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PLANEJAMENTO, ORGANIZAÇÃO CURRICULAR E AVALIAÇÃO EDUCACIONAL (POCE) Sumário UNIDADE I – Currículo ................................................................... 4 UNIDADE II – Organização, Gestão e Avaliação ........................ 23 Introdução O conteúdo “Planejamento, organização curricular e avaliação educacional (POCE)” é um dos quatro pilares da Especialização em Docência para o Ensino Superior, além de fazer parte da “Coleção Educação”, organizada pela Biblioteca IMES, da Faculdade ImesMercosur, integrando também outros componentes curriculares de estudo. A literatura disponível a respeito da docência, em sua maioria, prioriza temas referentes a prática docente na Educação Básica. Renomados autores abordam aspectos da docência nesse nível de ensino, fazendo, portanto, que na compilação desse material proposto no Curso de Especialização em Docência para o Ensino Superior façamos a releitura dessas obras, voltando o olhar diretamente a aplicação/adaptação daqueles conceitos à docência universitária. Essa visão nos acompanhará ao longo dos quatro conteúdos específicos desse Curso. O tópico “Planejamento, organização curricular e avaliação educacional (POCE)” traz, em seu desenvolvimento, a compilação de relevantes textos sobre o assunto, reunindo os autores Vani Moreira Kenski, Jussara Hoffmann, Mary Rangel, Jaume Carbonell e a contribuição de Jucimara Oliveira da Silva na reflexão sobre a complexidade do processo de organização e de gestão da escola, culminando no processo de avaliação educacional frente a não menos complexa formulação dos currículos, resgatando estudos de Ireno Antonio Berticelli e Tomaz Tadeu Silva, que se mostram atualíssimos diante o cenário vivenciado hoje na construção do currículo nos variados níveis de ensino. Tenha dedicação ao estudo desse compêndio, na perspectiva do seu aprimoramento docente e no desenvolvimento da educação nacional de qualidade. UNIDADE I – Currículo CURRÍCULO: TENDÊNCIAS E FILOSOFIA Ireno Antonio Berticelli Este estudo é convite a uma incursão pela história do currículo, para conhecer algo de sua genealogia, das tendências e da filosofia. Não se trata de levar às últimas consequências nenhum destes aspectos, nem mesmo de defender um ponto de vista, nem, tão pouco, de se ater a um único olhar ou destacar e, muito menos, propor uma teoria curricular com acento privilegiado sobre qualquer outra. Partindo da gênese do conceito de currículo, busca-se, sim, verificar em que contextos e a partir de que lugares se construíram modos de entender o que é currículo. E, reconstruídos os modos de entendimento do currículo, tentou-se acompanhar-lhe os movimentos, isto é, as migrações, as desterritorializações e transformações que sofreu ao longo do tempo e nos diversos lugares. Partindo do pressuposto de que o currículo é construção, subentende- se que as várias formas que assume obedecem a discursividades diferentes, em que habitam filosofias resultantes das intencionalidades que o produzem, nos diversos tempos e nos mais diferentes lugares. Tempo e lugar ou, se se quiser, tempo e espaço diferentes produzem discursividades diferentes e, portanto, modos diferentes de entender e de produzir currículo (os currículos). Quer-se, aqui, entender que sendo o currículo resultante de discursividades diferentes, de intencionalidades diversas, de representações várias, nem sempre mostra, na superfície, tudo o que pode mostrar ou significar, em termos de consequências que pode produzir (McNeil, 1995). Currículo é lugar de representação simbólica, transgressão, jogo de poder multicultural, lugar de escolhas, inclusões e exclusões, produto de uma lógica explícita muitas vezes e, outras, resultado de uma “lógica clandestina”, que nem sempre é a expressão da vontade de um sujeito, mas imposição do próprio ato discursivo. Além de examinar o currículo como instrumento prescritivo utilizado ao longo do tempo, buscou-se situá-lo no contexto social, quando extrapola o âmbito fechado do sujeito para inserir-se na memória coletiva como expressão política e ideológica mais complexa e plural. Busca-se entender como este fenômeno aconteceu no Brasil, no decurso do tempo, destacando as tendências principais para, finalmente, fazer uma abordagem das mais recentes tendências de entender o currículo à luz dos estudos culturais, em que as diferenças produzem situações, entendimentos, resultados, ações, tratamentos, significados, coisas e estados de coisas diferentes que devem e necessitam ser levadas em conta por todas as pessoas em geral e pelos educadores em particular. Afinal, a questão do currículo é a questão central que diz respeito àquilo que a escola faz e para quem faz ou deixa de fazer. Velhos e novos olhares: um pouco de história O termo “currículo” deriva do verbo latino currere (correr). Há os substantivos cursus (carreira, corrida) e curriculum que, por ser neutro, tem o plural curricula. Significa “carreira”, em forma figurada. Daí derivam expressões como cursus forensis. Carreira do foro, cursus bonorum: carreira das honras, das dignidades funcionais públicas, sucessiva e progressivamente ocupadas (Enciclopédia Mirador Internacional). O termo cursus passa a ser utilizado, com variedade semântica a partir dos séculos XIV e XV, nas línguas como o português, o francês, o inglês e outras, como linguagem universitária. A palavra curriculum é de uso mais tardio, nessas línguas. Em 1682 já se utiliza em inglês, a palavra curricle, com o sentido de “cursino”. Nesta mesma língua, se utiliza, a partir de 1824, a palavra curriculum com o sentido de um curso de aperfeiçoamento ou estudos universitários, traduzido, também, pela palavra course. Somente no século XX a palavra curriculum migra da Inglaterra para os Estados Unidos sendo empregada no sentido de curriculum vitae. O aportuguesamento da palavra, no Brasil, se dá por volta de 1940. Há que se atentar para a seguinte particularidade: em determinados momentos (a partir de 1756), a palavra curriculum foi utilizada como diminutivo de currus (carro), que nada tem a ver com o sentido que lhe atribuímos hoje, nem como curriculum vitae nem como currículo escolar. Ao buscar as origens do currículo, tal como se entende hoje, sob a dupla dimensão do documento escrito e daquilo que é educativo, colocamo- nos, desde já, num emaranhado de filigranas semânticas e históricas que só muito lenta e recentemente se mostram como questão de domínio geral. Para exemplificar isto, citamos, abaixo, a definição da Enciclopédia Mirador Internacional: Currículo, do ponto de vista pedagógico, é um conjunto estruturado de disciplinas e atividades, organizado como objetivo de possibilitar seja alcançada certa meta, proposta e fixada em função de um planejamento educativo. Em perspectiva mais reduzida, indica a adequada estruturação dos conhecimentos que integram determinado domínio do saber, de modo a facilitar seu aprendizado em tempo certo e nível eficaz. Esta é uma síntese cuja elaboração histórica percorreu longo e plural caminho. Supõem-se, neste conceito, várias construções, como: pedagogia, disciplinas, atividades, objetivos, metas, função, planejamento (educativo), domínio do saber (ciências particulares), aprendizagem, “tempo certo”, nível de aprendizagem, eficácia da aprendizagem. Estes são domínios de conhecimentos bem tardios. Verificamos que a palavra curriculum migrou da Inglaterra para os Estados Unidos por volta de 1940. É apenas a partir de aproximadamente 1945 que o conceito começa a se delinear, como produto da era industrial, quando se diversificam os saberes e as demandas de saberes emergentes. Ainda que a partir de 1920 já se tenham orientações sobre a problemática do currículo, é somente a partir da Segunda Guerra Mundial que “aparecem as primeiras formulaçõescom um maior grau de articulação” (Diaz Barriga, 1992, p.16, apud Terigi, op. Cit. P.162). Fruto da modernidade, quando a unidade filosófico-teológico se rompe para dar origem às mais diversas ciências particulares, emergentes da técnica, o saber educacional adquire a forma de uma ciência nova, a ciência pedagógica. Neste contexto é que surge o currículo, como ordenamento de saberes educativos. O conceito de currículo, acima transcrito, revela a multiplicidade de saberes, correlatos de várias ciências. Isto nos leva a assumir que o currículo se desenvolve concomitante e inspirado nas linhas conceituais da pedagogia estadunidense a que Dias Barriga chama de “pedagogia da sociedade industrial”. Cremos ocorrer isto pelas razões arroladas que dizem respeito ao desenvolvimento da tecnologia, uma das características marcantes da modernidade inaugurada por Galileu, a qual passa por Descartes, amadurece com Newton e se expande definitivamente com a era industrial. A partir da era industrial se faz a produção do sentido atual do currículo, fenômeno que se estabelece definitivamente no pós- Segunda Guerra Mundial. Não se pode olvidar a presença do currículo no Oxford English Dictionary, desde 1633, segundo nos informa Hamilton (1991, p.197, apud Terigi, op. Cit, p.162), mais como uma ocorrência terminológica que como um significante, com o sentido que conhecemos hoje. Em Platão e Aristóteles, currículo era o termo que utilizavam quando queriam referir-se aos temas ensinados. Portanto, num sentido bem próximo daquele que emergiu da modernidade. Não significa isto que tenha havido um “amadurecimento”, ainda, da questão curricular, mesmo em países tidos como muito “avançados” e de grande desenvolvimento cultural. Na França, a discussão em torno do currículo tardou muito a se configurar. Os teóricos da reprodução, na elaboração da crítica da cultura escolar, em dias tão recentes, tratam das questões curriculares de forma apenas indireta (Forquin, 1996). E, segundo Forquin, as discussões sociologias sobre o assunto aparecem, na Grã- Bretanha, somente a partir dos anos de 1960. Ou seja, por muito tempo, os saberes escolares foram tidos como “naturais” e não “problemáticos”. Terigi faz uma importante distinção ternária, ao se reportar à “verdadeira” origem do currículo, segundo três enfoques de três autores diferentes. Diz, textualmente: Se curriculum é a ferramenta pedagógica de massificação da sociedade industrial, acharemos sua origem nos Estados Unidos, em meados do século, como a encontra Díaz Barriga, ou ainda um pouco antes, na década de 1920; Se é um plano estruturado de estudos, expressamente referido como curriculum, podemos achá-lo pela primeira vez em alguma universidade europeia, como propõe Hamilton; Se é qualquer indicação do que se ensina, podemos chegar, como Marsh, a Plantão e, talvez, até antes dele (Terigi, 1996). Esta distinção tem o mérito de contemplar o sentido de “origem” em sua multiplicidade de sentidos. A autora se atém às três possibilidades de determinar a origem do currículo, sem descartar a possibilidade de tantas outras mais, na dependência de diferentes enfoques. Filosofia e currículo: as prescritividades Partimos do pressuposto teórico de que currículo é construção. Se é construção, então a pluralidade curricular é correlata às formas epistemológicas das discursividades. “Sua construção supõe certa perspectiva assumida na área da filosofia da educação, dado que é em função do sistema a que se dá assentimento que se precisam a direção e o sentido próprio do processo pedagógico” (Enciclopédia Mirador Internacional). O autor do verbete currículo, da enciclopédia que aqui se cita, vincula o conceito de currículo a realidades sociais e culturais, tendo em vista que são estas que decidem sobre a possibilidade ou não de certa organização, mesmo de sua conveniência ou inconveniência. Põe-se em relevo, nestes termos, o caráter político e a ordem do poder, na determinação do currículo: é a concretude da prescritividade que materializa no currículo. Isto autoriza os estudiosos a fazer o currículo remontar à Grécia clássica, dada a prescritividade da educação entre gregos, a exemplo da educação espartana, de caráter eminentemente militar, em que, para cada tempo (idade do educando), havia exercícios físicos e intelectuais bem marcados. Vale dizer o mesmo para a educação praticada em Atenas, onde o ideal da Paidéia se realizava prescritivamente. Se considerada a prescritividade como parâmetro, a Idade Média se caracterizou pela educação e ensino pautados pelo Trivium e pelo Quadrivium, um currículo disciplinar bem definido. A prescritividade já não caracteriza apenas um dos aspectos da origem do currículo, senão que diz respeito à sua ontologia, se tido em seu conceito. A prescritividade continua presente em toda a ideia de currículo e em todas as práticas curriculares. Contudo, não se sustenta mais manter um critério curricular universal e um currículo fechado em uma prescritividade única. Em currículo, cultura e sociedade (Moreira e Silva, 1994, p.28), os autores rejeitam o conceito de currículo como um rol de coisas a serem transmitidas e absorvidas com passividade. O currículo é, antes, “...um terreno de produção e de política cultural, no qual os materiais existentes funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão”. “Recriação” e “transgressão” são os termos que põem de manifesto a dinâmica curricular. Rompe-se, assim, o sentido monolítico em que tantas vezes se enredam professores, diretores e supervisores, na prática escolar. Uma concepção dinâmica de currículo só pode ser construída quando se pensam, conjuntamente, currículo e sociedade. Na acepção corrente nos países de língua inglesa e francesa, o currículo é entendido como conjunto de coisas que se ensinam e coisas que se aprendem, de conformidade com uma ordem e progressão previstas, compreendendo um ciclo de estudos. Currículo se caracteriza como programa de formação, global, com coerência didática e distribuição no tempo, de forma sequencial, com situações e atividades ordenadas. Trata-se de um “programa” de estudos, um “programa” de formação. Este é o conceito formal, prescritivo de currículo (Forquin, 1996, p.187). Pode, ainda, ser entendido, o currículo, acessoriamente, segundo Forquin, como “...aquilo que é realmente ensinado nas salas de aula e que está, às vezes, muito distante daquilo que é oficialmente prescrito”. Nesta linha se entende, também, currículo como todas as ações previstas, organizadas pela escola. Portanto, a prescritividade se atém, aqui, no nível do estabelecimento de ensino. Em sentido ainda mais lato, podem-se entender como currículo os conteúdos não expressos, mas latentes da socialização escolar, “...o conjunto de competências ou de disposições que se adquire na escola por experiência, impregnação, familiarização ou inculação difusas, ou seja, tudo aquilo que os autores anglófonos designam, às vezes, pelo termo „currículo oculto‟, em contraste com aquilo que se adquire através de procedimentos pedagógicos explícitos ou intencionais” (Idem). Lato sensu, currículo diz respeito a saberes, conteúdos, competências, símbolos, valores. A normatividade maior ou menor, a maior ou menor prescritividade, é que determinam os vários sentidos de currículo e seus vários conceitos. Em qualquer acepção que se tome o currículo, sempre se está comprometido com algum tipo de poder. Não há neutralidade nessa opção. Inclusões e exclusões estão sempre presentes no currículo. Como se expressa Santomé (1996), “Toda propuesta curricular implica tomar opciones entre distintas parcelas de la realidad, supone una sellección cultural que se ofrece a las nuevas generaciones para facilitar su socialización” (p.5). E o autor se interroga,a seguir, sobre quem são as pessoas que vão participar dessa tomada de decisões acerca da seleção de conteúdo que visam ajudar as novas gerações a compreender o mundo que as cerca, conhecer-lhe sua história, promover valores e utopias. Em tais decisões é que se faz sentir o poder político, econômico, cultural e religioso. Esse é o momento em que se incluem ou excluem etnias, grupos sociais desfavorecidos e marginalizados de mulheres, trabalhadores, pessoas da terceira idade, os pobres, os mais desvalidos, os homossexuais e lésbicas, o mundo rural, meninos e meninas, adolescentes e aqueles que caracterizam o assim denominado Terceiro Mundo. Nessa exclusão / inclusão, segundo o mesmo autor, funcionam os materiais didáticos e livros-texto que materializam as propostas curriculares. Portanto, a elaboração curricular remete à questão que diz respeito ao tipo de cidadãos que se quer construir. Daí a importância do currículo posto em confronto com a sociedade. No currículo é que se colocam as parcelas da realidade que se levam à análise e conhecimento de educandos e educadores. Os recortes do real são decisivos na configuração do cidadão que se quer produzir. Nisto se efetiva a intencionalidade do currículo, a ideologia, a filosofia educacional. Neste caso, o currículo é veículo, numa coincidência feliz com o diminutivo da palavra latina Currus (carro, veículo), ou seja: curriculum. Currículo é veículo que contém a filosofia, a ideologia, a intencionalidade educacional. Santomé (op. Cit.) ressalta: Desarrollar proyectos curriculares en las aulas obliga a estar alerta ante un sin número de cuestiones: a las tareas que cada uno de los chicos llevan a cabo, al seguimiento de sus realizaciones, de lo que saben y de aquello que todavía les resulta ininteligible; a detectar sus percepciones de la realidad, valoraciones, expectativas y prejuicios; a la apreciación de su desarrollo social y emocional y de las situaciones problemáticas que afectan a sus interacciones sociales (p.1). Efetivamente, o currículo sempre é currículo para alguém, construído a partir de alguém. Urge, pois, que autor e destinatário coincidam ao convencionar o que é de fato importante. E esta coincidência só pode nascer da participação efetiva de uma proposta curricular. O professor se afigura personagem importante deste cenário, juntamente com seus alunos e não com alunos hipotéticos. O conceber um currículo demanda experiência (vivência) e reflexão teórica. Disto é que podem resultar projetos curriculares comprometidos com realidades concretas. E que tipo de questões podem interessar à reflexão e estudo de quem se compromete com um plano ou proposta curricular? As questões culturais, as questões do trabalho, as questões econômicas e políticas “são imprescindíveis para alcançar uma adequada compreensão da comunidade e do mundo em que ela vive”, diz Jurjo Torres Santomé. No ato de escrever um currículo também funciona a lógica clandestina do compreender, do pensar e do escrever, que medeia entre as intenções iniciais e o que vai para o papel como tão bem nos esclarece Flickinger (1995), quando “O conteúdo, presumidamente disponível, embaralha-se; privado inexplicavelmente da precisão intuída, ele recusa agora a representação em palavras, conceitos e frases. Ao escrever, escapa-nos a ideia às quais havíamos chegado na fase preliminar das considerações em torno do tema”. Esta situação ocorre para aqueles que estão impregnados de compromisso com o discurso pensado, com o currículo elaborado. Por isto, há premente necessidade de engajamento profissional daqueles que são responsáveis pelos currículos. Currículo e sociedade Até os anos 1960, as questões curriculares eram tratadas “em si mesmas”. Não se confrontavam com a sociedade onde se inseriam. A implicação social do currículo começou a ser pensada na Grã-Bretanha, a partir dessa década. Um tema desenvolvido por Raumond Williams em seu livro The long revolution (1961) vai se tornar um dos primeiros motivos dessa reflexão: o da cultura como “tradição coletiva”, processo de decantação e de reinterpretação permanente da herança deixada pelas gerações anteriores (Forquin, 1996 p. 189). Compreende-se, a partir de então, que o currículo traduz elementos da memória coletiva, expressão ideológica, política, expressão de conflitos simbólicos, de descobrimento e ocultamento, segundo os interesses e jogos de força daqueles que estão envolvidos (ou não) no processo educativo. Forquin, tanto quanto Santomé, destaca a função seletiva currículo, na escolha de conteúdos. Trata-se, segundo Forquin, da “seleção cultural escolar”. Quando se fala em “seleção de conteúdos”, não se fala de coisa neutra: na escolha de conteúdos curriculares se determinam variáveis sociais significativas e dinâmicas. Põem-se em jogo interesses, exercita-se poder, determinam-se rumos políticos. Urde-se uma trama social complexa, cujas derivações rizomáticas configuram a complexidade e mobilidade em que se movem os sujeitos, se constituem e destituem forças concretizadas em sujeitos do processo educativo, quando nem sempre o interesse da maioria “é o que interessa” e onde minorias são, tantas vezes, simplesmente ignoradas. O currículo é um dos “lugares” em que se “concede a palavra” ou “se toma a palavra”, no jogo das forças políticas, sociais e econômicas. A manipulação da informação é facilmente exercitada através do currículo explicitado nos manuais escolares que circulam internamente à escola, mas que são curriculum (veículo) das ideias e das práticas que “rolam” fora da escola-instituição. No currículo pode-se “ler”, assim social, as estratificações, o pensamento dominante, os interesses explícitos e implícitos do poder difuso, multipartite e multifacetado (de muitos rostos), polífono (de muitas vozes). É bom lembrar que poder não diz respeito somente (e talvez nem principalmente) aos grandes blocos de poder visível e constituído: há um poder, como atesta Foucault em várias obras, que é difuso, que se distribui em mil instâncias pequenas, individuais, de pequenos grupos, nas reentrâncias da sociedade. No currículo não é diferente: o exercício do poder por meio do currículo é muito difuso, passando pela instituição, pelos grupos que circulam na instituição, pelos sujeitos diversos da comunidade escolar e extraescolar. Tendências no Brasil Não temos, no Brasil, algo que corresponda efetivamente a um estudo aprofundado, de tradição consolidada sobre o problema do currículo. É um campo do conhecimento educacional pouco explorado ainda. Esta questão tem sido discutida de forma difusa em muitos “lugares”, por exemplo, junto com a questão do livro didático, na discussão das relações escola e sociedade, junto com a questão das dificuldades de aprendizagem dos alunos, com o problema da competência técnica e política do professor e outras temáticas mais. A relação estreita entre currículo e sociedade começou a ser posta no Brasil a partir do final da década de 1960. Este fenômeno, que já ocorrera no assim chamado Primeiro Mundo a partir da mesma década e que recebeu o nome de Nova Sociologia da Educação (NSE), tem, com efeito, por característica essencial, considerar o conjunto dos funcionamentos e dos fatores sociais da educação a partir de um ponto de vista privilegiado que é o da seleção, da estruturação, da circulação e da legitimação dos saberes e dos conteúdos simbólicos incorporados nos programas e nos cursos. Na busca de uma resposta a uma série de questionamento em torno do currículo, surgiu a Sociologia do Currículo. Questões tais como: (a) O que pode ou não ser considerado de valor educativo para fazer parte dos conteúdos a serem transmitidos pela escola? (b) Quem faz a seleção dos conteúdos e, portanto, dos elementos das culturas que fazem parte dos currículos? (c) A quemservem os conteúdos ensinados nas escolas? (d) Como é tratada a cultura das classes populares nos currículos? Estas questões determinam o desencadeamento dos estudos da Sociologia do currículo, em muitos lugares do planeta, inclusive no Brasil. As diferenças culturais emergiam como temática importante, cujo estudo vem tomando corpo no Brasil, especialmente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul que, nos cursos de pós-graduação em educação, tem oferecido vários seminários avançados sobre o assunto. Além de apresentar uma produção notável para a incipiência do tema. O grande desafio ainda por vencer é conseguir que estes enfoques cheguem às escolas. Por ora, a discussão, em nosso país, se encontra ainda em nível de academia. Não se deve, contudo, negar, a qualquer título, a abertura de caminhos que representaram as discussões de caráter dialético-marxista encetadas em 1979 por Dermeval Saviani e numerosos outros educadores, que resultaram em teorização tais como a teoria crítico-social dos conteúdos, a pedagogia histórico-crítica e outras, com uma produção científica avantajada. Mas foi mais tarde que começou, no Brasil, a discussão em torno do multiculturalismo, os Estudos Culturais iniciados na Inglaterra. Justo num país como o nosso, em que se entrelaçaram culturas tão diferentes, o multiculturalismo deveria estar ocupando lugar de destaque, o que está longe, ainda, de acontecer. Enfocado como um problema precipuamente prático, o currículo, no Brasil, demorou a alcançar um nível de discussão sociológica. Mas, na década de 1980, neste país, como destacamos acima, houve um progresso notável. O debate foi aceso e abrangente. A educação popular ganhou espaços na reflexão e na prática pedagógica, bem como em nível teórico. Além das teorias crítico-sociais, o construtivismo teve grande aceitação nos meios educacionais brasileiros (e prossegue tendo, em larga escala). As propostas curriculares oficiais avançaram muito em seus aspectos teóricos, ensejando práticas consequentes, ainda que tenhamos a convicção de que as práticas ficaram muito e muito aquém das teorizações. Seguindo essa linha de investigação, podemos dividir em três momentos distintos a produção de pesquisa em torno do currículo escolar dos últimos dez anos: em 1983 – 1985, os raros autores que trataram do currículo, pouco uso fizeram da teoria da reprodução como recurso interpretativo. A NSE não era de domínio desses autores. As teorizações de Michael W. Apple e Henry Giroux eram citadas, sem que se fizesse delas utilização maior. Nem mesmo autores brasileiros, como Paulo Freire, inspiraram a produção científica sobre currículo. A inspiração teórica básica continuou sendo Tyler. Alguns autores se limitaram a discutir o lugar de algumas disciplinas e não muito mais que isto. Apareceram trabalhos meramente exploratórios, sem expressão teórica maior. O que predomina são as já amplamente discutidas teorização da década de 1970. O conceito de currículo, até esse período, se atinha muito à ideia de rol de disciplinas e ainda não se percebia, no Brasil, como em outros países, a mera função instrumental das disciplinas no contexto curricular. Fizeram-se estudos que trataram de currículos e programas, nos quais o acento é posto no papel social a ser desempenhado tanto pela escola quanto pela comunidade. Fizeram-se, ainda, estudos cujos resultados e recomendações eram de que se tratasse do maior número possível de assuntos nos currículos, para, dessa forma, se instrumentalizarem as camadas populares para que pudessem superar os estereótipos, experiências e pressões da ideologia dominante. A pesquisa em torno do currículo do primeiro grau se intensifica em fins de 1985, visando buscar causas de evasão e repetência, grave problema educacional. Tais estudos tendiam a encontrar as causas dos problemas na questão dos conteúdos. Não se chegou a apontar as mudanças que poderiam reverter os problemas e gerar o fortalecimento da educação formal do país. O período de 1986 a 1989 trouxe mudanças significativas. Tais mudanças se relacionam a um artigo de L. Domingues, intitulado “Interesses humanos e paradigmas curriculares”, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, onde aplicou a classificação de currículo feita por McDonald, inspirado em Habermas, para a realidade brasileira. Afinal, nesse período se superou a concepção de currículo como elenco de disciplinas ou listagem de conteúdos e se pensou no sentido de que todas as atividades da escola são significativas para o saber do aluno, para sua apropriação de conhecimento. A escola é que, nesta visão, assume tal papel social. Os estudiosos dessa época também trabalham a questão da adequação dos conteúdos aos alunos. Fez-se a análise que se faz, hoje, dos silenciamentos e dos modos e métodos de provocá-los. A tendência mais corrente é a de adotar um currículo crítico ou, ao menos, uma postura crítica diante das questões curriculares. Começou-se a pensar sobre a adequação do currículo às classes e grupos mais excluídos sobretudo pela pobreza material. Buscou-se discutir a questão da formação básica para todos os brasileiros, com respeito mantido pelas questões e interesses regionais. Considerou-se importante, neste período, discutir os conteúdos que se configuram como necessários à educação. Fez-se uma crítica e reconsideração sobre os encaminhamentos da década de 1970. Lançaram-se novas propostas curriculares, na tentativa de rearticular o que se propunha como saída para os reais problemas de sala de aula. Mas os estudos da NSE continuaram sendo ignorados. De 1990 em diante, as teorias que já se haviam fortemente firmado em vários países desenvolvidos, passaram a ser utilizadas para a análise dos problemas curriculares, no Brasil. Não se fez mera importação teórica, mas fez-se uma utilização crítica das teorias mais atualizadas de então. Tomaz Tadeu da Silva iniciou importantes estudos curriculares, resultado de seus contatos produtivos com educadores estrangeiros. Teceu várias e fundamentadas críticas ao que se vinha fazendo em termos de estudo do currículo, sobretudo o fato de se terem ignorado os avanços da NSE e o rápido abandono da teoria da reprodução. Voltou-se com força para a produção e divulgação de análises conectadas, agora, a um novo campo de discussão – os Estudos Culturais. Esta trajetória de Silva prossegue com várias reflexões, e aparece em ensaios como Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa paisagem pós-moderna (publicado em Silva e Moreira, 1995) e Currículo e identidade social: territórios contestados (publicado em Silva, 1995), indicando novos rumos para o debate. Este breve levantamento corre o risco de ser incompleto, pela sua contemporaneidade. É mesmo difícil fazer justiça ao citar obras que se impuseram no cenário nacional e internacional, na discussão do currículo, nos dias recentes. O que se pode dizer é que a questão dos Estudos Culturais vem ganhando espaço na preocupação dos estudiosos do currículo. É, no Brasil, uma discussão que começa a se expandir. O curso de pós-graduação em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem sido um ambiente de receptividade e produtividade nesta linha. Currículo e cultura Como já foi comentado, uma das mais recentes tendências quanto aos estudos curriculares é a de ligar o tema às questões culturais. Os Estudos Culturais, que tiveram sua origem na Inglaterra, vêm influenciando significativamente a questão do currículo, como se ressaltou acima. É pertinente o que afirmam Moreira & Silva (1994); “... a cultura é o terreno em que se enfrentam diferentes e conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e não aquilo que recebemos” (p. 27). Numa perspectiva foucaultiana, a variável “poder” é decisiva na atual análise dos fenômenos sociais. Toda ênfase nas questõesculturais é dada, na análise, tanto dos componentes, quanto dos veículos desses componentes, no estudo do currículo, bem como na maneira pela qual se desenvolvem na escola. A variável “inclusão/exclusão” é amplamente empregada nessa mesma análise. O “olhar” se tornou parâmetro interpretativo dos fenômenos sociais. Basta verificar quantos artigos vêm intitulados com a palavra “olhar/olhares”. Mas não se trata, aqui, de ver a cultura como algo geral, genérico, abrangente, categoria universal. Trata-se, mais, de descobrir na cultura as diferenças mínimas, mas significativas, dinâmicas, diferenças que produzem diferenças. É significativo o cuidado, por exemplo, de vários autores e autoras e docentes, em ressaltar a diferença que faz se se trata de homem ou de mulher, de professor ou de professora, quando a categoria gênero entra em cena na análise dos fenômenos sociais. Daí a explicar-se o fato da utilização, na linguagem escrita e mesmo falada, da forma masculina e feminina (homem/mulher – professor/professora), grafia e verbalização, convenhamos, incômoda, mas reveladora de sentidos. Nos Estudos Culturais voltados para o currículo não se podem mais ignorar as diferenças culturais, de gênero, de raça, de cor, sexo etc. Se aprofundássemos certos aspectos filosóficos destas questões, desembocaríamos na filosofia prática: a ética. Há, em todo o enfoque cultural destas questões, uma profunda preocupação com os valores éticos do respeito, do cuidado heideggeriano com a vida, com o outro, com o sujeito diferente, com a dor da exclusão, com a mágoa das minorias marginalizadas, com os excluídos, com a discriminação dos gays e lésbicas, com a exploração da mulher, com o abandono das crianças, com o silenciamento dos jovens e adolescentes. De fato, sem entrar em profundidade em nenhuma destas graves questões, podemos afirmar que o argumento ético é forte, prevalece, torna visíveis as feridas sociais, nos estudos culturais e nestes, quando voltados para o currículo, entre outras questões candentes deste fim de milênio. As análises foucaultianas do poder, do disciplinamento dos corpos e das almas, a microfísica dos poderes que pervadem tudo, a política miúda, pulverizada mas eficiente, que submete, tudo isto que Foucault magistralmente trouxe à visibilidade tem servido amplamente para sustentar a análise social da educação e análise curriculares. Vários teóricos, ao lado de e junto a Foucault, como Derrida, Deleuze, Guattari, Gilddens, Gadamer, Baudrillard, Vattimo e tantos outros, possibilitaram uma base de discussão teórica das práticas, sem pretenderem se tornar um “Grund”, ou seja, um fundamento, na argumentação dos fenômenos sociais em que se insere a educação e o currículo escolar. O currículo está intimamente ligado às questões culturais, desde o momento em que se faz a pergunta: “Currículo para quem?” Afinal, a questão do currículo é a questão central que diz respeito àquilo que a escola faz e para quem faz ou deixa de fazer. Resumindo O currículo tem história recente. Ainda que seja um termo utilizado desde a antiguidade clássica, como é hoje entendido, o currículo começou a fazer história apenas nas últimas décadas. Se por algum tempo (até a década de 1960) as questões curriculares estiveram desconectadas dos problemas sociais, a partir de então, com a Nova Sociologia Educacional, começando pela Grã-Bretanha, pela França, este enfoque, o sociológico, se espalhou pelo mundo todo, chegando ao Brasil pelo fim da década de 1980. Hoje, as questões curriculares estão intimamente conectadas aos problemas sociais e, em dias mais recentes, aos aspectos culturais. Mais uma vez a Inglaterra tomou a frente nestes estudos. A tendência atual é aprofundar esta questão, numa forte tentativa de eticidade perante asdiferenças. A filosofia pós-moderna contribui, sem dúvida, a refletir a contingência, a pluralidade, a descontinuidade, o discurso, os recortes mínimos, as realidades pequenas: a “realidade real”. Fortaleceu a convicção de que a vontade de poder determina rumos históricos, toma decisões, encaminha a história, dispõe dos corpos e das almas para submetê-los aos interesses, à filigrana dos interesses manifestos e ocultos nas mais recônditas fendas e fissuras, nos mais intricados labirintos produzindo inclusões e exclusões, deitando “olhares”, ditando normas (normatividade), instituindo “realidades”. A sociedade pós-moderna se caracteriza pela complexidade. A técnica é multifacetada: é um mundo brilhante, luzidio, atraente, tentador, que traz conforto e felicidade a um tempo e massificação e depressão moral noutro tempo. A massificação é brutal. O currículo é o lugar dos eventos micro e macro, dos sistemas educacionais, das instituições, a um tempo, e o lugar, também, dos desejos mínimos, por outro. As decisões tomadas a respeito do currículo (micro ou macro) afetam sempre vidas, sujeitos. Daí, a sua importância. TEORIAS DO CURRÍCULO: O QUE É ISTO? Tomaz Tadeu Silva Extraído do livro: SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. O que é uma teoria do currículo? Quando se pode dizer que se tem uma "teoria do currículo"? Onde começa e como se desenvolve a história das teorias do currículo? O que distingue uma "teoria do currículo" da teoria educacional mais ampla? Quais são as principais teorias do currículo? O que distingue as teorias tradicionais das teorias críticas do currículo? O que distingue as teorias críticas do currículo das teorias pós-críticas? Podemos começar pela discussão da própria noção de "teoria". Em geral, está implícita, na noção de teoria, a suposição de que a teoria "descobre" o "real", de que há uma correspondência entre "teoria" e "realidade". De uma forma ou de outra, a noção envolvida é sempre representacional, especular, mimética: a teoria representa, reflete, espelha a realidade. A teoria é uma representação, uma imagem, um reflexo, um signo de uma realidade que – cronologicamente, ontologicamente – a precede. Assim, para já entrar no nosso tema, uma teoria do currículo começaria por supor que existe, "lá fora". Esperando para ser descoberta, descrita e explicada, uma coisa chamada "currículo". O currículo seria um objeto que precederia a teoria, a qual só entraria em cena para descobri-lo, descrevê-lo, explicá-lo. Da perspectiva do pós-estruturalismo, hoje predominante na análise social e cultural, é precisamente esse viés representacional que torna problemático o próprio conceito de teoria. De acordo com essa visão, é impossível separar a descrição simbólica, linguística da realidade – isto é, a teoria – de seus "efeitos de realidade". A "teoria" não se limitaria, pois, a descobrir, a descrever, a explicar a realidade: a teoria estaria irremediavelmente implicada na sua produção. Ao descrever um "objeto", a teoria, de certo modo, o inventa. O objeto que a teoria supostamente descreve é, efetivamente, um produto de sua criação. Nessa direção, faria mais sentido falar não em teoria, mas em discursos ou textos. Ao deslocar a ênfase do conceito de teoria para o de discurso, a perspectiva pós-estruturalista quer destacar precisamente o envolvimento das descrições linguísticas da "realidade" em sua produção. Uma teoria supostamente descobre e descreve um objeto que tem uma existência independentemente relativamente à teoria. Um discurso, em troca, produz seu próprio objeto: a existência do objeto é inseparável da trama linguística que supostamente o descreve. Para voltar ao nosso exemplo do "currículo", um discurso sobre o currículo – aquilo que, numa outra concepção, seria uma teoria – não se restringe a representar uma coisa que seria o "currículo", que existiria antes desse discurso e que está ali, apenas à espera de ser descoberto e descrito. Um discurso sobre ocurrículo, mesmo que pretenda apenas descrevê-lo "tal como ele realmente é", o que efetivamente faz é produzir uma noção particular de currículo. A suposta descrição é, efetivamente, uma criação. Do ponto de vista do conceito pós- estruturalista de discurso, a "teoria" está envolvida num processo circular: ela descreve como uma descoberta algo que ela própria criou. Ela primeiro cria e depois descobre, mas, por um artifício retórico, aquilo que ela cria acaba aparecendo como uma descoberta. Podemos ver como isso funciona num caso concreto. Provavelmente o currículo aparece pela primeira vez como um objeto específico de estudo e pesquisa nos Estados Unidos dos anos vinte. Em conexão com o processo de industrialização e os movimentos imigratórios, que intensificavam a massificação da escolarização, houve um impulso, por parte de pessoas ligadas sobretudo à administração da educação, para racionalizar o processo de construção, desenvolvimento e testagem de currículos. As ideias desse grupo encontram sua máxima expressão no livro de Bobbitt, The curriculum (1918). Aqui, o currículo é visto como um processo de racionalização de resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados e medidos. O modelo institucional dessa concepção de currículo é a fábrica. Sua inspiração "teórica" é a "administração científica", de Taylor. No modelo de currículo de Bobbitt, os estudantes devem ser processados como um produto fabril. No discurso curricular de Bobbitt, pois, o currículo é supostamente isso: a especificação precisa de objetivos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser precisamente mensurados. Se pensarmos no modelo de Bobbitt através da noção tradicional de teoria, ele teria descoberto e descrito o que, verdadeiramente, é o "currículo". Nesse entendimento, o "currículo" sempre foi isso que Bobbitt diz ser: ele se limitou a descobri-lo e a descrevê-lo. Da perspectiva da noção de "discurso", entretanto, não existe nenhum objeto "lá fora" que se possa chamar de "currículo". O que Bobbitt fez, como outros antes e depois dele, foi criar uma noção particular de "currículo". Aquilo que Bobbitt dizia ser "currículo" passou, efetivamente, a ser o "currículo". Para um número considerável de escolas, professores, de estudante, de administradores educacionais, "aquilo" que Bobbitt definiu como sendo currículo tornou-se uma realidade. A noção de discurso teria uma vantagem adicional. Ela nos dispensaria de fazer o esforço de separar – como seríamos obrigados, se ficássemos limitados à noção tradicional de teoria – asserções sobre a realidade de asserções sobre como deveria ser a realidade. Como sabemos, as chamadas "teorias do currículo", assim como as teorias educacionais mais amplas, estão recheadas de afirmações sobre como as coisas deveriam ser. Da perspectiva da noção de discurso, estamos dispensados dessa operação, na medida em que tanto supostas asserções sobre a realidade quanto asserções sobre como a realidade deveria ser têm "efeitos de realidade" similares. Para dizer de outra forma, supostas asserções sobre a realidade acabam funcionando como se fossem asserções sobre como a realidade deveria ser. Elas têm o mesmo efeito: p de fazer com que a realidade se torne o que elas dizem que é ou deveria ser. Para retomar o exemplo de Bobbitt, é irrelevante saber se ele está dizendo que o currículo é, efetivamente, um processo industrial e administrativo ou, em vez disso, que o currículo deveria ser um processo industrial e administrativo. O efeito final, de uma forma ou outra, é que o currículo se torna um processo industrial e administrativo. Apesar dessas advertências, a utilização da palavra "teoria" está muito amplamente difundida para poder ser simplesmente abandonada. Em vez de simplesmente abandoná-la, parece suficiente adotar uma compreensão da noção de "teoria" que nos mantenha atentos ao seu papel ativo na constituição daquilo que ela supostamente descreve. É nesse sentido que a palavra "teoria", ao lado das palavras "discurso" e "perspectiva", será utilizada ao longo deste livro. A adoção de uma noção de teoria que levasse em conta seus efeitos discursivos nos pouparia de uma outra dor de cabeça: a das definições. Todo livro de currículo que se preze inicia com uma boa discussão sobre o que é, afinal, "currículo". Em geral, começam com as definições dadas pelo dicionário dadas por uns quantos manuais de currículo. Na perspectiva aqui adotada, que vê as "teorias" do currículo a partir da noção de discurso, as definições de currículo não são utilizadas para capturar, finalmente, o verdadeiro significado de currículo, para decidir qual delas mais se aproxima daquilo que o currículo essencialmente é, mas, em vez disso, para mostrar que aquilo que o currículo é depende precisamente da forma como ele é definido pelos diferentes autores e teorias. Uma definição não nos revela o que é, essencialmente, o currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é. A abordagem aqui é muito menos ontológica (qual é o verdadeiro "ser" do currículo?) e muito mais histórica (como, em diferentes momentos, em diferentes teorias, o currículo tem sido definido?). Talvez mais importante e mais interessante do que a busca da definição última de "currículo" seja a de saber quais questões uma "teoria" do currículo ou um discurso curricular busca responder. Percorrendo as diferentes e diversas teorias do currículo, quais questões comuns elas tentam, explícita ou implicitamente, responder? Além das questões comuns, que questões específicas distinguem as diferentes teorias do currículo? Como essas questões específicas distinguem as diferentes teorias do currículo? A questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. De uma forma mais sintética a questão central é: o quê? Para responder a essa questão, as diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade. As diferentes teorias se diferenciam, inclusive, pela diferente ênfase que dão a esses elementos. Ao final, entretanto, elas têm que voltar à questão básica: o que eles ou elas devem saber? Qual conhecimento ou saber é considerado importante ou válido ou essencial para merecer ser considerado parte do currículo? A pergunta "o quê?", por sua vez, nos revela que as teorias do currículo estão envolvidas , explícita ou implicitamente, em desenvolver critérios de seleção que justifique, a resposta que darão àquela questão. O currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo. As teorias do currículo, tendo decidido quais conhecimentos devem ser selecionados, buscam justificar por que "esses conhecimentos" e não "aqueles" devem ser selecionados. Nas teorias do currículo, entretanto, a pergunta "o quê?" nunca está separada de uma outra importante pergunta: "o que eles ou elas devem ser?" ou, melhor, "o que eles ou elas devem se tornar?". Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão "seguir" aquele currículo. Na verdade, de alguma forma, essa pergunta precede à pergunta "o quê?", na medida em que as teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento considerado importante justamente a partir de descrições sobre o tipo de pessoa que elas consideram ideal. Qual é o tipo de ser humano desejável para i, determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado-nação? Seráa pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? A cada um desses "modelos" de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo. No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de "identidade" ou de "subjetividade". Se quisermos recorrer à etimologia da palavra "currículo", que vem do latim curriculum, "pista de corrida", podemos dizer que no curso dessa "corrida" que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade. É sobre essa questão, pois, que se concentram também as teorias do currículo. Da perspectiva pós-estruturalista, podemos dizer que o currículo é também uma questão de poder e que as teorias do currículo, na medida em que buscam dizer o que o currículo deve ser, não podem deixar de estar envolvidas em questões de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder. As teorias do currículo não estão, neste sentido, situadas num campo "puramente" epistemológico, de competição entre "puras" teorias. As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de garantir consenso, de obter hegemonia. As teorias do currículo estão situadas num campo epistemológico social. As teorias do currículo estão no centro de um território contestado. É precisamente a questão do poder que vai separar as teorias tradicionais das teorias críticas e pós-críticas do currículo. As teorias tradicionais pretendem ser apenas isso: "teorias" neutras, científicas, desinteressadas. As teorias críticas e as teorias pós-críticas, em contraste, argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente, implicada em relações de poder. As teorias tradicionais, ao aceitar mais facilmente o status quo, os conhecimentos e os saberes dominantes, acabam por se concentrar em questões técnicas. Em geral, elas tornam a resposta à questão "o quê?" como dada, como óbvia e por isso buscam responder a uma outra questão: "como?". Dado que temos esse conhecimento (inquestionável?) a ser transmitido, qual é a melhor forma de transmiti-lo? As teorias tradicionais se preocupam com questões de organização. As teorias críticas e pós-críticas, por sua vez, não se limitam a perguntar "o quê?", mas submetem este "quê a um constante questionamento. Sua questão central seria, pois, não tanto "o quê?", mas "por quê?". Por que esse conhecimento e não outro? Quais interesses fazem com que esse conhecimento e não outro esteja no currículo? Por que privilegiar um determinado tipo de identidade ou subjetividade e não outro? As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder. Como vimos, uma teoria define-se pelos conceitos que utiliza para conceber a "realidade". Os conceitos de uma teoria dirigem nossa atenção para certas coisas que sem eles não "veríamos". Os conceitos de uma teoria organizam e estruturam nossa forma de ver a "realidade". Assim, uma forma útil de distinguirmos as diferentes teorias do currículo é através do exame dos diferentes conceitos que elas empregam. Neste sentido, as teorias críticas de currículo, ao deslocar a ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem para os conceitos de ideologia e poder, por exemplo, nos permitiram ver a educação de uma nova perspectiva. Da mesma forma, ao enfatizarem o conceito de discurso em vez do conceito de ideologia, as teorias pós-críticas de currículo efetuaram um outro importante deslocamento na nossa maneira de conceber o currículo. Por isso, à medida que percorrermos, nos tópicos a seguir, as diferentes teorias do currículo, pode ser útil ter em mente o seguinte quadro, que resume as grandes categorias de teoria de acordo com os conceitos que elas, respectivamente, enfatizam. TEORIAS TRADICIONAIS TEORIAS CRÍTICAS TEORIAS PÓS- CRÍTICAS Ensino Ideologia Identidade, alteridade, diferença Aprendizagem Reprodução cultural e social Subjetividade Avaliação Poder Significação ediscurso Metodologia Classe social Saber-poder Didática Capitalismo Representação Organização Relações sociais de produção Cultura Planejamento Conscientização Gênero, raça, etnia, sexualidade Eficiência Emancipação e libertação Multiculturalismo Objetivos Currículo oculto Resistência Quadro 1. Teorias do Currículo, compilação. UNIDADE II – Organização, Gestão e Avaliação AS FUNÇÕES CONSTITUTIVAS DO SISTEMA DE ORGANIZAÇÃO E DE GESTÃO DA ESCOLA Jucimara Oliveira da Silva A gestão democrática-participativa valoriza a participação da comunidade escolar no processo de tomada de decisão, concebe à docência como trabalho interativo e aposta na construção coletiva dos objetivos e do funcionamento da escola, por meio da dinâmica intersubjetiva, do diálogo, do consenso. O processo deliberativo inclui tanto a decisão (por meio de reuniões, discussões, estudo e documentos, consultas, etc.) quanto as ações necessárias para pô-la em prática. Em razão disso, faz-se necessário o emprego de funções do processo organizacional. De fato, como toda instituição, as escolas buscam resultados, o que implica uma atividade racional, estruturada e coordenada. Ao mesmo tempo, sendo de caráter coletivo, essa atividade não depende apenas das capacidades e das responsabilidades individuais, mas também de objetivos comuns e compartilhados, de meios e ações coordenadas e controladas dos agentes do processo. O processo de organização escolar dispõe, portanto, de funções, propriedades comuns ao sistema organizacional de uma instituição, com base nas quais se definem ações e operações necessárias ao funcionamento institucional. São quatro as funções constitutivas desse sistema: A. planejamento: explicitação de objetivos e antecipação de decisões para orientar a instituição, prevendo o que se deve fazer para atingi-los; B. organização: racionalização de recursos humanos, físicos, materiais, financeiros, criando e viabilizando as condições e modos para realizar o que foi planejando; C. direção/coordenação: coordenação do esforço humano coletivo do pessoal da escola; D. avaliação: comprovação e avaliação do funcionamento da escola. A seguir, detalhes de cada uma dessas funções. O Planejamento escolar e o Projeto Pedagógico O planejamento consiste em ações e procedimentos para tomada de decisões a respeito de objetivos e de atividades a ser realizadas em razão desses objetivos. É um processo de conhecimento e de análise da realidade escolar em suas condições concretas, tendo em vista a elaboração de um plano ou projeto para a instituição. O planejamento do trabalho possibilita uma previsão de tudo o que se fará com relação aos vários aspectos da organização escolar e prioriza as atividades que necessitam de maior atenção no ano a que ele se refere. Assim, podem ser distribuídas as responsabilidades a cada setor da escola e aos membros da equipe. Toda organização precisa de um plano de trabalho que indique os objetivos e os meios de sua execução, superando a improvisação e a falta de rumo. A atividade de planejamento resulta, portanto, naquilo que aqui denominamos de projeto pedagógico. O projeto é um documento que propõe uma direção política e pedagógica para o trabalho escolar, formula metas,prevê as ações, institui procedimentos e instrumentos de ação. É pedagógico porque formula objetivos sociais e políticos e meios formativos para dar uma direção ao processo educativo, indicando porque e como se ensina e, sobretudo, orientando o trabalho educativo para as finalidades sociais e políticas almejadas pelo grupo de educadores. O projeto expressa, pois, uma atitude pedagógica, que consiste em dar um sentido, um rumo, às práticas educativas, onde quer que sejam realizadas, e firmar as condições organizativas e metodológicas para a viabilização da atividade educativa (Libâneo, 2005). É curricular porque propõe, também, o currículo, o referencial concreto da proposta pedagógica. O currículo éo desdobramento do projeto pedagógico, ou seja, a projeção dos objetivos, das orientações e das diretrizes operacionais previstas nele. Mas, ao pôr em prática esse projeto, o currículo também o realimenta e o modifica. Supõe-se, portanto, estreita articulação entre o projeto pedagógico e a proposta curricular, a fim de promover um entrecruzamento dos objetivos e das estratégias para o ensino - formulados com base na identificação de necessidades e de exigências da sociedade e do aluno, mediante critérios filosóficos, políticos, culturais e pedagógicos – com as experiências educacionais a ser proporcionadas aos alunos por meio do currículo. Deve-se salientar que o projeto pedagógico é um documento que reproduz as intenções e o modus operandi da equipe escolar, cuja viabilização necessita das formas de organização e de gestão. Não basta ter o projeto, é preciso que seja levado a efeito. As práticas de organização e de gestão executam oprocesso organizacional para atender ao projeto. A Organização geral do trabalho A segunda função do processo organizacional é a organização propriamente dita. Refere-se à racionalização do uso de recursos humanos, materiais, físicos, financeiros e informacionais e à eficácia na utilização desses recursos e dos meios de trabalho. A organização incide diretamente na efetividade do processo de ensino e aprendizagem, à medida que garante as condições de funcionamento da escola. Sua presença ou ausência interferem na qualidade das atividades de ensino. É necessário, portanto, que todos os aspectos da vida escolar sejam devidamente contemplados na organização geral de escola, ao longo de todo o ano letivo. A organização geral diz respeito a: condições físicas, materiais, financeiras; sistemas de assistência pedagógico-didática ao professor; serviços administrativos, de limpeza e de conservação; horário escolar, matrícula, distribuição de alunos por classes; normas disciplinares; contatos com pais, etc. Essas várias atividades podem ser agrupadas em quatro aspectos: organização da vida escolar, organização dos processos de ensino e aprendizagem, organização das atividades de apoio técnico-administrativo, organização das atividades que asseguram as relações entre escola e comunidade. Organização da vida escolar Trata-se da organização do trabalho escolar em função da especificidade e dos objetivos da escola. É o estabelecimento de condições ótimas de organização do espaço físico, de relações humanas satisfatórias, de adequada distribuição de tarefas, de sistema participativo de tomada de decisões, de condições apropriadas de higiene e limpeza, bem como de outras que concorram para o desenvolvimento e para o alto rendimento escolar dos alunos, e de utilização eficaz dos recursos e meios de trabalho. A estrutura organizacional e o cumprimento das atribuições de cada membro da equipe constituem elementos indispensáveis para o funcionamento da escola. Um mínimo de divisão de funções faz parte da lógica da organização educativa, sem comprometer a gestão participativa. Contudo, deve-se evitar a redução da estrutura organizada de gestão, subordinando o pedagógico ao administrativo, impedindo a participação e a discussão e não levando em conta as ideias, os valores e a experiência dos professores. Importante aspecto a ser mencionado ainda é a organização do tempo escolar, de modo que as atividades de aprendizagem sejam distribuídas racionalmente pelos dias da semana, observados os critérios pedagógicos e curriculares. Organização do processo de ensino e aprendizagem. Este aspecto refere-se ao suprimento dos suportes pedagógicos- didáticos necessários à organização do trabalho escolar. Compreende o currículo, a organização pedagógica-didática (planos, metodologias, organização dos níveis escolares, horários, distribuição de alunos por classes), assistência pedagógica sistemática aos professores, avaliação, ações de formação continuada, conselhos de classe, etc. Além de prover as condições físicas, materiais e didáticas mencionadas, é preciso organizar e acompanhar as atividades de elaboração do plano de ensino e prestar assistência pedagógico-didática aos professores na sala de aula. A organização do trabalho na sala de aula não visa apenas ao cumprimento dos programas, mas também ao envolvimento dos alunos, à sua participação ativa, ao desenvolvimento de habilidades e capacidades intelectuais, ao trabalho independente, o que requer a imprescindível colaboração da coordenação pedagógica. Organização das atividades de apoio técnico-administrativo As tarefas administrativas têm a função de fornecer o apoio necessário ao trabalho docente. Abrangem as atividades de secretaria (prontuário de alunos e professores, registro escolar, arquivos, livros de registro, atendimento de pessoas, etc.), serviços gerais (inspetores de alunos, serventes, merendeira, porteiros e vigias, etc.), atividades de limpeza e de conservação do prédio, provimento e conservação dos recursos materiais (equipamentos, mobiliário escolar, material didático), administração do espaço físico e das dependências. Incluem também a gestão de recursos financeiros. Organização de atividades que asseguram a relação entre escola e comunidade Implica ações que envolvem a escola e suas relações externas, tais como os níveis superiores de gestão do sistema escolar, os pais, as organizações políticas e comunitárias, a cidade e os equipamentos urbanos. O objetivo dessas atividades é buscar as possibilidades de cooperação e de apoio, oferecidas pelas diferentes instituições, que contribuam para o aprimoramento do trabalho da escola, isto é, para as atividades de ensino e de educação dos alunos. Espera-se, especialmente, que os pais atuem na gestão escolar, mediante canais de participação bem definidos. Direção e coordenação A direção e a coordenação correspondem a tarefas agrupadas sob o termo gestão. A gestão refere-se a todas as atividades de coordenação e de acompanhamento do trabalho das pessoas, envolvendo o cumprimento das atribuições de cada membro da equipe, a realização do trabalho em equipe, a manutenção do clima de trabalho, a avaliação de desempenho. Essa definição aplica-se aos dirigentes escolares, mas é igualmente aplicável aos professores, seja em seu trabalho na sala de aula, seja quando são investidos de responsabilidade no âmbito da organização escolar. Dirigir e coordenar significa assumir, no grupo, a responsabilidade por fazer a escola funcionar mediante o trabalho conjunto. Para isso, compete a quem dirige assegurar: a) A execução coordenada e integral de atividades dos setores e dos indivíduos da escola, conforme decisões coletivas anteriormente tomadas; b) O processo participativo de tomada de decisões, cuidando, ao mesmo tempo, que estas se convertam em medidas concretas efetivamente cumpridas pelo setor ou pelas pessoas em cujo trabalho são aplicadas; c) A articulação das relações interpessoais na escola e no âmbito em que o dirigente desempenha suas funções. Uma das qualidades da introdução, na escola, do projeto pedagógico curricular é adiscussão pública de objetivos, atividades e normas de funcionamento. A falta de unidade da ação educativa escolar pode resultar em efeitos prejudiciais aos objetivos de aprendizagem. Por exemplo, torna-se necessário haver um mínimo de norma, sempre decididas conjuntamente, sobre condutas dos professores com relação a cuidados com o mobiliário da escola, à sistemática de tarefas de casa, ao cumprimento dos horários de saída e de entrada, a interrupções de aulas para merenda, a avisos administrativos. Todos os profissionais da escola precisam estar aptos a dirigir e a participar das formas de gestão. Todavia, em razão de necessária divisão de funções, correspondente à lógica da administração, deve-se ressaltar que algumas pessoas têm atribuições específicas de direção e coordenação, o que implica especialização profissional. Assim, o diretor e o coordenador pedagógico assumem o papel de coordenadores de ações voltadas para objetivos coletivamente estabelecidos. Na nova perspectiva de gestão, esses dois profissionais recebem a delegação de coordenar o trabalho coletivo, assegurando as condições de sua realização e, especialmente, as do ambiente formativo, para o desenvolvimento pessoal e profissional. Para isso, precisam reconhecer que sua ocupação tem uma característica genuinamente interativa, ou seja, está a serviço das pessoas e da organização, delas requerendo uma formação específica a fim de buscar soluções para os problemas, a saber coordenar o trabalho conjunto, discutir e avaliar a prática; assessorar os professores e prestar-lhes apoio logístico na sala de aula. A Avaliação da organização e da gestão da escola A avaliação é função primordial do sistema de organização e de gestão. Ela supõe acompanhamento e controle das ações decididas coletivamente, sendo este último a observação e a comprovação dos objetivos e das tarefas, a fim de verificar o estado real do trabalho desenvolvido. A avaliação permite pôr em evidência as dificuldades surgidas na prática diária, mediante a confrontação entre o planejamento e o funcionamento real do trabalho. Visa ao melhoramento do trabalho escolar, pois, conhecendo a tempo as dificuldades, pode-se analisar suas causas e encontrar meios de sua superação. O controle e a avaliação dependem de informações concretas e objetivas sobre o andamento dos trabalhos, tendo como base o projeto pedagógico-curricular e as ações efetivas praticadas pelos vários elementos da equipe escolar. Para a coleta de informações, o diretor pode servir-se de observação, de acompanhamento das salas de aula e do recreio, de entrevistas pessoais com professores e com outros servidores, de reuniões sistemáticas ouextraordinárias, deencontros informais com o pessoal docente, técnico e administrativo. O acompanhamento e o controle comprovam os resultados do trabalho, evidenciam os erros, as dificuldades, os êxitos e os fracassos relativos ao que foi planejado. A avaliação das atividades implica a análise coletiva dos resultados alcançados e a tomada de decisões sobre as medidas necessárias para solucionar as deficiências encontradas. O QUE É AVALIAÇÃO? Em quase todos os encontros com professores, bem como nos relatos de outros especialistas e pesquisadores da avaliação, constata-se a contradição entre as intenções proclamadas e o processo efetivamente aplicado. Certamente, tal contradição nasce da autocensura gerada pelo descompasso entre uma imagem idealizada da avaliação – auferida em tinturas de teorias mais atuais e progressistas – e a realidade cotidiana das escolas, condicionadas, estruturalmente, pelo sistema de promoção e seriação e, conjunturalmente, pelas péssimas condições concretas de trabalho e pelas determinações dos superiores de plantão. Talvez, por isso mesmo, surjam tantas concepções de avaliação, sempre vagamente implicadas nas formulações verbais de professores, alunos e pais, que a identificam com tudo que ocorre nas práticas correntes: prova, nota, conceito, boletim, aprovação, reprovação, recuperação etc. Já entre os estudiosos do tema, trava-se uma interminável batalha pelo monopólio da verdade e da precisão do conceito, surgindo também uma variação conceitual na razão direta da diversificação das concepções pedagógicas assumidas. Se tentarmos levantar os diversos conceitos de avaliação da aprendizagem, certamente encontraremos tantos quantos são seus formuladores. É claro que em cada conceito de avaliação subjaz uma determinada concepção de educação. Então, haveria tantas concepções de educação quantos são seus formuladores? Pensamos que não. Percebemos que, embora apresentando pequenas variações formais, na sua substância elas podem ser agrupadas em um número menor de conjuntos. Como o tema de que nos ocupamos neste momento é a avaliação e como suas concepções derivam das de educação em geral, vejamos algumas definições de avaliação encontradas nos autores mais consagrados e nas publicações mais recentes. Avaliação é o processo de atribuição de símbolos a fenômenos com o objetivo de caracterizar o valor do fenômeno, geralmente com referência a algum padrão de natureza social, cultural ou científica. Esta definição reflete, claramente, a postura classificatória dos autores, pois consideram a avaliação como um julgamento de valor, com base em padrões consagrados e tomados previamente como referência. A distinção que estabelecem entre padrões “sociais”, “culturais” ou “científicos” denota uma postura positivista, na medida em que não incorporam a ideia de que os padrões científicos são também socialmente elaborados. No entanto, sua obra é preciosa no sentido do tratamento técnico que emprestam aos instrumentos de medida e avaliação. Avaliar é julgar ou fazer a apreciação de alguém ou alguma coisa, tendo como base uma escala de valores (ou) interpretar dados quantitativos e qualitativos para obter um parecer ou julgamento de valor, tendo por base padrõesoucritérios. Em alguns autores já percebemos a preocupação em não se deixar enquadrar na “teoria conservadora”, propondo um “redirecionamento” do julgamento e da classificação quase sempre presentes em concepções mais conservadoras. Volta-se para uma visão diagnóstica, na qual a avaliação passa a ser um processo de verificação e pesquisa das mudanças de estratégias e instrumentos que interferem na condução do processo educativo. Destaca-se, ainda, a formulação coletiva deste processo, que deve garantir a aprendizagem do aluno, mas não avança sobre a discussão do grau de socialização desse coletivo, nem qualifica o projeto alvo de aprendizagem do aluno. Ou seja, embora avance em relação às concepções meramente classificatórias, não explora todas as potencialidades políticas e politizadores do que denomina “coletivo”, sem dos componentes do projeto pedagógico cuja aprendizagem pelo aluno será garantida. Assim, para que a avaliação não se enquadre no universo das “tradicionais” basta que ela seja apenas instrumento do processo de tomada de decisão dos “agentes escolares”, que trabalham um projeto pedagógico coletivamente formulado e que se comprometa com a aprendizagem dos alunos. A avaliação consistirá em estabelecer uma comparação do que foi alcançado com o que se pretende atingir. Estaremos avaliando quando estivermos examinando o que queremos, o que estamos construindo e o que conseguimos, analisando sua validade e eficiência (= máxima produção com um mínimo de esforço). (A avaliação é) um juízo de qualidade sobre dados relevantes para uma tomada de decisão (Luckesi, 1995). Os trabalhos do Professor C. Luckesi já vinham sendo considerados como verdadeiros “clássicos” da avaliação brasileira, pois, como ele próprio confessa na coletânea que reuniu a maioria deles, seu pensamento, neste particular, evolui das posições mais “tradicionalistas” e “conservadoras” até asmais “avançadas” (preocupadas com o caráter apenas diagnóstico da avaliação). Muito embora sua contribuição seja inestimável, especialmente no que diz respeito ao eu poderíamos denominar uma verdadeira “teoria do erro”, pensamos que o Professor Luckesi peca – como os pedagogos e pensadores mais recentes e preocupados com a superação da teoria “tradicional” – pelo excesso de desconsideração dos aspectos positivos das teorias classificatórias. Muitas outras definições ou conceitos poderiam ser relacionados, mas, para os objetivos deste trabalho, os destacados já são suficientes. Com relativo risco reducionista ou de simplificação exorbitante, de maneira geral, podemos reduzir as concepções de avaliação a dois grandes grupos – referenciados em duas concepções antagônicas de educação. Estas, por sua vez, referenciam-se nas visões de mundo positivista ou dialéticas, isto é, buscam seus parâmetros em cosmovisões que entendem o universo e as relações que nele se travam como estruturas ou como processos. Dizendo-o de modo mais simples: se encaramos a vida como algo dado, tendemos para uma epistemologia positivista e, consequentemente, para um sistema educacional perseguidor de “verdades absolutas” e “padronizadas”. Se, pelo contrário, encaramos a vida como processo, tendemos para uma teoria dialética do conhecimento e, por isso mesmo, engendradora de uma concepção educacional preocupada com a criação e a transformação. No caso da primeira, forçosamente construiremos uma teoria da avaliação baseada no julgamento de erros e acertos que conduzem a prêmios e castigos; no caso da segunda, potencializaremos uma concepção avaliadora de desempenhos de agentes ou instituições, em situações específicas e cujos sucessos ou insucessos são importantes para a escolha das alternativas subsequentes. Entre os educadores brasileiros temos encontrado essas duas concepções de avaliação com mais frequência, derivadas, evidentemente, de concepções antagônicas de educação que, ao penetrarem nos umbrais escolares, acabam por provocar uma completa dissonância entre as convicções proclamadas e as práticas efetivamente levadas a efeito no cotidiano das relações pedagógicas. As profundas diferenças que as caracterizam não constituem um mal em si. Contudo, a mútua exclusão que se instalou radicalmente entre elas, cada uma rechaçando a outras e autovalorizando-se como única alternativa científica e válida, acabou por implantar um verdadeiro maniqueísmo – típico das concepções que dividem qualquer universo em apenas dois semi-universos incompatíveis -, cegando-as para uma possibilidade de aproximação e complementaridade. Desconfiamos que tal dicotomia pese mais negativamente para muitos professores do que as próprias condições salariais e de trabalho adversas. E por que, se eles se colocam de um lado ou de outro? Por que, se a maioria dos professores considera a primeira concepção como “tradicional” e a segunda como “progressista” ou “construtivista”? Não é o que acontece na realidade. A maioria dos docentes incorpora a primeira como teoria válida, rechaçando a segunda, mas, de fato, “se sentem obrigados” a aplicar a segunda. Ora, ninguém consegue equilibrar- se, pessoal e socialmente, se sente obrigado a defender determinados princípios e ideias e, ao mesmo tempo, vivenciar o contrário do que pensa. Todos estamos à procura de equilíbrios, de coerência, pelo menos para com nossa própria consciência. Ninguém consegue olhar para um espelho e dizer “enganei-te hoje”. Sempre procuramos explicações e justificativas razoáveis para nossos gestos e ações. Esta reação compensadora manifestada na simulação de uma “dedicação exclusiva e incondicional à escola”, com sacrifícios enormes nos outros segmentos da vida social e afetiva dos docentes – mais explícita nos de ensino fundamental -, pode ser a manifestação de uma síndrome singular. Pesquisadores já levantaram uma série de fatores, classificando-os em “contextuais” (institucionais) e “textuais” (interativos). Dentre os primeiros, destaca-se a progressiva responsabilidade do professor em ambientes multiculturais, levando-o a assumir discursos e papéis contraditórios e ambíguos (daí, a síndrome). Não estaria entre eles a assunção de um discurso pedagógico institucionalmente progressista e uma prática interativa conservadora? Somente com uma pesquisa mais profunda e abrangente, com o levantamento, cruzamento e análise de variáveis sociais, políticas, econômicas, culturais e pedagógicas, seria possível chegar a conclusões mais definitivas. Neste particular, chama-nos a atenção o trabalho realizado por Maria Eliana Novaes, Professora primária: mestra ou tia (1986), no qual a pesquisadora, dentre várias outras conclusões, destaca que muitas docentes das primeiras letras – a maioria é constituída de mulheres – não se casam e não têm filhos, e que “algumas delas, possivelmente, encontram no Magistério uma alternativa de sublimação para a maternidade frustrada (como se pode inferir das constantes referências do ‘amor maternal’ que a professora deve dedicar ao aluno)”. A escola não é o universo que esgota a trajetória do itinerário individual e do processo civilizatório, nem o trabalho docente pode resumir a razão da existência de quem quer que seja, porque nem a primeira nem o segundo são fins em si mesmos, mas apenas e respectivamente um dos espaços e um dos instrumentos de relacionamento do ser humano, cuja realização só alcança sua plenitude numa variada gama de espaços e de relações interpessoais. Dizer que o trabalho na escola “é a razão de ser de sua própria existência” e, como resultado de tal presunção, monopolizar todas as atividades pessoais no que-fazer-pedagógico é afundar-se em uma síndrome de alienação. E, certamente, a escola, enquanto instituição alienada, torna- se instituinte da alienação de seus atores, não atendendo nem mesmo às finalidades de seus criadores liberais, gerando “disfuncionalidades” e ameaçando a tão proclamada “produtividade” – quase sempre traduzida nos reclamos de “eficácia” e “eficiência”. Simultaneamente, a síndrome docente é alimentada pelo desencontro entre as convicções pedagógicas assumidas e as práticas educativas desenvolvidas, em função das limitações estruturais e circunstanciais que caracterizam o ambiente de trabalho. E o educador, na ânsia de “mostrar serviço”, compensar e camuflar seu próprio sentimento de impotência, trabalha exaustivamente e tenta responder, desesperadamente, aos desafios de uma sociedade cada vez mais complexa e mais exigente. A escola e as concepções de avaliação No caso específico da avaliação da aprendizagem, a escola brasileira encontra-se prensada entre as duas já mencionadas correntes resultantes de duas concepções pedagógicas radicalmente antagônicas. De um lado, as teorias educacionais que se auto intitulam “progressistas” ganham maior expressão nas intenções proclamadas dos profissionais do setor, de outro, as idealizações competitivas, classificatórias e meritocráticas, embora também rechaçando as anteriores, apresentam maior frequência nas práticas efetivas destes mesmos profissionais, no dia-a-dia da escola. A figura apresentada a seguir expressa melhor o que estamos querendo dizer. Procurando não qualificar nenhuma das duas concepções, denominando-as, simplesmente, “I” e “II”, porque cada uma delas, em sua fobia dicotômica, irá adjetivar a si mesma como “avançada”, “atualizada” e “progressista” e irá considerar a outra como “atrasada”, “desatualizada” e “retrógrada”. Analisemos os procedimentos que cada uma delas propõe. Os defensores mais radicais do primeiro tipo de avaliação acreditam que apenas a auto avaliação ou a avaliação interna são legítimas, considerando espúria toda e qualquer verificação que faz apelo a avaliadores externos ao universo alvo do processo avaliativo.
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