha visão oscila mais uma vez.
E ainda penso nela.
Emily…
Penso nela sempre.
E isso é tudo o que me resta.
É tudo o que me resta nesta longa espera.
Rafael F. Faiani – Viajante do tempo e viking nas horas
vagas. Twitter: @rffaiani
Insurgentes
Falha na comunicação
Bruno Bianchi
— Noite passada eu sonhei com o olho de novo – disse Sara,
ao acordar. – Os tentáculos saíam dele como nervos e me
cercavam…
Era outono, as chuvas transbordaram o rio e a enchente
paralisou a cidade por três dias, destruindo estradas e
abrindo buracos. As escolas não abriram, inseguras de
novos desastres, e, na mesma semana, o Bode Negro iria
participar do festival anual. Não havia grandes
divertimentos para os adolescentes. A escola era o lugar
onde podiam conversar sem câmeras ou Agentes da Ordem
a mando do Bode. Exceto quando decidiam sair à noite para
a casa abandonada no final da rua, ou ao parque próximo
do orfanato, onde fumavam e contavam histórias de terror.
Foi naquele outono que a primeira livraria surgiu na cidade,
uma construção de três andares que atraía olhares. Antes,
livrarias existiam apenas no imaginário dos jovens.
Padre Sebastião permitiu que as crianças visitassem a
livraria no aniversário de Sara, com a ressalva: “Cuidado
com o livro que vão comprar”. Alguns eram colocados à
venda para atrair e identificar possíveis subversivos, mais
uma das manobras do Bode Negro.
As crianças passaram a tarde lá, observando os livros e
a chuva que caía na rua. Depois de horas, se decidiram.
William comprou uma HQ. Liane, um livro de terror. E, por
insistência de Liane, Sara levou um livro-cartilha sobre
funcionamento e reparo de rádios. O exemplar apresentava
marcas de uso.
Moravam em um orfanato. A casa de dois andares
abrigava dez crianças em sete quartos. Os quartos não
eram grandes: duas camas, um armário e uma
escrivaninha. Sara guardava as coisas de estima − um rádio
estragado e cartas velhas − num baú debaixo da cama.
— Sua mãe trabalhava com rádio, não é? – Comentou
Liane, se esgueirando atrás de Sara e observando a foto da
mãe da colega, depois de voltarem da livraria.
— É… Ela ficava a noite acordada, ouvindo estática. De
vez em quando, alguém falava do outro lado, e ela corria
para acordar o papai.
— Você se lembra o que eles falavam? Era algo sobre O
Novo Caminho?
— Não. Eu tinha quatro, cinco anos, acho. A única coisa
de que lembro era o barulho, ou de acordar à noite porque a
gente tinha que trocar de esconderijo. Ou de quando papai
e mamãe foram pegos.
— Você sabe o que eles faziam? Antes do
Arrebatamento?
Sara pensou por um instante.
— Papai era marceneiro. Minha mãe, eu não sei. Acho
que dona de casa. Ei, onde está Will? – fechou o cadeado e
guardou o baú.
— Ajudando Irmã Helga na cozinha.
Sara tinha se esquecido: William quebrara uma regra, e
agora teria que sofrer a penitência sozinho. Nos quartos,
havia uma lista com obrigações. Coisas como lavar louça, ir
à escola, não sair depois do toque de recolher. Ao lado das
regras, as punições.
***
Liane acordou com um pulo, suor escorrendo da testa
morena, empapando a camisola azul. Ao lado, Sara a
encarava, um dedo na boca, pedindo silêncio.
— Eu gritei? – sussurrou. A outra assentiu. Liane saiu da
cama, enfiando-se debaixo das cobertas de Sara.
Liane era dois anos mais velha e já tivera a primeira
menstruação. O corpo crescera, parecia mais uma
adolescente do que criança; ao contrário de Sara, com
braços magros, seios quase inexistentes e cabelos crespos;
não era incomum as Irmãs criticarem sua aparência.
— Não consegue dormir? – perguntou Liane, olhando
debaixo das cobertas e encontrando a lanterna acesa. Sara
balançou a cabeça e mostrou o rádio e o livro-cartilha. – Ah.
Conseguiu arrumar o aparelho?
— O livro tá me ajudando, olha, tem anotações do dono
antigo.
Ficaram em silêncio, Liane segurando a coberta,
enquanto Sara estudava as anotações e fuçava no aparelho,
até ele fazer um chiado. As duas se entreolharam, e Sara
girou o botão de frequência, observando o ponteiro viajando
pelos números. Liane sussurrou algo e Sara pediu para ela
ficar quieta.
Em uma das sintonias oficiais, ouviram a legislação
imposta. Em outra, um homem noticiava os últimos
acontecimentos. Uma terceira transmitia a mesma frase
repetidas vezes: O toque de recolher começa às 2000 e se
encerra às 500. Todos os trabalhadores noturnos devem ter
em mãos o documento de identificação.
Sara continuou avançando, e então a estática parou.
Silêncio.
— O que aconteceu? – perguntou Liane. As duas se
aproximaram do rádio no momento em que uma sirene soou
na rua, e Sara precisou colocar a mão sobre a boca para
abafar um grito.
Espicharam o pescoço para a janela e olharam para a
rua, a luz azul cegando-as quando um Rastreador passou,
pendurando-se nas casas e edifícios.
— Você acha que ele viu a gente? – a voz de Sara era
quase inaudível. Elas continuaram observando o Rastreador
até ele desaparecer. Sara se lembrava da primeira vez que
tinha visto um, quando era criança. Na época, parecia uma
criatura gigantesca: três metros de altura, membros finos
como os cabos de energia que se espalhavam pela cidade.
O tronco era como uma larva imensa, com três olhos azuis
que iluminavam as ruas em busca de transgressores.
— Acho que não, senão estaria aqui em cima. Venha,
vamos voltar a dormir.
***
Na tarde seguinte, a enchente tomou conta do primeiro
andar, e as crianças permaneceram nos degraus,
observando o Padre Sebastião caminhar com a água nas
coxas enquanto tentava salvar os bens preciosos do
orfanato.
— Ele vai pegar uma doença – disse uma das crianças.
— Os jacarés vão achá-lo antes.
— Alguém aqui vai se inscrever pra conhecer o Bode
Negro?
— Vocês sabem onde está o Fernando? – perguntou uma
quarta criança. Ninguém respondeu. Fernando era um dos
mais velhos, e costumava quebrar o toque de recolher para
fumar no parque. Às vezes, só voltava na noite seguinte,
mas nunca havia saído durante uma enchente.
Observar o padre tornou-se tedioso em pouco tempo, e
Sara voltou para quarto. Continuou a ler a cartilha, mas o
que chamava sua atenção eram os rabiscos do antigo dono.
A letra era rudimentar, mas corrigia erros e aprofundava
assuntos. A parte que o dono mais complementara fora a de
frequências, na qual ele buscava uma forma de ampliar a
potência de um receptor para quebrar o bloqueio dos
agentes.
Presa em casa, Sara passou o resto do dialendo e
mexendo no rádio, acreditando que os problemas de
estática da noite anterior foram resultados de um problema
no amplificador. Conseguia captar as estações oficiais
claramente se ficasse na janela, com o rádio esticado para
fora, mas todas as outras estações eram quase inaudíveis.
Em algumas ocasiões, conseguiu escutar vagamente
alguém conversando. Ouviu sobre O Novo Caminho, mas
sempre que tentava se aproximar da frequência, uma
estação oficial invadia o canal e ela perdia quase dez
minutos refazendo os passos.
— Eles estão querendo ir ao parque amanhã – disse
Liane, fechando a porta do quarto atrás de si. – Will quer ir
junto. Quer nós duas com ele.
— Por eu ter feito aniversário?
— Sim – Liane caiu na cama, colocando as mãos sobre o
rosto. Sara ouvira falar das histórias de como toda criança
tem que quebrar o toque de recolher aos quatorze anos. Um
ritual de passagem para decidir: ou era um subversivo, ou
um capacho.
— Você não precisa fazer isso, sabe? Ninguém vai
pensar menos de você – disse Liane, que já passara pelo
ritual dois anos antes. – Você sabe o que acontece se for
pega… o tratamento corretivo, ou pior.
Sara explicou sobre o que leu, sobre as frequências que
queria descobrir, sobre a transmissão do Novo Caminho. No
parque, havia uma cabana abandonada, onde antes ficava
um posto de vigia dos Agentes da Ordem. Se eles ainda
tivessem a estação de rádio lá, Sara poderia amplificar o
receptor do seu rádio usando o maquinário dos agentes.
— Por isso eu quero. Posso tentar resolver duas coisas
de uma só vez. Mexo no rádio e não serei chamada de
capacho.
***
Na noite seguinte, Sara olhava para o relógio acima da
porta. Ao lado, Liane se revirava na cama, suando;
provavelmente sonhava com o olho também. Levantaram
após o apagar das luzes, afugentando os pensamentos
ruins. Liane jogou um casaco preto para a amiga vestir.
— Vai ser mais difícil te perceberem se você colocar o
capuz.
Saíram na ponta dos pés e encontraram Will no andar
de baixo, olhando para o estrago que a enchente causara.
Ele fez um sinal para as garotas e as guiou até a saída dos
fundos.
O coração de Sara batia com força. Qualquer barulho
que fizessem, um passo em uma tábua solta, e
provavelmente os três iriam ser castigados. Aquilo não
parecia estar na mente dos irmãos, eles tinham uma
expressão serena, resultado dos anos em que já saíam do
orfanato e voltavam. Era uma atividade quase semanal para
eles, mas Sara nunca soubera exatamente o que eles
faziam fora.
Finalmente saíram, e Will agachou para ajudar a irmã a
subir no muro. Liane estendeu o braço e puxou o garoto
para cima, e então aguardou Sara se aproximar. A garota
subiu com dificuldade, arranhou a mão e o joelho, sentindo
o sangue escorrer pelo pulso.
— Nós vamos evitar a avenida principal – disse Will. Era
quase impossível ver seu rosto no breu. − O rio está alto e
cheio de entulhos. Tem trabalhadores lá, limpando, então
vai estar bem movimentada. Daqui a alguns dias é o
festival, tem muitos Agentes perto do Palácio e o parque vai
estar vazio. O importante, pra eles, é garantir a segurança
do Bode Negro nos próximos dias…
A frase ficou solta no ar, mas os três se arrepiaram ao
lembrar da imagem do Bode.
— Isso não é uma brincadeira, lembre-se disso –
continuou Will. – A maioria dos agentes está ocupado com
outros afazeres. Só deve ter um ou dois Rastreadores nessa
região, então vai ser fácil chegar ao parque, mas não pare
de prestar atenção em tudo, ok?
Sara assentiu, e então Will andou. O parque ficava a
duas quadras. De acordo com os irmãos, outros dois órfãos
também estavam indo pra lá. Uma névoa tomava conta da
cidade, dificultando a visão. Ocasionalmente, Will parava e
apontava um ponto distante, onde era possível ver a luz
azul de um Rastreador. Chegar ao parque foi uma tarefa
longa, devido aos desvios que fizeram para contornar os
agentes.
O parque era extenso, com bosques, zoológico,
restaurantes. Durante o dia, era relativamente
movimentado, se ninguém se importasse com seu ambiente
macabro. À noite, no entanto, Sara não sabia exatamente o
que esperar.
— Por aqui – Will foi para perto de uma árvore. Cipós
caíam ao lado do tronco, e Will segurou um com as duas
mãos, fazendo força para puxá-lo. Começou a escalar, até
ultrapassar a altura do muro. Balançou o corpo para frente e
desapareceu na noite, caindo dentro do parque.
— Não vou conseguir fazer isso, Liane.
— É melhor que consiga, porque não vou te levar de
volta. E você quer encontrar a frequência do Novo Caminho,
não quer?
Sara assentiu, segurando o cipó. Ouvira histórias de
árvores que eram mais vivas que outras, que podiam te
tragar para dentro delas, aprisionando as pessoas no casco
e se alimentando lentamente de seu corpo. Boatos corriam
sobre como os agentes transformavam a natureza com uma
tecnologia nova, como eles faziam experimentos em
laboratórios subterrâneos e, aos poucos, conseguiam
controlar plantas e animais.
Com dificuldade, Sara escalou, usando os pés para se
apoiar e, quando parecia que estava em uma altura boa,
pulou para a escuridão. Não sabia exatamente onde cairia,
e então chocou-se contra Will, que a abraçou e caiu no
chão. Sara emitiu um pequeno grito, crente que um Agente
da Ordem a tinha pego.
— Você está bem? – perguntou Will, tirando a garota de
cima de si.
— Só assustada. Eu pensei que…
— Eu não ia deixar você se machucar, Sa. Liane me
mataria.
Liane caiu logo em seguida, rolando na grama antes de
se levantar. Agora os olhos de Sara estavam mais
acostumados à escuridão e ela conseguia ver o contorno do
parque. Poucos metros adiante, uma estrada levava para
uma ponte. Do outro lado da ponte, ficava a cabana
abandonada.
Andaram em fila, Will na dianteira, os passos quase
inaudíveis, e a névoa cada vez mais densa. Sara nem
mesmo percebeu quando chegaram à ponte e a
atravessaram. A natureza modificada não era exatamente
gentil com as pessoas e, a cada passo que davam, olhavam
em volta, procurando por algo que pudesse ser perigoso.
Sara se lembrava de uma vez que uma garota respirou os
esporos de um cogumelo e passou dias vomitando, até
morrer.
— Nós vamos para a cabana ver o seu rádio, e então
vamos encontrar os garotos, ok? – disse Will, a voz tão baixa
que se misturava ao movimento do que tinha vida no
parque.
— Você tem certeza de que está abandonada? –
perguntou Liane.
— Espero que sim – respondeu Sara, embora não
tivesse certeza. Ela passara algumas vezes pelo parque e
pela cabana nos últimos meses, e sempre encontrava o
local vazio, embora bem cuidado, mas isso durante o dia.
Não havia janelas quebradas ou pichações.
As árvores cresceram ao redor deles quando chegaram
do outro lado da ponte. Os troncos retorcidos pulsavam, e
Sara observava a luz azul emitida. Pensou em perguntar o
que havia ali durante a noite que deixava as árvores assim,
mas preferiu não saber.
A cabana era pequena, de madeira simples, com janelas
estreitas e duas entradas. Liane tomou a frente, se
agachou, avaliando a fechadura, e então tirou um grampo
do bolso e começou a trabalhar.
— Por que você quer entrar aí mesmo? – perguntou Will,
se agachando ao lado da irmã. Sara demorou um pouco
para responder, observando o brasão na lateral da cabana,
um olho com tentáculos; o sinal de que todos eles estavam
sendo observados e poderiam ser pegos a qualquer
instante.
— Eu ouvi uma mensagem do Novo Caminho. Achei que
eles tinham sido dizimados há uns cinco anos, mas tem
esse canal…
— Claro que isso aconteceria: eles são subversivos dos
mais extremos. Para eles, o fuzil é o tratamento corretivo.
Provavelmente foram todos mortos.
— E a mensagem?
— Talvez tenham deixado gravado antes de morrer –
sugeriu Will. A irmã pediu para falarem mais baixo.
— A mensagem não se repetiu nenhuma vez. É uma
transmissão ao vivo.
— E o que você vai fazer se encontrá-los, Sara?
— Me juntar a eles. Como meus pais.
Um rangido leve na porta anunciouque Liane
conseguira. Da cabana, saiu um cheiro de mofo e ovo podre.
Dentro era ainda mais escuro do que o parque. Will ligou a
lanterna. Dois cômodos: sala, onde estavam, com uma
mesa velha, alguns utensílios de cozinha e uma pia; e um
quarto, com um beliche e um painel elétrico grande. Sara se
aproximou do painel, observando os botões e fusíveis, certa
de que era o receptor de rádio que tanto buscava. Estava
enferrujado, mas parecia intacto, e manteve-se firme no
trabalho, tentando se lembrar do que lera.
Não demorou mais que uma hora. Will e Liane
começavam a ficar impacientes, observando as janelas.
Com exceção das árvores, nada mais parecia se mexer.
— Tem algo de errado acontecendo – disse Liane. – As
árvores estão agitadas.
— Você acha que…
— O quê? – perguntou Sara, olhando para trás.
— Dizem que é das árvores que saem os Rastreadores.
Como se fossem casulos.
Sara também começou a ficar inquieta e ligou o rádio.
Apesar do volume baixo, no silêncio da noite a transmissão
pareceu ensurdecedora. Passou pelo canal oficial dos
Agentes da Ordem e pelo canal de notícias, parando por
alguns segundos para ter certeza de que não era o que
procurava.
O toque de recolher começa às 2000 e se encerra às
500. Todos os trabalhadores noturnos devem…
Na última noite, o prefeito anunciou que iria ampliar o
número de…
Na véspera, a cidadã… embarcou no avião…
acompanhada das duas filhas. Recorda-se que a epigrafada
ao lado dos elementos… forte campanha de desmoralização
contra… também como agitadora e subversiva.
Passava por estações oficiais e outras que nunca tinha
ouvido. Em algumas, tocava música; em outras, notícias de
um lugar que ela nunca ouvira. E então encontrou o que
queria. Sara olhou para o rádio e viu que o ponteiro estava
na frequência 196.68.
… busca uma escolha diferente… se você acredi…
junte-se ao Novo Cami… iremos até você… não contate
ning…
— Puta merda – disse Liane, se aproximando. As duas se
entreolharam. Nenhuma delas prestou atenção nas luzes
crescentes do lado de fora.
… este não é um canal seguro… não nos cont…
mantenha… iremos até você…
Sara não pensou duas vezes, sabia que a cabana tinha
um comunicador; se aquilo não fosse uma gravação, então
conseguiria enviar uma mensagem.
— Olá? – disse, olhando para trás finalmente. Agora as
luzes eram claramente visíveis. Havia algo se aproximando.
− É do Novo Caminho? Tem alguém aí?
A transmissão parou, embora fosse claro que havia
alguém do outro lado. Sara pensou em falar algo, então a
voz de uma mulher ressoou no rádio.
Corra!
Mal deu tempo de Sara pegar o rádio quando alguém
entrou. A garota viu dois agentes, a cabeça gorda com
focinho arrebitado e orelhas pontiagudas, antes que Will a
puxasse para a porta dos fundos. Talvez alguém tenha
gritado para ela parar, mas o único som que ouviu com
clareza foi o próprio coração acelerado.
As árvores pulsavam com mais intensidade, iluminando
o parque. Próximo ao lago, era possível ver um Rastreador
deslizando por entre os troncos, usando os membros para
lançar-se à frente.
— Por aqui! – disse Liane, que corria por entre as
árvores. Um galho tentou segurá-la, e parte do seu casaco
ficou pendurado.
Eles se esconderam atrás de uma árvore morta. Os
agentes corriam em diferentes direções, empunhando
armas com lanternas. Sara conseguiu contar seis, além de
um Rastreador.
— Você viu que tipo eles são? – perguntou Liane.
— Porcos – respondeu Will, ofegante. – Por que tem
Porcos aqui? Era para esse lugar estar vazio. A gente tem
que encontrar os outros e avisá-los.
— Não, vamos só embora. Eles se viram.
— A gente tem que descobrir se tem alguém infiltrado
no nosso grupo, por isso os Porcos nos acharam. Tem um
espião… − Os irmãos cochicharam, mas Sara não prestou
atenção. Ela olhava de vez em quando por entre as árvores,
tentando descobrir se um agente ou um Rastreador
estavam vindo. Apenas sons eram ouvidos à distância,
passos e ordens gritadas de pessoas que não eram pessoas.
Em uma árvore, Sara percebeu uma rachadura no
tronco, que tornava o pulsar dela ainda mais forte, saindo
do tom azulado e se aproximando do lilás. A garota se
aproximou, quase que hipnotizada pela aparência do tronco,
e estava prestes a tocá-lo quando viu o interior.
Um garoto estava lá dentro. Fernando, o órfão que
desaparecera. A pele arroxeada e os olhos vazios deixando
claro que não havia vida. Raízes cresciam para dentro dele,
como se estivesse se alimentando do cadáver. Sara mal
teve tempo de virar para vomitar o jantar.
Liane se aproximou e tapou a boca para não gritar.
Escondeu o rosto no ombro do irmão e o abraçou com força.
Os três se entreolharam, o desespero visível no semblante
de todos.
— Vocês sabiam que as árvores faziam isso? –
questionou Sara.
Os irmãos negaram. Will se preparava para dizer algo
quando foram iluminados. Acima deles, um Rastreador se
pendurava nas árvores, os membros esticados e os olhos
voltados para o trio. Por um segundo, nada aconteceu. E
então o Rastreador caiu em cima deles, e Sara foi jogada
para o lado. A cabeça da garota bateu contra um tronco e
ela se afastou rapidamente, lembrando de Fernando.
Levantou-se com dificuldade, sentindo alguém pegar seu
braço e puxá-la para longe. Antes que pudesse se localizar,
já estava correndo, Liane à sua frente. Sara olhou para os
lados, mas não encontrou Will.
— Onde ele está? – sentiu sua voz distante.
— Ele se vira!
A resposta da garota não parecia aliviar a incerteza de
nenhuma das duas, mas continuaram. O Rastreador não as
perseguiu, ele ainda estava onde o trio tinha se escondido,
como se estivesse embrulhando algo no chão.
Agora as árvores estavam silenciosas e o parque
completamente escuro. Impossível ver para onde corriam.
Sara sentiu que atravessava uma ponte e pensou que
estavam voltando para a cabana.
— Por aqui – sussurrou Liane. Agora, elas caminhavam,
tentando fazer o mínimo de barulho. Não havia agente ou
Rastreador por ali.
A dupla já estava próxima da saída do parque quando
foram cegadas por luzes. Após o choque inicial, os olhos de
Sara se adaptaram e ela conseguiu ver as cabeças de
porcos por trás das armas. Um Corvo apareceu entre dois
dos agentes, abrindo os braços como se para recepcioná-
las. As garotas não se mexeram, conscientes que qualquer
ação justificaria a morte.
Antes que alguém pudesse falar algo, uma luz vermelha
se acendeu por entre as árvores. Um sinalizador, que
parecia estar se aproximando cada vez mais. Sara
conseguiu distinguir o corpo de um homem que corria na
direção do grupo. Tanto o Corvo quanto os Porcos pareciam
estar chocados, e as armas foram apontadas para o novo
elemento.
Outra pessoa apareceu atrás de um dos Porcos,
cortando a jugular do agente distraído, espirrando sangue
no rosto das garotas. Sara sentiu o líquido quente, o gosto
de ferro, e então foi derrubada por Liane. As duas ficaram
deitadas enquanto tiros eram ressoados e grunhidos
emitidos. Os sons dos Porcos eram aterrorizantes, mais do
que qualquer pesadelo que Sara já tivera, assim como o
barulho das lâminas cortando a carne e os corpos caindo.
Por último, conseguiram ouvir o Corvo grasnar, cada vez
mais alto, e, então, cada vez mais baixo, como se estivesse
se engasgando.
Sara finalmente teve coragem de olhar. Cinco porcos
caídos. Viu um homem de pé, uma máscara de gás cobrindo
o rosto, com um respirador que descia até a cintura, como
uma tromba. Em uma mão estava a cabeça do Corvo. A
pessoa do sinalizador também estava ali, assim como uma
mulher, ambos com máscara. Ela arrastava pelo chão uma
espécie de casulo, que deixou na frente das garotas.
Antes que pudessem perceber, estavam sendo
colocadas de pé. Sara então percebeu que o casulo era o
corpo de um Rastreador, tão diferente sem os membros. A
mulher se aproximou com uma faca. Sara deu alguns
passos para trás e a outra levantou as mãos, sinalizando
que não iria ferir nenhuma delas. A estranha se agachou e
começou arasgar o Rastreador. A força que aplicou deixava
claro que a carapaça era dura. Depois que fez uma incisão
de ponta a ponta, colocou a faca de lado e abriu a coisa. A
mulher terminou de partir o corpo ao meio e virou-o,
derrubando Will diante das meninas. O garoto estava numa
espécie de placenta.
— Ele vai ficar bem – a mulher tirou a máscara. Tinha
um rosto arredondado e olhos de lince. – Ele não ficou
tempo suficiente para ser infectado.
— Por que vocês demoraram tanto?! – perguntou Liane.
— Ficamos horas tentando localizar o sinal de vocês –
disse o homem que segurava a cabeça do Corvo. – Estava
fraco por causa do bloqueador deles.
— Foi ótima ideia usarem um amplificador dos agentes –
completou a mulher. – Conseguimos encontrar vocês porque
o aparelho era imune ao bloqueador. Por outro lado, falamos
que vocês não deveriam nos contatar.
— A posição de vocês foi comprometida – disse o outro.
– E um dos Porcos conseguiu fugir. Ele vai relatar as coisas.
O orfanato vai ser investigado.
— Tá! O que está acontecendo? – perguntou Sara,
alternando o olhar entre os três adultos e Will no chão.
— Esse é o rito de passagem, Sara – disse Liane. – Não
era para ter sido assim.
— Você e Will…?
— Dois anos. Foi quando a gente conheceu a Cecília e
os outros – Liane apontou para a mulher, que acenou
amistosamente. – Estávamos precisando de alguém para
trabalhar na comunicação do grupo e queríamos testar
você.
— Você chegou em um momento bem conturbado –
disse Cecília. – Estamos há semanas nos preparando para
pegar o Bode Negro. E queremos a sua ajuda. De todos
vocês, na verdade.
— Eu não estou entendendo – disse Sara, segurando o
rádio. Ela pensou em quando foi separada dos pais, como
sua vida mudou drasticamente em questão de segundos.
Pensou em como eles desapareceram, fugitivos da Ordem.
— Podemos explicar tudo depois. O importante é tirar
vocês daqui antes que o Porco volte com reforços.
Um dos homens pegou Will no colo e o outro entregou
um revólver para Liane. Cecília colocou a mão no ombro de
Sara.
— Bem-vinda ao Novo Caminho, garota.
Substituído pelo seu duplo. Atualmente preso em uma
dimensão paralela. Twitter: @BrunoBianchi23 E-mail:
brunodbianchi@gmail.com
Reaper
As filhas
Filipe Damiani
— Alice! ‒ Gritou Lilian, após bater a cabeça em uma
prateleira baixa da área de serviço com acesso ao quintal. ‒
Alice, venha até aqui, por favor! ‒ Esfregou o cocuruto com
as pontas do dedo, apanhando o pote de sabão em pó
derrubado no chão.
Passos apressados foram ouvidos ao fundo, como o
galope de um cavalo emburrado. Alice surgiu, aparentando
cansaço ‒ o rosto idêntico ao da mãe ‒, entrou e encostou-
se ao batente da porta da lavanderia.
— Eu não fiz nada de errado dessa vez, estava só
assistindo televisão. ‒ Disse, desinteressada, balançando os
cabelos loiros que permaneciam presos no alto como um
ninho de passarinhos. O vestido branco que ganhara no
último Natal estava todo amassado e empoeirado; com
certeza ela estivera deitada no chão, diante da televisão
nova.
Lilian agora respirava mais devagar, devido ao fedor
que a peça de roupa entre seus dedos emanava. Olhou para
a filha de forma complacente.
— Pode me explicar por que tem uma calcinha com
sangue embaixo da máquina de lavar roupas? ‒ Perguntou,
estendendo o pedaço de pano um pouco mais alto.
— É da Natalie, sinto muito… Ela me emprestou quando
estávamos na casa da avó dela, eu me cortei e…
Vendo o medo brotar nos olhos da filha, tentou acalmá-
la.
— Tudo bem, meu anjo. ‒ Que erro estúpido cometera.
Como ela poderia ter se esquecido do acidente?
O que era para ser um fim de semana divertido entre as
garotas para comemorar o aniversário de Natalie acabou se
tornando um enorme e terrível pesadelo. As garotas haviam
implorado aos pais para ir ao novíssimo cinema que acabara
de abrir na cidade natal de Natalie, para assistir O Império
Contra-Ataca.
Lilian não fazia ideia do porquê das duas gostarem tanto
dessas coisas estranhas e, ao questioná-la sobre, foi
veemente repreendida. A filha disse que, naquele filme, as
mulheres lutavam lado a lado dos meninos, e isso era o que
elas gostavam.
Então, dois dias depois, Carlos Muller, o pai de Natalie,
deixou a esposa e as meninas na casa de sua mãe, a
senhora Janice Muller, e lá o pior aconteceu.
Depois da tão esperada sessão de cinema, Martha
voltou com as meninas para a casa da sogra e saiu para
comprar os remédios da idosa. Quando regressou,
encontrou várias pessoas assistindo ao espetáculo de fogo
que era a antiga casa da família Muller. As garotas
permaneciam assustadas, perto dos policiais, inteiramente
cobertas de fuligem e sangue.
Lilian ainda se lembrava do telefonema e de viajar por
duas horas de carro junto do marido até a cidade vizinha
para abraçar a filha perto do caminhão de bombeiros, que
tentavam inutilmente apagar o incêndio. A velha Janice
Muller nem sequer havia conseguido sair da cama quando o
fogo começou, e o corpo foi velado cinco horas depois do
exame da perícia, devido ao estado em que se encontrava.
Os investigadores avaliaram o caso e descobriram que o
incêndio teve início no quarto da Sra. Muller, que mantinha
um altar com velas para orações. Uma das velas foi
encontrada perto de restos que remetiam a uma cortina
carbonizada. A única lembrança que permanecia em ambas
as meninas era a de pequenas cicatrizes próximas ao ombro
esquerdo, na forma de elipses cheias de arranhões
desordenados em volta.
Mesmo tendo se passado dois meses do incidente ‒ e
ambas terem recebido todo o acompanhamento psicológico
necessário ‒, Alice ainda ficava petrificada quando tocavam
no assunto, o que deixava Lilian ainda mais preocupada,
pois ela não sabia como a filha reagiria ao retornar às aulas
no dia seguinte.
— Está tudo bem, Alice, foi um erro meu, eu não sabia…
Por um segundo pensei que você estivesse desabrochando.
— Mãe! ‒ Alice corou e ambas riram ‒ Só tenho onze
anos, ainda não aconteceu isso comigo ‒ disse, desviando o
olhar inocentemente.
— Tá bom, mas promete me avisar quando isso
acontecer? ‒ Lilian perguntou, escondendo a peça atrás das
costas.
— Prometo, posso voltar agora? Está passando o
especial do Gasparzinho e eu não quero perder esse
episódio novo.
— Pode sim. Só não deita em frente ao televisor, faz mal
para as vistas. O sofá não é enfeite. ‒ Disse Lilian, indo até
o lixo para eliminar o último resquício do horror daquele
incêndio para sempre.
Voltou a olhar pela janela e suspirou ao ver um
desleixado Tom ‒ de rosto abatido e a barba por fazer ‒
estacionar o novo Maverick vermelho em frente à garagem
da casa, ele se recostou no carro para tirar a gravata e ela
saiu da janela antes que o outro percebesse ‒ em respeito
ao momento pessoal do marido ‒ e foi até a porta para
destrancá-la.
— Boa noite amor ‒ Disse ele, dando um beijo
demorado na esposa. ‒ Como foi o dia?
— Foi um daqueles de novo ‒ Respondeu ela
entregando-lhe um copo d’água. Não precisava dizer muito
para que ele entendesse, um momento de silêncio
desconfortável pairou sob o ar e ela permaneceu calada,
pois sabia que ele acabaria falando do dia dele mesmo se
ela não lhe perguntasse absolutamente nada.
— Fui promovido… ‒ Revelou Tom, com o copo vazio
ainda seguro entre os dedos calejados.
— Minha nossa! ‒ Ela o abraçou, preocupada com a
reação do homem. ‒ E não é uma boa notícia?
— Acho que sim, mas isso não me eliminou do cargo
antigo, terei que fazer os dois serviços até surgir um
substituto, o que pode demorar… ‒ Ele avaliou a expressão
da esposa enquanto ela ia entendendo a linha de raciocínio.
— Quer dizer que você vai fica menos tempo em casa. ‒
Concluiu, encostando a cabeça no peito dele.
— Quer dizer que irei morrer se eu ficar muito tempo
naquele lugar, Li. Não aceitei ainda, mas esperam uma
resposta até amanhã. ‒ Disse, apoiando o queixo em cima
da cabeça dela como costumava fazer nas noites de
encontro.
— Aceite! Não ficaremos assim pormuito tempo, vamos
juntar nossas economias e abrir nosso próprio negócio.
Ele sorriu de volta e concordou. Ambos haviam
planejado abrir uma padaria há alguns anos, e não tinham
desistido da ideia.
— Precisamos segurar a situação amanhã também.
Acha que Alice está boa para voltar à escola? ‒ Perguntou,
preocupado, olhando para a sala, certificando-se de que a
filha não estivesse ouvindo.
— Claro. Nós temos que estar ao lado dela se ela
precisar. Amanhã será a primeira vez que as duas voltarão a
se ver e a escola inteira deve estar comentando.
— Nos preocupamos amanhã, então ‒ Ele encerrou.
Depois do jantar, ela coloca a filha na cama e vai até a
porta, enquanto Tom se aproxima da menina para lhe dar
um beijo de boa noite, mas a pequena fica tensa, o pai
recua e deixa Lilian preocupada. Ela se vira uma última vez
para observar o rosto da filha entre os lençóis. Os cabelos
da nuca arrepiando toda vez que o fazia, pois a garota
encarava a mãe de forma vazia, como se enxergasse
através dela algo que ninguém mais pudesse ver. Passara a
ser assim, uma espécie de ritual, todas as noites desde o
incêndio; as duas sustentavam aquele olhar até que,
cansada, Alice girava na cama, encerrando o momento.
A sensação esquisita de que algo estava fora do normal
com a filha perseguiu Lilian até o dia seguinte, quando
deixou Alice na escola. Talvez já esperasse por aquilo ‒ o
que a fez ficar em casa, pregada próxima ao telefone ‒, mas
se assustou, dando um pulo no assento, quanto o aparelho
tocou.
Segurou o gancho com as mãos trêmulas. A gritaria
habitual de um ambiente escolar ao fundo não a assustou
de imediato, a secretária parecia tentar fechar a porta antes
de voltar para a linha.
— Gostaria de falar com a Sra. Dias, ela se encontra? ‒
Perguntou a mulher, entre um mascar e outro do chiclete. ‒
Lilian Dias.
— É ela. Em que posso lhe ajudar? ‒ Perguntou,
esperando o pior.
— Sua filha foi mandada à diretoria e gostaríamos de
que a senhora comparecesse aqui. ‒ Disse, de má vontade,
dando a entender que repetia o mesmo discurso todos os
dias, exaustivamente.
— Estou a caminho. ‒ Disse Lilian, com a voz rouca.
Pegou a bolsa e seguiu de ônibus até a escola, já que Tom
estava com o carro.
As casas geminadas iam dando espaço para o centro
comercial, revelando várias vitrines chamativas, que
atraíam muitos clientes, em geral um público jovem,
fervilhando de excitação em roupas justas e coloridas,
cabelos empastados de gel e rostos cheios de maquiagens.
Desceu na esquina de uma formação de prédios
irregulares que surgiam à sua esquerda, entrou e seguiu até
a secretaria, onde o diretor já a esperava na porta. Alice,
Natalie e Martha encontravam-se paradas ao lado de um
homem gordo de terno.
— Entrem, por favor. ‒ Pediu ele, educadamente, e
todos se acomodaram em frente à mesa.
— O que aconteceu? ‒ Perguntou Lilian, a boca ficando
seca ao olhar da filha para o diretor.
— Hoje cedo uma garota foi encontrada amarrada no
banheiro feminino ‒ começou ele, friamente ‒, estava
despida e com os cabelos cortados enfiados na boca para
que não pudesse gritar, a cabeça encharcada próxima do
vaso sanitário.
Ele descreveu a reação dos pais da garota e os danos
emocionais sofridos enquanto Lilian ‒ ainda sem acreditar
no que escutava ‒ não conseguia desgrudar os olhos da
filha, que encarava o chão.
— Isso vai ensinar aquela vaca a não mexer conosco ‒
rosnou Natalie, surpreendendo a todos, a mãe já
começando a discutir com ela enquanto Alice permanecia
cabisbaixa, até erguer o rosto, mexer na mochila, e retirar
um gravador.
— Ah! Eu já ia chegar nessa parte. Elas gravaram um
áudio da garota confessando vários atos discriminatórios
que fizera durante o ano, inclusive outros crimes
gravíssimos. A vítima confirmou a veracidade diante dos
pais, após eles ouvirem a fita. Por isso, prometeram não dar
queixa, mas não posso deixar esse ato passar impune,
preciso suspender Alice e Natalie por uma semana, normas
da escola. Eu sinto muito.
— Por que fizeram isso? ‒ Perguntou Lilian, olhando
para Alice.
— Porque ele… ‒ Natalie arregalou os olhos para Alice
em censura, e Lilian reparou a troca de olhares. ‒ Porque ele
não fez nada para impedir aquela menina de nos chamar de
Filhas da Morte. As outras crianças riram de nós. ‒ Terminou
encarando o diretor, como se o homem fosse culpado de
algo.
Percebendo que as mães aguardavam uma resposta, o
diretor prosseguiu.
— Ambas disseram ter sofrido ataques depois que a
garota as viu de mãos dadas com um “homem alto e
vestido de preto”… atrás da escola. Esse homem assustou a
menina em questão. Pedimos ao zelador para verificar a
área e ele não encontrou ninguém com a descrição.
— Um homem? Quem era esse homem? ‒ Perguntou
Lilian, diretamente para a filha, mas não obteve resposta.
Natalia, igualmente calada, encarou sua mãe.
Como as duas se recusavam a comentar o assunto,
ambas as mães aceitaram a penalidade, já que as filhas
haviam cometido atos condenáveis, e saíram da escola em
silêncio, até Martha Muller começar a arrastar a filha pelo
estacionamento, enquanto Lilian e Alice assistiam tudo.
— Martha, não seja dura, vai… ‒ Lilian não chegou a
terminar o raciocínio, pois a mulher a encarou com bastante
ódio.
— Não me diga o que fazer com a minha filha quando a
sua é tão problemática quanto! Não quero vê-las juntas
novamente, me entendeu? ‒ Gritou, e Lilian apenas fez um
aceno de cabeça.
Martha e Natalie entraram no carro com Carlos e saíram
sem nem olhar para trás, enquanto as outras iam para o
ponto de ônibus.
Ao sentar, Lilian respirou fundo e olhou pensativamente
para o horizonte, de mãos dadas com a filha.
— Tem algo que você gostaria de me dizer longe da
Natalie? ‒ Perguntou, e sentiu o aperto firme da filha se
intensificar entre seus dedos.
— Não posso, ele não deixa… ‒ Sussurrou ela, o olhar
fixo em algum lugar do outro lugar da rua.
— Ele quem? ‒ Perguntou Lilian, os cabelos do braço
que segurava a mão da menina começando a arrepiar. Ela
olhou para Alice, que não respondeu, e seguiu seu olhar até
o beco estreito onde a luz do dia não conseguia entrar.
Serpeando próximo a placa de um prédio abandonado, ela
poderia jurar ter visto uma enorme sombra arredondada se
alongar como tentáculos, mas era somente a sombra de
uma bandeira antiga de algum time esportivo.
Após alguns segundos, sentiu Alice relaxar o aperto, e
não tocaram mais no assunto.
Os pesadelos começaram a acontecer naquela mesma
noite. No sonho, Lilian estava na cozinha e escutava um
barulho vindo do lixo. Quando se virou, deparou-se com
Alice agachada e inclinada de forma estranha sobre a lata
aberta ‒ o corpo balançando sistematicamente para frente
e para trás. A calcinha que havia descartado mais cedo se
encontrava em seus dedos, próxima ao rosto. Ela a cheirava
como se sua vida dependesse disso. Uma sombra escura e
idêntica a do beco deslizou por trás de Lilian e subiu em seu
ombro, ela não podia vê-la, mas podia escutar sua
respiração ofegante, uma voz sussurrando alguma coisa que
ela não conseguia entender, enquanto Alice ria e era
engolida pela escuridão.
Lilian acordou gritando e foi amparada por Tom. Ela o
abraçou e começou a chorar em seu peito.
E isso se tornou uma rotina. Lilian passou a acordar
desesperada, uma hora sonhando com bichos mortos, na
outra, com objetos cortantes rasgando cada parte do seu
corpo. Começou a evitar o sono noturno, tirando algumas
horas para descansar no quarto quando Tom saía e fingindo
dormir de noite para não incomodá-lo.
Alice continuou estranha a semana inteira e, por mais
que Lilian perguntasse o motivo, ela fingia voltar ao normal,
dizendo que estava tudo bem. Quando o fim de semana
terminou, ela parecia mais assustada do que o normal,
sempre olhando preocupada por cima dos ombros, com
medo que algo a estivesse observando.
Lilian sugeriu a Tom que retornassem ao psicólogo, Dr.
Marcus, que havia cuidado de Alice na época do acidente,ajudando-a a voltar um pouco à normalidade, e foi isso que
fizeram logo após Alice retornar para escola.
Não foram necessários nem três dias de terapia para ele
encontrar um comportamento errôneo em Alice. Ele
apresentou os desenhos que a garota fazia em sua sala e
relatou que algo novo havia acontecido desde a última vez
em que tinham tentado essa prática. Agora, Alice
desenhava pessoas sendo torturadas, casas pegando fogo.
Um desenho em particular chamou a atenção de Lilian. Ela
o separou e perguntou ao doutor se ele sabia algo sobre.
— Ah, a sombra. Eu diria que é como ela se sente diante
de todos esses acontecimentos. Cheguei a perguntar sobre
esse desenho, ela ficou um pouco rígida, o que me
assustou; disse que não queria falar sobre ele, como se
estivesse falando de um amigo imaginário.
— E ela chegou a falar do homem? ‒ Perguntou Lilian,
olhando para Alice através do vidro da porta.
— Esse é outro assunto que ela não quis comentar.
Confesso que a forma como ela me olhou me amedrontou,
parecia me alertar. Então, ela disse uma coisa muito
estranha. ‒ Lilian e Tom aguardaram que o doutor
prosseguisse, mas a expressão dele ficou repentinamente
vazia, o medo tomando seu lugar.
— O que ela disse? ‒ Perguntou Lilian.
— Engraçado, eu não me lembro. ‒ Disse ele, confuso,
pedindo licença e saindo do aposento.
Na volta para casa, Tom parecia frustrado pelo
desequilíbrio do doutor. Ele havia determinado que
deixassem Alice na escola e que não voltassem mais com
ela naquele consultório. Lilian concordou, mesmo achando
tudo estranho.
Olhando pelo espelho retrovisor, Lilian sabia que havia
algo de errado acontecendo, Alice não esboçava sentimento
algum enquanto olhava para o lado de fora. Sentia que a
perdia, e que algo de muito ruim estava prestes a
acontecer.
Eles deixaram Alice na escola e voltaram para casa.
Enquanto Tom tomava um banho, Lilian olhava para os
desenhos que trouxera do consultório, todos os seus sonhos
ali, encarando-a, menos um: a casa pegando fogo. Mas, ao
observar com atenção, ela sentiu que havia acabado de ver
aquele lugar, e que aquilo não era uma casa. Era uma
escola!
Sentindo o estômago afundar, correu até a porta da
frente, avisando que voltaria logo. Pegou a chave do carro ‒
mesmo não dirigindo há anos ‒ e partiu direto para a
escola.
Não demorou muito para que as peças começassem a
se ligar. De alguma forma, Alice havia encontrado uma
maneira de informá-los do que ia acontecer, mas só agora
ela percebia isso. O que quer que estivesse a apavorando,
era mal, e estava prestes a fazê-lo novamente.
Ela estacionou de qualquer jeito e desceu às pressas, já
que uma multidão, aos gritos, se aglomerava para observar
o incêndio que se alastrava pelo quarteirão de edifícios.
Havia policiais à volta de Lilian, tentando conter o
pânico nas calçadas. Ela conseguiu escutar um deles
mencionando uma ocorrência que atendera minutos antes:
um médico cometera suicídio em seu consultório. E agora ‒
o policial prosseguiu no relato ‒, só o que faltava para o dia
ficar mais caótico, era um incêndio em uma escola infantil.
Outro trouxe a informação de que três garotas não
conseguiram sair e morreram juntas do bibliotecário.
Lilian voltou a olhar o prédio em chamas, com medo de
que a filha estivesse entre as três, e avistou, de relance,
uma sombra ondulante atravessar a rua; um homem alto e
vestido de preto desviava-se como uma serpente dos
pedestres ‒ ninguém além de Lilian parecia notá-lo ‒ e ele
logo desapareceu nas sombras longas e delgadas vindas do
beco que Alice observara fixamente noutro dia.
Seguindo o pressentimento, Lilian correu até o beco e
encontrou a mochila da filha. Ela a abriu e, dentro,
descobriu uma caixa de fósforos, frascos de remédio e
algumas latas de querosene com um bilhete.
Terminarei isso onde tudo começou, eu te amo.
Lilian deixou a bolsa no chão e correu para o carro,
pegou a rodovia e disparou até a outra cidade onde tudo
havia começado.
Quase uma hora depois, estacionou o carro perto da
casa destruída da Senhora Muller e saiu às pressas, pulando
a fita de segurança da polícia que ainda pairava no lugar,
olhando cada cômodo até os fundos. Ela não se lembrava
da Senhora Muller falando que havia uma floresta atrás da
residência, mas pôde ver uma trilha e um lampejo de
vestidos saltitando não muito longe.
— Alice! ‒ Gritou, disparando logo atrás, tropeçando em
ramos e arbustos, o sol sumindo no horizonte e o escuro
engolindo-a.
Depois de correr por minutos entre a mata, ela não
sabia mais para onde seguir e acabou tropeçando em um
enorme livro com capa de madeira repleta de espinhos. Ela
furou alguns dedos ‒ a dor não se comparando em nada ao
medo que sentia ‒ e folheou as páginas ensanguentadas.
No meio de cada mancha, ela lia as palavras: Impura, Cruel
e Morte.
Largou o livro e gritou o nome da filha. Ao ouvir uma
risada, correu até a origem do som e o que a esperava lá a
petrificou. Ela já o vira antes nos sonhos, mas vê-lo
pessoalmente era ainda pior. Alice e Natalie encontravam-se
de mãos dadas a alguma coisa tremula, mais alta do que a
árvore morta para onde se encaminhavam. Pôde ver suas
pernas peludas dobradas em uma posição estranha, a pele
de animal com muitos braços esguios e pegajosos, jazia
jogada sobre o ombro. Tudo nele emanava o cheiro de
alguma coisa morta. As meninas riam, e suas risadas
somavam-se ao riso de milhares de outras crianças.
— Alice! ‒ Gritou Lilian, em meio às lágrimas ‒ Por
favor, deixe-as ir.
Ele se virou lentamente, surpreso com o fato de mais
alguém estar ali, e alguém que pudesse vê-lo. O sorriso
enlouquecido em seu rosto era putrefato e assustador.
— Elas são minhas ‒ Disse Alice, em transe, a voz
transformada assustadoramente ao falar pela criatura ‒,
elas brincaram e elas terminaram.
— Me leve no lugar delas, eu imploro. ‒ Lilian berrou, no
mais profundo amor maternal. Os olhos vermelhos da
entidade pareceram brilhar por um segundo, nunca
recusaria uma proposta tão tentadora assim. ‒ Fica aqui
comigo, filhinha!
A garota vacilou por um segundo, mas voltou a olhar
para a árvore.
— Lá é tão lindo! ‒ Disseram Alice e Natalie, em
conjunto, entrando na árvore que as engoliu. ‒ Adeus.
— Não! ‒ Lilian gritou novamente, mas já era tarde
demais, a coisa e as meninas já haviam desaparecido,
deixando apenas o burburinho de crianças ecoando pela
floresta.
Lilian só foi encontrada dois dias depois. A polícia havia
escutado testemunhas próximas à escola que afirmavam tê-
la visto perto da mochila com o material incendiário. Foi
presa, acusada de atear fogo no local e de ter dopado um
funcionário e três alunos mortos pelo incêndio na escola.
Assassinado assim seis pessoas, incluindo a filha, Alice Dias,
e Natalie Muller, que foram encontradas em seus braços na
proximidade da floresta. A polícia descobriu seu paradeiro
graças ao carro abandonado perto da casa incendiada, onde
havia fios de cabelo de ambas as crianças no banco de trás,
o que sugeria que a própria Lilian tivesse as arrastado até o
local do suposto ritual satânico.
Dias após a exumação dos corpos, ficou constatado que
as garotas vinham sendo abusadas por algum adulto. Os
pais foram indiciados e jugados como culpados. Tom e
Carlos foram presos por abuso de menores; receberam a
sentença de prisão perpétua. Martha foi condenada a pagar
uma pena de vinte anos por negligência. Dias após o juiz
determinar a sentença, Lilian foi encontrada morta. Nas
paredes de sua cela, havia palavras escritas com seu
próprio sangue. “Impura, Cruel e Morte”, e mais abaixo: le
est vind.
Filipe Damiani - Fofo e Assassino. Facebook:
FilipeDamianiEscritor Instagram: Dekinpanda
Countdown
Pippo: contagem regressiva em casa
Rodrigo Passolargo
— Cinco, quatro, três, dois, um… Ganhei! Ufa, pelo menos
essa! ‒ Lucas comemorou.
Queria continuar a disputa de Pole Position do Atari na
casa do Raoni, mesmo sabendo que a Mell ganhava quase
todas as partidas eo Gão mantinha a média de piadas a
cada derrota. Estavam todos empolgados com a vitória do
Nelson Piquet na Fórmula 1, depois de um acirrado ano
contra Mansell e Senna. Abastecidos de Grapette gelado e
pipoca, os amigos tentavam reproduzir, no jogo, as
manobras vistas na tevê, com aqueles movimentos com o
joystick para a direita e esquerda, tão exagerados que Raoni
puxava os cabelos enquanto via forçarem o cabo do
controle (devia ser por isso que ele ficou careca). Enfim a
mãe de Lucas chegou com aquele blá-blá-blá de que estava
tarde, que teriam aula cedo e precisavam voltar para casa.
No fundo, tudo desculpa dos pais, pois queriam-no em casa
naquele feriado de Proclamação da República, enquanto
assistiam ao show da banda Alfazemas. O melhor do rock
and roll brega de 89.
Em casa, quando Lucas olhou para o pote de geleia, o
pote já estava cheio de formigas. Ele sabia que não podia
deixar doce no chão, ao lado da poltrona, que elas
avançavam, assim como ele avançava toda vez que os pais
voltavam do show com os velhos amigos do colégio e
traziam aqueles brigadeiros enormes da loja de
conveniência Demolidores, no posto Esso. Lucas não
entendia o porquê do nome Demolidores, mas sopravam
histórias que duas vezes tentaram demolir a loja para
expandir outros serviços automobilísticos, mas uma
misteriosa e forte ventania sempre impedia a demolição. O
dono relatou que viu um grande olho formando-se nas
nuvens e, supersticiosamente, desistiu da reforma.
Com ou sem brigadeiro, estava ali agora. Sozinho, em
casa.
Já que não podia ficar com os amigos e nem tinha idade
para o show, não iria dormir cedo. No sofá, estava indeciso
entre Alien: O Oitavo Passageiro e Pague para Entrar, Reze
pra Sair quando a chuva começou. Ficou com o segundo
filme, a história de quatro amigos adolescentes que vão
para um parque de diversões assombrado; porém, foi
mudando de canal algumas vezes para espiar uma ou outra
cena do filme de Ridley Scott. Aos poucos, decidiu de vez e
entrou na história do parque, apreensivo e até falando
sozinho na tentativa frustrante de avisar os personagens.
Pouco tempo depois, uma lufada soprou dentro da sala,
assustando o garoto. Olhou para trás e viu uma das janelas
aberta. Surpreendeu-se, pois, antes de sair, sua mãe
acompanhou o trancamento de todas as janelas. Estavam
ali as cortinas dançando e mostrando o contrário. Levantou-
se e foi trancá-las.
Quando fechava a janela, um barulho estranho veio da
tevê: o canal estava fora do ar. Apertou o botão de troca de
canal, mas a tela chuviscava em todos, sem nenhum sinal.
Chateado por não continuar assistindo ao filme, resolveu
colocar o pote de geleia no lixo da cozinha.
Mas, no lugar em que deixara o pote, estavam somente
algumas formigas, procurando o mesmo que ele.
A respiração acelerou e ele olhou para os lados. Seguiu
lentamente à cozinha para pegar qualquer instrumento que
o ajudasse a se defender do “ladrão do pote”. Pegou uma
faca de mesa e voltou para a sala.
Encostou o sofá na parede com o intuito de poder ver
todo o cômodo. Os clarões dos raios atravessavam as
janelas, seguidos pelos estrondos dos trovões. O garoto
tremia, pois não importava em qual cenário você estivesse,
tudo piorava com barulho de trovão.
Já se passavam alguns minutos e o telhado chamou sua
atenção. Algo passeava lá em cima, mexendo as telhas no
meio do temporal em formação. O som não era dos
costumeiros gatos. Era algo maior, que o apavorou e o fez
procurar o telefone. Mas a infelicidade o acompanhava
naquela noite, pois seu pai o levara para o escritório de
cima. Arrastava-se pelo telhado algo incógnito que o fazia
bater os dentes à medida que o suor descia da testa.
Furtivamente, seguiu para a escada com o objetivo de
chegar ao escritório. Precisava ligar para algum vizinho,
parente ou mesmo pra polícia. Um passo atrás do outro, seu
corpo só pensava em se livrar daquilo que cercava e
adentrava a casa.
O clarão do raio foi maior dessa vez. E, quando o trovão
exclamou, todas as luzes da casa se apagaram junto com a
tela da televisão. O menino apavorou-se, seu coração quase
arrancado do peito pelo susto. Estava no escuro, e não
estava sozinho.
A faca balançava em sua mão, e ele se forçava a
enxergar na direção do escritório, a rápida luz dos raios
preenchendo o caminho. Os pés encostavam-se ao chão
com muita tensão e, do escuro imaginava, sair qualquer
coisa para ceifar sua vida.
Do corredor, ele escutou algo vindo de baixo. Parou pra
perceber se não era um trovão ou a chuva em si o
enganando.
Não eram raios e trovões que se aproximavam da
escada com ferros, correntes e tudo aquilo. Nenhum gato ou
cachorro arrastaria metais pelo chão ou mesmo se
movimentaria naquele escuro com tamanha precisão
sinistra. O garoto escutava e sabia, agora, que seu algoz se
direcionava para o andar de cima. Lucas deu um grito
agudo e desistiu de saber a identidade de tal ser.
Numa corrida em saltos, emergiu da escuridão do
corredor e, no último lampejo, viu a porta do escritório.
Enfim, ele escutou algo como uma voz em meio àquele
barulho da chuva forte. Esforçou-se para entender o difícil
inglês, que traduzia como: “Eles estão se movendo muito
rápido”. Depois, não ouviu nada, por conta de outra
trovoada. A voz falava de “despedida” e, quando o barulho
dos ferros arrastados permitiu, ele entendeu algo como:
“Para a Terra, quem sabe?… acho… culpa”. “É a contagem
final!”
Quem eram os “eles” que estavam se movendo rápido?
Qual a relação dele, um jovem garoto que sonhava ser um
piloto de Fórmula 1, com aquilo? Despedida? Para a Terra?
Queriam levá-lo dali? Por quê? Que culpa ele tinha para
fazerem isso com ele? Uma coisa estava certa: era mesmo
uma contagem final para definir o seu destino naquela
noite. Respirando ofegante, entrou no escritório e trancou a
porta.
Estantes lotadas de livros nas laterais, apresentando, ao
fundo, o birô com papéis diversos do trabalho do seu pai, de
quando a Arno ainda fabricava peças automobilísticas.
Segurou o telefone. Precisava chamar alguém para
impedir aquilo. Lucas nem sabia qual era a ameaça, mas
tinha muito medo e pressentia um mal chegando. Seus
dedos erravam os números e ele tentava novamente
enquanto o barulho se aproximava da porta. O desespero
era tão grande que não se deu conta que o telefone estava
mudo. O suor descia pela sua testa negra e já não parecia
mais aquele jovial garoto que sonhava ser o famoso B.A.
Barucus do Esquadrão Classe A, seu herói favorito.
Agora, chorava atrás da mesa, segurando a pequena
faca, restando somente receber o seu carnífice. São nesses
momentos que nos arrependemos de ter feito ou não as
coisas da vida, não importa a idade. Queria pedir desculpas
para o Gão por ter espalhado para todo o colégio que o
amigo não gostava do Wolverine. Sim, ele amava o
personagem, mas a galera toda ficara perguntando se ele
não gostava durante uns três meses. Queria pedir desculpas
a Mell por não ter avisado que iria ao cinema como
combinado. Ou mesmo ao Raoni, por quase quebrar o
vídeogame dele num momento de empolgação e decepção
na partida de Pitfall. Já a lista para seus pais era maior,
restando o desejo de apenas abraçá-los uma última vez. Se
existiam outros arrependimentos, não havia tempo. A
contagem já se encerrava.
O som dos metais ao chão cessou em frente à porta. A
maçaneta se mexia, cravando mais horror. Agora era
forçada brutamente. Os únicos sons eram da chuva e da
respiração do garoto. Por enquanto.
Ele ficou debaixo da mesa e observou que algo
atravessava a porta sem abri-la. O pouco que conseguia ver
era uma fagulha azulada que não encostava no chão e
emanava mesmo na escuridão.
Soltou a faca, respirou fundo e resolveu sair debaixo da
mesa. Ele agora precisava encarar aquilo.
Cravou os olhos naquela massa etérea azulada que
formava um ser humanoide flutuando. Deixando de lado o
medo, o garoto se dirigiu ao ser:
— Pippo?!
— Oi, Lucas – disse o fantasma.
— Vocêquase me mata de susto, Pippo! ‒ Lucas
respirava, aliviado. ‒ Eu pensava que fosse algum ladrão de
casas, um assassino. Sei lá, um ET! As pessoas andam
falando de um ser extraterrestre de um olho só e grandes
tentáculos!
— Extraterrestre? ‒ o fantasma gargalhava. ‒ Desse
tamanho e ainda acredita em ET?
Então, o fantasma Pippo continuou:
— Hoje é domingo, minha noite de trabalhar aqui, não
lembra?
Era verdade. Lucas havia esquecido que domingos eram
os dias do fantasma. Desde que o portal do Mundo Invertido
se abrira e os fantasmas e os vivos começaram a conviver
bem, alguns fantasmas prestavam serviços para os que
ainda respiravam.
— Nossa, Pippo. Que cabeça a minha.
— Quando eu cheguei, você estava dormindo, então não
quis te acordar. Eu estava fazendo os afazeres domésticos e
recolhi o pote de geleia que você deixou para as formigas,
mais uma vez. Você estava tão distraído com o programa
que nem percebeu. Então fui lá fora varrer o telhado quando
vi as corujas danificando a antena. Pensei em consertar a
antena lá mesmo, mas começou a chover forte e a energia
caiu. Resolvi trazer a antena pra dentro de casa e fazer aqui
mesmo. Só que escutei você no corredor aqui de cima e
subi. E claro que eu mexi na maçaneta antes de transpassar
a porta, só para não ser mal educado, como muito espírito
por ai. Mas agora já é hora de você dormir, então eu vou lá
na sala consertar aquela janela. Como você sabe, nós
precisamos dar duro para receber os “escores suficientes” e
descansarmos num bom lugar no outro plano, né?
— Mas por que você estava falando aquelas coisas em
inglês bem assustadoras?
— Hã? Você fala “We’re leaving together… but still it’s
farewell…”. Poxa, Lucas. Desde ano passado The Final
Countdown estoura nas rádios.
— Pippo, desculpa, meu amigo. Acho que estou vendo
muito filme de terror.
— Parece que nunca viu um fantasma, hein? – e os dois
gargalharam.
Rodrigo Passolargo: Charme, Soul, Xote e Rock’n’roll.
Instagram: rod_passolargo
Cézium
De volta à memória
Camila Pelegrini
Não há nada que preencha meu peito de maneira tão sólida
quanto o vazio que se estende ao meu redor. A sensação de
desbravar o que se esconde sob as brumas do incógnito, de
viajar por entre os mistérios do que se conhece e explorar a
imensidão negra e luminosa ‒ o tapete para os meus
caminhos ‒ me parece tão familiar quanto as linhas da
minha mão. Não existem limites no universo. Não existem
limites para a mente que a ele se conecta. Quanto mais me
aprofundo e me perco na miríade do espaço que é meu lar,
mais me afasto dos rostos que tanto me incomodam.
Conheci habitantes de inúmeros planetas, mas até
mesmo seus nomes por vezes me fogem do pensamento.
Sei que não há verdade em nenhum deles; não há verdade
em nada que respira. As explosões de sentimentos, os
sorrisos e as lágrimas são máscaras de empatia que
disfarçam a natureza em todos presentes: o egoísmo e a
vaidade que orientam cada um. E claro que não sou
exceção a essa lei ‒ talvez a única máxima em comum a
tantas entidades celestiais ‒, pois o egoísmo é universal.
Sinto a vibração dos motores de meu carro que viaja por
entre o tempo e o espaço, porque foi o caminho que escolhi,
o que permitiu me tornar pirata para desbravar o universo.
Não tento sequer justificar minhas escolhas por qualquer
outra razão que não eu mesma e o que idealizo para minha
vida. Quem o tenta fazer através de discursos vazios de
altruísmo e preocupação me entedia. Talvez seja por isso
que a perspectiva de me aposentar me incomode tanto.
Tenho repulsa ao pensamento de perder o domínio sobre
mim, minhas aventuras e meus desejos, quando for
afastada de meu carro. Tenho repulsa ao pensamento de
precisar suportar qualquer coisa que não as estrelas ‒
planícies e mapas de minhas viagens. Ou mesmo os
predadores que por vezes encontro em outras galáxias.
Tenho repulsa dos olhos que notam as marcas desenhadas
em minha pele há mais de vinte anos; linhas que me fazem
lembrar, diariamente, da solidão que se fez como minha
única companhia desde que tudo aconteceu.
E agora os propulsores me levam de volta ao passado, à
última missão antes que tudo chegue ao fim. A missão para
colocar sob o solo o que de lá não deveria ter saído ‒ eu.
Apesar do sinal de socorro recebido, apesar da voz que
ainda me causa os mesmos calafrios, que parecem abraçar
o meu sangue, não acredito que seja possível. Eu vi as
chamas o beijarem em meu lugar, e não importa quais
capacetes e capas negras tenham criado para cobrir corpos
desfigurados, eu sei que o vi sendo levado para sempre ‒
eu vi, ele queimou até o fim.
Mas vou à sua procura, no entanto, porque tal qual a
gravidade exerce sua força, Zilian exerce sua atração sobre
mim. Passaram-se vinte anos terrestres para que sua cova
fosse novamente localizada. Vinte anos para que nossas
tortas linhas tivessem a oportunidade de se cruzarem.
Zilian se tornou o único terráqueo a tocar o misterioso
terreno de Cézium ‒ o planeta de uma galáxia distante ‒,
que gira em aterradora velocidade, numa órbita não
decifrada. No entanto, a imediata combustão que o
consumiu não permitiu que qualquer informação fosse
revelada. Meu noivo se foi, assim como, uma vez mais, o
planeta que por tanto tempo foi objeto de meu fascínio, até
que se fizesse cenário de meu pior pesadelo.
A ideia de acionar, pela última vez, todos os motores do
carro e viajar em direção a um chamado de vida e morte
que dança até agora em meus ouvidos, cortando o espaço,
faz com que eu sinta uma amálgama de medo, solidão e um
insistente resquício de esperança. Se ele realmente estiver
vivo, imagino como estará seu sorriso de expressões
indecifráveis e olhos negros. Será que o universo que
costumava ver em seu rosto ainda existe? Será que ele me
reconheceria? Eu mesma não poderia responder, já que não
me olho no espelho há vinte anos.
Com as mãos prendendo firmemente os controles,
observo os planetas de todas as cores, e conheço o nome
de cada um. Tyabe, Gaian, Lavel. Nas áreas de tráfego
comum, pequenas naves aguardam em fila a vez de
continuar. Alguns seres me cumprimentam com solenidade,
como se me desejassem sorte na empreitada que inicio. A
expressão que vejo em cada rosto me inflama de ira e
desprezo, e opto por ignorar os olhos nas aberturas das
naves.
Acionando os aceleradores, sinto a familiar adrenalina
preencher cada canto do meu corpo. Não consigo mais
enxergar ninguém, o que me traz alívio. As estrelas se
mostram disformes, aparecendo como brilhantes linhas
enquanto avanço. Minha equipe logo perceberá que saí
antes que qualquer um deles pudesse me acompanhar, e
não tenho paciência para lidar com reclamações, motivo
pelo qual desativo a comunicação ‒ a tarefa de verificar se
Zilian realmente está vivo é só minha.
Todo o meu interior está vacilante, oscilando entre as
angústias que me preenchem. A urgência com que controlo
o painel é sofrível, e nunca uma viagem me pareceu tão
longa. A pior parte é, pela primeira vez, odiar o fato de não
conhecer o que irei encontrar quando alcançar o destino.
Quero descobrir tanto, quero me jogar em qualquer
resposta que afaste os questionamentos. Merda de máquina
velha. Como vou alcançar, nessa velocidade, um maldito
planeta que raramente se faz visível? Pressiono todos os
botões e sinto os motores da nave sendo levados ao limite.
Nada lá fora é reconhecível. Há um vazio imenso, do
tamanho do buraco que existe em meu peito. E, então, uma
irritação me acerta em cheio. Reconheço os sons que se
aproximam. Estão chegando.
— Pare, Amabir, é perigoso demais — uma voz
masculina e urgente inunda a nave.
Checo o painel à procura dos aparelhos de
comunicação. Estão desligados, como deveriam estar. Como
os oficiais estão conversando comigo? Perturbada, observo
a tela de viagem. Estão se aproximando rapidamente, com
pequenas naves X-Speed.
— Capitã, a senhora não pode se aproximar sozinha de
Cézium. Não sabemos como a órbita vai reagir.Não
sabemos que espécies de predadores e aliens existem. A
senhora se lembra da últim…
— Cale a boca, imbecil! Não se atreva a falar comigo
sobre Cézium. Não se atreva a tentar me dar ordens!
— Sinto muito, Capitã, mas não podemos deixá-la
continuar — a voz vacila.
O silêncio que segue me preocupa. Conheço as
técnicas. Ensinei-os muitas delas. Existem meios de fazer
com que um carro espacial seja interceptado em seu
caminho, e o fato de não haver civis na região em que
estamos se mostra como agravante, já que podem não
haver limites para os meios utilizados. O Império entenderia
a gravidade e jamais puniria os oficiais por tentarem me
impedir.
Percebo então que o modelo de nave em meu encalço é
mais moderno do que o usado por mim e, por conseguinte,
mais rápido e poderoso. Preciso agir antes. O primeiro
movimento define o Xeque-mate. Preparo-me para atirar
contra meus companheiros, e uma incômoda resistência faz
formigar meus membros. Não nutro qualquer apreço por
eles, mas questiono se estou pronta para cruzar a linha de
vida e morte, e matar. Estarei passando para o lado que eu
sempre combati?
A dúvida não se mantém, e, antes que consiga definir os
motivos que fazem meus dedos viajarem em direção às
armas do carro, escuto o barulho que vem do impacto. Meu
fogo atingiu uma das X-Speed. Repito o movimento. Uma.
Duas. Três vezes. Não sei quantos disparos realizei, mas
sigo atirando. Pedaços de metal voam em minha direção.
Não entendo como, mas uma balbúrdia de gritos chega até
mim. Mesmo não fazendo qualquer sentido, os sons de dor
e desespero, prelúdios da morte que se aproxima, congelam
minhas veias. Levo as mãos sobre os ouvidos para escapar
da realidade, mas um rosto passa contorcido pelo visor da
nave. Pisco e ele desaparece. Os gritos continuam ainda
mais altos. Ouço meu nome escapar de um berro
agonizante. Levanto-me, agarro uma caixa e acerto o painel
de comunicação reiteradamente.
— Calem a boca!
O silêncio, então, preenche o ambiente. Sentindo a
respiração voltar ao ritmo regular, observo os fios à mostra
na minha frente. Olho para o exterior da nave, e vejo
pedaços das X-Speeds afastando-se calmamente, perdendo-
se na escuridão do infinito. Um nó fecha a minha garganta,
mas me esforço para focar na missão. A última delas, seja
qual for o resultado.
No entanto, ouço um discreto ruído vindo do painel.
Aproximo-me e escuto uma voz fraca.
— Amab… Precis… De ajuda.
O timbre é inconfundível. É a voz de Zilian. Sem me
importar com o fato de que o painel não está em condições
de receber qualquer mensagem, colo meu rosto contra o
microfone.
— Zilian, estou indo. Onde você está? — tropeço nas
palavras.
O ruído entrecorta a resposta, mas é o suficiente para
que meu coração volte a palpitar.
— Voc… Enganada. Volt… Pra mim.
As lágrimas decidem me visitar após vinte anos de
ausência. Não existe força alguma em mim para lutar contra
sua aparição.
— Estou indo, Zilian. Por favor, me espere — imploro.
— NÃO! — a voz é forte e clara pela primeira vez,
fazendo com que eu dê um salto para trás.
— Não? — repito, sentindo o coração ameaçar dilacerar
o peito com a força das batidas. Não há resposta. Aguardo
alguns minutos, e só o que existe é um ruído alto. Arrisco
colocar a mão sobre um dos cabos expostos, mas o choque
me afasta.
Zilian se foi mais uma vez. Sinto uma estranha
sensação tomar conta do meu ser. É como se minha alma
estivesse sendo puxada. No entanto, ignoro. Zilian está vivo
e precisa de ajuda. É este o único norte que me basta. Em
uma tentativa de organizar a mente e afastar o estranho
incômodo que sinto percorrer o meu corpo, começo a reunir
as informações do que conheço sobre Cézium e sua órbita.
É, provavelmente, o planeta mais misterioso de que se
tem notícia. Gira numa órbita não identificada, com uma
velocidade que faz com que os anos equivalham a poucos
meses terrestres, e para, de tempos em tempos, por uma
razão que se desconhece. Segundo um único antigo relato,
seus habitantes possuem apenas o contorno de um corpo
de formato humanoide, sem, no entanto, qualquer
preenchimento. Vivem uma vida longa, em razão da
atmosfera rica do planeta. Diz-se ainda que a consciência
dos nativos é poderosa, capaz de sobreviver por anos após
o padecimento do corpo, bem como vencer imensuráveis
distâncias e se fazer presente em longínquas galáxias.
Então, noto que, ao longe, um ponto azul brilhante
surge no horizonte. Uma iluminação forte o envolve, e uma
pulsação vital me atinge.
Cézium.
Tenho a impressão de que o planeta me encara de volta,
desafiando-me, atraindo-me. É como se seu poder me
puxasse para perto, como se algo nele me envolvesse com
tentáculos dos quais não consigo me libertar.
Reconheço a imagem que aparece em noites de sono há
vinte anos, e minha espinha resfria-se instantaneamente.
Sem que eu possa evitar, a cena da nave se desacoplando e
Zilian penetrando, em chamas, a atmosfera do planeta
arrebata a minha visão. Estou perto. Estou perto demais do
caos.
— Amabir… — ele novamente. Meu coração salta com
ainda mais força. — Amabir… Abr… os olhos.
Sem entender a que se refere, seguro com mais força o
controle, determinada a alcançar Cézium. Não entendo
como a comunicação possa funcionar com os aparelhos
destruídos, mas tudo o que importa é que Zilian esteja
respirando e em contato. Concentro-me em tentar obter
respostas com o mesmo afinco que me dedico a vencer a
distância que nos separa.
— Estou vendo, Zilian, consigo enxergar Cézium —
respondo, com uma agitação crescente. — Me ajude a
encontrá-lo. Consegue dizer onde está?
— Voc… Você precisa… ordar — a voz me responde com
urgência.
— Não entendo, Zilian — meus olhos não desgrudam do
minúsculo ponto brilhante à frente. — Eu vou encontrá-lo —
volto a repetir.
Em resposta, recebo mais ruídos, e nenhuma palavra
inteligível. Alguns instantes depois, o silêncio é que volta a
falar comigo.
Confusa, programo os controles e faço com que meu
punho cerrado encontre o painel à frente com toda a força
que existe em meus músculos. Preparo-me para a dor que
deve subir pelo braço direito e me despertar para a
existência física da aflição, mas não sinto nada. Há sangue
na superfície, mas meus nervos não reagem. Meus ossos
poderiam muito bem estar em frangalhos, porém pareço
completamente imune à dor.
Verifico os equipamentos de resgate no banco traseiro,
com a esperança de que o tempo passe com a mesma
velocidade que meu carro possui. Traço, na cabeça, um
plano para levar Zilian a salvo para casa, torcendo para que
a atmosfera de Cézium tenha sido o suficiente para o
manter saudável apesar dos inúmeros anos que se
passaram em sua órbita.
De repente, sinto uma enorme vertigem. Mesmo
sentada, as pernas parecem geleia. A fraqueza me assusta,
mas deduzo que seja por conta do planeta que se aproxima,
e cujo brilho já inunda o ambiente.
Meus pensamentos parecem vagar sem sentido, e a
imagem de todas as estrelas, luas e planetas que um dia já
visitei invadem meu campo de visão. Talvez seja efeito da
gravidade, mas pareço não ter controle algum sobre minha
mente. Ela viaja por todo o universo, em uma velocidade
que me causa ainda mais vertigem. Vejo a Terra, vejo os
planetas do meu sistema solar, vejo figuras tão diferentes
dos humanos. Vejo, com uma clareza assustadora, um olho
com tentáculos, uma intenção disseminando o caos.
Estou em todo lugar. Já não sei se sou onisciente, ou se
estou em meio a um poder que é.
Em um piscar, contudo, estou novamente no carro que,
para minha surpresa, está ingressando, com um violento
tranco, na atmosfera de Cézium.
É definitivamente o lugar mais bonito que já vi. O brilho
azul opaco que emana torna impossível desgrudar os olhos.
— Amab… — a voz de Zilian chama pelo painel. Sinto
uma imensurável dificuldade para focar em sua fala. Não
quero. — Amabir — ele repete.
Passei a minha vida toda lutando contra rebeldes e
também soldados do Império, desbravando

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